FACULDADES MILTON CAMPOS CURSO DE MESTRADO EM DIREITO LEGITIMIDADE ATIVA NA EXECUÇÃO DE DEBÊNTURES HUGO Leonardo Teixeira Nova Lima 2008 HUGO LEONARDO TEIXEIRA LEGITIMIDADE ATIVA NA EXECUÇÃO DE DEBÊNTURES Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direito Empresarial. Orientador: Prof. Doutor Jason Soares Albergaria Neto Faculdades Milton campos Nova Lima 2008 Hugo Leonardo Teixeira LEGITIMIDADE ATIVA NA EXECUÇÃO DE DEBÊNTURES. Dissertação intitulada “Legitimidade ativa na execução de debêntures” de autoria de Hugo Leonardo Teixeira, para exame da banca constituída pelos seguintes professores: Belo Horizonte, 2008. __________________________________________________________ Prof. Doutor Jason Soares Albergaria Neto Orientador __________________________________________________________ Prof. Doutor __________________________________________________________ Prof. Doutor T266l TEIXEIRA, Hugo Leonardo Legitimidade ativa na execução de debêntures/Hugo Leonardo Teixeira – Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2008 103 f. enc. Orientador: Prof. Dr. Jason Soares Albergaria Neto Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de concentração Direito empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos Bibliografia: f. 99 - 103 1. Debêntures - Execução. 2. Debêntures – Legitimidade. 3. Agente Fiduciário. 4. Debenturistas. I. Albergaria Neto, Jason Soares II. Faculdade de Direito Milton Campos III. Título CDU 347.725:657.412.1 __________________________________________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206 A Deus, por tudo. À minha esposa, pela dedicação e compreensão. Aos meus pais, Bernadete e Tonico, pelo amor a mim dispensado. Ao Márlen, meu fraterno amigo, pelas oportunidades, motivação e disponibilidade. À Professora Lúcia Massara, pela confiança em mim depositada. Ao Professor Doutor Jason Soares de Albergaria Neto, pela disponibilidade e preciosa participação na elaboração deste trabalho. À Maria da Glória, meu amor, que tanto representa em minha vida. Ao Antônio Leonardo, promessa de vida que constitui minha principal motivação. Aos meus pais, mestres inigualáveis na arte de ensinar os valores que me são tão caros. À minha avó Maria, cuja lembrança torna doce minha infância. RESUMO Constitui objetivo deste trabalho abordar a exposição da evolução histórica das debêntures, seus aspectos conceituais e principais características, entre as quais a de constituir um título executivo imaterial. A par da identificação das características das debêntures, segue a análise da comunhão de debenturistas e de seus instrumentos de proteção ao interesse comunitário, quais sejam a assembléia especial de debenturistas e o agente fiduciário. Feita a análise dos poderes, atribuições e responsabilidade do agente fiduciário, apresenta-se definições de parte, capacidade processual, capacidade postulatória e legitimidade de partes. A partir daí, segue a análise da natureza da legitimidade do agente fiduciário para promover as ações judiciais em proveito dos debenturistas, isto é, se ordinária ou extraordinária, e se exclusiva ou concorrente. Para tanto, examina-se se a Lei n.º 6.404/1976 revogou total ou parcialmente o Dec-Lei 781/1938, que conferia, excepcionalmente, legitimidade para os debenturistas proporem ações individuais em face da companhia emissora. Como resultado, chega-se a conclusão de que o agente fiduciário possui legitimidade extraordinária para propor ação em face da companhia, mas que os debenturistas também possuem legitimidade concorrente e subsidiária para promoverem ações judiciais para a satisfação de seu crédito em face da companhia emissora. Palavras-chave: Debêntures – Execução – Legitimidade – Agente fiduciário – Debenturistas ABSTRACT This work aims to explore the exposition of historical development of the debenture, its conceptual aspects and main characteristics, among others the quality to become an immaterial executive title. Along with the characteristics of the debenture, it follows the analysis of the community of debenture holders and its instruments to safeguard the community interests, which are the especial meeting of debenture holders and the fiduciary. After the analysis of the authority, attributions a responsibilities of the fiduciary agent, it is presented the definitions of part, legal capacity, legal capacity to sue and legitimacy of the parties. From that point, it follows the examination of the legitimacy of the fiduciary agent to initiate a legal proceeding on behalf of the debenture holders, that is whether ordinary or extraordinary, and if exclusive or concurrent. Therefore, it is analyzed if the Brazilian Law number 6.404/1976 revoked totally or partially the Decree-Law number 781/1938, which granted, exceptionally, legitimacy to the debenture holders to initiate individual proceedings against the issuing company. As a result, it reaches the conclusion that the fiduciary agent has extraordinary legitimacy to initiate a judicial proceeding against the company, however the debenture holders have the concurrent and subsidiary legitimacy to initiate legal proceedings in order to view their credit performed by the issuing company. Key-words: Debentures – Judicial proceeding – Legitimacy – Fiduciary agent – Debenture holders SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 8 2 DEBÊNTURES................................................................................................................................... 12 2.1 Histórico ............................................................................................................................. 12 2.2 Aspectos conceituais......................................................................................................... 15 3 CARACTERÍSTICAS GERAIS .......................................................................................................... 23 3.1 Competência para emissão................................................................................................ 23 3.2 Escritura de emissão ......................................................................................................... 23 3.3 Emissão pública e privada................................................................................................. 25 3.4 Valor nominal ..................................................................................................................... 28 3.5 Correção monetária............................................................................................................ 