CESUMAR – CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ SAULO DE MELO A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE MARINGÁ 2006 SAULO DE MELO A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Dissertação apresentada ao Centro Universitário de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito da Personalidade. Orientador: Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira MARINGÁ 2006 SAULO DE MELO A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Dissertação apresentada ao Centro Universitário de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito da Personalidade. Aprovado em: 18 de dezembro de 2006. BANCA EXAMINADORA ___________________________________ Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira Orientador ___________________________________ Prof. Dr. Adauto de Almeida Tomaszwski ___________________________________ Profª Drª Valéria Silva Galdino Dedico este trabalho À minha esposa, pelo incentivo, amor, aconchego, proteção... Sempre me ajudando a discernir pelos melhores caminhos. Obrigado por tanto apoio e por saber relevar as minhas falhas no dia-a-dia. AGRADECIMENTOS A Deus que guia os meus passos e me ampara em todos os momentos. Ao Professor, Dr. José Sebastião de Oliveira, exemplo de iniciativa e trabalho. Por ser um profissional ético, sério e coerente, obrigado pela confiança e orientação no desenvolvimento do projeto a mim incumbido, pelo enriquecimento cognitivo. Aos meus filhos que são verdadeiros tesouros da minha vida, na alegria de seus sorrisos encontro a razão maior na busca de meus ideais. Deus é a maior testemunha do quanto vocês foram desejados e são amados! “O céu acima de tudo. E lá preside um juiz que nenhum rei pode corromper”. (William Shakesperare) MELO, Saulo de. A escolha da religião e a formação familiar como direitos fundamentais do homem – um contributo aos direitos da personalidade. Dissertação (Mestrado em Direito). Maringá. 204 p. Cesumar – Centro Universitário de Maringá, 2006. RESUMO O presente estudo foi realizado na área do Direito da Personalidade, com o objetivo de evidenciar a escolha da religião e a formação da família como direitos fundamentais. Por meio do estudo procurou-se mostrar a evolução da família e da religiosidade humana, ressaltando a inexistência da liberdade de expressão religiosa e a opressão por um longo período da história da humanidade. Nos dias atuais, verifica-se o reconhecimento dos direitos fundamentais. Especificamente, a Constituição Federal de 1988 destaca no cenário familiar o princípio da dignidade humana; assegura ainda a liberdade de expressão religiosa, enquanto o chamado “primado do sentimento nas relações familiares”, altera o conceito de família decorrente do reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, porém, dependente do bem-estar da própria instituição familiar. Palavras-chave: dignidade, liberdade, família, religião. MELO, Saulo de. The choice of the religion and the family formation as fundamental rights of the human being – a contribution to the personality rights. Dissertation (Masters in Law). Maringá. 204 p. Cesumar – Centro Universitário de Maringá. 2006. ABSTRACT The following paper was made in the área of Personality Rights, with the objective of putting in evidence the choice of religion and the family formation as fundamental rights. Through this study we tried to show the evolution of family and human religiosity, highlighting the inexistence of religion freedom and the long period of opression in the human history. Nowadays, we can observe the recognition of fundamental rights. More specifically speaking, the 1988 Federal Constitution emphasizes in the family scenario the principles of human dignity; it guarantees religion freedom, while the “primacy of feelings in the family relationships”, modifies the concept of family due to the recognition of the right for diverse individual happiness, however, it depends on the well-being of the family formation. Keywords: Dignity, Freedom, Family, Religion. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................. 10 1 A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM: O DIREITO À VIDA COM DIGNIDADE COMO PRESSUPOSTO À LIBERDADE HUMANA ................................................................ 13 1.1 O HOMEM COMO ENTE SOCIAL: SUA ORIGEM E DESENVOLVIMENTO ......................................................... 13 A FORMAÇÃO RELIGIOSA NOS PRIMÓRDIOS DOS TEMPOS ............................................................................ 16 A ANTIGUIDADE E O EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA VINCULADA À FAMÍLIA .............. 20 1.2 1.3 2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO DAS FAMÍLIAS NO DIREITO MEDIEVAL .. 25 2.1 AS GRANDES RELIGIÕES NO MUNDO CONHECIDO DOS SÉCULOS XIV, XV e XVI .................................................... O judaísmo ........................................................................ O cristianismo ................................................................... O islamismo ...................................................................... A constituição da família no cristianismo ........................ O matrimônio levirato .......................................................... A formação familiar no Novo Testamento ............................. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A FORMAÇÃO FAMILIAR NA PENÍNSULA IBÉRICA ............... A formação religiosa e familiar em Portugal e sua submissão ao Papado ....................................................... A religião como forma de expressão e a constituição de família no Brasil Colonial e Imperial ................................. O Brasil colonial, sua religião e sua família .......................... O Brasil Imperial, sua religião e sua família ......................... 2.1.1 2.1.2 2.1.3 2.1.4 2.1.4.1 2.1.4.2 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.2.1 2.2.2.2 25 25 28 40 43 43 45 48 52 64 64 76 3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DO HOMEM E A QUESTÃO DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE HUMANA EM TERMOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E NA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA ..................... 87 3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS .............................................. 87 LIBERDADE RELIGIOSA ..................................................... 94 OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA MODERNIDADE ...... 96 3.2 3.3 3.3.1 3.3.2 3.3.3 3.3.4 3.3.5 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1934 .................................................... Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1937 .................................................... Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1946 .................................................... Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 ................................................................................... Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1988 .................................................... A LIBERDADE RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ................................. 4.1 OS LIMITES DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 NA CODIFICAÇÃO DE CLÓVIS BEVILAQUA ........................................................................ 4.2 AS INOVAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ...................... Ampliação do conceito de família ..................................... 4.2.1 4.2.1.1 Igualdade entre os cônjuges ................................................ 4.2.1.2 Igualdade entre os filhos ..................................................... 4.3 CASAMENTO ..................................................................... Casamento civil e religioso ............................................... 4.3.1 Formalidades .................................................................... 4.3.2 Impedimentos matrimoniais .............................................. 4.3.3 4.3.4 Dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial ....................................................................... 4.4 UNIÃO ESTÁVEL ................................................................ 4.5 AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS ........................................ Da homossexualidade ....................................................... 4.5.1 Homoafetividade e direitos fundamentais ........................ 4.5.2 A família homossexual ...................................................... 4.5.3 4.6 FAMÍLIA MONOPARENTAL ................................................. 4.7 BIOÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ........................... 4.8 A POSIÇÃO DO CRISTIANISMO DIANTE DAS ALTERAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA CONSTANTES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ................................................ Impedimentos do matrimônio e suas implicações ............ 4.8.1 Sacramento e celibato: uma contradição? ........................ 4.8.2 Da separação e divórcio no direito canônico ................... 4.8.3 Causas matrimoniais e competência da Igreja ................. 4.8.4 Algumas posições atuais da Igreja Católica ..................... 4.8.5 98 102 103 104 106 4 109 109 111 114 115 117 123 124 127 129 134 136 144 144 149 153 156 160 164 168 170 175 184 187 CONCLUSÃO ................................................................................. 190 REFERÊNCIAS ............................................................................... 195 INTRODUÇÃO O homem, como ser social, é regido em suas relações por uma série de normas e princípios que objetivam protegê-lo e garantir-lhe direitos e impor-lhe deveres. Entre os direitos encontra-se determinada categoria que se constitui nos “direitos primeiros”, os quais são denominados de direitos fundamentais, que visam A tutelar a pessoa humana, individualmente, de todos os possíveis ataques que possa vir a sofrer. Como “direitos primeiros” estão os direitos de personalidade, ou seja, o direito à vida, o direito geral à liberdade, o direito à integridade física e psíquica, o direito à privacidade, o direito à honra, o direito moral do autor e o direito à identidade pessoal. 1 Os direitos da personalidade constituem, portanto, limites impostos contra o poder público e contra os particulares, atribuindo à pessoa um espaço próprio para o seu desenvolvimento, que não pode ser invadido, recebendo uma proteção específica do direito. É importante destacar que apesar de vários pontos de coincidência, os direitos da personalidade não se confundem com os direitos fundamentais, pois estes pressupõem relações de poder, enquanto os primeiros pressupõem relações de igualdade. 2 1 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 19. 2 BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade: de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 48. A família e a religião são dois elementos centrais na vida do ser humano. O primeiro – a família – constitui uma unidade afetiva e não apenas econômica, que se traduz em uma comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias. O segundo – religião – proporciona a ligação com o Sagrado, com a própria origem do homem. Em ambos os cenários, a família ou a Igreja, enfatiza-se a proteção da dignidade humana, a qual é ponto de destaque para a compreensão dos direitos da personalidade. Portanto, é valor que confere unidade e coerência ao conjunto parâmetro para dos aplicação, direitos fundamentais, interpretação e servindo integração dos como direitos fundamentais, mas não só deles e das normas constitucionais, como de todo o ordenamento jurídico. 3 A família permanece como condição para a humanização e socialização das pessoas e, por essa razão, apesar da variedade de formas que assume e das transformações pelas quais passa ao longo do tempo, a família é identificada como o fundamento da sociedade. 4 Cabe à entidade familiar promover, efetivamente, a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, 3 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 83. 4 PETRINI, João Carlos. Notas para uma antropologia da família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 41-64. esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade. 5 A religião, por sua vez, se apresenta como um sistema de crenças e práticas em relação ao sagrado, que unem em uma mesma comunidade todos que a ela aderem. Assim sendo, tanto a escolha da religião, como a formação familiar constituem direitos fundamentais do homem. Portanto, nesse estudo tevese por objetivo demonstrar a importância dessas duas instituições na evolução do homem, desde os primórdios dos tempos, até os dias atuais no ordenamento jurídico brasileiro. O estudo encontra-se dividido em quatro capítulos, tratando o primeiro da origem do homem, a formação religiosa nos primórdios dos tempos e do exercício da liberdade de expressão religiosa vinculada à família na antiguidade. O segundo capítulo refere-se à liberdade de expressão religiosa e à constituição das famílias no direito medieval, assim como na Península Ibérica e, no Brasil. No terceiro capítulo, procurou-se apresentar a proteção dos direitos do homem e as questões da liberdade e da expressão religiosa nas Constituições brasileiras. O quarto capítulo trata da liberdade religiosa na Constituição da Família e no Código Civil de 2002. 5 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus famílias reconhecidas pelo Direito: um bosquejo para uma aproximação à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 19-34. 1 A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM: O DIREITO À VIDA COM DIGNIDADE COMO PRESSUPOSTO À LIBERDADE HUMANA 1.1 O HOMEM COMO ENTE SOCIAL: SUA ORIGEM E DESENVOLVIMENTO A história do aparecimento da espécie humana é controvertida. De um lado, tem-se a teoria de que existe uma fronteira intransponível entre o homem e os animais. Essa teoria tem sua origem no mito bíblico da criação do homem por Deus, que o fez “à sua imagem e semelhança” 6. Por outro lado, tem-se a teoria evolucionista, proposta por Charles Darwin, segundo a qual o homem descende de uma raça de macacos evoluída. As descobertas antropológicas realizadas, posteriormente, vieram confirmar a teoria darwiniana e provaram que no final do período Terciário e início do Quaternário, de fato existiam macacos que poderiam ser considerados como ancestrais do homem. 7 Sobre a aparente divergência entre a origem bíblica e os pressupostos darwinianos deve-se mencionar que Charles Darwin, como cientista, não tentou explicar as origens. Aliás, a ciência moderna desistiu da tentativa devido à impossibilidade de reproduzir aquele estágio inicial. 6 BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Loyola, 1989. Gn. 1,27. p. 21. CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 21. 7 Por outro lado, a Bíblia não pretende ser um tratado científico. Assim, tem-se que enquanto Darwin trata da matéria, a Bíblia trata da alma. 8 Henry Thomas ensina que nos tempos pré-históricos, os antepassados do homem eram peludos e vagavam pelas florestas da Europa e da Ásia, alimentando-se de ervas, raízes e frutos, além da carne crua de outros animais. Andavam despidos, desconheciam o fogo e se comunicavam por grunhidos e berros. Quando sentiam fome, andavam à espreita, preferencialmente, em grupos de dois ou três e, ao se satisfazerem descansavam à sombra de uma árvore ou rochedo, até que a fome ou o ataque de algum animal mais forte os compelisse à ação. Viveram dessa forma por muito tempo, até que o primeiro Período do Gelo fez com que fugissem das montanhas, abrigando-se em cavernas e se unissem na necessidade comum de proteção e calor. 9 Nessa época, o homem era livre, mas não sabia o que era liberdade, embora a exercesse ao longo de toda a sua vida. A origem exata, se criação divina de um homem já evoluído ou a partir de transformações lentas de uma determinada espécie de macaco não supera a importância de que uma das primeiras lições aprendidas pelos nossos ancestrais tenha sido a necessidade de se unir aos seus semelhantes, pois só por meio da formação de grupos poderiam sobreviver em um ambiente hostil. 8 CHAPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia: teologia e filosofia. São Paulo: Candeia, 1997. v. 2. p. 16-18. 9 THOMAS, Henry. História da raça humana. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941. p. 8. Assim, a origem da espécie humana está intimamente relacionada à origem e evolução da própria família, pois o ser humano ao nascer depende da proteção de seus progenitores para a sua própria subsistência inicial e sua existência futura e, ao atingir a maioridade, constitui nova família, sem romper com os vínculos de sua família originária. 10 Na realidade, o homem é um ser frágil, que não sobreviveria sem o apoio de seu grupo. Em termos de organismo social, a família é o mais antigo, pois existiu a partir do primeiro momento em que passou a existir o primeiro homem, em seu exemplo mais rudimentar. A unidade fundamental da sociedade era o clã materno. A família emparelhada já se apresentava consolidada, embora ainda não tivesse se transformado na célula principal da sociedade. A família se caracterizava por uma união conjugal instável, momentânea, sendo o casamento contraído sem formalidades especiais e se rompia apenas com o pedido de um dos cônjuges. Alguns aspectos do casamento grupal apareciam sob a forma do adultério legal, do levirato, obrigação da viúva esposar o irmão do seu marido defunto; e do sorotato, direito do homem se casar com uma irmã da sua mulher, depois da morte desta. 11 Movidos pela necessidade, os homens primitivos passaram a arrancar a pele dos animais que lhes serviam de alimentos e nelas se 10 GARCEZ FILHO, Martinho. Direito de família. Rio de Janeiro: Officina Graphica Vilas Boas, 1929. v. 1. p. 21. 11 CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 58-59. enrolavam para se protegerem do frio. Depois, aprenderam a fazer o fogo, que constituiu uma nova medida contra o frio e como defesa contra outros animais que também buscavam as cavernas para se abrigarem. Além do fogo e da roupa, os homens primitivos adquiriram a linguagem articulada e, distanciando-se ainda mais dos outros animais, começaram a inventar as ferramentas. Com relação à religiosidade, segundo A. Cajdan, o homem primitivo estava muito ocupado com o problema de conseguir o seu alimento diário para se preocupar em buscar uma explicação para a existência do mundo. Além disso, o fraco desenvolvimento de seu cérebro não permitia que concebesse noções tão abstratas. Dessa forma, o homem primitivo não tinha crenças religiosas. 12 1.2 A FORMAÇÃO RELIGIOSA NOS PRIMÓRDIOS DOS TEMPOS As idéias religiosas primitivas surgiram, provavelmente, entre os homens de Neanderthal, como evidenciam as sepulturas do final do período Paleolítico Inferior, as quais eram construídas nas cavernas que serviam de habitação. Aparentemente, os mortos eram temidos e cuidados; eram instalados em suas sepulturas como se ainda fossem vivos, não se tendo a idéia de um além. Tampouco o homem de Neanderthal conferia aos seus mortos qualquer poder sobrenatural. 12 CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 30. Nessa época, se manifestaram os primeiros elementos do culto dos animais, ou seja, a zoolatria. 13 De acordo com Henry Thomas, parece que a origem da religião ocorreu porque os homens viam suas sombras na água, assim como viam as imagens de seus amigos nos sonhos, o que lhes parecia que as pessoas possuíam dois corpos, aquele palpável e o corpo-sombra, que só aparecia em determinadas ocasiões. 14 Essa concepção de dois corpos, um palpável e outro sombra (alma) foi estendida pelo homem primitivo ao mundo que o rodeava, ou seja, passou a atribuir alma ou espíritos aos animais, às plantas e aos objetos inanimados. No regime do clã, o homem acreditava que era capaz de exercer poder sobrenatural sobre a natureza (animais e plantas) por práticas mágicas (rituais), as quais nasceram juntamente com as crenças religiosas. Na medida em que esse culto se desenvolvia, explica A. Cadjan, uma espécie particular de animal, ou de planta caso se tratasse de povos que se dedicavam à coleta, começou a destacar entre os demais, pretendendo os primitivos que seu clã fosse parente desse animal. Assim, surgiu o totem, um hipotético ancestral animal do clã. 15 13 CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 30. 14 THOMAS, Henry. História da raça humana. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941. p. 10 15 CADJAN, op. cit. p. 59. Outro elemento de fundamental importância do culto do clã foi a idéia do caráter divino da mulher iniciada nas artes da feitiçaria. Tal idéia estava relacionada à essência do clã maternal, no qual as mulheres encarnavam a união da coletividade, enquanto os homens pertenciam a um ou mais clãs. Simultaneamente, nasceu a crença nos “espíritos” ou “almas”, que animam toda a natureza. Por outro lado, inicialmente, o homem primitivo não tinha medo dos mortos, mas gradualmente passaram a sentir esse medo. Quando alguém morria, seu corpo era sepultado na terra, enquanto seu segundo corpo continuava a visitá-los em sonhos. Dessa forma, o corpo-sombra devia estar vivo em algum lugar. Supõe-se, agora, que morreu o chefe de uma tribo, o qual, em vida tenha sido temido e, conseqüentemente, depois de morto torna-se ainda mais temível, porque seu corpo é invisível e ninguém sabe quando ele poderá atacar. 16 Esse poderoso espírito-sombra controlava também algo misterioso: a Sorte, que às vezes vinha ajudá-los, outras vezes não. O porquê disso não se sabia. Mas havia sábios na tribo que se propunham a descobrir esse mistério e se tornaram peritos na previsão da Sorte e, por isso passaram a ser considerados mágicos, sagrados e, por fim, sacerdotes, os quais informavam o que devia fazer ou deixar de fazer para conseguir a graça aos olhos do seu chefe-sombra, seu deus, e obter a boa sorte. 16 CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 10. Esses sacerdotes deviam ser obedecidos, pois o preço da desobediência era a morte. 17 Quando o homem primitivo passou a sentir medo dos mortos, para se proteger começou a praticar ritos. Na medida em que a agricultura e a criação de gado se desenvolviam, ocorre o aparecimento de idéias religiosas mais complexas. A terra, força fecunda, passa a ser objeto de um culto, que nas condições do matriarcado se confunde com a veneração da avó. Posteriormente, com a evolução da economia e do pensamento, o homem passou a diferenciar as diversas forças da natureza, compreendidas até então como um todo. Assim, atribuiu importância às forças cósmicas e aos fenômenos naturais, tais como o Sol, chuva, entre outros, que asseguravam as colheitas e, por conseqüência, a própria sobrevivência. O culto da natureza se confunde com o totemismo, gerando imagens hibridas como o Sol-animal ou Sol-pássaro. Além disso, a consolidação do regime do clã modifica o culto dos mortos, que deixam de ser considerados como uma força hostil e começam a ser vistos como ancestrais protetores. 18 Tais mudanças ocorreram porque na medida em que o homem primitivo adquiriu certo domínio sobre a natureza, o culto do ancestral animal (totem) passou a ser culto do ancestral homem. Deve-se ainda mencionar que do culto da terra, das forças naturais e dos ancestrais 17 CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 11. 18 Ibid. p. 70. surgem os sacrifícios e as preces: a prece é a expressão direta de um desejo – pede-se aos espíritos que concedam boas caçadas, filhos fortes, boas colheitas, enquanto o sacrifício inicial consiste em nutrir os espíritos para assegurar sua benevolência. Conseqüentemente, os ritos estavam relacionados aos processos de produção e tinham por fim a ação sobre a natureza, pela feitiçaria. Ao mesmo tempo, os ritos refletiam a fantasia das forças que dominavam o homem na sua vida quotidiana. 1.3 A ANTIGUIDADE E O EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA VINCULADA À FAMÍLIA Durante o regime do clã, a mulher tinha os mesmos direitos que os homens. Mas, o desenvolvimento da criação de animais e da cultura da terra, modificou todo o sistema de relações familiares, conferindo ao homem a supremacia dentro da sociedade. Portanto, as origens da instituição da família de natureza patriarcal, remontam à Antigüidade, dentre os diferentes povos, como um processo de desenvolvimento sócio-político-econômico 19. Com o desenvolvimento da produção, criação de rebanhos, atividades agrícolas, fabricação de armas, que propiciaram o aumento da 19 SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 5. riqueza individual e dos clãs, também evoluíram as formas de organização social, fazendo surgir a instituição do casamento sob diversas formas, como o casamento por grupos, a exogamia 20 e a endogamia 21, de maneira a assegurar a riqueza e manter os costumes de determinada comunidade, conforme o caso. Com a concentração da riqueza nas mãos dos homens, dos chefes guerreiros, consolidou-se o patriarcado, sob a direção do pater familias, cujos interesses se opunham à contagem da filiação de seus herdeiros, pela linha materna, critério esse típico do matriarcado, em que se desconhecia e desconsiderava a paternidade, de onde se origina o ditado mater semper certa est, ou “a mãe é sempre certa”, principalmente devido ao período da gravidez 22. Dessa forma, como a contagem da descendência pela linha feminina impedia que os filhos dos proprietários se tornassem seus herdeiros, o “direito materno” devia ser abolido, e o foi, o que provocou uma reviravolta na evolução social. Assim, com a supremacia do patriarcado, o trabalho doméstico da mulher perdeu a sua importância, quando comparado com o trabalho do homem, que passou a ser tudo, enquanto o daquela representava apenas uma simples contribuição. O homem, na família patriarcal, segundo o modelo greco-romano, era o 20 Exogamia: regime social em que os casamentos se realizam com membros de tribo estranha ou, dentro da mesma tribo, com os de outra família ou de outro clã (BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1989. p. 280). 21 Endogamia: Regime segundo o qual o indivíduo se casa com alguém do seu próprio povo (BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1989. p. 240). 22 SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 5. chefe supremo, dotado de poderes de vida e morte sobre a mulher, filhos e demais membros da família. Na Grécia Antiga, havia uma inter-relação entre o culto aos mortos, o fogo sagrado e a religião doméstica, uma vez que era uma tradição enterrar os mortos nas casas, sendo lícito considerar que o fogo doméstico era “expressão do culto dos mortos e que sob a pedra do lar repousava um antepassado” 23. Por outro lado, o fogo sagrado tinha por caráter essencial pertencer a cada família, representando os antepassados, era a providência dessa família. Portanto, a religião, inicialmente, era doméstica. A família era unida pela religião do lar e dos antepassados, tratando-se de uma associação natural. O casamento tinha grande importância, tendo lugar na casa e não no templo. A mulher, no novo lar não tem nenhum direito, devendo inclusive esquecer a religião de seus pais e adotar a do marido. Por outro lado, o celibato é proibido, pois dessa forma acabaria a religião doméstica. Ter filhos era uma obrigação: a mulher estéril era devolvida para a família, enquanto se o marido fosse estéril, a mulher deveria entregar-se a um irmão ou parente do marido, observando ainda que o nascimento de uma filha não satisfazia ao objetivo do casamento. A partir daí surgem os direitos da propriedade e da sucessão. 24 23 24 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 35. Ibid. p. 43-50. A esse respeito, Giselda Novaes Hironaka afirma que não apenas em Roma e na Grécia, mas também na Índia das Leis de Manu, a religião desempenhava papel de fundamental importância para a agregação familiar. Dessa forma, pertenciam à mesma família aqueles que participavam do mesmo culto aos deuses domésticos, observando que estes deuses domésticos eram os próprios antepassados daqueles que em vida comungavam para reverenciar os que já haviam partido. Tal culto se desenvolvia diante do altar doméstico, onde o fogo sagrado ardia, onde eram depositados os artigos de comer e de beber e ao redor de onde se construía a habitação da família e se cultivavam os gêneros de subsistência. Os membros da família ao assentarem o lar, faziam-no com a esperança de permanecer sempre no lugar; com o lar, apossava-se do solo que ficava sendo sua propriedade e, a família, por dever e por religião, se agrupava ao redor de seu altar. 25 Silvio Rodrigues menciona que havia íntima relação entre o direito hereditário e o culto familial nas sociedades mais antigas, porque o culto dos antepassados constituiu o centro da vida religiosa, não havendo maior castigo para uma pessoa do que morrer sem deixar quem lhe cultue o altar doméstico, de forma a ficar seu túmulo ao abandono; tal culto cabia ao herdeiro. 26 25 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: parte especial do direito das sucessões, v. 20 (arts. 1.784 a 1.856). São Paulo: Saraiva, 2003. 26 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.7. p. 4. Por isso, o pai que só possuísse filhas era autorizado a adotar um varão, que entraria em seu culto doméstico na qualidade de sucessor, ou a dar sua filha em casamento, reservando para si o direito de tomar como seu o primeiro filho varão gerado. O afastamento da filha era justificado pelo fato de que esta ao se casar integraria a família do marido, perdendo o laço com a família de seu pai. Nada, porém, impedia que a filha solteira, quando o pai morresse, partilhasse da administração dos bens junto com seu irmão, mas ao se casar perdia esse direito 27. Dessa forma, não havia liberdade de expressão religiosa. Ao homem cabia dar continuidade ao culto dos antepassados e, a mulher devia assumir o culto aos antepassados do marido. 27 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: parte especial do direito das sucessões, v. 20 (arts. 1.784 a 1.856). São Paulo: Saraiva, 2003. 2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO DAS FAMÍLIAS NO DIREITO MEDIEVAL 2.1 AS GRANDES RELIGIÕES NO MUNDO CONHECIDO DOS SÉCULOS XIV, XV E XVI O monoteísmo é tão antigo como a humanidade, tendo-se perpetuado por meio dos pagãos, no povo judaico e, posteriormente, no cristianismo e outras religiões. Observa-se que toda religião é um conjunto de crenças e práticas que têm por finalidade a união com Deus. 2.1.1 O judaísmo Por definição, a palavra Judaísmo designa a religião praticada pelos judeus. Etimologicamente, o termo é derivado do hebreu Yehoudi, que significa Judaico, com referência aos israelitas que habitavam o reino da Judéia, na época do rei Davi, ou seja, por volta de 1.000 anos antes da Era Cristã. 28 28 ELIADE, M. História das crenças e das idéias religiosas. De Gautama Buda ao triunfo do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. v.1. O judaísmo está fundamentado, essencialmente, na primeira parte do Velho Testamento, que contém cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esses cinco livros, tradicionalmente atribuídos a Moisés, constituem o Pentateuco, também chamado Torah, que significa “Lei”. Para os judeus, a Torah é a expressão da própria voz de Deus e constitui a base de sua fé. Comporta um total de 613 mandamentos que são ao mesmo tempo de ordem religiosa, social, jurídica e moral, alguns deles inspirados no código de Hamurábi, que foi rei da Babilônia por volta de 1730 antes da Era Cristã. Entre esses mandamentos, os mais conhecidos são os Dez Mandamentos, que formam o Decálogo. Os judeus praticantes consideram que seu maior dever é aplicar os mandamentos de Deus tal como figuram no Pentateuco. Tal como o cristianismo, o judaísmo prega a existência de um pecado original. Segundo o Antigo Testamento, esse pecado aconteceu quando Adão, influenciado por Satã, rebelou-se contra Deus no início dos tempos. Como castigo, Deus fez o homem um ser mortal, submetido às penas e sofrimentos inerentes à sua condição atual. Segundo a religião judaica, o único meio de por fim a essa punição e ser admitido no Paraíso (Jerusalém Celeste) consiste em seguir seus Mandamentos até a morte. No judaísmo, o nascimento marca o início da vida religiosa. Assim, no oitavo dia após sua vinda ao mundo, o menino é circuncidado, o que simboliza a aliança que Deus selou com Abraão, e faz parte do batismo judaico, cuja finalidade é introduzir a criança nessa aliança. Em geral, as meninas não são batizadas, apesar das mulheres desempenharem um papel muito importante no plano religioso e filial. Com a idade de treze anos é permitido ao menino ler pela primeira vez uma passagem da Torah numa sinagoga. Esse acontecimento é acompanhado por uma cerimônia, o Bar-Mitzvah, da qual participam a família e os amigos. A partir de então, considera-se que o adolescente atingiu sua maioridade religiosa e que deverá desempenhar os deveres que cabem a todo judeu praticante. Quanto às meninas, recebem automaticamente essa maioridade em seu décimo segundo aniversário. O judaísmo não é apenas uma religião: a religião monoteísta de onde provieram o cristianismo e o islamismo. Também não é unicamente uma referência à história nacional do povo judeu, embora religião e história estejam intimamente ligadas a todas as manifestações coletivas do judaísmo, como festas e comemorações. Fundamentalmente, o judaísmo constitui um modo de vida individual e coletivo. O ritmo e a significação das festas, o número de vezes durante o dia em que se rememoram preceitos morais e regras de vida prática, no campo alimentar ou no relacionamento com os outros, dão ao judeu um sistema de vida que o obriga a exercer a autodisciplina e manter um diálogo constante consigo próprio, com os outros e com Deus, sobre o significado da vida e o destino do homem. 