SÉRGIO WLADIMIR CAZÉ DOS SANTOS PERCURSOS DA MÚSICA ELETRÔNICA Projeto Experimental Apresentado ao Curso de Comunicação da Universidade Federal da Bahia como requisito à obtenção do grau de BACHAREL EM COMUNICAÇÃO ORIENTADOR: PROF. MONCLAR E. G. L. VALVERDE SALVADOR 1998 Resumo: O trabalho, centrado no tema das relações entre música e tecnologia no século XX, consiste em duas linhas gerais complementares que atravessam todo o texto: a) um relato narrativo e informativo que procura traçar uma visão panorâmica da história da música eletrônica e das inovações tecnológicas que a impulsionaram e condicionaram, tanto no ambiente da música de vanguarda quanto no da cultura pop; e b) um exercício de crítica cultural buscando explicitar o vínculo, estreito e rico em sugestões poéticas e formais, entre as práticas desse universo musical e os equipamentos que constituem suas ferramentas. Palavras-chave: música / eletrônica / tecnologia / Kraftwerk / dance / techno 2 A minha família A todos os que contribuíram, ainda que involuntariamente, para a realização deste Projeto Experimental - com uma idéia, uma sugestão ou mesmo uma conversa corriqueira sobre por onde passa o som. 3 Computadores fazem arte Artistas fazem dinheiro Pesquisadores avançam Artistas pegam carona Cientistas criam o novo Artistas levam a fama. Fred Zero Quatro 4 Índice Apresentação Capítulo I - O uso da tecnologia na música do século XX À procura de novos sons Máquinas, ruído e música O tape studio: sons da música concreta Elektronische Musik: Stockhausen e o som artificial puro Outras músicas eletrônicas Guinada para o pop Capítulo II – O input do Kraftwerk: Electronic Folk Musik Na auto-estrada do pop eletrônico A música folclórica da aldeia global Desenvolvimentos simultâneos Output: tecnhopop, industrial, tecno, electrofunk Capítulo III – A linha de montagem da música eletrônica: bricolage, colagem, pulso, loop Questão de bricolage O sampler e a colagem sonora Circularidade e estrutura em loop: o techno no fluxo da cultura contemporânea Conclusão Apêndice I – “Derrange”, a canção: uma experiência de colagem sonora Apêndice II – Glossário Bibliografia Discografia 5 Apresentação A decisão de escrever, como Projeto Experimental de Conclusão de Curso, uma monografia que tivesse como tema o universo da música eletrônica surgiu de uma curiosidade pessoal que encontrou obstáculo na escassez de bibliografia brasileira sobre o assunto. A inexistência de obras que tematizem a história e as particularidades da música eletrônica no mercado brasileiro - desde suas gerações iniciais, ligadas à pesquisa formal da música erudita contemporânea, até as vertentes atuais da música eletrônica dançante - me levou a procurar informações e abordagens de questões correlatas em livros de especialistas e em sites na Internet, a maioria deles em inglês, reunindo, ao fim de algum tempo, um material significativo. Apresento aqui uma visão abrangente, embora apenas panorâmica, da história da música eletrônica e das respectivas inovações tecnológicas que a impulsionaram, numa tentativa de sistematizar em um único trabalho as abordagens parciais das tendências diversas e dos diferentes momentos que esse modo de fazer música conheceu desde o início deste século. O tema da música eletrônica (termo genérico que decreve uma vasta gama de manifestações musicais muito distintas, mas que possuem em comum a utilização de som gerado ou modificado eletronicamente) ganha destaque na reflexão sobre a comunicação contemporânea porque põe em evidência a intersecção entre os domínios artístico, mediático e tecnológico, alertando as teorias da cultura para o fato de que hoje nenhum deles pode existir isolado dos outros. Na experiência artística contemporânea, o domínio tecnológico é questionado mediante a exploração dos recursos do equipamento, com a intenção trangressora de ultrapassar seus usos previstos e seus limites. Assim, o surgimento de inovações tecnológicas no exato momento em que as práticas musicais consolidadas viviam, no âmbito da música de concerto de tradição ocidental, uma grande crise e uma necessidade de renovação, resultou em uma apropiação imediata desses meios pelas novas gerações. Nesse sentido, acompanhar as mudanças formais e estruturais introduzidas pelos novos meios nas noções de consonância e dissonância, nas condições de produção e fruição musicais e no próprio significado da palavra “música” é apreender um 6 aspecto do movimento de incorporação da tecnologia pela cultura musical. Também uma rica interface entre a tecnologia e a música popular pode ser verificada facilmente, na medida em que a última é “não somente veiculada mas efetivamente tornada possível e abrangida pelo estabelecimento técnico-industrial, através da fonografia – inicialmente do disco, do rádio e do cinema falado” 1 . A introdução de microfones direcionais e mais potentes, por exemplo, permitiu que os cantores criassem uma nova forma de colocar a voz, que abandona o canto empostado, quase operístico, e adota uma vocalização mais próxima da fala comum. Os equipamentos de gravação analógica e reprodução, por sua vez, criaram novas condições de fruição musical, em que as peças passam a estar sempre disponíveis para o ouvinte, que pode ouvi-la em casa, sem necessidade da “ritualização” do concerto ou do espetáculo. A música eletrônica propriamente dita surge quando o aparato tecnológico possibilita não só a amplificação do volume de som dos instrumentos e a reprodução da música gravada, mas modifica a própria criação musical, com a incorporação de diversos instrumentos novos que ampliam as possibilidades dos instrumentos convencionais e com aparelhos destinados à produção e à manipulação de sons, abrindo todo um novo universo musical a ser explorado. Assim, se qualquer abordagem da música popular (compreendida como a música de origem popular integrada aos meios de reprodução técnica) deve levar em conta os processos midiológicos e tecnológicos que foram aparecendo em paralelo à formação desse universo musical, no caso de um estudo da música eletrônica isso se torna ainda mais necessário: na história da música eletrônica, as inovações formais e estilísticas se confundem com os progressos técnicos. Nos últimos dez anos, testemunhamos a consolidação da música eletrônica para dança no cenário pop mundial. Depois de gerações sucessivas de tendências e estilos, ela chega aos anos 90 sob a denominação genérica de techno. Agora este modo de fazer e de sentir a música deixa de ser o objeto de culto de grupos restritos e ganha o posto de nova tendência BASTOS, Rafael José de Menezes. A origem do samba como invenção do Brasil. Sobre “Feitio de Oração”, de Vadico e Noel Rosa (Por que as canções têm música?). In: Antropologia em primeira mão. Santa Catarina: UFSC, 1995. p. 5. 1 7 aglutinadora de expectativas e formatos entre os artistas, os produtores e o público. Mas o momento atual representa o ponto culminante de um lento processo de constituição, difusão e popularização de um modo de fazer música que data das primeiras décadas do século XX e que teve origem nos círculos intelectualizados da música erudita de vanguarda. Com o grupo alemão Krafwterk, nos anos 70, muitas dessas idéias e recursos tecnológicos migraram para o âmbito da música pop e com isso as sonoridades eletrônicas começaram a ser exploradas de modo mais sistemático, a serviço de uma música provocadora de um tipo de fruição que privilegia o envolvimento corporal. Traçar esse longo percurso de experimentações, fazendo a ponte, sempre indispensável, entre a música eletrônica e as tecnologias que lhe servem de suporte é o objetivo deste trabalho, situado entre a pesquisa jornalística e a crítica cultural. Durante o semestre de execução do projeto (98.1), minha participação, na condição de aluno ouvinte, na disciplina “Temas Especiais em Comunicação”, ministrada pelo professor Monclar Valverde, orientador desta monografia, adicionou um componente inicialmente não previsto, que se incorporou ao trabalho final: a possibilidade de realizar, com o equipamento do então recém-instalado estúdio de som da Facom, um produto musical a partir de técnicas semelhantes às utilizadas por muitos dos produtores e DJs referidos a partir do segundo capítulo: usando trechos de músicas pré-existentes, “sampleados”, reprocessados e reordenados. O resultado desse esforço experimental, a faixa “Derrange”, criada em parceria com o colega Pérsio Menezes, é apresentado no CD em anexo (v. Apêndice). 8 Capítulo I O uso da tecnologia na música do século XX O termo “música eletrônica” é geralmente usado para caracterizar a produção musical que “emprega sons gerados eletronicamente ou modificados por meios eletrônicos, acompanhados ou não por vozes ou instrumentos musicais, e que pode ser apresentada ao vivo ou através de alto-falantes” 2 . David H. Cope a define muito sucintamente como “música composta com ou alterada por meios eletrônicos” 3 . É evidente que definições como essas duas, ao darem ênfase à tecnologia que possibilita a criação de tal música, não vislumbram uma descrição de seus aspectos formais ou estéticos, os quais dependem da maneira como cada artista se apropria dos recursos técnicos para confeccionar uma obra ou produto artístico. São definições vagas porque tomam em conjunto, como se fossem uma coisa só, modos de organizar sons tão diametralmente distintos como a música eletrônica de orientação acadêmica, que se convencionou denominar “eletroacústica” (apoiada em um vasto elenco de reflexões estético-composicionais) e a música eletrônica “popular” (frequentemente destinada à dança e feita de maneira espontânea e intuitiva, muitas vezes por não-músicos). Ao mesmo tempo, porém, as condições tecnológicas compartilhadas por esses dois extremos da prática musical eletrônica (e pelas diversas gradações intermediárias entre eles) permitem falar em uma linha comum, um universo musical com uma tradição própria. Este capítulo apresenta uma visão panorâmica da música de base eletrônica tal como ela vem se configurando desde o começo deste século: procura traçar sua história, relacionar as inovações tecnológicas que a impulsionaram, os diferentes rumos e tendências que os músicos seguiram e, por fim, estabelecer uma distinção entre o modo como os recursos eletrônicos foram adotados pelos compositores da música eletroacústica e o modo como deles se apropriaram artistas e produtores da electronic pop music. 2 LUENING, Otto. Origins. in: APPLETON, Jon H. & PERERA, Ronald. The Development and Practice of Electronic Music. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1974. p. 4. 3 COPE, David H. Electronic music. in: New directions in music. Dubuque, Iowa: Wm. C. Brown, 1981. p. 108. 9 À procura de novos sons Nossa notação musical é completamente inadequada. Ela não consegue de modo algum expressar todas as possibilidades do som, nem metade, nem um quarto, nem um décimo delas. Existem possibilidades no som que ninguém sabe como escrever no papel. Leopold Stokowski, maestro, 1932 O contexto em que a idéia de música eletrônica surge é o de mal-estar generalizado, entre os artistas da passagem do século XIX para o século XX, com a defasagem da produção artísticas em relação aos avanços da tecnologia e às mudanças sociais, cada vez mais intensas e velozes naquele momento; dessa carência de renovação estética e de atualização poética, surge a arte moderna. Os novos compositores eruditos, particularmente, demonstravam insatisfação com o impasse a que havia chegado a música ocidental à medida que começava a evidenciar-se o esgotamento das possibilidades oferecidas pela tonalidade e pela instrumentação de concerto. Parecia que nenhum passo adiante poderia ser dado em uma linguagem musical que já tinha atingido seu limite máximo de desenvolvimento. Os compositores sentiam-se constrangidos dentro do quadro de procedimentos formais pré-definidos que haviam herdado. A limitação do campo de atuação do compositor a uma determinada faixa do espectro sonoro fora fundamental, ao longo da história da música, porque permitira a criação de convenções e o estabelecimento de práticas partilhadas por compositores de todas as épocas e lugares, impulsionando a formação de uma rica tradição musical. Ao fim do século XIX, no entanto, a sensação era de estagnação, e aqueles que se dedicavam a compor a “música do novo século” viram-se obrigados a desenvolver uma série de inovações, como a atonalidade e o dodecafonismo. A música eletrônica faz também parte desse amplo conjunto de tentativas de inovação sonora e composicional, com objetivos e resultados de tal maneira diversos que torna-se difícil englobá-las em uma caracterização geral. Uma listagem minimamente minuciosa dessas inovações deveria destacar 10 o cromatismo; o uso ampliado e mais livre da dissonância; a consolidação da liberdade harmônica e melódica; a utilização das idéias estruturais derivadas da música popular genuína e da primitiva música do Ocidente; o conceito de inter-relações entre as várias partes de uma composição musical; a descoberta do passado distante e da música não-ocidental; a vasta expansão da técnica instrumental e do timbre; a nova liberdade, a complexidade e a independência de ritmo, de expressividades dinâmicas e de colorido total.4 O crítico José Miguel Wisnik, procurando compreender toda essa movimentação sonora sob a luz de um único prisma, desenvolve a noção de ruído, cuja introdução na prática musical seria o procedimento mais característico desse momento. Olhando em retrospecto a história da música tonal, Wisnik nota que ela buscou sempre constituir um “campo sonoro filtrado de ruídos”5, um aquário de sons em equilíbrio onde o conflito só seria admitido “com a condição de ser harmonicamente resolvido”. A partir do início do século XX, porém, o ruído, durante séculos recalcado, emerge de seu estado de latência musical, na medida em que “barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como integrantes da linguagem musical”6. Esse retorno, diz o autor, se dá em dois níveis: um nível interno, onde os “rumores” ocorrem no interior da própria prática musical estabelecida (dissonâncias, alterações rítmicas, timbrísticas e de texturas, rarefação das melodias e da resolução hamônica etc.) e um nível externo, em que os ruídos do ambiente (principalmente os sons do mundo moderno) vazam para dentro das obras. No último caso, as fronteiras entre som musical e ruído começam a se anular; qualquer som, a depender do enquadramento que lhe é dado, pode então fazer parte de uma obra musical. A música contemporânea descobriu, portanto, que poderia explorar aspectos do som que a tradição ocidental, mesmo sendo tão rica, havia deixado em segundo plano em privilégio da altura (melodia e harmonia). Tornaram-se comuns constatações como a do compositor francês Oliver Messiaen de que 4 SALZMAN, Eric. Introdução à música do século XX. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. p. 14 5 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras/ Círculo do Livro, 1989. P. 39. 6 Id., ibid. 11 a música, no sentido de harmonia, chegou a seu limite. Os compositores do século XX não irão além disso. (...) Por outro lado, os outros elementos da música (especialmente os rítmicos [grifo nosso], que foram esquecidos por tanto tempo: duração, timbre, ataque, intensidade) elevam-se hoje em dia a uma posição de honra”7. Os avanços na prática musical do século XX são resultado do trabalho de compositores que trouxeram esses parâmetros para a frente do palco sonoro, como o russo Igor Stravinski, os norte-americanos Henry Cowell e John Cage, e o alemão Arnold Schoenberg. Stravinski utilizou, em A Sagração da Primavera (1913), novas dimensões de ritmo, timbre e dinâmica. Cowell foi o criador dos tone clusters (“agregados de notas”). O piano foi objeto de algumas das inovações introduzidas por Cage: seu piano preparado consistia na interferência de parafusos e borrachas sobre as cordas do instrumento, produzindo timbres bastante diferentes do original. Schoenberg, com a criação do dodecafonismo, decretou o fim definitivo da supremacia do tonalismo. Nesse contexto, a emergente música eletrônica apresenta um diferencial significativo em relação às outras tentativas de renovação: apesar de reunir contribuições e descobertas de todas, ela radicaliza a busca do inédito em matéria de som musical valendo-se de uma tecnologia totalmente nova: a transformação da onda sonora em sinal elétrico. A colaboração entre técnicos e músicos resultou no desenvolvimento de todo um conjunto de novos instrumentos eletrônicos, como o Theremin (1923), o Ondes Marternot (1928), o Trautonium (1930) e o sintetizador analógico, cujo primeiro modelo apareceu em 1929. Além disso, o fonógrafo (inventado por volta de 1878) e o gravador de fita magnética (aperfeiçoado em 1935) logo destacaram-se como novos instrumentos para os compositores que, percebendo as possibilidades da transformação do som gravado e empregando-o em suas obras, revelaram o potencial expressivo de um meio originalmente votado a uma vida utilitária em fins meramente práticos (como, por exemplo, nas comunicações militares). 7 Apud Luening, Op. Cit., p.12 12 Máquinas, ruído e música Queremos afinar e regular a imensa variedade de ruídos harmonicamente e ritmicamente. Luigi Russolo, 1913 A primeira sistematização do ideal de uma música produzida unicamente com o uso de máquinas pode ser encontrada entre os manifestos do Futurismo, vanguarda surgida na Itália sob a liderança do poeta Filipo Marinetti. Esse movimento buscava uma revolução estética de resultados condizentes com a velocidade, a maquinização e a urbanização dos tempos modernos, pois (diziam os Futuristas), à medida que as indústrias passam a fazer parte do ambiente humano, os modos de pensar e de sentir sofrem transformações substanciais que precisam encontrar correspondências na poética e na estética. O Futurismo pregava, assim, a necessidade de uma arte do motor e da eletricidade, que representasse uma superação definitiva dos valores e das formas do passado - e que parecia reiterar a afirmação do compositor impressionista francês Claude Debussy em 1913: “O século do avião merece a sua música”. Publicado nesse mesmo ano, o manifesto “A Arte do Ruído”, asssinado pelo pintor e músico Luigi Russolo, seguidor de Marinetti, aplicava as motivações futuristas ao campo da música, ampliando a definição do que deve ser considerado “musical” ao introduzir a idéia de ruído como fonte de material sonoro para a composição. Russolo toma por ruídos tanto os sons da natureza, produzidos independentemente da atividade humana (tempestades, terremotos, quedas d’água), quanto os sons de objetos criados pelo progresso científico (fábricas, trens, automóveis, aviões). A esses ruídos ele opõe os sons (as notas e os acordes), enquanto unidades mínimas que, organizadas harmonicamente, constituem a composição erudita ocidental. A musicalidade proposta por Russolo deveria explorar todo o universo sonoro disponível, indo muito além da instrumentação de concerto e distanciando-se dos princípios musicais tradicionais, ultrapassando o âmbito do som e incorporando todo tipo de ruído8. 8 Note-se que, enquanto Wisnik trabalha a noção de ruído de maneira ampla, incluindo nela os novos procedimentos da linguagem propriamente musical, Russolo lhe dá um sentido muito específico, referido a 13 Seu texto começa com um breve panorama da história da música ocidental e, a partir daí, procura demonstrar a tendência, ao longo dos séculos, de crescente complexificação das sonoridades musicais, passando do acorde soante perfeito (com a presença de poucas dissonâncias), às dissonâncias persistentes que caracterizam a música a partir do século XIX. Desse modo, a postura Futurista propõe não uma negação da música do passado, mas a continuidade de um processo natural de ampliação do campo sonoro destinado à atividade artística e de incorporação de novas sonoridades ao domínio da expressão. Na linguagem lírica e exaltada comum aos manifestos, Russolo declara: Nós Futuristas amamos e apreciamos profundamente as harmonias dos grandes mestres. Por muitos anos Beethoven e Wagner sacudiram nossos nervos e corações. Agora estamos saturados e vemos mais prazer na combinação dos ruídos dos bondes, dos motores, das carruagens e no grito das multidões do que em ensaiar, por exemplo, a Eroica ou a Pastoral [sinfonias de Beethoven].9 Procurando por em prática esse projeto, ele desenvolveu engenhos mecânicos formados por caixas de madeira de tamanhos diversos, os Intonarumori (“Entoadores de Ruído”), destinados a produzir e modificar certos barulhos, como estampidos, estalos, roncos, rangidos, explosões e zunidos. As demonstrações públicas que fazia com essas engenhocas baseavam-se na combinação de sons, anunciando a idéia de som organizado, que seria essencial para o trabalho dos compositores da música eletrônica, como Edgard Varèse e Pierre Schaeffer. Simultaneamente, outros lugares viam os avanços técnicos superarem as especulações modernistas. Uma grande quantidade de instrumentos musicais eletrônicos começou a ser inventada a partir de colaborações entre técnicos e músicos, como os já citados Ondes Marternot e Trautonium. A maior parte deles, porém, limitava-se a imitar instrumentos já todos os sons não produzidos por instrumentos acústicos. Ambos, no entanto, apresentam uma interpretação da trajetória da música ocidental sob o prisma da complexificação harmônica e timbrística, na qual o ruído teria um papel crescente. 9 RUSSOLO, Luigi. The art of noises. 1913. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização perdidos 14 existentes, principalmente os instrumentos de teclado, ampliando a sonoridade dos modelos acústicos através de processos eletrônicos de amplificação e modificação do som. Além disso, esses novos instrumentos eram geralmente colocados ao lado de instrumentos tradicionais e a serviço de formas musicais tradicionais, como no Concertino para Trautonium e orquestra (1931), de Paul Hindemith. A demanda por uma poética musical radicalmente nova tardava a ser satisfeita. Foi o Theremin (apresentado ao público em 1923 pelo físico russo Leon Termen, seu criador) que marcou o aparecimento de instrumentos musicais livres dos modelos acústicos: os sons são produzidos de acordo com movimentos das mãos no ar, provocando interferência em dois circuitos elétricos, semelhantes a antenas, responsáveis pelo tom e pela amplitude do sinal. O Theremin foi empregado por diversos compositores, como Joseph Schillinger (na Airphonic Suite for RCA Therémin and Orchestra), e posteriormente passou a figurar com grande destaque nas trilhas sonoras para cinema, notadamente nos primeiros filmes de ficção científica e terror. Também nos anos 20 apareceu a inovação que representou uma das maiores reviravoltas no interior da música eletrônica: os sistemas de gravação, estocagem e transformação do som baseados na fita magnética. Essa invenção permitiu que qualquer som gravado pudesse ser tomado como matéria-prima para a utilização criativa, abrindo caminho para a música concreta, a elektronische Musik (música eletrônica alemã) e as formas de electronic pop music contemporâneas. 15 O tape studio: sons da música concreta Em qualquer lugar, o que mais ouvimos são ruídos. Queremos capturar e controlar esses sons, e usá-los não como efeitos de estúdio mas como instrumentos musicais. John Cage, 1937 As aspirações de John Cage representam uma inquietação dispersa entre alguns compositores das primeiras décadas do século, e os avanços tecnológicos pouco a pouco procuraram satisfazê-la. A idéia de que gravações pudessem servir de base para a composição musical foi discutida pela primeira vez em 1926, no Festival de Música de Câmara de Donaueschingen, na Alemanha. Um programa de pesquisa dedicado a questões em torno do assunto foi implantado na Escola de Música de Berlim dois anos depois, dando origem, em 1930, a duas peças experimentais, criadas pelos compositores Paul Hindemith e Ernst Toch com os recursos fonográficos de alteração de velocidade (aceleração e retardamento), transposição e mixagem do som. Foi na França, porém, que os experimentos em gravação e manipulação de sons foram desenvolvidos de modo expressivo, nos estúdios da RTF (Radio-Television Français), coordenados pelo engenheiro eletroacústico Pierre Schaeffer. Ele produziu peças musicais, além de textos programáticos, dentro do que denominou musique concrète, ou seja, música concreta10. Na confecção de obras como Sinfonia para um homem só (1950), Schaeffer estabeleceu e desenvolveu técnicas de intervenção na fita magnética - mudanças na velocidade de rotação, inversão da direção de rotação, corte e edição, tape loops*11 e superposição de materiais (mixagem) - que lhe permitiram realizar modificações substanciais em sons anteriormente gravados, como vozes, cascatas, trovões, máquinas, etc. Essas técnicas foram depois adotadas por grande parte dos compositores de música eletrônica, tornando-se generalizadas. Ao mesmo tempo aparelhos como filtros, reverberadores e equalizadores possibilitaram que o compositor controlasse diretamente os parâmetros físicos que constituem o som, tais como a frequência, o espectro, a intensidade, o envelope e a 10 Os termos marcados em negrito correspondem a tendências composicionais ou gêneros musicais, e uma breve descrição de cada um deles pode ser encontrada nos parágrafos vizinhos à sua ocorrência. 11 Os termos marcados com um asterisco (*) encontram-se referidos no Glossário (Apêndice II). 