a escolha da religião e a formação familiar como

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CESUMAR – CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ
SAULO DE MELO
A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO
AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
MARINGÁ
2006
SAULO DE MELO
A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO
AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Dissertação apresentada ao Centro
Universitário de Maringá, como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Direito da Personalidade.
Orientador: Prof. Dr. José Sebastião de
Oliveira
MARINGÁ
2006
SAULO DE MELO
A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM – UM CONTRIBUTO
AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Dissertação apresentada ao Centro
Universitário de Maringá, como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Direito da Personalidade.
Aprovado em: 18 de dezembro de 2006.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira
Orientador
___________________________________
Prof. Dr. Adauto de Almeida Tomaszwski
___________________________________
Profª Drª Valéria Silva Galdino
Dedico este trabalho
À minha esposa, pelo incentivo, amor, aconchego, proteção... Sempre me
ajudando a discernir pelos melhores caminhos. Obrigado por tanto apoio
e por saber relevar as minhas falhas no dia-a-dia.
AGRADECIMENTOS
A Deus que guia os meus passos e me ampara em todos os
momentos.
Ao Professor, Dr. José Sebastião de Oliveira, exemplo de
iniciativa e trabalho. Por ser um profissional ético, sério e coerente,
obrigado pela confiança e orientação no desenvolvimento do projeto a
mim incumbido, pelo enriquecimento cognitivo.
Aos meus filhos que são verdadeiros tesouros da minha
vida, na alegria de seus sorrisos encontro a razão maior na busca de
meus ideais. Deus é a maior testemunha do quanto vocês foram
desejados e são amados!
“O céu acima de tudo. E lá preside
um
juiz
que
nenhum
rei
pode
corromper”.
(William Shakesperare)
MELO, Saulo de. A escolha da religião e a formação familiar como
direitos fundamentais do homem – um contributo aos direitos da
personalidade. Dissertação (Mestrado em Direito). Maringá. 204 p.
Cesumar – Centro Universitário de Maringá, 2006.
RESUMO
O presente estudo foi realizado na área do Direito da Personalidade, com
o objetivo de evidenciar a escolha da religião e a formação da família
como direitos fundamentais. Por meio do estudo procurou-se mostrar a
evolução da família e da religiosidade humana, ressaltando a inexistência
da liberdade de expressão religiosa e a opressão por um longo período
da história da humanidade. Nos dias atuais, verifica-se o reconhecimento
dos direitos fundamentais. Especificamente, a Constituição Federal de
1988 destaca no cenário familiar o princípio da dignidade humana;
assegura ainda a liberdade de expressão religiosa, enquanto o chamado
“primado do sentimento nas relações familiares”, altera o conceito de
família decorrente do reconhecimento de um direito à felicidade individual
diverso, porém, dependente do bem-estar da própria instituição familiar.
Palavras-chave: dignidade, liberdade, família, religião.
MELO, Saulo de. The choice of the religion and the family formation
as fundamental rights of the human being – a contribution to the
personality rights. Dissertation (Masters in Law). Maringá. 204 p. Cesumar
– Centro Universitário de Maringá. 2006.
ABSTRACT
The following paper was made in the área of Personality Rights, with the
objective of putting in evidence the choice of religion and the family
formation as fundamental rights. Through this study we tried to show the
evolution of family and human religiosity, highlighting the inexistence of
religion freedom and the long period of opression in the human history.
Nowadays, we can observe the recognition of fundamental rights. More
specifically speaking, the 1988 Federal Constitution emphasizes in the
family scenario the principles of human dignity; it guarantees religion
freedom, while the “primacy of feelings in the family relationships”,
modifies the concept of family due to the recognition of the right for
diverse individual happiness, however, it depends on the well-being of the
family formation.
Keywords: Dignity, Freedom, Family, Religion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................. 10
1
A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR
COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM: O
DIREITO À VIDA COM DIGNIDADE COMO PRESSUPOSTO
À LIBERDADE HUMANA ................................................................ 13
1.1
O HOMEM COMO ENTE SOCIAL: SUA ORIGEM E
DESENVOLVIMENTO ......................................................... 13
A FORMAÇÃO RELIGIOSA NOS PRIMÓRDIOS DOS
TEMPOS ............................................................................ 16
A ANTIGUIDADE E O EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE
EXPRESSÃO RELIGIOSA VINCULADA À FAMÍLIA .............. 20
1.2
1.3
2
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A
CONSTITUIÇÃO DAS FAMÍLIAS NO DIREITO MEDIEVAL .. 25
2.1
AS GRANDES RELIGIÕES NO MUNDO CONHECIDO DOS
SÉCULOS XIV, XV e XVI ....................................................
O judaísmo ........................................................................
O cristianismo ...................................................................
O islamismo ......................................................................
A constituição da família no cristianismo ........................
O matrimônio levirato ..........................................................
A formação familiar no Novo Testamento .............................
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A
FORMAÇÃO FAMILIAR NA PENÍNSULA IBÉRICA ...............
A formação religiosa e familiar em Portugal e sua
submissão ao Papado .......................................................
A religião como forma de expressão e a constituição de
família no Brasil Colonial e Imperial .................................
O Brasil colonial, sua religião e sua família ..........................
O Brasil Imperial, sua religião e sua família .........................
2.1.1
2.1.2
2.1.3
2.1.4
2.1.4.1
2.1.4.2
2.2
2.2.1
2.2.2
2.2.2.1
2.2.2.2
25
25
28
40
43
43
45
48
52
64
64
76
3
A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DO
HOMEM E A QUESTÃO DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE
HUMANA EM TERMOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO
RELIGIOSA E NA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA ..................... 87
3.1
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS
HUMANOS FUNDAMENTAIS .............................................. 87
LIBERDADE RELIGIOSA ..................................................... 94
OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA MODERNIDADE ...... 96
3.2
3.3
3.3.1
3.3.2
3.3.3
3.3.4
3.3.5
Liberdade de expressão religiosa e a formação de família
na Constituição de 1934 ....................................................
Liberdade de expressão religiosa e a formação de família
na Constituição de 1937 ....................................................
Liberdade de expressão religiosa e a formação de família
na Constituição de 1946 ....................................................
Liberdade de expressão religiosa e a formação de família
na Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de
1969 ...................................................................................
Liberdade de expressão religiosa e a formação de família
na Constituição de 1988 ....................................................
A LIBERDADE RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO DA
FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 .................................
4.1
OS LIMITES DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 NA CODIFICAÇÃO DE
CLÓVIS BEVILAQUA ........................................................................
4.2
AS INOVAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ......................
Ampliação do conceito de família .....................................
4.2.1
4.2.1.1 Igualdade entre os cônjuges ................................................
4.2.1.2 Igualdade entre os filhos .....................................................
4.3
CASAMENTO .....................................................................
Casamento civil e religioso ...............................................
4.3.1
Formalidades ....................................................................
4.3.2
Impedimentos matrimoniais ..............................................
4.3.3
4.3.4
Dissolução da sociedade conjugal e do vínculo
matrimonial .......................................................................
4.4
UNIÃO ESTÁVEL ................................................................
4.5
AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS ........................................
Da homossexualidade .......................................................
4.5.1
Homoafetividade e direitos fundamentais ........................
4.5.2
A família homossexual ......................................................
4.5.3
4.6
FAMÍLIA MONOPARENTAL .................................................
4.7
BIOÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ...........................
4.8
A POSIÇÃO DO CRISTIANISMO DIANTE DAS
ALTERAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA CONSTANTES
DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ................................................
Impedimentos do matrimônio e suas implicações ............
4.8.1
Sacramento e celibato: uma contradição? ........................
4.8.2
Da separação e divórcio no direito canônico ...................
4.8.3
Causas matrimoniais e competência da Igreja .................
4.8.4
Algumas posições atuais da Igreja Católica .....................
4.8.5
98
102
103
104
106
4
109
109
111
114
115
117
123
124
127
129
134
136
144
144
149
153
156
160
164
168
170
175
184
187
CONCLUSÃO ................................................................................. 190
REFERÊNCIAS ............................................................................... 195
INTRODUÇÃO
O homem, como ser social, é regido em suas relações por uma
série de normas e princípios que objetivam protegê-lo e garantir-lhe
direitos e impor-lhe deveres. Entre os direitos encontra-se determinada
categoria que se constitui nos “direitos primeiros”, os quais são
denominados de direitos fundamentais, que visam A tutelar a pessoa
humana, individualmente, de todos os possíveis ataques que possa vir a
sofrer. Como “direitos primeiros” estão os direitos de personalidade, ou
seja, o direito à vida, o direito geral à liberdade, o direito à integridade
física e psíquica, o direito à privacidade, o direito à honra, o direito moral
do autor e o direito à identidade pessoal. 1
Os direitos da personalidade constituem, portanto, limites impostos
contra o poder público e contra os particulares, atribuindo à pessoa um
espaço próprio para o seu desenvolvimento, que não pode ser invadido,
recebendo uma proteção específica do direito.
É importante destacar que apesar de vários pontos de coincidência,
os direitos da personalidade não se confundem com os direitos
fundamentais, pois estes pressupõem relações de poder, enquanto os
primeiros pressupõem relações de igualdade. 2
1
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005. p. 19.
2
BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade: de acordo com o novo Código
Civil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 48.
A família e a religião são dois elementos centrais na vida do ser
humano. O primeiro – a família – constitui uma unidade afetiva e não
apenas econômica, que se traduz em uma comunidade de afetos,
relações e aspirações solidárias. O segundo – religião – proporciona a
ligação com o Sagrado, com a própria origem do homem.
Em ambos os cenários, a família ou a Igreja, enfatiza-se a proteção
da dignidade humana, a qual é ponto de destaque para a compreensão
dos direitos da personalidade. Portanto, é valor que confere unidade e
coerência
ao
conjunto
parâmetro
para
dos
aplicação,
direitos
fundamentais,
interpretação
e
servindo
integração
dos
como
direitos
fundamentais, mas não só deles e das normas constitucionais, como de
todo o ordenamento jurídico. 3
A família permanece como condição para a humanização e
socialização das pessoas e, por essa razão, apesar da variedade de
formas que assume e das transformações pelas quais passa ao longo do
tempo, a família é identificada como o fundamento da sociedade. 4
Cabe à entidade familiar promover, efetivamente, a dignidade e a
realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos,
3
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo:
Malheiros, 1998. p. 83.
4
PETRINI, João Carlos. Notas para uma antropologia da família. In: FARIAS, Cristiano
Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2004. p. 41-64.
esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance
da felicidade. 5
A religião, por sua vez, se apresenta como um sistema de crenças e
práticas em relação ao sagrado, que unem em uma mesma comunidade
todos que a ela aderem.
Assim sendo, tanto a escolha da religião, como a formação familiar
constituem direitos fundamentais do homem. Portanto, nesse estudo tevese por objetivo demonstrar a importância dessas duas instituições na
evolução do homem, desde os primórdios dos tempos, até os dias atuais
no ordenamento jurídico brasileiro.
O estudo encontra-se dividido em quatro capítulos, tratando o
primeiro da origem do homem, a formação religiosa nos primórdios dos
tempos e do exercício da liberdade de expressão religiosa vinculada à
família na antiguidade. O segundo capítulo refere-se à liberdade de
expressão religiosa e à constituição das famílias no direito medieval,
assim como na Península Ibérica e, no Brasil. No terceiro capítulo,
procurou-se apresentar a proteção dos direitos do homem e as questões
da liberdade e da expressão religiosa nas Constituições brasileiras. O
quarto capítulo trata da liberdade religiosa na Constituição da Família e
no Código Civil de 2002.
5
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias
sociológicas versus famílias reconhecidas pelo Direito: um bosquejo para uma
aproximação à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de
(Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004. p. 19-34.
1 A ESCOLHA DA RELIGIÃO E A FORMAÇÃO FAMILIAR COMO
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM: O DIREITO À VIDA COM
DIGNIDADE COMO PRESSUPOSTO À LIBERDADE HUMANA
1.1
O
HOMEM
COMO
ENTE
SOCIAL:
SUA
ORIGEM
E
DESENVOLVIMENTO
A história do aparecimento da espécie humana é controvertida. De
um lado, tem-se a teoria de que existe uma fronteira intransponível entre
o homem e os animais. Essa teoria tem sua origem no mito bíblico da
criação do homem por Deus, que o fez “à sua imagem e semelhança” 6.
Por outro lado, tem-se a teoria evolucionista, proposta por Charles
Darwin, segundo a qual o homem descende de uma raça de macacos
evoluída. As descobertas antropológicas realizadas, posteriormente,
vieram confirmar a teoria darwiniana e provaram que no final do período
Terciário e início do Quaternário, de fato existiam macacos que poderiam
ser considerados como ancestrais do homem. 7
Sobre
a
aparente
divergência
entre
a
origem
bíblica
e
os
pressupostos darwinianos deve-se mencionar que Charles Darwin, como
cientista, não tentou explicar as origens. Aliás, a ciência moderna desistiu
da tentativa devido à impossibilidade de reproduzir aquele estágio inicial.
6
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Loyola, 1989. Gn. 1,27. p. 21.
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 21.
7
Por outro lado, a Bíblia não pretende ser um tratado científico. Assim,
tem-se que enquanto Darwin trata da matéria, a Bíblia trata da alma. 8
Henry
Thomas
ensina
que
nos
tempos
pré-históricos,
os
antepassados do homem eram peludos e vagavam pelas florestas da
Europa e da Ásia, alimentando-se de ervas, raízes e frutos, além da
carne crua de outros animais. Andavam despidos, desconheciam o fogo e
se comunicavam por grunhidos e berros. Quando sentiam fome, andavam
à espreita, preferencialmente, em grupos de dois ou três e, ao se
satisfazerem descansavam à sombra de uma árvore ou rochedo, até que
a fome ou o ataque de algum animal mais forte os compelisse à ação.
Viveram dessa forma por muito tempo, até que o primeiro Período do
Gelo fez com que fugissem das montanhas, abrigando-se em cavernas e
se unissem na necessidade comum de proteção e calor. 9
Nessa época, o homem era livre, mas não sabia o que era
liberdade, embora a exercesse ao longo de toda a sua vida. A origem
exata, se criação divina de um homem já evoluído ou a partir de
transformações lentas de uma determinada espécie de macaco não
supera a importância de que uma das primeiras lições aprendidas pelos
nossos ancestrais tenha sido a necessidade de se unir aos seus
semelhantes, pois só por meio da formação de grupos poderiam
sobreviver em um ambiente hostil.
8
CHAPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia: teologia
e filosofia. São Paulo: Candeia, 1997. v. 2. p. 16-18.
9
THOMAS, Henry. História da raça humana. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941. p.
8.
Assim, a origem da espécie humana está intimamente relacionada à
origem e evolução da própria família, pois o ser humano ao nascer
depende
da
proteção
de
seus
progenitores
para
a
sua
própria
subsistência inicial e sua existência futura e, ao atingir a maioridade,
constitui nova família, sem romper com os vínculos de sua família
originária. 10
Na realidade, o homem é um ser frágil, que não sobreviveria sem o
apoio de seu grupo. Em termos de organismo social, a família é o mais
antigo, pois existiu a partir do primeiro momento em que passou a existir
o primeiro homem, em seu exemplo mais rudimentar.
A unidade fundamental da sociedade era o clã materno. A família
emparelhada já se apresentava consolidada, embora ainda não tivesse se
transformado na célula principal da sociedade. A família se caracterizava
por uma união conjugal instável, momentânea, sendo o casamento
contraído sem formalidades especiais e se rompia apenas com o pedido
de um dos cônjuges. Alguns aspectos do casamento grupal apareciam
sob a forma do adultério legal, do levirato, obrigação da viúva esposar o
irmão do seu marido defunto; e do sorotato, direito do homem se casar
com uma irmã da sua mulher, depois da morte desta. 11
Movidos pela necessidade, os homens primitivos passaram a
arrancar a pele dos animais que lhes serviam de alimentos e nelas se
10
GARCEZ FILHO, Martinho. Direito de família. Rio de Janeiro: Officina Graphica
Vilas Boas, 1929. v. 1. p. 21.
11
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 58-59.
enrolavam para se protegerem do frio. Depois, aprenderam a fazer o
fogo, que constituiu uma nova medida contra o frio e como defesa contra
outros animais que também buscavam as cavernas para se abrigarem.
Além do fogo e da roupa, os homens primitivos adquiriram a linguagem
articulada e, distanciando-se ainda mais dos outros animais, começaram
a inventar as ferramentas.
Com relação à religiosidade, segundo A. Cajdan, o homem primitivo
estava muito ocupado com o problema de conseguir o seu alimento diário
para se preocupar em buscar uma explicação para a existência do
mundo. Além disso, o fraco desenvolvimento de seu cérebro não permitia
que concebesse noções tão abstratas. Dessa forma, o homem primitivo
não tinha crenças religiosas. 12
1.2 A FORMAÇÃO RELIGIOSA NOS PRIMÓRDIOS DOS TEMPOS
As idéias religiosas primitivas surgiram, provavelmente, entre os
homens de Neanderthal, como evidenciam as sepulturas do final do
período Paleolítico Inferior, as quais eram construídas nas cavernas que
serviam de habitação. Aparentemente, os mortos eram temidos e
cuidados; eram instalados em suas sepulturas como se ainda fossem
vivos, não se tendo a idéia de um além. Tampouco o homem de
Neanderthal conferia aos seus mortos qualquer poder sobrenatural.
12
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 30.
Nessa época, se manifestaram os primeiros elementos do culto dos
animais, ou seja, a zoolatria. 13
De acordo com Henry Thomas, parece que a origem da religião
ocorreu porque os homens viam suas sombras na água, assim como viam
as imagens de seus amigos nos sonhos, o que lhes parecia que as
pessoas possuíam dois corpos, aquele palpável e o corpo-sombra, que só
aparecia em determinadas ocasiões. 14
Essa concepção de dois corpos, um palpável e outro sombra (alma)
foi estendida pelo homem primitivo ao mundo que o rodeava, ou seja,
passou a atribuir alma ou espíritos aos animais, às plantas e aos objetos
inanimados. No regime do clã, o homem acreditava que era capaz de
exercer poder sobrenatural sobre a natureza (animais e plantas) por
práticas mágicas (rituais), as quais nasceram juntamente com as crenças
religiosas.
Na medida em que esse culto se desenvolvia, explica A. Cadjan,
uma espécie particular de animal, ou de planta caso se tratasse de povos
que se dedicavam à coleta, começou a destacar entre os demais,
pretendendo os primitivos que seu clã fosse parente desse animal. Assim,
surgiu o totem, um hipotético ancestral animal do clã. 15
13
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 30.
14
THOMAS, Henry. História da raça humana. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941.
p. 10
15
CADJAN, op. cit. p. 59.
Outro elemento de fundamental importância do culto do clã foi a
idéia do caráter divino da mulher iniciada nas artes da feitiçaria. Tal idéia
estava relacionada à essência do clã maternal, no qual as mulheres
encarnavam a união da coletividade, enquanto os homens pertenciam a
um ou mais clãs. Simultaneamente, nasceu a crença nos “espíritos” ou
“almas”, que animam toda a natureza. Por outro lado, inicialmente, o
homem
primitivo
não
tinha
medo
dos
mortos,
mas
gradualmente
passaram a sentir esse medo.
Quando alguém morria, seu corpo era sepultado na terra, enquanto
seu segundo corpo continuava a visitá-los em sonhos. Dessa forma, o
corpo-sombra devia estar vivo em algum lugar. Supõe-se, agora, que
morreu o chefe de uma tribo, o qual, em vida tenha sido temido e,
conseqüentemente, depois de morto torna-se ainda mais temível, porque
seu corpo é invisível e ninguém sabe quando ele poderá atacar. 16
Esse poderoso espírito-sombra controlava também algo misterioso:
a Sorte, que às vezes vinha ajudá-los, outras vezes não. O porquê disso
não se sabia. Mas havia sábios na tribo que se propunham a descobrir
esse mistério e se tornaram peritos na previsão da Sorte e, por isso
passaram a ser considerados mágicos, sagrados e, por fim, sacerdotes,
os quais informavam o que devia fazer ou deixar de fazer para conseguir
a graça aos olhos do seu chefe-sombra, seu deus, e obter a boa sorte.
16
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 10.
Esses sacerdotes deviam ser obedecidos, pois o preço da desobediência
era a morte. 17
Quando o homem primitivo passou a sentir medo dos mortos, para
se proteger começou a praticar ritos. Na medida em que a agricultura e a
criação de gado se desenvolviam, ocorre o aparecimento de idéias
religiosas mais complexas. A terra, força fecunda, passa a ser objeto de
um culto, que nas condições do matriarcado se confunde com a
veneração da avó.
Posteriormente, com a evolução da economia e do pensamento, o
homem
passou
a
diferenciar
as
diversas
forças
da
natureza,
compreendidas até então como um todo. Assim, atribuiu importância às
forças cósmicas e aos fenômenos naturais, tais como o Sol, chuva, entre
outros, que asseguravam as colheitas e, por conseqüência, a própria
sobrevivência. O culto da natureza se confunde com o totemismo,
gerando imagens hibridas como o Sol-animal ou Sol-pássaro. Além disso,
a consolidação do regime do clã modifica o culto dos mortos, que deixam
de ser considerados como uma força hostil e começam a ser vistos como
ancestrais protetores. 18
Tais mudanças ocorreram porque na medida em que o homem
primitivo adquiriu certo domínio sobre a natureza, o culto do ancestral
animal (totem) passou a ser culto do ancestral homem. Deve-se ainda
mencionar que do culto da terra, das forças naturais e dos ancestrais
17
CADJAN, A. Sociedade primitiva. In: DIACOV, V.; COVALEV, S. (Dir.) História da
antigüidade. São Paulo: Fulgor. 1965. p. 8-102. p. 11.
18
Ibid. p. 70.
surgem os sacrifícios e as preces: a prece é a expressão direta de um
desejo – pede-se aos espíritos que concedam boas caçadas, filhos fortes,
boas colheitas, enquanto o sacrifício inicial consiste em nutrir os espíritos
para assegurar sua benevolência.
Conseqüentemente, os ritos estavam relacionados aos processos
de produção e tinham por fim a ação sobre a natureza, pela feitiçaria. Ao
mesmo tempo, os ritos refletiam a fantasia das forças que dominavam o
homem na sua vida quotidiana.
1.3 A ANTIGUIDADE E O EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
RELIGIOSA VINCULADA À FAMÍLIA
Durante o regime do clã, a mulher tinha os mesmos direitos que os
homens. Mas, o desenvolvimento da criação de animais e da cultura da
terra, modificou todo o sistema de relações familiares, conferindo ao
homem a supremacia dentro da sociedade.
Portanto, as origens da instituição da família de natureza patriarcal,
remontam à Antigüidade, dentre os diferentes povos, como um processo
de desenvolvimento sócio-político-econômico 19.
Com
o
desenvolvimento
da
produção,
criação
de
rebanhos,
atividades agrícolas, fabricação de armas, que propiciaram o aumento da
19
SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 5.
riqueza
individual
e
dos
clãs,
também
evoluíram
as
formas
de
organização social, fazendo surgir a instituição do casamento sob
diversas formas, como o casamento por grupos, a exogamia 20 e a
endogamia 21, de maneira a assegurar a riqueza e manter os costumes de
determinada comunidade, conforme o caso.
Com a concentração da riqueza nas mãos dos homens, dos chefes
guerreiros, consolidou-se o patriarcado, sob a direção do pater familias,
cujos interesses se opunham à contagem da filiação de seus herdeiros,
pela linha materna, critério esse típico do matriarcado, em que se
desconhecia e desconsiderava a paternidade, de onde se origina o ditado
mater semper certa est, ou “a mãe é sempre certa”, principalmente devido
ao período da gravidez 22.
Dessa forma, como a contagem da descendência pela linha
feminina impedia que os filhos dos proprietários se tornassem seus
herdeiros, o “direito materno” devia ser abolido, e o foi, o que provocou
uma reviravolta na evolução social. Assim, com a supremacia do
patriarcado, o trabalho doméstico da mulher perdeu a sua importância,
quando comparado com o trabalho do homem, que passou a ser tudo,
enquanto o daquela representava apenas uma simples contribuição. O
homem, na família patriarcal, segundo o modelo greco-romano, era o
20
Exogamia: regime social em que os casamentos se realizam com membros de tribo
estranha ou, dentro da mesma tribo, com os de outra família ou de outro clã (BUENO,
Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1989. p. 280).
21
Endogamia: Regime segundo o qual o indivíduo se casa com alguém do seu próprio
povo (BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1989.
p. 240).
22
SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 5.
chefe supremo, dotado de poderes de vida e morte sobre a mulher, filhos
e demais membros da família.
Na Grécia Antiga, havia uma inter-relação entre o culto aos mortos,
o fogo sagrado e a religião doméstica, uma vez que era uma tradição
enterrar os mortos nas casas, sendo lícito considerar que o fogo
doméstico era “expressão do culto dos mortos e que sob a pedra do lar
repousava um antepassado” 23. Por outro lado, o fogo sagrado tinha por
caráter
essencial
pertencer
a
cada
família,
representando
os
antepassados, era a providência dessa família. Portanto, a religião,
inicialmente, era doméstica.
A família era unida pela religião do lar e dos antepassados,
tratando-se de uma associação natural. O casamento tinha grande
importância, tendo lugar na casa e não no templo. A mulher, no novo lar
não tem nenhum direito, devendo inclusive esquecer a religião de seus
pais e adotar a do marido. Por outro lado, o celibato é proibido, pois
dessa forma acabaria a religião doméstica. Ter filhos era uma obrigação:
a mulher estéril era devolvida para a família, enquanto se o marido fosse
estéril, a mulher deveria entregar-se a um irmão ou parente do marido,
observando ainda que o nascimento de uma filha não satisfazia ao
objetivo do casamento. A partir daí surgem os direitos da propriedade e
da sucessão. 24
23
24
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 35.
Ibid. p. 43-50.
A esse respeito, Giselda Novaes Hironaka afirma que não apenas
em Roma e na Grécia, mas também na Índia das Leis de Manu, a religião
desempenhava papel de fundamental importância para a agregação
familiar.
Dessa
forma,
pertenciam
à
mesma
família
aqueles
que
participavam do mesmo culto aos deuses domésticos, observando que
estes deuses domésticos eram os próprios antepassados daqueles que
em vida comungavam para reverenciar os que já haviam partido. Tal culto
se desenvolvia diante do altar doméstico, onde o fogo sagrado ardia,
onde eram depositados os artigos de comer e de beber e ao redor de
onde se construía a habitação da família e se cultivavam os gêneros de
subsistência. Os membros da família ao assentarem o lar, faziam-no com
a esperança de permanecer sempre no lugar; com o lar, apossava-se do
solo que ficava sendo sua propriedade e, a família, por dever e por
religião, se agrupava ao redor de seu altar. 25
Silvio Rodrigues menciona que havia íntima relação entre o direito
hereditário e o culto familial nas sociedades mais antigas, porque o culto
dos antepassados constituiu o centro da vida religiosa, não havendo
maior castigo para uma pessoa do que morrer sem deixar quem lhe cultue
o altar doméstico, de forma a ficar seu túmulo ao abandono; tal culto
cabia ao herdeiro. 26
25
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: parte
especial do direito das sucessões, v. 20 (arts. 1.784 a 1.856). São Paulo: Saraiva,
2003.
26
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. 27 ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. v.7. p. 4.
Por isso, o pai que só possuísse filhas era autorizado a adotar um
varão, que entraria em seu culto doméstico na qualidade de sucessor, ou
a dar sua filha em casamento, reservando para si o direito de tomar como
seu o primeiro filho varão gerado. O afastamento da filha era justificado
pelo fato de que esta ao se casar integraria a família do marido, perdendo
o laço com a família de seu pai. Nada, porém, impedia que a filha solteira,
quando o pai morresse, partilhasse da administração dos bens junto com
seu irmão, mas ao se casar perdia esse direito 27.
Dessa forma, não havia liberdade de expressão religiosa. Ao
homem cabia dar continuidade ao culto dos antepassados e, a mulher
devia assumir o culto aos antepassados do marido.
27
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: parte
especial do direito das sucessões, v. 20 (arts. 1.784 a 1.856). São Paulo: Saraiva,
2003.
2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO
DAS FAMÍLIAS NO DIREITO MEDIEVAL
2.1 AS GRANDES RELIGIÕES NO MUNDO CONHECIDO DOS SÉCULOS
XIV, XV E XVI
O
monoteísmo
é
tão
antigo
como
a
humanidade,
tendo-se
perpetuado por meio dos pagãos, no povo judaico e, posteriormente, no
cristianismo e outras religiões. Observa-se que toda religião é um
conjunto de crenças e práticas que têm por finalidade a união com Deus.
2.1.1 O judaísmo
Por definição, a palavra Judaísmo designa a religião praticada
pelos judeus. Etimologicamente, o termo é derivado do hebreu Yehoudi,
que significa Judaico, com referência aos israelitas que habitavam o reino
da Judéia, na época do rei Davi, ou seja, por volta de 1.000 anos antes
da Era Cristã. 28
28
ELIADE, M. História das crenças e das idéias religiosas. De Gautama Buda ao
triunfo do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. v.1.
O judaísmo está fundamentado, essencialmente, na primeira parte
do Velho Testamento, que contém cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio. Esses cinco livros, tradicionalmente atribuídos
a Moisés, constituem o Pentateuco, também chamado Torah, que
significa “Lei”. Para os judeus, a Torah é a expressão da própria voz de
Deus e constitui a base de sua fé. Comporta um total de 613
mandamentos que são ao mesmo tempo de ordem religiosa, social,
jurídica e moral, alguns deles inspirados no código de Hamurábi, que foi
rei da Babilônia por volta de 1730 antes da Era Cristã. Entre esses
mandamentos, os mais conhecidos são os Dez Mandamentos, que
formam o Decálogo.
Os judeus praticantes consideram que seu maior dever é aplicar os
mandamentos de Deus tal como figuram no Pentateuco. Tal como o
cristianismo, o judaísmo prega a existência de um pecado original.
Segundo o Antigo Testamento, esse pecado aconteceu quando Adão,
influenciado por Satã, rebelou-se contra Deus no início dos tempos.
Como castigo, Deus fez o homem um ser mortal, submetido às penas e
sofrimentos inerentes à sua condição atual. Segundo a religião judaica, o
único meio de por fim a essa punição e ser admitido no Paraíso
(Jerusalém Celeste) consiste em seguir seus Mandamentos até a morte.
No judaísmo, o nascimento marca o início da vida religiosa. Assim,
no oitavo dia após sua vinda ao mundo, o menino é circuncidado, o que
simboliza a aliança que Deus selou com Abraão, e faz parte do batismo
judaico, cuja finalidade é introduzir a criança nessa aliança. Em geral, as
meninas não são batizadas, apesar das mulheres desempenharem um
papel muito importante no plano religioso e filial. Com a idade de treze
anos é permitido ao menino ler pela primeira vez uma passagem da Torah
numa sinagoga. Esse acontecimento é acompanhado por uma cerimônia,
o Bar-Mitzvah, da qual participam a família e os amigos. A partir de então,
considera-se que o adolescente atingiu sua maioridade religiosa e que
deverá desempenhar os deveres que cabem a todo judeu praticante.
Quanto às meninas, recebem automaticamente essa maioridade em seu
décimo segundo aniversário.
O judaísmo não é apenas uma religião: a religião monoteísta de
onde provieram o cristianismo e o islamismo. Também não é unicamente
uma referência à história nacional do povo judeu, embora religião e
história estejam intimamente ligadas a todas as manifestações coletivas
do judaísmo, como festas e comemorações.
Fundamentalmente, o judaísmo constitui um modo de vida individual
e coletivo. O ritmo e a significação das festas, o número de vezes durante
o dia em que se rememoram preceitos morais e regras de vida prática, no
campo alimentar ou no relacionamento com os outros, dão ao judeu um
sistema de vida que o obriga a exercer a autodisciplina e manter um
diálogo constante consigo próprio, com os outros e com Deus, sobre o
significado da vida e o destino do homem.
2.1.2 O cristianismo
A religião judaica, antes da era messiânica, demonstra a fidelidade
ao seu Deus, pelos longos séculos de sua difícil história, de um povo que
não
deu
origem
a
uma
civilização
marcante,
não
se
distinguia,
especialmente, no panorama político da Antiguidade e só gozou da
independência nacional por um período muito breve. A vida espiritual de
Israel naquele tempo nem sempre foi cristalina. Cada capítulo da história
bíblica traz páginas dramáticas que contam lutas e tentações, quedas e
traições. O pavor, as paixões, a atração dos cultos pagãos e as
maquinações dos políticos fizeram vacilar a fé do povo de Israel mais de
uma vez.