2.1.2 O cristianismo A religião judaica, antes da era messiânica, demonstra a fidelidade ao seu Deus, pelos longos séculos de sua difícil história, de um povo que não deu origem a uma civilização marcante, não se distinguia, especialmente, no panorama político da Antiguidade e só gozou da independência nacional por um período muito breve. A vida espiritual de Israel naquele tempo nem sempre foi cristalina. Cada capítulo da história bíblica traz páginas dramáticas que contam lutas e tentações, quedas e traições. O pavor, as paixões, a atração dos cultos pagãos e as maquinações dos políticos fizeram vacilar a fé do povo de Israel mais de uma vez. No entanto, seus profetas se negavam a fechar os olhos diante das chagas da sociedade em que viviam. O protesto apaixonado era ditado pela fé na grandeza da vocação do homem e anunciavam o “dia do Senhor” em que o reino do mal cessaria entre os homens. O ungido do Senhor por meio d’Aquele-que-é estabeleceria o seu Reino e todos os povos conheceriam a verdade eterna e abandonariam os ídolos e o pecado, formando uma nova Aliança que seria gravada no coração dos homens. Esta expectativa escatológica dos profetas reforçou nos judeus o senso de responsabilidade perante o próprio povo: este recebera a revelação, por isso, os seus pecados eram duplamente graves; a ele fora confiada a missão de levar toda a humanidade a Deus, mas se os eleitos se revelassem indignos perderiam a proteção celeste e os pagãos dos países mais longínquos viriam para destruir o reino de Israel e o de Judá. 29 Essa profecia se confirmou e, em 772 a.C, o reino judaico do Norte foi banido da face da Terra pelos assírios, depois babilônicos. Tal catástrofe poderia ter levado Israel e sua religião ao desaparecimento total, mas isso não aconteceu. O fermento dos profetas era tão forte que os judeus, mesmo distantes da pátria, durante o exílio, continuaram se sentindo o povo de Deus. Livres do cativeiro babilônico, Esdras e seus sucessores, os Doutores da Lei, procuraram um meio de isolar os judeus desses povos. A observância cega do sábado, as restrições alimentares e outras normas tinha o mesmo fim: salvaguardar a fisionomia da comunidade. Novamente, Israel se tornou independente, mas sucumbiu ao Império Romano. Foi nessa época que, em Belém, nasceu Jesus, filho de um carpinteiro e de Maria, que viria a ser o Cristo, ou seja, o fundador do Cristianismo. 30 Jesus abalou algumas prescrições do judaísmo com o seu Evangelho, mas não suprimiu a lei mosaica, apenas a completou. Os fariseus, que eram os fanáticos e os sacerdotes, que eram os ministros, acusaram Jesus de revolucionário e procuraram comprometê-lo com os romanos, obtendo com a indiferença de Pôncio Pilatos, mascarada em astúcia política, a condenação do Nazareno. O procurador da Judéia 29 MIEN, Aleksandr. Jesus, mestre de Nazaré: a história que desafiou 2000 anos. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 1998. p. 32. 30 Ibid. p. 38. ainda tentou salvá-lo, dando ao povo a escolha entre o rabi e milagroso e o ladrão Barrabás, mas sem muito se empenhar e, instigado pelos do Templo, cujos interesses e preconceitos se viram ameaçados, o povo de Jerusalém optou pela libertação do criminoso comum. 31 A doutrina de Cristo, rapidamente, se propagou pela ação dos seus discípulos e se perpetuou. Do Oriente passou o Evangelho a Roma, onde foi sofreu cruéis perseguições até ser admitida pelo Império Romano, no tempo de Constantino. No mês de fevereiro do ano 313, Constantino reuniu-se em Milão com o imperador do oriente, Licínio. Entre outros temas trataram sobre os cristãos e fizeram um acordo para publicar novas disposições a seu favor. O resultado deste encontro é conhecido como "Edito de Milão”. O texto fez-se conhecido por meio de uma carta escrita no ano de 313 aos governadores das províncias, que está recolhida nos escritos de Eusébio de Cesárea (História Eclesiástica 10, 5) e Lactancio (De mortibus persecutorum 48). Na primeira metade do edital, estabelece-se o princípio da liberdade de religião para todos os cidadãos e, conseqüentemente, reconhece-se, explicitamente, que também os cristãos gozam desta liberdade. O edito permitia praticar a própria religião não só aos cristãos, mas a todos os cultos. Na segunda metade ficou estabelecido que seriam devolvidos aos cristãos seus antigos locais de reunião e de culto, assim 31 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p. 27. como outras propriedades, que tinham sido confiscadas pelas autoridades romanas e vendidas a particulares na última perseguição. 32 Longe de atribuir ao cristianismo um posto proeminente, parece que o edito pretendeu conseguir a benevolência divina sem importar qual fosse o culto, dado o sincretismo que naquela época praticava Constantino, que apesar de favorecer a Igreja, durante um tempo continuou dando culto ao Sol Invicto. Graças a este edito, o paganismo deixou de ser a religião oficial do Império e foi permitido que os cristãos gozassem dos mesmos direitos que os demais cidadãos. A partir desse momento, a Igreja passou a ser uma religião lícita e foi reconhecida, juridicamente, pelo Império. Isso permitiu um rápido crescimento. 33 A Igreja cristã se contagiou com Constantino o espírito militar de Roma e foi ela que de fato se tornou a mais legítima sucessora do Império Romano, modelando-se pela sua organização e crescendo como um grande Estado espiritual, servido por uma hierarquia, o qual se sobrepôs ao Estado temporal. 34 No entanto, meio século depois de Constantino, o imperador Juliano tentou restabelecer o paganismo. Mas seu sucessor trouxe, novamente, entre os romanos a fé cristã e com Teodósio, o Grande (379-395) o cristianismo tornou-se religião do Estado, sendo proibidos os sacrifícios 32 CHAPA, Juan. O que foi o Edito de Milão? OPUS DEI. Disponível em: <http://www. opusdei.org.br/art.php?p=16352>. Acesso em: 10 out.2006. 33 Ibid. 34 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.148. aos deuses pagãos, fechados seus templos, abolidos os oráculos e os mistérios e vedado o culto dos lares e penates. O cristianismo recebeu todo o patrocínio oficial, sendo facultado às suas associações recolherem doações e legados e o próprio imperador contribuiu com donativos em dinheiro e terras. Portanto, a Igreja passou da pobreza à riqueza e a lei de Cristo sobrepujou a lei de César. No final do século IV o paganismo estava extinto: havia triunfado a força moral do cristianismo, com seu tesouro de idéias de bondade e de fraternidade prática. Os bárbaros próximos às fronteiras também haviam adotado a nova religião, o que contribuiu para a fusão pacífica de conquistadores e conquistados. 35 Na Idade Média européia, praticamente, inexistia liberdade de expressão religiosa. A Igreja havia se estruturado utilizando a administração municipal romana. O cisma entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente não prejudicou tanto Roma como se poderia pensar, pois o campo de ação ocidental era mais vasto, enquanto o Oriental devia concorrer com velhas religiões universalistas. Com o cisma, a Igreja romana evidenciou-se católica, isto é, universal, entrando em uma fase de política ativa. Por outro lado, a invasão pelos árabes pelo sul e, outra pelo norte, dos escandinavos, precederam a constituição da nova Europa. A expansão do Islã foi militar, seguindo o que predizia Maomé, que tinha na 35 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p. 149. espada a chave do céu e do inferno e por ela se devia impor a “salvação” a toda a humanidade. A esse respeito, Henri Pirenne afirma que o sistema administrativo criado pelo Império Romano sobreviveu na Europa Ocidental às invasões germânicas. No entanto, no século VIII não se encontram, “nem os Decuriones 36, nem os Gesta municipalia 37, nem o Defensor civitatis 38. Nessa mesma época, o impulso mulçumano no Mediterrâneo, “tornando impossível o comércio que até então tinha mantido alguma actividade nas cidades, condenou-as a [...] decadência”. Entretanto, mesmo diminuídas, as cidades subsistiram e conservaram, apesar de tudo, uma importância primordial. Tal importância devia-se à Igreja, que havia estabelecido as suas circunscrições diocesanas sobre as circunscrições das cidades romanas e, “respeitada pelos bárbaros, continuou assim a manter [...] o sistema municipal sobre o qual se fundara”. O fim do comércio, o êxodo dos mercadores, não influenciaram a organização eclesiástica, que se tornou cada vez mais forte. Mesmo quando o Império carolíngeo se desmoronou, os príncipes feudais que haviam arruinado o poder real não tocaram no poder eclesiástico, temendo a excomunhão. 39 Quando o desaparecimento do comércio aniquilou os últimos vestígios da vida urbana, a influência dos bispos ficou sem rival e as 36 Decuriones: decurião, conselheiro municipal nas colônias (KOEHLER, H. Pequeno dicionário escolar latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 105). 37 Gesta: gestor; Municipalia: municipal (KOEHLER, H. Pequeno dicionário escolar latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 160 e 248). 38 Defensor: protetor; Civitatis: cidade (KOEHLER, H. Pequeno dicionário escolar latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 106 e 73). 39 PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 1989. p. 57. cidades foram-lhes, exclusivamente, submetidas, com seus habitantes dependendo mais ou menos, diretamente, da Igreja. A população compunha-se do clero da catedral e de outras igrejas agrupadas à sua volta, de monges dos mosteiros que vieram fixar-se, algumas vezes em grande quantidade, na sede da diocese, de professores e estudantes das escolas eclesiásticas, dos servidores e dos artistas livres. Quase sempre se encontrava na cidade um mercado semanal, para o qual os camponeses traziam seus produtos. 40, 41 Durante a Idade Média, a Igreja Católica experimentou seu momento de maior poder e expressão na sociedade. Toda a vida secular era regulada pela observação das regras cristãs. Nas cidades dominavam as igrejas, capelas, basílicas, catedrais, abadias e outras construções religiosas. As estações do ano agrícola, as reuniões das assembléias consultivas, o calendário anual eram marcados por atividades religiosas. A vida cotidiana era toda impregnada por pequenos rituais católicos: fórmulas para benzer os alimentos que iam ser ingeridos, a água; rezas pedindo proteção contra catástrofes, contra os perigos das viagens, dos animais selvagens, das pragas. Praticamente, todas as formas de doenças e loucura eram atribuídas a feitiços do diabo, e eram resolvidas por meio de exorcismos, sinais-da-cruz, água benta, preces, missas. 40 PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 1989. p. 60. 41 ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981. Todas as manifestações culturais, tais como: pintura, música, literatura, escultura, arquitetura, utilizavam elementos ligados ao sagrado. 42 Nos primórdios do feudalismo, a Igreja havia sido um elemento dinâmico e progressista. Preservou muito a cultura do Império Romano. Incentivou o ensino e fundou escolas; ajudou os pobres, cuidou das crianças desamparadas em seus orfanatos e construiu hospitais para os doentes. Em geral, os senhores eclesiásticos administravam melhor suas propriedades e aproveitavam muito mais suas terras do que a nobreza leiga. No entanto, enquanto os nobres dividiam suas propriedades, a fim de atrair simpatizantes, a Igreja adquiria mais e mais terras. Explica Leo Huberman que uma das razões por que se proibia o casamento aos padres era simplesmente porque os chefes da Igreja não desejavam perder quaisquer terras da Igreja mediante herança aos filhos do clero. 43 A Igreja Católica era extremamente poderosa e criava bispados, abadias, paróquias, nomeando indivíduos que em geral haviam comprado esses cargos, que representavam poder e fonte de renda, devido à arrecadação de tributos eclesiásticos, como o dízimo, a gavela, a côngrua, a parte da herança daqueles que faleciam, entre outras fontes. 44 Segundo Leo Huberman, o dízimo constituía um imposto territorial, um imposto de renda e um imposto de transmissão muito mais oneroso do 42 SEFFNER, Fernando. Da reforma à contra-reforma: o cristianismo em crise. 3 ed. São Paulo: Atual, 1993. p. 5. 43 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1986. p. 14. 44 SEFFNER, op. cit. p. 5. que qualquer taxa conhecida nos tempos modernos. Agricultores e camponeses eram obrigados a entregar não apenas um décimo exato de toda sua produção; cobrava-se dízimo de lã e até mesmo da penugem dos gansos; à própria relva aparada ao longo da estrada pagava-se o direito à portagem; o colono que ousasse deduzir as despesas de trabalho antes de lançar o dízimo a suas colheitas era condenado ao inferno. 45 Dessa forma, na medida em que a Igreja crescia em riqueza, sua economia apresentava tendências a superar sua importância espiritual. Como senhor feudal, e diga-se, o mais rico e poderoso proprietário de terras da Idade Média, não era melhor e, em muitos casos, muito pior do que os feudatários leigos. Os muitos abusos da Igreja não passavam despercebidos. A diferença entre seus ensinamentos e seus atos era bastante grande e visível muitos séculos antes que Martinho Lúteo pregasse suas Noventa e Cinco Teses à porta da Igreja, em Wittenberg, em 1517, desencadeando a Reforma protestante. Mas, antes de Lutero, houve reformadores religiosos, entre os quais se citam, por exemplo, Calvino e Knox, mas estes cometeram o erro de tentar reformar mais do que a religião. Wycliffe fora, na Inglaterra, o líder espiritual da Revolta Camponesa e Hus, na Boêmia, não só protestara contra Roma, como também inspirara um movimento camponês de caráter comunista, ameaçando o poder e os 45 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1986. p. 14. privilégios da nobreza. Portanto, tais movimentos foram combatidos não só pela Igreja, mas também pelas autoridades seculares e, conseqüentemente, foram esmagados. Lutero e os reformadores que o seguiram não comprometeram o apoio da classe dominante pregando doutrinas perigosas de igualdade. 46 No início, a Reforma não foi um movimento político, mas apenas um movimento religioso. Do ponto de vista da doutrina, a Reforma pretendeu estabelecer uma relação mais direta entre o Criador e o pecador, diminuindo a eficácia dos sacramentos ao lado da misericórdia divina. Do ponto de vista da disciplina eclesiástica, a alteração tinha que ser completa, pois Lutero qualificava de ímpia a Roma luxuosa de Leão X. Na Alemanha, estava presente a lembrança da perseguição dos hussitas e era fácil qualquer manifestação de independência contra o predomínio da autoridade romana. A questão da cobrança das indulgências constituiu o ponto de discórdia que conduziu à separação, cujas raízes eram profundas, pois iam buscar sua substância no progresso intelectual produzido pelo desvendar de novos horizontes mediante as descobertas e a divulgação das letras clássicas. Havia que ajustar as crenças e a ciência e que repor a austeridade onde imperava a dissolução: foi o que intentou a reforma católica, que só achou impossível de transpor a linha que divide o dogmatismo do individualismo intelectual. 47 46 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1986. p. 79-81. 47 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.242. A autoridade da Igreja não cedeu neste ponto, denominando-o de indisciplina do pensamento. No entanto, os príncipes que ajudaram na cisão religiosa eram levados na maioria por zelos da sua soberania temporal, que os pontífices pretendiam desconhecer em matéria do preenchimento dos cargos da hierarquia eclesiástica, da taxação imposta ao clero e seus bens e da cobiça manifestada pela lei canônica de colocar sob sua alçada a jurisprudência civil. 48 Outro aspecto importante para o advento da Reforma está no fato de que Lutero apelou para o espírito nacionalista de seus adeptos, em um período em que esse sentimento crescia. Como a oposição religiosa a Roma coincidia com os interesses do nascente Estado nacional, tinha possibilidades de êxito. 49 De acordo com Leo Huberman, a Igreja teria perdido seu poder mesmo que a Reforma protestante não tivesse ocorrido. De fato, a Igreja já havia perdido esse poder, pois sua utilidade se reduzia. Antes era bastante forte para propiciar à sociedade certo alívio das guerras feudais, impondo a Trégua de Deus: agora o rei estava em melhores condições para sustar essas pequenas guerras. Antes, a Igreja tinha controle total da educação: agora, surgiam escolas independentes fundadas por mercadores que haviam prosperado. Antes, o direito da Igreja fora supremo: agora o velho direito romano, mais adequado à necessidade de 48 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.242. 49 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2 ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 43-47. uma sociedade comercial, fora ressuscitado; antes, a Igreja era a única que dispunha de homens cultos, capazes de conduzir os negócios do Estado, agora o soberano podia confiar em uma nova classe de pessoas treinadas no movimento comercial e consciente das necessidades do comércio e da indústria do país. 50 Esse novo grupo, a nascente classe média, sentia que havia um obstáculo no caminho do seu desenvolvimento: o ultrapassado sistema feudal. A classe média compreendia que seu progresso estava bloqueado pela Igreja Católica, que era a fortaleza de tal sistema. A Igreja defendia a ordem feudal, e foi em si mesma uma parte poderosa da estrutura do feudalismo. Era dona, como senhor feudal, de cerca de um terço da terra, e sugava ao país grande parte de suas riquezas. 51 Roma reagiu ao movimento da Reforma protestante com intolerância, não se contentando em emprestar maior severidade aos rigores inquisitoriais, sendo as sentenças dos tribunais do Santo Ofício executadas nos países românicos pelas autoridades temporais. O protestantismo por sua vez não recuava ante semelhantes atentados. A Santa Sé também cuidou de restabelecer sua autoridade mediante a correção dos seus erros e escândalos. É preciso mencionar que antes mesmo da Reforma, dentro do organismo católico se desenhava como que uma auto-expurgação que veio a culminar no concílio de Trento 50 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1986. p. 82. 51 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2 ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 43-47. (1545-1563), o mais importante depois do de Nicéia. Essa assembléia conferiu às tradições da Igreja importância idêntica à da Bíblia; confirmou o caráter divino do Papado e declarou herética a doutrina luterana da “justificação pela fé”. 52 Ainda datam desse movimento de contra-reforma o índex expurgatório, a renúncia a todo paganismo mesmo na arte, a reação italiana assinalada pelo processo de Galileu e pelo martírio de Giordano Bruno. Os papas, que sob o influxo da Renascença greco-romana haviam substituído suas preocupações religiosas pelas profanas, cuidando de guerras, de letras e de artes, alguns arrastando o pontifício até ao vício e ao crime, com o que favoreceram a disseminação da Reforma, voltaram a ser pastores escrupulosos na sua piedade e, em alguns casos, até mesmo exagerados em seu zelo. 53 2.1.3 O islamismo Do grupo semítico teve origem outra das três grandes religiões do mundo: o islamismo ou maometismo, cujo berço foi a Arábia. O islamismo foi constituído e implantado por Maomé, no século VII da Era Cristã, com 52 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.246. 53 Ibid. p. 246. um fim antes político do que religioso, pois visava a promover a unidade da sua gente, elevando-a à condição de povo criador de civilização. Enquanto Maomé pregou com doçura não conseguiu adeptos. Viúvo, abandonado pela família e inúmeros inimigos, fugiu de Meca para Medina, sendo essa fuga conhecida como Hégira. Em Medina começou a pregar, mas não com doçura: como havia fracassado como mensageiro da paz, tornou-se um profeta da espada. Iniciou sua nova carreira atacando as caravanas de Meca, que revidaram, mas a vitória foi de Maomé, que comemorou matando novecentos judeus que não acreditavam na sua profecia. A espada era um instrumento do céu que o povo compreendia e aceitou em nome de Alá e proclamaram Maomé o mais poderoso de seus profetas. Dessa forma, Maomé transformou a guerra em missão sagrada, dizendo aos seus seguidores que se morressem matando, iriam diretamente ao céu e à presença de Alá. Seu livro sagrado é o Alcorão, no qual é visível a influência tanto do judaísmo como do cristianismo. Sua moral é parecida com a do Decálogo e suas práticas (orações, jejuns, esmolas) assemelham-se na natureza às da Igreja romana. Existe uma diferença profunda na organização da família, admitindo o islamismo a poligamia, enquanto essa prática é vedada pelo cristianismo. As duas religiões têm dogmas em comum, tais como: a imortalidade da alma, o juízo final, a predestinação. Mas na própria natureza das recompensas destinadas aos justos na vida futura há uma diferença ética que põe em contraste a crença cristã e a mulçumana. Ao idealismo do cristianismo, proporcionando à alma livre de pecados, infinitos gozos espirituais na mansão celestial, inclui o islamismo o sensualismo do paraíso das houris (mulheres) formosíssimas. 54 O casamento islâmico é um contrato civil que tem por base o consentimento mútuo do noivo e da noiva. Para que a mulher seja lícita para o homem há quatro condições: a) a permissão do guardião é necessária em caso de casamento de menor, seja homem ou mulher, sem a qual o casamento é inválido; b) o consentimento da moça é necessário para seu casamento, seja ela solteira ou viúva; c) são necessárias duas testemunhas maiores; e d) a proposta e as aceitações da noiva e do noivo são necessárias. Além disso, a noiva deve ser informada das condições do noivo, sendo aconselhável que ambos se vejam antes do casamento. A noiva deve estar em estado de pureza no dia do casamento, o que significa que ela não pode ser esposa de outro homem; o casamento não pode ser consumado durante o período de espera; a moça não pode ser infiel ou degenerada e não pode estar entre as categorias proibidas para o marido, ou seja, mãe, avó, filha, irmã, tia paterna, tia materna, mãe adotiva, irmã de leite, enteada, neta, irmã da esposa ainda viva, mulher que maldiz o marido. 55 54 LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p. 28. 55 ALAIKIM, Assalam. O casamento islâmico. Disponível em: <http://www.ziad.hpg.ig. com.br>. Acesso em: 22 dez. 2006. 2.1.4 A constituição da família no cristianismo 2.1.4.1 O matrimônio levirato O texto bíblico envolvido é Deuteronômio 25:5-10. O termo “levirato” deriva da palavra latina levir que significa cunhado. O matrimônio levirato refere-se ao costume que havia entre os hebreus de que quando um israelita casado morria, sem deixar descendente do sexo masculino, seu parente mais próximo era obrigado a casar-se com a viúva, caso esse parente fosse solteiro, a fim de dar continuidade ao nome da família do falecido. O filho primogênito do novo casal tornava-se o herdeiro do primeiro marido de sua mãe. Se o irmão de um homem falecido não quisesse casar-se com a viúva, a esta permitia-se submetê-lo aos insultos mais grosseiros, caindo o homem no opróbrio público. Ao que tudo indica, porém, não eram impostas penas mais severas do que isso. Os registros literários e arqueológicos mostram que esse costume não se limitava ao povo de Israel. Naturalmente, o propósito era preservar a herança em famílias e clãs específicos, o que era muito importante em civilizações agrárias. No caso de não haver irmão do falecido para casarse com a viúva, outro parente mais próximo assumia. Com relação à humilhação acima citada, caso o cunhado não se predispusesse a casar com a cunhada viúva, os sacerdotes podiam liberá-lo de sua responsabilidade mediante um ato público que consistia da rejeitada tirar uma de suas sandálias e lhe cuspir no rosto, ao mesmo tempo em que proferia insultos verbais. A perda da sandália era chamada de halizah, que significava a liberação do compromisso. 56 Foi exatamente por essa razão que os Saduceus, uma seita do tempo de Cristo, que não acreditava na ressurreição, certa vez indagaram a Jesus nos seguintes termos: “Mestre, Moisés disse: Se alguém morrer, não tendo filhos, seu irmão casará com a viúva e suscitará descendência ao falecido. Ora, havia entre nós sete irmãos. O primeiro tendo casado, morreu e, não tendo descendência, deixou sua mulher a seu irmão; o mesmo sucedeu com o segundo, com o terceiro, até ao sétimo; depois de todos eles, morreu também a mulher. Portanto, na ressurreição, de qual dos sete será ela esposa, porque todos a desposaram? (Mateus 22:2428). Na verdade, a lei do Levirato, praticada entre os judeus, está intimamente ligada ao sistema de patriarcado contido na legislação judaica. Considerando que o filho mais velho assumia todos os negócios do pai e, como tal, herdava mais que os outros, com a finalidade de manter concentrado o patrimônio da família. Se todos os filhos viessem a morrer, o patriarca adotava um herdeiro para casar com a viúva. 56 CHAPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia: teologia e filosofia. São Paulo: Candeia, 1997. v. 2. p 181. 2.1.4.2 A formação familiar no Novo Testamento A família monogâmica advém da família sindiásmica (formada por um casal) e constitui a linha divisória entre os estágios superior e médio da barbárie. Tem fundamento no poder do homem, a finalidade de procriar filhos, cuja paternidade é certa, pois é justamente fundado nela que se permitirá transmissão dos bens do falecido pai, por direito hereditário, aos filhos. A monogamia caracteriza-se pelo matrimônio de casais individuais, com obrigação de coabitação exclusiva entre eles. Adveio, forçosamente, em decorrência da concentração de uma considerável fortuna nas mãos de uma mesma pessoa, as do homem, e o desejo de transmiti-la, por herança, aos filhos deste mesmo homem e não de outro. Por um simples olhar para o passado, na história da origem e evolução da família, dentre os povos mais civilizados, é fácil constatar que a monogamia alcançou o seu ponto alto como forma de constituição da família, na própria Antigüidade. Os historiadores há muito têm apresentado as famílias gregas 57, romanas 58, na Antigüidade, como exemplo de famílias monogâmicas e, 57 Michel Foucault menciona que Demóstenes em apenas uma frase esclarece a posição homem no aspecto sexual na antiga Grécia: “As cortesãs, nós as temos para o prazer, as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma descendência legítima e uma fiel guardiã do lar.” (FOCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1977. v. 2. p. 129. mais recentemente, os estudiosos apontam também as germânicas 59. Há de se admitir que o casamento monogâmico nem sempre foi sinônimo de proibição de relações sexuais fora do casamento para o homem, pois na história daqueles três povos são encontradas provas de que isso ocorria, quando já praticavam a monogamia. A palavra “monogamia” é formada por dois termos gregos: monos, que significa ”único”, e gamos, que significa “casamento”. Assim, a monogamia é a prática ou princípio de um único casamento de cada vez: um homem – uma mulher. Usualmente, esse princípio não é considerado como violado se uma pessoa tornar a casar-se no caso do primeiro casamento tiver sido considerado nulo, por qualquer razão legítima, embora o primeiro cônjuge continue vivo. A monogamia faz oposição à bigamia, que nada mais é de uma pessoa ter mais de um cônjuge ao mesmo tempo. A sociedade judaica 58 De acordo com Leonel Itaussu Mello, após a vitória sobre Pompeu, Julio César tão logo desembarca no Egito, interfere na sucessão dinástica a favor de Cleópatra, que não obstante casado em Roma, tornou-se amante desta última, de forma pública e notória, chegando ela ir a Roma, acompanhada de um filho comum de ambos (MELLO, Leonel Itaussu A., et al. História antiga e medieval. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 153). 59 “ Mas o maior progresso da evolução da monogamia produziu-se decididamente com a entrada dos germanos na história, e isso porque, entre eles, sem dúvida por causa de sua pobreza, parecia não se haver desprendido, ainda por completo, naquele momento, do casamento sindiásmico. [...] A poligamia ainda vigorava apenas entre os potentados e chefes de tribu. [...] a transição do direito materno para o paterno não devia ter ocorrido senão pouco antes, porque o irmão da mãe era considerado como parente mais próximo do que o próprio pai. [...] entre os germanos, as mulheres desfrutavam de alta consideração e exerciam grande influência, inclusive nos negócios públicos, o que está em contradição direta com a supremacia masculina da monogamia” (ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Calvino, 1944. p. 94). antiga, como a maioria, foi polígama, mas no Novo Testamento o ideal é a monogamia. Importante destacar que nos primórdios bíblicos, a ordem correta era a monogamia e, posteriormente, a poligamia foi permitida e até mesmo encorajada, tendo-se tornado a forma dominante de casamento. Abraão, pai do judaísmo e todos os seus filhos foram polígamos. O trecho bíblico que o regulamenta é Deuteronômio, 21:15 e ss. Apesar do judaísmo pós-exílico ser predominantemente monógamo, nem por isso a prática da poligamia foi, oficialmente, abandonada. Na verdade, Cristo não falou nada sobre as questões de monogamia ou poligamia. Todos os textos do Novo Testamento sobre a questão são tratados, quase que especificamente, pelo Apóstolo Paulo. Todas as vezes que ele trata da ocupação de posição hierárquica na administração da igreja, como presbítero ou diácono, a recomendação é que tal homem seja marido de uma só mulher, em que pese o fato de ele mesmo não ter sido casado. Nos dias de Jesus, ainda havia a poligamia em Israel, e o divórcio era tão fácil que casamentos plurais, em sucessão, tornaram-se extremamente comuns. Jesus ressaltou o ideal original da monogamia, e isso passou para outros textos do Novo Testamento. Curiosamente, não há nenhum texto no Novo Testamento que, explicitamente, proibisse ou condenasse a poligamia, mas no tocante aos que aspiravam o episcopado ou o diaconato, a recomendação era que fossem maridos de uma só mulher, conforme a primeira carta de Paulo a Timóteo 3:2. Não muito tempo antes do advento dos ensinamentos de Jesus, dois famosos judeus apresentaram duas idéias judaicas básicas acerca do divórcio. Eram eles Shamai e Hilel. A escola de Shamai proibia o divórcio exceto sobre a base do adultério, sendo essa a posição mais estrita e conservadora. A escola de Hilel, por sua vez, permitia o divórcio por, praticamente, qualquer motivo, até mesmo quando não houvesse motivo, bastando que um homem se tivesse cansado de sua mulher. Com isto pode-se avaliar que a situação não era pacífica nem mesmo entre os judeus. 2.2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A FORMAÇÃO FAMILIAR NA PENÍNSULA IBÉRICA Como o país mais ocidental do continente europeu, Portugal foi, durante séculos, considerado o fim do mundo. Quando os romanos conquistaram a Península Ibérica encontraram “vários povos indígenas”. 60 Segundo Nuno Gomes da Silva, 60 OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal. 11 ed. Lisboa: Palas, 1993. v. 1. p. 19. Cartago que traz Roma à Península Ibérica quando em 218 a.C., Gneu Cornélio Cipião desembarca, com as legiões romanas, em Ampúrias, trazendo a intenção de debilitar a retaguarda do exército de Aníbal inicia-se, então, o processo que irá conduzir à anexação de Espanha ao império romano. [...] Vai se seguir uma longa luta contra os povos indígenas, em que se salientam lusitanos, cantabros e ástures, luta esta que só se pode considerar terminada no tempo de Augusto, em 19 a.C>, com a final submissão dos cantabros e ástures. 61 O domínio do Império Romano sobre a Península Ibérica, provavelmente, ocorreu desde o início do segundo século a.C., desde a derrota cartaginesa em Ilipa no ano 206 a.C., quando os romanos consideraram a Península Ibérica como um território provincial. 62 Os romanos procederam à divisão administrativa criando três províncias: a Galécia, que corresponde à região ao norte do Rio Douro; a Lusitânia, entre esse rio e o Guadiana; e a Bética, que abrangia uma pequena parte do território atual e se prolongava pelo Sul da Espanha. Assim, se criaram três jurisdições ou conventus, com a capital, respectivamente, em Bracara Augusta (Braga), Scalabis (Santarém ou Moron) e Pax Julia (Beja). Vários aglomerados se mantiveram até os dias de hoje, como Cale (Gaia), Aeminium (Coimbra), Colippo (Leiria), Olisipo 61 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português. 2 ed. Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 1991. p. 20. 62 ESCUDERO, José Antonio. Curso de história de derecho. Madrid: Solana e Hijos, 1995. p. 126. (Lisboa), entre outros. Na época, muitos desses povoados se tornaram grandes cidades, como Tróia, importante pela indústria da pesca e da salgação; Salácia, cidade-armazém; e Egitania ou Civitas Igaeditanis, que foi centro de uma região mineira e teve guarnição militar no tempo de Cláudio e Nero. Ainda se pode referir às muitas villae, ou grandes explorações agrícolas, como Pisões (Beja), Torre de Palma, entre outras. A mais perdurável contribuição romana foi o idioma latino, na medida em que constituiu a base do galaico-português. 