16 duração, além do modo de passagem de um evento sonoro para o seguinte. Com o correr do tempo, foram desenvolvidos gravadores destinados especificamente à manipulação do som: equipados com um seletor de velocidade, eram capazes de alterar a tonalidade de um som e fazê-la coincidir com as notas da escala musical convencional. O gravador e o estúdio de fita começaram a ser considerados verdadeiros instrumentos musicais, pois toda uma linguagem musical passou a explorar intensivamente suas possibilidades técnicas. Explica-se, dessa maneira, o motivo da denominação música concreta: nesta, a música se faz diretamente na fita, com sons reais (concretos) modificados e organizados empiricamente - enquanto que as formas tradicionais da música de concerto são primeiramente concebidas de maneira abstrata e em linguagem simbólica (a notação musical) e só depois realizadas concretamente, no momento da execução pelo intérprete. As notas e os acordes são substituídas, na função de unidades mínimas das peçaa musicais, pelo que Schaeffer chamava de objetos sonoros, as pequenas gravações individuais destinadas à composição das “estruturas de som organizado”. Outra razão está na reprodutibilidade das peça: ao contrário da música de concerto, em que a obra é virtualizada no momento em que o compositor a escreve na partitura e depende sempre de uma atualização pelo intérprete (pois música só existe enquanto som), cada peça de música concreta possui apenas uma interpretação, aquela que foi gravada e mixada e que é reproduzida a cada “concerto” (o mesmo vale para toda peça de música eletrônica registrada em fita daí por diante, como as obras da escola alemã de elektronische Musik). Elektronische Musik: Stockhausen e o som artificial puro A distinção entre as duas principais escolas da música eletrônica baseada nos recursos do tape studio definia-se em função do tipo de material bruto escolhido, ou seja, das fontes sonoras, eletrônicas ou não-eletrônicas, a serem utilizadas na confecção da obra musical. As fontes não-eletrônicas, privilegiadas pela música concreta, podiam, como vimos, ser tanto sons da natureza quanto sons de instrumentos, em gravações submetidas a reprocessamento e a mixagem. O uso de fontes sonoras totalmente eletrônicas só veio a acontecer sistematicamente com a elektronische Musik, que reunia compositores como 17 Stockhausen, Eimert e Meyer-Eppler em torno do estúdio de Colônia, na Alemanha. Tomando como material sons inteiramente artificiais, ou seja, frequências puras geradas por aparelhos como sintetizadores e osciladores, modificadas por filtros e moduladores e organizadas segundo uma aplicação fiel ao método serial, Stockhausen produziu uma extensa obra que é tida como um dos legados mais importantes da música eletrônica para a música produzida neste século. Depois da obra Gesang der Jünglingle (1955-56), do próprio Stockhausen, e do Poème électronique (1958), de Varèse - feitas com gravações de vozes humanas, sons ambientais, instrumentos tradicionais e sons sintéticos, manipulados em estúdio -, a interação entre fontes eletrônicas e não-eletrônicas em uma mesma obra disseminou-se, e a oposição rígida entre as escolas de música eletrônica perdeu o sentido. Desde então, o termo música eletroacústica consagrou-se como o mais adequado para nomear a compatibilização técnica e estética de ambas as tendências (acrescida, em muitos casos, da reincorporação das conquistas da linguagem musical ocidental12). Outras músicas eletrônicas As possibilidades expressivas abertas pelo aparato de estúdio foram exploradas pelos compositores também no sentido de ampliar os limites da execução e da performance instrumental, na medida em que as novas tecnologias permitiram que o som dos instrumentos comuns fosse retrabalhado de formas não-convencionais e até inéditas. Entre os compositores que empregaram instrumentos acústicos em suas obras para fita estão Mario Davidowsky, Donald Erb, Otto Luening, Steve Reich, entre muitos outros. Através de montagem e mixagem de trechos musicais, suas obras demonstram a aptidão da gravação em fita para explorar toda a variedade de sons dos instrumentos e elevar a execução a níveis de velocidade e exatidão para além da capacidade humana. Flautas, percussão, violinos e outros instrumentos foram usados desde então de modos inesperados 12 V. Menezes, 1996 apud Grupo de Artes Sônicas, Música eletrônica. http://www.artnet.com.br/~pmotta.htm 18 e surpreendentes, consolidando a tecnologia como um grande aliado na renovação das formas musicais. Duas outras importantes inovações técnicas ampliaram os horizontes da música eletrônica a partir do fim dos anos 50: a criação do sintetizador e a digitalização dos dados sonoros. O primeiro, baseado no transistor, ampliou as possibilidades de síntese de sons, além de aumentar a sua variedade. Já com a digitalização do som, ou seja, a conversão das vibrações sonoras em parâmetros numéricos altamente manipuláveis, o computador passou a reunir as funções de estúdio e de equipamento de síntese de timbres e sons, capacitando uma intervenção ainda maior do compositor na criação do material para sua música. Durante algum tempo, o computador foi usado também, no âmbito da pesquisa em composição musical, na criação de partituras convencionais a partir de dados numéricos calculados através da máquina13. Ao mesmo tempo, a música comercial, representada pelos diversos gêneros da música popular, intensificava o uso dos novos recursos tecnológicos, fazendo deles um uso similar (mas, como veremos, diferenciado) e familiarizando um largo público com as características do som eletrônico. Cabe, portanto, uma distinção entre a música eletroacústica propriamente dita e a apropriação da tecnologia eletrônica pelas músicas popular e pop. A primeira, apesar de ser sob vários aspectos um desdobramento da linguagem da música tonal ocidental, buscou sempre uma poética própria. A música popular que fez uso do aparato eletrônico, ao contrário, manteve-se, em geral, presa aos princípios da organização harmônica tonal e às formas de instrumentação anteriores, como a pequena orquestra. É nesse sentido que Peter Manning observa, em Electronic & computer music: A sólida integração dos recursos eletrônicos aos instrumentos mais tradicionais do rock e do pop estabeleceram uma conexão técnica com as principais correntes da música eletrônica. As conexões artísticas, porém, têm sido muito mais tênues, pois as diferenças filosóficas e estilísticas mostraram-se difíceis de superar.14 13 14 Cf. MANNING, Peter. Electronic & computer music. New York: Oxford University Press, 1988. Id., ibid., p. 204. 19 De agora em diante, portanto, utilizaremos o termo música eletroacústica quando estivermos nos referindo às vertentes acadêmicas da música eletrônica e o termo pop eletrônico (ou electronic pop music) para falar do uso dessas mesmas tecnologias no âmbito da música popular. Guinada para o pop Trata-se de uma via de mão única. Karlheinz Stockhausen, aos jornalistas que lhe perguntaram sobre sua influência no rock. Já na época das primeiras experimentações com a fita magnética em música eletrônica, esperava-se que suas técnicas fossem apropriadas pelos artistas de música popular. De fato, desde sempre o pop evoluiu em função do aparecimento de novos recursos técnicos que ampliavam suas possibilidades estéticas, tornando, no mesmo ato, as novas sonoridades eletrônicas familiares ao grande público. A adoção da guitarra elétrica por músicos de blues, por exemplo, catalisou a formação do rhythm & blues, versão do gênero mais rápida, mais complexa e orientada para a dança (e que posteriormente levaria à constituição das características básicas do rock’n’roll)15. O órgão elétrico Hammond e o sintetizador Moog, originalmente criados para uso de compositores eruditos, também tiveram grande importância no desenvolvimento de certas formas de música pop, especialmente a partir da complexificação formal do rock nos anos 60, e tornando-se muito populares. As possibilidades abertas pelos estúdios, então em plena expansão tecnológica, foram largamente exploradas em álbuns como Pet sounds (Beach Boys) e Sergeant Peppers (Beatles), ambos de 1967. Guitarristas como Jimi Hendrix (Are you experienced?, 1967) tornaram-se célebres ao dotarem suas guitarras elétricas dos recursos do pedal de efeitos, aparelho que prolonga as notas e distorce o timbre. O trabalho do Pink Floyd (Atom heart 15 V. DAUFOUY, Philippe e SARTON, Jean-Pierre. Pop music/Rock. Tradução de Carlos Lemos. Lisboa: A regra do Jogo, 1974. p. 21-28. 20 mother, 1970, Meddle, 1971), por sua vez, é cheio de tentativas de exploração de fontes sonoras “concretas”, transformadas por efeitos eletrônicos e embutidas em suas canções (muitas vezes em alusão às alterações da percepção motivadas pelo uso de drogas). No mesmo sentido, o interesse de Frank Zappa pelo trabalho de Varèse e de Stockhausen se refletia nas experimentações de cruzamento entre rock e música eletroacústica presentes em álbuns de seu grupo Moterhs of Invention, como Freak Out, de 1966. Por outro lado, no que se refere à resposta do público, um dos primeiros trabalhos a ter uma grande repercussão mercadológica foi o álbum Switched on Bach (1968), de Walter Carlos, que transformou-se em um grande sucesso de vendas ao “recriar” algumas obras de Bach com um sintetizador Moog. Porém, só faz sentido falar em uma electronic pop music a partir dos anos 70, quando diversos artistas investiram na busca de uma revitalização dos gêneros pop (o que em alguns casos resultou na criação de novos gêneros) a partir das novas possibilidades técnicas, tanto em termos de instrumentos quanto de recursos de estúdio: Brian Eno, na Inglaterra, o produtor Lee Perry, na Jamaica, o grupo Tangerine Dream e todo o movimento Krautrock, na Alemanha, entre muitos outros. Uma das intervenções mais significativas no caminho entre a música eletroacústica (vanguardista, cerebral e distanciada do grande público) e a disseminação do uso da eletrônica na música popular, foi sem dúvida a atuação do grupo alemão Kraftwerk, o primeiro a explorar uma imagem pop diretamente vinculada a essas tecnologias. Produzindo, nos anos 70, uma série de álbuns utilizando exclusivamente instrumentos eletrônicos, reprocessados segundo uma vivência pop (ritmos dançantes, letras irônicas), eles intensificaram a interação entre os novos recursos técnicos e o ouvinte médio e abriram caminho para o surgimento de toda uma nova ramificação da música pop, a música eletrônica dançante e suas muitas vertentes. 21 Capítulo II O input do Kraftwerk: Electronic Folk Musik O pioneirismo do Kraftwerk no uso dos recursos eletrônicos no interior do universo pop (no qual, por mais problemática que seja a inclusão de seu trabalho, eles encontram identificação) não é total: como vimos, nos anos 70 as novas tecnologias eram exploradas por um grande número de artistas, entre nomes conhecidos e obscuros. No entanto, sob vários aspectos, a obra do Kraftwerk é a mais importante e a mais influente do período, merecendo uma abordagem detalhada, à parte (que será feita neste capítulo, juntamente com uma relação de alguns dos outros artistas menos conhecidos e de uma breve descrição dos desdobramentos da electronic pop music a partir dos anos 70). Entre as razões que fazem de Ralf Hutter e Florian Schneider os grandes pioneiros do pop eletrônico está o fato de que, ao optarem por usar exclusivamente instrumentos eletrônicos, eles injetaram no pop um tipo de invenção e inovação que não havia existido antes e empurraram os padrões da música pop em outras direções, originando uma (e até mais de uma) linguagem. Com a ênfase que dava às sonoridades sintéticas e a uma certa idéia de “música popular futurista”, o grupo, como ninguém antes, firmou no imaginário do grande público a noção de uma música eletrônica. Apesar de alguns de seus discos terem feito algum sucesso quando lançados, o Kraftwerk nunca vendeu milhões de discos à maneira dos maiores astros pop. Seu trabalho, porém, sempre teve muita repercussão nos circuitos de dance music, influenciando uma boa parte dos artistas e produtores que depois vieram a criar a imensa variedade de gêneros de música dançante (technopop, hip hop, industrial e EBM, para citar só alguns). A música do grupo, além disso, ganhou alguma popularidade (embora muitas vezes o público não soubesse quem estava tocando) ao ser utilizada em diversos comerciais e programas de televisão em todo o mundo, especialmente quando o tema era ligado a avanços tecnológicos. Por fim, ao trazer para suas letras, apresentações ao vivo e entrevistas temas atuais como as relações entre tecnologia e sociedade, homem e máquina, arte e ciência, o Kraftwerk realizou uma das primeiras abordagens pop para a discussão sobre o lugar do desenvolvimento tecnológico em nossa época. 22 Na auto-estrada do pop eletrônico Naquela época, (...) era o momento certo, as pessoas queriam ouvir sons novos. Todos estavam interessados, não podíamos nem fazer tudo o que as pessoas queriam ouvir; era uma época muito receptiva. Com certeza poderíamos ter feito mais do que fizemos. Ralf Hutter, Kraftwerk Dusseldorf, Alemanha, 1971. Os dois músicos estão no palco, manipulando seus instrumentos: sintetizadores, uma bateria eletrônica e um pequeno aparelho que fornece ecos e feedback. O público balança ao som da música, maquinal, repetitiva e estranhamente dançante, enquanto um telão exibe imagens de engrenagens e paisagens industriais. A certa altura, enquanto a música continua a tocar, os músicos descem do palco e... se juntam aos dançarinos!... que demoram alguns instantes a decifrar o que está acontecendo. Tudo isso continua por uma hora ou mais. A cena descrita acima pode ou não ser mais uma lenda envolvendo o nome e a imagem do Kraftwerk, mas ela é um retrato eloquente do significado que o grupo ganhou na história da música pop. Com eles, tem início uma era em que a dança passa a ser um dos principais motores da produção musical (dance music sendo o termo genérico usado para se referir a essa larga parcela do mercado, formada por uma diversidade de gêneros e correntes), em que as sonoridades sintéticas atendem a uma determinada expectativa estética e conquistam uma massa de ouvintes crescente, em que os instrumentos eletrônicos (sintetizadores, drum machines, computadores) são adotados por um grande número de artistas e em que estes, por seu lado, muitas vezes se confundem com o público (a partir da figura do DJ, disc-jóquei, o ouvinte médio que, auxiliado pelo aparato tecnológico, passa a produzir sua própria música). E no entanto, considerando apenas os primeiros tempos do Kraftwerk, dificilmente alguém imaginaria os desdobramentos que o trabalho deles iria gerar. O Kraftwerk surgiu numa Alemanha que, em plena Guerra Fria, se esforçava para recriar sua identidade cultural, abalada com a derrota na Segunda Guerra. Surgiam diversas frentes de renovação artística, 23 