29 3.6 Rendimentos ...................................................................................................................... 31 3.6.1 Taxa de juros................................................................................................................................ 31 3.6.2 Participação nos lucros ................................................................................................................ 34 3.6.3 Prêmio de reembolso ................................................................................................................... 36 3.7 Outros direitos ................................................................................................................... 37 3.7.1 Debêntures conversíveis em ações ............................................................................................. 37 3.7.2 Debêntures perpétuas.................................................................................................................. 39 3.8 Espécies ............................................................................................................................. 39 3.9 Limites de emissão ............................................................................................................ 42 4 DEBÊNTURE COMO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL....................................................... 45 5 COMUNHÃO DE DEBENTURISTAS ................................................................................................ 49 5.1 Natureza da comunhão de debenturistas.......................................................................... 49 5.2 Assembléia dos debenturistas .......................................................................................... 54 5.2.1 Generalidades .............................................................................................................................. 54 5.2.2 Limitação dos poderes da assembléia geral de debenturistas .................................................... 56 5.3 Agente fiduciário ................................................................................................................ 58 6 PARTE, PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E CONDIÇÕES DA AÇÃO........................................ 65 6.1 Parte.................................................................................................................................... 65 6.2 Pressupostos processuais ................................................................................................ 68 6.3 Condições da ação............................................................................................................. 71 7 LEGITIMAÇÃO PARA EXECUÇÃO DE DEBÊNTURES ................................................................. 75 7.1 Legitimação extraordinária do agente fiduciário .............................................................. 75 7.2 Inexistência de exclusão do direito de ação dos debenturistas pela lei n. 6.404, de 1512-1976................................................................................................................................. 78 7.3 Legitimação concorrente e subsidiária do debenturista .................................................. 91 8 CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 94 REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 98 8 1 INTRODUÇÃO Debêntures são valores mobiliários que conferem aos seus titulares direito de crédito contra as sociedades anônimas e as sociedades em comandita por ações. Constituem um importante instrumento para a captação de recursos em favor de suas emitentes, porque, em razão de sua versatilidade, ajustam-se facilmente às necessidades das sociedades que pretendam emiti-las. A utilização das debêntures como alternativa para a captação de recursos explicase pelo fato de atender tanto aos interesses do mutuante como do mutuário. De fato, as debêntures, em regra, remuneram o capital do mutuante com juros superiores àqueles oferecidos pelo mercado financeiro e oneram o débito do mutuário com taxas de juros que flutuam em patamares inferiores aos praticados nos contratos bancários. Ilustrando a importância da debênture como investimento, Borba1 ensina que as debêntures têm o seu mercado específico, constituindo um lastro relevante para a composição das reservas técnicas de fundos de pensão e de seguradoras. Os fundos de investimento voltados para a renda fixa, em busca de um perfil relativamente conservador, encontram na debênture um instrumento valioso para a formação de suas carteiras. Quanto às vantagens da emissão de debêntures, Requião2 explica que, a fim de evitar os inconvenientes de pequenos e constantes financiamentos a curto prazo e a altos juros, no mercado financeiro, as sociedades anônimas têm a faculdade exclusiva de obter empréstimos, tomados ao público a longo prazo e a juros mais compensadores, inclusive com correção monetária, mediante resgate a prazo fixo ou em sorteios periódicos. A relevância econômica das debêntures está evidenciada no fato de que, em alguns países, o volume de debêntures emitidas é superior ao volume de ações subscritas. De fato, segundo o Sistema Nacional de Debêntures (SND), o volume de debêntures emitidas no Brasil entre 1995 e 2007 alcançou a cifra de R$251.109,64 milhões, enquanto o volume de ações atingiu a ordem de R$82.171,11 milhões.3 Não obstante, Papini ressalva que “a crescente utilização das debêntures não se identifica com o real objetivo das Lei n. 6.404/1976 e Lei n. 6.385/1976”. Segundo o autor, “o 1 BORBA, José Edwaldo Tavares. Das debêntures. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 09. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2003. v. II, p. 107. 3 <http://www.debentures.com.br/dadosconsolidados/comparativovaloresmobiliarios.asp>. 