Humberto Schubert Coelho Genealogia DO E spírito Uma Antropologia Filosófica Espírita FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA PARTE I Introdução 1. Uma proposta de autoconhecimento Se há entre os problemas da Filosofia um que não se deve olvidar, do qual depende diretamente o bem-estar e o progresso da civilização, é o problema do autoconhecimento. Desde os tempos mais remotos, o homem busca um sentido para sua existência e nesta busca se envolve em questões míticas, religiosas, científicas ou filosóficas de difícil solução. O Espiritismo propõe novas perspectivas de interpretação da natureza humana e a própria reformulação das perguntas filosóficas, procurando modificar o ângulo de visão sobre estes problemas. Sua natureza contém implicitamente uma reconciliação entre Ciência e Religião, perpassadas por uma filosofia que é ao mesmo tempo positiva e espiritualista. Esta reconciliação entre a Ciência e a Religião é feita de forma não ortodoxa, uma vez que, rigorosamente falando, o Espiritismo não poderia ser classificado nem como Ciência nem como Religião. Kardec esclarece isso com muita lucidez na introdução de O Livro dos Espíritos quando fala que a ciência inaugurada pelo Espiritismo é uma ciência dos fenômenos espirituais, acerca dos quais as ciências vigentes nada conhecem e por isso mesmo não se pronunciam.1 Espiritismo coincide com Ciência no sentido de ser uma investigação sistemática de fenômenos ao mesmo tempo em que está aberto à crítica dos novos tempos e das novas descobertas, submete-se a formas de averiguação que se assemelham às do método utilizado pelas ciências da natureza, sem por isso se prender a elas ou depender diretamente dos resultados e processos delas decorrentes. ... 1 O Livro dos Espíritos, Introdução. 4 GeNeaLOgia DO ESpÍritO PARTE II Corporeidade Mens sana in corpore sanum. 5.O homem corpóreo Devemos esclarecer logo de início o que entendemos por corporeidade, para que não se faça analogia com os conceitos da Filosofia relacionados ao tema. Enquanto para outros a corporeidade representará a identidade entre o homem e seu corpo, em outras palavras o corpo como sendo o próprio ser, aqui entenderemos que a corporeidade é o conjunto de experiências vivenciais ímpares do homem quando corporificado. O corpo, para nós espíritas, não será o homem, e sim o homem é que se manifestará corporeamente, com o corpo. A corporeidade para o espírita deve ser o reconhecimento do corpo como limite para o conhecimento e a sensação do Espírito, bem como materialização de sua vontade e necessidade. É o elo que o homem tem com o mundo material e as experiências relativas a esta realidade. Para fins de conceituação, o homem encarnado não pode ser dicotomizado em corpo e alma, isso seria o mesmo que separar a música do som. É muito comum que se encontre entre os espíritas uma distinção muito clara entre Eu e meu corpo, o que é totalmente absurdo, já que Eu só sou Eu com meu corpo, em meu corpo, melhor dizendo Eu sou neste corpo. A distinção que se faz entre corpo e alma, distinção muito conveniente, é uma figuração utilizada pelos Espíritos para tornar mais evidente a classe de prioridades que os homens devem adotar. É preciso que se esclareça a independência do espírito de seu corpo e a facilidade com que ele assume outros tantos sem deixar de ser um mesmo espírito. Mas como a Filosofia tem investigado já há muito,1 o homem concreto (que para nós representa a condição de homem encarnado) está em dependência total para com 1 Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. 6 GeNeaLOgia DO ESpÍritO seu corpo, sua situação corpórea, circunscrição espaço-temporal, saúde, etc. O corpo pode ser mera vestimenta para o espírito que se desprende dele, mas de forma alguma o é para nós. Efeitos físicos dos mais corriqueiros, desde uma queimadura, ingestão de remédios ou drogas, até infecções podem alterar totalmente estados de personalidade e comportamento, causar reações instintivas ou emotivas diversas; enfim, alterar totalmente os padrões mentais do indivíduo, caracterizando o grau de envolvimento do espírito com a matéria que lhe coloca em uma condição na qual é impossível falar de dualismo. Ainda predomina no meio espírita a visão cartesiana e