No entanto, seus profetas se negavam a fechar os olhos diante das
chagas da sociedade em que viviam. O protesto apaixonado era ditado
pela fé na grandeza da vocação do homem e anunciavam o “dia do
Senhor” em que o reino do mal cessaria entre os homens. O ungido do
Senhor por meio d’Aquele-que-é estabeleceria o seu Reino e todos os
povos conheceriam a verdade eterna e abandonariam os ídolos e o
pecado, formando uma nova Aliança que seria gravada no coração dos
homens. Esta expectativa escatológica dos profetas reforçou nos judeus o
senso de responsabilidade perante o próprio povo: este recebera a
revelação, por isso, os seus pecados eram duplamente graves; a ele fora
confiada a missão de levar toda a humanidade a Deus, mas se os eleitos
se revelassem indignos perderiam a proteção celeste e os pagãos dos
países mais longínquos viriam para destruir o reino de Israel e o de Judá.
29
Essa profecia se confirmou e, em 772 a.C, o reino judaico do Norte
foi banido da face da Terra pelos assírios, depois babilônicos. Tal
catástrofe poderia ter levado Israel e sua religião ao desaparecimento
total, mas isso não aconteceu. O fermento dos profetas era tão forte que
os judeus, mesmo distantes da pátria, durante o exílio, continuaram se
sentindo o povo de Deus. Livres do cativeiro babilônico, Esdras e seus
sucessores, os Doutores da Lei, procuraram um meio de isolar os judeus
desses povos. A observância cega do sábado, as restrições alimentares e
outras normas tinha o mesmo fim: salvaguardar a fisionomia da
comunidade. Novamente, Israel se tornou independente, mas sucumbiu
ao Império Romano. Foi nessa época que, em Belém, nasceu Jesus, filho
de um carpinteiro e de Maria, que viria a ser o Cristo, ou seja, o fundador
do Cristianismo. 30
Jesus
abalou
algumas
prescrições
do
judaísmo
com
o
seu
Evangelho, mas não suprimiu a lei mosaica, apenas a completou. Os
fariseus, que eram os fanáticos e os sacerdotes, que eram os ministros,
acusaram Jesus de revolucionário e procuraram comprometê-lo com os
romanos, obtendo com a indiferença de Pôncio Pilatos, mascarada em
astúcia política, a condenação do Nazareno. O procurador da Judéia
29
MIEN, Aleksandr. Jesus, mestre de Nazaré: a história que desafiou 2000 anos.
Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 1998. p. 32.
30
Ibid. p. 38.
ainda tentou salvá-lo, dando ao povo a escolha entre o rabi e milagroso e
o ladrão Barrabás, mas sem muito se empenhar e, instigado pelos do
Templo, cujos interesses e preconceitos se viram ameaçados, o povo de
Jerusalém optou pela libertação do criminoso comum. 31
A doutrina de Cristo, rapidamente, se propagou pela ação dos seus
discípulos e se perpetuou. Do Oriente passou o Evangelho a Roma, onde
foi sofreu cruéis perseguições até ser admitida pelo Império Romano, no
tempo de Constantino.
No mês de fevereiro do ano 313, Constantino reuniu-se em Milão
com o imperador do oriente, Licínio. Entre outros temas trataram sobre os
cristãos e fizeram um acordo para publicar novas disposições a seu favor.
O resultado deste encontro é conhecido como "Edito de Milão”. O texto
fez-se conhecido por meio de uma carta escrita no ano de 313 aos
governadores das províncias, que está recolhida nos escritos de Eusébio
de Cesárea (História Eclesiástica 10, 5) e Lactancio (De mortibus
persecutorum 48). Na primeira metade do edital, estabelece-se o princípio
da liberdade de religião para todos os cidadãos e, conseqüentemente,
reconhece-se, explicitamente, que também os cristãos gozam desta
liberdade. O edito permitia praticar a própria religião não só aos cristãos,
mas a todos os cultos. Na segunda metade ficou estabelecido que seriam
devolvidos aos cristãos seus antigos locais de reunião e de culto, assim
31
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.
27.
como outras propriedades, que tinham sido confiscadas pelas autoridades
romanas e vendidas a particulares na última perseguição. 32
Longe de atribuir ao cristianismo um posto proeminente, parece que
o edito pretendeu conseguir a benevolência divina sem importar qual
fosse
o
culto,
dado
o
sincretismo
que
naquela
época
praticava
Constantino, que apesar de favorecer a Igreja, durante um tempo
continuou dando culto ao Sol Invicto. Graças a este edito, o paganismo
deixou de ser a religião oficial do Império e foi permitido que os cristãos
gozassem dos mesmos direitos que os demais cidadãos. A partir desse
momento, a Igreja passou a ser uma religião lícita e foi reconhecida,
juridicamente, pelo Império. Isso permitiu um rápido crescimento. 33
A Igreja cristã se contagiou com Constantino o espírito militar de
Roma e foi ela que de fato se tornou a mais legítima sucessora do
Império Romano, modelando-se pela sua organização e crescendo como
um grande Estado espiritual, servido por uma hierarquia, o qual se
sobrepôs ao Estado temporal. 34
No entanto, meio século depois de Constantino, o imperador Juliano
tentou restabelecer o paganismo. Mas seu sucessor trouxe, novamente,
entre os romanos a fé cristã e com Teodósio, o Grande (379-395) o
cristianismo tornou-se religião do Estado, sendo proibidos os sacrifícios
32
CHAPA, Juan. O que foi o Edito de Milão? OPUS DEI. Disponível em: <http://www.
opusdei.org.br/art.php?p=16352>. Acesso em: 10 out.2006.
33
Ibid.
34
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
p.148.
aos deuses pagãos, fechados seus templos, abolidos os oráculos e os
mistérios e vedado o culto dos lares e penates. O cristianismo recebeu
todo o patrocínio oficial, sendo facultado às suas associações recolherem
doações e legados e o próprio imperador contribuiu com donativos em
dinheiro e terras. Portanto, a Igreja passou da pobreza à riqueza e a lei
de Cristo sobrepujou a lei de César. No final do século IV o paganismo
estava extinto: havia triunfado a força moral do cristianismo, com seu
tesouro de idéias de bondade e de fraternidade prática. Os bárbaros
próximos às fronteiras também haviam adotado a nova religião, o que
contribuiu para a fusão pacífica de conquistadores e conquistados. 35
Na Idade Média européia, praticamente, inexistia liberdade de
expressão
religiosa.
A
Igreja
havia
se
estruturado
utilizando
a
administração municipal romana. O cisma entre as Igrejas do Oriente e do
Ocidente não prejudicou tanto Roma como se poderia pensar, pois o
campo de ação ocidental era mais vasto, enquanto o Oriental devia
concorrer com velhas religiões universalistas. Com o cisma, a Igreja
romana evidenciou-se católica, isto é, universal, entrando em uma fase
de política ativa.
Por outro lado, a invasão pelos árabes pelo sul e, outra pelo norte,
dos escandinavos, precederam a constituição da nova Europa. A
expansão do Islã foi militar, seguindo o que predizia Maomé, que tinha na
35
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.
149.
espada a chave do céu e do inferno e por ela se devia impor a “salvação”
a toda a humanidade.
A esse respeito, Henri Pirenne afirma que o sistema administrativo
criado pelo Império Romano sobreviveu na Europa Ocidental às invasões
germânicas. No entanto, no século VIII não se encontram, “nem os
Decuriones 36, nem os Gesta municipalia 37, nem o Defensor civitatis 38.
Nessa mesma época, o impulso mulçumano no Mediterrâneo, “tornando
impossível o comércio que até então tinha mantido alguma actividade nas
cidades, condenou-as a [...] decadência”. Entretanto, mesmo diminuídas,
as cidades subsistiram e conservaram, apesar de tudo, uma importância
primordial. Tal importância devia-se à Igreja, que havia estabelecido as
suas circunscrições diocesanas sobre as circunscrições das cidades
romanas e, “respeitada pelos bárbaros, continuou assim a manter [...] o
sistema municipal sobre o qual se fundara”. O fim do comércio, o êxodo
dos mercadores, não influenciaram a organização eclesiástica, que se
tornou cada vez mais forte. Mesmo quando o Império carolíngeo se
desmoronou, os príncipes feudais que haviam arruinado o poder real não
tocaram no poder eclesiástico, temendo a excomunhão. 39
Quando o desaparecimento do comércio aniquilou os últimos
vestígios da vida urbana, a influência dos bispos ficou sem rival e as
36
Decuriones: decurião, conselheiro municipal nas colônias (KOEHLER, H. Pequeno
dicionário escolar latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 105).
37
Gesta: gestor; Municipalia: municipal (KOEHLER, H. Pequeno dicionário escolar
latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 160 e 248).
38
Defensor: protetor; Civitatis: cidade (KOEHLER, H. Pequeno dicionário escolar
latino-português. 8 ed. Porto Alegre: Globo, 1943. p. 106 e 73).
39
PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 1989. p. 57.
cidades foram-lhes, exclusivamente, submetidas, com seus habitantes
dependendo mais ou menos, diretamente, da Igreja. A população
compunha-se do clero da catedral e de outras igrejas agrupadas à sua
volta, de monges dos mosteiros que vieram fixar-se, algumas vezes em
grande quantidade, na sede da diocese, de professores e estudantes das
escolas eclesiásticas, dos servidores e dos artistas livres. Quase sempre
se encontrava na cidade um mercado semanal, para o qual os
camponeses traziam seus produtos. 40,
41
Durante a Idade Média, a Igreja Católica experimentou seu
momento de maior poder e expressão na sociedade. Toda a vida secular
era regulada pela observação das regras cristãs. Nas cidades dominavam
as igrejas, capelas, basílicas, catedrais, abadias e outras construções
religiosas. As estações do ano agrícola, as reuniões das assembléias
consultivas, o calendário anual eram marcados por atividades religiosas.
A vida cotidiana era toda impregnada por pequenos rituais católicos:
fórmulas para benzer os alimentos que iam ser ingeridos, a água; rezas
pedindo proteção contra catástrofes, contra os perigos das viagens, dos
animais selvagens, das pragas. Praticamente, todas as formas de
doenças e loucura eram atribuídas a feitiços do diabo, e eram resolvidas
por meio de exorcismos, sinais-da-cruz, água benta, preces, missas.
40
PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 1989. p. 60.
41
ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa,
1981.
Todas as manifestações culturais, tais como: pintura, música, literatura,
escultura, arquitetura, utilizavam elementos ligados ao sagrado. 42
Nos primórdios do feudalismo, a Igreja havia sido um elemento
dinâmico e progressista. Preservou muito a cultura do Império Romano.
Incentivou o ensino e fundou escolas; ajudou os pobres, cuidou das
crianças desamparadas em seus orfanatos e construiu hospitais para os
doentes. Em geral, os senhores eclesiásticos administravam melhor suas
propriedades e aproveitavam muito mais suas terras do que a nobreza
leiga. No entanto, enquanto os nobres dividiam suas propriedades, a fim
de atrair simpatizantes, a Igreja adquiria mais e mais terras. Explica Leo
Huberman que uma das razões por que se proibia o casamento aos
padres era simplesmente porque os chefes da Igreja não desejavam
perder quaisquer terras da Igreja mediante herança aos filhos do clero. 43
A Igreja Católica era extremamente poderosa e criava bispados,
abadias, paróquias, nomeando indivíduos que em geral haviam comprado
esses cargos, que representavam poder e fonte de renda, devido à
arrecadação de tributos eclesiásticos, como o dízimo, a gavela, a
côngrua, a parte da herança daqueles que faleciam, entre outras fontes. 44
Segundo Leo Huberman, o dízimo constituía um imposto territorial,
um imposto de renda e um imposto de transmissão muito mais oneroso do
42
SEFFNER, Fernando. Da reforma à contra-reforma: o cristianismo em crise. 3 ed.
São Paulo: Atual, 1993. p. 5.
43
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1986. p. 14.
44
SEFFNER, op. cit. p. 5.
que qualquer taxa conhecida nos tempos modernos. Agricultores e
camponeses eram obrigados a entregar não apenas um décimo exato de
toda sua produção; cobrava-se dízimo de lã e até mesmo da penugem
dos gansos; à própria relva aparada ao longo da estrada pagava-se o
direito à portagem; o colono que ousasse deduzir as despesas de
trabalho antes de lançar o dízimo a suas colheitas era condenado ao
inferno. 45
Dessa forma, na medida em que a Igreja crescia em riqueza, sua
economia apresentava tendências a superar sua importância espiritual.
Como senhor feudal, e diga-se, o mais rico e poderoso proprietário de
terras da Idade Média, não era melhor e, em muitos casos, muito pior do
que os feudatários leigos.
Os muitos abusos da Igreja não passavam despercebidos. A
diferença entre seus ensinamentos e seus atos era bastante grande e
visível muitos séculos antes que Martinho Lúteo pregasse suas Noventa e
Cinco Teses à porta da Igreja, em Wittenberg, em 1517, desencadeando
a Reforma protestante. Mas, antes de Lutero, houve reformadores
religiosos, entre os quais se citam, por exemplo, Calvino e Knox, mas
estes cometeram o erro de tentar reformar mais do que a religião.
Wycliffe fora, na Inglaterra, o líder espiritual da Revolta Camponesa e
Hus, na Boêmia, não só protestara contra Roma, como também inspirara
um movimento camponês de caráter comunista, ameaçando o poder e os
45
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1986. p. 14.
privilégios da nobreza. Portanto, tais movimentos foram combatidos não
só
pela
Igreja,
mas
também
pelas
autoridades
seculares
e,
conseqüentemente, foram esmagados. Lutero e os reformadores que o
seguiram não comprometeram o apoio da classe dominante pregando
doutrinas perigosas de igualdade. 46
No início, a Reforma não foi um movimento político, mas apenas um
movimento religioso. Do ponto de vista da doutrina, a Reforma pretendeu
estabelecer uma relação mais direta entre o Criador e o pecador,
diminuindo a eficácia dos sacramentos ao lado da misericórdia divina. Do
ponto de vista da disciplina eclesiástica, a alteração tinha que ser
completa, pois Lutero qualificava de ímpia a Roma luxuosa de Leão X. Na
Alemanha, estava presente a lembrança da perseguição dos hussitas e
era fácil qualquer manifestação de independência contra o predomínio da
autoridade romana. A questão da cobrança das indulgências constituiu o
ponto de discórdia que conduziu à separação, cujas raízes eram
profundas, pois iam buscar sua substância no progresso intelectual
produzido pelo desvendar de novos horizontes mediante as descobertas e
a divulgação das letras clássicas. Havia que ajustar as crenças e a
ciência e que repor a austeridade onde imperava a dissolução: foi o que
intentou a reforma católica, que só achou impossível de transpor a linha
que divide o dogmatismo do individualismo intelectual. 47
46
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1986. p. 79-81.
47
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
p.242.
A autoridade da Igreja não cedeu neste ponto, denominando-o de
indisciplina do pensamento. No entanto, os príncipes que ajudaram na
cisão religiosa eram levados na maioria por zelos da sua soberania
temporal, que os pontífices pretendiam desconhecer em matéria do
preenchimento dos cargos da hierarquia eclesiástica, da taxação imposta
ao clero e seus bens e da cobiça manifestada pela lei canônica de
colocar sob sua alçada a jurisprudência civil. 48
Outro aspecto importante para o advento da Reforma está no fato
de que Lutero apelou para o espírito nacionalista de seus adeptos, em um
período em que esse sentimento crescia. Como a oposição religiosa a
Roma coincidia com os interesses do nascente Estado nacional, tinha
possibilidades de êxito. 49
De acordo com Leo Huberman, a Igreja teria perdido seu poder
mesmo que a Reforma protestante não tivesse ocorrido. De fato, a Igreja
já havia perdido esse poder, pois sua utilidade se reduzia. Antes era
bastante forte para propiciar à sociedade certo alívio das guerras feudais,
impondo a Trégua de Deus: agora o rei estava em melhores condições
para sustar essas pequenas guerras. Antes, a Igreja tinha controle total
da educação: agora, surgiam escolas independentes fundadas por
mercadores que haviam prosperado. Antes, o direito da Igreja fora
supremo: agora o velho direito romano, mais adequado à necessidade de
48
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
p.242.
49
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2 ed. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 43-47.
uma sociedade comercial, fora ressuscitado; antes, a Igreja era a única
que dispunha de homens cultos, capazes de conduzir os negócios do
Estado, agora o soberano podia confiar em uma nova classe de pessoas
treinadas no movimento comercial e consciente das necessidades do
comércio e da indústria do país. 50
Esse novo grupo, a nascente classe média, sentia que havia um
obstáculo no caminho do seu desenvolvimento: o ultrapassado sistema
feudal. A classe média compreendia que seu progresso estava bloqueado
pela Igreja Católica, que era a fortaleza de tal sistema. A Igreja defendia
a ordem feudal, e foi em si mesma uma parte poderosa da estrutura do
feudalismo. Era dona, como senhor feudal, de cerca de um terço da terra,
e sugava ao país grande parte de suas riquezas. 51
Roma
reagiu
ao
movimento
da
Reforma
protestante
com
intolerância, não se contentando em emprestar maior severidade aos
rigores inquisitoriais, sendo as sentenças dos tribunais do Santo Ofício
executadas nos países românicos pelas autoridades temporais. O
protestantismo por sua vez não recuava ante semelhantes atentados. A
Santa Sé também cuidou de restabelecer sua autoridade mediante a
correção dos seus erros e escândalos. É preciso mencionar que antes
mesmo da Reforma, dentro do organismo católico se desenhava como
que uma auto-expurgação que veio a culminar no concílio de Trento
50
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21 ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1986. p. 82.
51
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2 ed. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 43-47.
(1545-1563), o mais importante depois do de Nicéia. Essa assembléia
conferiu às tradições da Igreja importância idêntica à da Bíblia; confirmou
o caráter divino do Papado e declarou herética a doutrina luterana da
“justificação pela fé”. 52
Ainda
datam
desse
movimento
de
contra-reforma
o
índex
expurgatório, a renúncia a todo paganismo mesmo na arte, a reação
italiana assinalada pelo processo de Galileu e pelo martírio de Giordano
Bruno. Os papas, que sob o influxo da Renascença greco-romana haviam
substituído suas preocupações religiosas pelas profanas, cuidando de
guerras, de letras e de artes, alguns arrastando o pontifício até ao vício e
ao crime, com o que favoreceram a disseminação da Reforma, voltaram a
ser pastores escrupulosos na sua piedade e, em alguns casos, até
mesmo exagerados em seu zelo. 53
2.1.3 O islamismo
Do grupo semítico teve origem outra das três grandes religiões do
mundo: o islamismo ou maometismo, cujo berço foi a Arábia. O islamismo
foi constituído e implantado por Maomé, no século VII da Era Cristã, com
52
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
p.246.
53
Ibid. p. 246.
um fim antes político do que religioso, pois visava a promover a unidade
da sua gente, elevando-a à condição de povo criador de civilização.
Enquanto Maomé pregou com doçura não conseguiu adeptos.
Viúvo, abandonado pela família e inúmeros inimigos, fugiu de Meca para
Medina, sendo essa fuga conhecida como Hégira. Em Medina começou a
pregar, mas não com doçura: como havia fracassado como mensageiro
da paz, tornou-se um profeta da espada. Iniciou sua nova carreira
atacando as caravanas de Meca, que revidaram, mas a vitória foi de
Maomé,
que
comemorou
matando
novecentos
judeus
que
não
acreditavam na sua profecia. A espada era um instrumento do céu que o
povo compreendia e aceitou em nome de Alá e proclamaram Maomé o
mais poderoso de seus profetas. Dessa forma, Maomé transformou a
guerra em missão sagrada, dizendo aos seus seguidores que se
morressem matando, iriam diretamente ao céu e à presença de Alá.
Seu livro sagrado é o Alcorão, no qual é visível a influência tanto do
judaísmo como do cristianismo. Sua moral é parecida com a do Decálogo
e suas práticas (orações, jejuns, esmolas) assemelham-se na natureza às
da Igreja romana.
Existe uma diferença profunda na organização da família, admitindo
o
islamismo
a
poligamia,
enquanto
essa
prática
é
vedada
pelo
cristianismo. As duas religiões têm dogmas em comum, tais como: a
imortalidade da alma, o juízo final, a predestinação. Mas na própria
natureza das recompensas destinadas aos justos na vida futura há uma
diferença ética que põe em contraste a crença cristã e a mulçumana. Ao
idealismo do cristianismo, proporcionando à alma livre de pecados,
infinitos gozos espirituais na mansão celestial, inclui o islamismo o
sensualismo do paraíso das houris (mulheres) formosíssimas. 54
O casamento islâmico é um contrato civil que tem por base o
consentimento mútuo do noivo e da noiva. Para que a mulher seja lícita
para o homem há quatro condições: a) a permissão do guardião é
necessária em caso de casamento de menor, seja homem ou mulher, sem
a qual o casamento é inválido; b) o consentimento da moça é necessário
para seu casamento, seja ela solteira ou viúva; c) são necessárias duas
testemunhas maiores; e d) a proposta e as aceitações da noiva e do
noivo são necessárias. Além disso, a noiva deve ser informada das
condições do noivo, sendo aconselhável que ambos se vejam antes do
casamento. A noiva deve estar em estado de pureza no dia do
casamento, o que significa que ela não pode ser esposa de outro homem;
o casamento não pode ser consumado durante o período de espera; a
moça não pode ser infiel ou degenerada e não pode estar entre as
categorias proibidas para o marido, ou seja, mãe, avó, filha, irmã, tia
paterna, tia materna, mãe adotiva, irmã de leite, enteada, neta, irmã da
esposa ainda viva, mulher que maldiz o marido. 55
54
LIMA, Oliveira. História da civilização. 16 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p.
28.
55
ALAIKIM, Assalam. O casamento islâmico. Disponível em: <http://www.ziad.hpg.ig.
com.br>. Acesso em: 22 dez. 2006.
2.1.4 A constituição da família no cristianismo
2.1.4.1 O matrimônio levirato
O texto bíblico envolvido é Deuteronômio 25:5-10. O termo
“levirato” deriva da palavra latina levir que significa cunhado. O
matrimônio levirato refere-se ao costume que havia entre os hebreus de
que quando um israelita casado morria, sem deixar descendente do sexo
masculino, seu parente mais próximo era obrigado a casar-se com a
viúva, caso esse parente fosse solteiro, a fim de dar continuidade ao
nome da família do falecido.
O filho primogênito do novo casal tornava-se o herdeiro do primeiro
marido de sua mãe. Se o irmão de um homem falecido não quisesse
casar-se com a viúva, a esta permitia-se submetê-lo aos insultos mais
grosseiros, caindo o homem no opróbrio público. Ao que tudo indica,
porém, não eram impostas penas mais severas do que isso.
Os registros literários e arqueológicos mostram que esse costume
não se limitava ao povo de Israel. Naturalmente, o propósito era preservar
a herança em famílias e clãs específicos, o que era muito importante em
civilizações agrárias. No caso de não haver irmão do falecido para casarse com a viúva, outro parente mais próximo assumia.
Com relação à humilhação acima citada, caso o cunhado não se
predispusesse a casar com a cunhada viúva, os sacerdotes podiam
liberá-lo de sua responsabilidade mediante um ato público que consistia
da rejeitada tirar uma de suas sandálias e lhe cuspir no rosto, ao mesmo
tempo em que proferia insultos verbais. A perda da sandália era chamada
de halizah, que significava a liberação do compromisso. 56
Foi exatamente por essa razão que os Saduceus, uma seita do
tempo de Cristo, que não acreditava na ressurreição, certa vez indagaram
a Jesus nos seguintes termos: “Mestre, Moisés disse: Se alguém morrer,
não tendo filhos, seu irmão casará com a viúva e suscitará descendência
ao falecido. Ora, havia entre nós sete irmãos. O primeiro tendo casado,
morreu e, não tendo descendência, deixou sua mulher a seu irmão; o
mesmo sucedeu com o segundo, com o terceiro, até ao sétimo; depois de
todos eles, morreu também a mulher. Portanto, na ressurreição, de qual
dos sete será ela esposa, porque todos a desposaram? (Mateus 22:2428).
Na verdade, a lei do Levirato, praticada entre os judeus, está
intimamente ligada ao sistema de patriarcado contido na legislação
judaica. Considerando que o filho mais velho assumia todos os negócios
do pai e, como tal, herdava mais que os outros, com a finalidade de
manter concentrado o patrimônio da família. Se todos os filhos viessem a
morrer, o patriarca adotava um herdeiro para casar com a viúva.
56
CHAPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia:
teologia e filosofia. São Paulo: Candeia, 1997. v. 2. p 181.
2.1.4.2 A formação familiar no Novo Testamento
A família monogâmica advém da família sindiásmica (formada por
um casal) e constitui a linha divisória entre os estágios superior e médio
da barbárie. Tem fundamento no poder do homem, a finalidade de
procriar filhos, cuja paternidade é certa, pois é justamente fundado nela
que se permitirá transmissão dos bens do falecido pai, por direito
hereditário, aos filhos.
A monogamia caracteriza-se pelo matrimônio de casais individuais,
com obrigação de coabitação exclusiva entre eles. Adveio, forçosamente,
em decorrência da concentração de uma considerável fortuna nas mãos
de uma mesma pessoa, as do homem, e o desejo de transmiti-la, por
herança, aos filhos deste mesmo homem e não de outro.
Por um simples olhar para o passado, na história da origem e
evolução da família, dentre os povos mais civilizados, é fácil constatar
que a monogamia alcançou o seu ponto alto como forma de constituição
da família, na própria Antigüidade.
Os historiadores há muito têm apresentado as famílias gregas 57,
romanas 58, na Antigüidade, como exemplo de famílias monogâmicas e,
57
Michel Foucault menciona que Demóstenes em apenas uma frase esclarece a
posição homem no aspecto sexual na antiga Grécia: “As cortesãs, nós as temos para o
prazer, as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas, para ter uma
descendência legítima e uma fiel guardiã do lar.” (FOCAULT, Michel. História da
sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1977. v. 2. p. 129.
mais recentemente, os estudiosos apontam também as germânicas 59. Há
de se admitir que o casamento monogâmico nem sempre foi sinônimo de
proibição de relações sexuais fora do casamento para o homem, pois na
história daqueles três povos são encontradas provas de que isso ocorria,
quando já praticavam a monogamia.
A palavra “monogamia” é formada por dois termos gregos: monos,
que significa ”único”, e gamos, que significa “casamento”. Assim, a
monogamia é a prática ou princípio de um único casamento de cada vez:
um homem – uma mulher. Usualmente, esse princípio não é considerado
como violado se uma pessoa tornar a casar-se no caso do primeiro
casamento tiver sido considerado nulo, por qualquer razão legítima,
embora o primeiro cônjuge continue vivo.
A monogamia faz oposição à bigamia, que nada mais é de uma
pessoa ter mais de um cônjuge ao mesmo tempo. A sociedade judaica
58
De acordo com Leonel Itaussu Mello, após a vitória sobre Pompeu, Julio César tão
logo desembarca no Egito, interfere na sucessão dinástica a favor de Cleópatra, que
não obstante casado em Roma, tornou-se amante desta última, de forma pública e
notória, chegando ela ir a Roma, acompanhada de um filho comum de ambos (MELLO,
Leonel Itaussu A., et al. História antiga e medieval. São Paulo: Abril Cultural, 1985,
p. 153).
59
“ Mas o maior progresso da evolução da monogamia produziu-se decididamente com
a entrada dos germanos na história, e isso porque, entre eles, sem dúvida por causa
de sua pobreza, parecia não se haver desprendido, ainda por completo, naquele
momento, do casamento sindiásmico. [...] A poligamia ainda vigorava apenas entre os
potentados e chefes de tribu. [...] a transição do direito materno para o paterno não
devia ter ocorrido senão pouco antes, porque o irmão da mãe era considerado como
parente mais próximo do que o próprio pai. [...] entre os germanos, as mulheres
desfrutavam de alta consideração e exerciam grande influência, inclusive nos negócios
públicos, o que está em contradição direta com a supremacia masculina da
monogamia” (ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do
Estado. Rio de Janeiro: Calvino, 1944. p. 94).
antiga, como a maioria, foi polígama, mas no Novo Testamento o ideal é
a monogamia.
Importante destacar que nos primórdios bíblicos, a ordem correta
era a monogamia e, posteriormente, a poligamia foi permitida e até
mesmo encorajada, tendo-se tornado a forma dominante de casamento.
Abraão, pai do judaísmo e todos os seus filhos foram polígamos. O trecho
bíblico que o regulamenta é Deuteronômio, 21:15 e ss. Apesar do
judaísmo pós-exílico ser predominantemente monógamo, nem por isso a
prática da poligamia foi, oficialmente, abandonada.
Na
verdade,
Cristo
não
falou
nada
sobre
as
questões
de
monogamia ou poligamia. Todos os textos do Novo Testamento sobre a
questão são tratados, quase que especificamente, pelo Apóstolo Paulo.
Todas as vezes que ele trata da ocupação de posição hierárquica na
administração da igreja, como presbítero ou diácono, a recomendação é
que tal homem seja marido de uma só mulher, em que pese o fato de ele
mesmo não ter sido casado.
Nos dias de Jesus, ainda havia a poligamia em Israel, e o divórcio
era
tão
fácil
que
casamentos
plurais,
em
sucessão,
tornaram-se
extremamente comuns. Jesus ressaltou o ideal original da monogamia, e
isso passou para outros textos do Novo Testamento.
Curiosamente, não há nenhum texto no Novo Testamento que,
explicitamente, proibisse ou condenasse a poligamia, mas no tocante aos
que aspiravam o episcopado ou o diaconato, a recomendação era que
fossem maridos de uma só mulher, conforme a primeira carta de Paulo a
Timóteo 3:2.
Não muito tempo antes do advento dos ensinamentos de Jesus,
dois famosos judeus apresentaram duas idéias judaicas básicas acerca
do divórcio. Eram eles Shamai e Hilel. A escola de Shamai proibia o
divórcio exceto sobre a base do adultério, sendo essa a posição mais
estrita e conservadora. A escola de Hilel, por sua vez, permitia o divórcio
por, praticamente, qualquer motivo, até mesmo quando não houvesse
motivo, bastando que um homem se tivesse cansado de sua mulher. Com
isto pode-se avaliar que a situação não era pacífica nem mesmo entre os
judeus.
2.2 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E A FORMAÇÃO
FAMILIAR NA PENÍNSULA IBÉRICA
Como o país mais ocidental do continente europeu, Portugal foi,
durante séculos, considerado o fim do mundo. Quando os romanos
conquistaram a Península Ibérica encontraram “vários povos indígenas”. 60
Segundo Nuno Gomes da Silva,
60
OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal. 11 ed. Lisboa: Palas, 1993. v. 1.
p. 19.
Cartago que traz Roma à Península Ibérica quando em 218
a.C., Gneu Cornélio Cipião desembarca, com as legiões
romanas, em Ampúrias, trazendo a intenção de debilitar a
retaguarda do exército de Aníbal inicia-se, então, o
processo que irá conduzir à anexação de Espanha ao
império romano. [...] Vai se seguir uma longa luta contra os
povos indígenas, em que se salientam lusitanos, cantabros
e ástures, luta esta que só se pode considerar terminada
no tempo de Augusto, em 19 a.C>, com a final submissão
dos cantabros e ástures. 61
O
domínio
do
Império
Romano
sobre
a
Península
Ibérica,
provavelmente, ocorreu desde o início do segundo século a.C., desde a
derrota cartaginesa em Ilipa no ano 206 a.C., quando os romanos
consideraram a Península Ibérica como um território provincial. 62
Os romanos procederam à divisão administrativa criando três
províncias: a Galécia, que corresponde à região ao norte do Rio Douro; a
Lusitânia, entre esse rio e o Guadiana; e a Bética, que abrangia uma
pequena parte do território atual e se prolongava pelo Sul da Espanha.
Assim,
se
criaram
três
jurisdições
ou
conventus,
com
a
capital,
respectivamente, em Bracara Augusta (Braga), Scalabis (Santarém ou
Moron) e Pax Julia (Beja). Vários aglomerados se mantiveram até os dias
de hoje, como Cale (Gaia), Aeminium (Coimbra), Colippo (Leiria), Olisipo
61
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português. 2 ed. Lisboa:
fundação Calouste Gulbenkian, 1991. p. 20.
62
ESCUDERO, José Antonio. Curso de história de derecho. Madrid: Solana e Hijos,
1995. p. 126.
(Lisboa), entre outros. Na época, muitos desses povoados se tornaram
grandes cidades, como Tróia, importante pela indústria da pesca e da
salgação; Salácia, cidade-armazém; e Egitania ou Civitas Igaeditanis, que
foi centro de uma região mineira e teve guarnição militar no tempo de
Cláudio e Nero. Ainda se pode referir às muitas villae, ou grandes
explorações agrícolas, como Pisões (Beja), Torre de Palma, entre outras.
A mais perdurável contribuição romana foi o idioma latino, na medida em
que constituiu a base do galaico-português. 63
A Idade Média surgiu com o enfraquecimento e aniquilamento do
Império Romano. A invasão bárbara desloca e transforma o modo de vida
dos povos na Europa, trazendo profundas modificações nos costumes,
nas formas de governos, nos idiomas e na divisão geográfica.