2 9 crescimento das emissões de debêntures traduz aumento no endividamento das empresas, contrastando com o modelo desejado de fortalecimento da grande empresa privada nacional por meio da capitalização”.4 Apesar de as debêntures representarem um importante instrumento para o financiamento da atividade empresarial e, concomitantemente, destacarem-se como opção de investimento para o público investidor, colhe-se relevante divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à identificação da legitimidade para o ajuizamento de execução em caso de inadimplemento da companhia emissora. É que, se, de um lado, há quem, como Rizzardo5, sustente que poderá o debenturista, em qualquer hipótese de inadimplência, exercer, desde logo, o seu direito de ação, de outro, há quem, como Pinto Junior’6, defenda que o agente fiduciário representa em juízo a comunhão de debenturistas, sendo o único legitimado a promover a execução das garantias reais dadas pela companhia inadimplente. O entendimento de Rizzardo apóia-se na compreensão de que, embora os titulares de debêntures sejam representados pelo agente fiduciário, não se retira a legitimidade deles para agir pessoalmente e exercer os direitos, e muito menos significa renúncia a direito próprio garantido na Carta Constitucional e no art. 3º do Código de Processo Civil. Quem se alinha ao entendimento de Mario Engler Pinto Júnior entende que, embora a titularidade do direito de crédito permaneça nas mãos dos debenturistas, os respectivos poderes de gestão cabem exclusivamente ao agente fiduciário, a quem a lei atribuiu a tarefa de agir na defesa dos interesses da comunhão, perante a sociedade emissora, estando imbuído de poderes de representação ex lege. A jurisprudência, seguindo a mesma sorte da doutrina, tem vacilado quanto ao reconhecimento de legitimação ao debenturista para agir individualmente em defesa de seus interesses, ainda que coincidentes com o da comunhão. Cita-se como exemplo entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro7 que reconheceu a legitimidade do debenturista para agir contra a companhia emissora, em acórdão assim ementado: AÇÃO DE COBRANÇA - DEBÊNTURES CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO OCORRENTE INICIAL APTA - LEGITIMIDADE ATIVA AUSÊNCIA DE NULIDADE EM RELAÇÃO À APLICAÇÃO DO ART. 294 INADIMPLEMENTO. 1) Não ocorre cerceamento de defesa, se a respeito dos 4 PAPINI. Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 117. RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: lei n. 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 369. 6 PINTO JÚNIOR, Mario Engler. Debêntures. Direito de debenturistas. Comunhão e assembléia. Agente fiduciário. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 48, p. 25-48, 1982, p. 48. 7 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 1998.001.13.796. Rel. Des. Walter D’Agostino. Julgado em: 05.08.1999. 5 10 documentos apresentados não incidiu alegação de falsidade ou adulteração, e a questão a ser decidida é exclusivamente de direito. 2) A inicial não é inepta quando a causa petendi está presente e é resultado da conjugação dos fatos narrados no que respeita à relação jurídica dele derivada. 3) Os Debenturistas ao designarem o Agente Fiduciário seu representante, não estão renunciando ao que dispõe o art. 30 do CPC. Trata-se de outorga extraordinária mas sem exclusividade para a representação em Juízo. 4) Não é nulo o processo se o Juízo, com base no que dispõe o art. 296 do CPC, retrata-se de maneira sucinta, sem grandes formalidades, mas deixando claro o motivo. O inadimplente que não cumpre o que foi combinado em Assembléia por ele próprio, e no seu interesse realizada, deixando de pagar nos prazos devidos os juros remuneratórios e demais obrigações assumidas, é de ser condenado a pagar o valor estabelecido nas debêntures e seus acréscimos. (grifo nosso) Em sentido diametralmente oposto ao entendimento manifestado pelo julgado supracitado, colaciona-se ementa proferida pela 1a Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul em julgamento ao Agravo de Instrumento n. 186.055.737, julgado em 30 de setembro de 1986, no sentido de que apenas o agende fiduciário tem legitimidade para demandar contra a sociedade emissora: Debêntures. Agente Fiduciário. Legitimação Ativa. Responsabilidade perante os debenturistas. No sistema da Lei n. 6.404, de 1976, o agente fiduciário representa em juízo a comunhão de debenturistas, sendo o único legitimado a promover a execução das garantias reais dadas pela companhia inadimplente. Permanecendo inerte, responde perante os debenturistas pelos prejuízos decorrentes de sua omissão. Agravo não provido. Tal controvérsia fomentou o desejo de perquirir qual das posições doutrinárias e jurisprudenciais acima apontadas representa a melhor exegese dos dispositivos legais pátrios que disciplinam as debêntures. Dessa forma, o objetivo desta dissertação é investigar a quem pertence a legitimidade ativa para agir contra a companhia em caso de inadimplemento. Em um primeiro momento, a dissertação examinará a evolução histórica das debêntures, os seus aspectos conceituais e características gerais, como a competência para deliberar a sua emissão, a escritura de emissão, a distribuição pública e privada, o valor nominal, a correção monetária, os rendimentos, a conversibilidade em ações, as debêntures perpétuas, as espécies e o limite de emissão. Posteriormente, examinar-se-á a debênture como título de crédito imperfeito e como título executivo extrajudicial. Nesse contexto, a pesquisa proposta, em razão da ausência de cartularidade da debênture, demonstrará quais documentos são necessários à comprovação do crédito debenturístico, bem como à instrução de ação executiva, nos termos do art. 614, inciso I, do CPC. 11 Antes de dedicar-se ao exame da legitimidade processual para a execução de debêntures, estudar-se-á a comunhão de interesses entre os debenturistas, demonstrando a prevalência dos interesses da comunhão sobre os interesses individuais. Nesse momento, serão analisados as atribuições e os poderes da assembléia especial de debenturistas e do agente fiduciário. O estudo dedicará um capítulo para o exame de alguns aspectos processuais de relevância para o tema, tais como o conceito de parte, a análise dos pressupostos processuais relativos à parte, isto é, aqueles relativos à capacidade de ser parte – capacidade processual e capacidade postulatória –, e às condições da ação, especificamente a legitimidade das partes, que constitui o foco de interesse deste trabalho. A partir de então, o presente trabalho se apresentará maduro para analisar a legitimação do agente fiduciário para o ajuizamento de execução de debêntures em face da companhia emissora e, posteriormente, para investigar se a Lei n. 6.404, de 15.12.1976, realmente excluiu a ação individual dos debenturistas ou se estes ainda possuem legitimidade ad causam para proteger os seus interesses em juízo. O tema, apesar de sua relevância jurídica e econômica, não foi estudado pela doutrina adequadamente, até porque foram poucos os comercialistas brasileiros que lhe dispensaram a atenção devida. Assim, reconhecendo a aridez doutrinária acerca do objeto de estudo, o presente trabalho almeja contribuir para a elucidação da controvérsia a respeito do assunto. 