63 A Idade Média surgiu com o enfraquecimento e aniquilamento do Império Romano. A invasão bárbara desloca e transforma o modo de vida dos povos na Europa, trazendo profundas modificações nos costumes, nas formas de governos, nos idiomas e na divisão geográfica. No século V, os povos germânicos que haviam se infiltrado já há três séculos no Império Romano como invasores ou federados, invadiram a Península Ibérica. Por volta de 409, entraram os alanos, os vândalos e os suevos, e os dois primeiros dominaram a Lusitânia e os últimos a região do Minho e da Galiza. Entretanto, com a chegada dos Visigodos, ao redor de 415, os alanos e os suevos retrocederam. Mas os suevos integraram os alanos a quem eram superiores pela cultura, e ocuparam a região que vai da Galiza à foz do Tejo. Os suevos converteram-se ao catolicismo e procuraram se impor aos visigodos, cujo domínio militar era 63 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1080-1415. 3 ed. Lisboa: Verbo, 1979. superior. Embora os visigodos tenham dominado toda a península, o cristianismo se estabeleceu, graças à influência dos suevos. 64 O último componente populacional significativo na história da Península Ibérica foi o dos povos islâmicos, a partir do século VIII, e a “reconquista” cristã só foi ocorrer por volta do século XV. 65 Com a invasão dos árabes, o que restou do povo romano-gótico, na Espanha, e que optou por manter sua tradição, foi refugiar-se nas montanhas das Astúrias e Galícia para se livrar do jugo árabe e passou a combatê-los, fato este que, ao longo dos séculos, possibilitou a reconquista de toda a Península Ibérica por meio do sangue visigodo e do que havia restado da mistura dos celtas e romanos, após sete séculos de domínio árabe. 66 Para Van Loon, o sucesso dos mulçumanos nas suas lutas contra os cristãos derivava do fervor dos combatentes, que se alistavam para combater pela verdadeira fé. O Profeta, que veio a falecer em 632 d.C., prometera aos que tombavam em face do inimigo o acesso imediato ao céu. Em 700, Tarik, general maometano, transpondo as Colunas de Hércules, alcançou a vertente européia do alteroso rochedo que batizou Gibel-al-Tarik (montanha de Tarik) ou 64 Ibid. OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal. 11 ed. Lisboa: Palas, 1993. v. 1. 66 LOUTH, Patrick. A civilização dos germanos e dos vikings. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1979. p. 72. 65 Gilbratar. Na batalha de Xerez de la Fronteira, Tarik derrotou o rei dos Visigodos, dali continuou, com seu exercito, a avançar pelo norte, só tendo sido vencido, numa batalha entre Tours e Potiers. Rechaçados na França, os maometanos estabeleceram-se na Espanha onde Abd-as-Rahman fundou o califado de Córdova, que viria a ser o maior centro artístico e científico da Europa medieval. Da invasão árabe sobre a Península Ibérica restaram apenas as obras de artes, em especial na arquitetura representada pelos palácios suntuosos do sul da Espanha, que não foram destruídos pela guerra e algumas palavras incorporadas à linguagem portuguesa e espanhola. 2.2.1 A formação religiosa e familiar em Portugal e sua submissão ao Papado O povo português, cujo território esteve sob o jugo do Império Romano, dos bárbaros e dos árabes durante muitos séculos, passou pelas mais diversas transformações ao longo do tempo, principalmente, pelas interações sociais que provocavam as conquistas obtidas pelos novos povos dominadores da Península Ibérica. Enquanto os romanos mantiveram o domínio das Hespanhas, de cujo território seria posteriormente desmembrada uma porção que se converteria no reino de Portugal e Algarves, exerceram grande influência sobre esse território, especialmente, no que diz respeito à constituição das famílias 67. O povo romano se dedicou às realizações materiais e objetivas, emprestando ao direito um caráter de perenidade e, dessa forma, conseguiram fixar normas que ainda hoje persistem devido a sua praticidade e utilidade. Quando dominaram a Península Ibérica, o Império Romano encontrava-se em pleno período do direito clássico à luz da divisão baseada no desenvolvimento do direito privado. Nessa época, o caráter político da família romana já sofria um processo de atenuação em termos de inflexibilidade do seu controle por parte do pater famílias. Nessa época, para configuração do matrimonio romano clássico se faziam necessários três pressupostos para que uma relação fosse qualificada de justae nuptiae, com os conseqüentes efeitos jurídicos: a puberdade dos cônjuges (idade de 14 anos para o homem e 12 anos para a mulher); conubium (casamento) entre eles e vontade de ser marido e mulher (affectio maritalis). 68 Portanto, as famílias romanas eram constituídas em todo o território peninsular sob a égide do governo romano. 67 CAMPOS, Diogo Leite de. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Separata do Boletim da Universidade de Coimbra, 1989. 68 CAMPOS, Diogo Leite de. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Separata do Boletim da Universidade de Coimbra, 1989. p. 5. Explica Ebert Chamoun que os romanos consideravam o matrimônio como a união entre o homem e a mulher, objetivando estabelecer uma comunhão íntima e duradoura. Indiscutivelmente, o casamento romano resultava da troca inicial de consentimentos, mas esse se constituía mais em um estado do que propriamente um ato. A affectio maritalis era um requisito para o casamento e deveria existir em todos os momentos. Quando ela cessava, também cessava o matrimônio. Portanto, o casamento romano diferia do matrimônio atual, uma relação criada por um ato jurídico inicial e independente da persistência da vontade dos cônjuges. 69 Com a segunda invasão dos visigodos na Península Ibérica e a entrada em vigor da Lex Romana Wisigothorum (Lei Romana Visigoda), destinada a ser aplicada aos súditos romanos do reino visigótico na Espanha, tem-se que a constituição das famílias, pelo casamento não sofreu alterações, pois esta legislação tinha por base o direito romano. Os godos, porém, possuíam direito próprio que se aplicava unicamente a eles. Os visigodos também tinham o costume de constituir a sua família pelo do casamento, e este era antecedido dos esponsais, quando então se fazia a promessa do dote, na presença de testemunhas, consumandose o matrimônio pelo pagamento de um dote feito pelo noivo. Este pagamento passou a ser convertido em dote destinado à noiva, ao qual 69 CHAMOUN, Ebert. Natureza jurídica do matrimonio. Revista Forense, v. 183, p. 3537, jul./ago. 1959. se acrescia a “morgengabe”, que era uma oferta do marido na manhã seguinte à realização do casamento. A esse respeito Clóvis Beviláqua afirma que: A forma jurídica da celebração do casamento, no antigo direito germânico, era a compra da noiva feita ao seu pai ou ao seu sipe, e assim a mulher entrava para o mundium do marido. Algumas vezes, o casamento se efetuava pelo rapto de uma estrangeira, mas não era esta uma forma simpática aos espíritos. 70 Ainda informa Clóvis Beviláqua que os povos bárbaros introduziram na Península Ibérica uma outra modalidade de casamento, que denominado de morgamático, tendo sido praticado posteriormente pelos portugueses. Essa modalidade era utilizada se entre o homem e a mulher houvesse diferença considerável de posição social, pois não constituía uma família com os direitos comuns à herança, à comunicação dos bens e à consideração civil do seu chefe. Posteriormente, verificou-se a unificação das leis, de forma que o novo estatuto jurídico Lex Wisigothorum tinha aplicabilidade, tanto para os romanos, como para os godos, ou seja, a todos os habitantes da Península Ibérica. Esta legislação suspendeu a proibição entre romanos e visigodos, o que permitiu a fusão dos dois povos e dispôs sobre o poder 70 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 47. marital, da comunhão entre marido e mulher e a sucessão legítima, institutos estes que influenciaram diretamente o direito moderno. Com relação à posição do cristianismo sobre o casamento, em seu início não se encontra nem a priorização do casamento nem da família, mas sim o ascetismo, que tinha como valores essenciais a virgindade e a continência, cuja consistência eram na sua maioria extraída dos próprios textos apostólicos, em que a máxima era a renúncia da carne, ou seja, a abstenção do ato sexual, a todos que almejassem um dia ganhar o Reino dos Céus. 71 Está claro que a doutrina pregada pelos apóstolos cristãos, especialmente, por Paulo e Mateus, tinha apoio no Antigo Testamento, que além de conhecer o amor carnal, também admitia para o homem certas relações extraconjugais. O Novo Testamento se limitou a pregar o monogamismo e a indissolubilidade da união, que realmente não conferia base firma para defesa do casamento, considerando que este era inferior, tanto ao posicionamento da virgindade, como da continência. Nesta linha de raciocínio, Diogo Leite Campos afirma que nos primeiros séculos da Igreja, sobretudo antes do reconhecimento oficial desta, o matrimonio cristão não existia. A sua invenção teve de ultrapassar duas séries de obstáculos: o peso da tradição judaica; a vacuidade das normas do Novo Testamento sobre a matéria. O Novo 71 VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1992. p. 33. Testamento poucas normas editou, Jesus não se preocupou em legislar; viveu e falou de Deus feito homem – suposto que um homem pudesse, inconcibivelmente, pensar deus como homem, as escassas respostas que Cristo deu a problemas jurídicos limitam-se a declarar a indissolubilidade do matrimônio. 72 Dessa forma, semelhantemente, o que ocorrera com a maioria das religiões antigas, o próprio cristianismo também passou a ter influência na regulamentação normativa a respeito da família, especialmente, a partir do ano de 324 d.C, quando o Imperador Constantino, no Edito de Milão dava liberdade a todos os cultos e devolveu aos cristãos todos os bens que lhes haviam sido confiscados durante a última perseguição. A partir de então, ocorreu uma inversão na situação religiosa, pois o cristianismo de religião proscrita e perseguida pelo Império Romano, passou a ser quase a religião oficial, enquanto eram previstas severas punições a outras práticas religiosas, inclusive a pena de morte no caso de comprovação da prática de sacrifícios pagãos e magia. 73 Em maio de 325 d.C., quando ocorreu o Concílio de Nicéia, a Igreja Católica deixou de ser uma mera corporação, para se constituir um sujeito de estado, com poderes, privilégios e competência própria, erigida com uma figura de igual poder ao Estado, inicialmente, dentro de seus limites, 72 CAMPOS, Diogo Leite. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Boletim da Faculdade de Coimbra, 1989. p. 8-9. 73 FRÖLICH, Roland. Curso básico da história da Igreja. 3 ed. São Paulo: Paulus, 1987. p. 31. tendo sido aí que surgiu o problema da regulamentação da relação entre Igreja e Estado, ou seja, entre os poderes temporal e espiritual. Explica Waldemar Martins Ferreira, que ao termo “cânon” (Kanoon), que deu origem a expressão “cânones eclesiásticos” e ao Direito Canônico, é um vocábulo de origem grega que passou a ser utilizado a partir do Concílio de Nicéia (325 d.C.) para indicar o conjunto de regras disciplinares da Igreja, em oposição às leis civis. Esse Direito como o Direito privado dos povos cristãos, teve assim como o Direito Romano, um amplo predomínio por um longo período de tempo, exercendo em vários aspectos a função de direito comum, pela generalidade de sua observância e ampliação da jurisdição eclesiástica, chegando a se confundir com a jurisdição civil de cada nação. 74 Assim, nem mesmo o declínio e queda do Império Romano chegou a prejudicar a expansão do cristianismo, considerando-se que o seu fracionamento em pequenos impérios, monarquias ou feudos vieram facilitar ainda mais a importância do poder papal e, conseqüentemente, do Direito Canônico, uma vez que era o único direito organizado no período da Idade Média. Mesmo tendo atingido tão grande poder, a Igreja não procurou eliminar o caráter civil do casamento atribuído pelo Direito Romano. Mas contemporizou-se com as idéias romanas, pois devia fazer concessões aos bárbaros. Ao considerar o casamento completo, independentemente 74 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1952. t. II, p. 166-167. da bênção do sacerdote e da publicação dos proclamas, as lideranças da Igreja, tanto faziam propaganda religiosa como, conseguiam tornar desnecessário o concubinato. 75 Em um determinado momento, a Igreja Católica se viu obrigada a apoiar o instituto do casamento, relegando a segundo plano a defesa da virgindade e castidade, pois nele via a constituição da família estável, de onde surgiam os homens que ajudariam a fornecer à Igreja de Cristo a principal base para a expansão da fé cristã, principal meta do catolicismo. Os Concílios de Bourbes, em 1 de novembro de 1031, e o de Limoges, em 18 de novembro do mesmo ano, os temas tratados referiamse à paz de Deus, ao casamento e à eficácia prática da excomunhão. Nesses Concílios foi decidido que o casamento dos clérigos deveria ficar sujeito à jurisdição eclesiástica, cuja primeira conseqüência séria foi a repressão aos clérigos que praticassem bigamia e o segundo reflexo foi ter preparado o caminho para, futuramente, impor o celibato aos membros da Igreja católica. No Concílio de Reims (1049) ficou estabelecida a posição de que apenas a Igreja competia pronunciar-se sobre o vínculo conjugal e que todos os assuntos relacionados deviam ser submetidos à sua apreciação. Também foi reafirmada a indissolubilidade do casamento, e o Concílio de Tours (1060) enfatizou o princípio eclesiástico sobre o casamento consangüíneo e sobre as segundas núpcias, estabelecendo a pena de 75 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 54. excomunhão para quem, sem sentença episcopal, repudiasse sua mulher e se casasse com outra. 76 Dessa forma, a questão do casamento e divórcio passou a ser matéria de competência exclusiva dos tribunais eclesiásticos, bem como 76 Interessante mencionar que o poder da Igreja era tal que a partir da bula Unan Sanctam, editada pelo papa Bonifácio VIII (1294 a 1303), o poder temporal passou a ser confiado ao imperador pelo Papa, sob controle da Igreja. Assim, a Igreja Católica Apostólica Romana os sagrava e podia excomungá-los, mas o Papa não podia exercer o poder temporal. Mas, houve reação à essa determinação: o reinado de Felipe IV, da França, foi marcado por diversos desentendimentos com a Igreja Católica, que tiveram início em 1296, quando o Papa Bonifácio VIII publicou um documento no qual declarava que as propriedades da Igreja seriam isentas de quaisquer obrigações seculares. Felipe contestou, argumentando que, se a Igreja não pagasse tributos à França, então a França também não pagaria tributos à Igreja. Imediatamente, Felipe IV proibiu a remessa de dinheiro ou produtos franceses à Igreja. Solicitou também a criação de um conselho para analisar as denúncias de heresia e corrupção por parte de Bonifácio e chegou a prender o bispo de Palmiers, Bernard Saisset, sob a acusação de traição. Por causa disso, Bonifácio decidiu excomungar o rei. Um dia antes da publicação do documento de excomunhão na Catedral de Alagna, onde Bonifácio residia, os emissários de Felipe invadiram o palácio e mantiveram o Papa em cárcere privado, saqueando sua residência e o agredindo fisicamente. Bonifácio foi salvo três dias depois pelos habitantes de Alagna, mas não resistiu e morreu em Roma um mês depois, aos 86 anos. A eleição de Clemente V, que transferiu a sede do papado para Avignon (França), em 1307, e anulou a excomunhão decretada por Bonifácio e selou a vitória de Felipe IV. (COMBY, Jean. Para ler a história da igreja: das origens ao século XV. São Paulo: Loyola, 1993. p. 174). O papado permaneceu em Avignon até o ano de 1377. Ao todo sete papas estabeleceram sua residência em Avignon. Gregório XI se propôs a mudar sua sede para Roma, fazendo-o no início de 1377, mas faleceu no ano ano seguinte. Apesar de um terço dos cardeais que compunha o conclave ser de origem francesa e de haver uma preferência dessa nacionalidade e voltasse a Avignon, estes se dividiram sobre qual francês eleger. Além disso, estavam em Roma e sujeitos ao clamor da população. Assim, escolheram um napolitano erudito, administrador experiente, austero em sua moral e zeloso pela reforma, mas arrogante, Urbano VI, o qual se recusou a voltar a Avignon, repreendendo publicamente os cardeais. Mas, alguns cardeais eram de sangue nobre e se ressentiram com o Papa, a quem consideravam de origem humilde. Poucos meses depois esses cardeais abandonaram Roma, declarando que a eleição de Urbano VI se dera por intimidação por parte da população romana e, portanto, era ilegal, requerendo sua renúncia e denunciando-o como apóstata e anticristo. A maioria francesa do colégio de cardeais elegeu outro papa, um príncipe aparentado do rei da França, que assumiu com o nome de Clemente VII, estabelecendo-se em Avignon. Espanha, França, Escócia e parte da Alemanha apoiaram Clemente VII, enquanto que a Itália, a maior parte da Alemanha, Inglaterra, Escandinávia, Bohemia, Polônia, Flandres e Portugal apoiavam Urbano VI. Para solucionar o problema da cisma, foi realizado em Pisa, em 1409, um concílio com os cardeais de Avignon e de Roma que elegeram um novo papa, João XXIII. Mas, os outros dois não renunciaram, ficando a Igreja com três papas. Outro concílio, muito maior, foi realizado em Constancia (1414 a 1418), o qual colocou fim ao cisma, elegendo como ppa Oddone Colinna, membro de uma antiga família romana, que tomou o título de Martin V (LATOURETTE, Kenneth Scott. História do cristianismo. 3 ed. Casa Bautista de Publicaciones, 1976). a maioria das questões jurídicas passou a ser julgada por juízes eclesiásticos, como em casos da causa spiritualei (espiritual) e as ius parochiale (direito paroquial), além das causae seculares (causas seculares), ratione peccati (em razão de pecado), privilegium fórum (fórum privilegiado) e aquelas decorrentes de acordo arbitral. Assim, a Igreja predominou em matéria de casamento, com o padre tomando o lugar do pai da noiva e tornando-se a principal figura no ritual da celebração, na condição de testemunha de Deus e a casa paterna foi substituída pelo local da Igreja. Assim, a história política, econômica e social da Idade Média está intimamente relacionada à história da família. Logo, foi atingida a meta da Igreja Católica de impor o casamento como um ato que marcava a constituição de nova família entre duas pessoas de sexos opostos e que, além de um ato da vida civil, também era um sacramento dependente das palavras sacramentais, declarando-os casados, o que podia ser realizado apenas por um representante da Santa Igreja. Em Portugal, assim como nos locais onde era professado o cristianismo, os cristãos do primeiro milênio contraiam o casamento segundo as leis de suas cidades e dos seus estatutos pessoais, procurando viver de forma diferente da dos pagãos, seguindo a moral cristã, mas submetidos a vigilância no que diz respeito à vida de casados, ocorrendo inclusive punições para os casos de prática de infrações consideradas de natureza grave, especialmente, quando se tratasse de adultério. Em um primeiro momento, era importante a conscientização de que o casamento era para toda a vida, mas ainda não se impunha de modo absoluto a condição da sacramentalização, prevalecendo o posicionamento do direito romano, que o tinha como um contrato celebrado através do consenso, admitindo-se a possibilidade de repúdio por parte do marido por motivo justo. Entretanto, no caso específico de Portugal, quando d. Henrique, Conde de Borgonha, optou pela autonomia política para o Condado Portucalense, comprometeu-se a submeter vassalagem ao Papa, ao mesmo tempo em que decidiu que o futuro do país deveria ser submetido ao completo domínio da religião católica em seu território. Dessa forma, o povo português adotou por maioria absoluta o cristianismo, o que conduziu ao predomínio absoluto do catolicismo diante da monarquia lusitana e, conseqüentemente, passou a religião católica ser considerada religião oficial do Estado. No que dizia respeito ao casamento, deve-se observar que a legislação laica portuguesa, praticamente, não tratava desta matéria, deixando sua regulamentação por conta do Direito Canônico. De acordo com Cabral de Moncada, em Portugal, eram admitidos duas espécies de casamento: o casamento de bênção (ad benedictionem), designado pelo Concílio de Trento por “prelado a porta da Igreja” e o casamento de pública fama (maridos conhecidos) 77, mas 77 Este tipo de casamento era realizado entre as famílias e depois reconhecido pela Igreja (maridos conhecidos). como meios de provas do casamento admitia-se ainda o casamento de furto ou de juras, sendo esses inferiores ao casamento de benção, nos quais havia o mútuo consenso dos contraentes com firmação de juramento perante qualquer ministro do culto. 78 Observa-se que o casamento de juras ou de furto, como forma de constituição de família em Portugal, não tinha diferença jurídica dos casamentos celebrados com as bênçãos da Igreja, mas esta os reprovava através de sanções canônicas e desfrutava socialmente de menor dignidade. No século XVI, fatores como o fortalecimento da autoridade do rei, o renascimento do Direito Romano e a pressão exercida pelo movimento da reforma levaram o estado a reivindicar a competência para legislar e julgar as questões relacionadas aos Direito de Família, confrontando com a posição da Igreja. A resposta da Igreja se deu pelo Concílio de Trento (1542-1563), quando foram estabelecidas as regras e preceitos a que deviam se submeter o matrimônio, introduzindo a exigência dos proclamas, manifestação inequívoca da intenção de se receberem em matrimônio, tanto por palavras ou gestos perante o pároco e diante de no mínimo duas testemunhas, a bênção nupcial e a elevação à dignidade de 78 MONCADA, L. Cabral de. Estudos de história do direito: o casamento em Portugal na Idade Média. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1948. p. 37-81. sacramento, sendo considerado por isso intangível e fora de toda regulamentação e jurisdição civis. 79 A conseqüência direta do estabelecimento dessa regras foi que os casamentos clandestinos passaram a ser declarados e considerados como inválidos e a falta de publicidade dos atos matrimoniais, diante do Direito Canônico, implicava deixar de ser de Deus o ato do casamento, mas do diabo. Portanto, foram combatidos, pois possibilitavam distorções no meio social, em decorrência do seu sigilo, facilitando a bigamia e a inexistência de autenticidade do ato implicava a vulnerabilidade da constituição da família. 80 A Coroa portuguesa, por intermédio do regente d. Henrique concordou com as decisões tomadas pelo Concílio de Trento, mandando executar os decretos da bula de 1564, determinando pelo Alvará de 12 de setembro desse mesmo ano, que todas as autoridades do Reino e seus domínios que ajudassem aos prelados para que se cumprissem. Em 1569, El-Rei d. Sebastião ratificou o ato do regente, determinando a aplicação das disposições do Concílio de Trento em todo o solo português. Pela Lei de 8 de abril de 1596, foi adotado expressamente o cânone determinando o casamento como sacramento e a Lei de 13 de novembro de 1651, por solicitação das Cortes, determinou a aplicação de rigoroso castigo tanto 79 SEABRA, Antonio Luiz de. Duas palavras sobre o casamento pelo redactor do Código Civil português de 1867. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866. 80 GAMA, Manuel de Azevedo Araújo e. Estudo sobre o casamento civil. Coimbra: Imprensa Acadêmica, 1881. aos contraentes como a todos que cooperassem para a realização de um casamento clandestino. 81 2.2.2 A religião como forma de expressão e a constituição de família no Brasil Colonial e Imperial 2.2.2.1 O Brasil colonial, sua religião e sua família O Brasil esteve sob o jugo colonial do Reino de Portugal desde o seu descobrimento, em 22 de abril de 1500, até a data de sua Independência em sete de setembro de 1822. Esses 322 anos de jugo português pode ser subdividido em três períodos: período colonial, quando as ordens emanavam da Metrópole para o Brasil (22.4.1550 a 06.3.1808); período do Brasil-Corte, desde a chegada da família real ao Rio de Janeiro, em 7 de março de 1808 até 16 de dezembro de 1815, data em que foi editada a Carta de Lei, elevando o Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tal condição perdurou até a Proclamação da Independência, em 1822. Nesse estudo, porém, considera-se como período colonial o período entre o descobrimento e a Proclamação da Independência (22.4.1500 a 07.9.1822). 81 GAMA, Manuel de Azevedo Araújo e. Estudo sobre o casamento civil. Coimbra: Imprensa Acadêmica, 1881. p. 153. Os colonizadores portugueses, no que diz respeito à moral e ética familial, trouxeram para o Brasil aquilo que aprenderam em Portugal, ou aquilo que seus ancestrais sabiam e lhe repassaram e que tinha por fundamento as concepções do cristianismo medieval que, posteriormente, fora enriquecido com as devidas influências do Concílio de Trento, quando era consenso o dever de se respeitar o homem como chefe da família e a mulher como eterna subalterna do marido e responsável direta pela guarda e criação dos filhos. De acordo com Mendes de Almeida, no período colonial, o homem, ou seja, o colonizador português, no momento de constituir a sua família entendia que era preciso escolher bem, casar certo, já que o erro poderia levar a uma situação-limite insuportável, cuja solução – a separação – não era vista como solução, sobretudo para o homem. E não era solução porque implicava, ou na “continência” – o abster-se de relações sexuais não sacramentadas, e portanto, pecaminosas – ou na ‘desordem do pecado e da paixão”. Da mesma forma, o não casar-se colocava estas duas mesmas alternativas, ou outra pior, a do “pecado nefando”. O casamento era, portanto, equivalente à ordem [...] e [...] ao conforto e bem estar. 82 82 ALMEIDA, Ângela Mendes de. Família e modernidade: o pensamento jurídico brasileiro no século XIX. São Paulo: Porto Calendário, 1999. p. 52. Manifesta-se a respeito J. Capistrano de Abreu ao afirmar que a Igreja dominava de forma soberana pelo batismo, o qual era tão necessário para a vida civil como para a salvação da alma; pelo casamento, que podia permitir anular impedimentos dirimentes; pelos sacramentos, distribuídos pela da existência inteira; pela excomunhão, que incapacitava para todos os sacramentos e separava da comunicação dos santos; pela morte, permitindo ou negando sufrágios, deixando que o cadáver descansasse em lugar sagrado junto aos irmãos ou apodrecesse em companhia dos bichos. Dominava, também, pelo ensino, limitando e definindo crenças. 83 Portanto, verifica-se que todo o conjunto de regras do comportamento humano, sejam civis, religiosas, morais ou éticas, funcionavam como uma verdadeira pressão psicológica para que o homem se casasse e viesse a formar sua família, tão necessária e tão desejada, tanto na sede do reino, como na colônia brasileira. Como não poderia deixar de ser, a Igreja Católica Apostólica Romana, com base sólida no Reino de Portugal e na condição de religião oficial daquela monarquia, logo se interessou em trazer a sua religião para a nova colônia, visando, principalmente, a converter os gentios que existiam aos milhares, por meio da fundação de aldeias indígenas destinadas à catequese, e oferecer educação aos filhos dos colonos, com a criação de colégios educacionais e seminários. Portanto, sempre que 83 ABREU. J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 14. partiam esquadras de Portugal havia pelo menos um representante da Igreja Católica a bordo. 84 É importante destacar que Portugal foi uma das poucas nações que aceitaram de forma incondicional as decisões do Concílio de Trento, visando a sustentar os princípios dogmáticos da Igreja Católica diante da Reforma Protestante. Dessa forma, surgiu uma aliança entre o Estado português e a Igreja Católica denominada de “padroado”. Por esse padroado, por concessão do papa, os monarcas portugueses exerciam o governo religioso e moral no reino e nas colônias. Assim, o monarca detinha, também, o poder espiritual sobre seus súditos, podendo deles exigir doações e taxas para a Igreja, além de administrar a cobrança do dízimo e controlando sua distribuição entre as paróquias e a diocese. 85 A história religiosa regular na colônia teve início com o governo de Tomé de Souza, pois com ele chegaram ao Brasil, em 1549, os jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega, que juntamente com José de Anchieta, realizou um grandioso trabalho, no Brasil, primeiramente, pela dedicação à catequese entre os índios, ensinando-lhes os princípios básicos da religião católica, combatendo o contato deles com os europeus, a poligamia, 84 o antropofagismo. Dedicaram-se, especialmente, à ABREU. J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 14. 85 PRIORE, Mary del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 8. evangelização dos indiozinhos (os corumins), além de ensina-lhes a ler e a escrever em língua portuguesa. 86 Embora Portugal controlasse, rigidamente, a circulação de livros ou a instalação de imprensa na Colônia, os jesuítas conseguiram organizar uma boa rede de ensino. Essa atividade educacional teve como aspecto positivo o fato de dar continuidade ao ensino da língua portuguesa aos filhos dos colonos e para os filhos dos índios, o que permitiu não só a consolidação dessa língua e dos costumes lusitanos, como também contribuiu para a homogeneidade da língua em todo o território nacional. Quando Portugal caiu sob o governo do rei Felipe II da Espanha, em 1580, e tendo essa anexação perdurado até 1640, os jesuítas perderam sua exclusividade em termos de ação religiosa no Brasil. Além dos jesuítas, outras ordens religiosas se estabeleceram, no Brasil, tais como: os franciscanos capuchos, carmelitas observantes e, posteriormente, os descalços, beneditinos. Também vieram as ordens femininas, cujo primeiro convento foi construído em Olinda, nas últimas décadas do século XVI, da ordem das irmãs franciscanas. 87 86 CABRAL, Luiz Gonzaga. Influência dos jesuítas na colonização do Brasil (século XVI). São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1925. p. 176; 87 PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 13. Na Bahia, em 9 de abril de 1677, chegaram as primeiras freiras do convento de Santa Clara, da cidade de Évora, em Portugal, para fundar o primeiro mosteiro de religiosas, em Salvador. 88 No Brasil Colônia, não havia liberdade religiosa. Toda a população da colônia deveria ser batizada e seguir a religião católica, nisso incluíam-se os colonos, os negros escravos e os índios. 89 Os clérigos da Companhia de Jesus tiveram sérios atritos, com os bispos conservadores e mesmo com clérigos de outras ordens, em face dos problemas de ordem moral, particularmente devido ao problema do relacionamento dos portugueses com as índias e falta de dedicação à cristianização dos aborígines, e também com os colonos, pois não admitiam a escravidão dos índios após estarem sob seu comando em aldeias isoladas e catequizadas. 90 Em 1759, os jesuítas foram expulsos do Reino de Portugal e, em conseqüência, do Brasil, por ordem de ministro Marquês de Pombal, devido ao temor do poder que eles tinham junto às autoridades governamentais e junto aos aborígines nas colônias, a tal ponto de acusá-los de tentar ser um Estado dentro do Estado português 91, tanto que Portugal criou o governo criado as escolas régias, em substituição ao ensino religioso oferecido por eles. 88 MARIA, Júlio. O catolicismo no Brasil (memória histórica). Rio de Janeiro: Agir, 1950. p. 106. 89 FIGUEIREDO, Lima. Índios do Brasil. São Paulo: Nacional, 1939. p. 41. 90 PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 9. 91 Ibid. p. 19. Mas, não se pode negar que o trabalho desenvolvido pelos jesuítas, possibilitou domesticar uma grande massa de indígenas de Norte a Sul da Colônia, fato que veio permitir o aparecimento de grandes quantidades de aldeias e povoações, tanto no litoral, como no planalto do Brasil, que muito colaborou a implantação de uma sociedade civilizada em nosso país. A disciplina rígida dos jesuítas muito contribuiu para se colocar um freio na sociedade portuguesa colonial em que se exigia que os costumes e a moral seguissem os padrões de honradez européia, sendo também o parâmetro para se cobrar a conduta dos demais clérigos que aqui vieram no período colonial, buscando salvar almas para o cristianismo. Por outro lado, o beneditino, o carmelita e o franciscano, dirigiramse para a conquista e formação educacional e religiosa de pessoas dos povoamentos, se não embrutecidas tais qual o gentio, porém deixavam muito a desejar em termos de cultura humanística e necessitavam de um bom conteúdo evangélico e cultural para se aproximarem da cultura européia. Em nome da preservação da pureza dos costumes entre as pessoas e da moral cristã na família, estabeleceu o Direito Eclesiástico uma série de imposições para que o ato jurídico do casamento católico pudesse ser contraído de forma válida. Assim, pelos impedimentos matrimoniais para a realização de um casamento válido, regulavam-se as relações de família, apenas permitindo a realização das núpcias nas hipóteses em que elas não infringissem as normas canônicas relativas aos impedimentos dirimentes. Portanto, impedia o casamento, o vínculo natural entre os nubentes oriundo da comunhão de sangue, sendo um dado objetivo, de fácil identificação pela filiação e também impedia as justas núpcias, uma questão de ordem subjetiva, caracterizada por vínculo moral, de amor, afeto, reverência e relações estreitas. Os laços familiares, à luz do Direito canônico, eram muito mais amplos do que os do Direito secular, pois aqueles abrangiam o parentesco consangüíneo, o parentesco espiritual, o parentesco por adoção, a afinidade e a pública honestidade, fazendo com que, as relações de família no contexto do Direito Eclesiástico assumissem um círculo familiar muito maior, vinculando um quase interminável número de pessoas e tornando-se, assim, mais complexas as relações familiares. Dentro desse contexto, tem-se que compunha, como causas de configuração familial, sob a ótica do Direito Canônico: a) noções de consangüinidade, adoção e afinidade, que quase nada diferia do direito civil; 92 b) o parentesco espiritual, que se estabelecia por intermédio do sacramento do batismo, manifestando-se por seis figuras distintas: a paternidade 92 espiritual, a compaternidade, a afinidade espiritual 93, Consiste na proibição de matrimonio entre parentes próximos por consangüinidade (Cân. 2.357, § 2º; 2.359, § 2º) (KNECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1932). 