NATUREZA DA CIÊNCIA E DO ESPÍRITO CIENTÍFICO RUIZ, João Álvaro. Metodologia Científica. Guia para Eficiência nos Estudos. São Paulo. Ed. Atlas. 5ª ed. 2002. Natureza da Ciência e do Espírito Científico. Pág. 128 a 136. 6.1 SENTIDOS DA PALAVRA “CIÊNCIA” Quando dissemos sobre o fenômeno do conhecimento em geral, bem como sobre os diferentes modos de conhecer, quisemos preparar o caminho para uma abordagem mais direta sobre a natureza da ciência. A palavra ciência pode ser assumida em duas acepções: em sentido amplo, ciência significa simplesmente conhecimento, como na expressão tomar ciência disto ou daquilo; em sentido restrito, ciência não significa um conhecimento qualquer, e sim um conhecimento que não só apreende ou registra fatos, mas também os demonstra pelas suas causas determinantes ou constitutivas. Cumpre observar que as definições de ciência são numerosas; cada uma acentua determinados aspectos assumidos como principais ou, mesmo, únicos. Entretanto, nenhuma característica da ciência, tomada separadamente, circunscreve ou define adequadamente o conceito de ciência. Será preferível, pois, enumerar as diversas características que, tomadas em conjunto, contrapõem o conceito da ciência aos outros modos de conhecer ou às outras produções humanas. Tomamos a palavra ciência em seu sentido estrito e global. Se a mente humana pudesse atingir o universo em sua abrangência infinita, a ciência seria uma e infinita como seu próprio objeto, mas as limitações da mente humana exigem a fragmentação do real para melhor poder atingir cada um de seus segmentos; daí resultar a pluralidade das ciências.Neste nosso estudo assumimos “ciência” em seu sentido estrito e global, isto é, como realidade uma e total, não como especialidade em áreas delimitadas. 6.2 CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA 6.2.1 Conhecimento Pelas causas Em contraposição ao modo vulgar ou empírico de conhecer, a ciência é definida como conhecimento pelas causas. Saber que ao longo do equador faz mais calor que abaixo dos trópicos é um simples conhecimento empírico ou vulgar; relacionar este fenômeno constante às suas causas determinantes, isto é, demonstrar porque razão o fenômeno assim se apresenta já é conhecimento menos vulgar e mais científico. Conhece cientificamente quem é capaz de demonstrar os porquês de determinado enunciado. “Vere scire, per causas scire”, dizia Bacon, repetindo Aristóteles, que, vinte séculos antes, já definira ciência como “cognitio rei per causam propter quam res est, et quod ejus causa, et non contigit aliter se habere”. ( I Analytica Posteriore, c.2.) 6.2.2 Profundidade e generalidade de suas conclusões O conhecimento pelas causas é o modo mais íntimo e profundo de se atingir o real. Esta espécie de conhecimento amplia os espaços da verdade e fundamenta legítima certeza, passível de demonstração pela evidencia direta dos fatos. A ciência não se detém no simples registro dos fatos; este é o ponto inicial de longo processo de pesquisa. As conclusões científicas ultrapassam as limitações do conhecimento vulgar. Enquanto este registra fatos singulares ou aproxima fatos similares por força de analogias parciais, a ciência pesquisa sua constituição e apreende o elemento comum; por isso, a ciência exprime suas conclusões em enunciados gerais que traduzem a relação do binômio causa-efeito. A ciência generaliza porque atinge a constituição íntima e a causa comum a todos os fenômenos da mesma espécie. A validade universal dos enunciados científicos confere à ciência a prerrogativa de fazer prognósticos seguros. 6.2.3 Finalidade teórica e prática Existe no ser humano a capacidade, a tendência ou o anseio de conhecer, de compreender, de desvendar o desconhecido. E a ciência empenha-se no propósito de tornar o universo compreensível. Enquanto a ciência satisfaz este profundo desejo de conhecer, realiza sua finalidade teórica. Mas a ciência não pára neste nobre objetivo, nesta finalidade primeira, que tanto a dignifica e que serviu de motivação para que tantos homens se devotassem à pesquisa desinteressada da verdade, como o demonstra a História. Da pesquisa fundamental, da descoberta da verdade, decorrem inúmeras conseqüências práticas no domínio da natureza, no prognóstico e no controle dos eventos, nos avanços tecnológicos, em suma, na melhoria das condições da vida humana. “...a ciência aplicada transformou a face da Terra e traçou os contornos da civilização ocidental contemporânea.”1 6.2.4 Objetivo formal Não é o objetivo material que caracteriza a ciência; na verdade, o mesmo objeto material pode ser atingidos por diferentes modos de conhecer.assim é que o objeto “homem”pode ser atingindo