O tabuleiro de xadrez do comércio internacional

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Universidade Estadual de Campinas – 11 a 17 de agosto de 2003
11
O desafio do atual governo é conciliar política de comércio exterior e projeto de desenvolvimento econômico
O tabuleiro de xadrez do comércio internacional
WANDA JORGE
Q
[email protected]
ue papel está reservado ao Brasil nas
negociações da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca), que tem o prazo
marcado de 1º de janeiro de 2005 para
ser implantada? Na instância mais global, das reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC), qual a margem de manobra que os países em desenvolvimento, onde o Brasil se insere, têm para alterar ou, ao menos,
Papel do Brasil influenciar as decisões dos grandes
na Alca e na blocos de países avançados, liderados por Estados Unidos e União
OMC
Européia ?
é discutido
Nesse cenário assimétrico, está a
em seminário difícil tarefa de inserir questões
cruciais para países com economia
mais frágil, menos tecnologizadas
e altamente dependentes de sua produção agrícola. Em praticamente todas as
rodadas da OMC, o assunto “subsídios agrícolas” entra e sai de pauta sem
significar avanços concretos. Na Alca,
o governo norte-americano nem quer
falar nisso.
Para debater essas questões, especialistas e autoridades
no assunto estiveram reunidos por
três dias na Unicamp, no seminário
Estado Atual das Negociações Comerciais
OMC e Alca – Desafios para o Brasil e Mercosul. O encontro
serviu, ainda, para
lançar o curso de especialização em diplomacia econômica no Instituto de Economia, que tem o
apoio da Conferência das Nações UniO ministro da das sobre Comércio e Desenvolvimento
Agricultura,
(UNCTAD).
Roberto
O ministro da Agricultura, Roberto
Rodrigues:
Rodrigues, relata que o governo norte“estagnação americano insiste em não discutir na
nas
Alca e transferir para a OMC a discusnegociações
internacionais” são sobre os subsídios
agrícolas. O termo já criado para definir o acordo das Américas é uma “Alca
light”, pois o açúcar não entra nem na
pauta de discussão. “Existe hoje uma
situação de estagnação nas negociações
internacionais, caracterizadas por ações
mais duras dos países desenvolvidos
como os Estados Unidos que, entre outras ações, contrariou decisões tomadas
no âmbito do Gatt de reduzir paulatinamente os subsídios. Na realidade, o
aumento de proteção em dólar aos agricultores cresceu 14% desde então”. Rodrigues lembra que o montante total de
subsídios pagos pelos países desenvolvidos já chegou a US$ 1 bilhão por dia
e hoje é só um pouco menor.
A percepção de poucos avanços nas
negociações comerciais é compartilhada pela maioria dos analistas presentes
ao encontro. Mas, para o ex-embaixador
brasileiro e atual secretário-geral da
UNCTAD, Rubens Ricúpero, a imprensa tem uma preocupação excessiva com
a Alca e a OMC. “É preciso dar o peso
adequado a essas questões, pois é mais
importante para o Brasil ter uma estratégia de desenvolvimento e uma política de aumento de produção”. Ele não
está otimista quanto às futuras rodadas
previstas de comércio. Ele acrescenta
que já se conseguiu em rodadas anteriores pelo menos 12 prazos de redução
e liberação de taxas em diferentes áreas. “Todos foram violados”.
Na alçada das Américas, tudo está
atrasado, nenhum padrão quantitativo
foi definido e os debates para avanços
na Alca devem ocorrer no próximo ano,
período que coincide com as eleições
norte-americanas. Há pouco indício,
portanto, que nesse cenário, o governo
norte-americano relaxe em suas propostas protecionistas, diz o diplomata.
Em contrapartida, os países mais ricos
já estão negociando entre si para a próxima rodada da OMC, restando aos demais avançar no escuro, tendo os poucos
dias da reunião para decidir estratégias
que os favoreçam.
Para o professor da Unicamp Marco
Aurélio Garcia, assessor da Presidência
da República para assuntos de relações
internacionais, estamos assistindo a
uma nova divisão internacional do trabalho, com impactos de toda natureza
e para as variadas camadas da sociedade. O desafio do governo brasileiro, ao
se confrontar com as grandes negociações do comércio, é descobrir como defender os interesses nacionais de seu
país. Temas como relações internacionais e política externa têm terminologias
grandiosas, mas afetam o cotidiano do
cidadão. “Por isso, não deve restringirse ao debate de diplomatas e governo.
É importante a discussão desses assuntos nas universidades e nas instituições
representativas das várias camadas da
sociedade”. Garcia acrescenta que tais
decisões, nas instâncias de comércio in-
ternacional, têm forte impacto econômico nos países. “É preciso evitar a desorganização econômica como a que houve
nos anos 90, gerada por opções de inserção comercial com redução tarifária que
mudou a estrutura produtiva e social
brasileira, trazendo inclusive, impactos
culturais”.