No século V, os povos germânicos que haviam se infiltrado já há
três séculos no Império Romano como invasores ou federados, invadiram
a Península Ibérica. Por volta de 409, entraram os alanos, os vândalos e
os suevos, e os dois primeiros dominaram a Lusitânia e os últimos a
região do Minho e da Galiza. Entretanto, com a chegada dos Visigodos,
ao redor de 415, os alanos e os suevos retrocederam. Mas os suevos
integraram os alanos a quem eram superiores pela cultura, e ocuparam a
região que vai da Galiza à foz do Tejo. Os suevos converteram-se ao
catolicismo e procuraram se impor aos visigodos, cujo domínio militar era
63
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1080-1415. 3 ed. Lisboa:
Verbo, 1979.
superior. Embora os visigodos tenham dominado toda a península, o
cristianismo se estabeleceu, graças à influência dos suevos. 64
O último componente populacional significativo na história da
Península Ibérica foi o dos povos islâmicos, a partir do século VIII, e a
“reconquista” cristã só foi ocorrer por volta do século XV. 65
Com a invasão dos árabes, o que restou do povo romano-gótico, na
Espanha, e que optou por manter sua tradição, foi refugiar-se nas
montanhas das Astúrias e Galícia para se livrar do jugo árabe e passou a
combatê-los, fato este que, ao longo dos séculos, possibilitou a
reconquista de toda a Península Ibérica por meio do sangue visigodo e do
que havia restado da mistura dos celtas e romanos, após sete séculos de
domínio árabe. 66
Para Van Loon,
o sucesso dos mulçumanos nas suas lutas contra os
cristãos derivava do fervor dos combatentes, que se
alistavam para combater pela verdadeira fé. O Profeta, que
veio a falecer em 632 d.C., prometera aos que tombavam
em face do inimigo o acesso imediato ao céu. Em 700,
Tarik, general maometano, transpondo as Colunas de
Hércules,
alcançou
a
vertente
européia
do
alteroso
rochedo que batizou Gibel-al-Tarik (montanha de Tarik) ou
64
Ibid.
OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal. 11 ed. Lisboa: Palas, 1993. v. 1.
66
LOUTH, Patrick. A civilização dos germanos e dos vikings. Rio de Janeiro: Otto
Pierre Editores, 1979. p. 72.
65
Gilbratar. Na batalha de Xerez de la Fronteira, Tarik
derrotou o rei dos Visigodos, dali continuou, com seu
exercito, a avançar pelo norte, só tendo sido vencido,
numa batalha entre Tours e Potiers. Rechaçados na
França, os maometanos estabeleceram-se na Espanha
onde Abd-as-Rahman fundou o califado de Córdova, que
viria a ser o maior centro artístico e científico da Europa
medieval.
Da invasão árabe sobre a Península Ibérica restaram apenas as
obras de artes, em especial na arquitetura representada pelos palácios
suntuosos do sul da Espanha, que não foram destruídos pela guerra e
algumas palavras incorporadas à linguagem portuguesa e espanhola.
2.2.1 A formação religiosa e familiar em Portugal e sua submissão ao
Papado
O povo português, cujo território esteve sob o jugo do Império
Romano, dos bárbaros e dos árabes durante muitos séculos, passou
pelas mais diversas transformações ao longo do tempo, principalmente,
pelas interações sociais que provocavam as conquistas obtidas pelos
novos povos dominadores da Península Ibérica.
Enquanto os romanos mantiveram o domínio das Hespanhas, de
cujo território seria posteriormente desmembrada uma porção que se
converteria no reino de Portugal e Algarves, exerceram grande influência
sobre esse território, especialmente, no que diz respeito à constituição
das famílias 67.
O povo romano se dedicou às realizações materiais e objetivas,
emprestando ao direito um caráter de perenidade e, dessa forma,
conseguiram fixar normas que ainda hoje persistem devido a sua
praticidade e utilidade.
Quando
dominaram
a
Península
Ibérica,
o
Império
Romano
encontrava-se em pleno período do direito clássico à luz da divisão
baseada no desenvolvimento do direito privado. Nessa época, o caráter
político da família romana já sofria um processo de atenuação em termos
de inflexibilidade do seu controle por parte do pater famílias.
Nessa época, para configuração do matrimonio romano clássico se
faziam necessários três pressupostos para que uma relação fosse
qualificada de justae nuptiae, com os conseqüentes efeitos jurídicos: a
puberdade dos cônjuges (idade de 14 anos para o homem e 12 anos para
a mulher); conubium (casamento) entre eles e vontade de ser marido e
mulher (affectio maritalis). 68
Portanto, as famílias romanas eram constituídas em todo o território
peninsular sob a égide do governo romano.
67
CAMPOS, Diogo Leite de. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Separata
do Boletim da Universidade de Coimbra, 1989.
68
CAMPOS, Diogo Leite de. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Separata
do Boletim da Universidade de Coimbra, 1989. p. 5.
Explica Ebert Chamoun que os romanos consideravam o matrimônio
como a união entre o homem e a mulher, objetivando estabelecer uma
comunhão íntima e duradoura. Indiscutivelmente, o casamento romano
resultava da troca inicial de consentimentos, mas esse se constituía mais
em um estado do que propriamente um ato. A affectio maritalis era um
requisito para o casamento e deveria existir em todos os momentos.
Quando ela cessava, também cessava o matrimônio. Portanto, o
casamento romano diferia do matrimônio atual, uma relação criada por
um ato jurídico inicial e independente da persistência da vontade dos
cônjuges. 69
Com a segunda invasão dos visigodos na Península Ibérica e a
entrada em vigor da Lex Romana Wisigothorum (Lei Romana Visigoda),
destinada a ser aplicada aos súditos romanos do reino visigótico na
Espanha, tem-se que a constituição das famílias, pelo casamento não
sofreu alterações, pois esta legislação tinha por base o direito romano.
Os godos, porém, possuíam direito próprio que se aplicava unicamente a
eles.
Os visigodos também tinham o costume de constituir a sua família
pelo do casamento, e este era antecedido dos esponsais, quando então
se fazia a promessa do dote, na presença de testemunhas, consumandose o matrimônio pelo pagamento de um dote feito pelo noivo. Este
pagamento passou a ser convertido em dote destinado à noiva, ao qual
69
CHAMOUN, Ebert. Natureza jurídica do matrimonio. Revista Forense, v. 183, p. 3537, jul./ago. 1959.
se acrescia a “morgengabe”, que era uma oferta do marido na manhã
seguinte à realização do casamento.
A esse respeito Clóvis Beviláqua afirma que:
A forma jurídica da celebração do casamento, no antigo
direito germânico, era a compra da noiva feita ao seu pai
ou ao seu sipe, e assim a mulher entrava para o mundium
do marido. Algumas vezes, o casamento se efetuava pelo
rapto de uma estrangeira, mas não era esta uma forma
simpática aos espíritos. 70
Ainda informa Clóvis Beviláqua que os povos bárbaros introduziram
na
Península
Ibérica
uma
outra
modalidade
de
casamento,
que
denominado de morgamático, tendo sido praticado posteriormente pelos
portugueses. Essa modalidade era utilizada se entre o homem e a mulher
houvesse diferença considerável de posição social, pois não constituía
uma família com os direitos comuns à herança, à comunicação dos bens
e à consideração civil do seu chefe.
Posteriormente, verificou-se a unificação das leis, de forma que o
novo estatuto jurídico Lex Wisigothorum tinha aplicabilidade, tanto para
os romanos, como para os godos, ou seja, a todos os habitantes da
Península Ibérica. Esta legislação suspendeu a proibição entre romanos e
visigodos, o que permitiu a fusão dos dois povos e dispôs sobre o poder
70
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 47.
marital, da comunhão entre marido e mulher e a sucessão legítima,
institutos estes que influenciaram diretamente o direito moderno.
Com relação à posição do cristianismo sobre o casamento, em seu
início não se encontra nem a priorização do casamento nem da família,
mas sim o ascetismo, que tinha como valores essenciais a virgindade e a
continência, cuja consistência eram na sua maioria extraída dos próprios
textos apostólicos, em que a máxima era a renúncia da carne, ou seja, a
abstenção do ato sexual, a todos que almejassem um dia ganhar o Reino
dos Céus. 71
Está claro que a doutrina pregada pelos apóstolos cristãos,
especialmente, por Paulo e Mateus, tinha apoio no Antigo Testamento,
que além de conhecer o amor carnal, também admitia para o homem
certas relações extraconjugais. O Novo Testamento se limitou a pregar o
monogamismo e a indissolubilidade da união, que realmente não conferia
base firma para defesa do casamento, considerando que este era inferior,
tanto ao posicionamento da virgindade, como da continência.
Nesta linha de raciocínio, Diogo Leite Campos afirma que
nos primeiros séculos da Igreja, sobretudo antes do
reconhecimento oficial desta, o matrimonio cristão não
existia. A sua invenção teve de ultrapassar duas séries de
obstáculos: o peso da tradição judaica; a vacuidade das
normas do Novo Testamento sobre a matéria. O Novo
71
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo:
Ática, 1992. p. 33.
Testamento poucas normas editou, Jesus não se preocupou
em legislar; viveu e falou de Deus feito homem – suposto
que um homem pudesse, inconcibivelmente, pensar deus
como homem, as escassas respostas que Cristo deu a
problemas
jurídicos
limitam-se
a
declarar
a
indissolubilidade do matrimônio. 72
Dessa forma, semelhantemente, o que ocorrera com a maioria das
religiões antigas, o próprio cristianismo também passou a ter influência na
regulamentação normativa a respeito da família, especialmente, a partir
do ano de 324 d.C, quando o Imperador Constantino, no Edito de Milão
dava liberdade a todos os cultos e devolveu aos cristãos todos os bens
que lhes haviam sido confiscados durante a última perseguição.
A partir de então, ocorreu uma inversão na situação religiosa, pois
o cristianismo de religião proscrita e perseguida pelo Império Romano,
passou a ser quase a religião oficial, enquanto eram previstas severas
punições a outras práticas religiosas, inclusive a pena de morte no caso
de comprovação da prática de sacrifícios pagãos e magia. 73
Em maio de 325 d.C., quando ocorreu o Concílio de Nicéia, a Igreja
Católica deixou de ser uma mera corporação, para se constituir um sujeito
de estado, com poderes, privilégios e competência própria, erigida com
uma figura de igual poder ao Estado, inicialmente, dentro de seus limites,
72
CAMPOS, Diogo Leite. A invenção do direito matrimonial. Coimbra: Boletim da
Faculdade de Coimbra, 1989. p. 8-9.
73
FRÖLICH, Roland. Curso básico da história da Igreja. 3 ed. São Paulo: Paulus,
1987. p. 31.
tendo sido aí que surgiu o problema da regulamentação da relação entre
Igreja e Estado, ou seja, entre os poderes temporal e espiritual.
Explica Waldemar Martins Ferreira, que ao termo “cânon” (Kanoon),
que deu origem a expressão “cânones eclesiásticos” e ao Direito
Canônico, é um vocábulo de origem grega que passou a ser utilizado a
partir do Concílio de Nicéia (325 d.C.) para indicar o conjunto de regras
disciplinares da Igreja, em oposição às leis civis. Esse Direito como o
Direito privado dos povos cristãos, teve assim como o Direito Romano,
um amplo predomínio por um longo período de tempo, exercendo em
vários aspectos a função de direito comum, pela generalidade de sua
observância e ampliação da jurisdição eclesiástica, chegando a se
confundir com a jurisdição civil de cada nação. 74
Assim, nem mesmo o declínio e queda do Império Romano chegou
a prejudicar a expansão do cristianismo, considerando-se que o seu
fracionamento em pequenos impérios, monarquias ou feudos vieram
facilitar ainda mais a importância do poder papal e, conseqüentemente,
do Direito Canônico, uma vez que era o único direito organizado no
período da Idade Média.
Mesmo tendo atingido tão grande poder, a Igreja não procurou
eliminar o caráter civil do casamento atribuído pelo Direito Romano. Mas
contemporizou-se com as idéias romanas, pois devia fazer concessões
aos bárbaros. Ao considerar o casamento completo, independentemente
74
FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito brasileiro. Rio de Janeiro:
Livraria Freitas Bastos, 1952. t. II, p. 166-167.
da bênção do sacerdote e da publicação dos proclamas, as lideranças da
Igreja, tanto faziam propaganda religiosa como, conseguiam tornar
desnecessário o concubinato. 75
Em um determinado momento, a Igreja Católica se viu obrigada a
apoiar o instituto do casamento, relegando a segundo plano a defesa da
virgindade e castidade, pois nele via a constituição da família estável, de
onde surgiam os homens que ajudariam a fornecer à Igreja de Cristo a
principal base para a expansão da fé cristã, principal meta do catolicismo.
Os Concílios de Bourbes, em 1 de novembro de 1031, e o de
Limoges, em 18 de novembro do mesmo ano, os temas tratados referiamse à paz de Deus, ao casamento e à eficácia prática da excomunhão.
Nesses Concílios foi decidido que o casamento dos clérigos deveria ficar
sujeito à jurisdição eclesiástica, cuja primeira conseqüência séria foi a
repressão aos clérigos que praticassem bigamia e o segundo reflexo foi
ter preparado o caminho para, futuramente, impor o celibato aos membros
da Igreja católica.
No Concílio de Reims (1049) ficou estabelecida a posição de que
apenas a Igreja competia pronunciar-se sobre o vínculo conjugal e que
todos os assuntos relacionados deviam ser submetidos à sua apreciação.
Também foi reafirmada a indissolubilidade do casamento, e o Concílio de
Tours (1060) enfatizou o princípio eclesiástico sobre o casamento
consangüíneo e sobre as segundas núpcias, estabelecendo a pena de
75
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 54.
excomunhão para quem, sem sentença episcopal, repudiasse sua mulher
e se casasse com outra. 76
Dessa forma, a questão do casamento e divórcio passou a ser
matéria de competência exclusiva dos tribunais eclesiásticos, bem como
76
Interessante mencionar que o poder da Igreja era tal que a partir da bula Unan
Sanctam, editada pelo papa Bonifácio VIII (1294 a 1303), o poder temporal passou a
ser confiado ao imperador pelo Papa, sob controle da Igreja. Assim, a Igreja Católica
Apostólica Romana os sagrava e podia excomungá-los, mas o Papa não podia exercer
o poder temporal. Mas, houve reação à essa determinação: o reinado de Felipe IV, da
França, foi marcado por diversos desentendimentos com a Igreja Católica, que tiveram
início em 1296, quando o Papa Bonifácio VIII publicou um documento no qual
declarava que as propriedades da Igreja seriam isentas de quaisquer obrigações
seculares. Felipe contestou, argumentando que, se a Igreja não pagasse tributos à
França, então a França também não pagaria tributos à Igreja. Imediatamente, Felipe IV
proibiu a remessa de dinheiro ou produtos franceses à Igreja. Solicitou também a
criação de um conselho para analisar as denúncias de heresia e corrupção por parte
de Bonifácio e chegou a prender o bispo de Palmiers, Bernard Saisset, sob a acusação
de traição. Por causa disso, Bonifácio decidiu excomungar o rei. Um dia antes da
publicação do documento de excomunhão na Catedral de Alagna, onde Bonifácio
residia, os emissários de Felipe invadiram o palácio e mantiveram o Papa em cárcere
privado, saqueando sua residência e o agredindo fisicamente. Bonifácio foi salvo três
dias depois pelos habitantes de Alagna, mas não resistiu e morreu em Roma um mês
depois, aos 86 anos. A eleição de Clemente V, que transferiu a sede do papado para
Avignon (França), em 1307, e anulou a excomunhão decretada por Bonifácio e selou a
vitória de Felipe IV. (COMBY, Jean. Para ler a história da igreja: das origens ao
século XV. São Paulo: Loyola, 1993. p. 174). O papado permaneceu em Avignon até o
ano de 1377. Ao todo sete papas estabeleceram sua residência em Avignon. Gregório
XI se propôs a mudar sua sede para Roma, fazendo-o no início de 1377, mas faleceu
no ano ano seguinte. Apesar de um terço dos cardeais que compunha o conclave ser
de origem francesa e de haver uma preferência dessa nacionalidade e voltasse a
Avignon, estes se dividiram sobre qual francês eleger. Além disso, estavam em Roma
e sujeitos ao clamor da população. Assim, escolheram um napolitano erudito,
administrador experiente, austero em sua moral e zeloso pela reforma, mas arrogante,
Urbano VI, o qual se recusou a voltar a Avignon, repreendendo publicamente os
cardeais. Mas, alguns cardeais eram de sangue nobre e se ressentiram com o Papa, a
quem consideravam de origem humilde. Poucos meses depois esses cardeais
abandonaram Roma, declarando que a eleição de Urbano VI se dera por intimidação
por parte da população romana e, portanto, era ilegal, requerendo sua renúncia e
denunciando-o como apóstata e anticristo. A maioria francesa do colégio de cardeais
elegeu outro papa, um príncipe aparentado do rei da França, que assumiu com o nome
de Clemente VII, estabelecendo-se em Avignon. Espanha, França, Escócia e parte da
Alemanha apoiaram Clemente VII, enquanto que a Itália, a maior parte da Alemanha,
Inglaterra, Escandinávia, Bohemia, Polônia, Flandres e Portugal apoiavam Urbano VI.
Para solucionar o problema da cisma, foi realizado em Pisa, em 1409, um concílio com
os cardeais de Avignon e de Roma que elegeram um novo papa, João XXIII. Mas, os
outros dois não renunciaram, ficando a Igreja com três papas. Outro concílio, muito
maior, foi realizado em Constancia (1414 a 1418), o qual colocou fim ao cisma,
elegendo como ppa Oddone Colinna, membro de uma antiga família romana, que
tomou o título de Martin V (LATOURETTE, Kenneth Scott. História do cristianismo. 3
ed. Casa Bautista de Publicaciones, 1976).
a maioria das questões jurídicas passou a ser julgada por juízes
eclesiásticos, como em casos da causa spiritualei (espiritual) e as ius
parochiale (direito paroquial), além das causae seculares (causas
seculares), ratione peccati (em razão de pecado), privilegium fórum
(fórum privilegiado) e aquelas decorrentes de acordo arbitral.
Assim, a Igreja predominou em matéria de casamento, com o padre
tomando o lugar do pai da noiva e tornando-se a principal figura no ritual
da celebração, na condição de testemunha de Deus e a casa paterna foi
substituída pelo local da Igreja. Assim, a história política, econômica e
social da Idade Média está intimamente relacionada à história da família.
Logo, foi atingida a meta da Igreja Católica de impor o casamento como
um ato que marcava a constituição de nova família entre duas pessoas de
sexos opostos e que, além de um ato da vida civil, também era um
sacramento
dependente
das
palavras
sacramentais,
declarando-os
casados, o que podia ser realizado apenas por um representante da
Santa Igreja.
Em Portugal, assim como nos locais onde era professado o
cristianismo, os cristãos do primeiro milênio contraiam o casamento
segundo as leis de suas cidades e dos seus estatutos pessoais,
procurando viver de forma diferente da dos pagãos, seguindo a moral
cristã, mas submetidos a vigilância no que diz respeito à vida de casados,
ocorrendo inclusive punições para os casos de prática de infrações
consideradas de natureza grave, especialmente, quando se tratasse de
adultério.
Em um primeiro momento, era importante a conscientização de que
o casamento era para toda a vida, mas ainda não se impunha de modo
absoluto
a
condição
da
sacramentalização,
prevalecendo
o
posicionamento do direito romano, que o tinha como um contrato
celebrado através do consenso, admitindo-se a possibilidade de repúdio
por parte do marido por motivo justo.
Entretanto, no caso específico de Portugal, quando d. Henrique,
Conde de Borgonha, optou pela autonomia política para o Condado
Portucalense, comprometeu-se a submeter vassalagem ao Papa, ao
mesmo tempo em que decidiu que o futuro do país deveria ser submetido
ao completo domínio da religião católica em seu território. Dessa forma, o
povo português adotou por maioria absoluta o cristianismo, o que
conduziu ao predomínio absoluto do catolicismo diante da monarquia
lusitana e, conseqüentemente, passou a religião católica ser considerada
religião oficial do Estado. No que dizia respeito ao casamento, deve-se
observar que a legislação laica portuguesa, praticamente, não tratava
desta matéria, deixando sua regulamentação por conta do Direito
Canônico.
De acordo com Cabral de Moncada, em Portugal, eram admitidos
duas
espécies
de
casamento:
o
casamento
de
bênção
(ad
benedictionem), designado pelo Concílio de Trento por “prelado a porta
da Igreja” e o casamento de pública fama (maridos conhecidos) 77, mas
77
Este tipo de casamento era realizado entre as famílias e depois reconhecido pela
Igreja (maridos conhecidos).
como meios de provas do casamento admitia-se ainda o casamento de
furto ou de juras, sendo esses inferiores ao casamento de benção, nos
quais havia o mútuo consenso dos contraentes com firmação de
juramento perante qualquer ministro do culto. 78
Observa-se que o casamento de juras ou de furto, como forma de
constituição de família em Portugal, não tinha diferença jurídica dos
casamentos celebrados com as bênçãos da Igreja, mas esta os reprovava
através de sanções canônicas e desfrutava socialmente de menor
dignidade.
No século XVI, fatores como o fortalecimento da autoridade do rei,
o renascimento do Direito Romano e a pressão exercida pelo movimento
da reforma levaram o estado a reivindicar a competência para legislar e
julgar as questões relacionadas aos Direito de Família, confrontando com
a posição da Igreja.
A resposta da Igreja se deu pelo Concílio de Trento (1542-1563),
quando foram estabelecidas as regras e preceitos a que deviam se
submeter
o
matrimônio,
introduzindo
a
exigência
dos
proclamas,
manifestação inequívoca da intenção de se receberem em matrimônio,
tanto por palavras ou gestos perante o pároco e diante de no mínimo
duas testemunhas, a bênção nupcial e a elevação à dignidade de
78
MONCADA, L. Cabral de. Estudos de história do direito: o casamento em Portugal
na Idade Média. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1948. p. 37-81.
sacramento, sendo considerado por isso intangível e fora de toda
regulamentação e jurisdição civis. 79
A conseqüência direta do estabelecimento dessa regras foi que os
casamentos clandestinos passaram a ser declarados e considerados
como inválidos e a falta de publicidade dos atos matrimoniais, diante do
Direito Canônico, implicava deixar de ser de Deus o ato do casamento,
mas do diabo. Portanto, foram combatidos, pois possibilitavam distorções
no meio social, em decorrência do seu sigilo, facilitando a bigamia e a
inexistência de autenticidade do ato implicava a vulnerabilidade da
constituição da família. 80
A Coroa portuguesa, por intermédio do regente d. Henrique
concordou com as decisões tomadas pelo Concílio de Trento, mandando
executar os decretos da bula de 1564, determinando pelo Alvará de 12 de
setembro desse mesmo ano, que todas as autoridades do Reino e seus
domínios que ajudassem aos prelados para que se cumprissem. Em 1569,
El-Rei d. Sebastião ratificou o ato do regente, determinando a aplicação
das disposições do Concílio de Trento em todo o solo português. Pela Lei
de 8 de abril de 1596, foi adotado expressamente o cânone determinando
o casamento como sacramento e a Lei de 13 de novembro de 1651, por
solicitação das Cortes, determinou a aplicação de rigoroso castigo tanto
79
SEABRA, Antonio Luiz de. Duas palavras sobre o casamento pelo redactor do
Código Civil português de 1867. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866.
80
GAMA, Manuel de Azevedo Araújo e. Estudo sobre o casamento civil. Coimbra:
Imprensa Acadêmica, 1881.
aos contraentes como a todos que cooperassem para a realização de um
casamento clandestino. 81
2.2.2 A religião como forma de expressão e a constituição de família
no Brasil Colonial e Imperial
2.2.2.1 O Brasil colonial, sua religião e sua família
O Brasil esteve sob o jugo colonial do Reino de Portugal desde o
seu descobrimento, em 22 de abril de 1500, até a data de sua
Independência em sete de setembro de 1822. Esses 322 anos de jugo
português pode ser subdividido em três períodos: período colonial,
quando as ordens emanavam da Metrópole para o Brasil (22.4.1550 a
06.3.1808); período do Brasil-Corte, desde a chegada da família real ao
Rio de Janeiro, em 7 de março de 1808 até 16 de dezembro de 1815,
data em que foi editada a Carta de Lei, elevando o Brasil à categoria de
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tal condição perdurou até a
Proclamação
da
Independência,
em
1822.
Nesse
estudo,
porém,
considera-se como período colonial o período entre o descobrimento e a
Proclamação da Independência (22.4.1500 a 07.9.1822).
81
GAMA, Manuel de Azevedo Araújo e. Estudo sobre o casamento civil. Coimbra:
Imprensa Acadêmica, 1881. p. 153.
Os colonizadores portugueses, no que diz respeito à moral e ética
familial, trouxeram para o Brasil aquilo que aprenderam em Portugal, ou
aquilo que seus ancestrais sabiam e lhe repassaram e que tinha por
fundamento as concepções do cristianismo medieval que, posteriormente,
fora enriquecido com as devidas influências do Concílio de Trento,
quando era consenso o dever de se respeitar o homem como chefe da
família e a mulher como eterna subalterna do marido e responsável direta
pela guarda e criação dos filhos.
De acordo com Mendes de Almeida, no período colonial, o homem,
ou seja, o colonizador português, no momento de constituir a sua família
entendia que
era preciso escolher bem, casar certo, já que o erro
poderia levar a uma situação-limite insuportável, cuja
solução – a separação – não era vista como solução,
sobretudo para o homem. E não era solução porque
implicava, ou na “continência” – o abster-se de relações
sexuais não sacramentadas, e portanto, pecaminosas – ou
na ‘desordem do pecado e da paixão”. Da mesma forma, o
não casar-se colocava estas duas mesmas alternativas, ou
outra pior, a do “pecado nefando”. O casamento era,
portanto, equivalente à ordem [...] e [...] ao conforto e bem
estar. 82
82
ALMEIDA, Ângela Mendes de. Família e modernidade: o pensamento jurídico
brasileiro no século XIX. São Paulo: Porto Calendário, 1999. p. 52.
Manifesta-se a respeito J. Capistrano de Abreu ao afirmar que a
Igreja dominava de forma soberana pelo batismo, o qual era tão
necessário para a vida civil como para a salvação da alma; pelo
casamento, que podia permitir anular impedimentos dirimentes; pelos
sacramentos, distribuídos pela da existência inteira; pela excomunhão,
que incapacitava para todos os sacramentos e separava da comunicação
dos santos; pela morte, permitindo ou negando sufrágios, deixando que o
cadáver descansasse em lugar sagrado junto aos irmãos ou apodrecesse
em companhia dos bichos. Dominava, também, pelo ensino, limitando e
definindo crenças. 83
Portanto,
verifica-se
que
todo
o
conjunto
de
regras
do
comportamento humano, sejam civis, religiosas, morais ou éticas,
funcionavam como uma verdadeira pressão psicológica para que o
homem se casasse e viesse a formar sua família, tão necessária e tão
desejada, tanto na sede do reino, como na colônia brasileira.
Como não poderia deixar de ser, a Igreja Católica Apostólica
Romana, com base sólida no Reino de Portugal e na condição de religião
oficial daquela monarquia, logo se interessou em trazer a sua religião
para a nova colônia, visando, principalmente, a converter os gentios que
existiam aos milhares, por meio da fundação de aldeias indígenas
destinadas à catequese, e oferecer educação aos filhos dos colonos, com
a criação de colégios educacionais e seminários. Portanto, sempre que
83
ABREU. J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976. p. 14.
partiam esquadras de Portugal havia pelo menos um representante da
Igreja Católica a bordo. 84
É importante destacar que Portugal foi uma das poucas nações que
aceitaram de forma incondicional as decisões do Concílio de Trento,
visando a sustentar os princípios dogmáticos da Igreja Católica diante da
Reforma Protestante. Dessa forma, surgiu uma aliança entre o Estado
português e a Igreja Católica denominada de “padroado”. Por esse
padroado, por concessão do papa, os monarcas portugueses exerciam o
governo religioso e moral no reino e nas colônias. Assim, o monarca
detinha, também, o poder espiritual sobre seus súditos, podendo deles
exigir doações e taxas para a Igreja, além de administrar a cobrança do
dízimo e controlando sua distribuição entre as paróquias e a diocese. 85
A história religiosa regular na colônia teve início com o governo de
Tomé de Souza, pois com ele chegaram ao Brasil, em 1549, os jesuítas,
chefiados por Manoel da Nóbrega, que juntamente com José de Anchieta,
realizou um grandioso trabalho, no Brasil, primeiramente, pela dedicação
à catequese entre os índios, ensinando-lhes os princípios básicos da
religião católica, combatendo o contato deles com os europeus, a
poligamia,
84
o
antropofagismo.
Dedicaram-se,
especialmente,
à
ABREU. J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976. p. 14.
85
PRIORE, Mary del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo:
Ática, 1997. p. 8.
evangelização dos indiozinhos (os corumins), além de ensina-lhes a ler e
a escrever em língua portuguesa. 86
Embora Portugal controlasse, rigidamente, a circulação de livros ou
a instalação de imprensa na Colônia, os jesuítas conseguiram organizar
uma boa rede de ensino. Essa atividade educacional teve como aspecto
positivo o fato de dar continuidade ao ensino da língua portuguesa aos
filhos dos colonos e para os filhos dos índios, o que permitiu não só a
consolidação dessa língua e dos costumes lusitanos, como também
contribuiu para a homogeneidade da língua em todo o território nacional.
Quando Portugal caiu sob o governo do rei Felipe II da Espanha,
em 1580, e tendo essa anexação perdurado até 1640, os jesuítas
perderam sua exclusividade em termos de ação religiosa no Brasil.
Além dos jesuítas, outras ordens religiosas se estabeleceram, no
Brasil, tais como: os franciscanos capuchos, carmelitas observantes e,
posteriormente, os descalços, beneditinos. Também vieram as ordens
femininas, cujo primeiro convento foi construído em Olinda, nas últimas
décadas do século XVI, da ordem das irmãs franciscanas. 87
86
CABRAL, Luiz Gonzaga. Influência dos jesuítas na colonização do Brasil (século
XVI). São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1925. p. 176;
87
PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo:
Ática, 1997. p. 13.
Na Bahia, em 9 de abril de 1677, chegaram as primeiras freiras do
convento de Santa Clara, da cidade de Évora, em Portugal, para fundar o
primeiro mosteiro de religiosas, em Salvador. 88
No Brasil Colônia, não havia liberdade religiosa. Toda a população
da colônia deveria ser batizada e seguir a religião católica, nisso
incluíam-se os colonos, os negros escravos e os índios. 89
Os clérigos da Companhia de Jesus tiveram sérios atritos, com os
bispos conservadores e mesmo com clérigos de outras ordens, em face
dos problemas de ordem moral, particularmente devido ao problema do
relacionamento dos portugueses com as índias e falta de dedicação à
cristianização dos aborígines, e também com os colonos, pois não
admitiam a escravidão dos índios após estarem sob seu comando em
aldeias isoladas e catequizadas. 90
Em 1759, os jesuítas foram expulsos do Reino de Portugal e, em
conseqüência, do Brasil, por ordem de ministro Marquês de Pombal,
devido ao temor do poder que eles tinham junto às autoridades
governamentais e junto aos aborígines nas colônias, a tal ponto de
acusá-los de tentar ser um Estado dentro do Estado português 91, tanto
que Portugal criou o governo criado as escolas régias, em substituição ao
ensino religioso oferecido por eles.
88
MARIA, Júlio. O catolicismo no Brasil (memória histórica). Rio de Janeiro: Agir,
1950. p. 106.
89
FIGUEIREDO, Lima. Índios do Brasil. São Paulo: Nacional, 1939. p. 41.
90
PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 4 ed. São Paulo:
Ática, 1997. p. 9.
91
Ibid. p. 19.
Mas, não se pode negar que o trabalho desenvolvido pelos jesuítas,
possibilitou domesticar uma grande massa de indígenas de Norte a Sul da
Colônia, fato que veio permitir o aparecimento de grandes quantidades de
aldeias e povoações, tanto no litoral, como no planalto do Brasil, que
muito colaborou a implantação de uma sociedade civilizada em nosso
país.
A disciplina rígida dos jesuítas muito contribuiu para se colocar um
freio na sociedade portuguesa colonial em que se exigia que os costumes
e a moral seguissem os padrões de honradez européia, sendo também o
parâmetro para se cobrar a conduta dos demais clérigos que aqui vieram
no período colonial, buscando salvar almas para o cristianismo.
Por outro lado, o beneditino, o carmelita e o franciscano, dirigiramse para a conquista e formação educacional e religiosa de pessoas dos
povoamentos, se não embrutecidas tais qual o gentio, porém deixavam
muito a desejar em termos de cultura humanística e necessitavam de um
bom conteúdo evangélico e cultural para se aproximarem da cultura
européia.
Em nome da preservação da pureza dos costumes entre as pessoas
e da moral cristã na família, estabeleceu o Direito Eclesiástico uma série
de imposições para que o ato jurídico do casamento católico pudesse ser
contraído de forma válida.