93 No direito mosaico estava proibido por razão de afinidade, o casamento entre padrasto e enteado (Cân. 2.036), entre pais e filhos políticos (Cân. 2.037), entre cunhado e cunhada (Cân. 2.038), o casamento simultâneo de dois irmãos (Cân. 2.039), permitido, todavia, no tempo dos patriarcas (Cân. 2.040), e o matrimônio com a viúva do tio (Cân. 2.041) ((KNECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1932, p. 379). catecismo, penitência, e a pública honestidade, caracterizada com quase afinidade e abrangendo os laços provenientes do casamento sem validade ou do contrato esponsalício envolvendo o varão com os consangüíneos da mulher e esta com os consangüíneos daquele. A realidade é que o Direito Eclesiástico contemplava, como causa de relações familiares, diversos vínculos unindo grande quantidade de pessoas físicas entre si, em virtude do nexo estabelecido entre elas mediante imposição do parentesco natural ou consangüíneo ou em virtude de parentesco oriundo da legislação canônica. Sendo certo que o Direito Canônico, no que diz respeito aos parentescos espirituais e parentescos legais que regulava, admitia a hipótese de estudar dispensas, principalmente no Brasil colonial, onde a quantidade de pessoas nas cidades, vilas e aldeias, era diminuta, e as chances de uma pessoa arrumar outra do sexo oposto, interessada em contrair núpcias era quase nula. Sem dúvida, seria imenso o número de pessoas envolvidas por laços familiares no desenvolvimento da “teoria das nulidades”, para se contrair um casamento válido perante a Igreja Católica, de onde decorre amplo o conceito de família no Direito Canônico e, em conseqüência, no Direito Eclesiástico aplicado ao Brasil. Com relação aos índios, as uniões entre homens e mulheres indígenas ocorriam de forma direta e sem muita formalidade 94, dependia do consentimento primeiro da mulher e em seguida do consentimento de seu pai. Na falta deste ou na impossibilidade de se obter diretamente a palavra de concordância do genitor da mulher pretendida, o consentimento era dos irmãos. A mesma facilidade havia para que se desfizesse o casamento, através do repúdio do marido ou pelo desinteresse da mulher em manter o seu casamento. 95 De modo geral, o pai só permitia o casamento da filha, quando esta já tivesse atingido a puberdade e também só era permitido o casamento do varão, quando este já tivesse atingido a idade mínima de 25 anos e tivesse a condição de guerreiro na tribo, além de situação para assumir a chefia da nova família que iria constituir. 96 O que fazia sentido para os indígenas eram as uniões de homens com as mulheres da tribo ou até de outras tribos ou hordas 97, visando a aumentar o número de pessoas, em especial, o de guerreiros e o relacionamento entre elas, inclusive o compromisso de se ajudarem mutuamente, em caso de guerra contra os inimigos comuns. 94 POMBO, Rocha. História do Brasil. v. I. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1951. p. 84. 95 ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 223. 96 POMBO, op. cit. p. 84. 97 MARTIUS, Carl Frederico Philippe von. O Estado do direito entre os autóctenes do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. p. 52. No máximo, eram vedadas as uniões entre pessoas do mesmo grupo. A regra que prevalecia entre os indígenas era a poligamia. 98 As famílias indígenas tinham sua moradia, em um local denominado de taba (aldeia), onde eram construídas diversas ocas ou ranchos grandes e comportava-se a vida coletiva simultânea de diversas famílias em cada uma delas. O marido índio tinha sua família, que morava sob um mesmo teto coletivo, podendo ser constituída por uma ou diversas mulheres 99 . Nessa última hipótese, eram lideradas por uma delas 100, e todas procuravam viver em harmonia. 101 Ali também moravam os filhos 102, bem como os cativos de guerra, que se transformavam em escravos do chefe familiar, a quem, curiosamente, dispensavam tratamento equivalente aos filhos, tendo direito a obter uma mulher ou um marido, chegando a ter também filhos, que eram eliminados caso fosse do cativo. 103 Se a tribo fosse adepta da antropofagia 104, mantinham-se os escravos, até que um dia, resolvesse o seu senhor, como recompensa de guerra e exercício de vingança, devorá-los num banquete tribal. 98 LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. 3 ed. São Paulo: Martins, 1960. p. 200. POMBO, Rocha. História do Brasil. v. I. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1951. op. cit. p. 84. 100 MARTIUS, Carl Frederico Philippe von. O Estado do direito entre os autóctenes do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. p. 50. 101 ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 222-223. 102 CARDIM, Pe. Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 153. 103 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil-história da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 55. 104 VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1948. p. 46-47. 99 Os escravos gozavam de toda liberdade. Como membro da família fazia tudo o que os demais componentes da tribo faziam, e ali aguardavam, com a maior honra e serenidade, o dia de sua possível libertação ou da sua morte 105, no banquete antropofágico praticado pelos índios, em especial os tupinambás. 106 No que diz respeito às mulheres que caíam prisioneiras, eram absolvidas pela tribo vencedora, pois eram um elemento necessário e indispensável ao processo de procriação e ao aumento da população da horda ou tribo e tidas como neutras, a tal ponto que, às vezes, as lutas se limitavam à busca de mais mulheres. 107 Afirma Milton Barcellos 108 que A aldeia ou taba dos índios, compunham-se de grandes cabanas ou ocas capazes de admitir muitas famílias: e, como a taba tinha o Peereru Picheh, a oca tinha o seu maioral, o mais idoso, que compunha as desavenças, fazia reinar a tranqüilidade nas horas de descanso, hospedava os estrangeiros, e era chamado de Mussacat. Cada família das diversas divisões da oca tinha por chefe o guerreiro que a alimentava. Demo que a oca, representação da aldeia, compunha-se dos mesmos elementos que elas, mas 105 CASTIGLIONE, Teodolindo. A eugenia no Direito de família – a eugenia entre índios brasileiros. São Paulo: Saraiva, 1942. p. 240-241. 106 ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 224. 107 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial. 7 ed. São Paulo: Universidade Estadual de São Paulo, 1976. p. 10. 108 BARCELLOS, Milton. Evolução constitucional do Brasil, ensaio de história constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933. p. 45. travados entre si e subordinados uns aos outros. A filha dependia da mulher, a mulher e os filhos do guerreiro, este do Mussacat, o Mussacat do Peereru Picheh e, superior a todos estava o conselho da nação – Carbé. Todos os membros de uma tribo que se dividiam em agrupamentos deviam solidariedade recíproca, pois eram considerados parentes entre si. Com a chegada dos jesuítas, em 1549, e levando-se em conta que eram clérigos que impunham moralidade rígida, tanto no relacionamento entre os índios que estavam sob o seu controle, como no relacionamento dos indígenas com os colonos portugueses ou mesmo outros europeus, combateram todos os costumes perversos, em especial, a antropofagia e a poligamia e só passaram a admitir o casamento cristão como forma de constituição de família indígena. 109 A esse respeito, Afranio Peixoto afirmou que em vinte anos de apostolado, os jesuítas mudaram a moral na colônia. Os índios passaram a ter sua mulher, sua família, sua casa, sua roça, deixaram de ser antropófagos e adquiriam hábitos civilizados. Tanto os clérigos como os leigos sentiam a influência contagiante da moral jesuíta, a qual era feita de pureza e tolerância. 109 CALDEIRA, Jorge et al. Viagem pela história do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 37. 2.2.2.2 O Brasil Imperial, sua religião e sua família Com a vinda da corte portuguesa, em 1808, estava definido que o Brasil em tempo muito próximo se transformaria em uma nova nação, pois aquele fato por si só, tornaria irreversível este processo, sob pena de ocorrer um verdadeiro retrocesso histórico. 110 O Brasil esteve fechado por três séculos ao comércio estrangeiro, evitando que fosse divulgada a sua real situação econômica e impossibilitando que forasteiros por aqui aportassem e colhessem qualquer tipo de informação que pudesse colocar em risco o domínio absoluto na colônia. A indústria brasileira era proibida, por Alvará de 1785 o qual só foi revogado em 1808. Da mesma forma, internamente, na colônia era proibida a livre circulação e leitura de livros 111, folhetins ou qualquer tipo de informação contrário aos interesses do Reino. Em Portugal, somente se poderia publicar alguma obra e, em especial de fatos do Brasil, após a devida autorização da censura régia e religiosa, conforme determinação da Ordenação Filipina e, mesmo assim, obtidas estas, corria-se o risco de uma revisão posterior daquelas decisões e sofrer a obra uma busca e apreensão de todos os seus números e a sua completa destruição, além 110 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1977. p. 9. 111 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil, cotidiano e vida privada na América portuguesa. v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 334-379. da aplicação de uma multa, caracterizando verdadeiros absurdos em face à evolução de um povo e sua cultura. 112 Com a transferência vinda da da corte família real portuguesa e ao Brasil, operou-se praticamente todos os a membros importantes do governo da Metrópole lusitana. Isso significa que a comitiva real foi acompanhada pelas grandes personalidades do reino, os funcionários régios que compunham a sua administração burocrática, sendo certo que muitos chegaram após ter sido aportada, no Brasil, a esquadra que trouxe a rainha d. Maria I e seu filho d. João VI, herdeiro do trono, principalmente, os que vieram de outras colônias, pois era daqui, que se passou a praticar a comunicação com elas. A nova cidade, sede da monarquia, ou seja, o Rio de Janeiro, transformou-se em um local atraente para as pessoas de posse, em especial, os grandes latifundiários que mantinham o domínio do “clã rural” fazendo com que muitas famílias se deslocassem de todas regiões do Brasil, principalmente, das regiões de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e São Paulo, para residirem próximas ao convívio do poder real, atraídas pelo aculturamento europeu que ali se praticava, no que dizia respeito aos costumes da nobreza. 113 112 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Estudo bibliográfico de Affonso de E. Taynay. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. 113 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 23-24. Além desse contingente de pessoas, anteriormente, mencionadas, também vieram para o Rio de Janeiro muitas pessoas monarquistas, de países sul-americanos, pertencentes ao reino de Castela, por motivos políticos, em especial, as lutas protagonizadas por republicanos pela independência, incentivados pelos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, sustentados pela Revolução Francesa, além de outras idéias novas vindas do antigo continente europeu. 114 Embora a Independência do Brasil tenha transformado a sociedade colonial brasileira em sociedade imperial, muito pouco ou quase nada se percebeu em termos de alteração 115, com relação à vida familiar. Apesar de ter ocorrido, a declaração da independência, a instalação de um governo autônomo em relação a Portugal, tendo por sede a cidade do Rio de Janeiro, em nada foi modificado o processo de organização de nossa vida jurídica, política e social, tendo permanecido as colunas básicas do governo anterior, ou seja, fora mantida sociedade escravocrata, a legislação do Reino de Portugal e, ainda, continuava a fusão do poder temporal com o espiritual. Portanto, continuava a religião católica como a oficial do País. Ao lado das grandes famílias patriarcais rurais formou-se no período imperial, com a abertura dos portos e o desenvolvimento do 114 VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956. p. 276. 115 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 16-17. comércio, também uma poderosa burguesia de grandes comerciantes, cujas posses acabavam se equivalendo aos daquelas, sendo que ambas passaram a mandar seus filhos estudarem na Europa 116, de onde voltavam graduados: “em canones, em leis, em mathemáticas, em ciências naturais e, ao retornarem à pátria, trazem à nossa aristocracia mental novos brilhos, novas idéias, novas capacidades”. 117 Deve-se mencionar que a família patriarcal rural se beneficiou, com o grande acontecimento da cultura econômica do Império, que foi a consolidação do plantio e exploração da cultura do café, bebida de grande aceitação comercial no mundo, pelo agradável aroma e paladar, que propicia aos seus adeptos. A exploração dessa cultura teve o seu início no Rio de Janeiro, estendeu-se para Minas Gerais e, posteriormente, para São Paulo, onde atingiu o seu apogeu, permitindo grande aproveitamento dos escravos que se encontravam ociosos nas Minas Gerais, em decorrência da franca decadência da exploração de ouro e os dos engenhos. Esse fato da exploração das prósperas lavouras cafeeiras, no sul do Império propiciou a constituição de uma nova aristocracia rural 118, denominada de “os barões do café”, em contraste com os senhores de engenho do norte, cujo principal produto que produziam, ou seja, o 116 CALMON, Pedro. História social do Brasil, espírito da sociedade imperial. 2º tomo, 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Série Brasiliana, s/d. v. 83. p. 109-110. 117 VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956. p. 278. 118 CALMON, Pedro. História social do Brasil, espírito da sociedade imperial. 2º tomo, 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Série Brasiliana, s/d. v. 83. p. 123. açúcar, infelizmente, estava com os seus preços em franca decadência no mercado internacional, fato que os obrigava a desfazer-se dos seus contingentes de escravos para nova aristocracia sulista 119, caracterizando a decadência econômica daquelas famílias. Finalmente, as famílias patriarcais rurais, tanto as antigas oriundas e detentoras dos grandes currais estabelecidos nos sertões e as dos engenhos, como também as emergentes da riqueza do café, através de seus chefes, chegam ao centro do poder, primeiramente, ajudando a fundar o Império em 1822, visando a se livrar definitivamente dos últimos forasteiros portugueses, cabendo a elas, em seguida, o supremo encargo da organização e da direção geral da nacionalidade brasileira, fato que se confirmou pela manutenção do Império até o ano de 1889. 120 As famílias patriarcais, mesmo tendo o exercício do poder ao longo do segundo Império, assistiram paulatinamente à corrosão de grande parte do seu poder econômico e político, por intermédio de diversos fatos e dentre eles, pode-se citar, inicialmente, a lei do ventre livre e, posteriormente, da lei Áurea, enfatizando, primeiramente, o enfraquecimento e depois a extinção em definitivo do regime de escravidão para os negros cativos no Brasil. Este fato atingiu, frontalmente, a sociedade imperial escravocrata, pois modificou de um só golpe as relações econômicas familiares pela perda de um considerável patrimônio sem qualquer indenização por parte do governo imperial e as 119 Ibid. p. 121-122. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 7 ed. v. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 45. 120 importantes mudanças nas relações de trabalho no final do século XIX, que exigiram novos esforços para regularização do sistema agrário, sobre o qual repousava uma das principais fontes de riqueza do país. Um outro fator veio corroborar o enfraquecimento das grandes famílias patriarcais representantes da aristocracia rural brasileira, sendo este de ordem jurídica, ou seja, o regime sucessório das partilhas, em decorrência do falecimento do chefe da família ab intestato. Portanto, “essa divisão forçada do patrimônio das grandes famílias as enfraquece no seu poder econômico”, porque as reduz, no fim da terceira ou quarta geração, à obscuridade e à pobreza, fato que levava a uma desintegração progressiva e paulatina, pois perdia um de seus principais sustentáculos, que era a riqueza e por conseqüência havia também o desaparecimento dos laços poderosos da solidariedade parental. 121 Assim, quando se chegava ao final da última década do século XIX, também se chegava ao final dos domínios da grande família patriarcal rural que deu sustentação aos governantes do período imperial, sendo o golpe final, o que culminou com a imposição da extinção do regime da escravidão negra no Brasil, em 13 de maio de 1888, ocorrido pela assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. 121 VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 7 ed. v. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 202-203 Ainda é importante mencionar que o Brasil, depois que se tornou uma nação independente, estabeleceu relações diplomáticas e incrementou o seu comércio internacional com diversas outras nações. Isso implicou a vinda não só de imigrantes como também de inúmeras pessoas do corpo diplomático, bem como, de inúmeros oficiais militares europeus contratados para adestramento de nossas tropas. As pessoas que vinham ao Brasil, de forma transitória ou definitiva, na condição de casadas perante outros credos ou na iminência de se casar e que não eram católicas e nem pretendiam se converter a esse credo, passavam a ter sérios problemas de constrangimento com relação às questões de ordem pessoal, como nascimentos, casamentos, óbitos e os registros desses atos, pois tal controle pertencia à Igreja Católica por disposição literal da lei, a qual não admitia outra religião nem qualquer celebração matrimonial que não fosse de acordo com os ditames do Direito Eclesiástico. Como forma de solucionar esse impasse, o ministro da Justiça da época, Diogo Vasconcelos, apresentou em 19 de julho de 1858, Projeto de Lei para fins de casamento entre pessoas não-católicas, que acabou se transformando na Lei n. 1.144, a qual foi editada em 11 de setembro de 1863, que prescrevia em seu art. 1º, § 3º: Devem os casamentos acatólicos ser celebrados segundo os costumes ou prescrições das Religiões respectivas, contanto que a declaração do ato religioso fosse provada pelo competente registro, na forma determinada pelo regulamento. O regulamento dado pela Lei n. 1.144 se concretizou em 17 de abril de 1863, pelo Decreto n. 3.069, que dispunha que os casamentos deveriam ser registrados no livro competente a cargo do Secretário da Câmara Municipal em que residisse um dos cônjuges ou do diretor ou superior da Colônia onde vivessem (arts. 5º, 6º e 19º). O art. 1º, § 4º da Lei 1.144/1861, conjugado com o art. 7º do Decreto 3.069/1863 estabeleciam a exigência de que os casamentos acatólicos deveriam observar os impedimentos previstos pelo Direito Canônico, sob pena de não poderem ser celebrados. O art. 41 dispunha que a comprovação desses casamentos deveria ser feita mediante a apresentação do seu registro ou em caso de perda ou destruição, por outros meios de provas. Do teor desse dispositivo ficava clara a obrigatoriedade do registro, para convalidação do casamento entre pessoas não católicas ou pertencentes às seitas dissidentes, celebrado em harmonia com as prescrições das religiões respectivas (não atéia). Essas normatizações foram ainda complementadas pelos Avisos n. 491 e 495, de outubro de 1865, e pelo Aviso de 20 de junho de 1867, que regulamentava os casamentos mistos. Por intermédio do Decreto n. 9.986, de 31 de dezembro de 1888, o Governo Imperial instituiu o registro civil no Brasil, o qual serviria de prova para os casamentos celebrados. No entanto, com relação às cerimônias ocorridas em data anterior àquela, a prova deveria ser feita por intermédio de certidões dos assentos paroquiais. 122 Dadas às restrições a outras formas de culto, muitas famílias passaram terríveis constrangimentos por serem acatólicas. Fato este que veio terminar com a primeira Constituição Republicana que assegurava a liberdade de culto e o ensino laicizado nas escolas públicas. Foi efetivamente nessa época que se deu a tão esperada separação da Igreja e o Estado, pelo Decreto n. 119-A, de autoria de Ruy Barbosa, em 24 de janeiro de 1890. Assim, a instituição do casamento como fonte geradora da família, que fora objeto de nova regulamentação pela República, continuou sob a égide do direito civil em vigor no Império, ou seja, regulado pela Consolidação das Leis Civis, que teve como ordenamento básico, as Ordenações Filipinas e na legislação esparsa até aquela época. O Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, representa uma mudança radical para a época, pois provocou a secularização do matrimônio, como forma de constituição legal da família, bem como constituiu a única manifestação relevante do poder legislativo no que diz respeito ao Direito de Família, no primeiro período de Governo da República. 122 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. t. VII, 2 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. p. 348. Com a efetiva separação da Igreja do Estado, este tirou daquela o controle dos registros civis das pessoas naturais em nosso país, regulamentando o casamento civil, tornando-o obrigatório como único ato jurídico válido em termos de constituição de família legítima. Dessa forma, ocorreu uma mudança radical na esfera do casamento que recebeu uma roupagem secularizada como forma de constituição legal de família. Diante da reação da Igreja Católica, fez-se necessário que o Ministério da Justiça editasse uma circular, em data de 11 de junho de 1890, reafirmando o fato de que “nenhuma solenidade religiosa, ainda que sob a forma de sacramento do matrimônio celebrado nos Estados Unidos do Brasil, seria considerada, perante a lei civil, vínculo conjugal”. 123 Após a Proclamação da República, em 1889, e a conseqüente separação da Igreja do Estado, fato este que começou a florescer nas mentes um novo conceito de família e casamento em relação ao que até então vinha sendo difundido com exclusiva hegemonia da Igreja. Não é que não se tenha feito qualquer tentativa, mas, infelizmente, quase todas malogradas, quando Clóvis Beviláqua, jurista e professor da Faculdade de Direito de Recife, foi então convidado para prosseguir os trabalhos da elaboração do projeto do Código Civil, cujos trabalhos tiveram início em abril de 1889 e foram concluídos em outubro do mesmo ano, contendo 123 CHAVES, Antonio. Tratado de direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais,1991. t. I. p.63. 1973 artigos, mas somente entrou em vigor a partir de janeiro de 1917. Deve-se ressaltar que o avanço obtido com a elaboração do Código de 1916, principalmente, em relação ao Direito de Família, foi surpreendente, levando-se em conta o contexto estigmatizado pela hegemonia exercida pelo poder e influência de Roma. 3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DO HOMEM E A QUESTÃO DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE HUMANA EM TERMOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E NA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA 3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Inicialmente, procura-se expor brevemente a fundamentação filosófica que permita a compreensão da noção de dignidade humana, observando-se, ao longo da história, a evolução do pensamento do homem acerca da sua própria essência e da sua condição existencial. A idéia de valor intrínseco da pessoa humana tem suas raízes, tanto no pensamento clássico como no cristão. A religião cristã trouxe o entendimento de que o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é dotado de um valor próprio, que lhe é intrínseco. No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, a dignidade da pessoa humana tinha relação com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, havendo, portanto, pessoas mais dignas ou menos dignas. No pensamento estóico, a dignidade era considerada como qualidade que distinguia o ser humano das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade. Portanto, esse pensamento se apresenta relacionado à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo, assim como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz respeito à sua natureza, são iguais em dignidade. Este entendimento de dignidade humana continuou sendo sustentada pela concepção de inspiração cristã durante o período medieval. No entanto, é do idealismo alemão de Immanuel Kant, que talvez tenha surgido a melhor expressão do conceito lógico-filosófico de dignidade humana. Kant concebia o homem como um fim e não como um meio, diferentemente dos outros seres desprovidos de razão. Em função dessa condição de ser racional é que o homem poderia ser chamado de pessoa humana, a qual seria dotada de um valor intrínseco, um valor próprio da sua essência. 124 De acordo com Nicola Abbagnano, entende-se como princípio da dignidade humana a exigência enunciada por Kant como segunda fórmula do imperativo categórico: “Age de forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Esse imperativo estabelece 124 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002. que todo ser racional (homem) possui um valor não relativo, mas intrínseco, isto é, a dignidade. 125 Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, a expressão “dignidade da pessoa humana” é uma criação da tradição kantiana no começo do século XIX. 126 No âmbito da axiologia, a dignidade da pessoa humana, concebida como um valor moral pode ser encontrada em diversas culturas e povos. Dessa forma, percebe-se em várias doutrinas e textos religiosos, considerados como códigos morais, a valorização e salvaguarda do homem justificadas tanto por fundamentos metafísicos, como por necessidades meramente materiais. Como exemplo, apresentam-se as concepções judaicas, islâmicas e cristãs. No judaísmo, a salvaguarda do ser humano é entendida como uma necessidade e uma obrigação. No que diz respeito à dignidade do homem, o núcleo central da teologia judaica encontra-se no incentivo à caridade, na proteção ao desamparado e no amor fraternal, como aparece no Levítico, 19:18: “e amarás ao próximo como a ti mesmo”. 127 No islamismo, a pessoa humana é vista como o ser mais nobre e digno de honra que existe. À pessoa humana teriam sido dadas, por graça divina, a razão e a capacidade de pensar e de dirigir o seu destino. 125 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 259. 126 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95. 127 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. t. IV. p. 34. O verso 13 da Suna traz: “os que estão de joelhos [...] E Ele colocou, por livre vontade, tudo o que existe no céu e na terra a vosso serviço”. 128 O fundamento teológico cristão para a proteção da dignidade do homem está no axioma de que a pessoa humana, criada por Deus à sua imagem e semelhança (Gênesis, 1:26) e remida por Cristo (Epístola de São Paulo aos Efésios, 1:7; Epístola de São Paulo aos Hebreus, 9:22; I Epístola de São Pedro, 3:18), tem obrigatoriamente uma condição que exige a liberdade e a justiça como prioridades sobre todas as coisas materiais que possam degradar ou escravizar. 129 Assim, a proteção e promoção da dignidade do ser humano passaram a ser uma necessidade material e uma condição para a construção e para o desenvolvimento da humanidade. A negação da validade desse ideal é a negação da validade da existência das instituições humanas. Conseqüentemente, a proteção da dignidade da pessoa humana passou do âmbito da consciência coletiva para o âmbito jurídico, sendo consagrado como valor jurídico universal, principalmente, após a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, a dignidade da pessoa humana, entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da liberdade e de direitos como garantia de uma existência plena e saudável, passou a ter amparo como um objetivo e uma necessidade de toda a humanidade. 128 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. t. IV. p. 34. 129 BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: mensagem de Deus. São Paulo: Loyola, 1989. O princípio da dignidade humana é atualmente um dos esteios de sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Não se pode mais pensar em direitos desatrelados da idéia e conceito de dignidade. Apesar de essa noção estar vinculada à evolução histórica do Direito Privado, tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional e, portanto, o vértice do Estado de Direito. 130 Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais passam a ser reconduzidos à noção de dignidade da pessoa humana, uma vez que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas em nível social, democrático, cultural, econômico e jurídico. Para Alexandre de Moraes, a expressão “direitos do homem” indica o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua ‘dignidade’, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de desenvolvimento da personalidade humana. 131 130 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 94. 131 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 39. Tais direitos não resultam de uma concessão da sociedade política. São direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir. 132 Juarez Freitas afirma que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana à qual se referem, convivem de forma indissociável, pois aqueles constituem explicitações e concretização desta. Assim, pelo menos em princípio, em cada direito fundamental está presente um conteúdo ou alguma projeção da dignidade da pessoa. Portanto, é inquestionável que a liberdade, a garantia da isonomia de todos os seres humanos e os direitos fundamentais são pressupostos e concretização da dignidade da pessoa. 133 Considerando o princípio da isonomia como corolário direto da dignidade, seria possível dizer que a própria dignidade individual admite certa relativização, quando justificada na necessidade de proteção da dignidade de terceiros. Para tanto, seria necessário compatibilizar a dignidade com outros valores sociais e políticos, em que residiria um grande problema, cuja solução poderia ser obtida de três maneiras, segundo Jacques Maritain citado por Edilsom Pereira de Farias, a saber: a) priorizar os valores individuais em detrimento dos valores da sociedade, na qual o mesmo encontra seu próprio bem-estar e sua própria riqueza; b) priorizar os valores da sociedade sobre o individual, 132 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia muitas vozes. 3 ed. Aparecida-SP: Santuário, 1998. 133 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 83. pois para a concepção do transpersonalismo o indivíduo se encontra em função dos interesses da sociedade; e c) buscar a conciliação entre as duas concepções anteriores, a qual é representada pelo personalismo, em que se procura compatibilizar as duas posições, o que será alcançado caso a caso, mediante ponderação na qual será avaliado o que diz respeito ao indivíduo e o que se refere ao todo. 134 Para Miguel Reale, a harmonia é mediatizada pelo valor da pessoa humana, quando “o indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do homem enquanto homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da ‘personalidade’ haverá arbítrio”. 135 Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, na condição de direito de defesa, não aceita qualquer violação à dignidade pessoal, mesmo em função de outra dignidade, impondo aos órgãos estatais, a missão não apenas de respeito e proteção, mas de promoção e efetivação das condições de vida digna para todos. 136 Entende-se que o acima exposto está inserido na noção de Estado Democrático, no qual todos são considerados iguais e têm os mesmos direitos. 134 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos, a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1996. p. 47. 135 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. 136 Ibid. p. 4. É importante distinguir entre as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, que com freqüência são utilizadas como sinônimos. Os direitos fundamentais podem ser definidos como o conjunto de direitos e liberdades do ser humano institucionalmente reconhecidos e positivados no âmbito do direito constitucional positivo de determinado Estado, enquanto se os direitos humanos são abrangidos pelo direito internacional e, portanto, são extensivos a todos os seres humanos, independentemente constitucional, de sua apresentando vinculação validade a determinada universal e ordem caráter supranacional. 137 Manoel Gonçalves Ferreira Filho destaca que muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais são direitos de personalidade, e estes últimos envolvem os direitos de estado, por exemplo, o direito de cidadania; os direitos sobre a própria pessoa, como o direito à vida, á integridade moral e física, à privacidade; os direitos distintivos da personalidade, como o direito à identidade pessoal, direito à informática; e muitos direitos de liberdade. 