como um novo cinema alemão e o movimento experimental Fluxus, liderado pelo artista Josef Beuys. Na música, era o momento do chamado Krautrock, um movimento de bandas de músicos jovens com alguma formação erudita e que juntavam o pendor para a experimentação da música de vanguarda, o ritmo simples e regular do rock, o uso intensivo de equipamento eletrônico caro à música eletroacústica e a improvisação do free jazz. Nomes importantes do período são os grupos Tangerine Dream, Can e Faust, que, apesar de terem uma popularidade restrita aos circuitos intelectualizados, representaram a primeira linha de contato efetiva entre a vanguarda musical e o nascente pop eletrônico, caracterizada musicalmente pela presença menos marcante da guitarra (ao contrário do rock como era conhecido até então) e a ênfase crescente nos sintetizadores e no “minimalismo” da seção rítmica. É nesse contexto que Florian Schneider e Ralf Hutter, os membros fundadores do Kraftwerk, se conhecem no Conservatório de Dusseldorf, onde estudam respectivamente flauta e piano. A insatisfação com a música tradicional os aproxima, e logo, usando instrumentos eletrônicos caseiros, eles estão criando pequenas peças vanguardistas inspiradas nos sons eletroacústicos de Stockhausen. Quando Hutter adota o órgão elétrico, eles se juntam a um baterista e um baixista para formar o grupo Organization e fazer apresentações em galerias de arte e universidades. Em 1970, o grupo grava seu único disco, Tone float, que registra uma forte influência da banda progressiva inglesa Pink Floyd nas longas faixas instrumentais de aparência caótica em que a flauta de Schneider aparece com bastante tratamento eletrônico. Nada muito surpreendente numa época em que o rock progressivo vivia seu auge e a experimentação era moeda corrente entre bandas iniciantes e veteranas. Depois da gravação desse disco, Hutter e Schneider deixam o Organization para montar seu próprio estúdio – que em 75 seria batizado de Kling Klang, uma onomatopéia alemã que significa “som” ou “ruído” - onde gravam o primeiro álbum sob o nome Kraftwerk, Kraftwerk 1 (1971), a que logo se segue Kraftwerk 2 (72), ambos contando com mais dois membros na formação, Klaus Dinger e Andreas Hohmann. Os discos trazem novos instrumentais longos (com menor dose de improvisação e mais disciplina) conduzidos por 24 teclados, flautas e guitarras, frequentemente com algum tratamento eletrônico, sobre ritmos de uma drum machine*, também retrabalhados eletronicamente. Ralf Hutter, o spokesman do grupo, descreve as condições técnicas nesses primeiros tempos: Não tínhamos um baterista, então comprei uma drum machine barata que tinha alguns ritmos dançantes pré-programados. Usando esses ritmos, mas alterados com ecos e filtros, fizemos as bases do segundo disco. Outros sons instrumentais vinham de osciladores caseiros e um velho órgão Hammond. Manipulávamos a velocidade das fitas para efeitos adicionais.16 O resultado são faixas dominadas por células rítmicas simples e insistentes, em que as alusões à interação entre música e tecnologia aparecem com frequência – uma temática que já é indicada pelo significado do nome do grupo: “Kraftwerk” é a palavra em alemão para “usina de força” ou “estação de energia”. Em “Ruckzack” (de Kraftwerk 1), a flauta é tocada de maneira não usual, produzindo um ritmo quase tribal que se sobrepõe à batida acelerada da bateria eletrônica. Em “Klingklang” (de Kraftwerk 2), o tempo da música acelera e desacelera, como se seu ritmo fosse de fato dirigido por uma máquina; no final, tudo pára subitamente, como se alguém cortasse a energia sem aviso. O terceiro álbum, Ralf and Florian (73), é feito após a saída dos dois membros adicionais e mantém a mesma sonoridade proto-industrial dos dois primeiros discos, mas demonstra uma preocupação maior com a construção melódica. As viagens através da Alemanha para fazer apresentações ao vivo dão aos músicos (novamente um quarteto, contando agora com os novos membros Wolfgang Flur e Klaus Roeder, encarregados da percussão eletrônica) a inspiração para o quarto álbum, Autobahn (74), no qual eles quase abandonam por completo os instrumentos convencionais e passam a usar de maneira mais sistemática instrumentos eletrônicos, como sintetizadores e drum machines, alguns construídos em colaboração com técnicos de empresas do ramo da tecnologia do som – parceria que daí em diante seria uma constante na carreira do Kraftwerk. Não apenas por opção, mas também por necessidade, como Hutter conta: 16 Kraftwerk, The Early Years, ‘68-’73. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização 25 Para fazer a música que queríamos, tivemos que construir ou modificar nossos instrumentos. Não existia percussão eletrônica para comprar, então tivemos que desenvolver nossas próprias baterias, assim como muitos dos teclados e do software.17 É em Autobahn também que eles consolidam seu estilo e definem um projeto artístico que continua valendo para o resto da produção do grupo: a redução das idéias a alguns poucos conceitos-chave, o “minimalismo”, a música como reflexo de um ambiente em que as máquinas interagem com os indivíduos e entre si, como se tivessem vida própria. “Autobanh”, a faixa-título, é uma epopéia de ritmos pulsantes misturados a sons metálicos que narra uma viagem de automóvel por uma grande auto-estrada alemã. A música alterna momentos em “alta velocidade”, nos quais o zumbido do sintetizador imita um motor, com trechos mais contemplativos, em que a flauta executa um tema melódico de sabor pastoral. O tema da “viagem” se reflete na própria estrutura da faixa, cíclica e recursiva, em que os elementos aparecem aos poucos, um por um, permanecem em cena durante alguns momentos e desaparecem, para eventualmente retornarem depois de algum tempo – numa opção antecipada pelo “minimalismo”18 e pela circularidade (que haveriam de se revelar essenciais para os gêneros posteriores de pop eletrônico) como procedimentos que põem em questão a linearidade narrativa, característica da canção, até então o formato predominante na música popular. A letra (sendo essa a primeira vez que o Kraftwerk usou palavras em sua música) ampliava esse efeito de circularidade ao fazer referência a si mesma. Ela dizia apenas: Estamos atravessando a Autobahn (auto-estrada). / À nossa frente, um amplo vale, / o sol brilha com raios cintilantes. / A rodovia é uma linha cinza, / listras perdidos. 17 HUTTER. in: Media for musiker, october 1991, by Micheal Dee. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização perdidos 18 Há semelhanças entre o minimalismo descrito aqui e a tendência ou escola minimalista da música contemporânea representada por compositores como La Monte Young, Steve Reich e Philip Glass. Ambos se servem de estruturas cíclicas e recursivas, baseadas em elementos simples que se repetem e que se revezam no “palco” sonoro da música. Mas não se deve confundir a escola musical minimalismo com o emprego adjetivo, muito comum na imprensa pop, da palavra “minimalista”, cujo sentido é apenas derivado do sentido original. Assim, para evitar equívocos, quando houver, neste trabalho, emprego adjetivo da palavra “minimalista”, ele será sempre identificado com o uso de aspas. 26 brancas, margens verdes. / Agora nós ligamos o rádio, / vindo da caixa de som ouvimos: Autobahn... descrevendo um cenário utópico que ignora problemas como a poluição, o desmatamento e o desequilíbrio ambiental, e em que o progresso tecnológico convive, em harmonia construtivista, com a paisagem natural. Nos discos seguintes, porém, o Kraftwerk passaria progressivamente dessa louvação quase ingênua dos benefícios trazidos pelos produtos da ciência para uma postura mais consciente e crítica quanto aos efeitos, muitas vezes ambivalentes, das inovações tecnológicas. Uma versão reduzida de “Autobahn” (que no álbum durava 22 minutos, ocupando todo um lado do disco) alcançou o 11º lugar nas paradas radiofônicas britânicas e ficou em 25º nos Estados Unidos, chegando depois de alguns meses ao Top 5 em ambos os lados do Atlântico. Graças a tal sucesso, o grupo fez seus primeiros shows nos Estados Unidos, obtendo boa recepção por parte da crítica. Era o começo da consagração, mas ainda levaria algum tempo até o grupo se tornar realmente popular. O disco seguinte, Radioactivity (1975), repete a fórmula de um único tema que atravessa todas as faixas, dessa vez, a “radioatividade”, em todas as conotações da palavra: tanto no sentido químico, quando no das transmissões de rádio - o disco tem a estrutura de um programa radiofônico, com a seção musical, o noticiário e os anúncios publicitários. O álbum serve como um exemplo da criatividade do Kraftwerk em explorar as possibilidades sonoras inerentes aos mais diversos produtos da cultura científica e incorporá-las a sua música, como o código Morse, que soletra a palavra “radioactivity” na faixa título, ou as frequências de rádio e de estática em diversos momentos do disco. A instrumentação concentra-se entre teclados e drum machines, além do uso frequente de tape loops*. O vocoder* ganha destaque, como uma representação sonora da idéia abstrata de “energia” através da voz humana, distorcida, transformada em um rumor expressionista. Mais uma vez, as letras, telegráficas, fazem uma exaltação ao avanço tecnológico, com louvores à comunicação através do rádio (“Quando as ondas [de rádio] se movem / cantam vozes distantes”; “Eu sou a Antena captando as vibrações / você é o transmissor, me dê a informação”) e ao acréscimo nas reservas de energia obtido com as estações nucleares – os 27 riscos de tal fonte energética são aparentemente desconsiderados. No mais, o disco consolida a formação do Kraftwerk que iria perdurar daí em diante, com a entrada do novo integrante Karl Bartos (percussão eletrônica) após a saída de Klaus Roeder. Trans Europe Express (1977) usava o trem como conceito-chave. O ritmo, hipnótico como de costume, agora aludia ao barulho das rodas nos trilhos, com todos os efeitos e ruídos sugeridos por uma estrada de ferro. A idéia (similar à desenvolvida em Autobahn) é a de um trem visitando vários países da Europa. Nesse disco, além de apresentar uma bateria eletrônica mais amadurecida, com um ritmo mais consistente, o Kraftwerk começa a deixar de lado os temas melódicos grandiloquentes e a abrir espaço para canções pop, como “Hall of mirrors” e “Showroom Dummies”. As letras dessas canções abordam a tecnologia de maneira menos impessoal, apresentando personagens solitários que interagem com uma paisagem fria e sem vida ou mostrando máquinas que ganham vida e passam a se comportar como gente. Pela primeira vez, ritmos dançantes atravessam todo o disco, sem pausas, tornando mais explícita a motivação para a dança na música do Kraftwerk. A resposta do público negro de cidades como Detroit e Nova Iorque foi de inesperado entusiasmo (o disco, curiosamente, e a despeito de sua índole por vezes industrial, frequentou as paradas de soul music da época), abrindo uma das conexões que haveria de se mostrar central para o desenvolvimento posterior do pop eletrônico: o encontro da eletrônica com a música negra norte-americana. Já consagrado, o Kraftwerk lança o disco seguinte, The man machine (1978), que consiste em seis canções lidando com o dilema entre a desumanização do homem pela máquina versus sua utilização a serviço do bem-estar da humanidade. As referências oblíquas através das temáticas inanimadas são abandonadas, passando-se para uma abordagem mais direta e humanista do impacto das tecnologias sobre o indivíduo e as cidades a partir do conceito de “robô” (a máquina que se parece com um ser humano ou o homem tornado máquina). O resultado são canções pop cujas texturas eletrônicas são mais complexas e possuem uma sofisticação melódica e harmônica maior do que os trabalhos anteriores do grupo. Entre elas está o maior hit do Kraftwerk, “The Model”, um technopop com levada estilizada de funk que chegou ao primeiro lugar na parada britânica e tornou-se um grande 28 sucesso nas pistas de dança. A partir do início dos anos 80, o grupo passa a dedicar a maior parte de seu tempo à digitalização do estúdio Kling Klang, numa lenta reforma que durou quase uma década. Isso explica porque desde então o Kraftwerk lançou apenas três LPs e um EP (compacto com menos de meia hora de duração), nos quais a presença do som digitalizado é cada vez mais significativa. Computer world, de 1982, enfoca a digitalização das atividades humanas (negócios, relações pessoais, lazer) através de letras satíricas e de texturas eletrônicas geradas em computador que refletem, na música, as temáticas abordadas. As características do computador enquanto meio, como a minituarização, a praticidade e a interação descomplicada com o usuário são encenadas de modo quase cômico por um músico que toca seu pequeno instrumento digital e, orgulhosamente, proclama: “Sou um operador com minha calculadora de bolso”. No ano seguinte é lançado o EP Tour de France (1983), em que o tema central volta a ser o deslocamento espacial, mas desta vez tematizado por um meio de transporte não-motorizado, a bicicleta. Era o momento em que a ecologia começava a ganhar espaço nos grandes meios de comunicação, e, mais uma vez, o Kraftwerk refletia em seu trabalho um tema em pauta na sociedade, defendendo a opção por um meio de transporte barato, não-poluente, e que, para eles, representava a encarnação final da integração entre o homem e a máquina. O destaque deste disco é base rítmica da