dualista do corpo como máquina perfeitíssima, na qual o espírito se sentaria sobre a glândula pineal e pilotaria o corpo, como um motorista em relação ao seu veículo. Esta visão não está em desacordo com as informações apresentadas pelos espíritos, no entanto urge que se enxergue esta imagem do ponto de vista espiritual que é. Uma vez que nós mesmos estamos na condição encarnada, e sofremos sob as vicissitudes da matéria, esta comparação deixa de ser comPARTE II • CORPOREIDADE 7 pleta e adequada, pois a separação clara entre corpo e alma não existe de fato para nós. Nós nos vemos, a nós mesmos, como seres corpóreos — pensamos, lembramos, sentimos e agimos segundo as predisposições orgânicas e influências de energias animalizadas. O Espiritismo, para ser bem compreendido, não deve ser interpretado como uma filosofia dualista, que opere uma separação radical e essencial (em termos de essência, substância) entre corpo e espírito. Ele é, ao contrário, a filosofia monista por excelência, ao afirmar, com Bruno e Spinoza (dois dos filósofos acolhidos no círculo dos filósofos espíritas), que a substância do Universo não é senão uma, e que esta única substância é Deus mesmo, do qual emergimos e no qual vivemos. Matéria e Espírito são, no Espiritismo, mais do que em qualquer outra filosofia, diferenças de grau. Matéria e Espírito não são princípios antagônicos, visto que Deus não cria coisas mortas, e por isso, na matéria mais elementar, há uma força imponderável que lhe sustenta a existência, também o Espírito não é ideia pura, mas uma forma mais quintessenciada do princípio fundamental de todas as coisas. É exatamente o que nos dizem os Espíritos em O Livro dos Espíritos: 8 GeNeaLOgia DO ESpÍritO 82. Será certo dizer-se que os Espíritos são imateriais? “Como se pode definir uma coisa, quando faltam termos de comparação e com uma linguagem deficiente? Pode um cego de nascença definir a luz? Imaterial não é bem o termo; incorpóreo seria mais exato, pois deves compreender que, sendo uma criação, o Espírito há de ser alguma coisa. É a matéria quintessenciada, mas sem analogia para vós outros, e tão etérea que escapa inteiramente ao alcance dos vossos sentidos.”2 Esta resposta deve nos satisfazer por ora. Trataremos em pormenores do assunto no capítulo 24. Por enquanto basta-nos pensar que tanto a matéria quanto o Espírito que constituem nosso ser provêm de um mesmo princípio, e esta perspectiva nos obriga a compreender a vida humana como uma unidade e não como uma dicotomia. A ênfase que damos ao aspecto espiritual no Espiritismo se deve ao fato de que o homem olvidou este elemento de sua natureza, vivendo somente segundo a matéria, o que o reduz a algo que é só metade dele. 2 O Livro dos Espíritos (grifo nosso). PARTE II • CORPOREIDADE 9 Ao nos referirmos ao estado encarnado, portanto, pode-se encarar o homem, a título de simplificação pedagógica, segundo a distinção dualista (espírito e carne), em que um abismo separa o que seriam as duas substâncias do homem. Mas deve-se ressaltar sempre que esta imagem figurativa se ajusta ao ponto de vista do Espírito, e não responde a todas as questões relativas à Antropologia. A Antropologia deve lidar antes com o homem encarnado, e o ponto de vista da vida material. Neste aspecto, não podemos falar em separação de corpo e alma, pois minha condição no mundo corpóreo é uma condição híbrida e não a de Espírito. ... 10 GeNeaLOgia DO ESpÍritO PARTE III Relação e alteridade “A ação do Bem em favor de si mesmo, do grupo social e da comunidade, tendo em vista todos os seres sencientes, constitui um princípio ético imbatível, porque fruto do amor, do respeito à lei natural vigente em toda parte.” 3 13. Eu, o diferente e nossa relação Está na lei — Ama o teu próximo como a ti mesmo —; desnecessário dizer quanto a máxima cristã tem sido negada através dos tempos. Não cabe tratar aqui da pregação evangélica e de outros tipos de aconselhamento quanto ao Divaldo P. Franco, pelo Espírito Joanna de Ângelis – Autodescobrimento. 