pela poesia, pela Filosofia, pela religião, e também pelas ciências, tais como a Psicologia, a Biologia e a Sociologia. O que caracteriza a ciência é seu objeto formal, isto é, a maneira peculiar, o aspecto, ou o ângulo sob o qual atinge o seu objeto material. O modo específico de a ciência atingir seu objeto é o controle experimental das causas reais próximas. O poeta é intuitivo; o filósofo paira na esfera dos argutos questionamentos, que conduzem a respostas globais de caráter analítico-dedutivo; o teólogo associa um e a outro algo de místico, de fiducial; e o cientista parte de fatos concretos e permanecem no plano dos fatos observáveis e controláveis experimentalmente. A ciência tem por objeto material realidades físicas, sua pesquisa é instrumentada, seu objetivo é manifestar a evidencia dos fatos e não das idéias. Procede por via experimental, indutiva, objetiva; suas demonstrações consistem na apresentação das causas físicas determinantes ou constitutivas das realidades experimentalmente controladas. Não se submete a argumentos de autoridade, mas tão-somente à evidência dos fatos. Não tem pátria, não tem dono, não ultrapassa os limites fixados pelo seu próprio método experimental. 6.2.5 Método e controle O problema do método será objeto de um estudo à parte. Nós o mencionamos aqui apenas como uma das características da ciência, tão importante que alguns autores chegam a definir ciência exatamente em função do método. Enquanto o conhecimento vulgar é ametódico, o método constitui a via real de acesso da mente humana nos processos da pesquisa científica. A Filosofia usa o método racional de caráter eminentemente dedutivo. Em contraposição à Filosofia, a ciência caracteriza-se pelo emprego do método experimental, essencialmente indutivo. Esse método permite o registro de elementos relevantes para a solução de determinado problema, assim como a eliminação segura e precisas de eventuais causas estranhas, na exata medida em que procura pô-las sob controle. Toda experimentação científica processa-se em condições de rigoroso controle de toda a situação. Sem controle, não se pode identificar a causa ou a fonte real dos fenômenos; se não se eliminar a possibilidade de ação ou atuação de causas não controladas, o procedimento não será científico, nem conduzirá a conclusão segura. Neste sentido pode-se dizer que a ciência é uma investigação rigorosamente metódica e controlada, nem será a outra razão da confiança nas conclusões científicas. 6.2.6 Exatidão Tanto os processos de pesquisa científica como os resultados finais alcançados gozam de exatidão relativamente a outros modos de conhecer. Essa exatidão característica da ciência, relativa às suas conclusões, decorre dapossibilidade de se demonstrar, por via de experimentação ou evidência dos fatos objetivos, observáveis e controláveis, o mérito de seus enunciados. Embora os enunciados científicas possam ser passíveis de revisões pela sua natureza “tentativa”, no seu estado atual de desenvolvimento, a ciência fixa degraus sólidos na subida para o integral conhecimento da realidade. __________ 1 NAGEL, Ciência natureza e objetivo. In: - Filosofia da ciência, p. 14 6.2.7 Aspecto social Cumpre ainda observar que a ciência é uma instrumentação social. Os cientistas são membros de uma sociedade intelectual universal consagrada à procura da verdade e à melhoria das condições de vida da humanidade. 6.3 ALGUMAS DEFINIÇÕES DE CIÊNCIA Após a apresentação deste elenco de características que, em conjunto, circunscrevem adequadamente o conceito de ciência, incumbirá ao leitor identificar os aspectos que são enfatizados, bem como as deficiências de algumas definições correntes de ciência, tais como: 1. “Conhecimento certo do real pelas suas causas.” 2. “Conjunto orgânico de conclusões certas e gerais demonstradas e relacionadas com o objeto determinado. 3. “Atividade que se propõe demonstrar a verdade dos fatos experimentais e suas aplicações práticas.” 4. “Conhecimento sistemático dos fenômenos da natureza e das leis que os regem, obtido através da investigação, pelo raciocínio e pela experimentação intensiva.” 5. “Estudo de problemas solúveis, mediante método científico.” metodicamente A análise destas definições, que ora salientam aspectos subjetivos ou operativos, por exemplo, pela palavra conhecimento ou atividade, ora acentuam aspectos objetivos, como na expressão conjunto orgânico de conclusões, ora permitem características do método, do aspecto social e outras mais, pode constituir-se de bom exercício de revisão e de debates. 