sérgio wladimir cazé dos santos - Facom-UFBA

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SÉRGIO WLADIMIR CAZÉ DOS SANTOS
PERCURSOS DA MÚSICA ELETRÔNICA
Projeto Experimental
Apresentado ao Curso de Comunicação da Universidade Federal da Bahia
como requisito à obtenção do grau de
BACHAREL EM COMUNICAÇÃO
ORIENTADOR: PROF. MONCLAR E. G. L. VALVERDE
SALVADOR
1998
Resumo: O trabalho, centrado no tema das relações entre música e tecnologia no século
XX, consiste em duas linhas gerais complementares que atravessam todo o texto: a) um
relato narrativo e informativo que procura traçar uma visão panorâmica da história da
música eletrônica e das inovações tecnológicas que a impulsionaram e condicionaram, tanto
no ambiente da música de vanguarda quanto no da cultura pop; e b) um exercício de crítica
cultural buscando explicitar o vínculo, estreito e rico em sugestões poéticas e formais, entre
as práticas desse universo musical e os equipamentos que constituem suas ferramentas.
Palavras-chave: música / eletrônica / tecnologia / Kraftwerk / dance / techno
2
A minha família
A todos os que contribuíram, ainda que
involuntariamente, para a realização deste Projeto
Experimental - com uma idéia, uma sugestão
ou mesmo uma conversa corriqueira
sobre por onde passa o som.
3
Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Pesquisadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama.
Fred Zero Quatro
4
Índice
Apresentação
Capítulo I - O uso da tecnologia na música do século XX
À procura de novos sons
Máquinas, ruído e música
O tape studio: sons da música concreta
Elektronische Musik: Stockhausen e o som artificial puro
Outras músicas eletrônicas
Guinada para o pop
Capítulo II – O input do Kraftwerk: Electronic Folk Musik
Na auto-estrada do pop eletrônico
A música folclórica da aldeia global
Desenvolvimentos simultâneos
Output: tecnhopop, industrial, tecno, electrofunk
Capítulo III – A linha de montagem da música eletrônica: bricolage, colagem, pulso,
loop
Questão de bricolage
O sampler e a colagem sonora
Circularidade e estrutura em loop: o techno no fluxo da cultura contemporânea
Conclusão
Apêndice I – “Derrange”, a canção: uma experiência de colagem sonora
Apêndice II – Glossário
Bibliografia
Discografia
5
Apresentação
A decisão de escrever, como Projeto Experimental de Conclusão de Curso, uma monografia
que tivesse como tema o universo da música eletrônica surgiu de uma curiosidade pessoal
que encontrou obstáculo na escassez de bibliografia brasileira sobre o assunto. A
inexistência de obras que tematizem a história e as particularidades da música eletrônica no
mercado brasileiro - desde suas gerações iniciais, ligadas à pesquisa formal da música
erudita contemporânea, até as vertentes atuais da música eletrônica dançante - me levou a
procurar informações e abordagens de questões correlatas em livros de especialistas e em
sites na Internet, a maioria deles em inglês, reunindo, ao fim de algum tempo, um material
significativo. Apresento aqui uma visão abrangente, embora apenas panorâmica, da história
da música eletrônica e das respectivas inovações tecnológicas que a impulsionaram, numa
tentativa de sistematizar em um único trabalho as abordagens parciais das tendências
diversas e dos diferentes momentos que esse modo de fazer música conheceu desde o início
deste século.
O tema da música eletrônica (termo genérico que decreve uma vasta gama de
manifestações musicais muito distintas, mas que possuem em comum a utilização de som
gerado ou modificado eletronicamente) ganha destaque na reflexão sobre a comunicação
contemporânea porque põe em evidência a intersecção entre os domínios artístico,
mediático e tecnológico, alertando as teorias da cultura para o fato de que hoje nenhum
deles pode existir isolado dos outros. Na experiência artística contemporânea, o domínio
tecnológico é questionado mediante a exploração dos recursos do equipamento, com a
intenção trangressora de ultrapassar seus usos previstos e seus limites.
Assim, o surgimento de inovações tecnológicas no exato momento em que as práticas
musicais consolidadas viviam, no âmbito da música de concerto de tradição ocidental, uma
grande crise e uma necessidade de renovação, resultou em uma apropiação imediata desses
meios pelas novas gerações. Nesse sentido, acompanhar as mudanças formais e estruturais
introduzidas pelos novos meios nas noções de consonância e dissonância, nas condições de
produção e fruição musicais e no próprio significado da palavra “música” é apreender um
6
aspecto do movimento de incorporação da tecnologia pela cultura musical.
Também uma rica interface entre a tecnologia e a música popular pode ser verificada
facilmente, na medida em que a última é “não somente veiculada mas efetivamente tornada
possível e abrangida pelo estabelecimento técnico-industrial, através da fonografia –
inicialmente do disco, do rádio e do cinema falado” 1 . A introdução de microfones
direcionais e mais potentes, por exemplo, permitiu que os cantores criassem uma nova
forma de colocar a voz, que abandona o canto empostado, quase operístico, e adota uma
vocalização mais próxima da fala comum. Os equipamentos de gravação analógica e
reprodução, por sua vez, criaram novas condições de fruição musical, em que as peças
passam a estar sempre disponíveis para o ouvinte, que pode ouvi-la em casa, sem
necessidade da “ritualização” do concerto ou do espetáculo.
A música eletrônica propriamente dita surge quando o aparato tecnológico possibilita não
só a amplificação do volume de som dos instrumentos e a reprodução da música gravada,
mas modifica a própria criação musical, com a incorporação de diversos instrumentos
novos que ampliam as possibilidades dos instrumentos convencionais e com aparelhos
destinados à produção e à manipulação de sons, abrindo todo um novo universo musical a
ser explorado. Assim, se qualquer abordagem da música popular (compreendida como a
música de origem popular integrada aos meios de reprodução técnica) deve levar em conta
os processos midiológicos e tecnológicos que foram aparecendo em paralelo à formação
desse universo musical, no caso de um estudo da música eletrônica isso se torna ainda mais
necessário: na história da música eletrônica, as inovações formais e estilísticas se
confundem com os progressos técnicos.
Nos últimos dez anos, testemunhamos a consolidação da música eletrônica para dança no
cenário pop mundial. Depois de gerações sucessivas de tendências e estilos, ela chega aos
anos 90 sob a denominação genérica de techno. Agora este modo de fazer e de sentir a
música deixa de ser o objeto de culto de grupos restritos e ganha o posto de nova tendência
BASTOS, Rafael José de Menezes. A origem do samba como invenção do Brasil. Sobre “Feitio de Oração”,
de Vadico e Noel Rosa (Por que as canções têm música?). In: Antropologia em primeira mão. Santa Catarina:
UFSC, 1995. p. 5.
1
7
aglutinadora de expectativas e formatos entre os artistas, os produtores e o público. Mas o
momento atual representa o ponto culminante de um lento processo de constituição, difusão
e popularização de um modo de fazer música que data das primeiras décadas do século XX
e que teve origem nos círculos intelectualizados da música erudita de vanguarda. Com o
grupo alemão Krafwterk, nos anos 70, muitas dessas idéias e recursos tecnológicos
migraram para o âmbito da música pop e com isso as sonoridades eletrônicas começaram a
ser exploradas de modo mais sistemático, a serviço de uma música provocadora de um tipo
de fruição que privilegia o envolvimento corporal.
Traçar esse longo percurso de experimentações, fazendo a ponte, sempre indispensável,
entre a música eletrônica e as tecnologias que lhe servem de suporte é o objetivo deste
trabalho, situado entre a pesquisa jornalística e a crítica cultural.
Durante o semestre de execução do projeto (98.1), minha participação, na condição de
aluno ouvinte, na disciplina “Temas Especiais em Comunicação”, ministrada pelo professor
Monclar Valverde, orientador desta monografia, adicionou um componente inicialmente
não previsto, que se incorporou ao trabalho final: a possibilidade de realizar, com o
equipamento do então recém-instalado estúdio de som da Facom, um produto musical a
partir de técnicas semelhantes às utilizadas por muitos dos produtores e DJs referidos a
partir do segundo capítulo: usando trechos de músicas pré-existentes, “sampleados”,
reprocessados e reordenados. O resultado desse esforço experimental, a faixa “Derrange”,
criada em parceria com o colega Pérsio Menezes, é apresentado no CD em anexo (v.
Apêndice).
8
Capítulo I
O uso da tecnologia na música do século XX
O termo “música eletrônica” é geralmente usado para caracterizar a produção musical que
“emprega sons gerados eletronicamente ou modificados por meios eletrônicos,
acompanhados ou não por vozes ou instrumentos musicais, e que pode ser apresentada ao
vivo ou através de alto-falantes” 2 . David H. Cope a define muito sucintamente como
“música composta com ou alterada por meios eletrônicos” 3 . É evidente que definições
como essas duas, ao darem ênfase à tecnologia que possibilita a criação de tal música, não
vislumbram uma descrição de seus aspectos formais ou estéticos, os quais dependem da
maneira como cada artista se apropria dos recursos técnicos para confeccionar uma obra ou
produto artístico. São definições vagas porque tomam em conjunto, como se fossem uma
coisa só, modos de organizar sons tão diametralmente distintos como a música eletrônica
de orientação acadêmica, que se convencionou denominar “eletroacústica” (apoiada em um
vasto elenco de reflexões estético-composicionais) e a música eletrônica “popular”
(frequentemente destinada à dança e feita de maneira espontânea e intuitiva, muitas vezes
por não-músicos). Ao mesmo tempo, porém, as condições tecnológicas compartilhadas por
esses dois extremos da prática musical eletrônica (e pelas diversas gradações intermediárias
entre eles) permitem falar em uma linha comum, um universo musical com uma tradição
própria.
Este capítulo apresenta uma visão panorâmica da música de base eletrônica tal como ela
vem se configurando desde o começo deste século: procura traçar sua história, relacionar as
inovações tecnológicas que a impulsionaram, os diferentes rumos e tendências que os
músicos seguiram e, por fim, estabelecer uma distinção entre o modo como os recursos
eletrônicos foram adotados pelos compositores da música eletroacústica e o modo como
deles se apropriaram artistas e produtores da electronic pop music.
2
LUENING, Otto. Origins. in: APPLETON, Jon H. & PERERA, Ronald. The Development and Practice of
Electronic Music. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1974. p. 4.
3
COPE, David H. Electronic music. in: New directions in music. Dubuque, Iowa: Wm. C. Brown, 1981. p.
108.
9
À procura de novos sons
Nossa notação musical é completamente inadequada. Ela não
consegue de modo algum expressar todas as possibilidades do som,
nem metade, nem um quarto, nem um décimo delas. Existem
possibilidades no som que ninguém sabe como escrever no papel.
Leopold Stokowski, maestro, 1932
O contexto em que a idéia de música eletrônica surge é o de mal-estar generalizado, entre
os artistas da passagem do século XIX para o século XX, com a defasagem da produção
artísticas em relação aos avanços da tecnologia e às mudanças sociais, cada vez mais
intensas e velozes naquele momento; dessa carência de renovação estética e de atualização
poética, surge a arte moderna. Os novos compositores eruditos, particularmente,
demonstravam insatisfação com o impasse a que havia chegado a música ocidental à
medida que começava a evidenciar-se o esgotamento das possibilidades oferecidas pela
tonalidade e pela instrumentação de concerto. Parecia que nenhum passo adiante poderia
ser dado em uma linguagem musical que já tinha atingido seu limite máximo de
desenvolvimento. Os compositores sentiam-se constrangidos dentro do quadro de
procedimentos formais pré-definidos que haviam herdado.
A limitação do campo de atuação do compositor a uma determinada faixa do espectro
sonoro fora fundamental, ao longo da história da música, porque permitira a criação de
convenções e o estabelecimento de práticas partilhadas por compositores de todas as épocas
e lugares, impulsionando a formação de uma rica tradição musical. Ao fim do século XIX,
no entanto, a sensação era de estagnação, e aqueles que se dedicavam a compor a “música
do novo século” viram-se obrigados a desenvolver uma série de inovações, como a
atonalidade e o dodecafonismo. A música eletrônica faz também parte desse amplo
conjunto de tentativas de inovação sonora e composicional, com objetivos e resultados de
tal maneira diversos que torna-se difícil englobá-las em uma caracterização geral. Uma
listagem minimamente minuciosa dessas inovações deveria destacar
10
o cromatismo; o uso ampliado e mais livre da dissonância; a consolidação da
liberdade harmônica e melódica; a utilização das idéias estruturais derivadas da
música popular genuína e da primitiva música do Ocidente; o conceito de
inter-relações entre as várias partes de uma composição musical; a descoberta do
passado distante e da música não-ocidental; a vasta expansão da técnica
instrumental e do timbre; a nova liberdade, a complexidade e a independência de
ritmo, de expressividades dinâmicas e de colorido total.4
O crítico José Miguel Wisnik, procurando compreender toda essa movimentação sonora
sob a luz de um único prisma, desenvolve a noção de ruído, cuja introdução na prática
musical seria o procedimento mais característico desse momento. Olhando em retrospecto a
história da música tonal, Wisnik nota que ela buscou sempre constituir um “campo sonoro
filtrado de ruídos”5, um aquário de sons em equilíbrio onde o conflito só seria admitido
“com a condição de ser harmonicamente resolvido”. A partir do início do século XX,
porém, o ruído, durante séculos recalcado, emerge de seu estado de latência musical, na
medida em que “barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como integrantes da
linguagem musical”6. Esse retorno, diz o autor, se dá em dois níveis: um nível interno, onde
os “rumores” ocorrem no interior da própria prática musical estabelecida (dissonâncias,
alterações rítmicas, timbrísticas e de texturas, rarefação das melodias e da resolução
hamônica etc.) e um nível externo, em que os ruídos do ambiente (principalmente os sons
do mundo moderno) vazam para dentro das obras. No último caso, as fronteiras entre som
musical e ruído começam a se anular; qualquer som, a depender do enquadramento que lhe
é dado, pode então fazer parte de uma obra musical.