Assim, pelos impedimentos matrimoniais para a realização de um
casamento
válido,
regulavam-se
as
relações
de
família,
apenas
permitindo a realização das núpcias nas hipóteses em que elas não
infringissem as normas canônicas relativas aos impedimentos dirimentes.
Portanto, impedia o casamento, o vínculo natural entre os nubentes
oriundo da comunhão de sangue, sendo um dado objetivo, de fácil
identificação pela filiação e também impedia as justas núpcias, uma
questão de ordem subjetiva, caracterizada por vínculo moral, de amor,
afeto, reverência e relações estreitas.
Os laços familiares, à luz do Direito canônico, eram muito mais
amplos do que os do Direito secular, pois aqueles abrangiam o
parentesco consangüíneo, o parentesco espiritual, o parentesco por
adoção, a afinidade e a pública honestidade, fazendo com que, as
relações de família no contexto do Direito Eclesiástico assumissem um
círculo familiar muito maior, vinculando um quase interminável número de
pessoas e tornando-se, assim, mais complexas as relações familiares.
Dentro desse contexto, tem-se que compunha, como causas de
configuração familial, sob a ótica do Direito Canônico: a) noções de
consangüinidade, adoção e afinidade, que quase nada diferia do direito
civil; 92 b) o parentesco espiritual, que se estabelecia por intermédio do
sacramento do batismo, manifestando-se por seis figuras distintas: a
paternidade
92
espiritual,
a
compaternidade,
a
afinidade
espiritual 93,
Consiste na proibição de matrimonio entre parentes próximos por consangüinidade
(Cân. 2.357, § 2º; 2.359, § 2º) (KNECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid:
Editorial Revista de Derecho Privado, 1932).
93
No direito mosaico estava proibido por razão de afinidade, o casamento entre
padrasto e enteado (Cân. 2.036), entre pais e filhos políticos (Cân. 2.037), entre
cunhado e cunhada (Cân. 2.038), o casamento simultâneo de dois irmãos (Cân. 2.039),
permitido, todavia, no tempo dos patriarcas (Cân. 2.040), e o matrimônio com a viúva
do tio (Cân. 2.041) ((KNECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Editorial
Revista de Derecho Privado, 1932, p. 379).
catecismo, penitência, e a pública honestidade, caracterizada com quase
afinidade e abrangendo os laços provenientes do casamento sem
validade ou do contrato esponsalício envolvendo o varão com os
consangüíneos da mulher e esta com os consangüíneos daquele.
A realidade é que o Direito Eclesiástico contemplava, como causa
de relações familiares, diversos vínculos unindo grande quantidade de
pessoas físicas entre si, em virtude do nexo estabelecido entre elas
mediante imposição do parentesco natural ou consangüíneo ou em
virtude de parentesco oriundo da legislação canônica.
Sendo certo que o Direito Canônico, no que diz respeito aos
parentescos espirituais e parentescos legais que regulava, admitia a
hipótese de estudar dispensas, principalmente no Brasil colonial, onde a
quantidade de pessoas nas cidades, vilas e aldeias, era diminuta, e as
chances de uma pessoa arrumar outra do sexo oposto, interessada em
contrair núpcias era quase nula.
Sem dúvida, seria imenso o número de pessoas envolvidas por
laços familiares no desenvolvimento da “teoria das nulidades”, para se
contrair um casamento válido perante a Igreja Católica, de onde decorre
amplo o conceito de família no Direito Canônico e, em conseqüência, no
Direito Eclesiástico aplicado ao Brasil.
Com relação aos índios, as uniões entre homens e mulheres
indígenas ocorriam de forma direta e sem muita formalidade 94, dependia
do consentimento primeiro da mulher e em seguida do consentimento de
seu pai. Na falta deste ou na impossibilidade de se obter diretamente a
palavra
de
concordância
do
genitor
da
mulher
pretendida,
o
consentimento era dos irmãos. A mesma facilidade havia para que se
desfizesse
o
casamento,
através
do
repúdio
do
marido
ou
pelo
desinteresse da mulher em manter o seu casamento. 95
De modo geral, o pai só permitia o casamento da filha, quando esta
já tivesse atingido a puberdade e também só era permitido o casamento
do varão, quando este já tivesse atingido a idade mínima de 25 anos e
tivesse a condição de guerreiro na tribo, além de situação para assumir a
chefia da nova família que iria constituir. 96
O que fazia sentido para os indígenas eram as uniões de homens
com as mulheres da tribo ou até de outras tribos ou hordas 97, visando a
aumentar o número de pessoas, em especial, o de guerreiros e o
relacionamento entre elas, inclusive o compromisso de se ajudarem
mutuamente, em caso de guerra contra os inimigos comuns.
94
POMBO, Rocha. História do Brasil. v. I. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1951. p.
84.
95
ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do
Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 223.
96
POMBO, op. cit. p. 84.
97
MARTIUS, Carl Frederico Philippe von. O Estado do direito entre os autóctenes
do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. p. 52.
No máximo, eram vedadas as uniões entre pessoas do mesmo
grupo. A regra que prevalecia entre os indígenas era a poligamia. 98 As
famílias indígenas tinham sua moradia, em um local denominado de taba
(aldeia), onde eram construídas diversas ocas ou ranchos grandes e
comportava-se a vida coletiva simultânea de diversas famílias em cada
uma delas.
O marido índio tinha sua família, que morava sob um mesmo teto
coletivo, podendo ser constituída por uma ou diversas mulheres
99
. Nessa
última hipótese, eram lideradas por uma delas 100, e todas procuravam
viver em harmonia. 101 Ali também moravam os filhos 102, bem como os
cativos de guerra, que se transformavam em escravos do chefe familiar, a
quem, curiosamente, dispensavam tratamento equivalente aos filhos,
tendo direito a obter uma mulher ou um marido, chegando a ter também
filhos, que eram eliminados caso fosse do cativo. 103 Se a tribo fosse
adepta da antropofagia 104, mantinham-se os escravos, até que um dia,
resolvesse o seu senhor, como recompensa de guerra e exercício de
vingança, devorá-los num banquete tribal.
98
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. 3 ed. São Paulo: Martins, 1960. p. 200.
POMBO, Rocha. História do Brasil. v. I. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1951. op.
cit. p. 84.
100
MARTIUS, Carl Frederico Philippe von. O Estado do direito entre os autóctenes
do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. p. 50.
101
ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do
Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 222-223.
102
CARDIM, Pe. Fernão. Tratados da terra e gentes do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1980. p. 153.
103
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil-história da Província
de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 55.
104
VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. 4 ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1948. p. 46-47.
99
Os escravos gozavam de toda liberdade. Como membro da família
fazia tudo o que os demais componentes da tribo faziam, e ali
aguardavam, com a maior honra e serenidade, o dia de sua possível
libertação ou da sua morte 105, no banquete antropofágico praticado pelos
índios, em especial os tupinambás. 106
No que diz respeito às mulheres que caíam prisioneiras, eram
absolvidas pela tribo vencedora, pois eram um elemento necessário e
indispensável ao processo de procriação e ao aumento da população da
horda ou tribo e tidas como neutras, a tal ponto que, às vezes, as lutas se
limitavam à busca de mais mulheres. 107
Afirma Milton Barcellos 108 que
A aldeia ou taba dos índios, compunham-se de grandes
cabanas ou ocas capazes de admitir muitas famílias: e,
como a taba tinha o Peereru Picheh, a oca tinha o seu
maioral, o mais idoso, que compunha as desavenças, fazia
reinar a tranqüilidade nas horas de descanso, hospedava
os estrangeiros, e era chamado de Mussacat. Cada família
das diversas divisões da oca tinha por chefe o guerreiro
que a alimentava. Demo que a oca, representação da
aldeia, compunha-se dos mesmos elementos que elas, mas
105
CASTIGLIONE, Teodolindo. A eugenia no Direito de família – a eugenia entre
índios brasileiros. São Paulo: Saraiva, 1942. p. 240-241.
106
ABBEVILLE, Claude de. Hístória da missão dos padres capuchinhos na Ilha do
Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. p. 224.
107
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial. 7 ed. São Paulo:
Universidade Estadual de São Paulo, 1976. p. 10.
108
BARCELLOS, Milton. Evolução constitucional do Brasil, ensaio de história
constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933. p. 45.
travados entre si e subordinados uns aos outros. A filha
dependia da mulher, a mulher e os filhos do guerreiro, este
do Mussacat, o Mussacat do Peereru Picheh e, superior a
todos estava o conselho da nação – Carbé.
Todos os membros de uma tribo que se dividiam em agrupamentos
deviam solidariedade recíproca, pois eram considerados parentes entre
si.
Com a chegada dos jesuítas, em 1549, e levando-se em conta que
eram clérigos que impunham moralidade rígida, tanto no relacionamento
entre os índios que estavam sob o seu controle, como no relacionamento
dos indígenas com os colonos portugueses ou mesmo outros europeus,
combateram todos os costumes perversos, em especial, a antropofagia e
a poligamia e só passaram a admitir o casamento cristão como forma de
constituição de família indígena. 109
A esse respeito, Afranio Peixoto afirmou que em vinte anos de
apostolado, os jesuítas mudaram a moral na colônia. Os índios passaram
a ter sua mulher, sua família, sua casa, sua roça, deixaram de ser
antropófagos e adquiriam hábitos civilizados. Tanto os clérigos como os
leigos sentiam a influência contagiante da moral jesuíta, a qual era feita
de pureza e tolerância.
109
CALDEIRA, Jorge et al. Viagem pela história do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997. p. 37.
2.2.2.2 O Brasil Imperial, sua religião e sua família
Com a vinda da corte portuguesa, em 1808, estava definido que o
Brasil em tempo muito próximo se transformaria em uma nova nação, pois
aquele fato por si só, tornaria irreversível este processo, sob pena de
ocorrer um verdadeiro retrocesso histórico. 110
O Brasil esteve fechado por três séculos ao comércio estrangeiro,
evitando
que
fosse
divulgada
a
sua
real
situação
econômica
e
impossibilitando que forasteiros por aqui aportassem e colhessem
qualquer tipo de informação que pudesse colocar em risco o domínio
absoluto na colônia. A indústria brasileira era proibida, por Alvará de 1785
o qual só foi revogado em 1808.
Da mesma forma, internamente, na colônia era proibida a livre
circulação e leitura de livros 111, folhetins ou qualquer tipo de informação
contrário aos interesses do Reino. Em Portugal, somente se poderia
publicar alguma obra e, em especial de fatos do Brasil, após a devida
autorização da censura régia e religiosa, conforme determinação da
Ordenação Filipina e, mesmo assim, obtidas estas, corria-se o risco de
uma revisão posterior daquelas decisões e sofrer a obra uma busca e
apreensão de todos os seus números e a sua completa destruição, além
110
PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 15 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1977. p. 9.
111
VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In:
NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil, cotidiano e vida privada
na América portuguesa. v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 334-379.
da aplicação de uma multa, caracterizando verdadeiros absurdos em face
à evolução de um povo e sua cultura. 112
Com
a
transferência
vinda
da
da
corte
família
real
portuguesa
e
ao
Brasil,
operou-se
praticamente
todos
os
a
membros
importantes do governo da Metrópole lusitana. Isso significa que a
comitiva real foi acompanhada pelas grandes personalidades do reino, os
funcionários régios que compunham a sua administração burocrática,
sendo certo que muitos chegaram após ter sido aportada, no Brasil, a
esquadra que trouxe a rainha d. Maria I e seu filho d. João VI, herdeiro do
trono, principalmente, os que vieram de outras colônias, pois era daqui,
que se passou a praticar a comunicação com elas.
A nova cidade, sede da monarquia, ou seja, o Rio de Janeiro,
transformou-se em um local atraente para as pessoas de posse, em
especial, os grandes latifundiários que mantinham o domínio do “clã rural”
fazendo com que muitas famílias se deslocassem de todas regiões do
Brasil, principalmente, das regiões de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco
e São Paulo, para residirem próximas ao convívio do poder real, atraídas
pelo aculturamento europeu que ali se praticava, no que dizia respeito
aos costumes da nobreza. 113
112
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Estudo bibliográfico de
Affonso de E. Taynay. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.
113
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS,
Fernando A. História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade
nacional. v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 23-24.
Além desse contingente de pessoas, anteriormente, mencionadas,
também vieram para o Rio de Janeiro muitas pessoas monarquistas, de
países sul-americanos, pertencentes ao reino de Castela, por motivos
políticos, em especial, as lutas protagonizadas por republicanos pela
independência, incentivados pelos princípios da liberdade, igualdade e
fraternidade, sustentados pela Revolução Francesa, além de outras idéias
novas vindas do antigo continente europeu. 114
Embora a Independência do Brasil tenha transformado a sociedade
colonial brasileira em sociedade imperial, muito pouco ou quase nada se
percebeu em termos de alteração 115, com relação à vida familiar.
Apesar de ter ocorrido, a declaração da independência, a instalação
de um governo autônomo em relação a Portugal, tendo por sede a cidade
do Rio de Janeiro, em nada foi modificado o processo de organização de
nossa vida jurídica, política e social, tendo permanecido as colunas
básicas
do
governo
anterior,
ou
seja,
fora
mantida
sociedade
escravocrata, a legislação do Reino de Portugal e, ainda, continuava a
fusão do poder temporal com o espiritual. Portanto, continuava a religião
católica como a oficial do País.
Ao lado das grandes famílias patriarcais rurais formou-se no
período imperial, com a abertura dos portos e o desenvolvimento do
114
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4 ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio, 1956. p. 276.
115
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: NOVAIS,
Fernando A. História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade
nacional. v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 16-17.
comércio, também uma poderosa burguesia de grandes comerciantes,
cujas posses acabavam se equivalendo aos daquelas, sendo que ambas
passaram a mandar seus filhos estudarem na Europa 116, de onde
voltavam graduados: “em canones, em leis, em mathemáticas, em
ciências naturais e, ao retornarem à pátria, trazem à nossa aristocracia
mental novos brilhos, novas idéias, novas capacidades”. 117
Deve-se mencionar que a família patriarcal rural se beneficiou, com
o grande acontecimento da cultura econômica do Império, que foi a
consolidação do plantio e exploração da cultura do café, bebida de
grande aceitação comercial no mundo, pelo agradável aroma e paladar,
que propicia aos seus adeptos. A exploração dessa cultura teve o seu
início
no
Rio
de
Janeiro,
estendeu-se
para
Minas
Gerais
e,
posteriormente, para São Paulo, onde atingiu o seu apogeu, permitindo
grande aproveitamento dos escravos que se encontravam ociosos nas
Minas Gerais, em decorrência da franca decadência da exploração de
ouro e os dos engenhos.
Esse fato da exploração das prósperas lavouras cafeeiras, no sul
do Império propiciou a constituição de uma nova aristocracia rural 118,
denominada de “os barões do café”, em contraste com os senhores de
engenho do norte, cujo principal produto que produziam, ou seja, o
116
CALMON, Pedro. História social do Brasil, espírito da sociedade imperial. 2º
tomo, 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Série Brasiliana, s/d. v. 83. p.
109-110.
117
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4 ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio, 1956. p. 278.
118
CALMON, Pedro. História social do Brasil, espírito da sociedade imperial. 2º
tomo, 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Série Brasiliana, s/d. v. 83. p.
123.
açúcar, infelizmente, estava com os seus preços em franca decadência
no mercado internacional, fato que os obrigava a desfazer-se dos seus
contingentes de escravos para nova aristocracia sulista 119, caracterizando
a decadência econômica daquelas famílias.
Finalmente, as famílias patriarcais rurais, tanto as antigas oriundas
e detentoras dos grandes currais estabelecidos nos sertões e as dos
engenhos, como também as emergentes da riqueza do café, através de
seus chefes, chegam ao centro do poder, primeiramente, ajudando a
fundar o Império em 1822, visando a se livrar definitivamente dos últimos
forasteiros portugueses, cabendo a elas, em seguida, o supremo encargo
da organização e da direção geral da nacionalidade brasileira, fato que se
confirmou pela manutenção do Império até o ano de 1889. 120
As famílias patriarcais, mesmo tendo o exercício do poder ao longo
do segundo Império, assistiram paulatinamente à corrosão de grande
parte do seu poder econômico e político, por intermédio de diversos fatos
e dentre eles, pode-se citar, inicialmente, a lei do ventre livre e,
posteriormente,
da
lei
Áurea,
enfatizando,
primeiramente,
o
enfraquecimento e depois a extinção em definitivo do regime de
escravidão
para
os
negros
cativos
no
Brasil.
Este
fato
atingiu,
frontalmente, a sociedade imperial escravocrata, pois modificou de um só
golpe as relações econômicas familiares pela perda de um considerável
patrimônio sem qualquer indenização por parte do governo imperial e as
119
Ibid. p. 121-122.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 7 ed. v. I.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 45.
120
importantes mudanças nas relações de trabalho no final do século XIX,
que exigiram novos esforços para regularização do sistema agrário, sobre
o qual repousava uma das principais fontes de riqueza do país.
Um outro fator veio corroborar o enfraquecimento das grandes
famílias patriarcais representantes da aristocracia rural brasileira, sendo
este de ordem jurídica, ou seja, o regime sucessório das partilhas, em
decorrência do falecimento do chefe da família ab intestato.
Portanto, “essa divisão forçada do patrimônio das grandes famílias
as enfraquece no seu poder econômico”, porque as reduz, no fim da
terceira ou quarta geração, à obscuridade e à pobreza, fato que levava a
uma desintegração progressiva e paulatina, pois perdia um de seus
principais sustentáculos, que era a riqueza e por conseqüência havia
também o desaparecimento dos laços poderosos da solidariedade
parental. 121
Assim, quando se chegava ao final da última década do século XIX,
também se chegava ao final dos domínios da grande família patriarcal
rural que deu sustentação aos governantes do período imperial, sendo o
golpe final, o que culminou com a imposição da extinção do regime da
escravidão negra no Brasil, em 13 de maio de 1888, ocorrido pela
assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.
121
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. 7 ed. v. I.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 202-203
Ainda é importante mencionar que o Brasil, depois que se tornou
uma
nação
independente,
estabeleceu
relações
diplomáticas
e
incrementou o seu comércio internacional com diversas outras nações.
Isso implicou a vinda não só de imigrantes como também de inúmeras
pessoas do corpo diplomático, bem como, de inúmeros oficiais militares
europeus contratados para adestramento de nossas tropas.
As pessoas que vinham ao Brasil, de forma transitória ou definitiva,
na condição de casadas perante outros credos ou na iminência de se
casar e que não eram católicas e nem pretendiam se converter a esse
credo, passavam a ter sérios problemas de constrangimento com relação
às questões de ordem pessoal, como nascimentos, casamentos, óbitos e
os registros desses atos, pois tal controle pertencia à Igreja Católica por
disposição literal da lei, a qual não admitia outra religião nem qualquer
celebração matrimonial que não fosse de acordo com os ditames do
Direito Eclesiástico.
Como forma de solucionar esse impasse, o ministro da Justiça da
época, Diogo Vasconcelos, apresentou em 19 de julho de 1858, Projeto
de Lei para fins de casamento entre pessoas não-católicas, que acabou
se transformando na Lei n. 1.144, a qual foi editada em 11 de setembro
de 1863, que prescrevia em seu art. 1º, § 3º:
Devem os casamentos acatólicos ser celebrados segundo
os costumes ou prescrições das Religiões respectivas,
contanto que a declaração do ato religioso fosse provada
pelo competente registro, na forma determinada pelo
regulamento.
O regulamento dado pela Lei n. 1.144 se concretizou em 17 de abril
de 1863, pelo Decreto n. 3.069, que dispunha que os casamentos
deveriam ser registrados no livro competente a cargo do Secretário da
Câmara Municipal em que residisse um dos cônjuges ou do diretor ou
superior da Colônia onde vivessem (arts. 5º, 6º e 19º). O art. 1º, § 4º da
Lei 1.144/1861, conjugado com o art. 7º do Decreto 3.069/1863
estabeleciam a exigência de que os casamentos acatólicos deveriam
observar os impedimentos previstos pelo Direito Canônico, sob pena de
não poderem ser celebrados.
O art. 41 dispunha que a comprovação desses casamentos deveria
ser feita mediante a apresentação do seu registro ou em caso de perda
ou destruição, por outros meios de provas. Do teor desse dispositivo
ficava
clara
a
obrigatoriedade
do
registro,
para
convalidação
do
casamento entre pessoas não católicas ou pertencentes às seitas
dissidentes, celebrado em harmonia com as prescrições das religiões
respectivas
(não
atéia).
Essas
normatizações
foram
ainda
complementadas pelos Avisos n. 491 e 495, de outubro de 1865, e pelo
Aviso de 20 de junho de 1867, que regulamentava os casamentos mistos.
Por intermédio do Decreto n. 9.986, de 31 de dezembro de 1888, o
Governo Imperial instituiu o registro civil no Brasil, o qual serviria de
prova para os casamentos celebrados. No entanto, com relação às
cerimônias ocorridas em data anterior àquela, a prova deveria ser feita
por intermédio de certidões dos assentos paroquiais. 122
Dadas às restrições a outras formas de culto, muitas famílias
passaram terríveis constrangimentos por serem acatólicas. Fato este que
veio terminar com a primeira Constituição Republicana que assegurava a
liberdade de culto e o ensino laicizado nas escolas públicas. Foi
efetivamente nessa época que se deu a tão esperada separação da Igreja
e o Estado, pelo Decreto n. 119-A, de autoria de Ruy Barbosa, em 24 de
janeiro de 1890.
Assim, a instituição do casamento como fonte geradora da família,
que fora objeto de nova regulamentação pela República, continuou sob a
égide do direito civil em vigor no Império, ou seja, regulado pela
Consolidação das Leis Civis, que teve como ordenamento básico, as
Ordenações Filipinas e na legislação esparsa até aquela época.
O Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, representa uma
mudança radical para a época, pois provocou a secularização do
matrimônio, como forma de constituição legal da família, bem como
constituiu a única manifestação relevante do poder legislativo no que diz
respeito ao Direito de Família, no primeiro período de Governo da
República.
122
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. t. VII, 2 ed.
Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. p. 348.
Com a efetiva separação da Igreja do Estado, este tirou daquela o
controle dos registros civis das pessoas naturais em nosso país,
regulamentando o casamento civil, tornando-o obrigatório como único ato
jurídico válido em termos de constituição de família legítima. Dessa
forma, ocorreu uma mudança radical na esfera do casamento que
recebeu uma roupagem secularizada como forma de constituição legal de
família.
Diante da reação da Igreja Católica, fez-se necessário que o
Ministério da Justiça editasse uma circular, em data de 11 de junho de
1890, reafirmando o fato de que “nenhuma solenidade religiosa, ainda
que sob a forma de sacramento do matrimônio celebrado nos Estados
Unidos
do
Brasil,
seria
considerada,
perante
a
lei
civil,
vínculo
conjugal”. 123
Após a Proclamação da República, em 1889, e a conseqüente
separação da Igreja do Estado, fato este que começou a florescer nas
mentes um novo conceito de família e casamento em relação ao que até
então vinha sendo difundido com exclusiva hegemonia da Igreja. Não é
que não se tenha feito qualquer tentativa, mas, infelizmente, quase todas
malogradas, quando Clóvis Beviláqua, jurista e professor da Faculdade
de Direito de Recife, foi então convidado para prosseguir os trabalhos da
elaboração do projeto do Código Civil, cujos trabalhos tiveram início em
abril de 1889 e foram concluídos em outubro do mesmo ano, contendo
123
CHAVES, Antonio. Tratado de direito de família. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1991. t. I. p.63.
1973 artigos, mas somente entrou em vigor a partir de janeiro de 1917.
Deve-se ressaltar que o avanço obtido com a elaboração do Código de
1916, principalmente, em relação ao Direito de Família, foi surpreendente,
levando-se em conta o contexto estigmatizado pela hegemonia exercida
pelo poder e influência de Roma.
3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DO HOMEM E A
QUESTÃO DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE HUMANA EM TERMOS
DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E NA CONSTITUIÇÃO
DA FAMÍLIA
3.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS
Inicialmente,
procura-se
expor
brevemente
a
fundamentação
filosófica que permita a compreensão da noção de dignidade humana,
observando-se, ao longo da história, a evolução do pensamento do
homem acerca da sua própria essência e da sua condição existencial.
A idéia de valor intrínseco da pessoa humana tem suas raízes,
tanto no pensamento clássico como no cristão. A religião cristã trouxe o
entendimento de que o ser humano, criado à imagem e semelhança de
Deus, é dotado de um valor próprio, que lhe é intrínseco.
No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, a
dignidade da pessoa humana tinha relação com a posição social ocupada
pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da
comunidade, havendo, portanto, pessoas mais dignas ou menos dignas.
No
pensamento
estóico,
a
dignidade
era
considerada
como
qualidade que distinguia o ser humano das demais criaturas, no sentido
de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade.
Portanto, esse pensamento se apresenta relacionado à noção de
liberdade pessoal de cada indivíduo, assim como à idéia de que todos os
seres humanos, no que diz respeito à sua natureza, são iguais em
dignidade. Este entendimento de dignidade humana continuou sendo
sustentada pela concepção de inspiração cristã durante o período
medieval.
No entanto, é do idealismo alemão de Immanuel Kant, que talvez
tenha surgido a melhor expressão do conceito lógico-filosófico de
dignidade humana. Kant concebia o homem como um fim e não como um
meio, diferentemente dos outros seres desprovidos de razão. Em função
dessa condição de ser racional é que o homem poderia ser chamado de
pessoa humana, a qual seria dotada de um valor intrínseco, um valor
próprio da sua essência. 124
De acordo com Nicola Abbagnano, entende-se como princípio da
dignidade humana a exigência enunciada por Kant como segunda fórmula
do imperativo categórico: “Age de forma que trates a humanidade, tanto
na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre também como
um fim e nunca unicamente como um meio”. Esse imperativo estabelece
124
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
que todo ser racional (homem) possui um valor não relativo, mas
intrínseco, isto é, a dignidade. 125
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, a expressão “dignidade da
pessoa humana” é uma criação da tradição kantiana no começo do século
XIX. 126
No âmbito da axiologia, a dignidade da pessoa humana, concebida
como um valor moral pode ser encontrada em diversas culturas e povos.
Dessa forma, percebe-se em várias doutrinas e textos religiosos,
considerados como códigos morais, a valorização e salvaguarda do
homem
justificadas
tanto
por
fundamentos
metafísicos,
como
por
necessidades meramente materiais. Como exemplo, apresentam-se as
concepções judaicas, islâmicas e cristãs.
No judaísmo, a salvaguarda do ser humano é entendida como uma
necessidade e uma obrigação. No que diz respeito à dignidade do
homem, o núcleo central da teologia judaica encontra-se no incentivo à
caridade, na proteção ao desamparado e no amor fraternal, como aparece
no Levítico, 19:18: “e amarás ao próximo como a ti mesmo”. 127
No islamismo, a pessoa humana é vista como o ser mais nobre e
digno de honra que existe. À pessoa humana teriam sido dadas, por
graça divina, a razão e a capacidade de pensar e de dirigir o seu destino.
125
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p.
259.
126
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de
família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95.
127
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 1998. t. IV. p. 34.
O verso 13 da Suna traz: “os que estão de joelhos [...] E Ele colocou, por
livre vontade, tudo o que existe no céu e na terra a vosso serviço”. 128
O fundamento teológico cristão para a proteção da dignidade do
homem está no axioma de que a pessoa humana, criada por Deus à sua
imagem e semelhança (Gênesis, 1:26) e remida por Cristo (Epístola de
São Paulo aos Efésios, 1:7; Epístola de São Paulo aos Hebreus, 9:22; I
Epístola de São Pedro, 3:18), tem obrigatoriamente uma condição que
exige a liberdade e a justiça como prioridades sobre todas as coisas
materiais que possam degradar ou escravizar. 129
Assim, a proteção e promoção da dignidade do ser humano
passaram a ser uma necessidade material e uma condição para a
construção e para o desenvolvimento da humanidade. A negação da
validade desse ideal é a negação da validade da existência das
instituições humanas. Conseqüentemente, a proteção da dignidade da
pessoa humana passou do âmbito da consciência coletiva para o âmbito
jurídico, sendo consagrado como valor jurídico universal, principalmente,
após a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, a
dignidade da pessoa humana, entendida como o atributo imanente ao ser
humano para exercício da liberdade e de direitos como garantia de uma
existência plena e saudável, passou a ter amparo como um objetivo e
uma necessidade de toda a humanidade.
128
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 1998. t. IV. p. 34.
129
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: mensagem de Deus. São Paulo: Loyola, 1989.
O princípio da dignidade humana é atualmente um dos esteios de
sustentação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Não se pode
mais pensar em direitos desatrelados da idéia e conceito de dignidade.
Apesar de essa noção estar vinculada à evolução histórica do Direito
Privado, tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida
em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional e, portanto, o
vértice do Estado de Direito. 130
Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais passam a ser
reconduzidos à noção de dignidade da pessoa humana, uma vez que
todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas em
nível social, democrático, cultural, econômico e jurídico.
Para Alexandre de Moraes, a expressão “direitos do homem” indica
o
conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser
humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
‘dignidade’, por meio de sua proteção contra o arbítrio do
poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas
de desenvolvimento da personalidade humana. 131
130
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de
família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 94.
131
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 3 ed. São
Paulo: Atlas, 2000. p. 39.
Tais direitos não resultam de uma concessão da sociedade política.
São direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.
132
Juarez Freitas afirma que os direitos fundamentais e a dignidade da
pessoa humana à qual se referem, convivem de forma indissociável, pois
aqueles constituem explicitações e concretização desta. Assim, pelo
menos em princípio, em cada direito fundamental está presente um
conteúdo ou alguma projeção da dignidade da pessoa. Portanto, é
inquestionável que a liberdade, a garantia da isonomia de todos os seres
humanos e os direitos fundamentais são pressupostos e concretização da
dignidade da pessoa. 133
Considerando o princípio da isonomia como corolário direto da
dignidade, seria possível dizer que a própria dignidade individual admite
certa relativização, quando justificada na necessidade de proteção da
dignidade de terceiros. Para tanto, seria necessário compatibilizar a
dignidade com outros valores sociais e políticos, em que residiria um
grande problema, cuja solução poderia ser obtida de três maneiras,
segundo Jacques Maritain citado por Edilsom Pereira de Farias, a saber:
a) priorizar os valores individuais em detrimento dos valores da
sociedade, na qual o mesmo encontra seu próprio bem-estar e sua
própria riqueza; b) priorizar os valores da sociedade sobre o individual,
132
HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia muitas vozes. 3 ed.
Aparecida-SP: Santuário, 1998.
133
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo:
Malheiros, 1996. p. 83.
pois para a concepção do transpersonalismo o indivíduo se encontra em
função dos interesses da sociedade; e c) buscar a conciliação entre as
duas concepções anteriores, a qual é representada pelo personalismo,
em que se procura compatibilizar as duas posições, o que será alcançado
caso a caso, mediante ponderação na qual será avaliado o que diz
respeito ao indivíduo e o que se refere ao todo.
134
Para Miguel Reale, a harmonia é mediatizada pelo valor da pessoa
humana, quando “o indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não
seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do homem enquanto
homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da ‘personalidade’
haverá arbítrio”. 135
Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, na
condição de direito de defesa, não aceita qualquer violação à dignidade
pessoal, mesmo em função de outra dignidade, impondo aos órgãos
estatais, a missão não apenas de respeito e proteção, mas de promoção
e efetivação das condições de vida digna para todos. 136
Entende-se que o acima exposto está inserido na noção de Estado
Democrático, no qual todos são considerados iguais e têm os mesmos
direitos.
134
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos, a honra, a intimidade, a vida
privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre:
Sérgio Fabris, 1996. p. 47.
135
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
136
Ibid. p. 4.
É importante distinguir entre as expressões “direitos humanos” e
“direitos
fundamentais”,
que
com
freqüência
são
utilizadas
como
sinônimos. Os direitos fundamentais podem ser definidos como o conjunto
de direitos e liberdades do ser humano institucionalmente reconhecidos e
positivados no âmbito do direito constitucional positivo de determinado
Estado, enquanto se os direitos humanos são abrangidos pelo direito
internacional e, portanto, são extensivos a todos os seres humanos,
independentemente
constitucional,
de
sua
apresentando
vinculação
validade
a
determinada
universal
e
ordem
caráter
supranacional. 137
Manoel Gonçalves Ferreira Filho destaca que muitos dos direitos
fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os direitos
fundamentais são direitos de personalidade, e estes últimos envolvem os
direitos de estado, por exemplo, o direito de cidadania; os direitos sobre a
própria pessoa, como o direito à vida, á integridade moral e física, à
privacidade; os direitos distintivos da personalidade, como o direito à
identidade pessoal, direito à informática; e muitos direitos de liberdade. 138
137
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 25 ed. São
Paulo: Saraiva, 1999. p. 358.
138
Ibid. p. 359.