6.4 ESPÍRITO CIENTÍFICO Além de conhecer a natureza da ciência e do método científico, é necessário meditar sobre o espírito científico. Dizemos “meditar” e fazemo-lo muito propositadamente, porque este item de nossas considerações não tem somente propósitos instrucionais, mas também, e principalmente, objetivos atitudinais. Esse item pretende não somente expor as virtudes do espírito científico, mas também suscitar nossa admiração, numa espécie de meditação geradora de profundas ressonâncias na vida do estudante e do universitário. Espírito científico, mentalidade científica, ou atitude científica é um estado de espírito, é uma disposição subjetiva adequada à nobreza e à seriedade do trabalho científico. Esse estado subjetivo resulta o cultivo de uma constelação de virtudes morais e intelectuais, não bastará, pois, conhecê-la; é preciso vivê-las, reduzi-las à prática, cultivá-las. 6.4.1 Espírito crítico O bom senso da Humanidade, tomado o consenso, sempre atingiu conhecimentos razoáveis sobre o ambiente físico, biológico, moral e social; atingiu problemas, conceitos e soluções provisórias de real importância no decurso da História. Nem o homem contemporâneo comum necessita de cultura superior à dos antepassados para orientar suas vidas. Mas, esta espécie de conhecimento vulgar apanhado de oitava, de segunda ou de terceira mão, constitui o estágio pré-científico da Humanidade, constitui o estágio pré-crítico do homem de todos os tempos, inclusive dos homens deste nosso século. Na primeira etapa de sua evolução, cada ser humano apropria-se de um acervo de informações mais ou menos organizadas pela sua vivência e experiência pessoal; cada ser humano apropria-se de conceitos, de soluções, de normas práticas de conduta ditadas pela sociedade, pela religião ou mesmo pela ciência. Mas, assim como a Humanidade, tomada como um todo, chegou à fase madura da crítica, o mesmo deve acontecer com cada ser humano. Criticar é, antes de mais nada, analisar, questionar, submeter a exame, julgar a validade, a fundamentação das soluções estabelecidas; como o espírito crítico inicia-se a trajetória de toda renovação científica da Humanidade e de cada ser humano em particular. É necessário que se estabeleça a devida distinção entre espírito crítico e espírito de crítica. Espírito crítico é a atitude amadurecida do homem, que busca com sinceridade a verdade, suprema virtude da mente; o espírito crítico pondera razões, confronta motivos, busca o desvelamento da verdade, que tranqüilize as exigências da razão, dissipe as trevas da ignorância e promova o progresso da mente. Espírito de crítica é o espírito da contradição, é o indício de desorganização mental, de superficialidade irresponsável, que conduz ao ceticismo, à inanição; nasce do nada e não conduz a coisa alguma, ou nasce da inquietação pessoal e conduz a inquietação de muitos. Da mesma forma que se deve cultivar, desenvolver e fundamentar socialmente o espírito crítico, deve-se, por outro lado, banir do ambiente amadurecido da ciência o fútil espírito de crítica, demolidor e pernicioso. 6.4.2 Espírito de confiança na ciência O espírito crítico evita os dois extremos perigosos representados, de um lado, pela aceitação dócil e passiva de conclusões baseadas no prestígio de respeitável tradição ou na autoridade de homens ilustres e da sociedade envolvente e, por outro lado, evita o extremo do ceticismo prático, que pode instalar-se após o naufrágio da docilidade passiva às influencias do meio. Ter espírito científico é ter confiança na ciência, é ter certo entusiasmo pela ciência, é não ceder ao ceticismo suicida do espírito, nem à submissão passiva a dogmatismos. O homem que cultiva o espírito científico de confiança na ciência caminha a igual distância entre estes dois extremos do ceticismo e da docilidade ingênua a dogmatismos. Os principiantes correm o risco de pender para o ceticismo, para a agressividade demolidora, que nada aceita como sólido ou válido, que quer reconstruir tudo de novo, desde os alicerces, mas que sucumbe, naturalmente, ao peso da tarefa sobre-humana pela sua imaturidade, pelas suas limitações, pela falta de instrumentos adequados à impossível tarefa e pelo uso, nesta reconstrução, de material não testado pelo crivo da experiência. 