12 2 DEBÊNTURES 2.1 Histórico A necessidade de financiar o desenvolvimento empresarial motivou a criação de um instrumento que permitisse a tomada de empréstimo ao público. Inicialmente, tal prática surgiu no direito público, mediante a emissão de empréstimos garantidos com a arrecadação de determinados impostos e, posteriormente, migrou para o direito privado, mediante a emissão de obrigações ao portador, hoje denominadas debêntures. Sobre a tomada de empréstimos ao público pelo Estado, Borba8 relata que a prática de tomar um empréstimo ao público mediante a criação de uma obrigação remonta à Idade Média, e surgiu no Direito Público como um expediente do monarca, que assim obtinha recursos para determinados empreendimentos, inclusive para o financiamento da guerra. No âmbito do direito privado, ou seja, relativamente à tomada de empréstimo pelos particulares ao público, Santos9 preleciona que, “como curiosidade, segundo alguns comentadores de títulos de crédito, a debênture foi inventada pelos empreendedores ingleses responsáveis pela abertura do Canal de Suez, como forma de captação de recursos para seu financiamento”. No Brasil, a Lei n. 1.083/186010 vedava a emissão de obrigações ao portador por qualquer sociedade, inclusive companhia. Somente em 1882, com a sanção da Lei n. 3.150, que regulamentava o estabelecimento de sociedades anônimas e companhias, é que se permitiu às sociedades anônimas captar empréstimo ao público, mediante a emissão de obrigações ao portador.11 8 BORBA, 2005, p. 01. SANTOS, Durval José Soledade. A debênture como instrumento de aplicação e captação de recursos. Revista de Direito Mercantil. v. 101, p. 27-36, 1996, p. 27. 10 BRASIL. Lei 1083/1860, art. 1º, §10º: “nenhum Banco, que não for dos atualmente estabelecidos por decreto do Poder Executivo, companhia ou sociedade qualquer natureza, comerciante ou indivíduo de qualquer condição, poderá emitir, sem autorização do Poder Legislativo, notas, bilhetes, vales, papel ou título algum ao portador, ou com o nome deste em branco, sob pena de multa do quádruplo do seu valor, a qual recairá integralmente tanto sobre o que emitir, como sobre o portador”. 11 BRASIL. Lei 3150/1882, art. 32: “É permitido às sociedades anônimas contrair empréstimo de dinheiro por meio de emissão de obrigações ao portador”. 9 13 No período posterior à Proclamação da República, especificamente entre 1889 e 1892, o mercado brasileiro, motivado pela política de expansão do crédito às indústrias, conheceu uma de suas piores crises econômicas, a qual culminou na emissão de debêntures por companhias fictícias, com o intuito de lesar o público investidor. Carvalhosa discorre sobre tal período, o qual ficou conhecido como “Encilhamento”: O movimento especulativo no mercado mobiliário do Rio de Janeiro que trouxe a República e o errático Ministério de Rui Barbosa incentivou, em seus estertores, ou seja, no final de 1892, o movimento das debêntures, emitidas pelas companhias fantasmas com o intuito de lesar o púbico e enriquecer os seus incorporadores. No desastre econômico e social que se instalou na praça do Rio de Janeiro nos anos de 1890 a 1892 lançou-se, como ultimo recurso, a emissão de debêntures por companhias fictícias. Não tendo mais publico para lançar ações, usaram o expediente de emitir debêntures voltadas, segundo os “manifestos”, à consolidação e fusão “dos grandes grupos”. Os investidores tiveram nos títulos ao portador (debêntures) a derradeira oportunidade de perder o seu patrimônio. Para pôr fim às emissões fraudulentas de debêntures, foi sancionado o Decreto n. 177-A, de 15 de setembro de 1893, que autorizava apenas as sociedades anônimas a emitirem debêntures e vedava a emissão de notas, bilhetes, fichas, vales, papel ou título contendo promessa de pagamento ao portador ou com nome deste em branco por quaisquer outras sociedades ou indivíduo sem que houvesse autorização do Poder Legislativo.12 De fato, analisando o Dec. n. 177-A, de 1893, Valverde13 conclui que a emissão de debêntures ou obrigações ao portador constitui um privilégio conferido às companhias ou sociedades anônimas, posteriormente estendido às sociedades em comandita por ações. Qualquer outra organização ou associação precisa de autorização especial para emitir debêntures. Complementando a legislação em referência, adveio o Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938, que instituiu e regulamentou a comunhão de interesses entre portadores de 12 Decreto 177-A: Art. 1º. “As companhias ou sociedades anônimas poderão emitir empréstimos de obrigações (debêntures), de conformidade com o disposto nesta lei”. Art. 3º. “Nenhuma sociedade ou empresa de qualquer natureza, nenhum comerciante ou indivíduo de qualquer condição, poderá emitir, sem autorização do Poder Legislativo, notas, bilhetes, fichas, vales, papel ou título, contendo promessa de pagamento, em dinheiro, ao portador ou com o nome deste em branco, sob pena de multa do quádruplo do seu valor e de prisão simples por quatro a oito meses”. 13 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações (comentários ao decreto-lei 2.627, de 26 de setembro de 1940). Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 160. 14 debêntures. Contudo, na vigência de tal ato normativo a criação da comunhão de debenturistas não se operava ex lege, mas dependia de expressa previsão do manifesto de emissão.14 A Lei n. 4.728/65, que disciplinou o mercado de capitais no Brasil, destacou as debêntures como instrumento de captação de recurso para o desenvolvimento das sociedades por ações e outorgou ao Conselho Monetário Nacional competência para expedir normas sobre limites de emissão, entre outras matérias. Aliás, o art. 26 da Lei n. 4728/65, que regulava a matéria, trazia a seguinte redação: Art. 26. As sociedades por ações poderão emitir debêntures, ou obrigações ao portador ou nominativas endossáveis, com cláusula de correção monetária, desde que observadas as seguintes condições: I - prazo de vencimento igual ou superior a um ano; II - correção efetuada em períodos não inferiores a três meses, segundo os coeficientes aprovados pelo Conselho Nacional de Economia para a correção dos créditos fiscais; III - subscrição por instituições financeiras especialmente autorizadas pelo Banco Central, ou colocação no mercado de capitais com a intermediação dessas instituições. § 1° A emissão de debêntures nos termos deste artigo terá por limite máximo a importância do patrimônio líquido da