138 137 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 358. 138 Ibid. p. 359. 3.2 LIBERDADE RELIGIOSA A questão da liberdade religiosa é complexa e delicada. Complexa porque a compreensão desse tema depende de uma abordagem interdisciplinar, envolvendo áreas como a história, a antropologia, a ciência da religião, a filosofia, além da ciência jurídica. O tema é delicado porque apresenta o desafio de se conviver em um mundo plural, em que a intolerância religiosa ainda está presente. A liberdade religiosa comporta pelo menos três acepções: jurídica, teológica ou eclesiástica e bíblica. Na acepção jurídica, a liberdade religiosa pode ser compreendida como um direito fundamental da pessoa humana e, portanto, o centro da problemática dos direitos humanos. Na história da humanidade, o direito à liberdade religiosa representa uma conquista, extremamente, recente. Como direito natural, a mesma surgiu no século XVIII, com as primeiras declarações de direitos de 1776 (americana) e 1789 (francesa). Como direito efetivamente tutelado, surgiu internacional, com surgiu a após Constituição a Segunda americana. Guerra Como Mundial, direito com o desenvolvimento do sistema global de proteção aos direitos humanos ligado à Organização das Nações Unidas. Na acepção teológica ou eclesiástica, a liberdade religiosa compreende uma doutrina teológica na qual só são reconhecidos nos limites da Igreja Católica, sendo essa doutrina fundamentada por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Aristóteles foi o primeiro a propor esta concepção, e afirma que a virtude e o vício dependem de nós, o que significa, para ele, que o homem é o princípio de seus atos. 139 Esta noção, “princípio de seus atos” corresponde ao “princípio de si mesmo”, e é a definição da lei incondicionada. Este conceito de liberdade perdurou durante a Idade Média, Santo Agostinho afirma que aquele que sente em si a vontade sente que a alma movimenta por si só. 140 Santo Tomás, por sua vez, coloca o livre arbítrio como a causa do próprio movimento, uma vez que por meio deste, o homem determina a si mesmo como agir. Esta concepção aplica-se a todos os seres vivos e favorece o homem, uma vez que a causa dos movimentos humanos é o que o homem escolhe como movente, enquanto juiz e árbitro das circunstâncias externas. 141 Na acepção bíblica, a liberdade religiosa é um “dom de Deus”, porque o Criador concedeu o livre arbítrio aos homens. 139 ARISTÓTELES. Poética, organon, política, constituição de Atenas. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores). 140 SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores). 141 AQUINO, TOMAS. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores). 3.3 OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA MODERNIDADE A humanidade, que segundo Belmiro Pedro Welter, encontrava-se no estado da natureza, firmou um contrato social, surgindo assim, o Estado de Direito, criação artificial da razão humana, que passou a ditar as leis positivas, acarretando o início do Estado Social e Político 142, que “nasceu sob a forma de monarquias absolutas [...] como um Estado monárquico, nacional, soberano e secularizado”. 143 As teorias contratualistas foram uma conseqüência do movimento Renascentista, como forma de justificar a criação de um Estado secular, laico, desconsagrado e autônomo, com poderes limitados e livre de influências eclesiásticas. Tais teorias foram sustentadas por Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau, mas com influência de Kant, Pufendorf e Leibniz. 144 No Brasil, a laicificação veio com a Proclamação da República, que proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados Federais em matéria religiosa (Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890). Observa-se que, na Europa, a laicização já estava em andamento desde o século XIV, quando houve a intensificação entre o Estado e a Igreja. 142 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228. p. 214. 143 MAQUIAVEL. Cfe. WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228. p. 214. 144 FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228. A Igreja Católica havia instituído a noção de culpa no casamento com base no cometimento e absorção da mácula do pecado original por Adão e Eva. Em conseqüência, surge o princípio da culpa canônica, como forma de manter edificado o casamento, que só poderia ser desfeito mediante a comprovação de um culpado, que deveria ser punido. O Direito de família brasileiro acatou a influência da legislação eclesiástica nas Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, ao preconizar que o casamento indissolúvel era a única forma de constituir família. 145 3.3.1 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1934 A Constituição de 1934, promulgada a 16 de julho, foi uma Constituição eminentemente política, seguindo uma nova concepção do direito e do Estado, tendo recebido a influência dos abalos sociais provocados pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Embora o advento do regime republicano houvesse proclamado a completa separação entre o Estado e a Igreja, sob a influência da maçonaria e das idéias republicanas da época, a Carta Magna de 1891 145 KLEIN, Fabiane. A polêmica sobre a abstração da culpa na separação judicial litigiosa. In: BRAUNER, Maria Claudia Crespo (Org.). O direito de família descobrindo novos caminhos. Canoas: La Sale, 2001. p. 47-48. deixou-se arrastar pelos preconceitos que não representavam o pensamento nacional. Dessa forma, foi a Constituição de 1934 que estabeleceu a completa separação da Igreja e do Estado, não havendo mais entre os dois poderes relações de dependência ou aliança. Porém, não se podia prescindir da colaboração religiosa, pois reivindicavam esses princípios a ministração do ensino religioso nas escolas, a assistência religiosa nos hospitais, nas penitenciarias e às classes armadas, porém deveria ser em condições iguais para todas as religiões independentemente de seus credos. O art. 17, nos incisos II e III, à primeira vista se mostra contraditória, pois a primeira parte do artigo repete os dispositivos da Constituição de 1891, caracterizando o Estado leigo, a situação da Igreja livre em Estado livre, proibindo qualquer relação de dependência ou aliança. No entanto, tem-se o inciso “sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”. Dessa forma, parece se fere o sistema de laicidade do Estado, quando no art. 113, n. 6 permite a assistência religiosa nas expedições militares, hospitais, penitenciárias e o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. É importante destacar que há três sistemas de relações EstadoIgreja: o sistema da Religião Oficial, o das relações de dependência ou aliança e, por último, o da Religião livre em Estado livre. Além disso, é conveniente lembrar que, no Brasil Império, vigorava o sistema da religião do Império. No Estado leigo não há dependência ou aliança ou interferência recíproca nos poderes respectivos. Na Constituição de 1891, os Constituintes queriam apenas um Estado abstêmio em matéria de culto, mas isso ficou expresso de tal forma que na prática o que se teve foi constante hostilidade às religiões. Assim, na nova Constituição procurando-se estabelecer a mesma atitude de eqüidistância das religiões, se fazia necessária uma cláusula clara que expressasse o pensamento da Constituição. Portanto, o que constou nesses artigos mencionados foi apenas que o Estado é abstêmio, não subvenciona, não se alia, mas também não hostiliza e reconhece as religiões como forças orgânicas da sociedade. 146 O art. 79, da referida Constituição deixava implícito o princípio da liberdade de consciência e de crença da mesma forma que se encontrava nas Constituições do Império e da República. A liberdade de consciência e de crença, também garantidas pelas Constituições do Império e da República, não sofreu alteração. Com relação ao exercício livre do culto, não houve emenda contrária, apenas alguma divergência porque da forma disposta, estava presente o condicionamento com a ordem pública e os bons costumes. No que diz respeito ao direito de voto aos religiosos, a Constituição de 1891, em seu art. 70, § 1º, dispunha que “Não podem ser alistados os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitos a votos de obediência, 146 SCAMPINI, Pe. José. A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 153-155. regra ou instituto que implique renúncia da liberdade individual”. Essa restrição foi totalmente impugnada pelos Constituintes de 1934, pois a sociedade não pode intervir em tais votos, que não dizem respeito à sociedade, mas que se trata de um fenômeno íntimo, entre a consciência do crente e Deus. 147 Esta Carta Magna também permitia a assistência religiosa nas expedições militares, sempre que esta foi solicitada. A esta disposição houve divergências, mas tal dispositivo pretendeu ser mantido com base no princípio do direito individual que garante a liberdade de consciência dos cidadãos, quando estando, momentaneamente, privados de ir aos templos podem solicitar a assistência dos seus chefes espirituais. A Constituição da República já havia secularizado os cemitérios, o que foi mantido na Carta de 1934, determinando que os cemitérios tenham caráter secular e que seriam administrados pela autoridade municipal, mas que seria livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos crentes. Não seria justo e nem eqüitativo, diante da liberdade de culto, impedir que as famílias religiosas depositem os despojos de seus membros em terras santificadas pela bênção da religião, conforme os ritos de suas igrejas. No que diz respeito ao casamento a referida Constituição determinava que: 147 SCAMPINI, Pe. José. A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 156-158. O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento celebrado perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição, sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no obrigatório. registro A lei civil. O registro estabelecerá será gratuito penalidades para e a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento. No início, o casamento era considerado uma instituição de origem divina e o exercício das cerimônias nupciais constituíam privilégios do sacerdócio. Mas, a Revolução Francesa transformou o matrimônio em simples contrato e estabeleceu o casamento civil. Na monarquia brasileira, o regime legal do casamento era regulado pelo direito canônico. A República instituiu o casamento civil obrigatório em todo o território nacional. Mas, manteve a indissolubilidade do mesmo. Com relação ao ensino religioso, este se tornou facultativo, mas deveria ser ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis. Portanto, nessa Constituição verifica-se o caráter de neutralidade do Estado brasileiro com relação à religião. 3.3.2 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1937 A Carta Magna de 1937 foi outorgada no golpe de Estado a 10 de novembro, em plena campanha presidencial pelo próprio chefe do Governo, Getúlio Vargas. Conhecida vulgarmente como “a polaca”, por ter tido inspiração na Constituição da Polônia, esta Carta Magna só chegou a ser executada nas partes em que conduzia ao paroxismo o poder presidencial, com a substituição do Congresso nela mesma instituída pela competência legisferante do Ditador. A Constituição de 1937, com relação ao laicismo de Estado repetiu o mesmo dispositivo de separação da Igreja e do Estado, suprimindo a cláusula introduzida na Constituição de 1934 (sem prejuízo da colaboração recíproca). Assim, esta Constituição retornou a 1891 no que diz respeito à laicidade de Estado. É interessante destacar que todas as Constituições brasileiras têm no preâmbulo a invocação ao nome de Deus, exceto as Cartas de 1991 e de 1937. A Carta de 1937 manteve a liberdade de culto, mas não a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, embora a liberdade de consciência constitua o fundamento da liberdade de culto. Com relação ao ensino religioso, foi mantido como facultativo, mas enfatizou-se que não poderia constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, e tampouco de freqüência obrigatória por parte dos alunos. 3.3.3 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1946 Esta Constituição, promulgada pelo sucessor de Getúlio Vargas, em 18 de setembro representou um progresso no caminho da liberdade religiosa. Inicialmente, são reafirmados dois princípios: o da separação ou independência do Estado da Igreja e o da colaboração do Estado com a Igreja visando ao bem comum. Além disso, foi vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o lançamento de impostos sobre os templos de qualquer culto, desde que as suas rendas fossem aplicadas integralmente no País. Dessa forma, a Constituição procurou protegê-los, preservá-los e encorajá-los pelos meios mais eficazes de que dispunha. A posição neutra do Estado surge, porém atenuada com relação a 1891, pois em seu preâmbulo invoca o nome de Deus; admite a colaboração recíproca, a assistência religiosa às forças armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva. Além disso, as associações religiosas passam a ter permissão de manter cemitérios particulares e acolhe a reivindicação tipicamente católica da indissolubilidade do casamento. Também torna inviolável a liberdade de consciência e de crença. Portanto, muitos dos dispositivos dessa Constituição relativos ao exercício da liberdade religiosa repetem os dizeres da Carta de 1934. 3.3.4 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 A Constituição de 1967, que começou a vigorar com o Mal. Costa e Silva, sofreu a Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, promulgada pelos três Ministros das Forças Armadas que substituíram o presidente impedido de governar por motivos de saúde. Na referida Emenda Constitucional, o princípio da separação da Igreja do Estado é afirmado nos mesmos termos das Constituições anteriores, com a proibição de estabelecer, subvencionar ou embaraçar os cultos religiosos e de manter com eles relação de dependência ou aliança. Assim, novamente é expresso o princípio da colaboração afirmado em 1934 e em 1946. No entanto, explicita os setores onde pode ocorrer essa colaboração (educacional, assistencial e hospitalar). Por outro lado, as Constituições anteriores falam apenas em não ter relações de dependência ou aliança com os cultos. Nesta, foram incluídos os representantes, cujo acréscimo constitui uma restrição à autoridade da Igreja Católica. Deve-se observar que a atuação da Igreja na questão social ou no problema do desenvolvimento tem sido marcante, no Brasil, o que na época causou dissensões esporádicas entre o Estado e a Igreja. Também sofreu restrição o princípio da colaboração, a qual se deu pela adição de “na forma e nos limites da lei federal”. É garantida a liberdade de consciência e o exercício dos cultos religiosos, desde que não contrariem a ordem pública e os bons costumes. Mas estabelece que “não será autorizada a publicação de pronunciamentos que envolvam ofensas às Instituições Nacionais, propaganda de guerra, de subversão, de ordem política ou social, de preconceitos e raça, de religião ou de classe”. Esse limite revela a característica dessa Constituição, ou seja, a de liberdade com autoridade. Com relação à família, essa Carta Magna, estabelece que a mesma é constituída pelo casamento e que tem direito à proteção dos Poderes Públicos. O casamento indissolúvel é mantido. 3.3.5 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na Constituição de 1988 O art. 5º da Constituição Federal de 1988 traz dispositivos sobre liberdade religiosa, estabelecendo no inciso VI que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”; no inciso VII dispõe que “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”; e no inciso VII, estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Até o advento da Constituição Federal de 1988, os pilares do Direito Civil estavam centrados na propriedade e no contrato. Com a nova Carta Magna, as categorias jurídicas pré-constitucionais entraram em choque com as recém-criadas, cuja ênfase e preocupação eram com a preservação da dignidade da pessoa humana. Isto fez com que fossem revistos as regras e institutos do Direito Civil, a partir de uma despatrimonialização e de uma ênfase na pessoa humana, ou seja, na compreensão da dignidade como essência do sujeito e, conseqüentemente, das relações jurídicas. Hoje, a família é núcleo descentralizado, igualitário, democrático e, não necessariamente, heterossexual. Trata-se de uma entidade de afeto e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma legal regulamentador a Constituição de 1988. 148 148 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 19-34. De acordo com Gustavo Tepedino, do exame dos artigos 226 a 230 da Constituição Federal vigente se verifica que: o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de proteção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada, à dignidade dos seus membros. 149 Ao eleger como princípio fundamental a dignidade humana, de forma revolucionária, a Constituição de 1988 alargou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros e descendentes, sejam estes frutos de casamento ou não. 150 Assim sendo, a entidade familiar deve, efetivamente, promover a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentidos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade. 151 149 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 349. 150 FARIAS, op. cit. p. 19-34. 151 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 19-34. p. 23. 4 A LIBERDADE RELIGIOSA E CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 4.1 OS LIMITES DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 NA CODIFICAÇÃO DE CLÓVIS BEVILÁQUA O Código Civil brasileiro de 1916, criado sob grande influência napoleônica, veio substituir as leis esparsas de origem portuguesa. Naquela época significou um grande avanço, se comparado com a legislação anterior, quando designou à mulher o direito de assumir, com o casamento, os apelidos do marido e a condição de consorte e companheira, além de conferir o direito de dispor livremente do produto de seu trabalho, o que até então era desconhecido pela lei. Esse diploma legal refletiu o contexto histórico-cultural de sua época, o Século XIX, tendo como valores fundamentais o individualismo e o liberalismo. De acordo com Francisco Amaral, na família, o patriarcalismo doméstico traduziu no absolutismo do poder marital e no do pátrio poder. Como princípios dominantes nas suas disposições encontravam-se 152: a) O casamento civil como base da família legítima (Constituição de 1891, art. 72, § 4º; Código Civil, art. 229), passível de dissolução apenas 152 AMARAL, Francisco. Direito constitucional: a eficácia do Código Civil brasileiro após a Constituição Federal de 1988. In: PEREIRA: Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 309-323. com a morte de um dos cônjuges, sendo a indissolubilidade do casamento elevada a princípio constitucional (art. 124 da Constituição de 1937; art. 163 da Constituição de 1946; art. 167, da Constituição de 1967; e art. 175, § 1º da Constituição de 1969); b) A desigualdade dos cônjuges e o poder marital (arts. 233 e 242, CC), atribuída ao marido a chefia da sociedade conjugal e, conseqüentemente, a representação legal da família, a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que lhe competir, o direito de fixar o domicílio da família e o direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal; c) A condenação do concubinato (arts. 1.177; 1.179, III; 248, IV do Código Civil), prevista no Direito anterior (Ordenações, 4, 66); d) A incapacidade relativa da mulher casada (art. 6º, III, Código Civil); e) Estatuto jurídico diverso para os filhos adotivos (arts. 377 e 1065, § 2º, Código Civil), sendo que o filho adotivo que concorresse, na sucessão hereditária, com os filhos legítimos, supervenientes à adoção, teria direito apenas à metade da herança cabível a cada um destes; f) Desigualdade dos filhos quanto à sua legitimidade (arts. 332, 337 e 347 do Código Civil), não podendo ser reconhecida a prole adulterina ou incestuosa (art. 358, Código Civil). Só seriam legítimos os filhos havidos na constância do casamento. Observa-se, portanto, que as tradições jurídicas reinantes no Direito Brasileiro, estavam impregnadas dos princípios do Direito Canônico, que se inspirava, por sua vez, no canone duo in carne una (“os dois cônjuges numa só carne”), como fundamento da “união eterna”, consagrada por Deus, ou seja, a “indissolubilidade do vínculo matrimonial” 153. Marco Aurélio S. Viana explica que a Igreja Católica repudiava as inovações trazidas pela República, como a lei do casamento civil, a retirada das imagens dos edifícios públicos, entre outras. A perda do poder político levou a Igreja a buscar o fortalecimento do poder espiritual, mas nessa área, protestantismo, do encontrava forte positivismo, do oposição liberalismo da e maçonaria, do do materialismo. Entretanto, seu apelo junto às massas populares manteve-se forte e refletiu no Direito de Família, no qual se observa a influência do Direito Canônico. 154 4.2 AS INOVAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 A modificação, tanto da sociedade, como do Estado refletiram no desenho jurídico da família. acentuada 153 154 preocupação A Constituição Federal de 1988 demonstrou com o social, o que resultou na SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 7. VIANA, Marco Aurélio S. Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 2. maior intervenção nas relações sociais, as quais foram também sentidas na esfera da família, tendo ocorrido a ampliação da tutela a situações anteriormente não protegidas. 155 A referida Carta Magna trouxe a modificação ao estender a proteção do Estado à entidade familiar decorrente da união estável entre o homem e mulher e à comunidade formada por quaisquer dos pais e seus descendentes, ampliando o conceito de família antes decorrente exclusivamente do casamento 156. O Código Civil de 2002 veio consolidar as inovações feitas pela Constituição Federal de 1988, as quais serão tratadas a seguir. O Direito de Família foi o instituto que mais sofreu alteração no mundo jurídico nos últimos anos, gerando efeitos devastadores numa ordem jurídica que se pretendia perenizar pela tradição, pela ordem natural dos fatos e, principalmente, pela influência do Direito Canônico que durante muitos séculos exerceu a hegemonia para tratar dos 155 CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: PEREIRA: Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 485-511. 156 O Título VIII – “Da Ordem Social”, Capítulo VII – “Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso”, art. 226, estabelece a Constituição Federal de 1988: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1° O casamento é civil é gratuita a celebração. § 2° O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3° Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4° Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. assuntos relacionados à família, quer no seu aspecto teológico ou jurídico. A humanidade mudou e como era de se esperar a sociedade brasileira também sofreu profundas mudanças após o advento do nosso Código Civil de 1916 e as pressões internas e externas foram sendo transformadas em verdadeiros reclamos por mudanças generalizadas, mas principalmente no âmbito do Direito de Família. Tais reclamos foram se transformando em grandes volumes de águas a provocar o rompimento dos diques do sistema codificado. Tais mudanças acabaram por criar um fenômeno de transição de monossistema codificado para um plurissistema de legislação a orbitar em torno do Código Civil. Como exemplo pode-se citar a Lei 4.121 de 1962 (Estatuto da Mulher Casada); Lei 6.515 de 1977 (Lei do Divórcio); Lei 8971 de 1994 (União Estável) e outras. Todavia o que mais chama a atenção é a inserção de dois singelos artigos na Constituição de 1988, os arts. 226 e 227, que aliados a uma gama de legislação esparsa no Direito de Família, retirou o velho Código Civil de sua posição centralizadora. Agora não só os micros sistemas, mas de forma contundente a própria Constituição acabaram por colidir frontalmente com o Código de 1916. Em razão disso, diversos institutos passaram a ser regulados pela Constituição, por exemplo, a propriedade e sua função social; os contratos e o Direito de Família que acabam imigrando do Código para a Constituição. A sociedade é dinâmica. Os fatos e o comportamento humano mudam com uma velocidade jamais vista. Ao processo de transmutação do Direito de Família do Código para Constituição, denominado por Edson Luiz Fachin de travessia de um caudaloso rio com muitos percalços, mas necessário porque os novos fatos reais e concretos do dia a dia não podem ficar à deriva em um oceano de leis que já não mais atende os seus reclames. 157 É exatamente em decorrência das mudanças comportamentais da sociedade que desde 1975 teve início o trabalho de reformas com vistas ao novo Código Civil que entrou em vigor a partir de janeiro de 2003. 4.2.1 Ampliação do conceito de família Na evolução da família, segundo Levy Bruhl apud Orlando Gomes, é predominante a tendência de “se tornar um grupo cada vez menos organizado e hierarquizado e que cada vez mais se funda na afeição mútua”. Essa tendência se reflete no campo do Direito de Família determinando a modificação de conceitos jurídicos básicos e a substituição de princípios fundamentais. 158 157 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado: direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003. 158 GOMES, Orlando. Direito de família. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 21. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §§ 3º e 4º, inovou o conceito de família, que pode ser entendida como: a) conjunto de pessoas unidas pelo casamento (cônjuges e filhos); b) conjunto de pessoas unidas em união estável (entidade familiar); c) conjunto de pessoas formado monoparental). por um só dos pais com sua prole (família Tem-se, portanto, que esta ampliação do conceito de família enfoca o casal, noção que sobrepõe à de cônjuges, para envolver todas as entidades familiares. Ainda, destaca-se no plano constitucional, o compromisso do Estado brasileiro com a especial proteção da família, base da sociedade, nele incluindo o conceito de entidade familiar decorrente da união estável entre o homem e a mulher ou da comunidade entre qualquer dos pais e seus descendentes. 159 Além de ampliar o conceito de família, a Carta Magna vigente trouxe três grandes alterações, as quais se refletiram diretamente no novo Código Civil, verificando-se adaptações do legislador infraconstitucional ao texto constitucional. Tais adaptações são as seguintes: a) igualdade entre os cônjuges; b) igualdade entre os filhos; e c) união estável. 159 SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Família & sucessões. São Paulo: Barros, Fisher & Associados, 2005. p. 15-16. 4.2.1.1 Igualdade entre os cônjuges Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 5º, CF). O princípio da igualdade jurídica entre os cônjuges e dos companheiros, que envolve direitos e deveres, revolucionou o governo da família organizada sobre a base patriarcal. Com esse princípio desaparece o poder marital e a autocracia do chefe de família é substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre conviventes ou entre marido e mulher. 160 O patriarcalismo não mais se coaduna com a época atual e tampouco atende aos anseios do povo brasileiro. Por essa razão, o poder do marido é substituído pela autoridade conjunta e indivisa, não se justificando mais a submissão legal da mulher. 161 O Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62), ainda que tenha dado nova redação ao artigo 233 do Código Civil de 1916, fez subsistir a hierarquia na sociedade conjugal. Ressalte-se que antes da referida lei, cabia ao marido, com exclusividade, a chefia da família. 162 160 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 18. 161 Ibid. p. 18. 162 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.p. 86-88. O art. 1.511 do Código Civil de 2002 prevê: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. A igualdade jurídica dos cônjuges é um transcurso de conquistas históricas da condição feminina. Como os fatos acabam se impondo perante o Direito e a realidade acaba desmentindo esses mesmos códigos, mudanças e circunstâncias mais recentes têm contribuído para dissolver a “névoa de hipocrisia” que encobre a negação de efeitos jurídicos à orientação sexual. Estas transformações decorrem, entre outras motivações, da alteração da razão de ser das relações familiares, que passaram a dar origem a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma história comum, sob o signo da igualdade. 163 4.2.1.2 Igualdade entre os filhos Na definição de Maria Helena Diniz, "filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida". 164 Pontes de Miranda, por sua vez, sustenta que a filiação é 163 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado: direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003. p. 29.. 164 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 372. a relação que o fato da procriação estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascidas da outra, chama-se paternidade, ou maternidade, quando considerada com respeito ao pai, ou à mãe, e filiação, quando do filho para qualquer dos genitores. 165 Filiação é um conceito relacional: é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai ou mãe). 166 O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele. 167 Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, o Direito, em matéria de filiação, sempre se valeu de presunções, seja pela dificuldade natural em se atribuir a paternidade ou maternidade a alguém, seja pelas dificuldades fundadas em preconceitos históricos decorrentes da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada. Dessa forma, tem-se: a) presunção pater is est quem nuptia demonstrant (pai é aquele que o prova pelo contrato nupcial), a qual impede que se discuta a origem da filiação se o marido da 165 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000. v. 9. p. 45. 166 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4752>. Acesso em: 4 dez. 2006. 167 Ibid. mãe não negar em curto prazo preclusivo; b) a presunção mater semper certa est (a mãe é sempre certa), que impede a investigação de maternidade contra mulher casada; c) a presunção de paternidade atribuída ao que teve relações sexuais com a mãe, no período da concepção; d) a presunção de exceptio plurium concumbentium, que se opõe à presunção anterior; e) a presunção de paternidade, para os filhos concebidos 180 dias antes do casamento e 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal, entre outros. 168 A presunção pater is est (pai é aquele) merece destaque especial pelo fato de persistir dúvida quanto a sua permanência após a Constituição de 1988. Por muito tempo, os povos do sistema jurídico romano encerraram a incerteza da paternidade, valendo-se dessa presunção prática. 169 A presunção supõe que a maternidade é sempre certa e o marido da mãe é, normalmente, o pai dos filhos que nasceram da coabitação deles. No entanto, a presunção pater is est não soluciona o problema mais comum que é o da atribuição da paternidade, quando não houve nem há coabitação. A presunção fazia sentido quando a filiação biológica era determinante, no modelo patriarcal. 170 168 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>/ doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 4 dez. 2006. 169 Ibid. p. 2. 170 Ibid. p. 2. Os laços afetivos que se constroem entre pais e filhos não dependem da imposição da natureza (origem biológica) ou de imposição da lei. Além disso, por sua própria natureza, a presunção parte da exigência da fidelidade da mulher, pois a do marido não é necessária para que ocorra. Esta circunstância incompatibiliza-se com o art. 5º da Constituição de 1988, para a qual “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. 171 Ainda de acordo com Paulo Luiz Lôbo, os tribunais, baseados nos princípios constitucionais e no art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente 172, têm entendido que os filhos podem, a qualquer tempo, pleitear a paternidade que imputam a alguém, não prevalecendo a presunção pater is est nem o registro público do nascimento. No Código Civil de 1916, a filiação legítima tinha por base o casamento dos pais quando da concepção, ou seja, a fonte da legitimidade era o casamento válido ou o casamento putativo. Assim, o art. 337 do antigo Código dispunha que eram legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou mesmo 171 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>/ doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 4 dez. 2006. 172 “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescindível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”. nulo, se contraído de boa-fé. O casamento subseqüente tinha o objetivo também de legitimar os filhos havidos pelo casal. 