Garcia confirma que o comércio mundial sofre hoje certo estancamento e no
Brasil ele é limitado a 10 a 12% do PIB.
“Devemos nos esforçar para crescer, já
que isso é importante para enfrentar
problemas conjunturais como o déficit
no balanço de pagamentos, mas essa
melhor performance no exterior deve
alavancar o desenvolvimento do país,
significar investimento no parque industrial e enfrentar a crise energética”.
Existem elementos novos no cenário
da política externa brasileira que valem
ser destacados, diz Garcia. “Não queremos mais uma inserção sozinhos. O primeiro ponto é o Mercosul, cujo objetivo
é sua reconstrução e mesmo ampliação,
não limitando-se à união aduaneira posta em marcha. Queremos dispor de políticas ativas na áreas agrícola e industrial, sonhar com a moeda única que levaria a uma estabilidade monetária para a
região; um parlamento com a secretariaexecutiva em Montevidéu. Alcançar uma região socialmente mais integrada é
um elemento que possibilitaria uma inserção fortalecida no comércio mundial”, acrescenta o assessor.
Estruturas comerciais como a Alca
proposta, a OMC ou mercados comuns
como o da União Européia, sempre colocam países como o Brasil num mundo profundamente assimétrico, com
economias de maior tamanho e mais
sofisticadas. Entrar numa negociação
com adversários desse porte tenderia a
cristalizar e até agravar a nova divisão
de trabalho que a globalização trouxe,
e a involução social que ocorreu na última década para os países menos desenvolvidos.
Garcia garante que o governo brasileiro está consciente de todas essas dificuldades. Os países emergentes sofreram um brutal empobrecimento na úl-
O professor Marco Aurélio Garcia: “Não
estamos vivendo o dilema de nos submeter
para sobreviver”
O professor Sebastião Velasco e Cruz: regras
mínimas de garantia do trabalho, denúncia da
mobilidade dos capitais e autonomia
O jogo comercial
A negociação na Alca, uma idéia lançada em fins de 1994 que
envolve 34 países, tem vivido de poucos avanços e muitos
recuos. Em julho último, pela primeira vez parece que um novo
movimento nas peças desse xadrez, colocou o Brasil numa
posição mais ativa, à espera agora da reação do principal
embatedor, os Estados Unidos. O ministro da Relações Exteriores, Celso Amorim, apresentou o posicionamento oficial do
governo para as negociações, estratégia resultante de conversas
anteriores com demais integrantes do Mercosul e exposta aos
EUA. Esta é a primeira dez, desde que o lançamento da criação de uma área americana de comércio livre, que o Brasil questiona a estrutura da negociação.
No tabuleiro de negociações, foi um movimento interessante.
O atual governo herdou a agenda ambiciosa de negociação,
concebida basicamente pelos EUA e envolvendo os principais
interesses daquele país, em detrimento da maioria dos interesses dos países latino-americanos, uma clara desvantagem diante do porte de tal competidor. Questões como eliminação de
barreiras tarifárias de produtos fundamentais para o Brasil
como açúcar, suco de laranja ou aço, assim como livre trânsito de trabalhadores, que interessa à maioria dos demais envolvidos, está em jogo.
A estratégia brasileira está disposta, no que já virou jargão
no meio da negociação, em “três trilhos”. No primeiro trilho,
na negociação 4+1 (outro jargão) que envolve Mercosul e Estados Unidos, estariam os temas de acesso a mercado de bens,
serviços e investimento; no segundo trilho, a negociação incluiria todos os membros, na abordagem de questões básicas como
solução de controvérsias, tratamento diferenciado para países
em desenvolvimento, fundos de compensação, regras fitossanitárias e facilitação de comércio. O terceiro trilho desloca para a negociação multilateral na OMC assuntos como a
parte normativa de propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais.
O professor da Unicamp Sebastião Velasco e Cruz contabiliza
que o comércio internacional explodiu nos últimos 30 anos, a
taxas mais elevadas que o crescimento econômico como um
todo. A circulação de bens tornou-se dinâmica, com o barateamento do transporte e a comunicação intensificada. “Este foi
o lado bom”, diz. O lamentável foram a exclusão social, o desemprego e a agudização dos problemas internos dos países
decorrentes dessa globalização. A natureza distorcida do comércio internacionais, a assimetria nas relações de poder impuseram barreiras - como subsídios e tarifas - justamente nos
setores onde os países menos desenvolvidos são mais competitivos, como aço, têxteis e agrícolas.