companhia, apurado nos termos fixados pelo Conselho Monetário Nacional. § 2º O Conselho Monetário Nacional expedirá, para cada tipo de atividade, normas relativas a: a) limite da emissão de debêntures observado o máximo estabelecido no parágrafo anterior; b) análise técnica e econômico-financeira da empresa emissora e do projeto a ser financiado com os recursos da emissão, que deverá ser procedida pela instituição financeira que subscrever ou colocar a emissão; c) coeficientes ou índices mínimos de rentabilidade, solvabilidade ou liquidez a que deverá satisfazer a empresa emissora; d) sustentação das debêntures no mercado pelas instituições financeiras que participem da colocação. Assim, até o advento da Lei n. 6.404, de 1976, as debêntures eram regulamentadas pelos instrumentos normativos até então referidos (Decreto n. 177-A, de 1893, Decreto-lei n. 781, de 1938 e Lei n. 4.728, de 1965) e pelas resoluções do Conselho Monetário Nacional, que, conforme previa o § 2º do art. 26 da Lei n. 4.728/1965, disciplinou o mercado de capitais. O projeto de lei que deu origem à Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, foi enviado ao Congresso Nacional, acompanhado de exposição e justificativa, que, relativamente 14 BRASIL. Decreto-Lei 781/1938, art. 1º: “Os empréstimos por obrigações ao portador (debêntures) contraídos pelas sociedades anônimas, ou em comandita por ações, ou pelas autorizadas por leis especiais, criarão, quanto al condição contar do manifesto da sociedade e do contrato devidamente inscrito, uma comunhão de interesses entre os portadores dos títulos da mesma categoria, a saber, emitidos com fundamento no mesmo ato, subordinados às mesmas condições de amortização e juros, e gozando das mesmas garantias”. 15 à debênture, expõe ter modificado inteiramente tal instituto, em razão da rigidez do Decreto n. 177-A, de 15.09.1983, o qual contribuiu para a pouca utilização desse valor mobiliário como instrumento de financiamento das companhias.15 As principais inovações trazidas pela Lei n. 6.404/76 em relação às debêntures dizem respeito à liberdade conferida à companhia para definir as vantagens a serem conferidas aos debenturistas, à ampliação das espécies de debêntures e à criação do agente fiduciário – inspirado no trustee do direito anglo-saxão – e da assembléia dos debenturistas, convocada pelo agente fiduciário, companhia emissora, debenturistas ou CVM – Comissão de Valores Mobiliários. A Lei n. 6.404/1976, em seu art. 300, estabeleceu que “ficam revogados o Decreto-Lei n.º 2.627, de 26 de setembro de 1940, com exceção dos artigos 59 a 73, e demais disposições em contrário”. Assim, não havendo revogação expressa dos diplomas anteriores relativos às debêntures, é possível sustentar que aqueles dispositivos que não contrariam a Lei n. 6.404/1976 permanecem em vigor. 2.2 Aspectos conceituais O vocábulo debênture deriva do inglês debenture. O Direito anglo-saxão, por sua vez, o extraiu da língua latina, especificamente da palavra debentur, que significa dever. No Brasil, o Dec. n. 177-A, de 1893, adotou como expressões sinônimas as denominações obrigações ao portador e debêntures, sendo que, com o advento da Lei 6.404/76, foi unificada a terminologia para utilizar exclusivamente o termo debênture. O termo debênture conduz à idéia de empréstimo tomado por uma sociedade por ações (sociedade anônima ou em comandita por ações) a um público investidor. Tal compreensão encontra amparo no art. 52 da LSA, o qual dispõe que “a companhia poderá emitir debêntures que conferirão aos seus titulares direito de crédito contra ela, nas condições constantes da escritura de emissão e, se houver, do certificado”. 15 Exposição justificativa enviada ao Congresso Nacional juntamente com o Projeto de Lei das S.A.: “o projeto reformula inteiramente o instituto da debênture, até hoje regulado pelo Decreto nº 177-A, de 15.9.1893, expedido em reação ao encilhamento de 1.891, e cuja rigidez contribuiu para a pouca utilização, entre nós, dessa modalidade de valor mobiliário como instrumento de financiamento da companhia mediante empréstimos distribuídos no mercado de capitais”. 16 Não obstante, Valverde16 se opõe àqueles que afirmam ver sempre na base da emissão das debêntures um contrato de mútuo, vez que, contrariamente a tal circunstância, seria possível a criação de debêntures com o objetivo de dá-las em caução ou em penhor, ou em pagamento de dívidas do subscritor ou emissor, ou, mesmo, de terceiros. Para melhor compreensão, cita-se o magistério do autor: Quer pela lei n.º 3.150, de 1882, quer pelo dec. nº 177-A, de 1893, as debêntures são títulos que “representam empréstimos de dinheiro”. Mas, o próprio dec. n.º 177-A admite a venda pública de obrigações ao portador (n.º 508), como ainda é possível a criação desses títulos com o objetivo de dá-los em caução ou penhor, ou mesmo em pagamento de dívidas do subscritor ou emissor, ou mesmo de terceiros (n.º 508). Conclui-se, pois, que as debêntures são, em princípio, títulos ou documentos representativos de empréstimos em dinheiro, antes do tudo, porém, promessas pecuniárias, por meio das quais o emissor dos títulos pode praticar diferentes operações de crédito. Inexata, conseguintemente, a afirmação dos que vêem sempre na base da emissão das debêntures, ou nela mesma, um contrato de mútuo, inexatidão a que não fugiu o dec. nº. 22.431, de 6 de fevereiro de 1933, que regulou, pela primeira vez, a comunhão de interesses entre os portadores desses títulos, nem, posteriormente, o dec.-lei nº 781, de 12 de setembro de 1938, que alterou aquele decreto. Embora seja válida a advertência de Valverde acerca da possibilidade de a emissão de debênture não estar necessariamente relacionada a uma operação de mútuo, a doutrina prevalecente enxerga a emissão de debênture como um mútuo celebrado entre a companhia emissora e um público investidor. Nesse sentido, o escólio de Carvalho de Mendonça17: Essa operação, a que recorrem as sociedades anônimas, é, como dissemos, um empréstimo; é o contrato de mútuo, que se distingue do simples mútuo, definido no art. 247 do Cód. Com., pela divisão da quantia mutuada em frações, expressa por títulos ao portador, títulos de crédito negociáveis, pelo processo especial de amortização, isto é, do reembolso gradual do capital da dívida por parcelas mínimas, em regra, durante longo prazo. Convém, porém, dizer que este segundo característico pode falhar, ainda que raramente. Uma das condições do empréstimo pode ser o pagamento ou resgate de toda a quantia mutuada em dia ou prazo certo. Corrêa-Lima18 conceitua debêntures como valores mobiliários e como títulos de crédito que documentam uma operação de mútuo. O debenturista é o mutuante. A companhia, a mutuaria. (Pelo contrato de mútuo, uma pessoa empresta 16 VALVERDE, 1959, p. 160-161p. MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial brasileiro. 