A música contemporânea descobriu, portanto, que poderia explorar aspectos do som que a
tradição ocidental, mesmo sendo tão rica, havia deixado em segundo plano em privilégio da
altura (melodia e harmonia). Tornaram-se comuns constatações como a do compositor
francês Oliver Messiaen de que
4
SALZMAN, Eric. Introdução à música do século XX. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1970. p. 14
5
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das
Letras/ Círculo do Livro, 1989. P. 39.
6
Id., ibid.
11
a música, no sentido de harmonia, chegou a seu limite. Os compositores do
século XX não irão além disso. (...) Por outro lado, os outros elementos da
música (especialmente os rítmicos [grifo nosso], que foram esquecidos por tanto
tempo: duração, timbre, ataque, intensidade) elevam-se hoje em dia a uma
posição de honra”7.
Os avanços na prática musical do século XX são resultado do trabalho de compositores que
trouxeram esses parâmetros para a frente do palco sonoro, como o russo Igor Stravinski, os
norte-americanos Henry Cowell e John Cage, e o alemão Arnold Schoenberg. Stravinski
utilizou, em A Sagração da Primavera (1913), novas dimensões de ritmo, timbre e
dinâmica. Cowell foi o criador dos tone clusters (“agregados de notas”). O piano foi objeto
de algumas das inovações introduzidas por Cage: seu piano preparado consistia na
interferência de parafusos e borrachas sobre as cordas do instrumento, produzindo timbres
bastante diferentes do original. Schoenberg, com a criação do dodecafonismo, decretou o
fim definitivo da supremacia do tonalismo.
Nesse contexto, a emergente música eletrônica apresenta um diferencial significativo em
relação às outras tentativas de renovação: apesar de reunir contribuições e descobertas de
todas, ela radicaliza a busca do inédito em matéria de som musical valendo-se de uma
tecnologia totalmente nova: a transformação da onda sonora em sinal elétrico. A
colaboração entre técnicos e músicos resultou no desenvolvimento de todo um conjunto de
novos instrumentos eletrônicos, como o Theremin (1923), o Ondes Marternot (1928), o
Trautonium (1930) e o sintetizador analógico, cujo primeiro modelo apareceu em 1929.
Além disso, o fonógrafo (inventado por volta de 1878) e o gravador de fita magnética
(aperfeiçoado em 1935) logo destacaram-se como novos instrumentos para os compositores
que, percebendo as possibilidades da transformação do som gravado e empregando-o em
suas obras, revelaram o potencial expressivo de um meio originalmente votado a uma vida
utilitária em fins meramente práticos (como, por exemplo, nas comunicações militares).
7
Apud Luening, Op. Cit., p.12
12
Máquinas, ruído e música
Queremos afinar e regular a imensa variedade de ruídos
harmonicamente e ritmicamente.
Luigi Russolo, 1913
A primeira sistematização do ideal de uma música produzida unicamente com o uso de
máquinas pode ser encontrada entre os manifestos do Futurismo, vanguarda surgida na
Itália sob a liderança do poeta Filipo Marinetti. Esse movimento buscava uma revolução
estética de resultados condizentes com a velocidade, a maquinização e a urbanização dos
tempos modernos, pois (diziam os Futuristas), à medida que as indústrias passam a fazer
parte do ambiente humano, os modos de pensar e de sentir sofrem transformações
substanciais que precisam encontrar correspondências na poética e na estética. O Futurismo
pregava, assim, a necessidade de uma arte do motor e da eletricidade, que representasse
uma superação definitiva dos valores e das formas do passado - e que parecia reiterar a
afirmação do compositor impressionista francês Claude Debussy em 1913: “O século do
avião merece a sua música”.
Publicado nesse mesmo ano, o manifesto “A Arte do Ruído”, asssinado pelo pintor e
músico Luigi Russolo, seguidor de Marinetti, aplicava as motivações futuristas ao campo
da música, ampliando a definição do que deve ser considerado “musical” ao introduzir a
idéia de ruído como fonte de material sonoro para a composição. Russolo toma por ruídos
tanto os sons da natureza, produzidos independentemente da atividade humana
(tempestades, terremotos, quedas d’água), quanto os sons de objetos criados pelo progresso
científico (fábricas, trens, automóveis, aviões). A esses ruídos ele opõe os sons (as notas e
os acordes), enquanto unidades mínimas que, organizadas harmonicamente, constituem a
composição erudita ocidental. A musicalidade proposta por Russolo deveria explorar todo o
universo sonoro disponível, indo muito além da instrumentação de concerto e
distanciando-se dos princípios musicais tradicionais, ultrapassando o âmbito do som e
incorporando todo tipo de ruído8.
8
Note-se que, enquanto Wisnik trabalha a noção de ruído de maneira ampla, incluindo nela os novos
procedimentos da linguagem propriamente musical, Russolo lhe dá um sentido muito específico, referido a
13
Seu texto começa com um breve panorama da história da música ocidental e, a partir daí,
procura demonstrar a tendência, ao longo dos séculos, de crescente complexificação das
sonoridades musicais, passando do acorde soante perfeito (com a presença de poucas
dissonâncias), às dissonâncias persistentes que caracterizam a música a partir do século
XIX. Desse modo, a postura Futurista propõe não uma negação da música do passado, mas
a continuidade de um processo natural de ampliação do campo sonoro destinado à atividade
artística e de incorporação de novas sonoridades ao domínio da expressão. Na linguagem
lírica e exaltada comum aos manifestos, Russolo declara:
Nós Futuristas amamos e apreciamos profundamente as harmonias dos grandes
mestres. Por muitos anos Beethoven e Wagner sacudiram nossos nervos e
corações. Agora estamos saturados e vemos mais prazer na combinação dos
ruídos dos bondes, dos motores, das carruagens e no grito das multidões do que
em ensaiar, por exemplo, a Eroica ou a Pastoral [sinfonias de Beethoven].9
Procurando por em prática esse projeto, ele desenvolveu engenhos mecânicos formados por
caixas de madeira de tamanhos diversos, os Intonarumori (“Entoadores de Ruído”),
destinados a produzir e modificar certos barulhos, como estampidos, estalos, roncos,
rangidos, explosões e zunidos. As demonstrações públicas que fazia com essas engenhocas
baseavam-se na combinação de sons, anunciando a idéia de som organizado, que seria
essencial para o trabalho dos compositores da música eletrônica, como Edgard Varèse e
Pierre Schaeffer.
Simultaneamente, outros lugares viam os avanços técnicos superarem as especulações
modernistas. Uma grande quantidade de instrumentos musicais eletrônicos começou a ser
inventada a partir de colaborações entre técnicos e músicos, como os já citados Ondes
Marternot e Trautonium. A maior parte deles, porém, limitava-se a imitar instrumentos já
todos os sons não produzidos por instrumentos acústicos. Ambos, no entanto, apresentam uma interpretação
da trajetória da música ocidental sob o prisma da complexificação harmônica e timbrística, na qual o ruído
teria um papel crescente.
9
RUSSOLO, Luigi. The art of noises. 1913. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da
disponibilização perdidos
14
existentes, principalmente os instrumentos de teclado, ampliando a sonoridade dos modelos
acústicos através de processos eletrônicos de amplificação e modificação do som. Além
disso, esses novos instrumentos eram geralmente colocados ao lado de instrumentos
tradicionais e a serviço de formas musicais tradicionais, como no Concertino para
Trautonium e orquestra (1931), de Paul Hindemith. A demanda por uma poética musical
radicalmente nova tardava a ser satisfeita.
Foi o Theremin (apresentado ao público em 1923 pelo físico russo Leon Termen, seu
criador) que marcou o aparecimento de instrumentos musicais livres dos modelos acústicos:
os sons são produzidos de acordo com movimentos das mãos no ar, provocando
interferência em dois circuitos elétricos, semelhantes a antenas, responsáveis pelo tom e
pela amplitude do sinal. O Theremin foi empregado por diversos compositores, como
Joseph Schillinger (na Airphonic Suite for RCA Therémin and Orchestra), e posteriormente
passou a figurar com grande destaque nas trilhas sonoras para cinema, notadamente nos
primeiros filmes de ficção científica e terror.
Também nos anos 20 apareceu a inovação que representou uma das maiores reviravoltas no
interior da música eletrônica: os sistemas de gravação, estocagem e transformação do som
baseados na fita magnética. Essa invenção permitiu que qualquer som gravado pudesse ser
tomado como matéria-prima para a utilização criativa, abrindo caminho para a música
concreta, a elektronische Musik (música eletrônica alemã) e as formas de electronic pop
music contemporâneas.
15
O tape studio: sons da música concreta
Em qualquer lugar, o que mais ouvimos são ruídos. Queremos
capturar e controlar esses sons, e usá-los não como efeitos de
estúdio mas como instrumentos musicais.
John Cage, 1937
As aspirações de John Cage representam uma inquietação dispersa entre alguns
compositores das primeiras décadas do século, e os avanços tecnológicos pouco a pouco
procuraram satisfazê-la. A idéia de que gravações pudessem servir de base para a
composição musical foi discutida pela primeira vez em 1926, no Festival de Música de
Câmara de Donaueschingen, na Alemanha. Um programa de pesquisa dedicado a questões
em torno do assunto foi implantado na Escola de Música de Berlim dois anos depois, dando
origem, em 1930, a duas peças experimentais, criadas pelos compositores Paul Hindemith e
Ernst Toch com os recursos fonográficos de alteração de velocidade (aceleração e
retardamento), transposição e mixagem do som. Foi na França, porém, que os experimentos
em gravação e manipulação de sons foram desenvolvidos de modo expressivo, nos estúdios
da RTF (Radio-Television Français), coordenados pelo engenheiro eletroacústico Pierre
Schaeffer. Ele produziu peças musicais, além de textos programáticos, dentro do que
denominou musique concrète, ou seja, música concreta10.
Na confecção de obras como Sinfonia para um homem só (1950), Schaeffer estabeleceu e
desenvolveu técnicas de intervenção na fita magnética - mudanças na velocidade de
rotação, inversão da direção de rotação, corte e edição, tape loops*11 e superposição de
materiais (mixagem) - que lhe permitiram realizar modificações substanciais em sons
anteriormente gravados, como vozes, cascatas, trovões, máquinas, etc. Essas técnicas foram
depois adotadas por grande parte dos compositores de música eletrônica, tornando-se
generalizadas. Ao mesmo tempo aparelhos como filtros, reverberadores e equalizadores
possibilitaram que o compositor controlasse diretamente os parâmetros físicos que
constituem o som, tais como a frequência, o espectro, a intensidade, o envelope e a
10
Os termos marcados em negrito correspondem a tendências composicionais ou gêneros musicais, e uma
breve descrição de cada um deles pode ser encontrada nos parágrafos vizinhos à sua ocorrência.
11
Os termos marcados com um asterisco (*) encontram-se referidos no Glossário (Apêndice II).
16
duração, além do modo de passagem de um evento sonoro para o seguinte. Com o correr
do tempo, foram desenvolvidos gravadores destinados especificamente à manipulação do
som: equipados com um seletor de velocidade, eram capazes de alterar a tonalidade de um
som e fazê-la coincidir com as notas da escala musical convencional. O gravador e o
estúdio de fita começaram a ser considerados verdadeiros instrumentos musicais, pois toda
uma linguagem musical passou a explorar intensivamente suas possibilidades técnicas.
Explica-se, dessa maneira, o motivo da denominação música concreta: nesta, a música se
faz diretamente na fita, com sons reais (concretos) modificados e organizados
empiricamente - enquanto que as formas tradicionais da música de concerto são
primeiramente concebidas de maneira abstrata e em linguagem simbólica (a notação
musical) e só depois realizadas concretamente, no momento da execução pelo intérprete. As
notas e os acordes são substituídas, na função de unidades mínimas das peçaa musicais,
pelo que Schaeffer chamava de objetos sonoros, as pequenas gravações individuais
destinadas à composição das “estruturas de som organizado”. Outra razão está na
reprodutibilidade das peça: ao contrário da música de concerto, em que a obra é
virtualizada no momento em que o compositor a escreve na partitura e depende sempre de
uma atualização pelo intérprete (pois música só existe enquanto som), cada peça de música
concreta possui apenas uma interpretação, aquela que foi gravada e mixada e que é
reproduzida a cada “concerto” (o mesmo vale para toda peça de música eletrônica
registrada em fita daí por diante, como as obras da escola alemã de elektronische Musik).
Elektronische Musik: Stockhausen e o som artificial puro
A distinção entre as duas principais escolas da música eletrônica baseada nos recursos do
tape studio definia-se em função do tipo de material bruto escolhido, ou seja, das fontes
sonoras, eletrônicas ou não-eletrônicas, a serem utilizadas na confecção da obra musical.