173 De fato, o Código de 1916 estabeleceu uma verdadeira hierarquia entre as formas de filiação, dependendo de sua origem, de modo que, doutrinariamente, se criou a grande divisão entre a filiação legítima (filhos havidos na constância do casamento) e ilegítima e, dentro da segunda classe, a filiação natural (filhos havidos entre pessoas não casadas, mas sem impedimento para o matrimônio) e a espúria (filhos adulterinos e incestuosos). No entanto, a Constituição de 1988, vedou qualquer qualificação relativa à filiação, encontrando-se no art. 227, § 6º a seguinte disposição: “Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim, a expressão “filiação legítima” seria substituída pela expressão “filiação matrimonial” que é aquela que se origina na constância do casamento dos pais, ainda que anulado ou nulo (CC, arts. 1.561 e 1.617). Dessa forma, o casamento dos genitores deve ser anterior não só ao nascimento do filho, como também à sua própria concepção. Logo, em princípio, o momento determinante de sua filiação matrimonial é o de sua 173 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 267. concepção. Entretanto, pode ocorrer que o filho seja concebido antes e nascido depois da celebração do casamento, sem que por isso deixe a filiação de ser matrimonial. Presume-se serem concebidos na constância do casamento filhos nascidos 180 dias após o estabelecimento da convivência conjugal ou dentro de 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal (CC, art. 1.597, I e II). Portanto, a lei determina o período no qual começa e termina a presunção da paternidade, considerando uma dupla presunção: a de coabitação e fidelidade da mulher e a de reconhecimento implícito e antecipado da filiação feito pelo marido ao se casar, ou ainda, havida por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, por inseminação artificial heteróloga, realizada com a anuência do marido e pro fertilização in vitro, se era embrião excedentário, oriundo de concepção artificial homóloga (CC, art. 1.597, III a V). 174 Também será matrimonial o filho que veio à luz após a dissolução ou anulação do casamento, mas tendo sido concebido durante este, ou se foi concebido antes de celebrado o ato nupcial, apesar de ter nascido durante o casamento. Portanto, a filiação matrimonial é a concebida na constância do matrimônio, seja ele válido, nulo ou anulável, ou, em certos casos, antes da celebração do casamento, porém, nascida durante a sua vigência, por reconhecimento dos pais (CC, art. 1609, I). 175 174 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 381-382. 175 Ibid. p. 383. Observa-se que não, necessariamente, a filiação decorre de união sexual, pois pode vir de inseminação artificial homóloga (CC, art. 1.597, III), em que o doador do sêmen é o próprio marido; ou inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, IV); ou ainda, de fertilização in vitro ou proveta (CC. Art. 1.597). Neste último caso, pode surgir a dúvida sobre quando, realmente, começou a vida legal: se no ato da fertilização na proveta, no momento da implantação do óvulo no útero ou no instante em que o feto se movimentou. Perante o art. 2º do Código Civil, 2ª Parte, o início legal da personalidade jurídica é o da penetração do espermatozóide no óvulo, embora fora do corpo da mulher, já que se põem a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 176 É importante destacar que o art. 1.596, do Código Civil de 2002, dispõe que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. 4.3 CASAMENTO O casamento é definido por Silvio Rodrigues como o “contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da 176 DINIZ, op. cit. p. 379. mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência”. 177 Verifica-se, portanto, que a doutrina acolhe a origem canônica da feição contratual do casamento, e a esse respeito Orlando Gomes afirma: A concepção contratual do matrimônio provém do direito canônico, que valoriza o consentimento dos nubentes relegando a plano secundário, na formação do vínculo, a intervenção do sacerdote. Na sua origem, como na sua essência, o casamento é, para a Igreja, um contrato. A Escola do Direito Natural acolheu essa concepção definindo o casamento como contrato civil, despido de suas vestes religiosas. Sob sua influência, as legislações passaram, a partir do Código de Napoleão, a discipliná-lo como negócio jurídico contratual. 178 Assim, o casamento se configura em uma união formal, sendo que as formalidades preliminares e solenidade concomitante à celebração reúnem-se em um ato que se consolida e prova-se, nos termos do Código, prioritariamente pelo viés formal, secundariamente pela posse de estado de casados. 179 177 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 6. p. 19. 178 GOMES, Orlando. Direito de família. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 57. 179 FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado: direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003. p. 29. 4.3.1 Casamento civil e religioso A rigor, só há um tipo de casamento válido, a modalidade de casamento civil, o qual se desdobra em duas formas: o casamento civil propriamente dito, que é aquele realizado exclusivamente perante a autoridade do Estado e o casamento religioso com efeitos civis. 180 Explica Caio Mário da Silva Pereira que a lei reconhece a validade e efeitos civis do casamento celebrado perante autoridade eclesiástica, quando os nubentes promoverem o processo de habilitação perante o Oficial do Registro, que na conformidade do que dispõe o Código Civil, lhes passará a certidão competente, a ser arquivado pela autoridade celebrante. Realizado o casamento, qualquer interessado poderá requerer a inscrição do ato religioso no Registro. 181 A grande inovação na matéria, segundo esse autor, é a habilitação a posteriori, dos casamentos oficializados sem a prévia habilitação civil: os nubentes requerem a inscrição apresentando a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo art. 1.525 do Código Civil. 182 Assim, o Código Civil de 2002, nos artigos 1.515 e 1.516, integra o casamento religioso na sua sistemática. Mas, para que gere efeitos civis, o casamento deverá ser celebrado segundo uma seita religiosa Mário da Forense, Mário da Forense, Silva. 2004. Silva. 2004. Instituições de direito civil: direito de família. 14 p. 69. Instituições de direito civil: direito de família. 14 p. 69. 180 Ibid. p. 33. PEREIRA, Caio ed. Rio de Janeiro: 182 PEREIRA, Caio ed. Rio de Janeiro: 181 reconhecida e deverá atender às exigências formais e substanciais impostas para a validade do casamento civil. O prazo para o registro é de noventa dias a partir de sua realização, mediante a comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que tenha sido homologada a habilitação (art. 1.526). Observa Maria Helena Diniz que considerando desaconselháveis as duplas núpcias e tendo em vista os sentimentos religiosos da população brasileira 183, a Constituição de 1934, em seu art. 146, possibilitou que se atribuísse ao casamento religioso efeitos civis desde que observadas as prescrições legais. A Lei n. 379/1937, que regulamentava a matéria, foi mais tarde, parcialmente, modificada pelo Decreto-Lei n. 3.200/1941, arts. 4º e 5º. 184 A Constituição de 1946, no art. 163, § 1º, manteve a concessão anterior, condicionando-a à observância dos impedimentos e às prescrições da lei, se assim o requeresse o celebrante ou qualquer interessado, com inscrição do ato no Registro Público. Em 1950, a Lei n. 1.110 regulamentou por completo o reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso, quando os nubentes requeressem sua inscrição no Registro após sua realização, revogando a Lei n. 379 por inteiro. 185 183 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 6. p. 65. 184 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 54. 185 Ibid. p. 54. A Constituição Federal de 1967, com redação da Emenda Constitucional n. 1/69, no art. 175, §§ 2º e 3º, manteve o casamento religioso com efeitos civis. A matéria do registro do casamento religioso para efeitos civis foi disciplinada nos arts. 71 a 75 da Lei n. 6.015/73 e, em 2002, no Código Civil. No entanto, o povo brasileiro insiste em continuar com os dois casamentos, civil e religioso, sendo raros os casos em que se usa o matrimônio religioso nos dois efeitos: eclesiástico e civil. 186 Entretanto, deve-se mencionar que, especificamente, a Igreja Católica exige entre outros documentos, a certidão de habilitação fornecida pelo Cartório de Registro Civil. 4.3.2 Formalidades O art. 1.512 do Código Civil brasileiro vigente determina que o casamento é civil e sua celebração é gratuita, segundo o disposto na Constituição Federal, art. 226, § 1º. O parágrafo único desse mesmo artigo do Código Civil especifica que a habilitação para o casamento, o devido registro e a primeira certidão serão isentos de selos, emolumentos e custas, para as pessoas cuja pobreza for declarada, sob as penas da lei. O art. 1.513 proíbe que qualquer pessoa, de Direito Público ou 186 Ibid. 5. p. 54. Privado, venha a interferir na comunhão de vida instituída pela família, complementando o sentido da norma do art. 1.511. Das formalidades preliminares do casamento, mais propriamente do processo de habilitação, trata o art. 1.522, do Código Civil vigente, em seus vários incisos e artigo seguinte. Assim, antes que se realize o casamento, é necessária a apresentação de provas de que os pretendentes estão aptos para casar, ou porque já têm a idade mínima para o ato ou negócio jurídico, ou porque, se são menores e estão sob o poder familiar, têm o consentimento de seus pais; ou ainda, porque inexiste parentesco em grau aproximado entre os precedentes etc. É necessário, portanto, que se faça essa verificação, durante o processo de habilitação. 187 É importante destacar que as formalidades preliminares do casamento visam também tornar pública a próxima realização do matrimônio, a fim de que se possibilite a oposição de impedimentos ou de causas suspensivas, se houver, matéria de grande interesse social. Se o casamento fosse realizado sem tais formalidades, sem a publicação de edital, a portas fechadas, não haveria possibilidade de alguém levar ao conhecimento da autoridade que os pretendentes não poderiam casar-se por determinado motivo. 188 187 BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 66. 188 BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 66. Para a habilitação, os nubentes devem apresentar os seguintes documentos, conforme estabelecido no art. 1.525, do Código Civil de 2002: certidão de nascimento ou documento equivalente; autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra (menores de 16 anos); declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existirem impedimentos que os iniba de se casar; declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio. 189 Explica Maria Helena Diniz que o Código Civil vigente não trata, expressamente, das condições indispensáveis à existência jurídica do casamento, por entender desnecessária a sua enumeração, uma vez que concernem aos elementos naturais do matrimônio. O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes (art. 1.514, CC). 190 189 Ibid. p. 66-70. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 55. 190 4.3.3 Impedimentos matrimoniais Desde o Direito Romano são apontados motivos de proibição para o matrimônio. O Direito Canônico vendo no casamento um ato de importância capital para o indivíduo e para a sociedade, construiu com eles a teoria dos “impedimentos matrimoniais”. A elaboração canônica de uma teoria proporcionou certa uniformidade aos sistemas jurídicos ocidentais, especialmente nos países de formação romano-cristã, como Brasil, França, Alemanha, Itália, Suíça, Portugal, Argentina, entre outros, de como nos de Common Law, como a Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, entre outros. 191 De acordo com Caio Mário da Silva Pereira, na primeira ordem dos impedimentos estão aqueles que, por motivos de moralidade social, a ordem jurídica inscreve como portadores de maior gravidade, envolvem causas que condizem com a instituição da família e a estabilidade social. Por esta razão, sua existência pode ser acusada por qualquer pessoa e pelo Ministério Público na sua qualidade de representante da sociedade. O matrimônio celebrado com a sua infração é nulo. Tais impedimentos são em número de sete (art. 1.521, n. I a VII), compreendendo três categorias jurídicas: a) incesto (impedimentum consaguinitatis) – incisos I a V, impedimentos resultantes do parentesco (impetimentum ligaminis seu 191 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 79. vinculi); b) impedimento resultante de casamento anterior – inciso VI; e c) impedimento decorrente de crime (impedimentum criminis) – inciso VII. 192 Não podem casar os ascendentes com os descendentes em qualquer grau, ligados diretamente pela consangüinidade ou pela adoção (art. 1.521-I). O impedimento por afinidade (art. 1.521-II) deve limitar-se ao primeiro grau, já que afinidade não gera afinidade. O direito pátrio atual não cogita o chamado “parentesco espiritual”, originário do batismo, que, anteriormente e sob fundamento canônico, impedia o casamento do padrinho com sobrinha, e entre os pais do batizado e os padrinhos. O matrimônio entre irmãos, unilaterais ou bilaterais e demais colaterais, até o terceiro grau, inclusive, foi proibido pelo art. 1.521-IV. No caso de adoção também há impedimento da mesma forma que na família biológica, não podendo o adotante contrair matrimônio com o adotado (art. 1.623). Como no mundo ocidental predomina o tipo familiar monogâmico, constitui impedimento a existência de um casamento anterior (art. 1.521VI). A proibição, que vigora enquanto o matrimônio anterior subsistir, desaparece com a sua dissolução pela morte do outro cônjuge ou por decreto judicial de anulação ou nulidade e, ainda, na hipótese de divórcio. Também é proibido o matrimônio ao cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte 192 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 82. (art. 1.521-VII). Deve-se destacar que aqui o que caracteriza o impedimento é a condenação, não bastando mera acusação ou o processo. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o Código Civil simplificou o sistema de oposição de impedimentos em seu art. 1.522, que estabelece que “podem ser opostos por qualquer pessoa capaz”, em qualquer fase do processo de habilitação, e até o momento da celebração do matrimônio, independente se realizada por juiz, no casamento civil, ou por ministro celebrante no casamento religioso. Sobre as causas suspensivas explica Caio Mário da Silva Pereira que estas integravam o que na doutrina canônica e também no Código Civil brasileiro de 1916 se designava de “impedimentos impedientes”, ou seja, que “não podem casar”, mas que não levavam à invalidade do matrimônio, porém, sujeitavam o infrator a certas penalidades. No Código de 2002 são enunciados como conselhos (não devem casar), não trazem efeito suspensivo. Assim, as causas suspensivas não têm por efeito a invalidade do casamento, mas impõem a sanção de vigorar o regime de separação de bens, como é o caso das pessoas maiores de sessenta anos (art. 1.641-II). 193 Assim, o art. 1.523-I veda o casamento ao viúvo ou viúva que tenha filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do extinto casal e der partilha aos herdeiros (art. 183-XIII, do Código de 193 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 92. 1916). A lei visa, nesse caso, a evitar que se confunda o patrimônio em que são interessados os filhos do primeiro casamento com o que vai constituir o substrato econômico da nova sociedade conjugal. O art. 1.523-II do novo Código recepcionou duas situações previstas no Código de 1916 como impedimentos impedientes: “Não devem casar a viúva ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez ou da dissolução da sociedade conjugal”. Em outros termos, tendo sido dissolvido o casamento, pela nulidade, anulação ou pela morte do marido, a mulher não pode contrair novas núpcias, antes de decorridos dez meses. Essa restrição visa a evitar a turbatio sanguinis (mistura de sangue), que fatalmente ocorreria, tendo em vista que se presumiria filho do falecido aquele que nascesse até trezentos dias da data do óbito ou da sentença anulatória ou que declare nulo o casamento. Igual presunção atribuiria a paternidade ao segundo marido quanto ao filho que nascesse até cento e oitenta dias depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 1.597-I). No entanto, deve-se abrir exceção para o caso de ser o casamento anterior anulado por impotência, desde que absoluta e anterior ao matrimônio ou quando resulta evidente a impossibilidade física de coabitação entre os cônjuges. A sanção imposta ao infrator destas disposições é a separação de bens no casamento. Mas, o juiz poderá autorizar o casamento se a nubente provar o nascimento do filho ou inexistência da gravidez. O art. 1.523-III determina restrição especial ao casamento do divorciado “enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal”. De acordo com Caio Mário da Silva Pereira essa regra contrasta com a Súmula 197 do STJ que autoriza a concessão do divórcio direto sem a prévia partilha de bens. Independentemente das contradições que envolvem a partilha de bens na separação judicial (art. 1.575) e no divórcio (art. 1.581) aplica-se, nesta hipótese, a separação de bens no casamento (art. 1.641-I). No entanto, também é admitida a autorização para o casamento se o nubente provar a inexistência de prejuízo para ele e para os filhos (art. 1.523). 194 O art. 1.523-III estabelece que “o tutor ou curador, e os ascendentes, descendentes, cunhados e sobrinhos de um ou de outro não podem casar com o tutelado ou curatelado, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas”. Nesse caso, trata-se de defender o incapaz contra o administrador de seus bens que procure em um casamento o meio de se livrar da prestação de contas. Ainda é importante destacar que o parágrafo único do art. 1.523 do Código Civil acrescentou a possibilidade de os nubentes solicitarem ao juiz que não sejam aplicados os efeitos das causas suspensivas, se estiverem presentes determinados requisitos. 194 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 94. 4.3.4 Dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial O art. 2º da Lei n. 6.515/77, que substituiu a regra do art. 315 do Código Civil de 1916, determinou que a sociedade conjugal termina: pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial ou pelo divórcio, observando que o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. A expressão “desquite” foi introduzida no Direito Brasileiro com o Código Civil de 1916. O Decreto n. 181/1890, que instituiu o casamento civil, utilizava a palavra “divórcio”, apesar de não o admitir com o efeito de romper o vínculo conjugal. Assim, o referido Código nada inovou, a não ser o nome do instituto. Essa palavra “desquite” serviu para distinguir a separação judicial de corpos e de bens, a única admitida no direito brasileiro de então, do instituto do divórcio com dissolução do vínculo conjugal e possibilidade de novo matrimônio aos divorciados, permitido, na época, em quase todos os países do mundo, mas não admitido no direito pátrio. 195 A legislação brasileira só foi admitir o divórcio a partir de 1977, cuja mudança ocorreu em duas fases, com a primeira representada pela Emenda Constitucional n. 9, que pôs termo à indissolubilidade do vínculo e completada pela Lei n. 6.515/77, que regulamentou o divórcio em duas 195 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 225-226. hipóteses: a) conversão da separação judicial em divórcio; e b) após separação de fato por mais de cinco anos iniciadas antes de 28 de dezembro de 1977. A segunda fase veio com a Constituição de 1988, que ampliou, significativamente, o campo do divórcio, não apenas pela redução dos prazos para conversão da separação judicial em divórcio, mas também pela multiplicação dos casos de divórcio direto. 196 Assim, o art. 226, § 6º da Carta Magna ampliou as hipóteses de dissolução do casamento por divórcio, que são: a) após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, chamado de divórcio indireto; e b) comprovada a separação de fato por mais de dois anos, o que é chamado de divórcio direto. O Código Civil vigente trouxe a regulamentação das duas possibilidades no art. 1.580. Dessa forma, poderá ocorrer o divórcio indireto ou por conversão, após um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos. A sentença que decretar a conversão não fará menção à causa que determinou a separação. No caso do divórcio direto, poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, desde que comprovem a separação de fato por mais de dois anos. 197 196 Ibid. p. 227. SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Família & sucessões. São Paulo: Barros, Fisher & Associados, 2005. p. 62-63. 197 4.4 UNIÃO ESTÁVEL A Carta Magna de 1988 foi a primeira dentre as Constituições pátrias a estabelecer proteção efetiva às uniões estáveis. As anteriores apenas consideravam o casamento como base da sociedade. O Código Civil revogado, de 1916, nada tratou sobre o assunto, exceto para amparar o investigante de paternidade. 198 O Código Civil atual contempla a união estável, devido às inclusões e modificações introduzidas no Senado Federal, nos arts. 1.723-1.727, com poucas normas. Mas, mesmo assim há de ser aplicada em muitas outras situações em que se discute questões relativas ao casamento, por analogia, embora deva-se deixar claro não ter sido intenção do legislador assimilar, completamente, a união estável ao casamento, uma vez que a diretriz do art. 1.726 do estatuto civil, seguindo nesse ponto, o que já fazia o art. 8º da Lei n. 9.278/1996, permite a conversão da união estável em casamento. 199 Anteriormente, ao Código Civil de 2002, a Lei n. 8.871/94, conhecida como “Lei dos Companheiros”, reconheceu: a) o direito a alimentos, o direito sucessório e o usufruto de parte dos bens em caso de morte para aqueles que vivesse em união por mais de cinco anos ou com 198 BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 47. 199 BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 48. prole; b) fossem livres para essa união, isto é, viúvos, separados judicialmente ou divorciados. A Lei n. 9.278/96, conhecida como “Lei dos Conviventes”, reconheceu a presunção do esforço comum, isto é, de que os bens adquiridos na constância da união pertenciam aos dois, desde que tivessem o objetivo de constituir família, e previu o direito real de habitação, enquanto vivessem e não constituíssem nova união ou casamento. No entanto, não exigia prazo de cinco anos, tipo de união ou prole; e não se falava em pessoas desimpedidas. Assim, havia a necessidade de uma uniformização desses entendimentos, uma vez que até aquelas pessoas que viviam relações extramatrimoniais acabavam tendo seus direitos protegidos. Nesse sentido, o Código Civil de 2002, embora não tenha sido muito detalhista, reconheceu que a união estável não se constitui quando ocorrerem os impedimentos elencados no art. 1.521, com exceção do inciso VI, no caso de pessoa casada se estiver separada de fato ou judicialmente. Complementou, ainda, que não impedirão a caracterização da união estável as causas suspensivas do art. 1.523 e que o concubinato é a relação não eventual entre homem e mulher impedidos de casar (art. 1.727). Para se falar dos requisitos e elementos essenciais da união estável, considera-se interessante, antes distinguir as espécies de concubinato, que pode ser puro, impuro e desleal. O concubinato puro seria aquele que se identifica com a união estável e, portanto, deve gozar da proteção do Estado. Nesse caso, são chamados companheiros o homem e a mulher que não estão vinculados a outra pessoa por vínculo de sociedade conjugal e que aparecem na comunidade como se fossem casados, em uma comunhão de objetivos que pretende ser duradoura e constituindo-se numa família de fato que convive na sociedade com as famílias matrimoniadas, sem qualquer discriminação. Por outro lado, o concubinato impuro é aquele que não é, por limitação da norma constitucional, qualificável como entidade familiar. Este ocorre quando há vínculo de um dos integrantes, ou de ambos, numa ativa sociedade conjugal com terceiro, o que torna o seu concubinato adulterino. Observa-se que mesmo impuro, de acordo com as circunstâncias e da ruptura da vida em comum do casal, poderá haver direito de um dos participantes à partilha de bens. O concubinato desleal, que é duplo em relação a outro, como o homem já concubinado, mantém simultaneamente uma união também de fato, caracterizando o caso de concubinagem. Assim, diferencia-se a concubina da companheira, sendo esta aquela com quem o varão separado de fato da esposa, ou mesmo de direito, tem convivência more uxório 200, na qual anteriormente, tinha o 200 More uxório: costume de passar por esposa perante a comunidade. É o convívio como se fossem marido e mulher (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 156). direito de receber do companheiro a retribuição devida pelo serviço doméstico a ele prestado, como se fosse parte em um contrato civil de prestação de serviços 201, mas que hoje, com a nova lei, tal entendimento encontra-se superado; aquela seria a mulher com quem o cônjuge adúltero tem encontros periódicos fora do lar e, que tem o direito de partilhar com o companheiro o patrimônio que ambos formaram 202 . A partir das espécies de concubinato e sociedade de fato, pode-se aventar os seguintes pressupostos 203 exigíveis para caracterizar a união estável: estabilidade; ausência de sociedade conjugal ativa de quaisquer dos concubinos; coabitação; notoriedade; fidelidade e diversidade de sexos. Para se ter estabilidade devem ocorrer dois requisitos, o primeiro é um prazo razoável de convivência e o segundo é o da constância ininterrupta da convivência, para diferenciar esta união da precária, em que a pretensa estabilidade é confundida com a longa duração, apesar dos incidentes interruptivos dessa convivência e também da união clandestina, que não passa de mera prática de relações sexuais furtivas. A esse respeito, Belmiro Pedro Welter enfatiza que 201 Esse contrato é definido no art. 594, do Código Civil. De acordo com os arts. 981 e 987, do Código Civil e art. 1.287, VII do Código de Processo Civil e da Súmula 380 do STF. 203 Distingue-se “pressupostos” de “requisitos”, no sentido de que no caso de “pressupostos” todos devem ocorrer simultaneamente para configurar a situação, enquanto que no caso de “requisitos”, basta o cumprimento de um único deles para que se configure a situação. 202 a dispensa do prazo certo para o reconhecimento da união estável não autoriza que se possa ser reconhecida com poucos dias de convivência, sob pena de se outorgar os direitos das Leis da entidade familiar com um simples passeio de fim-de-semana. Inobstante a dispensa de prazo certo, deve haver prova segura de que tenha havido a ‘convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com o objetivo de constituição de família’ (art. 1° da Lei 9.278/96). A ausência de 204 sociedade conjugal ativa de quaisquer dos concubinos, constitui o requisito do concubinato puro, que se contrapõe ao adulterino. Sua exigência baseia-se em que o adultério eliminaria a eventual pretensão a direito decorrente de uma união ilícita e injurídica. Dessa forma, o concubinato impuro não se confunde com a união estável porque não se identifica como entidade familiar. Com relação ao período transcorrido na convivência, observa-se que a Lei n. 9.278/96, não estabelece um tempo mínimo de convivência e tampouco exige a ausência de impedimentos matrimoniais formais ou a dissolução formal da sociedade conjugal, utilizando-se, portanto, de conceitos relativamente abertos, que permitem a sua adequação ao caso concreto. 204 WELTER, Belmiro Pedro. Estatuto da união estável. Porto Alegre: Síntese, 1999. p. 52. Considerando que a exteriorização do concubinato stricto sensu é a aparência de casamento, requer-se, portanto, vida em comum sob o mesmo teto, Magalhães 205 como requisito da união estável. A esse respeito, salienta que não se concebe a idéia de um casal que pretendendo constituir família, resida cada um deles sob tetos diferentes. Porém, não se pode interpretar essa condição com absoluto rigor, porquanto situações existem que fazem com que um deles, ou ambos, tenham que se ausentar da residência por certo período, a trabalho ou estudo, por exemplo. Portanto, atualmente, um casal que vive em união estável pode não viver debaixo do mesmo teto, pois há situações como de trabalho ou de estudo que obrigam a ausência de um ou dos dois cônjuges na mesma residência. A notoriedade não decorre necessariamente de publicidade mas de ser pública no sentido de não sigilosa, ou seja, a união deve ser real, permitindo aos circunstantes do casal saberem dela. Se terceiros desconhecem a união, a Justiça não pode reconhecê-la. 205 MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo: Editora de Direito, 2000. p. 50. A fidelidade, de acordo com Segismundo Gontijo 206, obviamente que presumida, denota o ânimo para a estabilidade da união como se fosse um casamento por aparência. Não se trata de dever, cuja infração iria resultar em sanção como no casamento, por que neste há disciplina de direitos e deveres, inclusive o da fidelidade recíproca. Na união de fato, essa situação é apenas fática, sem disciplina legal. A ocorrência de infidelidade poderá causar a dissolução da união, mas não irá repercutir no direito adquirido durante a convivência até então estável, decorrente do concubinato ou da sociedade de fato. Mas, a esse respeito, Rui Ribeiro de Magalhães 207 salienta que “não há referência ao dever de fidelidade recíproca, como expressamente consta do Código Civil Brasileiro, o que não deve ser entendido como liberação dos costumes em face dos tempos modernos”. Esta, segundo esse autor, “continua a existir, situada dentro do princípio de respeito entre os conviventes”. Acerca da questão do respeito mútuo, Rui Ribeiro de Magalhães 208 explica que o legislador destacou a necessidade de valorização pessoal e moral dos conviventes, o afeto, a amizade, o respeito à integridade física e demais itens que venham a suavizar as dificuldades naturais da vida a dois. 206 GONTIJO, Segismundo. Do instituto da união estável. Disponível em: <http://www. gontijo.famlia.adv.br>. Acesso em: 05 dez. 2006. 207 MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo: Editora de Direito, 2000. p. 51 208 Ibid. p. 51. A diversidade de sexos é um requisito, uma exigência constitucional expressa. A esse respeito, Marco Aurélio S. Viana afirma que “o reconhecimento constitucional envolve a união entre homem e mulher, o que afasta que seja tida como entidade familiar a relação entre pessoas do mesmo sexo”. 209 Quanto à guarda, sustento e educação dos filhos, Rui R. de Magalhães afirma que “não é elemento essencial à caracterização da entidade familiar, que pode existir independentemente da prole. Entretanto, existindo prole em comum, [...] esse dever transpassa as barreiras do direito privado, sendo considerado norma constitucional (art. 227, CF)”. 210 O uso comum do patrimônio ou assistência material recíproca “implica que se considere que a renda dos conviventes deve convergir em benefício de ambos [...], com vistas ao sustento da entidade e constituição de um patrimônio” 211. Observa-se que o trabalho doméstico tem sido entendido pela jurisprudência como um importante fator econômico, que não pode ser desprezado para efeito de partilha ou sucessão. Isto significa que se a mulher não contribuiu diretamente para a formação do patrimônio comum, ou seja, não participou com seus recursos financeiros, mas contribuiu de forma indireta, como é o caso da colaboração pelo trabalho doméstico, 209 VIANA, Marco Aurélio S. Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 14. MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo: Editora de Direito, 2000. p. 51. 211 Ibid. p. 51. 210 seus direitos à partilha estão assegurados, uma vez que graças à administração do lar pela mulher é que se fizeram ou ampliaram as economias que permitiram a construção do patrimônio comum. 212 É importante destacar que a Lei Maior não promoveu equiparação entre o casamento e a união estável, aliás, nem poderia, mas procurou dar amparo legal a essa entidade familiar, disciplinando-o no campo do direito de família, afastando-o do direito das obrigações. 4.5 AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS 4.5.1 Da homossexualidade A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade. É um fenômeno que sempre existiu, embora não admitida pela sociedade, que jamais a ignorou. As diversas culturas sempre revelaram sua existência, por meio de mitos, lendas, relatos ou encenações. 213 Na Antiga Grécia, o livre exercício da sexualidade era prática do cotidiano de todos. A mitologia grega retratou casais masculinos, sendo os mais famosos o formado por Zeus e Gaminede e o formado por Aquiles 212 MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo: Editora de Direito, 2000. 213 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.17. e Patroclo, sem falar dos raptos de jovens por Apolo. A bissexualidade estava inserida no contexto social, reservando-se a heterossexualidade à procriação, enquanto o homossexualismo era considerado uma necessidade natural. 214 Em Roma, a homossexualidade era considerada no mesmo patamar das relações heterossexuais. O preconceito da sociedade romana restringia-se ao caráter passivo da relação, uma vez que a passividade, exercida por mulheres, escravos e rapazes, todos excluídos da estrutura de poder, implicava debilidade de caráter, sendo clara a relação entre masculinidade-poder político e passividade-feminilidade – carência de poder. 215 O maior preconceito contra o homossexualismo advém das religiões. Cultura, religião e sexualidade entrelaçadas censuram ao extremo os chamados pecados da carne. Com o surgimento do cristianismo e o ideal da virgindade, inspirado na vida de Maria, que teria concebido seu filho sem ter mantido relações sexuais com José, tornando-se um modelo a ser seguido por todas as mulheres do mundo, o casamento, a sociedade e a sexualidade passaram a ter uma interpretação cristã. 216 214 SOUZA, Ivone Coelho de. Homossexualismo: discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001. p. 112. 