3.2 LIBERDADE RELIGIOSA
A questão da liberdade religiosa é complexa e delicada. Complexa
porque
a
compreensão
desse
tema depende de uma abordagem
interdisciplinar, envolvendo áreas como a história, a antropologia, a
ciência da religião, a filosofia, além da ciência jurídica. O tema é delicado
porque apresenta o desafio de se conviver em um mundo plural, em que a
intolerância religiosa ainda está presente.
A liberdade religiosa comporta pelo menos três acepções: jurídica,
teológica ou eclesiástica e bíblica. Na acepção jurídica, a liberdade
religiosa pode ser compreendida como um direito fundamental da pessoa
humana e, portanto, o centro da problemática dos direitos humanos.
Na
história
da
humanidade,
o
direito
à
liberdade
religiosa
representa uma conquista, extremamente, recente. Como direito natural,
a mesma surgiu no século XVIII, com as primeiras declarações de direitos
de 1776 (americana) e 1789 (francesa). Como direito efetivamente
tutelado,
surgiu
internacional,
com
surgiu
a
após
Constituição
a
Segunda
americana.
Guerra
Como
Mundial,
direito
com
o
desenvolvimento do sistema global de proteção aos direitos humanos
ligado à Organização das Nações Unidas.
Na
acepção
teológica
ou
eclesiástica,
a
liberdade
religiosa
compreende uma doutrina teológica na qual só são reconhecidos nos
limites da Igreja Católica, sendo essa doutrina fundamentada por Santo
Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
Aristóteles foi o primeiro a propor esta concepção, e afirma que a
virtude e o vício dependem de nós, o que significa, para ele, que o
homem é o princípio de seus atos. 139 Esta noção, “princípio de seus atos”
corresponde ao “princípio de si mesmo”, e é a definição da lei
incondicionada. Este conceito de liberdade perdurou durante a Idade
Média, Santo Agostinho afirma que aquele que sente em si a vontade
sente que a alma movimenta por si só. 140 Santo Tomás, por sua vez,
coloca o livre arbítrio como a causa do próprio movimento, uma vez que
por meio deste, o homem determina a si mesmo como agir. Esta
concepção aplica-se a todos os seres vivos e favorece o homem, uma vez
que a causa dos movimentos humanos é o que o homem escolhe como
movente, enquanto juiz e árbitro das circunstâncias externas. 141
Na acepção bíblica, a liberdade religiosa é um “dom de Deus”,
porque o Criador concedeu o livre arbítrio aos homens.
139
ARISTÓTELES. Poética, organon, política, constituição de Atenas. São Paulo:
Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores).
140
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os
Pensadores).
141
AQUINO, TOMAS. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os
Pensadores).
3.3 OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA MODERNIDADE
A humanidade, que segundo Belmiro Pedro Welter, encontrava-se
no estado da natureza, firmou um contrato social, surgindo assim, o
Estado de Direito, criação artificial da razão humana, que passou a ditar
as leis positivas, acarretando o início do Estado Social e Político 142, que
“nasceu sob a forma de monarquias absolutas [...] como um Estado
monárquico, nacional, soberano e secularizado”. 143
As teorias contratualistas foram uma conseqüência do movimento
Renascentista, como forma de justificar a criação de um Estado secular,
laico, desconsagrado e autônomo, com poderes limitados e livre de
influências eclesiásticas. Tais teorias foram sustentadas por Thomas
Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau, mas com influência de
Kant, Pufendorf e Leibniz. 144
No Brasil, a laicificação veio com a Proclamação da República, que
proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados Federais em
matéria religiosa (Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890). Observa-se
que, na Europa, a laicização já estava em andamento desde o século XIV,
quando houve a intensificação entre o Estado e a Igreja.
142
WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS,
Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228. p. 214.
143
MAQUIAVEL. Cfe. WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família.
In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de
família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228. p. 214.
144
FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de
família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 211-228.
A Igreja Católica havia instituído a noção de culpa no casamento
com base no cometimento e absorção da mácula do pecado original por
Adão e Eva. Em conseqüência, surge o princípio da culpa canônica, como
forma de manter edificado o casamento, que só poderia ser desfeito
mediante a comprovação de um culpado, que deveria ser punido. O
Direito de família brasileiro acatou a influência da legislação eclesiástica
nas Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, ao preconizar que o
casamento indissolúvel era a única forma de constituir família. 145
3.3.1 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na
Constituição de 1934
A Constituição de 1934, promulgada a 16 de julho, foi uma
Constituição eminentemente política, seguindo uma nova concepção do
direito e do Estado, tendo recebido a influência dos abalos sociais
provocados pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Embora o advento do regime republicano houvesse proclamado a
completa separação entre o Estado e a Igreja, sob a influência da
maçonaria e das idéias republicanas da época, a Carta Magna de 1891
145
KLEIN, Fabiane. A polêmica sobre a abstração da culpa na separação judicial
litigiosa. In: BRAUNER, Maria Claudia Crespo (Org.). O direito de família
descobrindo novos caminhos. Canoas: La Sale, 2001. p. 47-48.
deixou-se
arrastar
pelos
preconceitos
que
não
representavam
o
pensamento nacional.
Dessa forma, foi a Constituição de 1934 que estabeleceu a
completa separação da Igreja e do Estado, não havendo mais entre os
dois poderes relações de dependência ou aliança. Porém, não se podia
prescindir da colaboração religiosa, pois reivindicavam esses princípios a
ministração do ensino religioso nas escolas, a assistência religiosa nos
hospitais, nas penitenciarias e às classes armadas, porém deveria ser em
condições iguais para todas as religiões independentemente de seus
credos.
O art. 17, nos incisos II e III, à primeira vista se mostra
contraditória, pois a primeira parte do artigo repete os dispositivos da
Constituição de 1891, caracterizando o Estado leigo, a situação da Igreja
livre em Estado livre, proibindo qualquer relação de dependência ou
aliança. No entanto, tem-se o inciso “sem prejuízo da colaboração
recíproca em prol do interesse coletivo”. Dessa forma, parece se fere o
sistema de laicidade do Estado, quando no art. 113, n. 6 permite a
assistência religiosa nas expedições militares, hospitais, penitenciárias e
o ensino religioso facultativo nas escolas públicas.
É importante destacar que há três sistemas de relações EstadoIgreja: o sistema da Religião Oficial, o das relações de dependência ou
aliança e, por último, o da Religião livre em Estado livre. Além disso, é
conveniente lembrar que, no Brasil Império, vigorava o sistema da religião
do Império. No Estado leigo não há dependência ou aliança ou
interferência recíproca nos poderes respectivos. Na Constituição de 1891,
os Constituintes queriam apenas um Estado abstêmio em matéria de
culto, mas isso ficou expresso de tal forma que na prática o que se teve
foi constante hostilidade às religiões. Assim, na nova Constituição
procurando-se
estabelecer
a
mesma
atitude
de
eqüidistância
das
religiões, se fazia necessária uma cláusula clara que expressasse o
pensamento da Constituição. Portanto, o que constou nesses artigos
mencionados foi apenas que o Estado é abstêmio, não subvenciona, não
se alia, mas também não hostiliza e reconhece as religiões como forças
orgânicas da sociedade. 146
O art. 79, da referida Constituição deixava implícito o princípio da
liberdade de consciência e de crença da mesma forma que se encontrava
nas Constituições do Império e da República. A liberdade de consciência
e de crença, também garantidas pelas Constituições do Império e da
República, não sofreu alteração. Com relação ao exercício livre do culto,
não houve emenda contrária, apenas alguma divergência porque da forma
disposta, estava presente o condicionamento com a ordem pública e os
bons costumes.
No que diz respeito ao direito de voto aos religiosos, a Constituição
de 1891, em seu art. 70, § 1º, dispunha que “Não podem ser alistados os
religiosos
de
ordens
monásticas,
companhias,
congregações
ou
comunidades de qualquer denominação, sujeitos a votos de obediência,
146
SCAMPINI, Pe. José. A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras: estudo
filosófico-jurídico comparado. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 153-155.
regra ou instituto que implique renúncia da liberdade individual”. Essa
restrição foi totalmente impugnada pelos Constituintes de 1934, pois a
sociedade não pode intervir em tais votos, que não dizem respeito à
sociedade, mas que se trata de um fenômeno íntimo, entre a consciência
do crente e Deus. 147
Esta Carta Magna também permitia a assistência religiosa nas
expedições militares, sempre que esta foi solicitada. A esta disposição
houve divergências, mas tal dispositivo pretendeu ser mantido com base
no princípio do direito individual que garante a liberdade de consciência
dos cidadãos, quando estando, momentaneamente, privados de ir aos
templos podem solicitar a assistência dos seus chefes espirituais.
A Constituição da República já havia secularizado os cemitérios, o
que foi mantido na Carta de 1934, determinando que os cemitérios
tenham caráter secular e que seriam administrados pela autoridade
municipal, mas que seria livre a todos os cultos religiosos a prática dos
respectivos ritos em relação aos crentes. Não seria justo e nem
eqüitativo, diante da liberdade de culto, impedir que as famílias religiosas
depositem os despojos de seus membros em terras santificadas pela
bênção da religião, conforme os ritos de suas igrejas.
No
que
diz
respeito
ao
casamento
a
referida
Constituição
determinava que:
147
SCAMPINI, Pe. José. A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras: estudo
filosófico-jurídico comparado. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 156-158.
O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O
casamento
celebrado
perante
ministro
de
qualquer
confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública
ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos
efeitos que o casamento civil, desde que perante a
autoridade
civil,
na
habilitação
dos
nubentes,
na
verificação dos impedimentos e no processo da oposição,
sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele
inscrito
no
obrigatório.
registro
A
lei
civil.
O
registro
estabelecerá
será
gratuito
penalidades
para
e
a
transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração
do casamento.
No início, o casamento era considerado uma instituição de origem
divina e o exercício das cerimônias nupciais constituíam privilégios do
sacerdócio. Mas, a Revolução Francesa transformou o matrimônio em
simples contrato e estabeleceu o
casamento civil. Na monarquia
brasileira, o regime legal do casamento era regulado pelo direito
canônico. A República instituiu o casamento civil obrigatório em todo o
território nacional. Mas, manteve a indissolubilidade do mesmo.
Com relação ao ensino religioso, este se tornou facultativo, mas
deveria ser ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa
do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis.
Portanto, nessa Constituição verifica-se o caráter de neutralidade
do Estado brasileiro com relação à religião.
3.3.2 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na
Constituição de 1937
A Carta Magna de 1937 foi outorgada no golpe de Estado a 10 de
novembro, em plena campanha presidencial pelo próprio chefe do
Governo, Getúlio Vargas. Conhecida vulgarmente como “a polaca”, por ter
tido inspiração na Constituição da Polônia, esta Carta Magna só chegou a
ser executada nas partes em que conduzia ao paroxismo o poder
presidencial, com a substituição do Congresso nela mesma instituída pela
competência legisferante do Ditador.
A Constituição de 1937, com relação ao laicismo de Estado repetiu
o mesmo dispositivo de separação da Igreja e do Estado, suprimindo a
cláusula
introduzida
na
Constituição
de
1934
(sem
prejuízo
da
colaboração recíproca). Assim, esta Constituição retornou a 1891 no que
diz respeito à laicidade de Estado.
É interessante destacar que todas as Constituições brasileiras têm
no preâmbulo a invocação ao nome de Deus, exceto as Cartas de 1991 e
de 1937.
A Carta de 1937 manteve a liberdade de culto, mas não a
inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, embora a
liberdade de consciência constitua o fundamento da liberdade de culto.
Com relação ao ensino religioso, foi mantido como facultativo, mas
enfatizou-se que não poderia constituir objeto de obrigação dos mestres
ou professores, e tampouco de freqüência obrigatória por parte dos
alunos.
3.3.3 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na
Constituição de 1946
Esta Constituição, promulgada pelo sucessor de Getúlio Vargas, em
18 de setembro representou um progresso no caminho da liberdade
religiosa.
Inicialmente, são reafirmados dois princípios: o da separação ou
independência do Estado da Igreja e o da colaboração do Estado com a
Igreja visando ao bem comum. Além disso, foi vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o lançamento de impostos
sobre os templos de qualquer culto, desde que as suas rendas fossem
aplicadas integralmente no País. Dessa forma, a Constituição procurou
protegê-los, preservá-los e encorajá-los pelos meios mais eficazes de que
dispunha.
A posição neutra do Estado surge, porém atenuada com relação a
1891, pois em seu preâmbulo invoca o nome de Deus; admite a
colaboração recíproca, a assistência religiosa às forças armadas e nos
estabelecimentos de internação coletiva. Além disso, as associações
religiosas passam a ter permissão de manter cemitérios particulares e
acolhe a reivindicação tipicamente católica da indissolubilidade do
casamento. Também torna inviolável a liberdade de consciência e de
crença.
Portanto, muitos dos dispositivos dessa Constituição relativos ao
exercício da liberdade religiosa repetem os dizeres da Carta de 1934.
3.3.4 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na
Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969
A Constituição de 1967, que começou a vigorar com o Mal. Costa e
Silva, sofreu a Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969,
promulgada pelos três Ministros das Forças Armadas que substituíram o
presidente impedido de governar por motivos de saúde.
Na referida Emenda Constitucional, o princípio da separação da
Igreja do Estado é afirmado nos mesmos termos das Constituições
anteriores, com a proibição de estabelecer, subvencionar ou embaraçar
os cultos religiosos e de manter com eles relação de dependência ou
aliança. Assim, novamente é expresso o princípio da colaboração
afirmado em 1934 e em 1946. No entanto, explicita os setores onde pode
ocorrer essa colaboração (educacional, assistencial e hospitalar).
Por outro lado, as Constituições anteriores falam apenas em não ter
relações de dependência ou aliança com os cultos. Nesta, foram incluídos
os representantes, cujo acréscimo constitui uma restrição à autoridade da
Igreja Católica. Deve-se observar que a atuação da Igreja na questão
social ou no problema do desenvolvimento tem sido marcante, no Brasil,
o que na época causou dissensões esporádicas entre o Estado e a Igreja.
Também sofreu restrição o princípio da colaboração, a qual se deu pela
adição de “na forma e nos limites da lei federal”.
É garantida a liberdade de consciência e o exercício dos cultos
religiosos, desde que não contrariem a ordem pública e os bons
costumes. Mas estabelece que “não será autorizada a publicação de
pronunciamentos
que
envolvam
ofensas
às
Instituições
Nacionais,
propaganda de guerra, de subversão, de ordem política ou social, de
preconceitos e raça, de religião ou de classe”. Esse limite revela a
característica dessa Constituição, ou seja, a de liberdade com autoridade.
Com relação à família, essa Carta Magna, estabelece que a mesma
é constituída pelo casamento e que tem direito à proteção dos Poderes
Públicos. O casamento indissolúvel é mantido.
3.3.5 Liberdade de expressão religiosa e a formação de família na
Constituição de 1988
O art. 5º da Constituição Federal de 1988 traz dispositivos sobre
liberdade religiosa, estabelecendo no inciso VI que “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença”; no inciso VII dispõe que “é
assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva”; e no inciso VII,
estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei”.
Até o advento da Constituição Federal de 1988, os pilares do
Direito Civil estavam centrados na propriedade e no contrato. Com a nova
Carta Magna, as categorias jurídicas pré-constitucionais entraram em
choque com as recém-criadas, cuja ênfase e preocupação eram com a
preservação da dignidade da pessoa humana. Isto fez com que fossem
revistos as regras e institutos do Direito Civil, a partir de uma
despatrimonialização e de uma ênfase na pessoa humana, ou seja, na
compreensão
da
dignidade
como
essência
do
sujeito
e,
conseqüentemente, das relações jurídicas.
Hoje, a família é núcleo descentralizado, igualitário, democrático e,
não necessariamente, heterossexual. Trata-se de uma entidade de afeto
e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o
desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma legal
regulamentador a Constituição de 1988. 148
148
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias
sociológicas versus reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação
conceitual à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de
(Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004. p. 19-34.
De acordo com Gustavo Tepedino, do exame dos artigos 226 a 230
da Constituição Federal vigente se verifica que:
o centro da tutela constitucional se desloca do casamento
para as relações familiares dele (mas não unicamente dele)
decorrentes; e que a milenar proteção da família como
instituição, unidade de proteção e reprodução dos valores
culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela
essencialmente
funcionalizada,
à
dignidade
dos
seus
membros. 149
Ao eleger como princípio fundamental a dignidade humana, de
forma revolucionária, a Constituição de 1988 alargou o conceito de
família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros
e descendentes, sejam estes frutos de casamento ou não. 150
Assim sendo, a entidade familiar deve, efetivamente, promover a
dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando
sentidos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para
o alcance da felicidade. 151
149
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.
349.
150
FARIAS, op. cit. p. 19-34.
151
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias
sociológicas versus reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação
conceitual à luz da legalidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano Chaves de
(Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004. p. 19-34. p. 23.
4 A LIBERDADE RELIGIOSA E CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA NO
CÓDIGO CIVIL DE 2002
4.1 OS LIMITES DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 NA CODIFICAÇÃO DE
CLÓVIS BEVILÁQUA
O Código Civil brasileiro de 1916, criado sob grande influência
napoleônica, veio substituir as leis esparsas de origem portuguesa.
Naquela época significou um grande avanço, se comparado com a
legislação anterior, quando designou à mulher o direito de assumir, com o
casamento, os apelidos do marido e a condição de consorte e
companheira, além de conferir o direito de dispor livremente do produto
de seu trabalho, o que até então era desconhecido pela lei. Esse diploma
legal refletiu o contexto histórico-cultural de sua época, o Século XIX,
tendo como valores fundamentais o individualismo e o liberalismo.
De acordo com Francisco Amaral, na família, o patriarcalismo
doméstico traduziu no absolutismo do poder marital e no do pátrio poder.
Como princípios dominantes nas suas disposições encontravam-se 152:
a) O casamento civil como base da família legítima (Constituição de
1891, art. 72, § 4º; Código Civil, art. 229), passível de dissolução apenas
152
AMARAL, Francisco. Direito constitucional: a eficácia do Código Civil brasileiro após
a Constituição Federal de 1988. In: PEREIRA: Rodrigo da Cunha (Coord.).
Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 309-323.
com a morte de um dos cônjuges, sendo a indissolubilidade do casamento
elevada a princípio constitucional (art. 124 da Constituição de 1937; art.
163 da Constituição de 1946; art. 167, da Constituição de 1967; e art.
175, § 1º da Constituição de 1969);
b) A desigualdade dos cônjuges e o poder marital (arts. 233 e 242,
CC),
atribuída
ao
marido
a
chefia
da
sociedade
conjugal
e,
conseqüentemente, a representação legal da família, a administração dos
bens comuns e dos particulares da mulher que lhe competir, o direito de
fixar o domicílio da família e o direito de autorizar a profissão da mulher e
a sua residência fora do teto conjugal;
c) A condenação do concubinato (arts. 1.177; 1.179, III; 248, IV do
Código Civil), prevista no Direito anterior (Ordenações, 4, 66);
d) A incapacidade relativa da mulher casada (art. 6º, III, Código
Civil);
e) Estatuto jurídico diverso para os filhos adotivos (arts. 377 e
1065, § 2º, Código Civil), sendo que o filho adotivo que concorresse, na
sucessão hereditária, com os filhos legítimos, supervenientes à adoção,
teria direito apenas à metade da herança cabível a cada um destes;
f) Desigualdade dos filhos quanto à sua legitimidade (arts. 332, 337
e 347 do Código Civil), não podendo ser reconhecida a prole adulterina
ou incestuosa (art. 358, Código Civil). Só seriam legítimos os filhos
havidos na constância do casamento.
Observa-se, portanto, que as tradições jurídicas reinantes no
Direito
Brasileiro,
estavam
impregnadas
dos
princípios
do
Direito
Canônico, que se inspirava, por sua vez, no canone duo in carne una (“os
dois cônjuges numa só carne”), como fundamento da “união eterna”,
consagrada
por
Deus,
ou
seja,
a
“indissolubilidade
do
vínculo
matrimonial” 153.
Marco Aurélio S. Viana explica que a Igreja Católica repudiava as
inovações trazidas pela República, como a lei do casamento civil, a
retirada das imagens dos edifícios públicos, entre outras. A perda do
poder político levou a Igreja a buscar o fortalecimento do poder espiritual,
mas
nessa
área,
protestantismo,
do
encontrava
forte
positivismo,
do
oposição
liberalismo
da
e
maçonaria,
do
do
materialismo.
Entretanto, seu apelo junto às massas populares manteve-se forte e
refletiu no Direito de Família, no qual se observa a influência do Direito
Canônico. 154
4.2 AS INOVAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
A modificação, tanto da sociedade, como do Estado refletiram no
desenho jurídico da família.
acentuada
153
154
preocupação
A Constituição Federal de 1988 demonstrou
com
o
social,
o
que
resultou
na
SOARES, Orlando. União estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 7.
VIANA, Marco Aurélio S. Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 2.
maior
intervenção nas relações sociais, as quais foram também sentidas na
esfera da família, tendo ocorrido a ampliação da tutela a situações
anteriormente não protegidas. 155
A referida Carta Magna trouxe a modificação ao estender a
proteção do Estado à entidade familiar decorrente da união estável entre
o homem e mulher e à comunidade formada por quaisquer dos pais e
seus descendentes, ampliando o conceito de família antes decorrente
exclusivamente do casamento 156.
O Código Civil de 2002 veio consolidar as inovações feitas pela
Constituição Federal de 1988, as quais serão tratadas a seguir.
O Direito de Família foi o instituto que mais sofreu alteração no
mundo jurídico nos últimos anos, gerando efeitos devastadores numa
ordem jurídica que se pretendia perenizar pela tradição, pela ordem
natural dos fatos e, principalmente, pela influência do Direito Canônico
que durante muitos séculos exerceu a hegemonia para tratar dos
155
CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In:
PEREIRA: Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p. 485-511.
156
O Título VIII – “Da Ordem Social”, Capítulo VII – “Da Família, da Criança, do
Adolescente e do Idoso”, art. 226, estabelece a Constituição Federal de 1988:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1° O casamento é civil é gratuita a celebração.
§ 2° O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3° Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento.
§ 4° Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente
pelo homem e pela mulher”.
assuntos relacionados à família, quer no seu aspecto teológico ou
jurídico.
A humanidade mudou e como era de se esperar a sociedade
brasileira também sofreu profundas mudanças após o advento do nosso
Código Civil de 1916 e as pressões internas e externas foram sendo
transformadas em verdadeiros reclamos por mudanças generalizadas,
mas principalmente no âmbito do Direito de Família.
Tais reclamos foram se transformando em grandes volumes de
águas a provocar o rompimento dos diques do sistema codificado.
Tais mudanças acabaram por criar um fenômeno de transição de
monossistema codificado para um plurissistema de legislação a orbitar
em torno do Código Civil. Como exemplo pode-se citar a Lei 4.121 de
1962 (Estatuto da Mulher Casada); Lei 6.515 de 1977 (Lei do Divórcio);
Lei 8971 de 1994 (União Estável) e outras.
Todavia o que mais chama a atenção é a inserção de dois singelos
artigos na Constituição de 1988, os arts. 226 e 227, que aliados a uma
gama de legislação esparsa no Direito de Família, retirou o velho Código
Civil de sua posição centralizadora. Agora não só os micros sistemas,
mas de forma contundente a própria Constituição acabaram por colidir
frontalmente com o Código de 1916. Em razão disso, diversos institutos
passaram a ser regulados pela Constituição, por exemplo, a propriedade
e sua função social; os contratos e o Direito de Família que acabam
imigrando do Código para a Constituição.
A sociedade é dinâmica. Os fatos e o comportamento humano
mudam com uma velocidade jamais vista. Ao processo de transmutação
do Direito de Família do Código para Constituição, denominado por Edson
Luiz Fachin de travessia de um caudaloso rio com muitos percalços, mas
necessário porque os novos fatos reais e concretos do dia a dia não
podem ficar à deriva em um oceano de leis que já não mais atende os
seus reclames. 157
É exatamente em decorrência das mudanças comportamentais da
sociedade que desde 1975 teve início o trabalho de reformas com vistas
ao novo Código Civil que entrou em vigor a partir de janeiro de 2003.
4.2.1 Ampliação do conceito de família
Na evolução da família, segundo Levy Bruhl apud Orlando Gomes,
é predominante a tendência de “se tornar um grupo cada vez menos
organizado e hierarquizado e que cada vez mais se funda na afeição
mútua”. Essa tendência se reflete no campo do Direito de Família
determinando
a
modificação
de
conceitos
jurídicos
básicos
e
a
substituição de princípios fundamentais. 158
157
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado:
direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003.
158
GOMES, Orlando. Direito de família. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 21.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §§ 3º e 4º, inovou
o conceito de família, que pode ser entendida como: a) conjunto de
pessoas unidas pelo casamento (cônjuges e filhos); b) conjunto de
pessoas unidas em união estável (entidade familiar); c) conjunto de
pessoas
formado
monoparental).
por
um
só
dos
pais
com
sua
prole
(família
Tem-se, portanto, que esta ampliação do conceito de
família enfoca o casal, noção que sobrepõe à de cônjuges, para envolver
todas as entidades familiares. Ainda, destaca-se no plano constitucional,
o compromisso do Estado brasileiro com a especial proteção da família,
base da sociedade, nele incluindo o conceito de entidade familiar
decorrente da união estável entre o homem e a mulher ou da comunidade
entre qualquer dos pais e seus descendentes. 159
Além de ampliar o conceito de família, a Carta Magna vigente
trouxe três grandes alterações, as quais se refletiram diretamente no
novo
Código
Civil,
verificando-se
adaptações
do
legislador
infraconstitucional ao texto constitucional. Tais adaptações são as
seguintes: a) igualdade entre os cônjuges; b) igualdade entre os filhos; e
c) união estável.
159
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Família & sucessões. São Paulo: Barros, Fisher &
Associados, 2005. p. 15-16.
4.2.1.1 Igualdade entre os cônjuges
Os
direitos
e
deveres
referentes
à
sociedade
conjugal
são
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 5º, CF).
O princípio da igualdade jurídica entre os cônjuges e dos
companheiros, que envolve direitos e deveres, revolucionou o governo da
família
organizada
sobre
a
base
patriarcal.
Com
esse
princípio
desaparece o poder marital e a autocracia do chefe de família é
substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de
comum acordo entre conviventes ou entre marido e mulher. 160
O patriarcalismo não mais se coaduna com a época atual e
tampouco atende aos anseios do povo brasileiro. Por essa razão, o poder
do marido é substituído pela autoridade conjunta e indivisa, não se
justificando mais a submissão legal da mulher. 161
O Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62), ainda que tenha
dado nova redação ao artigo 233 do Código Civil de 1916, fez subsistir a
hierarquia na sociedade conjugal. Ressalte-se que antes da referida lei,
cabia ao marido, com exclusividade, a chefia da família. 162
160
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 17 ed.
São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. p. 18.
161
Ibid. p. 18.
162
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.p. 86-88.
O art. 1.511 do Código Civil de 2002 prevê: “O casamento
estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e
deveres dos cônjuges”.
A igualdade jurídica dos cônjuges é um transcurso de conquistas
históricas da condição feminina. Como os fatos acabam se impondo
perante o Direito e a realidade acaba desmentindo esses mesmos
códigos, mudanças e circunstâncias mais recentes têm contribuído para
dissolver a “névoa de hipocrisia” que encobre a negação de efeitos
jurídicos à orientação sexual. Estas transformações decorrem, entre
outras motivações, da alteração da razão de ser das relações familiares,
que passaram a dar origem a um berço de afeto, solidariedade e mútua
constituição de uma história comum, sob o signo da igualdade. 163
4.2.1.2 Igualdade entre os filhos
Na definição de Maria Helena Diniz, "filiação é o vínculo existente
entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em
linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a
vida". 164
Pontes de Miranda, por sua vez, sustenta que a filiação é
163
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado:
direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003. p. 29..
164
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 5. p. 372.
a relação que o fato da procriação estabelece entre duas
pessoas, uma das quais nascidas da outra, chama-se
paternidade, ou maternidade, quando considerada com
respeito ao pai, ou à mãe, e filiação, quando do filho para
qualquer dos genitores. 165
Filiação é um conceito relacional: é a relação de parentesco que se
estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da
outra (pai ou mãe). 166
O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de
parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos
e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de
filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de
paternidade e de maternidade, em relação a ele. 167
Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, o Direito, em matéria de filiação,
sempre se valeu de presunções, seja pela dificuldade natural em se
atribuir a paternidade ou maternidade a alguém, seja pelas dificuldades
fundadas em preconceitos históricos decorrentes da hegemonia da família
patriarcal e matrimonializada. Dessa forma, tem-se: a) presunção pater is
est quem nuptia demonstrant (pai é aquele que o prova pelo contrato
nupcial), a qual impede que se discuta a origem da filiação se o marido da
165
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado.
Campinas: Bookseller, 2000. v. 9. p. 45.
166
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética:
uma distinção necessária. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 194, 16 jan. 2004.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4752>. Acesso em: 4 dez.
2006.
167
Ibid.
mãe não negar em curto prazo preclusivo; b) a presunção mater semper
certa est (a mãe é sempre certa), que impede a investigação de
maternidade contra mulher casada; c) a presunção de paternidade
atribuída ao que teve relações sexuais com a mãe, no período da
concepção; d) a presunção de exceptio plurium concumbentium, que se
opõe à presunção anterior; e) a presunção de paternidade, para os filhos
concebidos 180 dias antes do casamento e 300 dias após a dissolução da
sociedade conjugal, entre outros. 168
A presunção pater is est (pai é aquele) merece destaque especial
pelo fato de persistir dúvida quanto a sua permanência após a
Constituição de 1988. Por muito tempo, os povos do sistema jurídico
romano encerraram a incerteza da paternidade, valendo-se dessa
presunção prática. 169
A presunção supõe que a maternidade é sempre certa e o marido
da mãe é, normalmente, o pai dos filhos que nasceram da coabitação
deles. No entanto, a presunção pater is est não soluciona o problema
mais comum que é o da atribuição da paternidade, quando não houve
nem há coabitação. A presunção fazia sentido quando a filiação biológica
era determinante, no modelo patriarcal. 170
168
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus
Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>/
doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 4 dez. 2006.
169
Ibid. p. 2.
170
Ibid. p. 2.
Os laços afetivos que se constroem entre pais e filhos não
dependem da imposição da natureza (origem biológica) ou de imposição
da lei. Além disso, por sua própria natureza, a presunção parte da
exigência da fidelidade da mulher, pois a do marido não é necessária
para que ocorra. Esta circunstância incompatibiliza-se com o art. 5º da
Constituição de 1988, para a qual “os direitos e deveres referentes à
sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela
mulher”. 171
Ainda de acordo com Paulo Luiz Lôbo, os tribunais, baseados nos
princípios constitucionais e no art. 27 do Estatuto da Criança e do
Adolescente 172, têm entendido que os filhos podem, a qualquer tempo,
pleitear a paternidade que imputam a alguém, não prevalecendo a
presunção pater is est nem o registro público do nascimento.
No Código Civil de 1916, a filiação legítima tinha por base o
casamento dos pais quando da concepção, ou seja, a fonte da
legitimidade era o casamento válido ou o casamento putativo. Assim, o
art. 337 do antigo Código dispunha que eram legítimos os filhos
concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou mesmo
171
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus
Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br>/
doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 4 dez. 2006.
172
“O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e
imprescindível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer
restrição, observado o segredo de justiça”.
nulo, se contraído de boa-fé. O casamento subseqüente tinha o objetivo
também de legitimar os filhos havidos pelo casal. 173
De fato, o Código de 1916 estabeleceu uma verdadeira hierarquia
entre as formas de filiação, dependendo de sua origem, de modo que,
doutrinariamente, se criou a grande divisão entre a filiação legítima (filhos
havidos na constância do casamento) e ilegítima e, dentro da segunda
classe, a filiação natural (filhos havidos entre pessoas não casadas, mas
sem impedimento para o matrimônio) e a espúria (filhos adulterinos e
incestuosos).
No entanto, a Constituição de 1988, vedou qualquer qualificação
relativa à filiação, encontrando-se no art. 227, § 6º a seguinte disposição:
“Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão
os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação”.
Assim, a expressão “filiação legítima” seria substituída pela
expressão “filiação matrimonial” que é aquela que se origina na
constância do casamento dos pais, ainda que anulado ou nulo (CC, arts.
1.561 e 1.617).
Dessa forma, o casamento dos genitores deve ser anterior não só
ao nascimento do filho, como também à sua própria concepção. Logo, em
princípio, o momento determinante de sua filiação matrimonial é o de sua
173
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 3 ed. São Paulo: Atlas,
2003. p. 267.
concepção. Entretanto, pode ocorrer que o filho seja concebido antes e
nascido depois da celebração do casamento, sem que por isso deixe a
filiação de ser matrimonial. Presume-se serem concebidos na constância
do casamento filhos nascidos 180 dias após o estabelecimento da
convivência conjugal ou dentro de 300 dias após a dissolução da
sociedade conjugal (CC, art. 1.597, I e II). Portanto, a lei determina o
período no qual começa e termina a presunção da paternidade,
considerando uma dupla presunção: a de coabitação e fidelidade da
mulher e a de reconhecimento implícito e antecipado da filiação feito pelo
marido ao se casar, ou ainda, havida por fecundação artificial homóloga,
mesmo que falecido o marido, por inseminação artificial heteróloga,
realizada com a anuência do marido e pro fertilização in vitro, se era
embrião excedentário, oriundo de concepção artificial homóloga (CC, art.