As fontes não-eletrônicas, privilegiadas pela música concreta, podiam, como vimos, ser
tanto sons da natureza quanto sons de instrumentos, em gravações submetidas a
reprocessamento e a mixagem. O uso de fontes sonoras totalmente eletrônicas só veio a
acontecer sistematicamente com a elektronische Musik, que reunia compositores como
17
Stockhausen, Eimert e Meyer-Eppler em torno do estúdio de Colônia, na Alemanha.
Tomando como material sons inteiramente artificiais, ou seja, frequências puras geradas
por aparelhos como sintetizadores e osciladores, modificadas por filtros e moduladores e
organizadas segundo uma aplicação fiel ao método serial, Stockhausen produziu uma
extensa obra que é tida como um dos legados mais importantes da música eletrônica para a
música produzida neste século.
Depois da obra Gesang der Jünglingle (1955-56), do próprio Stockhausen, e do Poème
électronique (1958), de Varèse - feitas com gravações de vozes humanas, sons ambientais,
instrumentos tradicionais e sons sintéticos, manipulados em estúdio -, a interação entre
fontes eletrônicas e não-eletrônicas em uma mesma obra disseminou-se, e a oposição rígida
entre as escolas de música eletrônica perdeu o sentido. Desde então, o termo música
eletroacústica consagrou-se como o mais adequado para nomear a compatibilização
técnica e estética de ambas as tendências (acrescida, em muitos casos, da reincorporação
das conquistas da linguagem musical ocidental12).
Outras músicas eletrônicas
As possibilidades expressivas abertas pelo aparato de estúdio foram exploradas pelos
compositores também no sentido de ampliar os limites da execução e da performance
instrumental, na medida em que as novas tecnologias permitiram que o som dos
instrumentos comuns fosse retrabalhado de formas não-convencionais e até inéditas. Entre
os compositores que empregaram instrumentos acústicos em suas obras para fita estão
Mario Davidowsky, Donald Erb, Otto Luening, Steve Reich, entre muitos outros. Através
de montagem e mixagem de trechos musicais, suas obras demonstram a aptidão da
gravação em fita para explorar toda a variedade de sons dos instrumentos e elevar a
execução a níveis de velocidade e exatidão para além da capacidade humana. Flautas,
percussão, violinos e outros instrumentos foram usados desde então de modos inesperados
12
V. Menezes, 1996 apud Grupo de Artes Sônicas, Música eletrônica. http://www.artnet.com.br/~pmotta.htm
18
e surpreendentes, consolidando a tecnologia como um grande aliado na renovação das
formas musicais.
Duas outras importantes inovações técnicas ampliaram os horizontes da música eletrônica a
partir do fim dos anos 50: a criação do sintetizador e a digitalização dos dados sonoros. O
primeiro, baseado no transistor, ampliou as possibilidades de síntese de sons, além de
aumentar a sua variedade. Já com a digitalização do som, ou seja, a conversão das
vibrações sonoras em parâmetros numéricos altamente manipuláveis, o computador passou
a reunir as funções de estúdio e de equipamento de síntese de timbres e sons, capacitando
uma intervenção ainda maior do compositor na criação do material para sua música.
Durante algum tempo, o computador foi usado também, no âmbito da pesquisa em
composição musical, na criação de partituras convencionais a partir de dados numéricos
calculados através da máquina13.
Ao mesmo tempo, a música comercial, representada pelos diversos gêneros da música
popular, intensificava o uso dos novos recursos tecnológicos, fazendo deles um uso similar
(mas, como veremos, diferenciado) e familiarizando um largo público com as
características do som eletrônico. Cabe, portanto, uma distinção entre a música
eletroacústica propriamente dita e a apropriação da tecnologia eletrônica pelas músicas
popular e pop. A primeira, apesar de ser sob vários aspectos um desdobramento da
linguagem da música tonal ocidental, buscou sempre uma poética própria. A música
popular que fez uso do aparato eletrônico, ao contrário, manteve-se, em geral, presa aos
princípios da organização harmônica tonal e às formas de instrumentação anteriores, como
a pequena orquestra. É nesse sentido que Peter Manning observa, em Electronic &
computer music:
A sólida integração dos recursos eletrônicos aos instrumentos mais tradicionais
do rock e do pop estabeleceram uma conexão técnica com as principais correntes
da música eletrônica. As conexões artísticas, porém, têm sido muito mais tênues,
pois as diferenças filosóficas e estilísticas mostraram-se difíceis de superar.14
13
14
Cf. MANNING, Peter. Electronic & computer music. New York: Oxford University Press, 1988.
Id., ibid., p. 204.
19
De agora em diante, portanto, utilizaremos o termo música eletroacústica quando
estivermos nos referindo às vertentes acadêmicas da música eletrônica e o termo pop
eletrônico (ou electronic pop music) para falar do uso dessas mesmas tecnologias no
âmbito da música popular.
Guinada para o pop
Trata-se de uma via de mão única.
Karlheinz Stockhausen, aos jornalistas que
lhe perguntaram sobre sua influência no rock.
Já na época das primeiras experimentações com a fita magnética em música eletrônica,
esperava-se que suas técnicas fossem apropriadas pelos artistas de música popular. De fato,
desde sempre o pop evoluiu em função do aparecimento de novos recursos técnicos que
ampliavam suas possibilidades estéticas, tornando, no mesmo ato, as novas sonoridades
eletrônicas familiares ao grande público. A adoção da guitarra elétrica por músicos de
blues, por exemplo, catalisou a formação do rhythm & blues, versão do gênero mais rápida,
mais complexa e orientada para a dança (e que posteriormente levaria à constituição das
características básicas do rock’n’roll)15. O órgão elétrico Hammond e o sintetizador Moog,
originalmente criados para uso de compositores eruditos, também tiveram grande
importância no desenvolvimento de certas formas de música pop, especialmente a partir da
complexificação formal do rock nos anos 60, e tornando-se muito populares.
As possibilidades abertas pelos estúdios, então em plena expansão tecnológica, foram
largamente exploradas em álbuns como Pet sounds (Beach Boys) e Sergeant Peppers
(Beatles), ambos de 1967. Guitarristas como Jimi Hendrix (Are you experienced?, 1967)
tornaram-se célebres ao dotarem suas guitarras elétricas dos recursos do pedal de efeitos,
aparelho que prolonga as notas e distorce o timbre. O trabalho do Pink Floyd (Atom heart
15
V. DAUFOUY, Philippe e SARTON, Jean-Pierre. Pop music/Rock. Tradução de Carlos Lemos. Lisboa: A
regra do Jogo, 1974. p. 21-28.
20
mother, 1970, Meddle, 1971), por sua vez, é cheio de tentativas de exploração de fontes
sonoras “concretas”, transformadas por efeitos eletrônicos e embutidas em suas canções
(muitas vezes em alusão às alterações da percepção motivadas pelo uso de drogas). No
mesmo sentido, o interesse de Frank Zappa pelo trabalho de Varèse e de Stockhausen se
refletia nas experimentações de cruzamento entre rock e música eletroacústica presentes em
álbuns de seu grupo Moterhs of Invention, como Freak Out, de 1966. Por outro lado, no
que se refere à resposta do público, um dos primeiros trabalhos a ter uma grande
repercussão mercadológica foi o álbum Switched on Bach (1968), de Walter Carlos, que
transformou-se em um grande sucesso de vendas ao “recriar” algumas obras de Bach com
um sintetizador Moog.
Porém, só faz sentido falar em uma electronic pop music a partir dos anos 70, quando
diversos artistas investiram na busca de uma revitalização dos gêneros pop (o que em
alguns casos resultou na criação de novos gêneros) a partir das novas possibilidades
técnicas, tanto em termos de instrumentos quanto de recursos de estúdio: Brian Eno, na
Inglaterra, o produtor Lee Perry, na Jamaica, o grupo Tangerine Dream e todo o movimento
Krautrock, na Alemanha, entre muitos outros. Uma das intervenções mais significativas
no caminho entre a música eletroacústica (vanguardista, cerebral e distanciada do grande
público) e a disseminação do uso da eletrônica na música popular, foi sem dúvida a atuação
do grupo alemão Kraftwerk, o primeiro a explorar uma imagem pop diretamente vinculada
a essas tecnologias. Produzindo, nos anos 70, uma série de álbuns utilizando
exclusivamente instrumentos eletrônicos, reprocessados segundo uma vivência pop (ritmos
dançantes, letras irônicas), eles intensificaram a interação entre os novos recursos técnicos e
o ouvinte médio e abriram caminho para o surgimento de toda uma nova ramificação da
música pop, a música eletrônica dançante e suas muitas vertentes.
21
Capítulo II
O input do Kraftwerk: Electronic Folk Musik
O pioneirismo do Kraftwerk no uso dos recursos eletrônicos no interior do universo pop
(no qual, por mais problemática que seja a inclusão de seu trabalho, eles encontram
identificação) não é total: como vimos, nos anos 70 as novas tecnologias eram exploradas
por um grande número de artistas, entre nomes conhecidos e obscuros. No entanto, sob
vários aspectos, a obra do Kraftwerk é a mais importante e a mais influente do período,
merecendo uma abordagem detalhada, à parte (que será feita neste capítulo, juntamente
com uma relação de alguns dos outros artistas menos conhecidos e de uma breve descrição
dos desdobramentos da electronic pop music a partir dos anos 70).
Entre as razões que fazem de Ralf Hutter e Florian Schneider os grandes pioneiros do pop
eletrônico está o fato de que, ao optarem por usar exclusivamente instrumentos eletrônicos,
eles injetaram no pop um tipo de invenção e inovação que não havia existido antes e
empurraram os padrões da música pop em outras direções, originando uma (e até mais de
uma) linguagem. Com a ênfase que dava às sonoridades sintéticas e a uma certa idéia de
“música popular futurista”, o grupo, como ninguém antes, firmou no imaginário do grande
público a noção de uma música eletrônica. Apesar de alguns de seus discos terem feito
algum sucesso quando lançados, o Kraftwerk nunca vendeu milhões de discos à maneira
dos maiores astros pop. Seu trabalho, porém, sempre teve muita repercussão nos circuitos
de dance music, influenciando uma boa parte dos artistas e produtores que depois vieram a
criar a imensa variedade de gêneros de música dançante (technopop, hip hop, industrial e
EBM, para citar só alguns). A música do grupo, além disso, ganhou alguma popularidade
(embora muitas vezes o público não soubesse quem estava tocando) ao ser utilizada em
diversos comerciais e programas de televisão em todo o mundo, especialmente quando o
tema era ligado a avanços tecnológicos. Por fim, ao trazer para suas letras, apresentações ao
vivo e entrevistas temas atuais como as relações entre tecnologia e sociedade, homem e
máquina, arte e ciência, o Kraftwerk realizou uma das primeiras abordagens pop para a
discussão sobre o lugar do desenvolvimento tecnológico em nossa época.
22
Na auto-estrada do pop eletrônico
Naquela época, (...) era o momento certo, as pessoas queriam
ouvir sons novos. Todos estavam interessados, não podíamos nem
fazer tudo o que as pessoas queriam ouvir; era uma época muito
receptiva. Com certeza poderíamos ter feito mais do que fizemos.
Ralf Hutter, Kraftwerk
Dusseldorf, Alemanha, 1971. Os dois músicos estão no palco, manipulando seus
instrumentos: sintetizadores, uma bateria eletrônica e um pequeno aparelho que fornece
ecos e feedback. O público balança ao som da música, maquinal, repetitiva e estranhamente
dançante, enquanto um telão exibe imagens de engrenagens e paisagens industriais. A certa
altura, enquanto a música continua a tocar, os músicos descem do palco e... se juntam aos
dançarinos!... que demoram alguns instantes a decifrar o que está acontecendo. Tudo isso
continua por uma hora ou mais.
A cena descrita acima pode ou não ser mais uma lenda envolvendo o nome e a imagem do
Kraftwerk, mas ela é um retrato eloquente do significado que o grupo ganhou na história da
música pop. Com eles, tem início uma era em que a dança passa a ser um dos principais
motores da produção musical (dance music sendo o termo genérico usado para se referir a
essa larga parcela do mercado, formada por uma diversidade de gêneros e correntes), em
que as sonoridades sintéticas atendem a uma determinada expectativa estética e conquistam
uma massa de ouvintes crescente, em que os instrumentos eletrônicos (sintetizadores, drum
machines, computadores) são adotados por um grande número de artistas e em que estes,
por seu lado, muitas vezes se confundem com o público (a partir da figura do DJ,
disc-jóquei, o ouvinte médio que, auxiliado pelo aparato tecnológico, passa a produzir sua
própria música).
E no entanto, considerando apenas os primeiros tempos do Kraftwerk, dificilmente alguém
imaginaria os desdobramentos que o trabalho deles iria gerar. O Kraftwerk surgiu numa
Alemanha que, em plena Guerra Fria, se esforçava para recriar sua identidade cultural,
abalada com a derrota na Segunda Guerra. Surgiam diversas frentes de renovação artística,
23
como um novo cinema alemão e o movimento experimental Fluxus, liderado pelo artista
Josef Beuys. Na música, era o momento do chamado Krautrock, um movimento de bandas
de músicos jovens com alguma formação erudita e que juntavam o pendor para a
experimentação da música de vanguarda, o ritmo simples e regular do rock, o uso intensivo
de equipamento eletrônico caro à música eletroacústica e a improvisação do free jazz.