3 cumprimento das leis cristãs, no entanto pode-se dissertar sobre o significado dos termos e as possíveis causas do não cumprimento desta regra tão essencial. Relação e alteridade são processos interdependentes, pois só se pode relacionar-se com algo que se identifica como “outro”. Até mesmo quando conversamos com nós mesmos, mentalmente, estabelecemos uma relação de diferença, um mini alter ego, com o qual possamos dialogar. A lei de amor ao próximo passa pelo processo de alargamento da consciência. É este alargamento que me permite identificar o outro não como uma extensão do Eu, mas como um outro-Eu, de posse dos mesmos direitos de autoafirmação que o meu Eu possui. É a partir deste ponto que se pode falar de moral. Na trilha desta investigação usaremos de algumas analogias entre termos sociológicos, morais e filosóficos de modo a facilitar as relações e abranger mais completamente o tema. As leis do amor ao próximo estarão então indissoluvelmente ligadas à liberdade, à igualdade e à fraternidade. 12 GeNeaLOgia DO ESpÍritO 14. Liberdade A liberdade — ponto crucial de qualquer regra ou conduta que se pretenda moral. A moral pode ser vista como ato consequencial livre. Esta nomenclatura técnica simboliza o fato de a moral ter obrigatoriamente uma relação com um ato consequencial (uma ação que gere consequências, quaisquer que sejam elas) e com a liberdade. Liberdade é um conceito muito vago, por isso é difícil defini-la. No entanto, a prática nos ensina a definir intuitivamente o que é e o que não é “ato livre”. Ao contrário da lei jurídica em que o indivíduo é obrigado a cumprir as regras, a lei moral deixa a cargo do indivíduo a liberdade para escolher entre seguir ou não seguir as regras. As leis morais do Cristianismo, por exemplo, se infringidas, não acarretarão qualquer prejuízo direto ao indivíduo (no âmbito socioeconômico). Se mesmo assim ele seguir estas leis, isso constitui um exercício de liberdade ou livre-arbítrio. Nós, espíritas, conhecemos bem a relação entre liberdade e responsabilidade. Quanto maior o grau de liberdade e consequentemente as possibilidades de ação de um indivíduo maior a sua responsabilidade. PARTE III • RELAÇÃO E ALTERIDADE 13 Podemos entender que a liberdade está também relacionada ao poder em todos os sentidos. A capacidade de sentir, receber informação e analisar as condições do meio e as possibilidades de ação são formas de se inteirar sobre determinada situação. Por outro lado, a capacidade de agir sobre o grau de influência que temos sobre uma circunstância, seja política e economicamente, seja através do trabalho, seja através da palavra etc., estará ligada à nossa capacidade de ação. Estas capacidades de percepção e ação estão indissoluvelmente ligadas ao grau de liberdade do indivíduo, pois ref letem quanto o indivíduo sabe sobre a situação e quanto é capaz de inf luir sobre ela. Um homem que tem duas opções é indiscutivelmente menos livre que um homem com múltiplas possibilidades de lidar com o mesmo caso. ... 14 GeNeaLOgia DO ESpÍritO Sobre o autor Humberto Schubert Coelho nasceu em 26 de abril de 1982. Viveu a maior parte de sua vida em Juiz de Fora (MG), onde teve contato com grandes personalidades do Movimento Espírita. Graduou-se em Filosofia no ano de 2004, especializando-se em Filosofia da Religião em 2007. Atualmente é professor de Filosofia e Alemão, e está se doutorando nos temas Deus, Espírito, liberdade. Dedica-se aos trabalhos realizados pela Sociedade Espírita Joanna de Ângelis, em Juiz de Fora, na área de evangelização da infância, mediunidade e palestras doutrinárias. É articulista da revista Reformador e de outros periódicos espíritas e de Filosofia. Escreve também em jornais leigos sobre Política, Economia e Teoria da religião. Sobre o livro Ainda que o título desta obra possa motivar o leitor a considerá-la como de cunho predominantemente filosófico, o autor, nas suas reflexões, apenas se utiliza da Filosofia como meio para estabelecer ligação com o Sagrado, destacando o aspecto religioso dos assuntos abordados. Com isso, alcança o objetivo a que se propôs de “consolar o Espírito dos que laboram na própria elevação e dar-lhes força para prosseguir”. Qual via de mão dupla entre a Filosofia Contemporânea e o Espiritismo, esta obra objetiva a conversão de referências e conceitos que podem tanto esclarecer ao leitor espírita interessado por Filosofia quanto aos estudiosos de Filosofia interessados pelo Espiritismo. 16 GeNeaLOgia DO ESpÍritO