faixa-título, criada com os sons de uma bicicleta e da respiração de um ciclista modificados eletronicamente. Nos discos mais recentes, a tecnologia digital toma, literalmente, a frente do palco. Em Electric café (1986), a introdução do sampler* permite que as vozes sintetizadas sejam trabalhadas de uma nova maneira: separadas em pequenas unidades (como frases curtas e palavras), as intervenções vocais são usadas de maneira percussiva, pulsando ritmicamente junto com a bateria eletrônica. O álbum duplo The mix (1991) marca o ingresso definitivo do Kraftwerk na era do som digitalizado, com a completa computadorização do estúdio 29 Kling Klang. Miniaturizado e distribuído em módulos, o estúdio passa a ser removível e transportável, e é assim que, nas apresentações ao vivo do Kraftwerk, ele é inteiramente instalado no palco (criando o conceito de live studio, ou “estúdio ao vivo”). O disco, por sua vez, é todo dedicado a remixes* das faixas mais importantes da carreira do grupo. A música folclórica da aldeia global Você pode definí-la [a música do Kraftwerk] como quiser: música de ficção científica, techno-disco ou rock cibernético, mas eu prefiro o termo robot pop, que se adequa ao nosso objetivo de trabalhar sem descanso na construção da canção pop perfeita para as tribos da aldeia global. Ralf Hutter De tempos em tempos, a empresa Kraftwerk produz e lança no mercado o produto em que se especializou: um conceito, uma determinada noção do futuro em forma de música e imagem – um futuro que é apresentado não como um estágio remoto a ser alcançado pela humanidade, mas como uma condição vivida cotidianamente desde já, por meio das tecnologias e próteses que circundam o homem contemporâneo. As poucas palavras presentes nessa linguagem sintética e quase robótica referem-se às próprias tecnologias que constituem seu ambiente, elas refletem e comentam a sonoridade eletrônica que as sustenta. Na linha de produção do Kling Klang, a música é ao mesmo tempo bem de consumo e obra de arte que questiona a própria condição, a própria origem. A ênfase no aspecto funcional e mercadológico da arte, presente em toda a produção do Kraftwerk, revela uma influência da Bauhaus (Escola de Construção), importante escola de arquitetura e design da Alemanha pré-Hitler que ressurgiu no imaginário germânico do pós-Guerra como um modelo a ser seguido pelos artistas ansiosos por uma reestruturação da nação e uma renovação cultural. O objetivo da Bauhaus era misturar arte e tecnologia e fazer do artista não mais um ser isolado, ocupado em criar uma “arte pela arte”, mas uma peça de um corpo social, no qual ele tem uma função específica. Tratava-se de uma tentativa de fazer a arte responder às exigências que se impunham na nova sociedade 30 industrial, em cuja paisagem as criações da ciência e da técnica gradualmente substituem o mundo natural e avanços contínuos nos mais variados campos, como a medicina, as comunicações, os transportes e a própria atividade artística, modificam e reconstituem as formas conhecidas de socialidade e de experiência humanas. Para o Kraftwerk, isso significou a necessidade de uma pesquisa crescente em torno de uma música cujos sons refletissem o novo cenário e o novo homem que o habita. O resultado foi a lenta gestação de um gênero musical, que eles definem como Industrial - ou Electronic, ou ainda Robot - Folk Music (em alemão, Industriallevolksmusik 19 ) e que reúne as conquistas técnicas e formais da música eletroacústica com a capacidade de comunicação direta com o público típica da música popular: “Fazemos a música regional das áreas do Rino e do Rohr [rios localizados na parte Oeste da Alemanha]”, disse certa vez Ralf Hutter. “É assim que nós nos vemos”, afirmou em outra ocasião, “há algo de étnico no nosso trabalho; não poderíamos ter vindo de nenhum outro lugar. A cena berlinense é diferente da cena de Munique, e nós somos de Dusseldorf, que é uma zona industrial”20. Há ironia intencional no emprego da palavra regional para se referir a uma música produzida com a utilização de equipamentos tecnológicos sofisticados e através de uma rotina de trabalho extremamente sistemática e rigorosa - exatamente o oposto da noção consagrada de regional como algo próximo da cultura popular, folclórica, própria dos lugares ainda não alcançados pelo “progresso” e pelo “desenvolvimento”. Com essa ironia, porém, o Kraftwerk faz mais uma ponderação a respeito de nossa época: ao enfatizar o aspecto regional de Dusseldorf, eles apontam para o caráter globalizado da sociedade pós-industrial – ecoando a noção mcluhaniana de “aldeia global” e o conceito, criado pelo sociólogo Massimo Canevacci, de “glocal” (“global” + “local”), que aludem à dissolução das distâncias geográficas e das barreiras culturais pelas atuais tecnologias de comunicação, Folk, palavra do inglês que significa “povo” (e que tem raiz no alemão Volk) está na origem da expressão “folclore” (folk + lore, “conhecimento”, “saber”). Ao mesmo tempo, sabemos que o termo pop alude ao caráter popular, massivo, desse tipo de música. Folk music > pop music > Robot folk... Estaria o Kraftwerk sugerindo o fechamento de um ciclo na história da música popular, com um retorno da música a suas funções primitivas? 20 A conclusão do argumento de Hutter deixa claro que, ao falar no aspecto “étnico” do trabalho do Kraftwerk, ele na verdade não está se referindo a questões de raça ou etnia, mas a uma condição etnológica ou, ainda, etnográfica, que diz respeito às características culturais de uma determinada população. 19 31 levando a um envolvimento das culturas umas nas outras e a uma contração final das culturas numa só. O fato de que a música do Kraftwerk encontrou ressonância em lugares muito distintos de seu local de origem, sendo assimilada e adaptada de acordo com objetivos diversos em metrópoles como Detroit, Nova Iorque e Londres, demonstra que já então havia uma sensibilidade comum a populações distantes no espaço – fato que pode ser considerado um prenúncio do techno globalizado dos anos 90, em que um gênero chamado jungle (“selva”) é um fenômeno mundial, raves (grandes festas ao ar livre) são realizadas em regiões remotas do Oriente (como por exemplo Goa, na Índia, que originou um gênero, o Goa trance) e produtores e DJs exploram as mais inusitadas misturas entre musicalidades nativas e o modus operandi digital. O som do Kraftwerk já foi descrito como a “antítese do blues e do soul”, tal é a ênfase na frieza das máquinas e a ausência de sentimentos em seus ritmos. Seus temas passam longe do terreno subjetivo das emoções, como a energia nuclear em Radioactivity e os computadores em Computer World: há sempre uma alusão a um mundo de crescente interação entre a sociedade e o avanço tecnológico. A produção do Kraftwerk, além de ter explorado sonoridades novas e formatos inéditos no universo pop, trouxe sempre essa preocupação em questionar noções referentes à tecnologia e à idéia de progresso. A paródia da sociedade tecnológica é encenada com frequência pelos músicos do Kraftwerk, que se comportam como robôs, no palco (quando não colocam os próprios robôs para “tocar” os instrumentos ao vivo), e chegam a proclamar, em entrevistas, uma “sensibilidade” sintética ou cibernética. O humor e a ironia compõem uma atitude que pretende desmistificar a tecnologia, retirá-la do altar da tecnofilia (que a enxerga como a redenção final do homem) ou da fogueira inquisitorial da tecnofobia (que culpa a técnica pelos males sociais e espirituais da humanidade), e enquadrá-la como parte indissociável do nosso cotidiano e da experiência humana em geral. Daí a presença dos sons corriqueiros das máquinas domésticas, retrabalhados e desviados de seu contexto original até adquirirem sentido musical: “O mundo ao nosso redor é uma orquestra completa. Os barulhos de carros, máquinas de café, limpadoras a vácuo, podemos usá-los em nossa música”21. 21 HUTTER. in: ANDERSON, Willi. Computer liebe. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da 32 Até os poucos personagens humanos que habitam as letras parecem submetidos a uma lógica da mecanização, como a top model de “The Model”: maquinizada, ela age como um manequim diante das lentes das câmeras (numa sátira à desumanização através da tecnologia, e a uma sociedade onde tudo está disponível como mercadoria, que aparece também em “Computer love”, dedicada aos serviços de tele-sexo). Os temas do Kraftwerk servem, assim, a uma sofisticada representação paródica da sociedade contemporâea, em que o próprio sentido de pop é exarcebado e logo em seguida colocado em suspenso. Além disso, toda a póetica (musical, lírica, visual) do Kraftwerk é uma construção que assume e ironiza, incorpora e transforma conceitos-chave para a compreensão da cultura contemporânea, como “indústria da cultura”, “reprodutibilidade técnica”, “extensões do homem” e “multimídia”. Poder-se-ia dizer que cada disco do Kraftwerk aborda uma determinada “extensão do homem”, e talvez até fosse possível vincular cada álbum-tema a um dado capítulo do livro de McLuhan: a auto-estrada, a estrada de ferro, o rádio, o computador, o robô, e assim por diante. A música do grupo é, assim, apenas uma parte do sistema simbólico que envolve desde a criação do conceito do álbum (cada disco com um tema central) e a produção musical propriamente dita no estúdio Kling Klang, até as capas dos discos e a identidade visual (sempre com um conceito de design) e a apresentação ao vivo, com robôs que simulam tocar instrumentos e todo um aparato de espetáculo, bastante sofisticado (telões, luzes). Desde Radioactivity, o designer Emil Schultz é responsável por tudo o que envolve a imagem do Kraftwerk, como capas e encartes de disco, cenários de shows, etc, garantindo uma unidade entre o elemento visual e a música eletrônica do grupo e compondo o caráter multimídia de sua produção. Desenvolvimentos simultâneos Enquanto o Kraftwerk chamava a atenção do grande público pop, outros artistas de menor disponibilização perdidos. 33 destaque, espalhados em vários países e com as mais diversas procedências musicais, realizavam inovações que, a longo prazo, haveriam de se revelar tão importantes para o desenvolvimento do pop eletrônico quanto as invenções sonoras dos alemães. Alguns desses artistas, hoje reconhecidos como referências fundamentais para muitos produtores e DJs, são Brian Eno e Lee Perry. Brian Eno é um músico de origem no rock (foi um dos componentes da banda glam Roxy Music) que progressivamente foi se afastando desse universo e se aproximando da vanguarda, ao desenvolver uma música muito particular, centrada na exploração de texturas eletrônicas delicadas, com ênfase nos timbres e nos processos de gravação, batizada por ele de ambient music. O conceito que sustenta o projeto do ambient, como o gênero é também conhecido, é a criação de “paisagens sonoras”, espaços virtuais habitados por sons contemplativos e composições de estrutura não-linear que devem muito aos trabalhos da vanguarda minimalista (v. nota 16 deste capítulo). Em discos como Music for Airports e On Land, Eno procurou criar uma música que não chamasse atenção sobre si mesma, mas que fosse capaz de se integrar ao ambiente e de absorver os sons desse ambiente sem concorrer com eles. Mas Eno ficou mais famoso pelos trabalhos que realizou como produtor, como os discos que fez, de 1977 em diante, com o cantor inglês David Bowie, Low, Heroes e Lodger, discos que contribuíram enormemente para uma aproximação da eletrônica a formatos mais tradicionais de música pop e para a popularização das sonoridades sintéticas entre uma parcela maior do público médio. O conceito de “paisagem sonora” e a exploração de texturas e “climas”, por outro lado, haveriam de se mostrar presentes em muitas das vertentes posteriores da música eletrônica, especialmente da segunda metade da década de 80 em diante. Na Jamaica, Lee “Scratch” Perry, um não-músico que se tornou produtor de discos de reggae, fazia experimentações de estúdio pioneiras, ao adicionar efeitos como ecos, distorção, reverbs, delays etc. a músicas de artistas sob sua direção - criando assim alguns dos primeiros remixes* de que se tem notícia. Desacelerando o andamento do reggae e usando tape loops* e ruídos “concretos” para criar “climas” e “paisagens” sonoras de efeito em certa medida semelhante ao das gravações ambient de Eno, Perry criou um gênero que 34 foi batizado de dub e que, ao se consolidar como formato, influenciou, com suas técnicas de mixagem e edição de efeitos, a formação de muitos dos outros gêneros que se seguiram, como o hip hop, o house e daí todo o techno atual. Outro nome importante nos primeiros tempos do dub é a dupla de produtores Sly & Robbie. A discotèque foi o gênero que, a partir da metade da década de 70, deu o grande impulso à cultura dance e ampliou o alcance da música criada especialmente para as casas noturnas. Entre os incontáveis produtores responsáveis por isso, destacou-se o italiano Giorgio Moroder, que fez discos para artistas como Donna Summer e criou uma disco music eletrônica, cheia de sintetizadores e de batidas criadas com drum machines. Sendo incontável o número de artistas que, nos anos 70, se aproximavam da eletrônica, outros nomes que podem ser lembrados são George Clinton, produtor das bandas funk Parliament e Funkadelic, e Laurie Anderson, artista de vanguarda novaiorquina ligada ao universo pop. 35 Output: technopop, industrial, tecno, electrofunk, house Lembro que alguém me levou a um clube por volta de ’76 ou ’77, quando Trans Europe Express tinha saído, (...) no comecinho da cultura do DJ, quando eles estavam começando a prensar seus próprios discos, suas próprias batidas. [Naquela noite] usavam trechos de ‘Metal on Metal’, de Trans Europe Express, e quando eu entrei, pensei: ‘Estão tocando o disco novo’. Mas aquilo continuou por dez minutos! E pensei: ‘o que está acontecendo?! A música só tem uns dois ou três minutos de duração!’ E depois fui perguntar ao DJ: ele tinha duas cópias do disco e estava mixando uma na outra e, claro, podia continuar enquanto as pessoas estivessem dançando. Ralf Hutter A partir da atuação do Kraftwerk e dos artistas comentados na seção anterior, os eventos começam a se multiplicar, tornando mesmo impossível uma localização precisa de data e local de nascimento de muitos dos gêneros de electronic pop music que daí derivam. A velocidade no fluxo da informação, a multiplicidade de eventos simultâneos na cultura contemporânea, a diversidade de indivíduos envolvidos na produção e na veiculação dos produtos musicais eletrônicos concorrem para a formação de uma música em constante estado de transição, em que os gêneros surgem rapidamente, sem origem precisa, sem paternidade clara. Tudo o que se tem são noções aproximadas, simplificações de um fenômeno espantosamente veloz, mutante, e ainda muito próximo no tempo para ser compreendido com o devido distanciamento. O primeiro desdobramento da produção kraftwerkiana pode ser verificado num novo gênero saído da era punk, indefinido entre o rock e o funk, o industrial, cuja característica principal é a percussão feita com sucata e o uso de outras fontes sonoras que não instrumentos tradionais: serras elétricas, britadeiras, bigornas, etc. Os nomes mais importantes da tendência, nesses primeiros tempos, são os ingleses Cabaret Voltaire e Throbbing Gristle e o alemão Einsturzende Neubauten, entre outros que desde então adotaram o estilo, com diversas vertentes e variações, mas sempre com muitos ruídos e 36 muita dissonância, que formam o cerne do gênero. Embora nem sempre façam uso intensivo de equipamentos e de instrumentos eletrônicos sofisticados e frequentemente enfatizem a precariedade e o primitivismo técnicos, há uma vinculação clara das bandas industriais com certos trabalhos do Kraftwerk, principalmente a faixa “Metal On Metal”, de Trans Europe Express. Na mesma época, surge o technopop (ou synthpop), que consistia na adaptação de formatos pop convencionais, como a balada romântica e a música dançante, aos novos instrumentos eletrônicos (tornados mais acessíveis com o barateamento dos sintetizadores e das drum machines). O gênero foi inaugurado, ainda nos anos 70, por Gary Numan (“Are friends electric?”, “Cars”), um astro pop de visual “sintético” muito próximo ao dos membros do Kraftwerk, e teve como maiores destaques os grupos Depeche Mode, Human League, OMD e Soft Cell. O technopop foi um dos principais gêneros responsáveis pela popularização da instrumentação eletrônica e das estruturas “minimalistas” associadas a seu uso, pois o público que suas canções atingiam era o mais amplo que a electronic pop music tinha alcançado até então. Impossível deixar de falar de um elemento fundamental para o desenvolvimento de muitos gêneros da música techno: o encontro da eletrônica com a música negra norte-americana (o funk, a disco, o soul, o hip hop), que contribuiu com o groove* e o calor humano tanto quanto o maquinário do Kraftwerk. Os discos dos alemães estão entre os primeiros a serem sampleados e se tornaram referência obrigatória para os disc-jockeys que no início dos anos 80 estavam criando o hip hop (Nova Iorque), o tecno (Detroit) e o house (Chicago), os primeiros gêneros de música eletrônica dançante, dos quais derivam praticamente todos aqueles que formam a cultura techno contemporânea. Nos Estados Unidos, no início da década de 80, os DJs Juan Atkins e Carl Craig começam a movimentar as casas noturnas de Detroit (que, assim como Dusseldorf, está localizada numa zona industrial) com uma mistura de disco com eletrofunk acelerado, dando luz ao tecno original, minimal, bastante melódico e, na maioria das vezes, totalmente 37 instrumental22. “Klee”, do Cybotron e “Nude Photo”, do Rhythim is Rhythim são faixas clássicas do gênero. Simultaneamente, os negros nova-iorquinos começam a mixar trechos de músicas de outras pessoas a batidas eletrônicas de funk e a fazer scratches (o uso do toca-discos como instrumento musical, no qual a rotação de um disco sofre uma intervenção manual, produzindo um som indefinível), a partir de práticas nascidas do simples ato de tocar discos de vinil em festas de bairro, que com o tempo foram crescendo em técnica e complexidade. Sobre essas bases rítmicas, os rappers faziam as suas longas intervenções vocais: um canto falado e sincopado cujos versos comentavam fatos do cotidiano do gueto e faziam uma espécie de crítica social espontânea. Quando o rapper e produtor Afrika Bambaataa mixou trechos da melodia de “Trans Europe Express” à levada rítmica de “Numbers” (de Computer love) para criar “Planet Rock” (1982), o primeiro disco de hip hop eletrônico (ou eletrofunk) a alcançar o topo das paradas, ele dava maior visibilidade a um modo de fazer música que se tornaria mais e mais comum ao longo da década. O house, outro gênero importante, surgiu de uma mistura, feita pelos DJs de Chicago, de vinis do Kraftwerk com trechos de discos de soul, e da introdução de novos modelos de teclados, de drum machines e de samplers*. O seu som limpo e acelerado usa vocais femininos de soul (com muitos efeitos), riffs* curtos de piano ou de sintetizadores caseiros e batidas pesadas com andamento entre 110 BPM e 128 BPM (batidas por minuto). O house adquiriu muitos estilos e variantes ao longo do tempo, sendo até hoje o formato de dance music mais popular. Nos anos 80, a Europa também desenvolve suas próprias variantes de dance music. Na Bélgica, músicos de estúdio usam os bleeps do Kraftwerk para criar a Electronic Boby Music (EBM). Uma dessas bandas, A Split Second, foi descoberta por um DJ, que, ao tocar uma música deles num clube da Bélgica, lembrou (ou terá sido um erro?) de desacelerar a 22 A grafia tecno é frequentemente usada, na imprensa especilizada, para diferenciar o gênero de música eletrônica surgido em Detroit do seu (em parte) derivado techno que, a partir da segunda metade dos anos 80, com a onda das raves (grandes festas ao ar livre), passou a englobar toda uma subcultura, envolvendo moda, comportamento, identidade visual e diversos subgêneros musicais – que muitas vezes têm características ou elementos em comum com o som originário de Detroit, mas não se confundem com ele. 38 música em aproximadamente 30% de sua velocidade, notando que o público enlouquecia com a batida resultante, lenta e cadenciada. Assim surge o New Beat, e daí em diante grupos como T99, Front 242, Technotronic e dezenas de outros. Uma infinidade de “projetos” começa a aparecer, estimulada pelo barateamento do equipamento e pela crescente manuseabilidade do mesmo – “projeto” é o termo que, na música eletrônica, veio substituir a palavra “banda”, destituída de sentido quando se trata frequentemente não de músicos tocando os instrumentos convencionais da música pop (baixo, guitarra, bateria e teclados), mas de, em média, duas ou três pessoas manipulando mesas de som com samples (trechos copiados) pré-gravados. Com o surgimento do sampler*, peça de hardware que permite a gravação e o reprocessamento digital de qualquer som, as técnicas de colagem e reciclagem de material musical alheio chegam a um alto grau de refinamento. Hoje a eletrônica domina o cenário pop, com o uso do sampler, da bateria eletrônica, do sintetizador e do sequenciador se difundindo rapidamente e fazendo com que as sonoridades sintéticas, antes tidas como excessivamente experimentais, “pouco humanas” ou “frias”, conquistem um público cada vez maior. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos continuam tornando os equipamentos e instrumentos digitais acessíveis a qualquer pessoa interessada, músico ou não. Agora, tudo o que alguém dotado de um sampler precisa para fazer música é discernir quais os trechos de trabalhos já existentes (bases rítmicas, linhas de baixo, figuras melódicas, pedaços de frases etc.) que encaixam uns com os outros e produzem um efeito estético interessante. É curioso notar também como, a partir de Computer world, o próprio Kraftwerk vem atualizando sua música em função dos desdobramentos dados pelos continuadores do pop eletrônico, como uma espécie de resposta àqueles que seguiram seus passos. Computer world, que é lançado no auge do technopop, tem “influência” clara do estilo criado pelas bandas inglesas. Electric cafe acrescenta ao som do Kraftwerk diversas referências ao hip hop (no ritmo das faixas do lado A) e à EBM. E, por fim, The mix, refaz os temas clássicos do repertório kraftwerkiano sobre batidas bem mais pesadas, bastante próximas do groove* típico do house que, na virada da década de 80 para 90, tinha seu momento de pleno vigor. 39 A adoção do conceito de “remix” é, nesse último disco, outro elemento de atualização da música do Kraftwerk: depois de serem tão imitados, copiados e sampleados, é como eles passassem a usar samples das próprias músicas, a samplearem a si mesmos. 40 Capítulo III A linha de montagem da música eletrônica: bricolage, colagem, pulso, loop Uma breve história da música eletrônica – desde a introdução de novos recursos de produção e de tratamento do som na cultura musical erudita até sua ambientação gradual no universo da música pop – representou, até aqui, a linha diretriz deste trabalho. A narração linear desses desenvolvimentos, porém, não deve ser interpretada como postulação de uma continuidade ou de uma filiação direta dos produtos da electronic pop music às realizações e teorias composicionais da música eletroacústica. O que se pretendeu não foi sugerir que os gêneros techno contemporâneos derivam, em progressão histórica, da música eletrônica de formação erudita e orientação vanguardista, mas tão somente indicar que, com o passar das décadas, eles se beneficiaram da crescente abertura de expectativas e da ampliação de demandas estéticas em torno de sonoridades sintéticas. Para constatar isso, basta verificar a coerência entre os resultados alcançados pelos músicos dos dois universos musicais, através de percursos independentes, mediante o emprego das mesmas tecnologias. Existem, porém, tanto traços em comum quanto oposições entre a música eletroacústica e a electronic pop music, havendo entre elas o mesmo misto de ruptura e de continuidade que vincula a música ocidental de concerto à formação da música popular convencional: a segunda herda determinados elementos e padrões da primeira, mas, para constituir sua linguagem própria, os associa a padrões formais de uma outra tradição (no caso da música popular, a música tradicional ou folclórica23; no caso do pop eletrônico, os ritmos e gêneros dançantes da música pop). Neste capítulo, detalharemos aspectos do fazer musical que provêem do uso das diversas tecnologias de gravação, tratamento e produção do som, voltando nossa atenção em especial para a recente integração dessas tecnologias em uma só plataforma de operação, o computador. A partir de meados dos anos 80, a difusão do tratamento digital do som tornou Cf. BASTOS, Rafael José de Menezes. A origem do samba como invenção do Brasil. Sobre “Feitio de Oração”, de Vadico e Noel Rosa (Por que as canções têm música?). In: Antropologia em primeira mão. Santa Catarina: UFSC, 1995. 