Nomes importantes do período são os grupos Tangerine Dream, Can e Faust, que, apesar de
terem uma popularidade restrita aos circuitos intelectualizados, representaram a primeira
linha de contato efetiva entre a vanguarda musical e o nascente pop eletrônico,
caracterizada musicalmente pela presença menos marcante da guitarra (ao contrário do rock
como era conhecido até então) e a ênfase crescente nos sintetizadores e no “minimalismo”
da seção rítmica.
É nesse contexto que Florian Schneider e Ralf Hutter, os membros fundadores do
Kraftwerk, se conhecem no Conservatório de Dusseldorf, onde estudam respectivamente
flauta e piano. A insatisfação com a música tradicional os aproxima, e logo, usando
instrumentos eletrônicos caseiros, eles estão criando pequenas peças vanguardistas
inspiradas nos sons eletroacústicos de Stockhausen. Quando Hutter adota o órgão elétrico,
eles se juntam a um baterista e um baixista para formar o grupo Organization e fazer
apresentações em galerias de arte e universidades. Em 1970, o grupo grava seu único disco,
Tone float, que registra uma forte influência da banda progressiva inglesa Pink Floyd nas
longas faixas instrumentais de aparência caótica em que a flauta de Schneider aparece com
bastante tratamento eletrônico. Nada muito surpreendente numa época em que o rock
progressivo vivia seu auge e a experimentação era moeda corrente entre bandas iniciantes e
veteranas.
Depois da gravação desse disco, Hutter e Schneider deixam o Organization para montar seu
próprio estúdio – que em 75 seria batizado de Kling Klang, uma onomatopéia alemã que
significa “som” ou “ruído” - onde gravam o primeiro álbum sob o nome Kraftwerk,
Kraftwerk 1 (1971), a que logo se segue Kraftwerk 2 (72), ambos contando com mais dois
membros na formação, Klaus Dinger e Andreas Hohmann. Os discos trazem novos
instrumentais longos (com menor dose de improvisação e mais disciplina) conduzidos por
24
teclados, flautas e guitarras, frequentemente com algum tratamento eletrônico, sobre ritmos
de uma drum machine*, também retrabalhados eletronicamente. Ralf Hutter, o spokesman
do grupo, descreve as condições técnicas nesses primeiros tempos:
Não tínhamos um baterista, então comprei uma drum machine barata que tinha
alguns ritmos dançantes pré-programados. Usando esses ritmos, mas alterados
com ecos e filtros, fizemos as bases do segundo disco. Outros sons instrumentais
vinham de osciladores caseiros e um velho órgão Hammond. Manipulávamos a
velocidade das fitas para efeitos adicionais.16
O resultado são faixas dominadas por células rítmicas simples e insistentes, em que as
alusões à interação entre música e tecnologia aparecem com frequência – uma temática que
já é indicada pelo significado do nome do grupo: “Kraftwerk” é a palavra em alemão para
“usina de força” ou “estação de energia”. Em “Ruckzack” (de Kraftwerk 1), a flauta é
tocada de maneira não usual, produzindo um ritmo quase tribal que se sobrepõe à batida
acelerada da bateria eletrônica. Em “Klingklang” (de Kraftwerk 2), o tempo da música
acelera e desacelera, como se seu ritmo fosse de fato dirigido por uma máquina; no final,
tudo pára subitamente, como se alguém cortasse a energia sem aviso. O terceiro álbum,
Ralf and Florian (73), é feito após a saída dos dois membros adicionais e mantém a mesma
sonoridade proto-industrial dos dois primeiros discos, mas demonstra uma preocupação
maior com a construção melódica.
As viagens através da Alemanha para fazer apresentações ao vivo dão aos músicos
(novamente um quarteto, contando agora com os novos membros Wolfgang Flur e Klaus
Roeder, encarregados da percussão eletrônica) a inspiração para o quarto álbum, Autobahn
(74), no qual eles quase abandonam por completo os instrumentos convencionais e passam
a usar de maneira mais sistemática instrumentos eletrônicos, como sintetizadores e drum
machines, alguns construídos em colaboração com técnicos de empresas do ramo da
tecnologia do som – parceria que daí em diante seria uma constante na carreira do
Kraftwerk. Não apenas por opção, mas também por necessidade, como Hutter conta:
16
Kraftwerk, The Early Years, ‘68-’73. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização
25
Para fazer a música que queríamos, tivemos que construir ou modificar nossos
instrumentos. Não existia percussão eletrônica para comprar, então tivemos que
desenvolver nossas próprias baterias, assim como muitos dos teclados e do
software.17
É em Autobahn também que eles consolidam seu estilo e definem um projeto artístico que
continua valendo para o resto da produção do grupo: a redução das idéias a alguns poucos
conceitos-chave, o “minimalismo”, a música como reflexo de um ambiente em que as
máquinas interagem com os indivíduos e entre si, como se tivessem vida própria.
“Autobanh”, a faixa-título, é uma epopéia de ritmos pulsantes misturados a sons metálicos
que narra uma viagem de automóvel por uma grande auto-estrada alemã. A música alterna
momentos em “alta velocidade”, nos quais o zumbido do sintetizador imita um motor, com
trechos mais contemplativos, em que a flauta executa um tema melódico de sabor pastoral.
O tema da “viagem” se reflete na própria estrutura da faixa, cíclica e recursiva, em que os
elementos aparecem aos poucos, um por um, permanecem em cena durante alguns
momentos e desaparecem, para eventualmente retornarem depois de algum tempo – numa
opção antecipada pelo “minimalismo”18 e pela circularidade (que haveriam de se revelar
essenciais para os gêneros posteriores de pop eletrônico) como procedimentos que põem
em questão a linearidade narrativa, característica da canção, até então o formato
predominante na música popular. A letra (sendo essa a primeira vez que o Kraftwerk usou
palavras em sua música) ampliava esse efeito de circularidade ao fazer referência a si
mesma. Ela dizia apenas:
Estamos atravessando a Autobahn (auto-estrada). / À nossa frente, um amplo
vale, / o sol brilha com raios cintilantes. / A rodovia é uma linha cinza, / listras
perdidos.
17
HUTTER. in: Media for musiker, october 1991, by Micheal Dee. Obtido através da Internet, via WWW.
Dados da disponibilização perdidos
18
Há semelhanças entre o minimalismo descrito aqui e a tendência ou escola minimalista da música
contemporânea representada por compositores como La Monte Young, Steve Reich e Philip Glass. Ambos se
servem de estruturas cíclicas e recursivas, baseadas em elementos simples que se repetem e que se revezam
no “palco” sonoro da música. Mas não se deve confundir a escola musical minimalismo com o emprego
adjetivo, muito comum na imprensa pop, da palavra “minimalista”, cujo sentido é apenas derivado do sentido
original. Assim, para evitar equívocos, quando houver, neste trabalho, emprego adjetivo da palavra
“minimalista”, ele será sempre identificado com o uso de aspas.
26
brancas, margens verdes. / Agora nós ligamos o rádio, / vindo da caixa de som
ouvimos: Autobahn...
descrevendo um cenário utópico que ignora problemas como a poluição, o desmatamento e
o desequilíbrio ambiental, e em que o progresso tecnológico convive, em harmonia
construtivista, com a paisagem natural. Nos discos seguintes, porém, o Kraftwerk passaria
progressivamente dessa louvação quase ingênua dos benefícios trazidos pelos produtos da
ciência para uma postura mais consciente e crítica quanto aos efeitos, muitas vezes
ambivalentes, das inovações tecnológicas.
Uma versão reduzida de “Autobahn” (que no álbum durava 22 minutos, ocupando todo um
lado do disco) alcançou o 11º lugar nas paradas radiofônicas britânicas e ficou em 25º nos
Estados Unidos, chegando depois de alguns meses ao Top 5 em ambos os lados do
Atlântico. Graças a tal sucesso, o grupo fez seus primeiros shows nos Estados Unidos,
obtendo boa recepção por parte da crítica. Era o começo da consagração, mas ainda levaria
algum tempo até o grupo se tornar realmente popular.
O disco seguinte, Radioactivity (1975), repete a fórmula de um único tema que atravessa
todas as faixas, dessa vez, a “radioatividade”, em todas as conotações da palavra: tanto no
sentido químico, quando no das transmissões de rádio - o disco tem a estrutura de um
programa radiofônico, com a seção musical, o noticiário e os anúncios publicitários. O
álbum serve como um exemplo da criatividade do Kraftwerk em explorar as possibilidades
sonoras inerentes aos mais diversos produtos da cultura científica e incorporá-las a sua
música, como o código Morse, que soletra a palavra “radioactivity” na faixa título, ou as
frequências de rádio e de estática em diversos momentos do disco. A instrumentação
concentra-se entre teclados e drum machines, além do uso frequente de tape loops*. O
vocoder* ganha destaque, como uma representação sonora da idéia abstrata de “energia”
através da voz humana, distorcida, transformada em um rumor expressionista. Mais uma
vez, as letras, telegráficas, fazem uma exaltação ao avanço tecnológico, com louvores à
comunicação através do rádio (“Quando as ondas [de rádio] se movem / cantam vozes
distantes”; “Eu sou a Antena captando as vibrações / você é o transmissor, me dê a
informação”) e ao acréscimo nas reservas de energia obtido com as estações nucleares – os
27
riscos de tal fonte energética são aparentemente desconsiderados. No mais, o disco
consolida a formação do Kraftwerk que iria perdurar daí em diante, com a entrada do novo
integrante Karl Bartos (percussão eletrônica) após a saída de Klaus Roeder.
Trans Europe Express (1977) usava o trem como conceito-chave. O ritmo, hipnótico como
de costume, agora aludia ao barulho das rodas nos trilhos, com todos os efeitos e ruídos
sugeridos por uma estrada de ferro. A idéia (similar à desenvolvida em Autobahn) é a de
um trem visitando vários países da Europa. Nesse disco, além de apresentar uma bateria
eletrônica mais amadurecida, com um ritmo mais consistente, o Kraftwerk começa a deixar
de lado os temas melódicos grandiloquentes e a abrir espaço para canções pop, como “Hall
of mirrors” e “Showroom Dummies”. As letras dessas canções abordam a tecnologia de
maneira menos impessoal, apresentando personagens solitários que interagem com uma
paisagem fria e sem vida ou mostrando máquinas que ganham vida e passam a se
comportar como gente. Pela primeira vez, ritmos dançantes atravessam todo o disco, sem
pausas, tornando mais explícita a motivação para a dança na música do Kraftwerk. A
resposta do público negro de cidades como Detroit e Nova Iorque foi de inesperado
entusiasmo (o disco, curiosamente, e a despeito de sua índole por vezes industrial,
frequentou as paradas de soul music da época), abrindo uma das conexões que haveria de se
mostrar central para o desenvolvimento posterior do pop eletrônico: o encontro da
eletrônica com a música negra norte-americana.
Já consagrado, o Kraftwerk lança o disco seguinte, The man machine (1978), que consiste
em seis canções lidando com o dilema entre a desumanização do homem pela máquina
versus sua utilização a serviço do bem-estar da humanidade. As referências oblíquas
através das temáticas inanimadas são abandonadas, passando-se para uma abordagem mais
direta e humanista do impacto das tecnologias sobre o indivíduo e as cidades a partir do
conceito de “robô” (a máquina que se parece com um ser humano ou o homem tornado
máquina). O resultado são canções pop cujas texturas eletrônicas são mais complexas e
possuem uma sofisticação melódica e harmônica maior do que os trabalhos anteriores do
grupo. Entre elas está o maior hit do Kraftwerk, “The Model”, um technopop com levada
estilizada de funk que chegou ao primeiro lugar na parada britânica e tornou-se um grande
28
sucesso nas pistas de dança.
A partir do início dos anos 80, o grupo passa a dedicar a maior parte de seu tempo à
digitalização do estúdio Kling Klang, numa lenta reforma que durou quase uma década.
Isso explica porque desde então o Kraftwerk lançou apenas três LPs e um EP (compacto
com menos de meia hora de duração), nos quais a presença do som digitalizado é cada vez
mais significativa.
Computer world, de 1982, enfoca a digitalização das atividades humanas (negócios,
relações pessoais, lazer) através de letras satíricas e de texturas eletrônicas geradas em
computador que refletem, na música, as temáticas abordadas. As características do
computador enquanto meio, como a minituarização, a praticidade e a interação
descomplicada com o usuário são encenadas de modo quase cômico por um músico que
toca seu pequeno instrumento digital e, orgulhosamente, proclama: “Sou um operador com
minha calculadora de bolso”.
No ano seguinte é lançado o EP Tour de France (1983), em que o tema central volta a ser o
deslocamento espacial, mas desta vez tematizado por um meio de transporte
não-motorizado, a bicicleta. Era o momento em que a ecologia começava a ganhar espaço
nos grandes meios de comunicação, e, mais uma vez, o Kraftwerk refletia em seu trabalho
um tema em pauta na sociedade, defendendo a opção por um meio de transporte barato,
não-poluente, e que, para eles, representava a encarnação final da integração entre o homem
e a máquina. O destaque deste disco é base rítmica da faixa-título, criada com os sons de
uma bicicleta e da respiração de um ciclista modificados eletronicamente.