4. ed. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1946. v. IV, p. 96. 18 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade anônima. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 141. 17 17 coisas fungíveis a outra, que se obriga a devolvê-las ou, então, devolver coisas do mesmo gênero, quantidade e qualidade). Martins19 ressalva que o caminho natural para uma companhia captar recursos seria o aumento de capital, mas que nem sempre tal se apresenta vantajoso, razão pela qual “costuma ela recorrer ao público, fazendo empréstimo contra a emissão de títulos que dão aos portadores certas vantagens especiais, a mais importante das quais é a percepção de juros à taxa prefixada e por um espaço de tempo determinado”. Ao referir-se às debêntures, Negrão20 explica que, por sua natureza de instrumento de captação de recursos às sociedades por ações, concedem direito de crédito a seu possuidor. A companhia pode realizar várias emissões, sempre por meio da assembléia geral, podendo dividi-las em séries, que guardarão, em cada conjunto, as mesmas características de valores nominais e a concessão de iguais direitos. No entendimento de Rizzardo21, o debenturista não se torna sócio da empresa, mas apenas seu credor, constituindo-se entre as partes uma relação de mútuo. De Plácido e Silva bem define as debêntures: ‘É permitido às sociedades por ações contraírem empréstimos em dinheiro, emitindo para garanti-los obrigações ou títulos ao portador’. A estes títulos ou obrigações é que se dá o nome de debêntures. Fazzio Júnior expõe que as debêntures são títulos nominativos representativos de empréstimo público contratado pela sociedade anônima. Para o autor, representam autênticos títulos de crédito (títulos executivos extrajudiciais), à medida que gozam dos atributos de autonomia e literalidade, conferindo direito de crédito contra a companhia. São títulos de dívida criados pela companhia.22 Não obstante a doutrina prevalecente relacionar as debêntures a um contrato de mútuo, o art. 52 da Lei n. 6.404/1976 dispõe que a companhia poderá emitir debêntures que conferirão aos seus titulares direito de crédito contra ela, nas condições constantes da escritura de emissão e, se houver, do certificado, em definição que se apresenta sensível à crítica de Valverde, já que não faz referência a um mútuo como causa. 19 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. Ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 307. 20 NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de empresa. 3. ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 416. 21 RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 325. 22 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 351. 18 Ainda nos aspectos conceituais das debêntures, uma questão que comporta ponderações é a sua classificação como “autêntico título de crédito” (como entende Fazzio Júnior na definição acima citada), já que elas não apresentam as características configuradoras dos títulos de crédito comuns. De fato, os atributos da incorporação e da literalidade, no caso das debêntures, apresentam significativas restrições. O atributo da incorporação, que “é a materialização do direito no documento (papel ou cártula), de tal forma que o direito (direito cartular) não poderá ser exercido sem a exibição do documento”23, está ausente na debênture, cuja emissão de certificado apresenta-se totalmente desnecessária, já que o certificado não se presta para comprovar a propriedade do direito ou sequer para transferi-lo. É que, com a adoção obrigatória da forma nominativa24 para as debêntures, o certificado de debênture tornou-se totalmente inútil. Isso porque, aplicando-se às debêntures as regras relativas às ações (art. 63 da LSA), a propriedade das debêntures presume-se mediante inscrição no livro próprio e a transferência opera-se por termo lavrado no livro de transferência. É o que dispõe o art. 31 da LSA, também aplicável às debêntures: Art. 31. A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome do acionista no livro de “Registro de Ações Nominativas” ou pelo extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações. § 1º A transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de “Transferência de Ações Nominativas”, datado e assinado pelo cedente e pelo cessionário, ou seus legítimos representantes. Ademais, no caso das debêntures escriturais, deve ser destacado que a lei proíbe a emissão de certificado, conforme se observa do art. 34 da LSA: “O estatuto da companhia pode autorizar ou estabelecer que todas as ações da companhia, ou uma ou mais classes delas, sejam mantidas em contas de depósito, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem emissão de certificados”. Assim, é forçoso reconhecer que o atributo da cartularidade, ou incorporação, está ausente nas debêntures, vez que estas não estão materializadas numa cártula ou documento e os debenturistas prescindem do certificado de debênture para comprovação de seu direito de crédito contra a companhia emissora. A esse respeito, cita-se lição de Carvalhosa25: 23 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, 70p. BRASIL. Lei 9.457/1997, art. 1º: “Art. 1º Os dispositivos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, abaixo enumerados, passam a vigorar com a seguinte redação: [...] “Art. 63. As debêntures serão nominativas, aplicando-se, no que couber, o disposto nas seções V a VII do Capítulo III” [...]”. 25 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Ed. de 1997. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 469. 