1.597, III a V). 174
Também será matrimonial o filho que veio à luz após a dissolução
ou anulação do casamento, mas tendo sido concebido durante este, ou se
foi concebido antes de celebrado o ato nupcial, apesar de ter nascido
durante o casamento. Portanto, a filiação matrimonial é a concebida na
constância do matrimônio, seja ele válido, nulo ou anulável, ou, em certos
casos, antes da celebração do casamento, porém, nascida durante a sua
vigência, por reconhecimento dos pais (CC, art. 1609, I). 175
174
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 5. p. 381-382.
175
Ibid. p. 383.
Observa-se que não, necessariamente, a filiação decorre de união
sexual, pois pode vir de inseminação artificial homóloga (CC, art. 1.597,
III), em que o doador do sêmen é o próprio marido; ou inseminação
artificial heteróloga (art. 1.597, IV); ou ainda, de fertilização in vitro ou
proveta (CC. Art. 1.597). Neste último caso, pode surgir a dúvida sobre
quando, realmente, começou a vida legal: se no ato da fertilização na
proveta, no momento da implantação do óvulo no útero ou no instante em
que o feto se movimentou. Perante o art. 2º do Código Civil, 2ª Parte, o
início
legal
da
personalidade
jurídica
é
o
da
penetração
do
espermatozóide no óvulo, embora fora do corpo da mulher, já que se
põem a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 176
É importante destacar que o art. 1.596, do Código Civil de 2002,
dispõe que “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”.
4.3 CASAMENTO
O casamento é definido por Silvio Rodrigues como o “contrato de
direito de família que tem por fim promover a união do homem e da
176
DINIZ, op. cit. p. 379.
mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações
sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência”. 177
Verifica-se, portanto, que a doutrina acolhe a origem canônica da
feição contratual do casamento, e a esse respeito Orlando Gomes afirma:
A concepção contratual do matrimônio provém do direito
canônico, que valoriza o consentimento dos nubentes
relegando a plano secundário, na formação do vínculo, a
intervenção do sacerdote. Na sua origem, como na sua
essência, o casamento é, para a Igreja, um contrato. A
Escola
do
Direito
Natural
acolheu
essa
concepção
definindo o casamento como contrato civil, despido de
suas vestes religiosas. Sob sua influência, as legislações
passaram, a partir do Código de Napoleão, a discipliná-lo
como negócio jurídico contratual. 178
Assim, o casamento se configura em uma união formal, sendo que
as formalidades preliminares e solenidade concomitante à celebração
reúnem-se em um ato que se consolida e prova-se, nos termos do
Código, prioritariamente pelo viés formal, secundariamente pela posse de
estado de casados. 179
177
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 6. p. 19.
178
GOMES, Orlando. Direito de família. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 57.
179
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código civil comentado:
direito de família, casamento: artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, 2003. p. 29.
4.3.1 Casamento civil e religioso
A rigor, só há um tipo de casamento válido, a modalidade de
casamento civil, o qual se desdobra em duas formas: o casamento civil
propriamente dito, que é aquele realizado exclusivamente perante a
autoridade do Estado e o casamento religioso com efeitos civis. 180
Explica Caio Mário da Silva Pereira que a lei reconhece a validade
e efeitos civis do casamento celebrado perante autoridade eclesiástica,
quando os nubentes promoverem o processo de habilitação perante o
Oficial do Registro, que na conformidade do que dispõe o Código Civil,
lhes passará a certidão competente, a ser arquivado pela autoridade
celebrante. Realizado o casamento, qualquer interessado poderá requerer
a inscrição do ato religioso no Registro. 181
A grande inovação na matéria, segundo esse autor, é a habilitação
a posteriori, dos casamentos oficializados sem a prévia habilitação civil:
os nubentes requerem a inscrição apresentando a prova do ato religioso e
os documentos exigidos pelo art. 1.525 do Código Civil. 182
Assim, o Código Civil de 2002, nos artigos 1.515 e 1.516, integra o
casamento religioso na sua sistemática. Mas, para que gere efeitos civis,
o
casamento
deverá
ser
celebrado
segundo
uma
seita
religiosa
Mário da
Forense,
Mário da
Forense,
Silva.
2004.
Silva.
2004.
Instituições de direito civil: direito de família. 14
p. 69.
Instituições de direito civil: direito de família. 14
p. 69.
180
Ibid. p. 33.
PEREIRA, Caio
ed. Rio de Janeiro:
182
PEREIRA, Caio
ed. Rio de Janeiro:
181
reconhecida e deverá atender às exigências formais e substanciais
impostas para a validade do casamento civil. O prazo para o registro é de
noventa dias a partir de sua realização, mediante a comunicação do
celebrante
ao
ofício
competente,
ou
por
iniciativa
de
qualquer
interessado, desde que tenha sido homologada a habilitação (art. 1.526).
Observa Maria Helena Diniz que considerando desaconselháveis as
duplas núpcias e tendo em vista os sentimentos religiosos da população
brasileira 183, a Constituição de 1934, em seu art. 146, possibilitou que se
atribuísse ao casamento religioso efeitos civis desde que observadas as
prescrições legais. A Lei n. 379/1937, que regulamentava a matéria, foi
mais tarde, parcialmente, modificada pelo Decreto-Lei n. 3.200/1941, arts.
4º e 5º. 184
A Constituição de 1946, no art. 163, § 1º, manteve a concessão
anterior,
condicionando-a
à
observância
dos
impedimentos
e
às
prescrições da lei, se assim o requeresse o celebrante ou qualquer
interessado, com inscrição do ato no Registro Público. Em 1950, a Lei n.
1.110 regulamentou por completo o reconhecimento dos efeitos civis ao
casamento religioso, quando os nubentes requeressem sua inscrição no
Registro após sua realização, revogando a Lei n. 379 por inteiro. 185
183
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 6. p. 65.
184
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 5. p. 54.
185
Ibid. p. 54.
A
Constituição
Federal
de
1967,
com
redação
da
Emenda
Constitucional n. 1/69, no art. 175, §§ 2º e 3º, manteve o casamento
religioso com efeitos civis. A matéria do registro do casamento religioso
para efeitos civis foi disciplinada nos arts. 71 a 75 da Lei n. 6.015/73 e,
em 2002, no Código Civil. No entanto, o povo brasileiro insiste em
continuar com os dois casamentos, civil e religioso, sendo raros os casos
em que se usa o matrimônio religioso nos dois efeitos: eclesiástico e
civil. 186
Entretanto, deve-se mencionar que, especificamente, a Igreja
Católica exige entre outros documentos, a certidão de habilitação
fornecida pelo Cartório de Registro Civil.
4.3.2 Formalidades
O art. 1.512 do Código Civil brasileiro vigente determina que o
casamento é civil e sua celebração é gratuita, segundo o disposto na
Constituição Federal, art. 226, § 1º. O parágrafo único desse mesmo
artigo do Código Civil especifica que a habilitação para o casamento, o
devido registro e a primeira certidão serão isentos de selos, emolumentos
e custas, para as pessoas cuja pobreza for declarada, sob as penas da
lei. O art. 1.513 proíbe que qualquer pessoa, de Direito Público ou
186
Ibid. 5. p. 54.
Privado, venha a interferir na comunhão de vida instituída pela família,
complementando o sentido da norma do art. 1.511.
Das formalidades preliminares do casamento, mais propriamente do
processo de habilitação, trata o art. 1.522, do Código Civil vigente, em
seus vários incisos e artigo seguinte. Assim, antes que se realize o
casamento,
é
necessária
a
apresentação
de
provas
de
que
os
pretendentes estão aptos para casar, ou porque já têm a idade mínima
para o ato ou negócio jurídico, ou porque, se são menores e estão sob o
poder familiar, têm o consentimento de seus pais; ou ainda, porque
inexiste parentesco em grau aproximado entre os precedentes etc. É
necessário, portanto, que se faça essa verificação, durante o processo de
habilitação. 187
É
importante
destacar
que
as
formalidades
preliminares
do
casamento visam também tornar pública a próxima realização do
matrimônio, a fim de que se possibilite a oposição de impedimentos ou de
causas suspensivas, se houver, matéria de grande interesse social. Se o
casamento fosse realizado sem tais formalidades, sem a publicação de
edital, a portas fechadas, não haveria possibilidade de alguém levar ao
conhecimento da autoridade que os pretendentes não poderiam casar-se
por determinado motivo. 188
187
BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 66.
188
BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 66.
Para a habilitação, os nubentes devem apresentar os seguintes
documentos, conforme estabelecido no art. 1.525, do Código Civil de
2002: certidão de nascimento ou documento equivalente; autorização por
escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial
que a supra (menores de 16 anos); declaração de duas testemunhas
maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não
existirem impedimentos que os iniba de se casar; declaração do estado
civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se
forem conhecidos; certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença
declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em
julgado, ou do registro da sentença de divórcio. 189
Explica Maria Helena Diniz que o Código Civil vigente não trata,
expressamente, das condições indispensáveis à existência jurídica do
casamento, por entender desnecessária a sua enumeração, uma vez que
concernem aos elementos naturais do matrimônio. O casamento tem
como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes (art.
1.514, CC). 190
189
Ibid. p. 66-70.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. v. 5. p. 55.
190
4.3.3 Impedimentos matrimoniais
Desde o Direito Romano são apontados motivos de proibição para o
matrimônio. O Direito Canônico vendo no casamento um ato de
importância capital para o indivíduo e para a sociedade, construiu com
eles a teoria dos “impedimentos matrimoniais”. A elaboração canônica de
uma teoria proporcionou certa uniformidade aos sistemas jurídicos
ocidentais, especialmente nos países de formação romano-cristã, como
Brasil, França, Alemanha, Itália, Suíça, Portugal, Argentina, entre outros,
de como nos de Common Law, como a Inglaterra, Estados Unidos,
Canadá, entre outros. 191
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira, na primeira ordem dos
impedimentos estão aqueles que, por motivos de moralidade social, a
ordem jurídica inscreve como portadores de maior gravidade, envolvem
causas que condizem com a instituição da família e a estabilidade social.
Por esta razão, sua existência pode ser acusada por qualquer pessoa e
pelo Ministério Público na sua qualidade de representante da sociedade.
O matrimônio celebrado com a sua infração é nulo. Tais impedimentos
são em número de sete (art. 1.521, n. I a VII), compreendendo três
categorias jurídicas: a) incesto (impedimentum consaguinitatis) – incisos I
a V, impedimentos resultantes do parentesco (impetimentum ligaminis seu
191
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 79.
vinculi); b) impedimento resultante de casamento anterior – inciso VI; e c)
impedimento decorrente de crime (impedimentum criminis) – inciso VII. 192
Não podem casar os ascendentes com os descendentes em
qualquer grau, ligados diretamente pela consangüinidade ou pela adoção
(art. 1.521-I). O impedimento por afinidade (art. 1.521-II) deve limitar-se
ao primeiro grau, já que afinidade não gera afinidade. O direito pátrio
atual não cogita o chamado “parentesco espiritual”, originário do batismo,
que, anteriormente e sob fundamento canônico, impedia o casamento do
padrinho com sobrinha, e entre os pais do batizado e os padrinhos.
O matrimônio entre irmãos, unilaterais ou bilaterais e demais
colaterais, até o terceiro grau, inclusive, foi proibido pelo art. 1.521-IV. No
caso de adoção também há impedimento da mesma forma que na família
biológica, não podendo o adotante contrair matrimônio com o adotado
(art. 1.623).
Como no mundo ocidental predomina o tipo familiar monogâmico,
constitui impedimento a existência de um casamento anterior (art. 1.521VI). A proibição, que vigora enquanto o matrimônio anterior subsistir,
desaparece com a sua dissolução pela morte do outro cônjuge ou por
decreto judicial de anulação ou nulidade e, ainda, na hipótese de divórcio.
Também é proibido o matrimônio ao cônjuge sobrevivente com o
condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte
192
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 82.
(art.
1.521-VII).
Deve-se
destacar
que
aqui
o
que
caracteriza
o
impedimento é a condenação, não bastando mera acusação ou o
processo.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o Código Civil simplificou o
sistema de oposição de impedimentos em seu art. 1.522, que estabelece
que “podem ser opostos por qualquer pessoa capaz”, em qualquer fase
do processo de habilitação, e até o momento da celebração do
matrimônio, independente se realizada por juiz, no casamento civil, ou por
ministro celebrante no casamento religioso.
Sobre as causas suspensivas explica Caio Mário da Silva Pereira
que estas integravam o que na doutrina canônica e também no Código
Civil brasileiro de 1916 se designava de “impedimentos impedientes”, ou
seja, que “não podem casar”, mas que não levavam à invalidade do
matrimônio, porém, sujeitavam o infrator a certas penalidades. No Código
de 2002 são enunciados como conselhos (não devem casar), não trazem
efeito suspensivo. Assim, as causas suspensivas não têm por efeito a
invalidade do casamento, mas impõem a sanção de vigorar o regime de
separação de bens, como é o caso das pessoas maiores de sessenta
anos (art. 1.641-II). 193
Assim, o art. 1.523-I veda o casamento ao viúvo ou viúva que tenha
filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do
extinto casal e der partilha aos herdeiros (art. 183-XIII, do Código de
193
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 92.
1916). A lei visa, nesse caso, a evitar que se confunda o patrimônio em
que são interessados os filhos do primeiro casamento com o que vai
constituir o substrato econômico da nova sociedade conjugal.
O art. 1.523-II do novo Código recepcionou duas situações
previstas no Código de 1916 como impedimentos impedientes: “Não
devem casar a viúva ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo
ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez ou da
dissolução da sociedade conjugal”.
Em outros termos, tendo sido dissolvido o casamento, pela
nulidade, anulação ou pela morte do marido, a mulher não pode contrair
novas núpcias, antes de decorridos dez meses. Essa restrição visa a
evitar a turbatio sanguinis (mistura de sangue), que fatalmente ocorreria,
tendo em vista que se presumiria filho do falecido aquele que nascesse
até trezentos dias da data do óbito ou da sentença anulatória ou que
declare nulo o casamento. Igual presunção atribuiria a paternidade ao
segundo marido quanto ao filho que nascesse até cento e oitenta dias
depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 1.597-I). No entanto,
deve-se abrir exceção para o caso de ser o casamento anterior anulado
por impotência, desde que absoluta e anterior ao matrimônio ou quando
resulta evidente a impossibilidade física de coabitação entre os cônjuges.
A sanção imposta ao infrator destas disposições é a separação de bens
no casamento. Mas, o juiz poderá autorizar o casamento se a nubente
provar o nascimento do filho ou inexistência da gravidez.
O art. 1.523-III determina restrição especial ao casamento do
divorciado “enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha
dos bens do casal”. De acordo com Caio Mário da Silva Pereira essa
regra contrasta com a Súmula 197 do STJ que autoriza a concessão do
divórcio direto sem a prévia partilha de bens. Independentemente das
contradições que envolvem a partilha de bens na separação judicial (art.
1.575) e no divórcio (art. 1.581) aplica-se, nesta hipótese, a separação de
bens no casamento (art. 1.641-I). No entanto, também é admitida a
autorização para o casamento se o nubente provar a inexistência de
prejuízo para ele e para os filhos (art. 1.523). 194
O art. 1.523-III estabelece que “o tutor ou curador, e os
ascendentes, descendentes, cunhados e sobrinhos de um ou de outro não
podem casar com o tutelado ou curatelado, enquanto não cessar a tutela
ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas”. Nesse
caso, trata-se de defender o incapaz contra o administrador de seus bens
que procure em um casamento o meio de se livrar da prestação de
contas.
Ainda é importante destacar que o parágrafo único do art. 1.523 do
Código Civil acrescentou a possibilidade de os nubentes solicitarem ao
juiz que não sejam aplicados os efeitos das causas suspensivas, se
estiverem presentes determinados requisitos.
194
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 94.
4.3.4 Dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial
O art. 2º da Lei n. 6.515/77, que substituiu a regra do art. 315 do
Código Civil de 1916, determinou que a sociedade conjugal termina: pela
morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela
separação judicial ou pelo divórcio, observando que o casamento válido
só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio.
A expressão “desquite” foi introduzida no Direito Brasileiro com o
Código Civil de 1916. O Decreto n. 181/1890, que instituiu o casamento
civil, utilizava a palavra “divórcio”, apesar de não o admitir com o efeito
de romper o vínculo conjugal. Assim, o referido Código nada inovou, a
não ser o nome do instituto. Essa palavra “desquite” serviu para distinguir
a separação judicial de corpos e de bens, a única admitida no direito
brasileiro de então, do instituto do divórcio com dissolução do vínculo
conjugal e possibilidade de novo matrimônio aos divorciados, permitido,
na época, em quase todos os países do mundo, mas não admitido no
direito pátrio. 195
A legislação brasileira só foi admitir o divórcio a partir de 1977, cuja
mudança ocorreu em duas fases, com a primeira representada pela
Emenda Constitucional n. 9, que pôs termo à indissolubilidade do vínculo
e completada pela Lei n. 6.515/77, que regulamentou o divórcio em duas
195
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 27 ed. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 225-226.
hipóteses: a) conversão da separação judicial em divórcio; e b) após
separação de fato por mais de cinco anos iniciadas antes de 28 de
dezembro de 1977. A segunda fase veio com a Constituição de 1988, que
ampliou, significativamente, o campo do divórcio, não apenas pela
redução dos prazos para conversão da separação judicial em divórcio,
mas também pela multiplicação dos casos de divórcio direto. 196
Assim, o art. 226, § 6º da Carta Magna ampliou as hipóteses de
dissolução do casamento por divórcio, que são: a) após prévia separação
judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, chamado de
divórcio indireto; e b) comprovada a separação de fato por mais de dois
anos, o que é chamado de divórcio direto.
O
Código
Civil
vigente
trouxe
a
regulamentação
das
duas
possibilidades no art. 1.580. Dessa forma, poderá ocorrer o divórcio
indireto ou por conversão, após um ano do trânsito em julgado da
sentença que houver decretado a separação judicial ou da decisão
concessiva da medida cautelar de separação de corpos. A sentença que
decretar a conversão não fará menção à causa que determinou a
separação. No caso do divórcio direto, poderá ser requerido, por um ou
por ambos os cônjuges, desde que comprovem a separação de fato por
mais de dois anos. 197
196
Ibid. p. 227.
SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Família & sucessões. São Paulo: Barros, Fisher &
Associados, 2005. p. 62-63.
197
4.4 UNIÃO ESTÁVEL
A Carta Magna de 1988 foi a primeira dentre as Constituições
pátrias a estabelecer proteção efetiva às uniões estáveis. As anteriores
apenas consideravam o casamento como base da sociedade. O Código
Civil revogado, de 1916, nada tratou sobre o assunto, exceto para
amparar o investigante de paternidade. 198
O Código Civil atual contempla a união estável, devido às inclusões
e modificações introduzidas no Senado Federal, nos arts. 1.723-1.727,
com poucas normas. Mas, mesmo assim há de ser aplicada em muitas
outras situações em que se discute questões relativas ao casamento, por
analogia, embora deva-se deixar claro não ter sido intenção do legislador
assimilar, completamente, a união estável ao casamento, uma vez que a
diretriz do art. 1.726 do estatuto civil, seguindo nesse ponto, o que já
fazia o art. 8º da Lei n. 9.278/1996, permite a conversão da união estável
em casamento. 199
Anteriormente, ao Código Civil de 2002, a Lei n. 8.871/94,
conhecida como “Lei dos Companheiros”, reconheceu: a) o direito a
alimentos, o direito sucessório e o usufruto de parte dos bens em caso de
morte para aqueles que vivesse em união por mais de cinco anos ou com
198
BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 47.
199
BORGHI, Hélio. Casamento & união estável: formação, eficácia e dissolução. 2 ed.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 48.
prole; b) fossem livres para essa união, isto é, viúvos, separados
judicialmente ou divorciados.
A
Lei
n.
9.278/96,
conhecida
como
“Lei
dos
Conviventes”,
reconheceu a presunção do esforço comum, isto é, de que os bens
adquiridos na constância da união pertenciam aos dois, desde que
tivessem o objetivo de constituir família, e previu o direito real de
habitação, enquanto vivessem e não constituíssem nova união ou
casamento. No entanto, não exigia prazo de cinco anos, tipo de união ou
prole; e não se falava em pessoas desimpedidas.
Assim,
havia
a
necessidade
de
uma
uniformização
desses
entendimentos, uma vez que até aquelas pessoas que viviam relações
extramatrimoniais acabavam tendo seus direitos protegidos. Nesse
sentido, o Código Civil de 2002, embora não tenha sido muito detalhista,
reconheceu que a união estável não se constitui quando ocorrerem os
impedimentos elencados no art. 1.521, com exceção do inciso VI, no caso
de pessoa casada se estiver separada de fato ou judicialmente.
Complementou, ainda, que não impedirão a caracterização da união
estável as causas suspensivas do art. 1.523 e que o concubinato é a
relação não eventual entre homem e mulher impedidos de casar (art.
1.727).
Para se falar dos requisitos e elementos essenciais da união
estável, considera-se interessante, antes distinguir as espécies de
concubinato, que pode ser puro, impuro e desleal.
O concubinato puro seria aquele que se identifica com a união
estável e, portanto, deve gozar da proteção do Estado. Nesse caso, são
chamados companheiros o homem e a mulher que não estão vinculados a
outra pessoa por vínculo de sociedade conjugal e que aparecem na
comunidade como se fossem casados, em uma comunhão de objetivos
que pretende ser duradoura e constituindo-se numa família de fato que
convive na sociedade com as famílias matrimoniadas, sem qualquer
discriminação.
Por outro lado, o concubinato impuro é aquele que não é, por
limitação da norma constitucional, qualificável como entidade familiar.
Este ocorre quando há vínculo de um dos integrantes, ou de ambos,
numa ativa sociedade conjugal com terceiro, o que torna o seu
concubinato adulterino. Observa-se que mesmo impuro, de acordo com as
circunstâncias e da ruptura da vida em comum do casal, poderá haver
direito de um dos participantes à partilha de bens.
O concubinato desleal, que é duplo em relação a outro, como o
homem já concubinado, mantém simultaneamente uma união também de
fato, caracterizando o caso de concubinagem.
Assim, diferencia-se a concubina da companheira, sendo esta
aquela com quem o varão separado de fato da esposa, ou mesmo de
direito, tem convivência more uxório 200, na qual anteriormente, tinha o
200
More uxório: costume de passar por esposa perante a comunidade. É o convívio
como se fossem marido e mulher (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o
latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 156).
direito de receber do companheiro a retribuição devida pelo serviço
doméstico a ele prestado, como se fosse parte em um contrato civil de
prestação de serviços 201, mas que hoje, com a nova lei, tal entendimento
encontra-se superado; aquela seria a mulher com quem o cônjuge
adúltero tem encontros periódicos fora do lar e, que tem o direito de
partilhar com o companheiro o patrimônio que ambos formaram
202
.
A partir das espécies de concubinato e sociedade de fato, pode-se
aventar os seguintes pressupostos 203 exigíveis para caracterizar a união
estável: estabilidade; ausência de sociedade conjugal ativa de quaisquer
dos concubinos; coabitação; notoriedade; fidelidade e diversidade de
sexos.
Para se ter estabilidade devem ocorrer dois requisitos, o primeiro é
um prazo razoável de convivência e o segundo é o da constância
ininterrupta da convivência, para diferenciar esta união da precária, em
que a pretensa estabilidade é confundida com a longa duração, apesar
dos incidentes interruptivos dessa convivência e também da união
clandestina, que não passa de mera prática de relações sexuais furtivas.
A esse respeito, Belmiro Pedro Welter enfatiza que
201
Esse contrato é definido no art. 594, do Código Civil.
De acordo com os arts. 981 e 987, do Código Civil e art. 1.287, VII do Código de
Processo Civil e da Súmula 380 do STF.
203
Distingue-se “pressupostos” de “requisitos”, no sentido de que no caso de
“pressupostos” todos devem ocorrer simultaneamente para configurar a situação,
enquanto que no caso de “requisitos”, basta o cumprimento de um único deles para
que se configure a situação.
202
a dispensa do prazo certo para o reconhecimento da união
estável não autoriza que se possa ser reconhecida com
poucos dias de convivência, sob pena de se outorgar os
direitos das Leis da entidade familiar com um simples
passeio de fim-de-semana. Inobstante a dispensa de prazo
certo, deve haver prova segura de que tenha havido a
‘convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida
com o objetivo de constituição de família’ (art. 1° da Lei
9.278/96).
A
ausência
de
204
sociedade
conjugal
ativa
de
quaisquer
dos
concubinos, constitui o requisito do concubinato puro, que se contrapõe
ao adulterino. Sua exigência baseia-se em que o adultério eliminaria a
eventual pretensão a direito decorrente de uma união ilícita e injurídica.
Dessa forma, o concubinato impuro não se confunde com a união estável
porque não se identifica como entidade familiar.
Com relação ao período transcorrido na convivência, observa-se
que a Lei n. 9.278/96, não estabelece um tempo mínimo de convivência e
tampouco exige a ausência de impedimentos matrimoniais formais ou a
dissolução formal da sociedade conjugal, utilizando-se, portanto, de
conceitos relativamente abertos, que permitem a sua adequação ao caso
concreto.
204
WELTER, Belmiro Pedro. Estatuto da união estável. Porto Alegre: Síntese, 1999.
p. 52.
Considerando que a exteriorização do concubinato stricto sensu é a
aparência de casamento, requer-se, portanto, vida em comum sob o
mesmo
teto,
Magalhães
205
como
requisito
da
união
estável.
A
esse
respeito,
salienta que
não se concebe a idéia de um casal que pretendendo
constituir
família,
resida
cada
um
deles
sob
tetos
diferentes. Porém, não se pode interpretar essa condição
com absoluto rigor, porquanto situações existem que fazem
com que um deles, ou ambos, tenham que se ausentar da
residência por certo período, a trabalho ou estudo, por
exemplo.
Portanto, atualmente, um casal que vive em união estável pode não
viver debaixo do mesmo teto, pois há situações como de trabalho ou de
estudo que obrigam a ausência de um ou dos dois cônjuges na mesma
residência.
A notoriedade não decorre necessariamente de publicidade mas de
ser pública no sentido de não sigilosa, ou seja, a união deve ser real,
permitindo aos circunstantes do casal saberem dela. Se terceiros
desconhecem a união, a Justiça não pode reconhecê-la.
205
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo:
Editora de Direito, 2000. p. 50.
A fidelidade, de acordo com Segismundo Gontijo 206, obviamente que
presumida, denota o ânimo para a estabilidade da união como se fosse
um casamento por aparência. Não se trata de dever, cuja infração iria
resultar em sanção como no casamento, por que neste há disciplina de
direitos e deveres, inclusive o da fidelidade recíproca. Na união de fato,
essa situação é apenas fática, sem disciplina legal. A ocorrência de
infidelidade poderá causar a dissolução da união, mas não irá repercutir
no direito adquirido durante a convivência até então estável, decorrente
do concubinato ou da sociedade de fato.
Mas, a esse respeito, Rui Ribeiro de Magalhães 207 salienta que “não
há referência ao dever de fidelidade recíproca, como expressamente
consta do Código Civil Brasileiro, o que não deve ser entendido como
liberação dos costumes em face dos tempos modernos”. Esta, segundo
esse autor, “continua a existir, situada dentro do princípio de respeito
entre os conviventes”.
Acerca da questão do respeito mútuo, Rui Ribeiro de Magalhães 208
explica que o legislador destacou a necessidade de valorização pessoal e
moral dos conviventes, o afeto, a amizade, o respeito à integridade física
e demais itens que venham a suavizar as dificuldades naturais da vida a
dois.
206
GONTIJO, Segismundo. Do instituto da união estável. Disponível em: <http://www.
gontijo.famlia.adv.br>. Acesso em: 05 dez. 2006.
207
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo:
Editora de Direito, 2000. p. 51
208
Ibid. p. 51.
A diversidade de sexos é um requisito, uma exigência constitucional
expressa. A esse respeito, Marco Aurélio S. Viana afirma que “o
reconhecimento constitucional envolve a união entre homem e mulher, o
que afasta que seja tida como entidade familiar a relação entre pessoas
do mesmo sexo”. 209
Quanto à guarda, sustento e educação dos filhos, Rui R. de
Magalhães afirma que “não é elemento essencial à caracterização da
entidade
familiar,
que
pode
existir
independentemente
da
prole.
Entretanto, existindo prole em comum, [...] esse dever transpassa as
barreiras do direito privado, sendo considerado norma constitucional (art.
227, CF)”. 210
O uso comum do patrimônio ou assistência material recíproca
“implica que se considere que a renda dos conviventes deve convergir em
benefício de ambos [...], com vistas ao sustento da entidade e
constituição de um patrimônio” 211.
Observa-se que o trabalho doméstico tem sido entendido pela
jurisprudência como um importante fator econômico, que não pode ser
desprezado para efeito de partilha ou sucessão. Isto significa que se a
mulher não contribuiu diretamente para a formação do patrimônio comum,
ou seja, não participou com seus recursos financeiros, mas contribuiu de
forma indireta, como é o caso da colaboração pelo trabalho doméstico,
209
VIANA, Marco Aurélio S. Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 14.
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo:
Editora de Direito, 2000. p. 51.
211
Ibid. p. 51.
210
seus direitos à partilha estão assegurados, uma vez que graças à
administração do lar pela mulher é que se fizeram ou ampliaram as
economias que permitiram a construção do patrimônio comum. 212
É importante destacar que a Lei Maior não promoveu equiparação
entre o casamento e a união estável, aliás, nem poderia, mas procurou
dar amparo legal a essa entidade familiar, disciplinando-o no campo do
direito de família, afastando-o do direito das obrigações.
4.5 AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS
4.5.1 Da homossexualidade
A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade. É um
fenômeno que sempre existiu, embora não admitida pela sociedade, que
jamais a ignorou. As diversas culturas sempre revelaram sua existência,
por meio de mitos, lendas, relatos ou encenações. 213
Na Antiga Grécia, o livre exercício da sexualidade era prática do
cotidiano de todos. A mitologia grega retratou casais masculinos, sendo
os mais famosos o formado por Zeus e Gaminede e o formado por Aquiles
212
MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Instituições de direito de família. São Paulo:
Editora de Direito, 2000.
213
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p.17.
e Patroclo, sem falar dos raptos de jovens por Apolo. A bissexualidade
estava inserida no contexto social, reservando-se a heterossexualidade à
procriação,
enquanto
o
homossexualismo
era
considerado
uma
necessidade natural. 214
Em Roma, a homossexualidade era considerada no mesmo patamar
das relações heterossexuais. O preconceito da sociedade romana
restringia-se ao caráter passivo da relação, uma vez que a passividade,
exercida por mulheres, escravos e rapazes, todos excluídos da estrutura
de poder, implicava debilidade de caráter, sendo clara a relação entre
masculinidade-poder político e passividade-feminilidade – carência de
poder. 215
O
maior
preconceito
contra
o
homossexualismo
advém
das
religiões. Cultura, religião e sexualidade entrelaçadas censuram ao
extremo os chamados pecados da carne.
Com o surgimento do cristianismo e o ideal da virgindade, inspirado
na vida de Maria, que teria concebido seu filho sem ter mantido relações
sexuais com José, tornando-se um modelo a ser seguido por todas as
mulheres do mundo, o casamento, a sociedade e a sexualidade passaram
a ter uma interpretação cristã. 216
214
SOUZA, Ivone Coelho de. Homossexualismo: discussões jurídicas e psicológicas.
Curitiba: Juruá, 2001. p. 112.
215
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 25.
216
ARAÚJO, Luis Alberto David. A proteção constitucional do transexual. 1 ed. São
Paulo: Saraiva, 2000. p. 36-45.
A Igreja Católica pregou o sexo como algo mau, o prazer seria obra
do diabo; o sexo seria admitido, unicamente, com a finalidade de
procriação. O pecado seria fruto de uma relação sexual, enquanto o
celibato é o modo pelo qual os homens se redimem do pecado original.
Daí a condenação ao homossexualismo masculino: haver perda de
sêmen, enquanto o relacionamento entre mulheres era considerado
lascívia. 217
A Igreja Católica considera o homossexualismo uma verdadeira
perversão:
Nas uniões homossexuais estão totalmente ausentes os
elementos biológicos e antropológicos do matrimônio e da
família, que poderiam dar um fundamento racional ao
reconhecimento
legal
dessas
uniões.