Nos discos mais recentes, a tecnologia digital toma, literalmente, a frente do palco. Em
Electric café (1986), a introdução do sampler* permite que as vozes sintetizadas sejam
trabalhadas de uma nova maneira: separadas em pequenas unidades (como frases curtas e
palavras), as intervenções vocais são usadas de maneira percussiva, pulsando ritmicamente
junto com a bateria eletrônica. O álbum duplo The mix (1991) marca o ingresso definitivo
do Kraftwerk na era do som digitalizado, com a completa computadorização do estúdio
29
Kling Klang. Miniaturizado e distribuído em módulos, o estúdio passa a ser removível e
transportável, e é assim que, nas apresentações ao vivo do Kraftwerk, ele é inteiramente
instalado no palco (criando o conceito de live studio, ou “estúdio ao vivo”). O disco, por
sua vez, é todo dedicado a remixes* das faixas mais importantes da carreira do grupo.
A música folclórica da aldeia global
Você pode definí-la [a música do Kraftwerk] como quiser: música
de ficção científica, techno-disco ou rock cibernético, mas eu
prefiro o termo robot pop, que se adequa ao nosso objetivo de
trabalhar sem descanso na construção da canção pop perfeita para
as tribos da aldeia global.
Ralf Hutter
De tempos em tempos, a empresa Kraftwerk produz e lança no mercado o produto em que
se especializou: um conceito, uma determinada noção do futuro em forma de música e
imagem – um futuro que é apresentado não como um estágio remoto a ser alcançado pela
humanidade, mas como uma condição vivida cotidianamente desde já, por meio das
tecnologias e próteses que circundam o homem contemporâneo. As poucas palavras
presentes nessa linguagem sintética e quase robótica referem-se às próprias tecnologias que
constituem seu ambiente, elas refletem e comentam a sonoridade eletrônica que as sustenta.
Na linha de produção do Kling Klang, a música é ao mesmo tempo bem de consumo e obra
de arte que questiona a própria condição, a própria origem.
A ênfase no aspecto funcional e mercadológico da arte, presente em toda a produção do
Kraftwerk, revela uma influência da Bauhaus (Escola de Construção), importante escola de
arquitetura e design da Alemanha pré-Hitler que ressurgiu no imaginário germânico do
pós-Guerra como um modelo a ser seguido pelos artistas ansiosos por uma reestruturação
da nação e uma renovação cultural. O objetivo da Bauhaus era misturar arte e tecnologia e
fazer do artista não mais um ser isolado, ocupado em criar uma “arte pela arte”, mas uma
peça de um corpo social, no qual ele tem uma função específica. Tratava-se de uma
tentativa de fazer a arte responder às exigências que se impunham na nova sociedade
30
industrial, em cuja paisagem as criações da ciência e da técnica gradualmente substituem o
mundo natural e avanços contínuos nos mais variados campos, como a medicina, as
comunicações, os transportes e a própria atividade artística, modificam e reconstituem as
formas conhecidas de socialidade e de experiência humanas.
Para o Kraftwerk, isso significou a necessidade de uma pesquisa crescente em torno de uma
música cujos sons refletissem o novo cenário e o novo homem que o habita. O resultado foi
a lenta gestação de um gênero musical, que eles definem como Industrial - ou Electronic,
ou ainda Robot - Folk Music (em alemão, Industriallevolksmusik 19 ) e que reúne as
conquistas técnicas e formais da música eletroacústica com a capacidade de comunicação
direta com o público típica da música popular: “Fazemos a música regional das áreas do
Rino e do Rohr [rios localizados na parte Oeste da Alemanha]”, disse certa vez Ralf
Hutter. “É assim que nós nos vemos”, afirmou em outra ocasião, “há algo de étnico no
nosso trabalho; não poderíamos ter vindo de nenhum outro lugar. A cena berlinense é
diferente da cena de Munique, e nós somos de Dusseldorf, que é uma zona industrial”20.
Há ironia intencional no emprego da palavra regional para se referir a uma música
produzida com a utilização de equipamentos tecnológicos sofisticados e através de uma
rotina de trabalho extremamente sistemática e rigorosa - exatamente o oposto da noção
consagrada de regional como algo próximo da cultura popular, folclórica, própria dos
lugares ainda não alcançados pelo “progresso” e pelo “desenvolvimento”. Com essa ironia,
porém, o Kraftwerk faz mais uma ponderação a respeito de nossa época: ao enfatizar o
aspecto regional de Dusseldorf, eles apontam para o caráter globalizado da sociedade
pós-industrial – ecoando a noção mcluhaniana de “aldeia global” e o conceito, criado pelo
sociólogo Massimo Canevacci, de “glocal” (“global” + “local”), que aludem à dissolução
das distâncias geográficas e das barreiras culturais pelas atuais tecnologias de comunicação,
Folk, palavra do inglês que significa “povo” (e que tem raiz no alemão Volk) está na origem da expressão
“folclore” (folk + lore, “conhecimento”, “saber”). Ao mesmo tempo, sabemos que o termo pop alude ao
caráter popular, massivo, desse tipo de música. Folk music > pop music > Robot folk... Estaria o Kraftwerk
sugerindo o fechamento de um ciclo na história da música popular, com um retorno da música a suas funções
primitivas?
20
A conclusão do argumento de Hutter deixa claro que, ao falar no aspecto “étnico” do trabalho do
Kraftwerk, ele na verdade não está se referindo a questões de raça ou etnia, mas a uma condição etnológica
ou, ainda, etnográfica, que diz respeito às características culturais de uma determinada população.
19
31
levando a um envolvimento das culturas umas nas outras e a uma contração final das
culturas numa só. O fato de que a música do Kraftwerk encontrou ressonância em lugares
muito distintos de seu local de origem, sendo assimilada e adaptada de acordo com
objetivos diversos em metrópoles como Detroit, Nova Iorque e Londres, demonstra que já
então havia uma sensibilidade comum a populações distantes no espaço – fato que pode ser
considerado um prenúncio do techno globalizado dos anos 90, em que um gênero chamado
jungle (“selva”) é um fenômeno mundial, raves (grandes festas ao ar livre) são realizadas
em regiões remotas do Oriente (como por exemplo Goa, na Índia, que originou um gênero,
o Goa trance) e produtores e DJs exploram as mais inusitadas misturas entre musicalidades
nativas e o modus operandi digital.
O som do Kraftwerk já foi descrito como a “antítese do blues e do soul”, tal é a ênfase na
frieza das máquinas e a ausência de sentimentos em seus ritmos. Seus temas passam longe
do terreno subjetivo das emoções, como a energia nuclear em Radioactivity e os
computadores em Computer World: há sempre uma alusão a um mundo de crescente
interação entre a sociedade e o avanço tecnológico. A produção do Kraftwerk, além de ter
explorado sonoridades novas e formatos inéditos no universo pop, trouxe sempre essa
preocupação em questionar noções referentes à tecnologia e à idéia de progresso.
A paródia da sociedade tecnológica é encenada com frequência pelos músicos do
Kraftwerk, que se comportam como robôs, no palco (quando não colocam os próprios
robôs para “tocar” os instrumentos ao vivo), e chegam a proclamar, em entrevistas, uma
“sensibilidade” sintética ou cibernética. O humor e a ironia compõem uma atitude que
pretende desmistificar a tecnologia, retirá-la do altar da tecnofilia (que a enxerga como a
redenção final do homem) ou da fogueira inquisitorial da tecnofobia (que culpa a técnica
pelos males sociais e espirituais da humanidade), e enquadrá-la como parte indissociável do
nosso cotidiano e da experiência humana em geral. Daí a presença dos sons corriqueiros
das máquinas domésticas, retrabalhados e desviados de seu contexto original até adquirirem
sentido musical: “O mundo ao nosso redor é uma orquestra completa. Os barulhos de
carros, máquinas de café, limpadoras a vácuo, podemos usá-los em nossa música”21.
21
HUTTER. in: ANDERSON, Willi. Computer liebe. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da
32
Até os poucos personagens humanos que habitam as letras parecem submetidos a uma
lógica da mecanização, como a top model de “The Model”: maquinizada, ela age como um
manequim diante das lentes das câmeras (numa sátira à desumanização através da
tecnologia, e a uma sociedade onde tudo está disponível como mercadoria, que aparece
também em “Computer love”, dedicada aos serviços de tele-sexo).
Os temas do Kraftwerk servem, assim, a uma sofisticada representação paródica da
sociedade contemporâea, em que o próprio sentido de pop é exarcebado e logo em seguida
colocado em suspenso. Além disso, toda a póetica (musical, lírica, visual) do Kraftwerk é
uma construção que assume e ironiza, incorpora e transforma conceitos-chave para a
compreensão da cultura contemporânea, como “indústria da cultura”, “reprodutibilidade
técnica”, “extensões do homem” e “multimídia”. Poder-se-ia dizer que cada disco do
Kraftwerk aborda uma determinada “extensão do homem”, e talvez até fosse possível
vincular cada álbum-tema a um dado capítulo do livro de McLuhan: a auto-estrada, a
estrada de ferro, o rádio, o computador, o robô, e assim por diante.
A música do grupo é, assim, apenas uma parte do sistema simbólico que envolve desde a
criação do conceito do álbum (cada disco com um tema central) e a produção musical
propriamente dita no estúdio Kling Klang, até as capas dos discos e a identidade visual
(sempre com um conceito de design) e a apresentação ao vivo, com robôs que simulam
tocar instrumentos e todo um aparato de espetáculo, bastante sofisticado (telões, luzes).
Desde Radioactivity, o designer Emil Schultz é responsável por tudo o que envolve a
imagem do Kraftwerk, como capas e encartes de disco, cenários de shows, etc, garantindo
uma unidade entre o elemento visual e a música eletrônica do grupo e compondo o caráter
multimídia de sua produção.
Desenvolvimentos simultâneos
Enquanto o Kraftwerk chamava a atenção do grande público pop, outros artistas de menor
disponibilização perdidos.
33
destaque, espalhados em vários países e com as mais diversas procedências musicais,
realizavam inovações que, a longo prazo, haveriam de se revelar tão importantes para o
desenvolvimento do pop eletrônico quanto as invenções sonoras dos alemães. Alguns
desses artistas, hoje reconhecidos como referências fundamentais para muitos produtores e
DJs, são Brian Eno e Lee Perry.
Brian Eno é um músico de origem no rock (foi um dos componentes da banda glam Roxy
Music) que progressivamente foi se afastando desse universo e se aproximando da
vanguarda, ao desenvolver uma música muito particular, centrada na exploração de texturas
eletrônicas delicadas, com ênfase nos timbres e nos processos de gravação, batizada por ele
de ambient music. O conceito que sustenta o projeto do ambient, como o gênero é também
conhecido, é a criação de “paisagens sonoras”, espaços virtuais habitados por sons
contemplativos e composições de estrutura não-linear que devem muito aos trabalhos da
vanguarda minimalista (v. nota 16 deste capítulo). Em discos como Music for Airports e On
Land, Eno procurou criar uma música que não chamasse atenção sobre si mesma, mas que
fosse capaz de se integrar ao ambiente e de absorver os sons desse ambiente sem concorrer
com eles. Mas Eno ficou mais famoso pelos trabalhos que realizou como produtor, como os
discos que fez, de 1977 em diante, com o cantor inglês David Bowie, Low, Heroes e
Lodger, discos que contribuíram enormemente para uma aproximação da eletrônica a
formatos mais tradicionais de música pop e para a popularização das sonoridades sintéticas
entre uma parcela maior do público médio. O conceito de “paisagem sonora” e a
exploração de texturas e “climas”, por outro lado, haveriam de se mostrar presentes em
muitas das vertentes posteriores da música eletrônica, especialmente da segunda metade da
década de 80 em diante.
Na Jamaica, Lee “Scratch” Perry, um não-músico que se tornou produtor de discos de
reggae, fazia experimentações de estúdio pioneiras, ao adicionar efeitos como ecos,
distorção, reverbs, delays etc. a músicas de artistas sob sua direção - criando assim alguns
dos primeiros remixes* de que se tem notícia. Desacelerando o andamento do reggae e
usando tape loops* e ruídos “concretos” para criar “climas” e “paisagens” sonoras de efeito
em certa medida semelhante ao das gravações ambient de Eno, Perry criou um gênero que
34
foi batizado de dub e que, ao se consolidar como formato, influenciou, com suas técnicas
de mixagem e edição de efeitos, a formação de muitos dos outros gêneros que se seguiram,
como o hip hop, o house e daí todo o techno atual. Outro nome importante nos primeiros
tempos do dub é a dupla de produtores Sly & Robbie.
A discotèque foi o gênero que, a partir da metade da década de 70, deu o grande impulso à
cultura dance e ampliou o alcance da música criada especialmente para as casas noturnas.
Entre os incontáveis produtores responsáveis por isso, destacou-se o italiano Giorgio
Moroder, que fez discos para artistas como Donna Summer e criou uma disco music
eletrônica, cheia de sintetizadores e de batidas criadas com drum machines.
Sendo incontável o número de artistas que, nos anos 70, se aproximavam da eletrônica,
outros nomes que podem ser lembrados são George Clinton, produtor das bandas funk
Parliament e Funkadelic, e Laurie Anderson, artista de vanguarda novaiorquina ligada ao
universo pop.