23 41 possível reunir, em um único instrumento, funções antes separadas em tecnologias de natureza diferentes, além de tornar a manipulação do material sonoro muito mais simples e acessível ao usuário médio. Ampliaram-se, assim, as possibilidades de experimentação com o som, tornando-se o computador o equipamento musical emblemático dos novos tempos no campo da música eletrônica. Questão de bricolage O que estava tentando fazer (...) em 1948? Como Boulez disse, era um caso de bricolage, e eu conservo esse termo não como um insulto, mas como algo muito interessante. Afinal, qual a origem da música? Foi através de bricolage, com cabaças vegetais, com fibras, como na África. As pessoas faziam cordas de violino de intestinos de gato. E, obviamente, a escala temperada é um compromisso e também bricolage. E essa bricolage, que é o desenvolvimento da música, é um processo constituído pelo homem e pelo ouvido humano, não pela máquina, pelo sistema matemático. Pierre Schaeffer, 1987 Um procedimento que se destaca, na história da música eletrônica como um todo, é a improvisação de novos usos a partir da base tecnológica existente, ou seja, a mudança na direção do emprego de equipamentos criados tendo em vista um uso diverso. É fato que uma boa parte dos instrumentos e aparelhos usados nas obras eletroacústicas e nos produtos do pop eletrônico foram desenhados e construídos especialmente tendo em vista demandas, às vezes bastante específicas, surgidas da prática musical. O trabalho conjunto de engenheiros e músicos é suficiente para demonstrar isso. Todavia, observar como outros aparelhos, destinados a usos controlados e pré-determinados pela racionalidade científica, são retirados de sua função original e “reinventados” por um fazer musical diverso pode revelar uma excelente indicação do caráter desviante comum às atividades artísticas contemporâneas, que fazem uma contestação generalizada ao domínio tecnológico da cultura – o qual, ao mesmo tempo que sustenta e alimenta a realização artística, a contrange e limita ao impor condições técnicas e predispor usos que os processos artísticos, por sua 42 vez, almejam transpor. É esse o caso, por exemplo, do equipamento de gravação e reprodução do som, inventado com o objetivo prático e mercadológico de estocar e distribuir peças musicais convencionais. Seus possíveis efeitos estéticos estariam, a princípio, relacionados apenas às novas condições de fruição nascidas da reprodutibilidade: pela primeira vez a música estava disponível à livre vontade do ouvinte. Até o momento em que Pierre Schaeffer, ao se apropriar da tecnologia e empregá-la em sua musique concrète de uma maneira diversa, imprevista – chegando mesmo a criar técnicas de mixagem – produziu texturas e estruturas sonoras com os mais variados tipos de som gravado (inclusive discos comuns, mas principalmente sons do ambiente, naturais e mecânicos, e sons produzidos pelo corpo humano), organizados segundo uma coerência interna a cada peça, onde passam a substituir as notas da escala musical. Essa primeira bricolage eletrônica já introduz o elemento de colagem de sons, que daí em diante marcaria uma significativa parte da produção musical eletrônica. Redefinição no emprego de um equipamento para fins expressivos é também o que ocorre no caso dos geradores de onda e osciladores, criados tendo como destino original o estudo da acústica em laboratórios de física e depois deslocados de sua função científica por Stockhausen e seus colegas de Colônia. Aqui, um equipamento propriamente científico é desviado de suas funções de pesquisa originais e revertido para um outro tipo de pesquisa, a invenção musical, na qual os músicos exploram as propriedades dos sons sintéticos (são tipos de ondas sonoras, cujas denominações em inglês se referem à forma que tais ondas descrevem num gráfico, como as triangle-wave, square-wave, sine-wave, white-noise, entre outras, todas totalmente artificiais, não encontráveis na natureza). A mesma tendência à bricolage vai reaparecer, muito tempo depois, em diversos gêneros da electronic pop music: no uso de sucata como fonte de sons percussivos, no caso do industrial; no emprego do toca-discos como instrumento musical, com o scratch do hip hop (altamente “transgressor”, na medida em que dá ao aparelho tecnológico um uso oposto, ipsis literis, ao programado); e na reciclagem de fonogramas alheios, nos samples e loops* 43 da música pop eletrônica a partir da disseminação do sampler. Tais exemplos de bricolage, generalizados no universo da música eletrônica, ressoam uma disposição que está na base de qualquer atividade artística: a ambição de apresentar novos pontos de vista a respeito dos objetos do mundo, recontextualizando e assim ressignificando os produtos da cultura. A tendência à bricolage na música eletrônica é de certo modo sintetizada, com eloquência, pela obsessão do Kraftwerk em explorar as possibilidades sonoras dos aparelhos tecnológicos que fazem parte do cotidiano contemporâneo, como a querer mostrar que invenções das quais se espera apenas funcionalidade e previsibilidade podem ser desviados de seu destino original, surpreendendo e causando estranhamento. É bricolage o que o Kraftwerk faz: ao extrair música de calculadoras, trens, automóveis e frequências de rádio, eles dão aos produtos da cultura científica um novo uso, inesperado, tão crítico em relação à ambiguidade dos efeitos das inovações tecnológicas quanto suas letras elípticas. O sampler e a colagem sonora São estas as seis famílias de ruídos da orquestra Futurista, que em breve faremos funcionar mecanicamente: grupo I – explosões, estrondos, trovoadas, roncos; grupo II: assovios, resfolegos, silvos; grupo III: sussurros, resmungos, esguichos, murmuros; grupo IV: gritos, guinchos, farfalhares, zumbidos, estalos, sons de fricção; grupo V: barulhos obtidos com percussão em metal, madeira, pedra; grupo VI: vozes de animais e pessoas, gritos, risadas, gemidos, uivos, chiados e soluços. Luigi Russolo, A Arte do Ruído, 1913 A introdução das tecnologias de tratamento digital do som, disseminadas a partir de meados dos anos 80, completa, até o presente momento, a história dos progressos técnicos e, por conseguinte, das inovações no campo das possibilidades poéticas da música eletrônica. Sequenciadores MIDI, modelos digitais de drum machines e, principalmente, o sampler, com suas características de miniaturização do equipamento, baixo custo, manuseio descomplicado e acesso visual ou numérico ao som (que abre possibilidades musicais para 44 não músicos), além de sua integração no computador, sofrem uma rápida popularização e se tornam a marca de uma nova forma de pensar e fazer a música. O formato MIDI (Musical Interface Digital Instruments) é um protocolo que “permite o diálogo entre instrumentos digitais (...). Assim, uma só pessoa pode reger sua orquestra pessoal, em que um sequenciador (...) é o cérebro, transmitindo para cada sintetizador/sampler/computador rítmico as informações necessárias sobre onde, quando e o que tocar”. (Bizz, Anos 80). O sampler efetivamente mudou o modo como a música pode ser feita, e a infinidade de novos gêneros techno que despontam na década de 90 são reflexo disso: a música não depende mais das limitações dos instrumentos e das pessoas que os tocam, e (quase) tudo é possível. Pode-se criar música com sons “concretos” e experimentar com frequências, timbres e tempos que antes estavam fora de alcance, criando sonoridades que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar. Havia já, no universo da música eletroacústica, iniciativas anteriores de aproveitamento de trechos de gravações de músicas pré-existentes em uma nova obra, como a peça Hymnen, de Karlheinz Stockhausen, feita nos anos 50 mediante o emprego de gravações de hinos nacionais de diversos países, numa alusão a um mundo em crescente integração pela comunicação radiofônica. Já o uso de sons “crus” ou ambientais, inaugurado pela música concreta de Schaeffer, pode ser observado em diversos momentos do pop eletrônico e é amplamente explorado nos dias de hoje, tanto em exemplares de música techno, quanto em muitas canções de estrutura pop mais convencional que incorporam as novas tecnologias. Hoje, samples de trovões, máquinas, pássaros etc., que após a manipulação digital são plenamente incorporados às texturas de músicas de todos os gêneros, retomam as idéias que estiveram na base do trabalho dos pioneiros da eletrônica. A colagem de trechos de músicas já existentes foi, desde o início, um dos recursos mais típicos do hip hop, desde o lendário DJ Marley Marl, que começou a usar trechos curtos de discos antigos (principalmente de soul, funk ou disco) em loop*, para criar ornamentos 45 melódicos (frases curtas de metais, por exemplo) e bases rítmicas (padrões de bateria, linhas de contrabaixo). É importante notar que isso já era feito antes mesmo da invenção dos modelos comerciais de sampler, com técnicas de mixagem com toca-discos comuns e edição de fitas. O novo instrumento, projetado especialmente para a manipulação de qualquer som gravado, daria novo impulso ao desenvolvimento da música eletrônica, pois trazia consigo – como consequência de seu caráter digital - uma considerável facilitação no uso do equipamento e a possibilidade de visualização e de tratamento numérico dos elementos sonoros. Além, é claro, do caráter aglutinador de todo meio digital: no computador reúnem-se os equipamentos de gravação e montagem em fita magnética, de geração de som sintetizado e de processamento do material sonoro. A importância do sampler no que se refere aos aspectos poéticos da música eletrônica mais recente merece ser analisada com maior extensão, pois, desde sua chegada, esse equipamento adquiriu um valor estrutural nos gêneros em que seu uso se desenvolveu. O procedimento básico do sampler consiste justamente na gravação de um som já existente para que seja incorporado à nova peça (pouquíssimas vezes sem modificações, e frequentemente com modificações tais que o tornam irreconhecível, muito diferente do original). O processo de criação musical passa a constar de duas etapas: a escolha de determinado trecho gravado, a partir de uma intuição de que ele pode vir a servir a uma nova composição, e sua posterior transformação e incorporação. Os sons passam por um processo de edição, em que sofrem a transformação gráfica ou numérica de alguns dos parâmetros físicos que o constituem, e são posteriormente montados de modo a compor uma nova música. “O som gravado é reduzido a unidades básicas, visíveis, separáveis, e pode ser retrabalhado quase como se estivéssemos desenhando ou pintando” 24 , anotou Jeremy J. Beadle, descrevendo sua experiência de criar, auxiliado por um DJ e empregando um sampler, toda uma faixa experimental. Não se pode dizer que os samples do pop eletrônico sejam simples citações, pois há uma 24 BEADLE, Jeremy J. Will pop eat itself? Pop music in the soundbite era. Faber & Faber, 1993. p. 132 46 retirada do som de seu contexto original e uma ressignificação do trecho sampleado; além disso, muitas das músicas que usam samples dependem deles estruturalmente, em larga medida: é comum que o sample em loop* seja o elemento que carrega a faixa adiante, que dá unidade aos fragmentos sonoros da colagem eletrônica. Cumpre observar que as técnicas de colagem exploradas pelo sampler não dispensam a presença de músicos ou anulam a necessidade de performances com instrumentos “reais”; elas simplesmente apliam as possibilidades de uso expressivo de qualquer som gravado. Num mercado pop mundial marcado por uma demanda constante por novos sons e novos modos de fazer música, o sampler revolucionou tais possibilidades, introduzindo modos inéditos de acesso e modelagem do som (mais do que síntese). Promovendo um tipo de sensibilidade característico, o sampler permite uma espécie de acesso randômico ao repertório musical acumulado pela humanidade: distâncias temporais e espaciais são comprimidas, enquanto a disponibilidade da matéria-prima não depende e não é mais limitada por diferenças históricas, geográficas, de classe ou de raça. E certamente não é mera coincidência o fato de que encontra-se disseminada entre aqueles que produzem a música techno uma predisposição à adoção de uma atitude multicultural e antropofágica que assimila, digere e devolve a informação cultural de fontes as mais díspares. Ao mesmo tempo, a facilidade de acesso aos dados sonoros e sua alta manuseabilidade, proporcionada pela digitalização, fazem com que, gradualmente, perca importância a versão definitiva da música, a gravação oficial, na medida em que, em “estado digital”, as músicas podem ter um caráter provisório, podendo a qualquer momento ter seus elementos reconfigurados em novas versões (os remixes) e em apresentações ao vivo. No caso dos remixes, tendência crescente nos anos 90, os elementos são recombinados e justapostos a outros elementos quaisquer, pode-se alterar o ritmo da música, chegando a resultados que muitas vezes guardam semelhança mínima com o original. No caso das apresentações ao vivo em festas e raves, os DJs-produtores mixam bases rítmicas e outros elementos sempre de maneira livre, podendo assim alterar cada música a depender da resposta do público (aumentando a velocidade da batida, intensificando a atividade sonora, mudando o “clima” da música, etc.). Tal flexibilidade estrutural guarda semelhanças com a noção, muito 47 propagada, de “obra aberta”: a flutuação do sentido em função da mobilidade dos elementos da obra (aqui presentificada na flutuação dos arquivos de som no interior das pistas de gravação dos programas de computador). Nesse momento, o DJ ganha destaque e status de “autor” pelo fato de que, estando no controle das decisões formais – simbolizado pela mesa de som que gerencia todo o equipamento eletrônico –, ele é o sujeito que organiza pedaços dispersos de gravações de modo a compor uma configuração sonora nova e expressiva. O DJ torna-se o novo star, com padrões de virtuosismo próprios e uma performance cujo êxito estético deriva de sua capacidade de movimentar a pista de dança e de sentir e satisfazer a vibração do público. Ao mesmo tempo, a autonomia do pequeno produtor, favorecida pela tecnologia digital, fomenta uma atitude de “faça você mesmo”, próxima à do movimento punk dos anos 70, pela qual músicos com pouco treinamento (e muitas vezes até não músicos, simples ouvintes atentos) produzem e gravam sua própria música em estúdios caseiros e a distribuem de forma independente. A eletrônica está além das nações e das raças. Ela fala uma linguagem que qualquer um pode entender e que expressa mais do que só histórias, como as canções convencionais. Com a eletrônica, tudo é possível. O único limite é o que diz respeito ao compositor. (Hutter, Billboard, 1977) 48 Circularidade e estrutura em loop: o techno no fluxo da cultura contemporânea (...) a música, no sentido de harmonia, chegou a seu limite. Os compositores do século XX não irão além disso. (...) Por outro lado, os outros elementos da música (especialmente os rítmicos, que foram esquecidos por tanto tempo: duração, timbre, ataque, intensidade) elevam-se hoje em dia a uma posição de honra”25. Oliver Messiaen O techno prima por músicas sem estrutura linear estrofe-refrão-solo-refrão (o formato canção), optando por uma circularidade rítmica e melódica que tem como efeito a criação de ambientes e paisagens sonoras “minimalistas”. O “eterno retorno” dos padrões rítmicos, dos riffs* curtíssimos e dos ruídos eventuais, nega a necessidade de causa e consequência, que sustentam as formas musicais ligadas à tonalidade convencional. Eis o pulso e o timbre em sua essência, sem necessidade de uma canção. Como observa Wisnik: “Modais, urbanizadas, tonalizadas, industrializadas, eletrificadas, as músicas dançantes adotam o pulso percussivo, timbre-ruído a serviço do ‘esquecimento’ no fluxo do momento”26. O “código da repetição” (Wisnik) que marca toda a eletronic pop music, com seu ritmo marcado e insistente, guarda semelhanças com as estruturas do minimalismo da música contemporânea, as quais já foram apontadas no capítulo anterior. Restou observar a relação desse “minimalismo” do pop eletrônico com o aspecto rítmico: são justamente os padrões rítmicos curtos e reincidentes que criam o ritmo que têm a dança como efeito previsível, como apelo irrecusável. Assim, a consolidação do techno levanta um ponto que deve ser destacado: a diferença no tratamento do aspecto rítmico entre a música eletrônica de vanguarda e toda a eletronic pop music, embora em ambas haja uma ênfase no elemento pulso. O crítico José Miguel Wisnik estabelece essa diferença (entre o que ele chama de tempos) da seguinte maneira: A música de concerto contemporânea explorou conscientemente dimensões do 25 Apud Luening, Op. Cit., p.12 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras/ Círculo do Livro, 1989. p. 199. 