24 19 E mesmo que se adotasse a forma nominativa registrada o certificado não seria, por um lado, suficiente para a configuração de sua propriedade e transferência de direitos e, por outro lado, também não seria apto para a prova de titularidade dos direitos inerentes a essa forma de título creditício. A emissão de certificado seria, pois, inteiramente dispensável, no caso, visto que tais documentos não cumpririam qualquer função constitutiva de direito. O debenturista não precisaria do documento cartular, já que sua qualidade de credor positivar-se-ia com a inscrição no livro próprio (art. 100), onde constaria o seu nome e o número de debêntures de que seria titular. Não teria, ademais, o debenturista necessidade do certificado para exercer os direitos de credor. O atributo da literalidade, que, segundo João Eunápio Borges, citado por Duarte26, determina a existência, o conteúdo e a extensão do título, também sofre relevante limitação nas debêntures, tendo em vista que a sua criação vincula-se à deliberação da assembléia geral de acionistas e que é a escritura de emissão que se reporta às condições deliberadas pelos acionistas. De fato, o art. 59 da LSA estabelece que a deliberação sobre a emissão de debêntures é de competência da assembléia de acionistas, que deve estipular o valor da emissão, o número de debêntures e o valor nominal, as garantias, a correção monetária, a conversibilidade ou não em ações, a época de vencimento, resgate ou amortização, os juros, participação nos lucros ou prêmio de reembolso e o modo de subscrição. Outrossim, é a escritura de emissão que se refere às cláusulas e condições da emissão estipuladas pela assembléia geral de acionistas, e não os títulos propriamente ditos, conforme estabelece o art. 61 da Lei n. 6404/1976: “A companhia fará constar da escritura de emissão os direitos conferidos pelas debêntures, suas garantias e demais cláusulas ou condições”. É justamente em razão das limitações sofridas pelos atributos da cartularidade ou incorporação e literalidade em relação às debêntures que Modesto Carvalhosa as classifica como título de crédito imperfeito e, ao mesmo tempo, considera interessante a teoria que aventa substituir a sua classificação de título de crédito pela de título de participação.27 26 COSTA, 2003, p. 71. CARVALHOSA, 1997, p. 472: “Sendo, como vimos, um título de crédito imperfeito, a que não se aplicam plenamente os princípios configuradores dos títulos de crédito propriamente ditos, também se aventou em substituir o conceito de título de crédito pelo de título de participação. Não de todo improcedente essa teoria. Leva em conta a prevalência do direito de crédito diante da sociedade emitente, chamando, no entanto, a atenção para o fato de que as debêntures também dão direito de intervenção e fiscalização junto à sociedade devedora, por meio de órgãos da comunhão legalmente constituídos, como o agente fiduciário e a própria assembléia geral dos debenturistas (arts. 66, 67, 68, 69 e 71). [...]. Pode-se, portanto, considerar interessante a teoria do título de participação, ao destacar que as debêntures não são puros títulos-valores, de conteúdo puramente creditício, na medida em que atribuem a seus titulares, coletivamente, direitos relativos à vida societária enquanto credores em massa da mesma”. 27 20 Entretanto, conforme reconhece o próprio CARVALHOSA28, “a inclusão das debêntures na categoria dos títulos de crédito é pacífica tanto na doutrina nacional como na estrangeira”, de sorte que as limitações apresentadas pelas debêntures em relação às características da cartularidade e da literalidade não representam óbice a sua classificação como título de crédito. O atributo da cartularidade tem sido preterido pelo cotidiano negocial, que, cada vez mais, tem elegido a internet como instrumento hábil para a celebração de negócios jurídicos, justamente porque ela dispensa a movimentação física dos instrumentos tradicionais de negociação, vencendo distâncias reais que antes constituíam impedimentos naturais à celebração de operações comerciais. A doutrina, atenta à adoção do comércio eletrônico como instrumento para a celebração de negócios jurídicos, logo defendeu a desmaterialização do título de crédito. Nesse sentido, Borba29 sustenta que “a cártula eletrônica seria, portanto, nada mais do que o conjunto de dados do título consubstanciados na memória ou registro magnético de um sistema de computação”. O Código Civil, em seu art. 889, §3º, dispõe que o título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou por meio técnico equivalente e que constam da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo. Embora este diploma pareça ter reconhecido o título de crédito eletrônico, há contradição fragorosa no texto legal, que mereceu acertada crítica de Costa30: Os requisitos mínimos apontados no Código são: a) data da emissão; b) a indicação precisa dos direitos que confere e c) a assinatura do emitente. É possível que os dois primeiros requisitos possam ser emitidos a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente (fax, por exemplo). Mas a assinatura não passa, pois ela há de ser autêntica e não via scanner, foto ou algum meio eletrônico. Também não se trata de assinatura criptografada, pois assim não regulou o Código, que nada dispôs sobre a autenticidade de assinatura por meio eletrônico. Verdade é que não se pode obrigar alguém por assinatura enviada via computador (modo virtual), a não ser que queiram ajudar a promover fraude. A ressalva apresentada pelo Professor Wille Duarte Costa é totalmente verdadeira em relação ao título de crédito previsto no Código Civil, às letras de câmbio, às notas promissórias, às duplicatas e aos cheques, já que todas as legislações especiais, as quais 28 CARVALHOSA, 1997, p. 465. BORBA, Gustavo Tavares. A desmaterialização dos títulos de crédito. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 14, 1999, p. 95. 30 COSTA, 2003, p. 125. 29 21 continuam a reger os títulos de crédito31, apontam como requisito essencial dos títulos a assinatura do devedor ou a adoção de uma cártula. Entretanto, relativamente às debêntures, a lei dispensa a emissão de certificado; ou melhor, até mesmo veda, em se tratando de títulos escriturais. Por esse motivo, pode-se afirmar que elas prescindem do requisito da cartularidade e constituem, assim, um autêntico título imaterial, mas que, nem por isso, perdem a condição de título de crédito. Nesse diapasão, a lição de Borba32: “As debêntures escriturais, ao serem emitidas, embora apresentando a condição de um título imaterial, mantêm e preservam todas as prerrogativas próprias de um título de crédito, inclusive a condição de título executivo extrajudicial.” Lado outro, no que diz respeito à característica da literalidade, assegura Borges33 que tal requisito não deve ser confundido com independência, plenitude – a completezza dos autores italianos –, porque não exclui a possibilidade de elementos estranhos ao documento, e por ele invocados de modo explícito ou implícito, virem a integrar a declaração constante do título. Assim, apesar de as debêntures possuírem restrições às características da cartularidade e da literalidade, é correto qualificá-las