35
Output: technopop, industrial, tecno, electrofunk, house
Lembro que alguém me levou a um clube por volta de ’76 ou ’77,
quando Trans Europe Express tinha saído, (...) no comecinho da
cultura do DJ, quando eles estavam começando a prensar seus
próprios discos, suas próprias batidas. [Naquela noite] usavam
trechos de ‘Metal on Metal’, de Trans Europe Express, e quando eu
entrei, pensei: ‘Estão tocando o disco novo’. Mas aquilo continuou
por dez minutos! E pensei: ‘o que está acontecendo?! A música só
tem uns dois ou três minutos de duração!’ E depois fui perguntar
ao DJ: ele tinha duas cópias do disco e estava mixando uma na
outra e, claro, podia continuar enquanto as pessoas estivessem
dançando.
Ralf Hutter
A partir da atuação do Kraftwerk e dos artistas comentados na seção anterior, os eventos
começam a se multiplicar, tornando mesmo impossível uma localização precisa de data e
local de nascimento de muitos dos gêneros de electronic pop music que daí derivam. A
velocidade no fluxo da informação, a multiplicidade de eventos simultâneos na cultura
contemporânea, a diversidade de indivíduos envolvidos na produção e na veiculação dos
produtos musicais eletrônicos concorrem para a formação de uma música em constante
estado de transição, em que os gêneros surgem rapidamente, sem origem precisa, sem
paternidade clara. Tudo o que se tem são noções aproximadas, simplificações de um
fenômeno espantosamente veloz, mutante, e ainda muito próximo no tempo para ser
compreendido com o devido distanciamento.
O primeiro desdobramento da produção kraftwerkiana pode ser verificado num novo
gênero saído da era punk, indefinido entre o rock e o funk, o industrial, cuja característica
principal é a percussão feita com sucata e o uso de outras fontes sonoras que não
instrumentos tradionais: serras elétricas, britadeiras, bigornas, etc. Os nomes mais
importantes da tendência, nesses primeiros tempos, são os ingleses Cabaret Voltaire e
Throbbing Gristle e o alemão Einsturzende Neubauten, entre outros que desde então
adotaram o estilo, com diversas vertentes e variações, mas sempre com muitos ruídos e
36
muita dissonância, que formam o cerne do gênero. Embora nem sempre façam uso
intensivo de equipamentos e de instrumentos eletrônicos sofisticados e frequentemente
enfatizem a precariedade e o primitivismo técnicos, há uma vinculação clara das bandas
industriais com certos trabalhos do Kraftwerk, principalmente a faixa “Metal On Metal”, de
Trans Europe Express.
Na mesma época, surge o technopop (ou synthpop), que consistia na adaptação de formatos
pop convencionais, como a balada romântica e a música dançante, aos novos instrumentos
eletrônicos (tornados mais acessíveis com o barateamento dos sintetizadores e das drum
machines). O gênero foi inaugurado, ainda nos anos 70, por Gary Numan (“Are friends
electric?”, “Cars”), um astro pop de visual “sintético” muito próximo ao dos membros do
Kraftwerk, e teve como maiores destaques os grupos Depeche Mode, Human League,
OMD e Soft Cell. O technopop foi um dos principais gêneros responsáveis pela
popularização da instrumentação eletrônica e das estruturas “minimalistas” associadas a seu
uso, pois o público que suas canções atingiam era o mais amplo que a electronic pop music
tinha alcançado até então.
Impossível deixar de falar de um elemento fundamental para o desenvolvimento de muitos
gêneros da música techno: o encontro da eletrônica com a música negra norte-americana (o
funk, a disco, o soul, o hip hop), que contribuiu com o groove* e o calor humano tanto
quanto o maquinário do Kraftwerk. Os discos dos alemães estão entre os primeiros a serem
sampleados e se tornaram referência obrigatória para os disc-jockeys que no início dos anos
80 estavam criando o hip hop (Nova Iorque), o tecno (Detroit) e o house (Chicago), os
primeiros gêneros de música eletrônica dançante, dos quais derivam praticamente todos
aqueles que formam a cultura techno contemporânea.
Nos Estados Unidos, no início da década de 80, os DJs Juan Atkins e Carl Craig começam
a movimentar as casas noturnas de Detroit (que, assim como Dusseldorf, está localizada
numa zona industrial) com uma mistura de disco com eletrofunk acelerado, dando luz ao
tecno original, minimal, bastante melódico e, na maioria das vezes, totalmente
37
instrumental22. “Klee”, do Cybotron e “Nude Photo”, do Rhythim is Rhythim são faixas
clássicas do gênero.
Simultaneamente, os negros nova-iorquinos começam a mixar trechos de músicas de outras
pessoas a batidas eletrônicas de funk e a fazer scratches (o uso do toca-discos como
instrumento musical, no qual a rotação de um disco sofre uma intervenção manual,
produzindo um som indefinível), a partir de práticas nascidas do simples ato de tocar discos
de vinil em festas de bairro, que com o tempo foram crescendo em técnica e complexidade.
Sobre essas bases rítmicas, os rappers faziam as suas longas intervenções vocais: um canto
falado e sincopado cujos versos comentavam fatos do cotidiano do gueto e faziam uma
espécie de crítica social espontânea. Quando o rapper e produtor Afrika Bambaataa mixou
trechos da melodia de “Trans Europe Express” à levada rítmica de “Numbers” (de
Computer love) para criar “Planet Rock” (1982), o primeiro disco de hip hop eletrônico (ou
eletrofunk) a alcançar o topo das paradas, ele dava maior visibilidade a um modo de fazer
música que se tornaria mais e mais comum ao longo da década.
O house, outro gênero importante, surgiu de uma mistura, feita pelos DJs de Chicago, de
vinis do Kraftwerk com trechos de discos de soul, e da introdução de novos modelos de
teclados, de drum machines e de samplers*. O seu som limpo e acelerado usa vocais
femininos de soul (com muitos efeitos), riffs* curtos de piano ou de sintetizadores caseiros
e batidas pesadas com andamento entre 110 BPM e 128 BPM (batidas por minuto). O
house adquiriu muitos estilos e variantes ao longo do tempo, sendo até hoje o formato de
dance music mais popular.
Nos anos 80, a Europa também desenvolve suas próprias variantes de dance music. Na
Bélgica, músicos de estúdio usam os bleeps do Kraftwerk para criar a Electronic Boby
Music (EBM). Uma dessas bandas, A Split Second, foi descoberta por um DJ, que, ao tocar
uma música deles num clube da Bélgica, lembrou (ou terá sido um erro?) de desacelerar a
22
A grafia tecno é frequentemente usada, na imprensa especilizada, para diferenciar o gênero de música
eletrônica surgido em Detroit do seu (em parte) derivado techno que, a partir da segunda metade dos anos 80,
com a onda das raves (grandes festas ao ar livre), passou a englobar toda uma subcultura, envolvendo moda,
comportamento, identidade visual e diversos subgêneros musicais – que muitas vezes têm características ou
elementos em comum com o som originário de Detroit, mas não se confundem com ele.
38
música em aproximadamente 30% de sua velocidade, notando que o público enlouquecia
com a batida resultante, lenta e cadenciada. Assim surge o New Beat, e daí em diante
grupos como T99, Front 242, Technotronic e dezenas de outros. Uma infinidade de
“projetos” começa a aparecer, estimulada pelo barateamento do equipamento e pela
crescente manuseabilidade do mesmo – “projeto” é o termo que, na música eletrônica, veio
substituir a palavra “banda”, destituída de sentido quando se trata frequentemente não de
músicos tocando os instrumentos convencionais da música pop (baixo, guitarra, bateria e
teclados), mas de, em média, duas ou três pessoas manipulando mesas de som com samples
(trechos copiados) pré-gravados.
Com o surgimento do sampler*, peça de hardware que permite a gravação e o
reprocessamento digital de qualquer som, as técnicas de colagem e reciclagem de material
musical alheio chegam a um alto grau de refinamento. Hoje a eletrônica domina o cenário
pop, com o uso do sampler, da bateria eletrônica, do sintetizador e do sequenciador se
difundindo rapidamente e fazendo com que as sonoridades sintéticas, antes tidas como
excessivamente experimentais, “pouco humanas” ou “frias”, conquistem um público cada
vez maior. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos continuam tornando os
equipamentos e instrumentos digitais acessíveis a qualquer pessoa interessada, músico ou
não. Agora, tudo o que alguém dotado de um sampler precisa para fazer música é discernir
quais os trechos de trabalhos já existentes (bases rítmicas, linhas de baixo, figuras
melódicas, pedaços de frases etc.) que encaixam uns com os outros e produzem um efeito
estético interessante.
É curioso notar também como, a partir de Computer world, o próprio Kraftwerk vem
atualizando sua música em função dos desdobramentos dados pelos continuadores do pop
eletrônico, como uma espécie de resposta àqueles que seguiram seus passos. Computer
world, que é lançado no auge do technopop, tem “influência” clara do estilo criado pelas
bandas inglesas. Electric cafe acrescenta ao som do Kraftwerk diversas referências ao hip
hop (no ritmo das faixas do lado A) e à EBM. E, por fim, The mix, refaz os temas clássicos
do repertório kraftwerkiano sobre batidas bem mais pesadas, bastante próximas do groove*
típico do house que, na virada da década de 80 para 90, tinha seu momento de pleno vigor.
39
A adoção do conceito de “remix” é, nesse último disco, outro elemento de atualização da
música do Kraftwerk: depois de serem tão imitados, copiados e sampleados, é como eles
passassem a usar samples das próprias músicas, a samplearem a si mesmos.
40
Capítulo III
A linha de montagem da música eletrônica: bricolage, colagem, pulso, loop
Uma breve história da música eletrônica – desde a introdução de novos recursos de
produção e de tratamento do som na cultura musical erudita até sua ambientação gradual no
universo da música pop – representou, até aqui, a linha diretriz deste trabalho. A narração
linear desses desenvolvimentos, porém, não deve ser interpretada como postulação de uma
continuidade ou de uma filiação direta dos produtos da electronic pop music às realizações
e teorias composicionais da música eletroacústica. O que se pretendeu não foi sugerir que
os gêneros techno contemporâneos derivam, em progressão histórica, da música eletrônica
de formação erudita e orientação vanguardista, mas tão somente indicar que, com o passar
das décadas, eles se beneficiaram da crescente abertura de expectativas e da ampliação de
demandas estéticas em torno de sonoridades sintéticas. Para constatar isso, basta verificar a
coerência entre os resultados alcançados pelos músicos dos dois universos musicais, através
de percursos independentes, mediante o emprego das mesmas tecnologias. Existem, porém,
tanto traços em comum quanto oposições entre a música eletroacústica e a electronic pop
music, havendo entre elas o mesmo misto de ruptura e de continuidade que vincula a
música ocidental de concerto à formação da música popular convencional: a segunda herda
determinados elementos e padrões da primeira, mas, para constituir sua linguagem própria,
os associa a padrões formais de uma outra tradição (no caso da música popular, a música
tradicional ou folclórica23; no caso do pop eletrônico, os ritmos e gêneros dançantes da
música pop).
Neste capítulo, detalharemos aspectos do fazer musical que provêem do uso das diversas
tecnologias de gravação, tratamento e produção do som, voltando nossa atenção em
especial para a recente integração dessas tecnologias em uma só plataforma de operação, o
computador. A partir de meados dos anos 80, a difusão do tratamento digital do som tornou
Cf. BASTOS, Rafael José de Menezes. A origem do samba como invenção do Brasil. Sobre “Feitio de
Oração”, de Vadico e Noel Rosa (Por que as canções têm música?). In: Antropologia em primeira mão. Santa
Catarina: UFSC, 1995.
23
41
possível reunir, em um único instrumento, funções antes separadas em tecnologias de
natureza diferentes, além de tornar a manipulação do material sonoro muito mais simples e
acessível ao usuário médio. Ampliaram-se, assim, as possibilidades de experimentação com
o som, tornando-se o computador o equipamento musical emblemático dos novos tempos
no campo da música eletrônica.
Questão de bricolage
O que estava tentando fazer (...) em 1948? Como Boulez disse, era
um caso de bricolage, e eu conservo esse termo não como um
insulto, mas como algo muito interessante. Afinal, qual a origem
da música? Foi através de bricolage, com cabaças vegetais, com
fibras, como na África. As pessoas faziam cordas de violino de
intestinos de gato. E, obviamente, a escala temperada é um
compromisso e também bricolage. E essa bricolage, que é o
desenvolvimento da música, é um processo constituído pelo homem
e pelo ouvido humano, não pela máquina, pelo sistema
matemático.
Pierre Schaeffer, 1987
Um procedimento que se destaca, na história da música eletrônica como um todo, é a
improvisação de novos usos a partir da base tecnológica existente, ou seja, a mudança na
direção do emprego de equipamentos criados tendo em vista um uso diverso. É fato que
uma boa parte dos instrumentos e aparelhos usados nas obras eletroacústicas e nos produtos
do pop eletrônico foram desenhados e construídos especialmente tendo em vista demandas,
às vezes bastante específicas, surgidas da prática musical. O trabalho conjunto de
engenheiros e músicos é suficiente para demonstrar isso. Todavia, observar como outros
aparelhos, destinados a usos controlados e pré-determinados pela racionalidade científica,
são retirados de sua função original e “reinventados” por um fazer musical diverso pode
revelar uma excelente indicação do caráter desviante comum às atividades artísticas
contemporâneas, que fazem uma contestação generalizada ao domínio tecnológico da
cultura – o qual, ao mesmo tempo que sustenta e alimenta a realização artística, a contrange
e limita ao impor condições técnicas e predispor usos que os processos artísticos, por sua
42
vez, almejam transpor.