26 49 tempo que contestam a escuta linear, negam a repetição e questionam o pulso rítmico. A massa das músicas de massa marca o pulso rítmico, a repetição e apela à escuta linear. Uma contesta o tom e o pulso, outra repete o tom e o pulso. 27 A predominância da parte rítmica, com destaque para a bateria, em primeiro plano na mixagem, as formas circulares, repetitivas, as frases melódicas curtas e soltas, a repetição aleatória de sons incidentais, a incorporação do ruído, a ênfase na sonoridade e no timbre, são algumas características formais que atravessam a maior parte da produção dos incontáveis gêneros techno. Tais soluções formais não têm o sentido de decisões tomadas de maneira totalmente consciente; elas resultam, muitas vezes, de processos e procedimentos improvisados e testados empiricamente – no calor das festas de bairro novaiorquinas ou das raves britânicas – a partir das próprias condições técnicas de que os DJs-produtores dispõem e que, no decorrer de uma prática constante, se revelam esteticamente eficazes, estabelendo aos poucos padrões recorrentes e reconhecíveis por um público cada vez maior. De alguma maneira sentíamos que a era da música baseada na composição [composed music] tinha acabado e nos esforçávamos por criar uma música mais simples. Algo que pudesse ser tocado no rádio, sem que precisasse se ajustar aos estilos musicais correntes28. A música baseada na digitalização do som aparece como uma alternativa, em termos de inovação e inventividade, contra a consolidação formal e a falta de novidades nos outros gêneros pop. Ao mesmo tempo, por ser música essencialmente rítmica, que exige uma participação diretamente corporal do ouvinte, ela retoma uma associação ancestral entre música, dança e transe. Acho que nós previmos que a música eletrônica seria a próxima fase da música popular [Volksmusik], e as pessoas diziam que isso era loucura, que era uma 27 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras/ Círculo do Livro, 1989. p. 195 28 Hutter in: DEE, Michael. Kraftwerk article. in: Media for musiker, october 1991, by Michael. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização perdidos. 50 música muito elitista, cerebral, e tínhamos que dizer que não, era música do dia a dia, carros, barulhos, microfones apanhando música para todos 29. 29 Hutter in: WARD, Phil. Arts & Krafts Interview. Dados da disponibilização perdidos. 51 Conclusão As novas práticas musicais possibilitadas pela introdução das tecnologias de tratamento e produção do som chamam a atenção para a simbiose entre a tecnologia e a música, de importância crescente no presente século. A migração dessas tecnologias para o ambiente da música popular, onde, a partir dos anos 70, elas se propagam e impulsionam o surgimento de uma infinidade de gêneros dançantes, representa a consolidação de iniciativas técnicas e propostas poéticas em curso desde o início do século por compositores e cientistas empenhados na busca de novas sonoridades. A música eletrônica atual institucionaliza e torna reconhecíveis para o grande público – embora de maneira distinta, não mais exigindo uma fruição dependente de um entendimento racional como os trabalhos da música eletroacústica – tecnologias e práticas musicais que remontam aos projetos e obras de compositores experimentais como Pierre Schaeffer, Karlheinz Stockhausen e Edgard Varèse. Toda a trajetória de experimentações em música eletrônica é atravessada pela busca de uma poética derivada das especificidades formais condicionadas pelos meios tecnológicos. Assim, são procedimentos marcantes desse universo musical tanto a pesquisa em conjunto envolvendo técnicos e músicos em torno de inovações técnicas às novas necessidaddes de criação musical quanto o uso “transgressor” de equipamentos científicos inicialmente destinados à prática científica e reempregados na pesquisa musical. Entre as características formais recorrentes, destacam-se a bricolage, a colagem, a ênfase na diversidade timbrística (que incorpora nas peças musicais sons de origens muito diversas, não apenas dos instrumentos convencionais) e a exploração intensiva do pulso (descentrado e disperso na música eletroacústica; ritmado e concentrado na electronic pop music). Permitida pela digitalização, a integração das diversas tecnologias de música eletrônica em um único aparelho, o computador, torna os padrões formais da música eletrônica reconhecíveis pela grande massa e aponta para uma nova fase na história da música popular. 52 Apêndice I “Derrange”, a canção: uma experiência de colagem sonora A produção da canção “Derrange” consistiu de dois momentos bastante distintos e complementares. Num primeiro momento, em parceria com Pérsio Menezes no estúdio da Facom, foi criada a base rítmica, a partir da colagem de vários trechos curtos de músicas alheias (samples), alguns dos quais em loop*. O fato de não sermos músicos, isto é, de não termos nem formação teórica nem qualquer treinamento instumental, não nos impediu de criar, com o uso do computador, toda a faixa que serviria de base para a música, inédita na medida em que reconfigura de maneira única elementos prévios, procurando obter um resultado que, longe de parecer descontínuo, amorfo, ou “experimental”, possuísse coerência musical. Além disso, desconsiderando qualquer tipo de avaliação estética quanto a sua qualidade ou originalidade, “Derrange” não difere muito, em termos formais, de grande parte dos produtos que circulam atualmente no mercado pop. A batida, um breakbeat bem simplificado (um tipo de padrão de bateria comum em discos de soul), foi retirada da introdução de uma faixa do grupo inglês Lamb. A linha de contrabaixo, uma sequência de quatro notas, também saiu de uma introdução: da banda Sneaker Pimps, também inglesa. Ambos são grupos derivados de trip hop, isto é, eles não fazem parte da cena original que deu à luz o gênero (a cidade de Bristol), mas adotam o formato, no momento em evidência. Isso, porém, não representou preocupação para nós: a idéia era mesmo criar a partir dos padrões (e dos clichês) do gênero, entre os quais listamos: parte rítmica em evidência, com destaque para a bateria; padrões rítmicos e melódicos simples e circulares (estrutura em loop); interferência de ruídos ocasionais e contraposição entre as vozes masculina, “suja” e sem técnica, e a feminina, mais melódica e trabalhada. Para o reprocessamento das amostras foi usado o programa Sound Forge, que tem muitas das funções de um sampler, como o tratamento da duração, da frequência e da amplitude das ondas sonoras. O Sound Forge (numa tradução aproximada: “Forja do Som”) permitiu, 53 por exemplo, a construção da variação na quebrada de bateria que se reveza com o trecho copiado e não modificado. A montagem dos trechos foi feita com o Session 8, programa que possibilita a visualização espacial de arquivos de som dispostos ao longo de oito canais. Ambos são programas profissionais, usados também pelos estúdios para a gravação de músicas com instrumentos convencionais. As melodias vocais, a primeira das quais é cantada por mim e a segunda, por Carolina Machado, foram improvisadas a partir do groove* do baixo do Sneaker Pimps, mas, embora sigam o tom do original, são totalmente independentes da melodia vocal da música de onde esse trecho sonoro foi retirado. A letra, que já havíamos escrito há algum tempo, encaixou-se perfeitamente ao riff* que tínhamos, pois, como ele, seus versos são curtos e elípticos. Da noção vaga que tínhamos, no início do trabalho no estúdio, quanto aos rumos a tomar e os resultados dessa iniciativa, totalmente nova para nós, foram surgindo, aos poucos, idéias e rotinas de trabalho. Note-se que a música foi sendo criada ao mesmo tempo em que treinávamos o manuseio do equipamento do estúdio e dos programas do computador, de modo que nossa criação está de tal forma vinculada ao aprendizado técnico a ponto deste se tornar indistinguível do processo artístico. De fato, muitas das idéias surgiam dos erros cometidos e da interação, nem sempre pacífica, com os equipamentos e os softwares. Num segundo momento, a base rítmica com vocais que havíamos produzido recebeu um tratamento harmônico por Gabriel de Carvalho, integrando a colagem pura e simples a um arranjo tocado em um teclado MIDI ao acrescentar à textura minimal e eletrônica um riff de teclado e uma sequência harmônica executada com cordas sintetizadas. Embora a princípio nosso projeto fosse experimentar a criação de toda a música exclusivamente através dos recursos do computador, sem qualquer auxílio ou interferência de músicos, a qualidade do resultado, que ganhou em densidade musical e senso de direção após a colaboração de Gabriel, nos forçou a perceber que a tecnologia não aposenta a necessidade da presença de melodia e de harmonia nem de tocar um instrumento – ela amplia essas possibilidades e, nesse caso, permitiu que, na condição de leigos, produzíssemos uma faixa-base que serviu 54 de “cama” para uma harmonia criada por um músico. A faixa foi produzida como resultado experimental do subgrupo de techno, na disciplina “Temas Especiais em Comunicação”, ministrada por Monclar Valverde. Participei, na qualidade de aluno ouvinte, tanto das aulas quanto do treinamento no uso do estúdio - que se revelou essencial para uma melhor compreensão de alguns dos assuntos discutidos nesta monografia. “Derrange” Samples e loops: Pérsio Menezes e Wladimir Cazé Letra: Wladimir Cazé Vocais: Carolina Machado e Wladimir Cazé Teclados MIDI: Gabriel de Carvalho Mixagem: Gabriel de Carvalho, Jucimar Santos, Pérsio Menezes e Wladimir Cazé 55 Apêndice II Glossário Drum machine - “Bateria eletrônica”: aparelho que fornece sons percussivos e serve para programar ritmos, sem que seja necessário executá-los como na bateria acústica. Groove - Expressão intraduzível usada para qualificar o apelo rítmico típico dos diversos gêneros da música negra norte-americana (e, consequentemente, de toda a música dançante eletrônica influenciada por eles); pode ser compreendida como a “levada” ou o “balanço” de uma determinada faixa ou de um gênero musical. Loop - Repetição cíclica do mesmo som gravado. Ver tape loop. Remixes - Versões livres de músicas já existentes que, graças aos recursos de estúdio e/ou de computador, podem ter uma batida ou um “clima” totalmente diferente do original. Riff - Frase melódica curta que se repete ciclicamente, adquirindo, em conjunção com os sons de percussão, um efeito rítmico ressaltado. Sampler – José Miguel Wisnik: “O sampler é um instrumento que grava sons. Quaisquer sons. Um ruído, uma nota, uma palavra (com os quais ele produz timbres operáveis por teclado). E do mesmo modo que uma vitrola pode tocar um disco em 33 ou 78 rotações, o sampler pode “ler” em várias velocidades o som gravado dentro dele. Cada nota do teclado corresponde a uma velocidade de leitura.” Além disso, um sampler “permite fazer loops: repetir indefinidamente um som ou parte dele”. (O som e o sentido, p. 233) 56 Vocoder - Sigla para Voice Operated reCOrDER, ou “Gravador Operado por Voz”, o vocoder é um aparelho destinado ao tratamento de sons vocais (fala ou canto), capaz de distorcê-los e modificá-los até se tornarem muito diferentes do original. Tape loop - “Anéis de fita”: repetição cíclica do mesmo trecho gravado; é uma técnica muito tanto nas obras eletroacústicas quanto na electronic pop music. 57 Bibliografia ANDERSON, Willi. Computer liebe. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponibilização perdidos. Anos 80, Os. Suplemento especial da Revista Bizz, edição n. 48, julho de 1989. BASS STATION. Techno. Obtido através da Internet, via WWW. Dados da disponiblização perdidos. BASTOS, Rafael José de Menezes. A origem do samba como invenção do Brasil. Sobre “Feitio de Oração”, de Vadico e Noel Rosa (Por que as canções têm música?). In: Antropologia em primeira mão. Santa Catarina: UFSC, 1995. BEADLE, Jeremy J. Will pop eat itself? 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