6.4.3 Busca de evidências Basta que se leiam as biografias dos cientistas para que logo se evidencie seu espírito de luta na busca de evidências. Os cientistas não se caracteriza pela erudição, mas pela busca de evidências, pela procura da evidência dos fatos. O homem comum vê a natureza, ouve a natureza; o cientista a interroga, quer explicações pela linguagem eloqüente dos fatos. Só a evidência dos fatos sacia seu desejo de conhecer “como” e os “porquês”dos fenômenos. Essa busca de evidências significa liberdade, autenticidade e rejeição de toda sorte de autoridade. O cientista, a rigor, não quer saber o que Aristóteles ou Bacon disse, e nem mesmo o que Deus disse, mas está comprometido em ouvir só a voz dos fatos e em submeter-se, enquanto cientista, só a evidência dos fatos, como ensinava o próprio Aristóteles ao escrever: “Muitos fatos que cito não são indiscutíveis; quando se puderem verificar, deve-se-á prestar mais fé à experiência do que a teoria. Esta não merece a nossa confiança senão quando se encontrar em harmonia com os fatos.”(De Generatione Animalium, III, 10.) A busca de evidência é uma característica do espírito científico exatamente à medida que este, movido por intensa curiosidade intelectual, não se satisfaz com o simples conhecimento dos fatos, mas procura compreendê-los, justificá-los e demonstrá-los. 6.4.4 Espírito de análise Enquanto o filósofo prima pelo espírito de síntese capaz de oferecer uma visão global e unitária do universo e da vida, o cientista caracteriza pelo espírito de análise. A análise consiste na decomposição, no desdobramento, na segmentação de um todo complexo em seus componentes ou elementos simples. 6.4.5 Espírito positivo de apego à objetividade O cientista deve ser dócil à evidência dos fatos. É a evidência dos fatos, objetiva e irrefutável, que assume a função de critério da verdade. As hipóteses são uma espécie da interpretação previa da realidade, são uma espécie de preconceito que orienta as experimentações em determinada direção; mas, se, por outro lado, o cientista trabalha à luz de idéias preconcebidas, por outro espera que os fatos julguem em definitivo, definam, comprovem ou desaprovem sua validade. Mesmo que determinadas hipóteses possam celebrizar ou popularizar o nome de um cientista, no seu íntimo ele deve aguardar o veredictum da evidência dos fatos, e acatá-lo mesmo contra o seu desejo ou à custa de seu prestígio momentâneo. Este mesmo espírito positivo e de objetividade torna o cientista prudente e cauteloso em suas afirmações; o cientista não precipita conclusões sem evidência suficiente oriunda dos fatos, e não de seu engenho criativo. Ciência não é literatura de ficção. 6.4.6 Espírito criativo Não parece contradição afirmar, agora, que o espírito científico deve ser criativo; a criatividade científica versa sobre a elaboração de hipóteses, de instrumentos e processos de pesquisa, e nunca sobre conclusões que só devem brotar da evidência dos fatos, pois o cientista quer pensar como as coisas que são e não pode pretender que as coisas devem ser como ele as imagina. 6.4.7 Espírito indagador O cientista não entende a ciência como um ponto de chegada, fixo e definitivo, mas como um caminho, como um processo em constante evolução. Entende que saber um pouco de tudo vale o mesmo que não saber quase nada de cada coisa; por isso, indaga sobre problemas supostamente já resolvidos, pauta seu espírito sobre a esteira da dúvida cartesiana e reconstitui para si as certezas dos outros. Prefere ficar sem respostas a aceitar soluções de limitada evidência ou de evidência pouco apoiada nos fatos. Poe em prática as lições do “sapienter dubitare”, isto é, a norma de “duvidar com sabedoria”. Duvidar com sabedoria significa suspender o julgamento sempre que não haja evidência suficiente, como ensinou Descartes em seu Discurso sobre o Método, ao escrever: “Não aceitar nada como verdadeiro sem saber evidentemente o que é.” A dúvida negativa antecede o exame das razoes e pose confundir-se com a própria ignorância. Da mesma forma, diríamos que a certeza vulgar, ou pré-crítica, também antecede o exame das razões, e pode confundir-se com a ignorância. O espírito indagador duvida do peso das razões, já conhecidas e ponderadas; duvida para aprofundar a ponderação das razões, para chegar à certeza com o apoio da evidência. 6.5 CONCLUSÃO Concluindo, é bom lembrar que o espírito científico é um clima geral, uma atitude global, não uma soma artificial de virtudes; por isso, é denominado espírito científico, que pode estar nascendo hoje em qualquer de nós. Por qualquer parte que se imagine iniciar o seu cultivo, ele crescerá como um todo; não existe virtude isolada; elas sempre andam em grupos e constituem um espírito. O mesmo, aliás, acontece com os vícios ou defeitos; ninguém terá apenas o defeito de ser mau pagador; o mal pagador é mentiroso, o mentiroso não pode ter amizades dignas, e assim por diante. Não basta conhecer o espírito científico. Quem conseguir admirá-lo já está caminhando para o seu cultivo. E quem cultivá-lo tirará bom proveito de seu curso universitário e será profissional voltado a um trabalho sério e profícuo no seu campo de atividades e influências.