É esse o caso, por exemplo, do equipamento de gravação e reprodução do som, inventado
com o objetivo prático e mercadológico de estocar e distribuir peças musicais
convencionais. Seus possíveis efeitos estéticos estariam, a princípio, relacionados apenas às
novas condições de fruição nascidas da reprodutibilidade: pela primeira vez a música estava
disponível à livre vontade do ouvinte. Até o momento em que Pierre Schaeffer, ao se
apropriar da tecnologia e empregá-la em sua musique concrète de uma maneira diversa,
imprevista – chegando mesmo a criar técnicas de mixagem – produziu texturas e estruturas
sonoras com os mais variados tipos de som gravado (inclusive discos comuns, mas
principalmente sons do ambiente, naturais e mecânicos, e sons produzidos pelo corpo
humano), organizados segundo uma coerência interna a cada peça, onde passam a substituir
as notas da escala musical. Essa primeira bricolage eletrônica já introduz o elemento de
colagem de sons, que daí em diante marcaria uma significativa parte da produção musical
eletrônica.
Redefinição no emprego de um equipamento para fins expressivos é também o que ocorre
no caso dos geradores de onda e osciladores, criados tendo como destino original o estudo
da acústica em laboratórios de física e depois deslocados de sua função científica por
Stockhausen e seus colegas de Colônia. Aqui, um equipamento propriamente científico é
desviado de suas funções de pesquisa originais e revertido para um outro tipo de pesquisa, a
invenção musical, na qual os músicos exploram as propriedades dos sons sintéticos (são
tipos de ondas sonoras, cujas denominações em inglês se referem à forma que tais ondas
descrevem num gráfico, como as triangle-wave, square-wave, sine-wave, white-noise, entre
outras, todas totalmente artificiais, não encontráveis na natureza).
A mesma tendência à bricolage vai reaparecer, muito tempo depois, em diversos gêneros
da electronic pop music: no uso de sucata como fonte de sons percussivos, no caso do
industrial; no emprego do toca-discos como instrumento musical, com o scratch do hip hop
(altamente “transgressor”, na medida em que dá ao aparelho tecnológico um uso oposto,
ipsis literis, ao programado); e na reciclagem de fonogramas alheios, nos samples e loops*
43
da música pop eletrônica a partir da disseminação do sampler.
Tais exemplos de bricolage, generalizados no universo da música eletrônica, ressoam uma
disposição que está na base de qualquer atividade artística: a ambição de apresentar novos
pontos de vista a respeito dos objetos do mundo, recontextualizando e assim
ressignificando os produtos da cultura. A tendência à bricolage na música eletrônica é de
certo modo sintetizada, com eloquência, pela obsessão do Kraftwerk em explorar as
possibilidades sonoras dos aparelhos tecnológicos que fazem parte do cotidiano
contemporâneo, como a querer mostrar que invenções das quais se espera apenas
funcionalidade e previsibilidade podem ser desviados de seu destino original,
surpreendendo e causando estranhamento. É bricolage o que o Kraftwerk faz: ao extrair
música de calculadoras, trens, automóveis e frequências de rádio, eles dão aos produtos da
cultura científica um novo uso, inesperado, tão crítico em relação à ambiguidade dos efeitos
das inovações tecnológicas quanto suas letras elípticas.
O sampler e a colagem sonora
São estas as seis famílias de ruídos da orquestra Futurista, que em
breve faremos funcionar mecanicamente: grupo I – explosões,
estrondos, trovoadas, roncos; grupo II: assovios, resfolegos, silvos;
grupo III: sussurros, resmungos, esguichos, murmuros; grupo IV:
gritos, guinchos, farfalhares, zumbidos, estalos, sons de fricção;
grupo V: barulhos obtidos com percussão em metal, madeira,
pedra; grupo VI: vozes de animais e pessoas, gritos, risadas,
gemidos, uivos, chiados e soluços.
Luigi Russolo, A Arte do Ruído, 1913
A introdução das tecnologias de tratamento digital do som, disseminadas a partir de meados
dos anos 80, completa, até o presente momento, a história dos progressos técnicos e, por
conseguinte, das inovações no campo das possibilidades poéticas da música eletrônica.
Sequenciadores MIDI, modelos digitais de drum machines e, principalmente, o sampler,
com suas características de miniaturização do equipamento, baixo custo, manuseio
descomplicado e acesso visual ou numérico ao som (que abre possibilidades musicais para
44
não músicos), além de sua integração no computador, sofrem uma rápida popularização e
se tornam a marca de uma nova forma de pensar e fazer a música.
O formato MIDI (Musical Interface Digital Instruments) é um protocolo que “permite o
diálogo entre instrumentos digitais (...). Assim, uma só pessoa pode reger sua orquestra
pessoal, em que um sequenciador (...) é o cérebro, transmitindo para cada
sintetizador/sampler/computador rítmico as informações necessárias sobre onde, quando e
o que tocar”. (Bizz, Anos 80).
O sampler efetivamente mudou o modo como a música pode ser feita, e a infinidade de
novos gêneros techno que despontam na década de 90 são reflexo disso: a música não
depende mais das limitações dos instrumentos e das pessoas que os tocam, e (quase) tudo é
possível. Pode-se criar música com sons “concretos” e experimentar com frequências,
timbres e tempos que antes estavam fora de alcance, criando sonoridades que as gerações
anteriores não poderiam sequer imaginar.
Havia já, no universo da música eletroacústica, iniciativas anteriores de aproveitamento de
trechos de gravações de músicas pré-existentes em uma nova obra, como a peça Hymnen,
de Karlheinz Stockhausen, feita nos anos 50 mediante o emprego de gravações de hinos
nacionais de diversos países, numa alusão a um mundo em crescente integração pela
comunicação radiofônica. Já o uso de sons “crus” ou ambientais, inaugurado pela música
concreta de Schaeffer, pode ser observado em diversos momentos do pop eletrônico e é
amplamente explorado nos dias de hoje, tanto em exemplares de música techno, quanto em
muitas canções de estrutura pop mais convencional que incorporam as novas tecnologias.
Hoje, samples de trovões, máquinas, pássaros etc., que após a manipulação digital são
plenamente incorporados às texturas de músicas de todos os gêneros, retomam as idéias que
estiveram na base do trabalho dos pioneiros da eletrônica.
A colagem de trechos de músicas já existentes foi, desde o início, um dos recursos mais
típicos do hip hop, desde o lendário DJ Marley Marl, que começou a usar trechos curtos de
discos antigos (principalmente de soul, funk ou disco) em loop*, para criar ornamentos
45
melódicos (frases curtas de metais, por exemplo) e bases rítmicas (padrões de bateria,
linhas de contrabaixo). É importante notar que isso já era feito antes mesmo da invenção
dos modelos comerciais de sampler, com técnicas de mixagem com toca-discos comuns e
edição de fitas.
O novo instrumento, projetado especialmente para a manipulação de qualquer som gravado,
daria novo impulso ao desenvolvimento da música eletrônica, pois trazia consigo – como
consequência de seu caráter digital - uma considerável facilitação no uso do equipamento e
a possibilidade de visualização e de tratamento numérico dos elementos sonoros. Além, é
claro, do caráter aglutinador de todo meio digital: no computador reúnem-se os
equipamentos de gravação e montagem em fita magnética, de geração de som sintetizado e
de processamento do material sonoro.
A importância do sampler no que se refere aos aspectos poéticos da música eletrônica mais
recente merece ser analisada com maior extensão, pois, desde sua chegada, esse
equipamento adquiriu um valor estrutural nos gêneros em que seu uso se desenvolveu. O
procedimento básico do sampler consiste justamente na gravação de um som já existente
para que seja incorporado à nova peça (pouquíssimas vezes sem modificações, e
frequentemente com modificações tais que o tornam irreconhecível, muito diferente do
original). O processo de criação musical passa a constar de duas etapas: a escolha de
determinado trecho gravado, a partir de uma intuição de que ele pode vir a servir a uma
nova composição, e sua posterior transformação e incorporação. Os sons passam por um
processo de edição, em que sofrem a transformação gráfica ou numérica de alguns dos
parâmetros físicos que o constituem, e são posteriormente montados de modo a compor
uma nova música. “O som gravado é reduzido a unidades básicas, visíveis, separáveis, e
pode ser retrabalhado quase como se estivéssemos desenhando ou pintando” 24 , anotou
Jeremy J. Beadle, descrevendo sua experiência de criar, auxiliado por um DJ e empregando
um sampler, toda uma faixa experimental.
Não se pode dizer que os samples do pop eletrônico sejam simples citações, pois há uma
24
BEADLE, Jeremy J. Will pop eat itself? Pop music in the soundbite era. Faber & Faber, 1993. p. 132
46
retirada do som de seu contexto original e uma ressignificação do trecho sampleado; além
disso, muitas das músicas que usam samples dependem deles estruturalmente, em larga
medida: é comum que o sample em loop* seja o elemento que carrega a faixa adiante, que
dá unidade aos fragmentos sonoros da colagem eletrônica. Cumpre observar que as técnicas
de colagem exploradas pelo sampler não dispensam a presença de músicos ou anulam a
necessidade de performances com instrumentos “reais”; elas simplesmente apliam as
possibilidades de uso expressivo de qualquer som gravado.
Num mercado pop mundial marcado por uma demanda constante por novos sons e novos
modos de fazer música, o sampler revolucionou tais possibilidades, introduzindo modos
inéditos de acesso e modelagem do som (mais do que síntese). Promovendo um tipo de
sensibilidade característico, o sampler permite uma espécie de acesso randômico ao
repertório musical acumulado pela humanidade: distâncias temporais e espaciais são
comprimidas, enquanto a disponibilidade da matéria-prima não depende e não é mais
limitada por diferenças históricas, geográficas, de classe ou de raça. E certamente não é
mera coincidência o fato de que encontra-se disseminada entre aqueles que produzem a
música techno uma predisposição à adoção de uma atitude multicultural e antropofágica
que assimila, digere e devolve a informação cultural de fontes as mais díspares.
Ao mesmo tempo, a facilidade de acesso aos dados sonoros e sua alta manuseabilidade,
proporcionada pela digitalização, fazem com que, gradualmente, perca importância a
versão definitiva da música, a gravação oficial, na medida em que, em “estado digital”, as
músicas podem ter um caráter provisório, podendo a qualquer momento ter seus elementos
reconfigurados em novas versões (os remixes) e em apresentações ao vivo. No caso dos
remixes, tendência crescente nos anos 90, os elementos são recombinados e justapostos a
outros elementos quaisquer, pode-se alterar o ritmo da música, chegando a resultados que
muitas vezes guardam semelhança mínima com o original. No caso das apresentações ao
vivo em festas e raves, os DJs-produtores mixam bases rítmicas e outros elementos sempre
de maneira livre, podendo assim alterar cada música a depender da resposta do público
(aumentando a velocidade da batida, intensificando a atividade sonora, mudando o “clima”
da música, etc.). Tal flexibilidade estrutural guarda semelhanças com a noção, muito
47
propagada, de “obra aberta”: a flutuação do sentido em função da mobilidade dos
elementos da obra (aqui presentificada na flutuação dos arquivos de som no interior das
pistas de gravação dos programas de computador).
Nesse momento, o DJ ganha destaque e status de “autor” pelo fato de que, estando no
controle das decisões formais – simbolizado pela mesa de som que gerencia todo o
equipamento eletrônico –, ele é o sujeito que organiza pedaços dispersos de gravações de
modo a compor uma configuração sonora nova e expressiva. O DJ torna-se o novo star,
com padrões de virtuosismo próprios e uma performance cujo êxito estético deriva de sua
capacidade de movimentar a pista de dança e de sentir e satisfazer a vibração do público.
Ao mesmo tempo, a autonomia do pequeno produtor, favorecida pela tecnologia digital,
fomenta uma atitude de “faça você mesmo”, próxima à do movimento punk dos anos 70,
pela qual músicos com pouco treinamento (e muitas vezes até não músicos, simples
ouvintes atentos) produzem e gravam sua própria música em estúdios caseiros e a
distribuem de forma independente.
A eletrônica está além das nações e das raças. Ela fala uma linguagem que
qualquer um pode entender e que expressa mais do que só histórias, como as
canções convencionais. Com a eletrônica, tudo é possível. O único limite é o que
diz respeito ao compositor. (Hutter, Billboard, 1977)
48
Circularidade e estrutura em loop: o techno no fluxo da cultura contemporânea
(...) a música, no sentido de harmonia, chegou a seu limite. Os
compositores do século XX não irão além disso. (...) Por outro
lado, os outros elementos da música (especialmente os rítmicos,
que foram esquecidos por tanto tempo: duração, timbre, ataque,
intensidade) elevam-se hoje em dia a uma posição de honra”25.