Estas
não
se
encontram em “condições de garantir de modo adequado a
procriação e a sobrevivência da espécie humana” (grifo
nosso). 218
Na Idade Média, a expressão vox populi, vox Dei (voz do povo, voz
de Deus) tinha o sentido de que qualquer atitude contrária da maioria
estava em desarmonia com Deus e, consequentemente, as minorias
deveriam ser castigadas por implícito atentado a Deus. Com a Santa
217
ARAÚJO, Luis Alberto David. A proteção constitucional do transexual. 1 ed. São
Paulo: Saraiva, 2000. p. 36-45.
218
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Considerações sobre os projetos
de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. 2 ed. São
Paulo: Paulinas, 2003. p. 12-13.
Inquisição, a penalização pela prática homossexual tornou-se mais
severa. 219
A partir da metade do século XVII, com o afrouxamento dos laços
entre o Estado e a Igreja, o comportamento social deixou de estar
condicionado a uma estrita obediência às normas ditadas pela religião. O
declínio da influência da Igreja fez diminuir o sentimento de culpa,
deixando de ser visto o prazer sexual como criminoso. O casamento
dessacralizou-se e, passando a ser oficializado pelo Estado, deixou de
ser a única forma aceitável de relacionamento. As novas estruturas de
convívio deixaram de ser alvo de repúdio social, tendo o afeto maior
valorização. A orientação sexual começou a se caracterizar como uma
opção e não como um ilícito ou uma culpa.
A esse respeito, Nelson Saldanha citado por Belmiro Pedro Welter
afirma:
É inconsticucional a discussão da doutrina canônica dentro
do Estado Democrático de Direito [...] Em decorrência, a
culpa deve ser afastada do Direito de Família, visto que o
mundo moderno – secularizado-democrático-globalizado –
deixou de comportar as estruturas do Direito Divino [...]
desaparecendo a idéia de pecado. 220
219
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 27.
220
WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS,
Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 211-228. p. 223.
Belmiro Pedro Welter complementa dizendo que:
A culpa, perquirida como forma de impor sanção ao
cônjuge que tenha sido julgado culpado, não condiz com o
Direito
de
Família
atual,
que
se
fundamenta
na
Constituição Federal de 1988, que, por sua vez, acolheu
princípios da cidadania, da igualdade de direitos e deveres
entre homens e mulheres, da igualdade jurídica entre
casamento e união estável, da proibição de discriminação
dos filhos, do afeto como valor jurídico, acolhendo os
mesmos direitos e deveres entre as famílias biológica e
socioafetiva, elevando a dignidade da pessoa humana a
fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado
Democrático de Direito. 221
A
Igreja
Católica,
por
sua
vez,
só
aprova
as
relações
heterossexuais dentro do matrimônio, classificando a contracepção, o
amor livre e a homossexualidade como condutas moralmente inaceitáveis.
Sob a influência das concepções religiosas, a Medicina considerou
a homossexualidade uma doença, uma enfermidade que acarretava
diminuição das faculdades mentais, um mal contagioso decorrente de um
defeito genético. 222
221
WELTER, Belmiro Pedro. A secularização do direito de família. In: FARIAS,
Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 211-228. p. 223.
222
MACEDO, Daniele Cristina Alaniz; ALEXANDRE, Eliane Sobrinho. Uma visão
jurídica e social da homossexualidade. Londrina: EDUEL, 2003. p. 17-18
A Classificação Internacional das Doenças – CID identificava o
homossexualismo como um “Desvio ou Transtorno Sexual”. Na décima
revisão do CID-10, em 1995, foi nominado de “Transtornos da Preferência
Sexual”. O sufixo “ismo”, que designa doença, foi substituído pelo sufixo
“dade”,
que
significa
modo
de
ser.
Depois
de
vinte
anos,
o
homossexualismo deixou de ser considerado doença. 223
Segundo o ensinamento atual da Igreja, os homens e mulheres com
tendências homossexuais “devem ser acolhidos com respeito, compaixão
e delicadeza. Deve-se evitar para com eles, qualquer atitude de injusta
discriminação” 224 Essas pessoas, como os demais cristãos, são chamados
a viver a castidade. 225 A inclinação homossexual é “objetivamente
desordenada” e as práticas homossexuais “são pecados gravemente
contrários à castidade” 226
Portanto, ainda verifica-se no ensinamento da Igreja uma tendência
à discriminação, tendo em vista que há a pretensão de ditar o estilo de
vida que os homossexuais devem ter, além de considerar essa orientação
como “objetivamente desordenada”.
223
224
225
226
Ibid. p. 17-18.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2358. São Paulo: Loyola, 2000.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2358. São Paulo: Loyola, 2000. n. 2359.
Ibid. n. 2396.
4.5.2 Homoafetividade e direitos fundamentais
O conceito de dignidade humana, com freqüência, confunde-se com
o próprio conceito de personalidade. Portanto, do ponto de vista jurídico,
a dignidade humana tem sido definida como um atributo da pessoa
humana, “o fundamento primeiro e a finalidade última, de toda a atuação
estatal e mesmo particular, o núcleo essencial dos direitos humanos”. 227
Assim, a dignidade humana integra valores que congregam a
essência e terminam por auferir maior especificidade nos direitos
fundamentais, os quais detalham a idéia de dignidade e têm a sua
interpretação
por
ela
direcionada,
resultando
em
uma
simbiose
indissolúvel. Em outros termos, a dignidade da pessoa humana pode ser
vista como unidade de valor para os direitos fundamentais. 228
Reconhecer a dignidade humana implica considerar o indivíduo
como sendo um valor em si mesmo, é reconhecer-lhe todos os direitos
fundamentais: à liberdade, à intimidade, à vida privada, à igualdade, além
do princípio da legalidade. Não se pode falar em dignidade humana sem a
estrita observância destes princípios. 229
227
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005. p. 140.
228
GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referenciais metodológicos e
regime jurídico. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 719, 24 jun. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=6910>. Acesso em: 19 fev. 2006.
229
CHIARINI JR., Enéas Castilho. A união homoafetiva sob o enfoque dos direitos
humanos. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 235, 28 fev. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=4902>. Acesso em: 19 fev. 2006.
O direito à liberdade é um dos direitos humanos de primeira
geração. A liberdade é a faculdade de escolher o próprio caminho, de
tomar as próprias decisões, de optar por valores e idéias, de afirmar a
individualidade, a personalidade. A liberdade é um valor inerente à
dignidade
do
ser,
pois
decorre
da
inteligência
e
volição,
duas
características da pessoa humana. 230
No ordenamento jurídico pátrio, o direito à liberdade está presente
na Constituição Federal desde o seu preâmbulo, constituindo-se um dos
objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, I da Constituição
Federal, 1988) e, garantindo a todos os brasileiros e estrangeiros
residentes no País, pelo caput do art. 5º da Carta Magna.
O direito à liberdade significa que toda pessoa pode fazer o que
bem lhe aprouver, desde que, com suas ações, não prejudique ninguém.
Dessa
forma,
a
homossexualidade
faz
parte
do
Direito
de
Liberdade, do qual todos os indivíduos são portadores, tanto por força
constitucional como internacional (Declaração dos Direitos Humanos),
não sendo possível que o Estado crie ou imponha limites a este direito,
exceto em situações extremas, ou de confronto com outros direitos
fundamentais. Todos dispõem de liberdade de optar, não importando o
sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu.
230
HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia muitas vozes. 3 ed.
Aparecida-SP: Santuário, 1998. p. 108.
Os direitos à intimidade e à vida privada constituem meros
corolários do direito à liberdade. Na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, estão previstos no artigo XII que estabelece que
“ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada [...] Todo
homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências contra tais
interferências ou ataques”.
De acordo com Alexandre de Moraes, os direitos à intimidade e à
própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada,
referindo-se inclusive, à proteção à própria imagem diante dos meios de
comunicação de massa. No âmbito familiar, os direitos à intimidade e vida
privada devem ser interpretados de forma mais ampla, considerando as
delicadas, sentimentais e importantes relações familiares, devendo haver
maior cuidado em qualquer intromissão alheia. 231
Com relação ao direito à vida privada, José Adércio Leite Sampaio
afirma que:
No
centro
de
toda
vida
privada
se
encontra
a
autodeterminação sexual, [...] a liberdade de cada um viver
a
sua
própria
sexualidade,
afirmando-a
como
signo
distintivo próprio, a sua identidade sexual, que engloba a
temática do homossexualismo, do intersexualismo e do
transexualismo, bem assim da livre escolha de seus
231
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral,
comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil,
doutrina e jurisprudência. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 131.
parceiros
e
da
oportunidade
de
manter
com
eles
consentidamente, relações sexuais. 232
José Adércio Leite Sampaio ainda enfatiza que a faculdade de o
indivíduo definir sua orientação sexual, assim como de externá-la, não só
de seu comportamento, mas de sua aparência e biotipia integra a
liberdade sexual. Esse componente da liberdade reforça a proteção de
outros bens da personalidade como o direito à identidade, à imagem e, o
direito ao corpo. 233
Dessa forma, o indivíduo tem o direito de ser homossexual, uma
vez que tal escolha apenas a ele compete, fazendo parte de sua vida
íntima e ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de dizer como o
indivíduo deve se portar em sua privacidade.
O direito à igualdade está previsto na Constituição Federal de 1988,
desde o seu preâmbulo. Mas, ainda se encontra entre os objetivos da
República – “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV)
e, no caput do art. 5º, o qual estabelece: “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza”.
Assim, a igualdade implica o tratamento igualitário de todos os
indivíduos, independentemente de sua orientação sexual.
232
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão da
sexualidade da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. 1
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 277.
233
Ibid. p. 313.
4.5.3 A família homossexual
As regras sociais vigentes autorizam e estimulam, em cada tempo,
determinados tipos de relações e condenam à clandestinidade aquelas
que escapam do modelo convencional. Entretanto, cada vez mais, têm-se
tornado explícitas muitas destas relações até então condenadas e, por
essa razão, silenciadas. 234
Atualmente, o centro das relações de família encontra-se na mútua
assistência afetiva, sendo possível encontrar este núcleo afetivo em
duplas homossexuais, embora estas tenham sido excluídas do texto
constitucional. 235
Explica Maria Berenice Dias que o afeto é um aspecto do exercício
do direito da intimidade, o qual é garantido pelo inc. X do art. 5º da
Constituição Federal e, mesmo que queiram considerar indiferentes ao
Direito os vínculos afetivos que aproximam as pessoas, são eles que
originam os relacionamentos que geram as relações jurídicas e que fazem
234
TURKENICZ, Abraham. A aventura do casal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p.
12.
235
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 56.
jus ao status de família. Todas as espécies de vínculos que tenham por
base o afeto são merecedoras da proteção do Estado. 236
Na opinião de Maria Berenice Dias, as linhas principais do direito
do matrimônio estão asseguradas na Constituição Federal, seja pela
liberdade, que garante o direito ao casamento, se assim o indivíduo
desejar; da igualdade, pela qual todos, indistintamente, têm o direito de
formar uma família; e do art. 226, § 3º, que estabelece a proteção à
família
fática,
não
constituída
por
casamento.
Além
disso,
pela
Constituição Federal, o homossexual tem direito a se unir com quem quer
que seja, dependendo única e exclusivamente do consentimento de seu
parceiro e de juntos constituírem uma família digna de proteção pelo
Estado, uma vez que não tendo o legislador diferenciado, não cabe ao
interprete fazê-lo. 237
No entanto, o Estado para opor-se ao reconhecimento das relações
não formadas pela diversidade de gênero dos parceiros, alegando que a
família heterossexual é a base central da sociedade moderna. Nega sua
proteção à união homossexual sob o fundamento de que desvalorizaria o
sentido social do sexo, tido como o fim da vida familiar. 238
Para Roger Guardiola Bortoluzzi, a Carta Magna ao impor, com
objetivo de proteção constitucional, a diferenciação de sexos do casal,
236
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 56-57.
237
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
238
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 57.
apresenta-se como norma discriminatória, uma vez que contraria o
princípio da igualdade, o qual proíbe a diferenciação das pessoas em
razão de seu sexo, pois ignora a existência de uniões formadas por
pessoas do mesmo sexo. 239
No campo da demografia e da estatística, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), por Pesquisa Nacional por Amostragem
de Domicílios (PNAD), tem revelado um perfil das relações familiares
distanciado dos modelos legais, entre as quais se encontram as uniões
homossexuais, de caráter afetivo e sexual. 240
Para Maria Berenice Dias, “a proibição da discriminação sexual,
eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da
homossexualidade, pois condiz com a conduta afetiva da pessoa e o
direito de opção sexual”, salientando-se que a identificação da orientação
sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida em
relação a quem escolhe, cuja escolha não pode ser alvo de tratamento
diferenciado. 241
Assim, o não reconhecimento da união homossexual como família,
ou melhor, a exclusão dessas uniões como relação de família, além de
239
BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação
sexual. As relações homoafetivas. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 625, 25 mar.
2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto.asp?id=6494>. Acesso em:
19 fev. 2006. p. 20.
240
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53. jan. 2002. Disponível em:
<http://jus2. uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2552>. Acesso em: 16 mar. 2006. p. 1-2.
241
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: aspectos sociais e jurídicos. In:
PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p. 161-170.
ferir o princípio da igualdade, da liberdade e, conseqüentemente, da
dignidade humana, também contraria o perfil das relações familiares
encontradas no País.
4.6 FAMÍLIA MONOPARENTAL
A
monoparentalidade
se
impôs
como
fenômeno
social,
especialmente, nos últimos vinte anos, ou seja, no período em que se
constata o maior número de divórcios. No entanto, a família monoparental
sempre existiu, da mesma forma que o concubinato, se for considerada a
ocorrência de mães solteiras, mulheres e crianças abandonadas, embora
o fenômeno não fosse percebido como uma categoria específica, o que
explica sua marginalidade no mundo jurídico. 242
Uma família é considerada monoparental, de acordo com Eduardo
Oliveira Leite, “quando a pessoa considerada (homem ou mulher)
encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias
crianças”. 243 Atualmente, a monoparentalidade decorre não apenas da
viuvez, mas também decorrem de uma opção por celibato ou separação.
242
LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e
mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 21.
243
LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e
mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 22.
Homens e mulheres, especialmente, aqueles que provêm de
camadas econômicas mais favorecidas, tais como: os profissionais
liberais, altos cargos empresariais, funções executivas, entre outros, têm
optado pelo celibato como novo modelo de vida sentimental. Tal modelo
não implica em viver só, pois a maioria destes celibatários tem parceiros
sexuais com os quais vivem em uniões livres, caracterizadas pela
transitoriedade e total liberdade, ou vivem como pessoas casadas, mas
liberadas de qualquer constrangimento de ordem legal, ou seja, sem
compromisso, sem comprometimento, sem obrigação. 244
Por outro lado, os casamentos têm-se revelado frágeis e com
freqüência são rompidos, gerando a monoparentalidade, a qual constitui
um assunto particular, mas as crianças daí originadas são problemas de
ordem pública e precisam da proteção do Estado. 245
A separação ou divórcio nas categorias sociais mais elevadas, em
que ocorre qualificação e atividade profissional autônoma, as mulheres
tendem a se manter sós ou se vinculam emocionalmente e sexualmente a
outro
homem,
sem
casamento.
Já,
os
homens,
garantidos
financeiramente pelas rendas do trabalho, vinculam-se facilmente a outra
mulher,
constituindo,
socioeconômico
244
geralmente,
também
pode
nova
ocorrer
a
família.
Neste
manutenção
segmento
aparente
do
FERDINANDI, Cláudio. Família monoparental. Revista de Eventos. Maringá:
Universidade Estadual de Maringá, a. 2, n. 1, p. 169-180, 1999.
245
Ibid.
casamento, visando garantir um status social, para que o divórcio não crie
divisão de patrimônio. 246
Entretanto, na maioria dos casos, antes da separação os casais se
inseriram nas categorias tradicionais de casamento, respeitando a
clássica divisão sexual do trabalho, na qual as mulheres se ocupam da
casa e das crianças. Isso se dá em decorrência tanto da existência de
creches em número insuficiente para atender às necessidades das
trabalhadoras como pelo preconceito existente em relação às mulheres
casadas. A ausência de qualificação e de atividade profissional, conduz
estas mulheres a união com outro homem, que garanta a ela e aos filhos
condições mínimas de sobrevivência. 247
É interessante observar que o divórcio ou separação constitui,
freqüentemente, uma iniciativa feminina, tanto por aquelas que exercem
uma atividade laboral como por aquelas que não exercem. Tais mulheres,
por força das circunstâncias, tornam-se as chamadas “mulheres chefesde-família”, incluindo-se nessa situação em decorrência da dissolução do
casamento, como já foi citado, ou ainda devido ao abandono, à morte ou
à inexistência do marido, como é o caso da mãe solteira. 248
A viuvez, por ocorrer, geralmente, a partir de uma idade madura, a
maioria das mulheres em tal situação pertence a uma geração na qual a
246
LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e
mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 39.
247
Ibid. p. 39.
248
LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais: a situação jurídica de pais e
mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 40.
identidade social feminina se elaborava a partir da esfera doméstica e
não da esfera profissional. Dessa forma, tais mulheres ao procurarem
buscar a sobrevivência fora do lar, verificam o despreparo intelectual e
profissional, restando-lhes apenas trabalhos de menos qualificação e,
portanto, mal remunerados. 249
Além desses fatores há outros que levam à monoparentalidade. O
acesso ao trabalho, o controle da concepção, a evolução na legislação
civil entre outros, muito contribuíram para a ocorrência desse fenômeno.
A autonomia financeira da mulher, conferiu-lhe poder de decisão
possibilitando-a
desvincular-se
do
jugo
marital,
para
buscar
sua
independência. 250
4.7 BIOÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Os problemas de que tratam a Bioética e o Biodireito são problemas
novos, que surgem a todo instante na sociedade pós-moderna. Nos
últimos anos, a Medicina, a Biologia e a Engenharia Genética alcançaram
extraordinários avanços: desenvolvem-se células-tronco para transplantes
de órgãos; as experiências bem sucedidas com animais aumentaram;
inseminações artificiais e fertilizações in vitro se tornaram corriqueiras.
249
FERDINANDI, Cláudio. Família monoparental. Revista de Eventos. Maringá:
Universidade Estadual de Maringá, a. 2, n. 1, p. 169-180, 1999.
250
Ibid.
A descoberta da estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico), o
mapeamento do genoma humano e, sobretudo, a associação da biologia
molecular com a informática, vêm permitindo aos seres humanos uma
crescente apropriação do cerne da matéria viva e do ser humano que há
menos de um século atrás pareceria apenas uma ficção científica. Mas,
os problemas relacionados a essas disciplinas não se restringem ao
campo da genética, visto que dois dos seus princípios comuns – o
princípio de autonomia e o princípio de dignidade humana – podem ser
feridos de forma muito mais sutil.
Bioética é um neologismo obtido da junção de duas palavras “bio”
(do
grego,
bios, que significa vida) e “ética” (do grego, ethike,
significando ética). De acordo com Maria Helena Diniz apud Adriana
Diaféria, em 1978, a Encyclopedia of Bioethics definiu bioética como
sendo "o estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências
da vida e da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios
morais." 251 Este conceito, porém, foi alterado em 1995, para: "Bioética é
[...] o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão,
decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde,
utilizando
uma
variedade
de
metodologias
éticas
num
contexto
multidisciplinar." 252
251
DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem, aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru: EDIPRO,
1999. p. 81.
252
Ibid. 84.
Embora a bioética envolva temas diversos, no escopo desse estudo
tornam-se relevantes, basicamente, duas questões: a dos embriões
humanos e a das células-tronco.
No que diz respeito aos embriões humanos, duas situações dignas
de proteção se levantam: aqueles que já se encontram no útero e os que
estão congelados em laboratório. Como vida intra-uterina designa-se os
embriões e fetos já em fase gestacional, credores, portanto, de cuidados
inerentes
à
conservação
de
suas
vidas,
direitos
imanentes
da
personalidade e alguns de caráter patrimonial. Para os embriões que
ainda se encontram fora do útero, como é o caso dos chamados embriões
excedentários e extranumerários, usa-se a expressão vida extra-uterina,
embriões pré-implantatórios ou concepturos. 253
Embora indubitável a natureza de pessoa humana do ser
(humano) embrionário, sua defesa se faz necessária. A ciência afirma que
desde o momento do encontro da célula sexual feminina com a
masculina, que se dá no momento da fecundação, aquele novo ser
estará totalmente individualizado em termos genéticos, ou seja, seu DNA
já será único e irrepetível. A partir dessa junção, o ser humano
embrionário tratará, somente, de se desenvolver, calmamente, até que
sua estrutura corporal esteja completa e capaz de continuar vivendo sem
o esteio do útero materno. Isto não quer dizer, porém, que o embrião seja
parte ou membro do corpo de quem o abriga, mas ele se utiliza daquele
253
CHAVES, Maria Claudia. Os embriões como destinatários de direitos fundamentais.
Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 537, 26 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=6098>. Acesso em: 28 dez. 2006.
habitat como os recém-nascidos fazem com o seio materno para
sobreviverem. A embriologia mostra que o embrião e o adulto são o
mesmo ser, basta para isso lembrar que, desde o momento da
fecundação, o desenvolvimento que se dá até a vida adulta é contínuo,
mas muito pouco qualitativo. Assim, o corpo do homem é humano desde o
momento da fecundação. 254
O Código Civil de 2002, ao tratar da filiação, dispõe em seu art.
1.597, incisos III e IV, que se presumem concebidos na constância do
casamento os filhos advindos de fecundação artificial homóloga, mesmo
que falecido o marido, e aqueles havidos, a qualquer tempo, de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, determinou as vigas
mestras sobre a temática enfocada. O art. 1º, inciso III, se reporta à
dignidade da pessoa humana e o art. 5º "caput" protege o direito à vida,
dentre outros. O inciso II, do parágrafo 1 o , do art. 225 impõe ao Poder
Público e à coletividade o dever de preservar a diversidade e a
integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, enquanto o
inciso V trata do controle do emprego de técnicas, métodos e substâncias
que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.
Também o art. 227 caput faz alusão ao direito à vida da criança e do
adolescente.
254
CHAVES, Maria Claudia. Os embriões como destinatários de direitos fundamentais.
Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 537, 26 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=6098>. Acesso em: 28 dez. 2006.
No entanto, o art. 5º da Lei n. 11.105/2005, Lei de Biossegurança,
veio disciplinar a matéria, estabelecendo que:
Art. 5 o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a
utilização
de
células-tronco
embrionárias
obtidas
de
embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e
não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as
seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais,
na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na
data da publicação desta Lei, depois de completarem 3
(três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1 o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos
genitores.
§ 2 o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que
realizem
pesquisa
ou
terapia
com
células-tronco
embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à
apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética
em pesquisa.
Portanto, a legislação pátria permite a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in
vitro, para os fins de pesquisa e terapia, porém, impondo algumas
condições,
como
o
congelamento
por
no
mínimo
três
anos,
a
aquiescência
dos
genitores
e
a
aprovação
do
comitê
de
ética
correspondente.
4.8 A POSIÇÃO DO CRISTIANISMO DIANTE DAS ALTERAÇÕES NO
DIREITO DE FAMÍLIA CONSTANTES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
A Igreja Católica muito resistiu em não abrir mão da sua
prerrogativa de tratar, com exclusividade, das questões relativas ao
matrimônio. Tal resistência se justifica pelo fato de até o século XVI, o
Estado nunca interveio na celebração dos casamentos, tendo apenas
algumas investidas sem muito sucesso.
A matéria se tornou um pouco mais polêmica com o advento da
Reforma Protestante do século XVI, mais precisamente no ano de 1517,
quando os reformadores negaram a inclusão do matrimônio como
sacramento instituído por Jesus, aceitando apenas a instituição da
Eucaristia e a Ceia, conforme Marcos 16:15-16: “Ide por todo o mundo e
pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo;
quem, porém, não crer será condenado”; e em Lucas 22:19-20, encontrase: “Isto é meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.
Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o
cálice da nova aliança em meu sangue derramado por vós. 255
No que diz respeito à competência da Igreja e do Estado, Antonio
Leite, analisando sob o enfoque do direito canônico, afirma que:
todo o casamento é sagrado pela sua origem, pelo seu fim
e efeitos. Se for celebrado entre dois batizados é também
um dos sete sacramentos da Nova Lei. Neste caso, o
contrato matrimonial é o próprio sacramento, pelo que
entre
batizados
não
pode
haver
verdadeiro
contrato
matrimonial que não seja sacramento. 256
A Igreja, a quem cabe regular todas as coisas sagradas dos fiéis e
muito mais os sacramentos tem, portanto, competência exclusiva sobre o
matrimônio, contanto que ao menos um dos contraentes seja seu súdito
pelo batismo. Neste caso, o Estado só pode regular os efeitos meramente
civis desses matrimônios.
Sobre o casamento dos infiéis tem o Estado poder para impor
impedimentos dirimentes e impedientes, prescrever a forma e determinar
as condições da prestação do consentimento, e julgar as respectivas
causas, sempre dentro das normas da lei natural e divino-positiva, de que
é interprete a Igreja.
255
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221.
256
Sobre o matrimônio cristão tem a Igreja competência exclusiva para
impor impedimentos tanto dirimentes como impedientes. A Igreja, no
exercício deste poder, deve olhar pelo bem temporal da sociedade, mas,
sempre em primeiro lugar, deve atender ao bem das almas. O Estado,
quando muito, só pode, na medida em que exija o bem público, ao
admitir, voluntariamente, certas pessoas a determinados cargos, imporlhes a obrigação de celebrarem o matrimônio sob certas condições que
não se oponham à lei divina e eclesiástica.
Para as pessoas batizadas, o Estado só pode reconhecer como
matrimônio válido aquele que for segundo as leis canônicas. Celebrado
este e devidamente notificado, o poder civil tem obrigação de reconhecêlo com os seus efeitos inseparáveis, ainda que em algum caso especial
lhe possa negar alguns efeitos meramente civis.
Quanto aos matrimônios secretos, enquanto não forem devidamente
notificados ao Estado, não tem este obrigação de os reconhecer. Quando
o forem, deve-lhe reconhecer a existência e os efeitos inseparáveis ex
tunc 257; e os efeitos separáveis pelo menos ex nunc 258, ainda que fosse
conforme com a equidade que lhes concedesse também ex tunc, salvos
os direitos adquiridos de terceiros. Quase o mesmo se poderia dizer de
257
Ex tunc: para um prazo anterior; voltando ao passado. (CALDAS, Gilberto. Como
traduzir e empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo:
Jurídica, 1997. p. 87).
258
Ex nunc: de agora em diante; para o futuro. (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e
empregar o latim forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica,
1997. p. 84).
matrimônios convalidados ou sanados in radice 259, sobretudo, quando
celebrados primitivamente de boa-fé.
A legitimidade dos filhos é um dos efeitos essenciais do matrimônio,
que tanto a Igreja como o Estado, salvas justas restrições, devem
reconhecer aqueles concebidos de matrimônio válido, com os respectivos
efeitos separáveis. Cada um dos poderes no seu campo pode conceder
legitimações em ordem aos efeitos separáveis, tanto por matrimônio
subseqüente, como por benigna concessão, geralmente, outorgada pela
autoridade suprema. Estas legitimações da Igreja não aproveitam
necessariamente no foro civil e vice-versa, salvo os casos em que se
verifiquem as circunstâncias do poder indireto da Igreja sobre o Estado.
No entanto, há certas legitimações, especialmente, por casamento
subseqüente, convalidações e sanções in radice, as quais, por equidade,
convêm que sejam reconhecidas ou concedidas pelo poder civil. 260
Evidente que o Estado não poderá se basear em um contrato
matrimonial de nenhum valor, como é o chamado casamento civil, para os
batizados obrigados à forma canônica ordinária, para reconhecer a
legitimidade ou a legitimação dos filhos.
Nada impede que o Estado julgue as causas matrimoniais de mero
fato, isto é, quando esteja em questão apenas a existência e não a
validade do matrimônio cristão. Igualmente o Estado é competente para
259
In radice: na raiz. (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim forense
(Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 86).
260
LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221.
conhecer das causas matrimoniais dos infiéis, assim como as causas
principais dos efeitos meramente civis do matrimonio cristão. Quando
estas últimas vierem como incidentais ou acessórios com relação a outra
principal da competência da Igreja, pode o juiz eclesiástico julgá-las
também por poder próprio, ainda que indireto.
Assim, a família, como instituição social, é uma entidade anterior ao
Estado, como nação politicamente organizada, anterior à própria religião
e também anterior ao direito que hoje a regulamenta, que resistiu a todas
as
transformações
que
sofreu
a
humanidade,
quer
de
ordem
consuetudinárias, econômicas, sociais, científicas ou culturais, através da
história da civilização, sobrevivendo praticamente incólume, desde os
tempos remotos quando passou a existir na sua estrutura mais simples,
certamente de forma involuntária e natural, seguindo paulatinamente, na
sua primordial função natural que é da conservação e perpetuação da
espécie humana. 261
4.8.1 Impedimentos do matrimônio e suas implicações
Entre um cristão e uma não-batizada ou uma cristã e um nãobatizado (2Cor 6:14) o casamento era desaconselhável, porque punha a
fé em perigo. Assim pensavam Tertuliano (porque julgava o casamento
261
LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 219 a 221.
misto uma imbecilidade) e São Cipriano (que atribuía à perseguição de
Décio o castigo pelo relaxamento dos cristãos, provocado, em parte,
pelos casamentos mistos). Mais claras ainda eram as disposições
conciliares que citavam censuras aos transgressores, das quais a mais
comum e grave era a excomunhão, como asseveram os Concílios de
Elvira (303) e Arles (314).
Igualmente, o casamento com hereges; a excomunhão até por cinco
anos, pena que retroagia até os pais. São ainda censurados os
casamentos de viúvo com a enteada ou com a cunhada, o de noivo com a
noiva raptada (Concílio de Ancira); tratava-se também da ruptura do
noivado.
Contudo,
ainda
não
se
consideravam
impedimentos
que
invalidassem o casamento e outras sanções eclesiásticas que serão
alicerce de futuros desenvolvimentos jurídicos. A legislação da Igreja ia
mais além do que o direito civil, como a regra que permitia às senhoras
romanas (com a perda do título clarissimae, sancionada pela sociedade)
contraírem casamento com libertos (Calisto I 221-227).
Até o fim do século XVI, pode-se dizer que ninguém, ao menos no
campo
católico,
negou
à
Igreja
tanto
o
direito
de
estabelecer
impedimentos para os casamentos dos fiéis, como o de dispensar dos
mesmos. Estes direitos ela sempre exerceu, sobretudo, a partir da Idade
Média.
No
século
XVI
os
reformadores
protestantes
negaram
a
sacramentalidade do matrimônio e a competência da Igreja sobre o
mesmo. Conseqüentemente, negaram à sociedade religiosa o poder de
estatuir impedimentos, concedendo-lhe, quando muito, a faculdade de
exigir os impedimentos constituídos para o povo judaico no livro de
Levítico.
No século XVII e, sobretudo, no XVIII, inúmeros autores, alguns
católicos,
mas
geralmente
eivados
de
idéias
regalistas,
outros
manifestamente heterodoxos, reivindicaram o direito do Estado para
impor impedimentos ao contrato matrimonial celebrado entre pessoas
batizadas.
Em que pese às discrepâncias nas interpretações entre os
fundamentalistas e regalistas, estes, ao menos, não negavam o caráter
sacramental do matrimônio entre cristãos. Considerando o casamento,
mesmo os batizados, como um contrato meramente civil, defendem que é
da competência exclusiva do Estado e, por conseguinte, ao poder civil
incumbe unicamente constitui impedimentos, ou dispensar deles.
4.8.2 Sacramento e celibato: uma contradição?
Celibato,
na
perspectiva
religiosa,
é
entendido
como
a
abstinência sexual mediante a proibição do casamento daqueles que
pretendem prestar serviços à Igreja.
Mesmo com as palavras explicativas sobre Sacramento e Celibato,
necessário se faz esclarecer que a reflexão sobre o tema proposto não é,
necessariamente, apenas e, necessariamente, de cunho teológico, mas
envolve o aspecto jurídico em torno da questão que diz respeito à
indissolubilidade do matrimônio apregoado pela Igreja Católica. Quanto à
questão celibatária fica difícil dar ao assunto sustentação jurídica por se
tratar de questão eminentemente teológico-religiosa. Mesmo assim, vale
a pena discutir o paralelo entre a sacramentalidade do casamento e a sua
proibição pela Igreja que cria uma verdadeira contradição.
Diante da batalha medieval travada pela Igreja para elevar o
casamento à condição de sacramento, deveria, por uma questão de
coerência diante dos fatos que tem alarmado toda a sociedade religiosa e
secular, dar alguns passos para rever a radical e inflexível posição em
relação à vida celibatária daqueles que prestam serviço a ela.
Quando se estuda sobre a história religiosa dos povos antigos,
impressiona a preocupação com a fertilidade e não com o celibato.