215 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 25. 216 ARAÚJO, Luis Alberto David. A proteção constitucional do transexual. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 36-45. A Igreja Católica pregou o sexo como algo mau, o prazer seria obra do diabo; o sexo seria admitido, unicamente, com a finalidade de procriação. O pecado seria fruto de uma relação sexual, enquanto o celibato é o modo pelo qual os homens se redimem do pecado original. Daí a condenação ao homossexualismo masculino: haver perda de sêmen, enquanto o relacionamento entre mulheres era considerado lascívia. 217 A Igreja Católica considera o homossexualismo uma verdadeira perversão: Nas uniões homossexuais estão totalmente ausentes os elementos biológicos e antropológicos do matrimônio e da família, que poderiam dar um fundamento racional ao reconhecimento legal dessas uniões. Estas não se encontram em “condições de garantir de modo adequado a procriação e a sobrevivência da espécie humana” (grifo nosso). 218 Na Idade Média, a expressão vox populi, vox Dei (voz do povo, voz de Deus) tinha o sentido de que qualquer atitude contrária da maioria estava em desarmonia com Deus e, consequentemente, as minorias deveriam ser castigadas por implícito atentado a Deus. Com a Santa 217 ARAÚJO, Luis Alberto David. A proteção constitucional do transexual. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 36-45. 218 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 12-13. Inquisição, a penalização pela prática homossexual tornou-se mais severa. 219 A partir da metade do século XVII, com o afrouxamento dos laços entre o Estado e a Igreja, o comportamento social deixou de estar condicionado a uma estrita obediência às normas ditadas pela religião. O declínio da influência da Igreja fez diminuir o sentimento de culpa, deixando de ser visto o prazer sexual como criminoso. O casamento dessacralizou-se e, passando a ser oficializado pelo Estado, deixou de ser a única forma aceitável de relacionamento. As novas estruturas de convívio deixaram de ser alvo de repúdio social, tendo o afeto maior valorização. A orientação sexual começou a se caracterizar como uma opção e não como um ilícito ou uma culpa. A esse respeito, Nelson Saldanha citado por Belmiro Pedro Welter afirma: É inconsticucional a discussão da doutrina canônica dentro do Estado Democrático de Direito [...] Em decorrência, a culpa deve ser afastada do Direito de Família, visto que o mundo moderno – secularizado-democrático-globalizado – deixou de comportar as estruturas do Direito Divino [...] desaparecendo a idéia de pecado. 220 219 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 27. 220 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 211-228. p. 223. Belmiro Pedro Welter complementa dizendo que: A culpa, perquirida como forma de impor sanção ao cônjuge que tenha sido julgado culpado, não condiz com o Direito de Família atual, que se fundamenta na Constituição Federal de 1988, que, por sua vez, acolheu princípios da cidadania, da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, da igualdade jurídica entre casamento e união estável, da proibição de discriminação dos filhos, do afeto como valor jurídico, acolhendo os mesmos direitos e deveres entre as famílias biológica e socioafetiva, elevando a dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito. 221 A Igreja Católica, por sua vez, só aprova as relações heterossexuais dentro do matrimônio, classificando a contracepção, o amor livre e a homossexualidade como condutas moralmente inaceitáveis. Sob a influência das concepções religiosas, a Medicina considerou a homossexualidade uma doença, uma enfermidade que acarretava diminuição das faculdades mentais, um mal contagioso decorrente de um defeito genético. 222 221 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 211-228. p. 223. 222 MACEDO, Daniele Cristina Alaniz; ALEXANDRE, Eliane Sobrinho. Uma visão jurídica e social da homossexualidade. Londrina: EDUEL, 2003. p. 17-18 A Classificação Internacional das Doenças – CID identificava o homossexualismo como um “Desvio ou Transtorno Sexual”. Na décima revisão do CID-10, em 1995, foi nominado de “Transtornos da Preferência Sexual”. O sufixo “ismo”, que designa doença, foi substituído pelo sufixo “dade”, que significa modo de ser. Depois de vinte anos, o homossexualismo deixou de ser considerado doença. 223 Segundo o ensinamento atual da Igreja, os homens e mulheres com tendências homossexuais “devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Deve-se evitar para com eles, qualquer atitude de injusta discriminação” 224 Essas pessoas, como os demais cristãos, são chamados a viver a castidade. 225 A inclinação homossexual é “objetivamente desordenada” e as práticas homossexuais “são pecados gravemente contrários à castidade” 226 Portanto, ainda verifica-se no ensinamento da Igreja uma tendência à discriminação, tendo em vista que há a pretensão de ditar o estilo de vida que os homossexuais devem ter, além de considerar essa orientação como “objetivamente desordenada”. 223 224 225 226 Ibid. p. 17-18. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2358. São Paulo: Loyola, 2000. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2358. São Paulo: Loyola, 2000. n. 2359. Ibid. n. 2396. 4.5.2 Homoafetividade e direitos fundamentais O conceito de dignidade humana, com freqüência, confunde-se com o próprio conceito de personalidade. Portanto, do ponto de vista jurídico, a dignidade humana tem sido definida como um atributo da pessoa humana, “o fundamento primeiro e a finalidade última, de toda a atuação estatal e mesmo particular, o núcleo essencial dos direitos humanos”. 227 Assim, a dignidade humana integra valores que congregam a essência e terminam por auferir maior especificidade nos direitos fundamentais, os quais detalham a idéia de dignidade e têm a sua interpretação por ela direcionada, resultando em uma simbiose indissolúvel. Em outros termos, a dignidade da pessoa humana pode ser vista como unidade de valor para os direitos fundamentais. 228 Reconhecer a dignidade humana implica considerar o indivíduo como sendo um valor em si mesmo, é reconhecer-lhe todos os direitos fundamentais: à liberdade, à intimidade, à vida privada, à igualdade, além do princípio da legalidade. Não se pode falar em dignidade humana sem a estrita observância destes princípios. 229 227 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 140. 228 GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referenciais metodológicos e regime jurídico. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 719, 24 jun. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=6910>. Acesso em: 19 fev. 2006. 229 CHIARINI JR., Enéas Castilho. A união homoafetiva sob o enfoque dos direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 235, 28 fev. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=4902>. Acesso em: 19 fev. 2006. O direito à liberdade é um dos direitos humanos de primeira geração. A liberdade é a faculdade de escolher o próprio caminho, de tomar as próprias decisões, de optar por valores e idéias, de afirmar a individualidade, a personalidade. A liberdade é um valor inerente à dignidade do ser, pois decorre da inteligência e volição, duas características da pessoa humana. 230 No ordenamento jurídico pátrio, o direito à liberdade está presente na Constituição Federal desde o seu preâmbulo, constituindo-se um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, I da Constituição Federal, 1988) e, garantindo a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, pelo caput do art. 5º da Carta Magna. O direito à liberdade significa que toda pessoa pode fazer o que bem lhe aprouver, desde que, com suas ações, não prejudique ninguém. Dessa forma, a homossexualidade faz parte do Direito de Liberdade, do qual todos os indivíduos são portadores, tanto por força constitucional como internacional (Declaração dos Direitos Humanos), não sendo possível que o Estado crie ou imponha limites a este direito, exceto em situações extremas, ou de confronto com outros direitos fundamentais. Todos dispõem de liberdade de optar, não importando o sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. 230 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia muitas vozes. 3 ed. Aparecida-SP: Santuário, 1998. p. 108. Os direitos à intimidade e à vida privada constituem meros corolários do direito à liberdade. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, estão previstos no artigo XII que estabelece que “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada [...] Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências contra tais interferências ou ataques”. De acordo com Alexandre de Moraes, os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, referindo-se inclusive, à proteção à própria imagem diante dos meios de comunicação de massa. No âmbito familiar, os direitos à intimidade e vida privada devem ser interpretados de forma mais ampla, considerando as delicadas, sentimentais e importantes relações familiares, devendo haver maior cuidado em qualquer intromissão alheia. 231 Com relação ao direito à vida privada, José Adércio Leite Sampaio afirma que: No centro de toda vida privada se encontra a autodeterminação sexual, [...] a liberdade de cada um viver a sua própria sexualidade, afirmando-a como signo distintivo próprio, a sua identidade sexual, que engloba a temática do homossexualismo, do intersexualismo e do transexualismo, bem assim da livre escolha de seus 231 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 131. parceiros e da oportunidade de manter com eles consentidamente, relações sexuais. 232 José Adércio Leite Sampaio ainda enfatiza que a faculdade de o indivíduo definir sua orientação sexual, assim como de externá-la, não só de seu comportamento, mas de sua aparência e biotipia integra a liberdade sexual. Esse componente da liberdade reforça a proteção de outros bens da personalidade como o direito à identidade, à imagem e, o direito ao corpo. 233 Dessa forma, o indivíduo tem o direito de ser homossexual, uma vez que tal escolha apenas a ele compete, fazendo parte de sua vida íntima e ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de dizer como o indivíduo deve se portar em sua privacidade. O direito à igualdade está previsto na Constituição Federal de 1988, desde o seu preâmbulo. Mas, ainda se encontra entre os objetivos da República – “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV) e, no caput do art. 5º, o qual estabelece: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Assim, a igualdade implica o tratamento igualitário de todos os indivíduos, independentemente de sua orientação sexual. 232 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão da sexualidade da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 277. 233 Ibid. p. 313. 4.5.3 A família homossexual As regras sociais vigentes autorizam e estimulam, em cada tempo, determinados tipos de relações e condenam à clandestinidade aquelas que escapam do modelo convencional. Entretanto, cada vez mais, têm-se tornado explícitas muitas destas relações até então condenadas e, por essa razão, silenciadas. 234 Atualmente, o centro das relações de família encontra-se na mútua assistência afetiva, sendo possível encontrar este núcleo afetivo em duplas homossexuais, embora estas tenham sido excluídas do texto constitucional. 235 Explica Maria Berenice Dias que o afeto é um aspecto do exercício do direito da intimidade, o qual é garantido pelo inc. X do art. 5º da Constituição Federal e, mesmo que queiram considerar indiferentes ao Direito os vínculos afetivos que aproximam as pessoas, são eles que originam os relacionamentos que geram as relações jurídicas e que fazem 234 TURKENICZ, Abraham. A aventura do casal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 12. 235 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 56. jus ao status de família. Todas as espécies de vínculos que tenham por base o afeto são merecedoras da proteção do Estado. 236 Na opinião de Maria Berenice Dias, as linhas principais do direito do matrimônio estão asseguradas na Constituição Federal, seja pela liberdade, que garante o direito ao casamento, se assim o indivíduo desejar; da igualdade, pela qual todos, indistintamente, têm o direito de formar uma família; e do art. 226, § 3º, que estabelece a proteção à família fática, não constituída por casamento. Além disso, pela Constituição Federal, o homossexual tem direito a se unir com quem quer que seja, dependendo única e exclusivamente do consentimento de seu parceiro e de juntos constituírem uma família digna de proteção pelo Estado, uma vez que não tendo o legislador diferenciado, não cabe ao interprete fazê-lo. 237 No entanto, o Estado para opor-se ao reconhecimento das relações não formadas pela diversidade de gênero dos parceiros, alegando que a família heterossexual é a base central da sociedade moderna. Nega sua proteção à união homossexual sob o fundamento de que desvalorizaria o sentido social do sexo, tido como o fim da vida familiar. 238 Para Roger Guardiola Bortoluzzi, a Carta Magna ao impor, com objetivo de proteção constitucional, a diferenciação de sexos do casal, 236 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 56-57. 237 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 238 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 57. apresenta-se como norma discriminatória, uma vez que contraria o princípio da igualdade, o qual proíbe a diferenciação das pessoas em razão de seu sexo, pois ignora a existência de uniões formadas por pessoas do mesmo sexo. 239 No campo da demografia e da estatística, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), tem revelado um perfil das relações familiares distanciado dos modelos legais, entre as quais se encontram as uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual. 240 Para Maria Berenice Dias, “a proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois condiz com a conduta afetiva da pessoa e o direito de opção sexual”, salientando-se que a identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe, cuja escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. 241 Assim, o não reconhecimento da união homossexual como família, ou melhor, a exclusão dessas uniões como relação de família, além de 239 BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual. As relações homoafetivas. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 625, 25 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto.asp?id=6494>. Acesso em: 19 fev. 2006. p. 20. 240 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53. jan. 2002. Disponível em: <http://jus2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2552>. Acesso em: 16 mar. 2006. p. 1-2. 241 DIAS, Maria Berenice. União homossexual: aspectos sociais e jurídicos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 161-170. ferir o princípio da igualdade, da liberdade e, conseqüentemente, da dignidade humana, também contraria o perfil das relações familiares encontradas no País. 4.6 FAMÍLIA MONOPARENTAL A monoparentalidade se impôs como fenômeno social, especialmente, nos últimos vinte anos, ou seja, no período em que se constata o maior número de divórcios. No entanto, a família monoparental sempre existiu, da mesma forma que o concubinato, se for considerada a ocorrência de mães solteiras, mulheres e crianças abandonadas, embora o fenômeno não fosse percebido como uma categoria específica, o que explica sua marginalidade no mundo jurídico. 242 Uma família é considerada monoparental, de acordo com Eduardo Oliveira Leite, “quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças”. 243 Atualmente, a monoparentalidade decorre não apenas da viuvez, mas também decorrem de uma opção por celibato ou separação. 242 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 21. 243 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 22. Homens e mulheres, especialmente, aqueles que provêm de camadas econômicas mais favorecidas, tais como: os profissionais liberais, altos cargos empresariais, funções executivas, entre outros, têm optado pelo celibato como novo modelo de vida sentimental. Tal modelo não implica em viver só, pois a maioria destes celibatários tem parceiros sexuais com os quais vivem em uniões livres, caracterizadas pela transitoriedade e total liberdade, ou vivem como pessoas casadas, mas liberadas de qualquer constrangimento de ordem legal, ou seja, sem compromisso, sem comprometimento, sem obrigação. 244 Por outro lado, os casamentos têm-se revelado frágeis e com freqüência são rompidos, gerando a monoparentalidade, a qual constitui um assunto particular, mas as crianças daí originadas são problemas de ordem pública e precisam da proteção do Estado. 245 A separação ou divórcio nas categorias sociais mais elevadas, em que ocorre qualificação e atividade profissional autônoma, as mulheres tendem a se manter sós ou se vinculam emocionalmente e sexualmente a outro homem, sem casamento. Já, os homens, garantidos financeiramente pelas rendas do trabalho, vinculam-se facilmente a outra mulher, constituindo, socioeconômico 244 geralmente, também pode nova ocorrer a família. Neste manutenção segmento aparente do FERDINANDI, Cláudio. Família monoparental. Revista de Eventos. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, a. 2, n. 1, p. 169-180, 1999. 245 Ibid. casamento, visando garantir um status social, para que o divórcio não crie divisão de patrimônio. 246 Entretanto, na maioria dos casos, antes da separação os casais se inseriram nas categorias tradicionais de casamento, respeitando a clássica divisão sexual do trabalho, na qual as mulheres se ocupam da casa e das crianças. Isso se dá em decorrência tanto da existência de creches em número insuficiente para atender às necessidades das trabalhadoras como pelo preconceito existente em relação às mulheres casadas. A ausência de qualificação e de atividade profissional, conduz estas mulheres a união com outro homem, que garanta a ela e aos filhos condições mínimas de sobrevivência. 247 É interessante observar que o divórcio ou separação constitui, freqüentemente, uma iniciativa feminina, tanto por aquelas que exercem uma atividade laboral como por aquelas que não exercem. Tais mulheres, por força das circunstâncias, tornam-se as chamadas “mulheres chefesde-família”, incluindo-se nessa situação em decorrência da dissolução do casamento, como já foi citado, ou ainda devido ao abandono, à morte ou à inexistência do marido, como é o caso da mãe solteira. 248 A viuvez, por ocorrer, geralmente, a partir de uma idade madura, a maioria das mulheres em tal situação pertence a uma geração na qual a 246 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 39. 247 Ibid. p. 39. 248 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 40. identidade social feminina se elaborava a partir da esfera doméstica e não da esfera profissional. Dessa forma, tais mulheres ao procurarem buscar a sobrevivência fora do lar, verificam o despreparo intelectual e profissional, restando-lhes apenas trabalhos de menos qualificação e, portanto, mal remunerados. 249 Além desses fatores há outros que levam à monoparentalidade. O acesso ao trabalho, o controle da concepção, a evolução na legislação civil entre outros, muito contribuíram para a ocorrência desse fenômeno. A autonomia financeira da mulher, conferiu-lhe poder de decisão possibilitando-a desvincular-se do jugo marital, para buscar sua independência. 250 4.7 BIOÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Os problemas de que tratam a Bioética e o Biodireito são problemas novos, que surgem a todo instante na sociedade pós-moderna. Nos últimos anos, a Medicina, a Biologia e a Engenharia Genética alcançaram extraordinários avanços: desenvolvem-se células-tronco para transplantes de órgãos; as experiências bem sucedidas com animais aumentaram; inseminações artificiais e fertilizações in vitro se tornaram corriqueiras. 249 FERDINANDI, Cláudio. Família monoparental. Revista de Eventos. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, a. 2, n. 1, p. 169-180, 1999. 250 Ibid. A descoberta da estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico), o mapeamento do genoma humano e, sobretudo, a associação da biologia molecular com a informática, vêm permitindo aos seres humanos uma crescente apropriação do cerne da matéria viva e do ser humano que há menos de um século atrás pareceria apenas uma ficção científica. Mas, os problemas relacionados a essas disciplinas não se restringem ao campo da genética, visto que dois dos seus princípios comuns – o princípio de autonomia e o princípio de dignidade humana – podem ser feridos de forma muito mais sutil. Bioética é um neologismo obtido da junção de duas palavras “bio” (do grego, bios, que significa vida) e “ética” (do grego, ethike, significando ética). De acordo com Maria Helena Diniz apud Adriana Diaféria, em 1978, a Encyclopedia of Bioethics definiu bioética como sendo "o estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais." 251 Este conceito, porém, foi alterado em 1995, para: "Bioética é [...] o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar." 252 251 DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem, aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru: EDIPRO, 1999. p. 81. 252 Ibid. 84. Embora a bioética envolva temas diversos, no escopo desse estudo tornam-se relevantes, basicamente, duas questões: a dos embriões humanos e a das células-tronco. No que diz respeito aos embriões humanos, duas situações dignas de proteção se levantam: aqueles que já se encontram no útero e os que estão congelados em laboratório. Como vida intra-uterina designa-se os embriões e fetos já em fase gestacional, credores, portanto, de cuidados inerentes à conservação de suas vidas, direitos imanentes da personalidade e alguns de caráter patrimonial. Para os embriões que ainda se encontram fora do útero, como é o caso dos chamados embriões excedentários e extranumerários, usa-se a expressão vida extra-uterina, embriões pré-implantatórios ou concepturos. 253 Embora indubitável a natureza de pessoa humana do ser (humano) embrionário, sua defesa se faz necessária. A ciência afirma que desde o momento do encontro da célula sexual feminina com a masculina, que se dá no momento da fecundação, aquele novo ser estará totalmente individualizado em termos genéticos, ou seja, seu DNA já será único e irrepetível. A partir dessa junção, o ser humano embrionário tratará, somente, de se desenvolver, calmamente, até que sua estrutura corporal esteja completa e capaz de continuar vivendo sem o esteio do útero materno. Isto não quer dizer, porém, que o embrião seja parte ou membro do corpo de quem o abriga, mas ele se utiliza daquele 253 CHAVES, Maria Claudia. Os embriões como destinatários de direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 537, 26 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=6098>. Acesso em: 28 dez. 2006. habitat como os recém-nascidos fazem com o seio materno para sobreviverem. A embriologia mostra que o embrião e o adulto são o mesmo ser, basta para isso lembrar que, desde o momento da fecundação, o desenvolvimento que se dá até a vida adulta é contínuo, mas muito pouco qualitativo. Assim, o corpo do homem é humano desde o momento da fecundação. 254 O Código Civil de 2002, ao tratar da filiação, dispõe em seu art. 1.597, incisos III e IV, que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos advindos de fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, e aqueles havidos, a qualquer tempo, de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, determinou as vigas mestras sobre a temática enfocada. O art. 1º, inciso III, se reporta à dignidade da pessoa humana e o art. 5º "caput" protege o direito à vida, dentre outros. O inciso II, do parágrafo 1 o , do art. 225 impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, enquanto o inciso V trata do controle do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Também o art. 227 caput faz alusão ao direito à vida da criança e do adolescente. 254 CHAVES, Maria Claudia. Os embriões como destinatários de direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 537, 26 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=6098>. Acesso em: 28 dez. 2006. No entanto, o art. 5º da Lei n. 11.105/2005, Lei de Biossegurança, veio disciplinar a matéria, estabelecendo que: Art. 5 o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1 o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2 o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. Portanto, a legislação pátria permite a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para os fins de pesquisa e terapia, porém, impondo algumas condições, como o congelamento por no mínimo três anos, a aquiescência dos genitores e a aprovação do comitê de ética correspondente. 4.8 A POSIÇÃO DO CRISTIANISMO DIANTE DAS ALTERAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA CONSTANTES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 A Igreja Católica muito resistiu em não abrir mão da sua prerrogativa de tratar, com exclusividade, das questões relativas ao matrimônio. Tal resistência se justifica pelo fato de até o século XVI, o Estado nunca interveio na celebração dos casamentos, tendo apenas algumas investidas sem muito sucesso. A matéria se tornou um pouco mais polêmica com o advento da Reforma Protestante do século XVI, mais precisamente no ano de 1517, quando os reformadores negaram a inclusão do matrimônio como sacramento instituído por Jesus, aceitando apenas a instituição da Eucaristia e a Ceia, conforme Marcos 16:15-16: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado”; e em Lucas 22:19-20, encontrase: “Isto é meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova aliança em meu sangue derramado por vós. 255 No que diz respeito à competência da Igreja e do Estado, Antonio Leite, analisando sob o enfoque do direito canônico, afirma que: todo o casamento é sagrado pela sua origem, pelo seu fim e efeitos. Se for celebrado entre dois batizados é também um dos sete sacramentos da Nova Lei. Neste caso, o contrato matrimonial é o próprio sacramento, pelo que entre batizados não pode haver verdadeiro contrato matrimonial que não seja sacramento. 256 A Igreja, a quem cabe regular todas as coisas sagradas dos fiéis e muito mais os sacramentos tem, portanto, competência exclusiva sobre o matrimônio, contanto que ao menos um dos contraentes seja seu súdito pelo batismo. Neste caso, o Estado só pode regular os efeitos meramente civis desses matrimônios. Sobre o casamento dos infiéis tem o Estado poder para impor impedimentos dirimentes e impedientes, prescrever a forma e determinar as condições da prestação do consentimento, e julgar as respectivas causas, sempre dentro das normas da lei natural e divino-positiva, de que é interprete a Igreja. 255 BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221. 256 Sobre o matrimônio cristão tem a Igreja competência exclusiva para impor impedimentos tanto dirimentes como impedientes. A Igreja, no exercício deste poder, deve olhar pelo bem temporal da sociedade, mas, sempre em primeiro lugar, deve atender ao bem das almas. O Estado, quando muito, só pode, na medida em que exija o bem público, ao admitir, voluntariamente, certas pessoas a determinados cargos, imporlhes a obrigação de celebrarem o matrimônio sob certas condições que não se oponham à lei divina e eclesiástica. Para as pessoas batizadas, o Estado só pode reconhecer como matrimônio válido aquele que for segundo as leis canônicas. Celebrado este e devidamente notificado, o poder civil tem obrigação de reconhecêlo com os seus efeitos inseparáveis, ainda que em algum caso especial lhe possa negar alguns efeitos meramente civis. Quanto aos matrimônios secretos, enquanto não forem devidamente notificados ao Estado, não tem este obrigação de os reconhecer. Quando o forem, deve-lhe reconhecer a existência e os efeitos inseparáveis ex tunc 257; e os efeitos separáveis pelo menos ex nunc 258, ainda que fosse conforme com a equidade que lhes concedesse também ex tunc, salvos os direitos adquiridos de terceiros. Quase o mesmo se poderia dizer de 257 Ex tunc: para um prazo anterior; voltando ao passado. (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 87). 258 Ex nunc: de agora em diante; para o futuro. (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 84). matrimônios convalidados ou sanados in radice 259, sobretudo, quando celebrados primitivamente de boa-fé. A legitimidade dos filhos é um dos efeitos essenciais do matrimônio, que tanto a Igreja como o Estado, salvas justas restrições, devem reconhecer aqueles concebidos de matrimônio válido, com os respectivos efeitos separáveis. Cada um dos poderes no seu campo pode conceder legitimações em ordem aos efeitos separáveis, tanto por matrimônio subseqüente, como por benigna concessão, geralmente, outorgada pela autoridade suprema. Estas legitimações da Igreja não aproveitam necessariamente no foro civil e vice-versa, salvo os casos em que se verifiquem as circunstâncias do poder indireto da Igreja sobre o Estado. No entanto, há certas legitimações, especialmente, por casamento subseqüente, convalidações e sanções in radice, as quais, por equidade, convêm que sejam reconhecidas ou concedidas pelo poder civil. 260 Evidente que o Estado não poderá se basear em um contrato matrimonial de nenhum valor, como é o chamado casamento civil, para os batizados obrigados à forma canônica ordinária, para reconhecer a legitimidade ou a legitimação dos filhos. Nada impede que o Estado julgue as causas matrimoniais de mero fato, isto é, quando esteja em questão apenas a existência e não a validade do matrimônio cristão. Igualmente o Estado é competente para 259 In radice: na raiz. (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 86). 260 LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221. conhecer das causas matrimoniais dos infiéis, assim como as causas principais dos efeitos meramente civis do matrimonio cristão. Quando estas últimas vierem como incidentais ou acessórios com relação a outra principal da competência da Igreja, pode o juiz eclesiástico julgá-las também por poder próprio, ainda que indireto. Assim, a família, como instituição social, é uma entidade anterior ao Estado, como nação politicamente organizada, anterior à própria religião e também anterior ao direito que hoje a regulamenta, que resistiu a todas as transformações que sofreu a humanidade, quer de ordem consuetudinárias, econômicas, sociais, científicas ou culturais, através da história da civilização, sobrevivendo praticamente incólume, desde os tempos remotos quando passou a existir na sua estrutura mais simples, certamente de forma involuntária e natural, seguindo paulatinamente, na sua primordial função natural que é da conservação e perpetuação da espécie humana. 261 4.8.1 Impedimentos do matrimônio e suas implicações Entre um cristão e uma não-batizada ou uma cristã e um nãobatizado (2Cor 6:14) o casamento era desaconselhável, porque punha a fé em perigo. Assim pensavam Tertuliano (porque julgava o casamento 261 LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221. misto uma imbecilidade) e São Cipriano (que atribuía à perseguição de Décio o castigo pelo relaxamento dos cristãos, provocado, em parte, pelos casamentos mistos). Mais claras ainda eram as disposições conciliares que citavam censuras aos transgressores, das quais a mais comum e grave era a excomunhão, como asseveram os Concílios de Elvira (303) e Arles (314). Igualmente, o casamento com hereges; a excomunhão até por cinco anos, pena que retroagia até os pais. São ainda censurados os casamentos de viúvo com a enteada ou com a cunhada, o de noivo com a noiva raptada (Concílio de Ancira); tratava-se também da ruptura do noivado. Contudo, ainda não se consideravam impedimentos que invalidassem o casamento e outras sanções eclesiásticas que serão alicerce de futuros desenvolvimentos jurídicos. A legislação da Igreja ia mais além do que o direito civil, como a regra que permitia às senhoras romanas (com a perda do título clarissimae, sancionada pela sociedade) contraírem casamento com libertos (Calisto I 221-227). Até o fim do século XVI, pode-se dizer que ninguém, ao menos no campo católico, negou à Igreja tanto o direito de estabelecer impedimentos para os casamentos dos fiéis, como o de dispensar dos mesmos. Estes direitos ela sempre exerceu, sobretudo, a partir da Idade Média. No século XVI os reformadores protestantes negaram a sacramentalidade do matrimônio e a competência da Igreja sobre o mesmo. Conseqüentemente, negaram à sociedade religiosa o poder de estatuir impedimentos, concedendo-lhe, quando muito, a faculdade de exigir os impedimentos constituídos para o povo judaico no livro de Levítico. No século XVII e, sobretudo, no XVIII, inúmeros autores, alguns católicos, mas geralmente eivados de idéias regalistas, outros manifestamente heterodoxos, reivindicaram o direito do Estado para impor impedimentos ao contrato matrimonial celebrado entre pessoas batizadas. Em que pese às discrepâncias nas interpretações entre os fundamentalistas e regalistas, estes, ao menos, não negavam o caráter sacramental do matrimônio entre cristãos. Considerando o casamento, mesmo os batizados, como um contrato meramente civil, defendem que é da competência exclusiva do Estado e, por conseguinte, ao poder civil incumbe unicamente constitui impedimentos, ou dispensar deles. 