Oliver Messiaen
O techno prima por músicas sem estrutura linear estrofe-refrão-solo-refrão (o formato
canção), optando por uma circularidade rítmica e melódica que tem como efeito a criação
de ambientes e paisagens sonoras “minimalistas”. O “eterno retorno” dos padrões rítmicos,
dos riffs* curtíssimos e dos ruídos eventuais, nega a necessidade de causa e consequência,
que sustentam as formas musicais ligadas à tonalidade convencional. Eis o pulso e o timbre
em sua essência, sem necessidade de uma canção. Como observa Wisnik: “Modais,
urbanizadas, tonalizadas, industrializadas, eletrificadas, as músicas dançantes adotam o
pulso percussivo, timbre-ruído a serviço do ‘esquecimento’ no fluxo do momento”26.
O “código da repetição” (Wisnik) que marca toda a eletronic pop music, com seu ritmo
marcado e insistente, guarda semelhanças com as estruturas do minimalismo da música
contemporânea, as quais já foram apontadas no capítulo anterior. Restou observar a relação
desse “minimalismo” do pop eletrônico com o aspecto rítmico: são justamente os padrões
rítmicos curtos e reincidentes que criam o ritmo que têm a dança como efeito previsível,
como apelo irrecusável. Assim, a consolidação do techno levanta um ponto que deve ser
destacado: a diferença no tratamento do aspecto rítmico entre a música eletrônica de
vanguarda e toda a eletronic pop music, embora em ambas haja uma ênfase no elemento
pulso. O crítico José Miguel Wisnik estabelece essa diferença (entre o que ele chama de
tempos) da seguinte maneira:
A música de concerto contemporânea explorou conscientemente dimensões do
25
Apud Luening, Op. Cit., p.12
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das
Letras/ Círculo do Livro, 1989. p. 199.
26
49
tempo que contestam a escuta linear, negam a repetição e questionam o pulso
rítmico. A massa das músicas de massa marca o pulso rítmico, a repetição e apela
à escuta linear. Uma contesta o tom e o pulso, outra repete o tom e o pulso. 27
A predominância da parte rítmica, com destaque para a bateria, em primeiro plano na
mixagem, as formas circulares, repetitivas, as frases melódicas curtas e soltas, a repetição
aleatória de sons incidentais, a incorporação do ruído, a ênfase na sonoridade e no timbre,
são algumas características formais que atravessam a maior parte da produção dos
incontáveis gêneros techno.
Tais soluções formais não têm o sentido de decisões tomadas de maneira totalmente
consciente; elas resultam, muitas vezes, de processos e procedimentos improvisados e
testados empiricamente – no calor das festas de bairro novaiorquinas ou das raves
britânicas – a partir das próprias condições técnicas de que os DJs-produtores dispõem e
que, no decorrer de uma prática constante, se revelam esteticamente eficazes, estabelendo
aos poucos padrões recorrentes e reconhecíveis por um público cada vez maior.
De alguma maneira sentíamos que a era da música baseada na composição
[composed music] tinha acabado e nos esforçávamos por criar uma música mais
simples. Algo que pudesse ser tocado no rádio, sem que precisasse se ajustar aos
estilos musicais correntes28.
A música baseada na digitalização do som aparece como uma alternativa, em termos de
inovação e inventividade, contra a consolidação formal e a falta de novidades nos outros
gêneros pop. Ao mesmo tempo, por ser música essencialmente rítmica, que exige uma
participação diretamente corporal do ouvinte, ela retoma uma associação ancestral entre
música, dança e transe.
Acho que nós previmos que a música eletrônica seria a próxima fase da música
popular [Volksmusik], e as pessoas diziam que isso era loucura, que era uma
27
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das
Letras/ Círculo do Livro, 1989. p. 195
28
Hutter in: DEE, Michael. Kraftwerk article. in: Media for musiker, october 1991, by Michael. Obtido
através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização perdidos.
50
música muito elitista, cerebral, e tínhamos que dizer que não, era música do dia a
dia, carros, barulhos, microfones apanhando música para todos 29.
29
Hutter in: WARD, Phil. Arts & Krafts Interview. Dados da disponibilização perdidos.
51
Conclusão
As novas práticas musicais possibilitadas pela introdução das tecnologias de tratamento e
produção do som chamam a atenção para a simbiose entre a tecnologia e a música, de
importância crescente no presente século. A migração dessas tecnologias para o ambiente
da música popular, onde, a partir dos anos 70, elas se propagam e impulsionam o
surgimento de uma infinidade de gêneros dançantes, representa a consolidação de
iniciativas técnicas e propostas poéticas em curso desde o início do século por compositores
e cientistas empenhados na busca de novas sonoridades. A música eletrônica atual
institucionaliza e torna reconhecíveis para o grande público – embora de maneira distinta,
não mais exigindo uma fruição dependente de um entendimento racional como os trabalhos
da música eletroacústica – tecnologias e práticas musicais que remontam aos projetos e
obras de compositores experimentais como Pierre Schaeffer, Karlheinz Stockhausen e
Edgard Varèse.
Toda a trajetória de experimentações em música eletrônica é atravessada pela busca de uma
poética derivada das especificidades formais condicionadas pelos meios tecnológicos.
Assim, são procedimentos marcantes desse universo musical tanto a pesquisa em conjunto
envolvendo técnicos e músicos em torno de inovações técnicas às novas necessidaddes de
criação musical quanto o uso “transgressor” de equipamentos científicos inicialmente
destinados à prática científica e reempregados na pesquisa musical. Entre as características
formais recorrentes, destacam-se a bricolage, a colagem, a ênfase na diversidade timbrística
(que incorpora nas peças musicais sons de origens muito diversas, não apenas dos
instrumentos convencionais) e a exploração intensiva do pulso (descentrado e disperso na
música eletroacústica; ritmado e concentrado na electronic pop music). Permitida pela
digitalização, a integração das diversas tecnologias de música eletrônica em um único
aparelho, o computador, torna os padrões formais da música eletrônica reconhecíveis pela
grande massa e aponta para uma nova fase na história da música popular.
52
Apêndice I
“Derrange”, a canção: uma experiência de colagem sonora
A produção da canção “Derrange” consistiu de dois momentos bastante distintos e
complementares. Num primeiro momento, em parceria com Pérsio Menezes no estúdio da
Facom, foi criada a base rítmica, a partir da colagem de vários trechos curtos de músicas
alheias (samples), alguns dos quais em loop*. O fato de não sermos músicos, isto é, de não
termos nem formação teórica nem qualquer treinamento instumental, não nos impediu de
criar, com o uso do computador, toda a faixa que serviria de base para a música, inédita na
medida em que reconfigura de maneira única elementos prévios, procurando obter um
resultado que, longe de parecer descontínuo, amorfo, ou “experimental”, possuísse
coerência musical. Além disso, desconsiderando qualquer tipo de avaliação estética quanto
a sua qualidade ou originalidade, “Derrange” não difere muito, em termos formais, de
grande parte dos produtos que circulam atualmente no mercado pop.
A batida, um breakbeat bem simplificado (um tipo de padrão de bateria comum em discos
de soul), foi retirada da introdução de uma faixa do grupo inglês Lamb. A linha de
contrabaixo, uma sequência de quatro notas, também saiu de uma introdução: da banda
Sneaker Pimps, também inglesa. Ambos são grupos derivados de trip hop, isto é, eles não
fazem parte da cena original que deu à luz o gênero (a cidade de Bristol), mas adotam o
formato, no momento em evidência. Isso, porém, não representou preocupação para nós: a
idéia era mesmo criar a partir dos padrões (e dos clichês) do gênero, entre os quais
listamos: parte rítmica em evidência, com destaque para a bateria; padrões rítmicos e
melódicos simples e circulares (estrutura em loop); interferência de ruídos ocasionais e
contraposição entre as vozes masculina, “suja” e sem técnica, e a feminina, mais melódica e
trabalhada.
Para o reprocessamento das amostras foi usado o programa Sound Forge, que tem muitas
das funções de um sampler, como o tratamento da duração, da frequência e da amplitude
das ondas sonoras. O Sound Forge (numa tradução aproximada: “Forja do Som”) permitiu,
53
por exemplo, a construção da variação na quebrada de bateria que se reveza com o trecho
copiado e não modificado. A montagem dos trechos foi feita com o Session 8, programa
que possibilita a visualização espacial de arquivos de som dispostos ao longo de oito
canais. Ambos são programas profissionais, usados também pelos estúdios para a gravação
de músicas com instrumentos convencionais.
As melodias vocais, a primeira das quais é cantada por mim e a segunda, por Carolina
Machado, foram improvisadas a partir do groove* do baixo do Sneaker Pimps, mas,
embora sigam o tom do original, são totalmente independentes da melodia vocal da música
de onde esse trecho sonoro foi retirado. A letra, que já havíamos escrito há algum tempo,
encaixou-se perfeitamente ao riff* que tínhamos, pois, como ele, seus versos são curtos e
elípticos.
Da noção vaga que tínhamos, no início do trabalho no estúdio, quanto aos rumos a tomar e
os resultados dessa iniciativa, totalmente nova para nós, foram surgindo, aos poucos, idéias
e rotinas de trabalho. Note-se que a música foi sendo criada ao mesmo tempo em que
treinávamos o manuseio do equipamento do estúdio e dos programas do computador, de
modo que nossa criação está de tal forma vinculada ao aprendizado técnico a ponto deste se
tornar indistinguível do processo artístico. De fato, muitas das idéias surgiam dos erros
cometidos e da interação, nem sempre pacífica, com os equipamentos e os softwares.
Num segundo momento, a base rítmica com vocais que havíamos produzido recebeu um
tratamento harmônico por Gabriel de Carvalho, integrando a colagem pura e simples a um
arranjo tocado em um teclado MIDI ao acrescentar à textura minimal e eletrônica um riff de
teclado e uma sequência harmônica executada com cordas sintetizadas. Embora a princípio
nosso projeto fosse experimentar a criação de toda a música exclusivamente através dos
recursos do computador, sem qualquer auxílio ou interferência de músicos, a qualidade do
resultado, que ganhou em densidade musical e senso de direção após a colaboração de
Gabriel, nos forçou a perceber que a tecnologia não aposenta a necessidade da presença de
melodia e de harmonia nem de tocar um instrumento – ela amplia essas possibilidades e,
nesse caso, permitiu que, na condição de leigos, produzíssemos uma faixa-base que serviu
54
de “cama” para uma harmonia criada por um músico.
A faixa foi produzida como resultado experimental do subgrupo de techno, na disciplina
“Temas Especiais em Comunicação”, ministrada por Monclar Valverde. Participei, na
qualidade de aluno ouvinte, tanto das aulas quanto do treinamento no uso do estúdio - que
se revelou essencial para uma melhor compreensão de alguns dos assuntos discutidos nesta
monografia.
“Derrange”
Samples e loops: Pérsio Menezes e Wladimir Cazé
Letra: Wladimir Cazé
Vocais: Carolina Machado e Wladimir Cazé
Teclados MIDI: Gabriel de Carvalho
Mixagem: Gabriel de Carvalho, Jucimar Santos, Pérsio Menezes e Wladimir Cazé
55
Apêndice II
Glossário
Drum machine - “Bateria eletrônica”: aparelho que fornece sons percussivos e serve para
programar ritmos, sem que seja necessário executá-los como na bateria acústica.
Groove - Expressão intraduzível usada para qualificar o apelo rítmico típico dos diversos
gêneros da música negra norte-americana (e, consequentemente, de toda a música dançante
eletrônica influenciada por eles); pode ser compreendida como a “levada” ou o “balanço”
de uma determinada faixa ou de um gênero musical.
Loop - Repetição cíclica do mesmo som gravado. Ver tape loop.
Remixes - Versões livres de músicas já existentes que, graças aos recursos de estúdio e/ou
de computador, podem ter uma batida ou um “clima” totalmente diferente do original.
Riff - Frase melódica curta que se repete ciclicamente, adquirindo, em conjunção com os
sons de percussão, um efeito rítmico ressaltado.
Sampler – José Miguel Wisnik: “O sampler é um instrumento que grava sons. Quaisquer
sons. Um ruído, uma nota, uma palavra (com os quais ele produz timbres operáveis por
teclado). E do mesmo modo que uma vitrola pode tocar um disco em 33 ou 78 rotações, o
sampler pode “ler” em várias velocidades o som gravado dentro dele. Cada nota do teclado
corresponde a uma velocidade de leitura.” Além disso, um sampler “permite fazer loops:
repetir indefinidamente um som ou parte dele”. (O som e o sentido, p. 233)
56
Vocoder - Sigla para Voice Operated reCOrDER, ou “Gravador Operado por Voz”, o
vocoder é um aparelho destinado ao tratamento de sons vocais (fala ou canto), capaz de
distorcê-los e modificá-los até se tornarem muito diferentes do original.
Tape loop - “Anéis de fita”: repetição cíclica do mesmo trecho gravado; é uma técnica
muito tanto nas obras eletroacústicas quanto na electronic pop music.
57
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Roni Size/Reprazent. New forms, Talkin’ Loud/Mercury 314 536 544-2, 1997.
Spring Heel Jack. 68 million shades...., Trade 2/Island 162-531 078-2, 1996.
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Tortoise. Millions now living will never die, Thrill Jockey 25, 1996.
Tricky. Maxinquaye, 1995. (Cópia em fita caseira.)
Twin, Aphex. Richard D. James: Album. Warp 62010-2, 1996.
Vários. Plug in & turn on x. 4 (electronic trip hop abstraktions), Instinct 342.2, 1997.
64
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