Somente sob certas condições e por períodos limitados, era praticada a
abstinência sexual. A vida celibatária era rechaçada entre os gregos e os
romanos. A cultura hebraica sempre considerou o casamento como o
melhor estado para os homens e mulheres e, para tanto, o considerou
como um dever.
Nenhum homem era investido de autoridade, como líder religioso, a
menos que fosse casado. Se alguma mulher permanecesse solteira e sem
filhos, isso era considerado como castigo divino contra algum pecado.
Quando se faz uma retrospectiva história sobre o empenho da
Igreja em elevar o casamento à condição de sacramento, descobre-se
que foi uma discussão ferrenha que durou mais de 10 anos por ocasião
do Concílio de Trento, em 1545. Isto denota que não se tratava de
matéria pacífica dentro da própria Igreja e cuja vitória não se deu com
largueza, aliás, quase foi recusada.
Há uma postura contraditória por parte da Igreja, que de um lado
considera o casamento dos leigos como sacramento e exige o celibato
por parte do clero.
Pode-se estar cometendo uma injustiça, mas ao que tudo indica
constitui uma falácia a Igreja trazer uma proposta de sublimação em
relação aos impulsos sexuais de uma jovem bonita, ao considerá-la
esposa de Jesus Cristo. Para começar, ser esposa de Jesus é privilégio
de homens e mulheres que fazem parte do seu corpo místico que é a sua
Igreja militante. Todos sabem que tais casamentos têm como fundamento
uma espécie de evasiva ou fuga por meio de atos penitenciais com vistas
à purificação da mente para controlar os impulsos sexuais que são
naturais em uma pessoa normal. Isso pode funcionar até certo tempo e
também varia de pessoa para pessoa. Alguns podem e até o fazem com
certa facilidade, mas para outros é um fardo profundamente pesado que
se tem de carregar sozinho.
O celibato deveria ser uma escolha e não uma imposição.
Biblicamente falando, não há nenhuma base para se falar em celibato
como condição sine qua non 262 para o serviço no reino de Deus. Vale
dizer que tal doutrina ou imposição não tem respaldo bíblico. Se houve
alguém que fez menção sobre a matéria em foco foi o apóstolo São
Paulo, todavia, deixando muito bem claro de que se tratava de um
entendimento muito particular. Chegou inclusive a fazer certa apologia em
defesa do celibato por entender que seria muito mais fácil cuidar dos
assuntos do reino de Deus não tendo família para dividir o tempo e as
preocupações.
Sua defesa do celibato chegou ao exagero de admiti-lo não apenas
aos religiosos, mas a todos os fiéis de um modo geral conforme I
Coríntios, 7: 7; 25-35, mas esclarecendo sobre o direito de escolha de
cada um. Isto leva ao entendimento de que não se tratava de uma
doutrina, mas, sim, de um ponto de vista muito particular do referido
apóstolo. Haja vista que, de acordo com 1 Coríntios 1:9, o próprio Paulo
mostra, de forma bem definida, que os demais apóstolos eram casados.
Supõe-se que a influência dos essênios tenha afetado Paulo e,
inclusive, Jesus. Presume-se também que Paulo, como judeu helenista
que fora, pudesse ter absorvido algo das atitudes dos dualistas, os quais
degradavam o corpo por considerá-lo como a sede e a manifestação do
pecado, por fazer parte do mundo da matéria, a qual seria a depositária
do princípio do mal. Os gnósticos defendiam esse dualismo e no esforço
por se desvencilhar do mal, considerando que este opera através da
262
Sine qua non: necessária (CALDAS, Gilberto. Como traduzir e empregar o latim
forense (Dicionário de latim forense). 20 ed. São Paulo: Jurídica, 1997. p. 242).
matéria, eles praticavam a liberalidade exagerada, procurando abusar do
corpo e debilitá-lo com os vícios ou então praticavam o ascetismo com o
mesmo propósito. Já os essênios, uma comunidade que apareceu no II
século a.C. e permaneceu até o século II d.C., praticavam o celibato.
Algumas indagações podem ser feitas em relação à afirmação feita
pelo apóstolo Paulo quando recomendava a virgindade para as mulheres
cuidarem das coisas do Senhor, para serem santas, assim no corpo como
no espírito. Por qual razão uma mulher é mais santa no corpo, se
permanecer virgem, do que se casar? Somente quando se supõe que o
sexo é degradante, em qualquer grau, se afirmar que é melhor uma
mulher permanecer virgem do que se casar, pois assim poderá ser mais
santa. Em que pese a todo respeito ao referido apóstolo, ao que tudo
indica, parece que ele se equivocou e acabou por esboçar uma
interpretação negativa em relação à teologia do sexo, que também é
criação de Deus.
Todavia, deve-se mencionar a recomendação do referido apóstolo
de que é melhor casar do que ficar abrasado (I Coríntios 7:9) e em sua
primeira carta dirigida a Timóteo, 4:1-5, quando falou de algumas
heresias que estariam assolando a Igreja cristã, enumerando entre elas a
proibição do casamento.
Sabe-se que até o século IV não havia nenhuma determinação
acerca de celibato. Somente a partir do ano de 692, por ocasião do
Concílio de Tulho, foi exigido que os bispos fossem celibatários. No caso
de alguns deles ter contraído matrimônio antes de tornar-se bispo, tinha
de separar-se de sua esposa por ocasião de sua consagração ao
episcopado. Desnecessário é dizer que abusos, dentro do clero, sempre
ocorreram, e vários papas procuraram corrigi-los, mas sem lograr muito
êxito.
Em relação à imposição do celibato, Cristo foi claro em Mateus
19:12, quando assim se expressou: “Porque há eunucos de nascença; há
outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se
fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para admitilo, admita”. O que Jesus quis dizer é exatamente que a imposição pode
gerar constrangimento. No verso 11 do mesmo capítulo, esclareceu que
nem todos são aptos para receber tal imposição.
Por ocasião do Concílio Vaticano II, muitas discussões acaloradas
foram trazidas ao plenário sobre a possibilidade da voluntariedade do
celibato. Mas coube ao Papa Paulo VI tomar uma decisão sobre a
questão, a qual foi consolidada em sua encíclica de 1967, Sacerdotalis
caelibatus, em que reafirma a regra tradicional do catolicismo romano.
Com toda certeza há lugar para o celibato no seio da Igreja. Tanto
para os homens como para as mulheres, ligados ao ministério ordenado
ou o ministério leigo. Mas, a proposta é calcada no celibato espontâneo,
respeitando o direito de escolha do indivíduo.
4.8.3 Da separação e divórcio no direito canônico
Os canonistas insistem em afirmar que a indissolubilidade do
matrimônio não foi uma prerrogativa do Cristianismo, considerando que
esta questão já estava presente em determinados seguimentos da
sociedade há mais de quatro mil e quinhentos anos em todos os povos,
que manifestavam uma ferrenha luta pela indissolubilidade do matrimônio.
Esta questão foi-se agravando cada vez mais na medida em que os anos
se passavam, alcançando elevada tensão teórica e prática sobre o
problema que constituiu o mais crucial litígio na instituição jurídica mais
importante da humanidade: o matrimônio. Todo direito escrito ou oral que
a ele se refere foi protegido e fomentado pelo espírito de religiosidade,
buscando sua execução e manutenção.
A legislação sumérica, uma das mais antigas, é testemunho de um
grande progresso jurídico, contendo em alto grau o elemento sagrado na
questão matrimonial. No Direito de Família dos sumérios, regiam os
seguintes princípios: não há matrimônio sem contrato; não há contrato
sem juramento, que, neste caso, configurava uma espécie de invocação a
uma divindade para castigar o contraventor. O Código de Hamurábi, que
existiu por volta de 3000 a.C., seguia as mesmas regras do direito
sumério. Seus preceitos sobre o matrimônio manifestam a tendência a
restringir o divórcio no Código do soberano mais poderoso da história
babilônica,
permite
reconhecer
em
primeiro
lugar
a
concepção
fundamental de “matrimônio monógamo” e, em segundo lugar, o esforço
de lutar contra a freqüência dos divórcios.
Se, por um lado, não se tem muitos testemunhos da presença de
divórcios entre os Patriarcas Abraão, Izaque e Jacó, tem-se, todavia, o
testemunho da pluralidade de esposas que eles tiveram, vindo a culminar
com a figura de Salomão que possuía setecentas mulheres e trezentas
concubinas. O relato de Deuteronômio 24:1-5 permite pensar que a lei
mosaica abria uma vasta oportunidade para o aspecto subjetivo ao dizer:
Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se
ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado
coisa indecente nela (literalmente nudez de algo), e se lhe
lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir
de casa, e se ela saindo de sua casa, for e se casar com
outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de
divórcio, e lhe der na mão, e a despedir de sua casa ou se
último homem, que a tomou para si por mulher, vier a
morrer, então, seu primeiro marido, que a despediu, não
poderá tornar a desposá-la para que seja sua mulher,
depois que foi contaminada, pois é abominação perante o
Senhor. 263
Mesmo entre os romanos, por ocasião do século III a.C., não há
testemunho de divórcios, mas a degeneração e os maus costumes
263
KENECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Revista de Derecho Privado,
1932. p. 548.
adentraram e no final da República já se podia lançar mão do divórcio
com a maior facilidade possível. Sêneca informa que a situação ficou tão
descontrolada que muitas mulheres identificavam suas idades não pelos
anos vividos, mas pela quantidade de maridos que tivera. Por outro lado,
Juvenal, outro cronista romano, registra que algumas mulheres se
divorciavam novamente antes que as rosas colocadas na porta de casa
para receber o novo marido tivessem murchado. Registra-se que algumas
delas chegaram a divorciar oito vezes em menos de oito anos. Por essa
razão é que, como já foi dito antes, o imperador Augusto teve que
incentivar.
O divórcio foi a questão de maior combate entre o Cristianismo e o
Direito Civil Romano, que tinha total liberdade em afirmar que o marido
poderia repudiar sua mulher, mesmo que por motivo vil, considerando que
ele detinha sobre ela poder de vida e de morte, ou seja, não passava de
mera propriedade.
A questão gerava maior conflito entre os ditames do Direito Civil
Romano exatamente pela posição que o referido direito colocava a mulher
em relação ao homem, vindo de encontro com a posição da mulher nos
ensinamentos do Cristianismo. Na verdade, a figura da mulher foi
agraciada com os ensinamentos de Cristo que a colocou em um patamar
de
privilégios
até
então
completamente
desconsiderados
pelas
civilizações pagãs e até mesmo pelo Judaísmo, que não atribuía à mulher
a condição de pessoa humana. Isto é bem claro no testemunho dos
Evangelhos que ao fazer menção a um determinado número de pessoas
presentes a certo evento dizia-se: Tantas pessoas, fora mulheres e
crianças.
Apesar das lutas e oposições que se projetaram nos primeiros
séculos cristãos através da intolerância e resistência do poder civil de
Roma, o Direito Canônico continuou desenvolvendo-se e se impôs na
cristandade por um bom período de tempo.
Todavia, deve-se mencionar que a resistência esboçada pelo
Direito Canônico contra o divórcio não logrou êxito todo tempo. Tratavase de uma questão milenar arraigado na mente e no coração da
humanidade. Apesar de todas as advertências, muitos fiéis se serviam da
legislação civil, e a Igreja não encontrava alternativa senão lançar mão da
tolerância com tais fiéis e lutar pelas mudanças da legislação civil, sendo
sua principal meta a abolição do divórcio por pacto. Não faltavam
declarações de papas em prol da indissolubilidade do matrimônio, ainda
que na prática do adultério, mas as pressões eram sempre grandes e
constantes. Como prova disso é que o Concílio de Verberie, no ano de
753, dispôs que podia conceder carta de divórcio se um dos cônjuges
ameaçasse de morte o outro.
Somente a partir do século X a Igreja passou a ter jurisdição
exclusiva em matéria de divórcio e, de acordo com Graciano, o
matrimônio cristão, desde que tenha sido consumado, só será dissolvido
pela morte. Em caso de adultério, o cônjuge inocente poderia separa-se
do culpado, mas sem a possibilidade de contrair novas núpcias. O único
caso de possibilidade de se contrair novas núpcias é quando um dos dois
se converte ao cristianismo e o outro não. Se o não convertido abandona
o converso, este podia contrair novas núpcias. É o chamado privilégio
Paulino.
O Concílio de Trento reafirmou a indissolubilidade do casamento
mesmo em relação à prática do adultério, chegando a afirmar:
se alguém diz que a Igreja errou e erra quando ensina com
o apoio da doutrina evangélica e apostólica o adultério de
um dos cônjuges não pode dissolver o matrimônio e que
nenhum dos cônjuges, nem mesmo o inocente, aquele que
não cometeu o adultério, podem contrair novo matrimônio
se viver um deles, seja anátema. 264
O divórcio foi o grande motivo de combate entre o direito romano e
o cristianismo. Em nenhuma outra questão encontrou a filosofia cristã
tanta resistência e dificuldades.
O único progresso do Direito Canônico em sua atual legislação
(1983) foi dar uma conotação mais pastoral à situação no sentido de
procurar conduzir o cônjuge traído a conceder o perdão e desistir da idéia
de separação. 265
O Código Canônico de 1983, no Cân. 1.055 utiliza a expressão
matrimoniale
264
foedus
(pacto
matrimonial),
aplicando
a
terminologia
KENECHT, A. Derecho matrimonial católico. Madrid: Revista de Derecho Privado,
1932. p 557.
265
LLANO, Cifuentes Rafael. O novo direito matrimonial canônico. Rio de Janeiro:
Marques Saraiva, 1990. p. 502.
adotada no Concílio Vaticano II. Esta expressão é mais ampla e com um
conteúdo mais teológico-pastoral do que a palavra contrato. Entretanto,
em
termos
jurídicos
não
há
introdução
de
nenhuma
modificação
substancial identificando a aliança ou pacto matrimonial com o contrato.
Cân. 1.055 - § 1. O pacto matrimonial, pelo qual o homem
e mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida,
por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à
geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo
Senhor elevado à dignidade de sacramento.
Trata ainda, o Direito Canônico de outras possibilidades de se
operar a dissolução do matrimônio. Primeiramente, a dissolução de
matrimônio ratificado e não consumado, que se trata da realização de um
matrimônio no qual tudo se opera dentro das determinações legais e
eclesiásticas, mas somente não se consuma o ato sexual.
Os
dois
elementos
fundamentais
a
que
se
subordina
a
indissolubilidade são sacramentalidade e consumação. Quando se dá a
sacramentalidade e não a consumação, cabe a dissolução do matrimônio.
Cân.1.142 – O matrimônio não consumado entre batizados,
ou entre uma parte batizada e outra não batizada, pode ser
dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido
de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra
se oponha.
Este princípio canônico se apóia na traditio maiorum, que não
considerava plenamente perfeito o matrimônio até que não se realizasse
a sua consumação sexual. O pensamento patrístico a partir daí
propugnava que só depois da “união carnal” o matrimônio poderia ser
considerado válido.
Essa doutrina não é aceita por todos os estudiosos da questão.
Logo após a Igreja ter assumido esse posicionamento, surgiu uma grande
polêmica no século XII entre as escolas de Paris (Pedro Lombardo) e
Bolonha (Graciano). Este sustentava que o matrimônio era iniciado pelo
consentimento e aperfeiçoado ou ratificado pela consumação; Pedro
Lombardo
defendia
a
perfeição
completa
do
consentimento
sem
consumação. Para evitar o cisma na Igreja, Alexandre III (1159-1181)
adotou uma postura eclética: o consentimento é que produz o matrimônio
(de acordo com a escola de Paris), mas o matrimônio não consumado
pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice (de acordo com a escola de
Bolonha) 266.
Denota-se aqui a autoridade concentrada nas mãos do papa que,
segundo a tradição católica é o vicarius fili dei - vigário do filho de Deus e
o detentor do “poder das chaves” sucessor de Pedro (Mateus 16:19).
Assim, a dissolução matrimonial, segundo o Código Canônico, é
possível nos seguintes casos:
266
LLANO, Cifuentes Rafael. O novo direito matrimonial canônico. Rio de Janeiro:
Marques Saraiva, 1990. p. 489.
1) matrimônio entre batizados: a) matrimônio entre dois
batizados que não consumaram o matrimônio depois da
celebração; b) matrimônio entre dois fiéis quando,
batizados ambos, não consumaram o matrimônio depois
de receber o batismo, ainda que antes tivessem
relações sexuais completas;
2) matrimônio entre batizado e não batizado: a) matrimônio
contraído com dispensa do impedimento de disparidade
de cultos se o matrimônio não foi consumado depois da
celebração; b) matrimônio entre não batizados contraído
na infidelidade se um deles se batiza e o matrimônio
não se consumou depois da conversão;
3) da inconsumação: a) quando o ato conjugal não é apto
de per si para gerar a prole. (O Cân. 1.061 estabelece o
conceito de consumação 267 e o Cân. 1.084 trata da
impotência coeundi (para copular) 268, que deve ser
267
Cân. 1.061 - § 1. O matrimônio válido entre os batizados chama-se só ratificado, se
não foi consumado; ratificado e consumado, se os cônjuges realizaram entre si, de
modo humano, o ato conjugal apto por si para a geração de prole, o qual por sua
própria natureza se ordena o matrimônio, e pelo qual os cônjuges se tornam uma só
carne.
§ 2. Se os cônjuges tiverem coabitado após a celebração do matrimônio, presume-se a
consumação, enquanto não se prova o contrário.
§ 3. O matrimônio inválido chama-se putativo, se tiver sido celebrado de boa-fé ao
menos por uma das partes, enquanto ambas as partes não se certificarem de sua
nulidade.
268
Cân. 1.084 - § 1. A impotência para copular, antecedente e perpétua, absoluta ou
relativa, por parte do homem ou da mulher, dirime o matrimônio por sua própria
natureza.
§ 2. Se o impedimento de impotência for duvidoso, por dúvida quer de direito quer de
fato, não se deve impedir o matrimônio nem, permanecendo a dúvida, declará-lo nulo.
entendida por consumação); b) quando não se realiza
de
modo
natural,
isto
é
a
penetração
do
órgão
masculino na vagina e a conseqüente ejaculação. A
inseminação artificial é condenada.
O § 3º do Cân. 1.084 estabelece que “A esterilidade não proíbe
nem dirime o matrimônio, salva a prescrição do Cân. 1.098” 269, enquanto
a impotência anula o casamento (Cân. 1061). Portanto, é errôneo
entender atualmente que o casamento na Igreja Católica tenha por fim
último apenas as procriação.
De fato, na Idade Média a sexualidade estava tão fortemente
limitada à procriação no pensamento teológico, que somente no século
XIV e início do século XV se teria começado a admitir como amplamente
legítimo o sexo entre o marido e sua mulher. João Baptista Villela
menciona que Johanes Gerson (1363-1429), um dos mais importantes
teólogos da Baixa Idade Média, sustentou a legitimidade do sexo sem
prole com base nos riscos de que a satisfação fosse buscada fora do
casamento. Portanto, parece que subsistia a visão negativista que levaria
Giovanni
di
Fidanza
(1221-1274),
chamado
Bonaventura
na
vida
eclesiástica, a descrever a libido como lapsus naturae, como uma doença
§ 3. A esterilidade não proíbe nem dirime o matrimônio, salva a prescrição do Cân.
1.098.
269
Cân. 1.098 – Quem contrai matrimônio, enganado por dolo perpetrado para obter o
consentimento matrimonial, a respeito de alguma qualidade da outra parte, e essa
qualidade, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal,
contrai invalidamente.
que se “curava” com o casamento, o qual por isso era proposto como
remédio contra a lascívia. 270
4.8.4 Causas matrimoniais e competência da Igreja
Ao que tudo indica desde os primeiros tempos da Igreja, os fiéis
não podiam resolver por si mesmos as controvérsias matrimoniais, mas
deviam recorrer a autoridade eclesiástica, com cuja intervenção também
se celebravam os casamentos.
Assim, parece mostrar a intervenção de São Paulo no caso do
incestuoso de Corinto e na promulgação do chamado privilégio Paulino. O
mesmo parece deduzir-se de algumas palavras de Santo Inácio de
Antioquia e São Justino. Mais claramente ainda demonstram algumas
decisões ou sentenças de Concílios em casos particulares.
Não há, porém, provas documentais de que existisse nos primeiros
séculos da Igreja, um verdadeiro direito processual, quanto às causas
matrimoniais.
Para a introdução do processo judicial regular deve ter influído o
direito de Justiniano. Este imperador suprimiu o divórcio civil por mútuo
consentimento com a conseqüente necessidade da intervenção judicial.
270
VILLELA, João Batista. Repensando o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha (Coord.). Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.
15-30.
Ainda que a Igreja nunca tivesse permitido o divórcio propriamente dito, é
natural, que por analogia com o direito romano, se começasse a usar a
via judicial nas causas de nulidade de matrimônio e nas de separação de
pessoas.
Para a introdução no foro canônico da via judicial nas causas
matrimoniais, pode ter também influído o direito dos cismáticos orientais.
Estes, como se sabe admitiam e admitem o divórcio vincular, ao menos
em caso de adultério.
A partir do século VIII, aparecem na Igreja Latina documentos
certos acerca de processos matrimoniais eclesiásticos. Na história do
Direito Canônico tem grande celebridade o caso de Lotário II, rei da
Lorena (855-869), que pretendeu obter a declaração de nulidade do seu
casamento, com pretexto do impedimento de incesto, que atribuía à
rainha Teutiberga. A causa foi julgada, primeiro por três concílios
particulares de Aquisgrana, nos anos de 860 e 862, em que alguns
bispos, abades e outros personagens venais declaram nulo o matrimônio.
A decisão foi confirmada em 863 pelo Concílio, também particular de
Metz, mas o papa Nicolau I a revogou. Deste complicado processo em
que brilhou a inteireza do papa e do Arcebispo de Reims, Hincmar, em
contraposição com a subserviência dos outros prelados, depreende-se
claramente não só reconhecimento da competência exclusiva da Igreja
neste gênero de causas, mas até a forma do processo em que se
misturavam elementos romanos e germânicos.
A discussão sobre a competência exclusiva da Igreja para julgar as
causas matrimoniais se materializou por ocasião do Concílio de Trento
que, dentre outros motivos, o principal foi combater a posição dos
reformadores que declaradamente não admitiam tal competência.
Durante toda a Idade Média, a Igreja julgou as causas matrimoniais,
com exclusão do poder civil, sem que ninguém, de um modo geral, lhe
contestasse esse direito.
Em Portugal, até o século XIX, todas as causas matrimoniais
propriamente ditas, quer de nulidade quer de separação de pessoas, e
até mesmo as causas relativas aos efeitos temporais conexas com as
primeiras, eram da competência exclusiva do foro eclesiástico.
Não obstante pertencer à Igreja a determinação das condições da
validez e da obrigação dos esponsais em ordem ao matrimônio cristão, o
poder civil regulou-os unilateralmente, em Portugal, pela lei de 6 de
outubro de 1784. Desde então, ao que parece, praticamente todas as
causas relativas aos esponsais foram tratadas no foro secular.
Proclamada a República, um dos primeiros cuidados do governo
Provisório foi instituir o divórcio, e pouco depois o casamento civil
obrigatório com o Decreto n. 1, de 25 de dezembro de 1910. Pelo artigo
65 desse decreto reservavam-se para o futuro ao tribunal civil todas as
causas de nulidade e anulação do casamento, mesmo que este tivesse
sido celebrado canonicamente.
Finalmente, pelo artigo 25 da concordata de 1940, voltou a ser da
competência privativa do foro eclesiástico o conhecimento das causas
concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do
casamento rato e não consumado. 271
4.8.5 Algumas posições atuais da Igreja Católica
O Sínodo dos Bispos, celebrado em Roma, em 1980, deixou claro
que a família cristã é a “primeira comunidade chamada a anunciar o
Evangelho à pessoa humana em crescimento e a levá-la, mediante a
catequese e a educação progressiva, à plenitude da maturidade humana
e cristã”. 272
De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, a comunidade
conjugal tem por base o consentimento dos esposos. “O casamento e a
família estão ordenados para o bem dos esposos, a procriação e a
educação dos filhos”. 273
Para a Igreja Católica, o matrimônio constitui um sacramento que
vincula os esposos um ao outro de forma indissolúvel, representando,
mediante o sinal sacramental, a mesma relação de Cristo com a Igreja.
271
LEITE, Antonio S. J. Competência da Igreja e do Estado sobre o matrimônio.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1946. p. 198-199.
272
JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Familiaris Consortio: ao episcopado, ao
clero e aos fiéis de toda a Igreja Católica sobre a função da família cristã no mundo de
hoje. 19 ed. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 4.
273
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 2201. São Paulo: Loyola, 2000.
Entende ainda que o amor conjugal comporta uma totalidade na qual
estão presentes todos os componentes da pessoa, ou seja, os apelos do
corpo e do instinto, força do sentimento e da afetividade, aspiração do
espírito e da vontade, que exige fidelidade e indissolubilidade da doação
recíproca definitiva e se abre à fecundidade. 274
A Igreja Católica defende a vida em toda e qualquer circunstância
e, conseqüentemente, se opõe tanto à fertilização in vitro como a
utilização dos embriões excedentes em pesquisas e mesmo para o
fornecimento de células-tronco.
Nesse aspecto convém destacar que direito e religião são coisas
distintas. Pela profundidade das questões, porém, que envolvem o
Biodireito, a religião fornece elementos que não podem ser ignorados
pelo direito, como é o caso da idéia de sacralidade da vida humana.
A Igreja Católica, ainda no Concílio Vaticano II, ressaltou a igual
dignidade
e
responsabilidade
da
mulher
em
relação
ao
homem.
Estabelece que a família encontra no amor a fonte e o estímulo
incessante para acolher, respeitar e promover cada um de seus membros
na altíssima dignidade de pessoas, ou seja, o critério moral da
autenticidade das relações conjugais e familiares consiste na promoção
da dignidade e vocação de cada uma das pessoas que encontram a sua
plenitude mediante o dom sincero de si mesmo.
274
JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Familiaris Consortio: ao episcopado, ao
clero e aos fiéis de toda a Igreja Católica sobre a função da família cristã no mundo de
hoje. 19 ed. São Paulo: Paulinas, 2005.
No entanto, embora ressalte a dignidade da pessoa humana, não
admite as relações homoafetivas, entendendo-as como estando sob o
regime do pecado. O mesmo ocorre com o divórcio e outras questões
atuais, como pesquisa com células tronco, métodos anticoncepcionais,
entre outras que fogem do objetivo desse estudo.
Entende-se que a crença não deve ser discutida. Se a Igreja
Católica quer disciplinar dessa forma os seus fiéis é aceitável. Não lhe
cabe, porém, interferir junto ao Estado, pois a função do legislador é criar
leis que tutelem os direitos dos cidadãos. Portanto, se é crescente o
número de casais que se separam; se é crescente o número de homens e
mulheres que têm um relacionamento que se caracteriza como união
estável; e se é crescente o número de indivíduos que passam a viver uma
relação homoafetiva, devem ser elaboradas leis que os amparem e dirima
dúvidas, nas diversas situações de conflito que podem ser geradas, por
exemplo, os efeitos patrimoniais dessas relações, ou, ainda, a proteção
dos direitos fundamentais dos envolvidos.
CONCLUSÕES
O presente trabalho teve por objetivo demonstrar que tanto a
escolha
da
religião
como
a
formação
familiar
constitui
direitos
fundamentais do homem. Para tanto, procurou-se demonstrar a evolução
histórica de ambas as instituições, desde os primórdios dos tempos.
1. O homem primitivo não tinha a noção do que era liberdade. Em
comparação com os demais animais, era um ser frágil. Mas uma das
primeiras lições aprendidas foi a necessidade de se unir aos seus
semelhantes, pois só dentro do contexto de uma família e da formação de
grupos ou clãs poderiam sobreviver em um ambiente hostil.
2. Com o aumento dos agrupamentos humanos, o homem foi
levado pelo misticismo a acreditar em alguma coisa, a buscar uma razão
pela qual existia na face da Terra. Assim, passou a admirar e adorar
alguma coisa, a se vincular a fenômenos da natureza, ou seja, passou a
se relacionar com aquilo que existia a sua volta. Depois, começou a ter a
percepção de dois corpos, um palpável e outro sombra (alma) e atribuiu
alma ou espíritos aos animais, às plantas e aos objetos inanimados.
3. Posteriormente, passou a diferenciar as diversas forças da
natureza, atribuindo-lhes importância. Mas muitas coisas não conseguia
entender. Alguém do grupo se destacava para desvendar os mistérios da
natureza e passou a ditar as regras de religiosidade entre os membros da
tribo.
4. Na Idade Antiga, foi consolidado o patriarcado, ou seja, o chefe
da família exercia a liderança familiar, o sacerdócio e a justiça perante
sua família. A religião aflorou na forma do culto aos antepassados, sendo
que esse se relacionava diretamente com o fogo sagrado, que devia ser
zelado por todos os familiares para que não se apagasse. Assim foi tanto
na Grécia como no Império Romano.
5. Do
Oriente
surgiram
as
principais
religiões
monoteístas,
destacando-se o judaísmo, do qual derivaram o cristianismo e o
islamismo. O cristianismo tem Jesus como representante de Deus e que
pregou a paz e a mansidão. No islamismo venera-se a Alá e seu principal
profeta foi Maomé, que pregava a espada como um instrumento do céu.
6. Embora a liberdade seja um Dom de Deus, como configurado na
Bíblia, verifica-se que na medida em que o cristianismo se expandia,
começou a impor aos seus fiéis dogmas e a usar da opressão. Com
relação ao islamismo, desde sua origem prega a intolerância com os
infiéis, gerando com isso opressão e crueldade.
7. Em dado momento da evolução da civilização, a questão
religiosa passou a ter uma inter-relação com a família, entrelaçando-se
ambas. Assim, a constituição da família passou a ser controlada pela
Igreja, que estabeleceu regras rígidas para a sua formação.
8. O
cristianismo
que
inicialmente
sofreu
uma
perseguição
implacável do Império Romano, acabou sendo acolhido por ele. Com o
Edito de Milão expandiu-se tanto para o Oriente como para o Ocidente.
Com a divisão do Império Romano, também ocorreu o cisma no
cristianismo, originando a Igreja Ortodoxa Grega (Oriente) e a Igreja
Católica Apostólica Romana (Ocidente). Ao acolher o cristianismo, o
Império Romano estabeleceu a liberdade de culto, mas, com o predomínio
alcançado pela Igreja Católica, os cultos pagãos foram proibidos.
Portanto, a liberdade religiosa existiu por pouco tempo, pois antes da
aceitação do cristianismo havia intolerância com o mesmo e após essa
aceitação a intolerância voltou-se contra os cultos pagãos.
9. Com o desmantelamento do Império Romano pelas invasões
bárbaras, a Igreja Católica, que havia se organizado sobre a estrutura
administrativa do Império, teve o seu poder ampliado e acabou se
tornando o maior senhor feudal da Europa, impondo seu predomínio a
todos os povos europeus. No entanto, na medida em que aumentava o
seu poder material, mais se distanciava de seus objetivos espirituais. Isto
levou a uma reação, dividindo a hierarquia da Igreja e fazendo surgir o
Protestantismo. A reação da Igreja foi violenta com a instituição dos
tribunais de inquisição, o qual condenou muitos à morte.
10. Os países da Península Ibérica, Portugal e Espanha, adotaram
a religião católica. Sofreram invasão de seus territórios por parte dos
mulçumanos e se consolidaram como Estados católicos após a expulsão
dos mouros.
11. Especialmente, Portugal aceitou o catolicismo como sua única
religião oficial, acatando as decisões do Concílio de Trento e transferindo
tais decisões para suas colônias, entre as quais o Brasil.
12. Os reis portugueses foram mais longe na sua aceitação do
catolicismo, outorgando ao clero do seu país, a partir de 1568, todo o
controle da constituição da família. A única opção era ser católico, pois
era inaceitável outra religião. Tal posição foi mantida em todas as
colônias portuguesas.
13. O Brasil colônia seguia nos mesmos moldes de Portugal. Com a
sua independência, o Império manteve a religião católica apostólica
romana como oficial, especialmente, no que diz respeito à constituição da
família, que só poderia existir se seguisse as determinações do Código
Canônico.
14. A laicização do Estado brasileiro só ocorreu com a República.
Mas verifica-se que a influência da Igreja foi mantida até 1988, pois todas
as Constituições anteriores mantiveram a indissolubilidade do casamento,
nos moldes do Direito Canônico.
15. A Constituição de 1988 assenta como um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, visando à promoção do bem-estar de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (art. 3°, incisos I e IV, CF).
16. Além
desses
objetivos,
destaca-se
no
cenário
familiar
o
princípio da dignidade humana (art. 1°, CF). Assegura, ainda, a liberdade
de expressão religiosa, enquanto o chamado “primado do sentimento nas
relações
familiares”,
altera
o
conceito
de
família
decorrente
do
reconhecimento de um direito à felicidade individual diverso, porém,
dependente do bem-estar da própria instituição familiar.
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