4.8.2 Sacramento e celibato: uma contradição? Celibato, na perspectiva religiosa, é entendido como a abstinência sexual mediante a proibição do casamento daqueles que pretendem prestar serviços à Igreja. Mesmo com as palavras explicativas sobre Sacramento e Celibato, necessário se faz esclarecer que a reflexão sobre o tema proposto não é, necessariamente, apenas e, necessariamente, de cunho teológico, mas envolve o aspecto jurídico em torno da questão que diz respeito à indissolubilidade do matrimônio apregoado pela Igreja Católica. Quanto à questão celibatária fica difícil dar ao assunto sustentação jurídica por se tratar de questão eminentemente teológico-religiosa. Mesmo assim, vale a pena discutir o paralelo entre a sacramentalidade do casamento e a sua proibição pela Igreja que cria uma verdadeira contradição. Diante da batalha medieval travada pela Igreja para elevar o casamento à condição de sacramento, deveria, por uma questão de coerência diante dos fatos que tem alarmado toda a sociedade religiosa e secular, dar alguns passos para rever a radical e inflexível posição em relação à vida celibatária daqueles que prestam serviço a ela. Quando se estuda sobre a história religiosa dos povos antigos, impressiona a preocupação com a fertilidade e não com o celibato. Somente sob certas condições e por períodos limitados, era praticada a abstinência sexual. A vida celibatária era rechaçada entre os gregos e os romanos. A cultura hebraica sempre considerou o casamento como o melhor estado para os homens e mulheres e, para tanto, o considerou como um dever. Nenhum homem era investido de autoridade, como líder religioso, a menos que fosse casado. Se alguma mulher permanecesse solteira e sem filhos, isso era considerado como castigo divino contra algum pecado. Quando se faz uma retrospectiva história sobre o empenho da Igreja em elevar o casamento à condição de sacramento, descobre-se que foi uma discussão ferrenha que durou mais de 10 anos por ocasião do Concílio de Trento, em 1545. Isto denota que não se tratava de matéria pacífica dentro da própria Igreja e cuja vitória não se deu com largueza, aliás, quase foi recusada. Há uma postura contraditória por parte da Igreja, que de um lado considera o casamento dos leigos como sacramento e exige o celibato por parte do clero. Pode-se estar cometendo uma injustiça, mas ao que tudo indica constitui uma falácia a Igreja trazer uma proposta de sublimação em relação aos impulsos sexuais de uma jovem bonita, ao considerá-la esposa de Jesus Cristo. Para começar, ser esposa de Jesus é privilégio de homens e mulheres que fazem parte do seu corpo místico que é a sua Igreja militante. Todos sabem que tais casamentos têm como fundamento uma espécie de evasiva ou fuga por meio de atos penitenciais com vistas à purificação da mente para controlar os impulsos sexuais que são naturais em uma pessoa normal. Isso pode funcionar até certo tempo e também varia de pessoa para pessoa. Alguns podem e até o fazem com certa facilidade, mas para outros é um fardo profundamente pesado que se tem de carregar sozinho. O celibato deveria ser uma escolha e não uma imposição. Biblicamente falando, não há nenhuma base para se falar em celibato como condição sine qua non 262 para o serviço no reino de Deus. Vale dizer que tal doutrina ou imposição não tem respaldo bíblico. Se houve alguém que fez menção sobre a matéria em foco foi o apóstolo São Paulo, todavia, deixando muito bem claro de que se tratava de um entendimento muito particular. Chegou inclusive a fazer certa apologia em defesa do celibato por entender que seria muito mais fácil cuidar dos assuntos do reino de Deus não tendo família para dividir o tempo e as preocupações. Sua defesa do celibato chegou ao exagero de admiti-lo não apenas aos religiosos, mas a todos os fiéis de um modo geral conforme I Coríntios, 7: 7; 25-35, mas esclarecendo sobre o direito de escolha de cada um. Isto leva ao entendimento de que não se tratava de uma doutrina, mas, sim, de um ponto de vista muito particular do referido apóstolo. Haja vista que, de acordo com 1 Coríntios 1:9, o próprio Paulo mostra, de forma bem definida, que os demais apóstolos eram casados. Supõe-se que a influência dos essênios tenha afetado Paulo e, inclusive, Jesus. Presume-se também que Paulo, como judeu helenista que fora, pudesse ter absorvido algo das atitudes dos dualistas, os quais degradavam o corpo por considerá-lo como a sede e a manifestação do pecado, por fazer parte do mundo da matéria, a qual seria a depositária do princípio do mal. Os gnósticos defendiam esse dualismo e no esforço por se desvencilhar do mal, considerando que este opera através da 262 Sine qua non: necessária (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 242). matéria, eles praticavam a liberalidade exagerada, procurando abusar do corpo e debilitá-lo com os vícios ou então praticavam o ascetismo com o mesmo propósito. Já os essênios, uma comunidade que apareceu no II século a.C. e permaneceu até o século II d.C., praticavam o celibato. Algumas indagações podem ser feitas em relação à afirmação feita pelo apóstolo Paulo quando recomendava a virgindade para as mulheres cuidarem das coisas do Senhor, para serem santas, assim no corpo como no espírito. Por qual razão uma mulher é mais santa no corpo, se permanecer virgem, do que se casar? Somente quando se supõe que o sexo é degradante, em qualquer grau, se afirmar que é melhor uma mulher permanecer virgem do que se casar, pois assim poderá ser mais santa. Em que pese a todo respeito ao referido apóstolo, ao que tudo indica, parece que ele se equivocou e acabou por esboçar uma interpretação negativa em relação à teologia do sexo, que também é criação de Deus. Todavia, deve-se mencionar a recomendação do referido apóstolo de que é melhor casar do que ficar abrasado (I Coríntios 7:9) e em sua primeira carta dirigida a Timóteo, 4:1-5, quando falou de algumas heresias que estariam assolando a Igreja cristã, enumerando entre elas a proibição do casamento. Sabe-se que até o século IV não havia nenhuma determinação acerca de celibato. Somente a partir do ano de 692, por ocasião do Concílio de Tulho, foi exigido que os bispos fossem celibatários. No caso de alguns deles ter contraído matrimônio antes de tornar-se bispo, tinha de separar-se de sua esposa por ocasião de sua consagração ao episcopado. Desnecessário é dizer que abusos, dentro do clero, sempre ocorreram, e vários papas procuraram corrigi-los, mas sem lograr muito êxito. Em relação à imposição do celibato, Cristo foi claro em Mateus 19:12, quando assim se expressou: “Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para admitilo, admita”. O que Jesus quis dizer é exatamente que a imposição pode gerar constrangimento. No verso 11 do mesmo capítulo, esclareceu que nem todos são aptos para receber tal imposição. Por ocasião do Concílio Vaticano II, muitas discussões acaloradas foram trazidas ao plenário sobre a possibilidade da voluntariedade do celibato. Mas coube ao Papa Paulo VI tomar uma decisão sobre a questão, a qual foi consolidada em sua encíclica de 1967, Sacerdotalis caelibatus, em que reafirma a regra tradicional do catolicismo romano. Com toda certeza há lugar para o celibato no seio da Igreja. Tanto para os homens como para as mulheres, ligados ao ministério ordenado ou o ministério leigo. Mas, a proposta é calcada no celibato espontâneo, respeitando o direito de escolha do indivíduo. 4.8.3 Da separação e divórcio no direito canônico Os canonistas insistem em afirmar que a indissolubilidade do matrimônio não foi uma prerrogativa do Cristianismo, considerando que esta questão já estava presente em determinados seguimentos da sociedade há mais de quatro mil e quinhentos anos em todos os povos, que manifestavam uma ferrenha luta pela indissolubilidade do matrimônio. Esta questão foi-se agravando cada vez mais na medida em que os anos se passavam, alcançando elevada tensão teórica e prática sobre o problema que constituiu o mais crucial litígio na instituição jurídica mais importante da humanidade: o matrimônio. Todo direito escrito ou oral que a ele se refere foi protegido e fomentado pelo espírito de religiosidade, buscando sua execução e manutenção. A legislação sumérica, uma das mais antigas, é testemunho de um grande progresso jurídico, contendo em alto grau o elemento sagrado na questão matrimonial. No Direito de Família dos sumérios, regiam os seguintes princípios: não há matrimônio sem contrato; não há contrato sem juramento, que, neste caso, configurava uma espécie de invocação a uma divindade para castigar o contraventor. O Código de Hamurábi, que existiu por volta de 3000 a.C., seguia as mesmas regras do direito sumério. Seus preceitos sobre o matrimônio manifestam a tendência a restringir o divórcio no Código do soberano mais poderoso da história babilônica, permite reconhecer em primeiro lugar a concepção fundamental de “matrimônio monógamo” e, em segundo lugar, o esforço de lutar contra a freqüência dos divórcios. Se, por um lado, não se tem muitos testemunhos da presença de divórcios entre os Patriarcas Abraão, Izaque e Jacó, tem-se, todavia, o testemunho da pluralidade de esposas que eles tiveram, vindo a culminar com a figura de Salomão que possuía setecentas mulheres e trezentas concubinas. O relato de Deuteronômio 24:1-5 permite pensar que a lei mosaica abria uma vasta oportunidade para o aspecto subjetivo ao dizer: Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela (literalmente nudez de algo), e se lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir de casa, e se ela saindo de sua casa, for e se casar com outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de divórcio, e lhe der na mão, e a despedir de sua casa ou se último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, então, seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a desposá-la para que seja sua mulher, depois que foi contaminada, pois é abominação perante o Senhor. 263 Mesmo entre os romanos, por ocasião do século III a.C., não há testemunho de divórcios, mas a degeneração e os maus costumes 263 KENECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1932. p. 548. adentraram e no final da República já se podia lançar mão do divórcio com a maior facilidade possível. Sêneca informa que a situação ficou tão descontrolada que muitas mulheres identificavam suas idades não pelos anos vividos, mas pela quantidade de maridos que tivera. Por outro lado, Juvenal, outro cronista romano, registra que algumas mulheres se divorciavam novamente antes que as rosas colocadas na porta de casa para receber o novo marido tivessem murchado. Registra-se que algumas delas chegaram a divorciar oito vezes em menos de oito anos. Por essa razão é que, como já foi dito antes, o imperador Augusto teve que incentivar. O divórcio foi a questão de maior combate entre o Cristianismo e o Direito Civil Romano, que tinha total liberdade em afirmar que o marido poderia repudiar sua mulher, mesmo que por motivo vil, considerando que ele detinha sobre ela poder de vida e de morte, ou seja, não passava de mera propriedade. A questão gerava maior conflito entre os ditames do Direito Civil Romano exatamente pela posição que o referido direito colocava a mulher em relação ao homem, vindo de encontro com a posição da mulher nos ensinamentos do Cristianismo. Na verdade, a figura da mulher foi agraciada com os ensinamentos de Cristo que a colocou em um patamar de privilégios até então completamente desconsiderados pelas civilizações pagãs e até mesmo pelo Judaísmo, que não atribuía à mulher a condição de pessoa humana. Isto é bem claro no testemunho dos Evangelhos que ao fazer menção a um determinado número de pessoas presentes a certo evento dizia-se: Tantas pessoas, fora mulheres e crianças. Apesar das lutas e oposições que se projetaram nos primeiros séculos cristãos através da intolerância e resistência do poder civil de Roma, o Direito Canônico continuou desenvolvendo-se e se impôs na cristandade por um bom período de tempo. Todavia, deve-se mencionar que a resistência esboçada pelo Direito Canônico contra o divórcio não logrou êxito todo tempo. Tratavase de uma questão milenar arraigado na mente e no coração da humanidade. Apesar de todas as advertências, muitos fiéis se serviam da legislação civil, e a Igreja não encontrava alternativa senão lançar mão da tolerância com tais fiéis e lutar pelas mudanças da legislação civil, sendo sua principal meta a abolição do divórcio por pacto. Não faltavam declarações de papas em prol da indissolubilidade do matrimônio, ainda que na prática do adultério, mas as pressões eram sempre grandes e constantes. Como prova disso é que o Concílio de Verberie, no ano de 753, dispôs que podia conceder carta de divórcio se um dos cônjuges ameaçasse de morte o outro. Somente a partir do século X a Igreja passou a ter jurisdição exclusiva em matéria de divórcio e, de acordo com Graciano, o matrimônio cristão, desde que tenha sido consumado, só será dissolvido pela morte. Em caso de adultério, o cônjuge inocente poderia separa-se do culpado, mas sem a possibilidade de contrair novas núpcias. O único caso de possibilidade de se contrair novas núpcias é quando um dos dois se converte ao cristianismo e o outro não. Se o não convertido abandona o converso, este podia contrair novas núpcias. É o chamado privilégio Paulino. O Concílio de Trento reafirmou a indissolubilidade do casamento mesmo em relação à prática do adultério, chegando a afirmar: se alguém diz que a Igreja errou e erra quando ensina com o apoio da doutrina evangélica e apostólica o adultério de um dos cônjuges não pode dissolver o matrimônio e que nenhum dos cônjuges, nem mesmo o inocente, aquele que não cometeu o adultério, podem contrair novo matrimônio se viver um deles, seja anátema. 264 O divórcio foi o grande motivo de combate entre o direito romano e o cristianismo. Em nenhuma outra questão encontrou a filosofia cristã tanta resistência e dificuldades. O único progresso do Direito Canônico em sua atual legislação (1983) foi dar uma conotação mais pastoral à situação no sentido de procurar conduzir o cônjuge traído a conceder o perdão e desistir da idéia de separação. 265 O Código Canônico de 1983, no Cân. 1.055 utiliza a expressão matrimoniale 264 foedus (pacto matrimonial), aplicando a terminologia KENECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1932. p 557. 265 LLANO, Cifuentes Rafael. O novo direito matrimonial canônico. Rio de Janeiro: Marques Saraiva, 1990. p. 502. adotada no Concílio Vaticano II. Esta expressão é mais ampla e com um conteúdo mais teológico-pastoral do que a palavra contrato. Entretanto, em termos jurídicos não há introdução de nenhuma modificação substancial identificando a aliança ou pacto matrimonial com o contrato. Cân. 1.055 - § 1. O pacto matrimonial, pelo qual o homem e mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento. Trata ainda, o Direito Canônico de outras possibilidades de se operar a dissolução do matrimônio. Primeiramente, a dissolução de matrimônio ratificado e não consumado, que se trata da realização de um matrimônio no qual tudo se opera dentro das determinações legais e eclesiásticas, mas somente não se consuma o ato sexual. Os dois elementos fundamentais a que se subordina a indissolubilidade são sacramentalidade e consumação. Quando se dá a sacramentalidade e não a consumação, cabe a dissolução do matrimônio. Cân.1.142 – O matrimônio não consumado entre batizados, ou entre uma parte batizada e outra não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra se oponha. Este princípio canônico se apóia na traditio maiorum, que não considerava plenamente perfeito o matrimônio até que não se realizasse a sua consumação sexual. O pensamento patrístico a partir daí propugnava que só depois da “união carnal” o matrimônio poderia ser considerado válido. Essa doutrina não é aceita por todos os estudiosos da questão. Logo após a Igreja ter assumido esse posicionamento, surgiu uma grande polêmica no século XII entre as escolas de Paris (Pedro Lombardo) e Bolonha (Graciano). Este sustentava que o matrimônio era iniciado pelo consentimento e aperfeiçoado ou ratificado pela consumação; Pedro Lombardo defendia a perfeição completa do consentimento sem consumação. Para evitar o cisma na Igreja, Alexandre III (1159-1181) adotou uma postura eclética: o consentimento é que produz o matrimônio (de acordo com a escola de Paris), mas o matrimônio não consumado pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice (de acordo com a escola de Bolonha) 266. Denota-se aqui a autoridade concentrada nas mãos do papa que, segundo a tradição católica é o vicarius fili dei - vigário do filho de Deus e o detentor do “poder das chaves” sucessor de Pedro (Mateus 16:19). Assim, a dissolução matrimonial, segundo o Código Canônico, é possível nos seguintes casos: 266 LLANO, Cifuentes Rafael. O novo direito matrimonial canônico. Rio de Janeiro: Marques Saraiva, 1990. p. 489. 1) matrimônio entre batizados: a) matrimônio entre dois batizados que não consumaram o matrimônio depois da celebração; b) matrimônio entre dois fiéis quando, batizados ambos, não consumaram o matrimônio depois de receber o batismo, ainda que antes tivessem relações sexuais completas; 2) matrimônio entre batizado e não batizado: a) matrimônio contraído com dispensa do impedimento de disparidade de cultos se o matrimônio não foi consumado depois da celebração; b) matrimônio entre não batizados contraído na infidelidade se um deles se batiza e o matrimônio não se consumou depois da conversão; 3) da inconsumação: a) quando o ato conjugal não é apto de per si para gerar a prole. (O Cân. 1.061 estabelece o conceito de consumação 267 e o Cân. 1.084 trata da impotência coeundi (para copular) 268, que deve ser 267 Cân. 1.061 - § 1. O matrimônio válido entre os batizados chama-se só ratificado, se não foi consumado; ratificado e consumado, se os cônjuges realizaram entre si, de modo humano, o ato conjugal apto por si para a geração de prole, o qual por sua própria natureza se ordena o matrimônio, e pelo qual os cônjuges se tornam uma só carne. § 2. Se os cônjuges tiverem coabitado após a celebração do matrimônio, presume-se a consumação, enquanto não se prova o contrário. § 3. O matrimônio inválido chama-se putativo, se tiver sido celebrado de boa-fé ao menos por uma das partes, enquanto ambas as partes não se certificarem de sua nulidade. 268 Cân. 1.084 - § 1. A impotência para copular, antecedente e perpétua, absoluta ou relativa, por parte do homem ou da mulher, dirime o matrimônio por sua própria natureza. § 2. Se o impedimento de impotência for duvidoso, por dúvida quer de direito quer de fato, não se deve impedir o matrimônio nem, permanecendo a dúvida, declará-lo nulo. entendida por consumação); b) quando não se realiza de modo natural, isto é a penetração do órgão masculino na vagina e a conseqüente ejaculação. A inseminação artificial é condenada. O § 3º do Cân. 1.084 estabelece que “A esterilidade não proíbe nem dirime o matrimônio, salva a prescrição do Cân. 1.098” 269, enquanto a impotência anula o casamento (Cân. 1061). Portanto, é errôneo entender atualmente que o casamento na Igreja Católica tenha por fim último apenas as procriação. De fato, na Idade Média a sexualidade estava tão fortemente limitada à procriação no pensamento teológico, que somente no século XIV e início do século XV se teria começado a admitir como amplamente legítimo o sexo entre o marido e sua mulher. João Baptista Villela menciona que Johanes Gerson (1363-1429), um dos mais importantes teólogos da Baixa Idade Média, sustentou a legitimidade do sexo sem prole com base nos riscos de que a satisfação fosse buscada fora do casamento. Portanto, parece que subsistia a visão negativista que levaria Giovanni di Fidanza (1221-1274), chamado Bonaventura na vida eclesiástica, a descrever a libido como lapsus naturae, como uma doença § 3. A esterilidade não proíbe nem dirime o matrimônio, salva a prescrição do Cân. 1.098. 269 Cân. 1.098 – Quem contrai matrimônio, enganado por dolo perpetrado para obter o consentimento matrimonial, a respeito de alguma qualidade da outra parte, e essa qualidade, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal, contrai invalidamente. que se “curava” com o casamento, o qual por isso era proposto como remédio contra a lascívia. 270 4.8.4 Causas matrimoniais e competência da Igreja Ao que tudo indica desde os primeiros tempos da Igreja, os fiéis não podiam resolver por si mesmos as controvérsias matrimoniais, mas deviam recorrer a autoridade eclesiástica, com cuja intervenção também se celebravam os casamentos. Assim, parece mostrar a intervenção de São Paulo no caso do incestuoso de Corinto e na promulgação do chamado privilégio Paulino. O mesmo parece deduzir-se de algumas palavras de Santo Inácio de Antioquia e São Justino. Mais claramente ainda demonstram algumas decisões ou sentenças de Concílios em casos particulares. Não há, porém, provas documentais de que existisse nos primeiros séculos da Igreja, um verdadeiro direito processual, quanto às causas matrimoniais. Para a introdução do processo judicial regular deve ter influído o direito de Justiniano. Este imperador suprimiu o divórcio civil por mútuo consentimento com a conseqüente necessidade da intervenção judicial. 270 VILLELA, João Batista. Repensando o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 15-30. Ainda que a Igreja nunca tivesse permitido o divórcio propriamente dito, é natural, que por analogia com o direito romano, se começasse a usar a via judicial nas causas de nulidade de matrimônio e nas de separação de pessoas. Para a introdução no foro canônico da via judicial nas causas matrimoniais, pode ter também influído o direito dos cismáticos orientais. Estes, como se sabe admitiam e admitem o divórcio vincular, ao menos em caso de adultério. A partir do século VIII, aparecem na Igreja Latina documentos certos acerca de processos matrimoniais eclesiásticos. Na história do Direito Canônico tem grande celebridade o caso de Lotário II, rei da Lorena (855-869), que pretendeu obter a declaração de nulidade do seu casamento, com pretexto do impedimento de incesto, que atribuía à rainha Teutiberga. A causa foi julgada, primeiro por três concílios particulares de Aquisgrana, nos anos de 860 e 862, em que alguns bispos, abades e outros personagens venais declaram nulo o matrimônio. A decisão foi confirmada em 863 pelo Concílio, também particular de Metz, mas o papa Nicolau I a revogou. Deste complicado processo em que brilhou a inteireza do papa e do Arcebispo de Reims, Hincmar, em contraposição com a subserviência dos outros prelados, depreende-se claramente não só reconhecimento da competência exclusiva da Igreja neste gênero de causas, mas até a forma do processo em que se misturavam elementos romanos e germânicos. A discussão sobre a competência exclusiva da Igreja para julgar as causas matrimoniais se materializou por ocasião do Concílio de Trento que, dentre outros motivos, o principal foi combater a posição dos reformadores que declaradamente não admitiam tal competência. Durante toda a Idade Média, a Igreja julgou as causas matrimoniais, com exclusão do poder civil, sem que ninguém, de um modo geral, lhe contestasse esse direito. Em Portugal, até o século XIX, todas as causas matrimoniais propriamente ditas, quer de nulidade quer de separação de pessoas, e até mesmo as causas relativas aos efeitos temporais conexas com as primeiras, eram da competência exclusiva do foro eclesiástico. Não obstante pertencer à Igreja a determinação das condições da validez e da obrigação dos esponsais em ordem ao matrimônio cristão, o poder civil regulou-os unilateralmente, em Portugal, pela lei de 6 de outubro de 1784. Desde então, ao que parece, praticamente todas as causas relativas aos esponsais foram tratadas no foro secular. Proclamada a República, um dos primeiros cuidados do governo Provisório foi instituir o divórcio, e pouco depois o casamento civil obrigatório com o Decreto n. 1, de 25 de dezembro de 1910. Pelo artigo 65 desse decreto reservavam-se para o futuro ao tribunal civil todas as causas de nulidade e anulação do casamento, mesmo que este tivesse sido celebrado canonicamente. Finalmente, pelo artigo 25 da concordata de 1940, voltou a ser da competência privativa do foro eclesiástico o conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado. 271 4.8.5 Algumas posições atuais da Igreja Católica O Sínodo dos Bispos, celebrado em Roma, em 1980, deixou claro que a família cristã é a “primeira comunidade chamada a anunciar o Evangelho à pessoa humana em crescimento e a levá-la, mediante a catequese e a educação progressiva, à plenitude da maturidade humana e cristã”. 272 De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, a comunidade conjugal tem por base o consentimento dos esposos. “O casamento e a família estão ordenados para o bem dos esposos, a procriação e a educação dos filhos”. 273 Para a Igreja Católica, o matrimônio constitui um sacramento que vincula os esposos um ao outro de forma indissolúvel, representando, mediante o sinal sacramental, a mesma relação de Cristo com a Igreja. 271 LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 198-199. 272 JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Familiaris Consortio: ao episcopado, ao clero e aos fiéis de toda a Igreja Católica sobre a função da família cristã no mundo de hoje. 19 ed. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 4. 273 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2201. São Paulo: Loyola, 2000. Entende ainda que o amor conjugal comporta uma totalidade na qual estão presentes todos os componentes da pessoa, ou seja, os apelos do corpo e do instinto, força do sentimento e da afetividade, aspiração do espírito e da vontade, que exige fidelidade e indissolubilidade da doação recíproca definitiva e se abre à fecundidade. 274 A Igreja Católica defende a vida em toda e qualquer circunstância e, conseqüentemente, se opõe tanto à fertilização in vitro como a utilização dos embriões excedentes em pesquisas e mesmo para o fornecimento de células-tronco. Nesse aspecto convém destacar que direito e religião são coisas distintas. Pela profundidade das questões, porém, que envolvem o Biodireito, a religião fornece elementos que não podem ser ignorados pelo direito, como é o caso da idéia de sacralidade da vida humana. A Igreja Católica, ainda no Concílio Vaticano II, ressaltou a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem. Estabelece que a família encontra no amor a fonte e o estímulo incessante para acolher, respeitar e promover cada um de seus membros na altíssima dignidade de pessoas, ou seja, o critério moral da autenticidade das relações conjugais e familiares consiste na promoção da dignidade e vocação de cada uma das pessoas que encontram a sua plenitude mediante o dom sincero de si mesmo. 274 JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Familiaris Consortio: ao episcopado, ao clero e aos fiéis de toda a Igreja Católica sobre a função da família cristã no mundo de hoje. 19 ed. São Paulo: Paulinas, 2005. No entanto, embora ressalte a dignidade da pessoa humana, não admite as relações homoafetivas, entendendo-as como estando sob o regime do pecado. O mesmo ocorre com o divórcio e outras questões atuais, como pesquisa com células tronco, métodos anticoncepcionais, entre outras que fogem do objetivo desse estudo. Entende-se que a crença não deve ser discutida. Se a Igreja Católica quer disciplinar dessa forma os seus fiéis é aceitável. Não lhe cabe, porém, interferir junto ao Estado, pois a função do legislador é criar leis que tutelem os direitos dos cidadãos. Portanto, se é crescente o número de casais que se separam; se é crescente o número de homens e mulheres que têm um relacionamento que se caracteriza como união estável; e se é crescente o número de indivíduos que passam a viver uma relação homoafetiva, devem ser elaboradas leis que os amparem e dirima dúvidas, nas diversas situações de conflito que podem ser geradas, por exemplo, os efeitos patrimoniais dessas relações, ou, ainda, a proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos. CONCLUSÕES O presente trabalho teve por objetivo demonstrar que tanto a escolha da religião como a formação familiar constitui direitos fundamentais do homem. Para tanto, procurou-se demonstrar a evolução histórica de ambas as instituições, desde os primórdios dos tempos. 1. O homem primitivo não tinha a noção do que era liberdade. Em comparação com os demais animais, era um ser frágil. Mas uma das primeiras lições aprendidas foi a necessidade de se unir aos seus semelhantes, pois só dentro do contexto de uma família e da formação de grupos ou clãs poderiam sobreviver em um ambiente hostil. 2. Com o aumento dos agrupamentos humanos, o homem foi levado pelo misticismo a acreditar em alguma coisa, a buscar uma razão pela qual existia na face da Terra. Assim, passou a admirar e adorar alguma coisa, a se vincular a fenômenos da natureza, ou seja, passou a se relacionar com aquilo que existia a sua volta. Depois, começou a ter a percepção de dois corpos, um palpável e outro sombra (alma) e atribuiu alma ou espíritos aos animais, às plantas e aos objetos inanimados. 3. Posteriormente, passou a diferenciar as diversas forças da natureza, atribuindo-lhes importância. Mas muitas coisas não conseguia entender. Alguém do grupo se destacava para desvendar os mistérios da natureza e passou a ditar as regras de religiosidade entre os membros da tribo. 4. Na Idade Antiga, foi consolidado o patriarcado, ou seja, o chefe da família exercia a liderança familiar, o sacerdócio e a justiça perante sua família. A religião aflorou na forma do culto aos antepassados, sendo que esse se relacionava diretamente com o fogo sagrado, que devia ser zelado por todos os familiares para que não se apagasse. Assim foi tanto na Grécia como no Império Romano. 5. Do Oriente surgiram as principais religiões monoteístas, destacando-se o judaísmo, do qual derivaram o cristianismo e o islamismo. O cristianismo tem Jesus como representante de Deus e que pregou a paz e a mansidão. No islamismo venera-se a Alá e seu principal profeta foi Maomé, que pregava a espada como um instrumento do céu. 6. Embora a liberdade seja um Dom de Deus, como configurado na Bíblia, verifica-se que na medida em que o cristianismo se expandia, começou a impor aos seus fiéis dogmas e a usar da opressão. Com relação ao islamismo, desde sua origem prega a intolerância com os infiéis, gerando com isso opressão e crueldade. 7. Em dado momento da evolução da civilização, a questão religiosa passou a ter uma inter-relação com a família, entrelaçando-se ambas. Assim, a constituição da família passou a ser controlada pela Igreja, que estabeleceu regras rígidas para a sua formação. 8. O cristianismo que inicialmente sofreu uma perseguição implacável do Império Romano, acabou sendo acolhido por ele. Com o Edito de Milão expandiu-se tanto para o Oriente como para o Ocidente. Com a divisão do Império Romano, também ocorreu o cisma no cristianismo, originando a Igreja Ortodoxa Grega (Oriente) e a Igreja Católica Apostólica Romana (Ocidente). Ao acolher o cristianismo, o Império Romano estabeleceu a liberdade de culto, mas, com o predomínio alcançado pela Igreja Católica, os cultos pagãos foram proibidos. Portanto, a liberdade religiosa existiu por pouco tempo, pois antes da aceitação do cristianismo havia intolerância com o mesmo e após essa aceitação a intolerância voltou-se contra os cultos pagãos. 9. Com o desmantelamento do Império Romano pelas invasões bárbaras, a Igreja Católica, que havia se organizado sobre a estrutura administrativa do Império, teve o seu poder ampliado e acabou se tornando o maior senhor feudal da Europa, impondo seu predomínio a todos os povos europeus. No entanto, na medida em que aumentava o seu poder material, mais se distanciava de seus objetivos espirituais. Isto levou a uma reação, dividindo a hierarquia da Igreja e fazendo surgir o Protestantismo. A reação da Igreja foi violenta com a instituição dos tribunais de inquisição, o qual condenou muitos à morte. 10. Os países da Península Ibérica, Portugal e Espanha, adotaram a religião católica. Sofreram invasão de seus territórios por parte dos mulçumanos e se consolidaram como Estados católicos após a expulsão dos mouros. 11. Especialmente, Portugal aceitou o catolicismo como sua única religião oficial, acatando as decisões do Concílio de Trento e transferindo tais decisões para suas colônias, entre as quais o Brasil. 12. Os reis portugueses foram mais longe na sua aceitação do catolicismo, outorgando ao clero do seu país, a partir de 1568, todo o controle da constituição da família. A única opção era ser católico, pois era inaceitável outra religião. Tal posição foi mantida em todas as colônias portuguesas. 13. O Brasil colônia seguia nos mesmos moldes de Portugal. Com a sua independência, o Império manteve a religião católica apostólica romana como oficial, especialmente, no que diz respeito à constituição da família, que só poderia existir se seguisse as determinações do Código Canônico. 14. A laicização do Estado brasileiro só ocorreu com a República. Mas verifica-se que a influência da Igreja foi mantida até 1988, pois todas as Constituições anteriores mantiveram a indissolubilidade do casamento, nos moldes do Direito Canônico. 15. A Constituição de 1988 assenta como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, visando à promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3°, incisos I e IV, CF). 16. Além desses objetivos, destaca-se no cenário familiar o princípio da dignidade humana (art. 1°, CF). Assegura, ainda, a liberdade de expressão religiosa, enquanto o chamado “primado do sentimento nas relações familiares”, altera o conceito de família decorrente do reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, porém, dependente do bem-estar da própria instituição familiar. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. 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