Outra evidência desse jogo internacional foi a mobilidade constante do capital frente à imobilidade do trabalho. Os investimentos migram livremente na direção de vantagens mais atraentes;
os trabalhadores enfrentam barreiras legais para buscar as melhores oportunidades de emprego fora de suas fronteiras pátrias.
Para o professor, a solução teria que priorizar, não a ampliação do comércio, mas na incorporação no debate com os países centrais, de claúsulas sociais na OMC, como regras mínimas de garantia do trabalho, denúncia da mobilidade dos
capitais e fortalecimento da autonomia dos Estados-Nações.
tima década, o desequilíbrio aumentou,
o que acarreta instabilidade crescente.
Miséria e insurgência, esse é um cenário que tanto amedronta os países mais
desenvolvidos. “Livre comércio” transformou-se num produto de exportação,
que a periferia comprou mas a matriz
não, diz. Para ajustar-se, lembra o professor, o setor siderúrgico brasileiro
demitiu 100 mil trabalhadores para ser
competitivo; mas para que essa sangria
social se enfrenta, na outra ponta, as medidas restritivas à exportação?
A estratégia brasileira deve refletir
essa coesão e atender o interesse nacional e não de grupos econômicos com
mais força. Deve pautar-se pela proteção ao emprego, ao trabalho e visando
a coesão social, no trilho de uma sociedade mais equilibrada e justa. A vulnerabilidade do Brasil é muito grande
e os problemas precisam ser enfrentados gradualmente, porém avançando.
Garcia não considera grave a proximidade ao prazo de 2005 da Alca. “É preciso ficar claro que não estamos vivendo o dilema de nos submeter para sobreviver; não é verdadeira a condenação
norte-americana
Fotos: Neldo Cantanti
de: ou vendemos na
Alca ou na Antártica. Temos possibilidade de acordos bilaterais com os países andinos e até
mesmo como os Estados Unidos”.
Garcia reconhece
que “nem tudo são
flores”, e várias decisões presidenciais
se confrontam com
instâncias legais e
mesmo burocráticas. Mas considera
positiva a atitude mais propositiva do O secretáriogeral da
atual governo, que já recebeu todos os
UNCTAD,
presidentes da América do Sul para
Rubens
conversar, acompanhados de seus ministros que se reuniram com compa- Ricúpero: “É
nheiros de área no Brasil. “Existe uma preciso dar o
peso
grande disposição de criar uma rede de adequado às
infra-estrutura no continente sul-amequestões”
ricano, o que inclui empréstimos, financiamento de obras. Não nos interessa
mais fechar uma fábrica em Córdoba
para abri-la em São Paulo; melhor é criar
mecanismos para integrar a produção
entre elas”. O assessor da Presidência
cita uma situação exemplar desse pensamento, que ocorreu recentemente
com a Ambev. A empresa brasileira de
bebidas comprou uma fábrica no Uruguai e iria fechá-la, demitindo seus 100
operários. “Tal atitude, porém, iria contra a idéia do governo de um Mercosul
social: a empresa foi chamada e acabou
por abrir lá uma fábrica de malte, criando 400 empregos e substituindo parte
da importação européia do produto.
Esta é uma medida concreta de política industrial brasileira”, conclui Garcia.
A difícil pauta
O açúcar é o assunto mais complicado no comércio
mundial. Rubens Ricúpero afirma não conseguir visualizar nos próximos 30 anos, a queda de proteção
nessa área, mesmo sendo o produto brasileiro o mais competitivo do mercado. Outro contencioso do país nas negociações é o suco de laranja e as sobretaxas que incidem
sobre o produto para ser vendido nos Estados Unidos.
É bom lembrar que as políticas comerciais, tanto nos EUA
como na Europa, são decididas em instâncias como Câmaras de Representantes que, na esfera norte-americana, têm 25 aguerridos deputados da Flórida que impedem qualquer abertura nessa área, diz Ricúpero.
Ele considera que o Brasil sempre teve “um dedo podre” na escolha de seus produtos prioritários para a exportação; aço, etanol, tabaco, suco de laranja, açúcar.
“Seria fundamental um esforço na diversificação e aumento de quantidade de oferta de produtos. Cerca de 100
produtos estão na lista de exportáveis, mas 80% da oferta
brasileira é pouco diversificada. Em algumas áreas, a
capacidade de produção de alguns produtos está em seu
limite: dos 348 exportadores, quase 80 dispõem de pouca capacidade ociosa e só exportam à custa de recessão
interna. Dos 20 produtos mais dinâmicos do comércio
mundial, o Brasil só comparece melancolicamente nos
dois últimos- bebidas não alcoólicas e roupas de baixo de
malha”, finaliza.
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