como títulos de crédito, ainda que imperfeitos. E, como tais, resta saber se são classificadas como títulos de crédito abstratos, isto é, daqueles que não se indaga a origem, ou como títulos de crédito causais, cuja validade está efetivamente vinculada a sua origem. Em virtude de a Lei n. 6.404/1976 não fazer referência a um contrato de mútuo ou empréstimo como base da emissão de debênture, Borba34 defende que a debênture ganhou em nosso sistema, muito mais claramente, o sentido de um título de crédito abstrato. Destaca esse entendimento que a causa de emissão de debênture pode ser não só um empréstimo tomado ao público, mas também qualquer outra causa legalmente admissível. Segundo o ilustre comercialista, as debêntures de uma mesma série poderão, até mesmo, ter a sua distribuição no mercado por negócios jurídicos diversificados, destinando-se uma parte da série para a captação de recursos (mútuo), uma parte para garantir obrigações da empresa e, ainda, uma outra parte para a doação a uma fundação de empregados. Dessa forma, Borba, conclui que a debênture é um título abstrato de dívida. 31 BRASIL. Código Civil, art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código. 32 BORBA, 2005, p. 126. 33 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 13. 34 BORBA, 2005, p. 20. 22 Entretanto, em que pese ao entendimento do citado comercialista, a diversidade de negócios jurídicos realizados por ocasião da distribuição/colocação das debêntures é subjacente a sua emissão, razão pela qual não parece acertado tal fundamento defender a abstração do título. As debêntures, na realidade, permanecem vinculadas às cláusulas da escritura de emissão, o que lhes confere o status de títulos causais. Nesse sentido, Carvalhosa35 explica que “a causalidade das debêntures advém da vinculação às cláusulas alteráveis de sua emissão, consubstanciadas na escritura de emissão em adventos posteriores (art. 71) e não nos negócios subjacentes à sua criação”. E, de fato, se a lei permite a modificação da escritura de emissão e a extensão das novas condições aos debenturistas, a debênture é um título causal, eis que vinculada à origem. 35 CARVALHOSA, 1997, p. 468. 23 3 CARACTERÍSTICAS GERAIS 3.1 Competência para emissão A competência, a priori, para deliberar acerca da emissão de debêntures é da assembléia geral de acionistas, conforme art. 122, inciso IV, da LSA. Entretanto, em se tratando de companhia aberta, o Conselho de Administração pode deliberar sobre a emissão de debêntures simples, não conversíveis em ações e sem garantia real, como prevê a exceção contida no §1º do art. 59 da LSA. Segundo Carvalhosa36, o legislador, ao mencionar debênture “simples”, quis se referir à debênture sem garantia flutuante, ou seja, sem o privilégio geral sobre o crédito da companhia. Assim, em se tratando de debênture não conversível em ação e sem garantia – isto é, aquela que confere ao seu titular o status de credor quirografário – o Conselho de Administração pode deliberar a sua emissão, caso a companhia seja aberta. Nesse viés, a companhia, por intermédio de seu órgão competente, ao deliberar sobre a emissão de debênture, deverá fixar o valor da emissão e sua divisão em séries, o número das debêntures, as garantias, a conversibilidade ou não em ação, a época e as condições de vencimento, amortização ou resgate, a época e as condições de pagamento de juros e outros direitos, bem como o modo de subscrição e a sua colocação no mercado. 3.2 Escritura de emissão Definidas as condições de emissão pelo órgão competente, estas deverão constar de uma escritura de emissão, que pode ser elaborada por instrumento tanto público como particular, de modo que defina tanto as obrigações da companhia emissora como os direitos que serão conferidos aos investidores que se interessarem na subscrição das debêntures. 36 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações das Leis nº 9.457, de 5 de maio de 1997 e 10.303, de 31 de outubro de 2001. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 695. 24 Como a elaboração da escritura de emissão não permite a participação dos futuros investidores (debenturistas), o mútuo debenturístico tem natureza de contrato de adesão. De fato, Pereira37 chama de “contratos de adesão aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra”. Entretanto, deve-se destacar que o empréstimo mediante a emissão de debêntures é que contém natureza de contrato de adesão, e não a escritura de emissão propriamente dita. É que esta não tem natureza contratual, por constituir, na realidade, uma declaração unilateral de vontade. Nesse sentido, cita-se escólio de Teixeira e Guerreiro38: À primeira vista, poder-se-ia pensar que a escritura constituísse o instrumento do contrato de empréstimo subjacente à emissão de debêntures. Não entendemos assim. Parece-nos que a escritura de emissão não se reveste do caráter de instrumento contratual, a refletir a bilateralidade inerente ao mútuo, mas, ao contrário, exprimirá uma declaração unilateral de vontade, por parte da companhia emissora, contendo as cláusulas, garantias e condições oferecidas aos tomadores das debêntures. Temos para nos que a formalização do empréstimo mediante debêntures se concretiza com a efetiva prestação de numerário pelos debenturistas, que aderem às disposições da escritura. Daí entendermos acertada a lição de Waldemar Ferreira, segundo a qual o contrato de empréstimo mediante debêntures (que sucede, no tempo, a celebração da escritura) outro não é senão o chamado contrato de adesão. Assim, se é a companhia emissora que define, com plena liberdade, as obrigações por ela assumidas e os direitos que serão atribuídos aos debenturistas, é inegável a natureza de contrato de adesão do mútuo debenturístico, razão pela qual, caso haja dúvida ou contradição no instrumento de emissão, será adotada a interpretação mais favorável ao debenturista. Daí ser importante que a escritura de emissão, não apenas por determinação legal, mas em razão do próprio interesse da companhia emissora, estabeleça literalmente todas as obrigações contraídas pela companhia, bem como os direitos adquiridos pelos debenturistas, que são o crédito expresso pelo valor nominal, a correção monetária, os juros e a conversão do título em ação, entre outros. 37 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 72. TEIXEIRA. Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979, p. 362. 38 25 3.3 Emissão pública e privada A legislação brasileira não conceituou o que seja emissão pública, mas apenas descreveu suas características, a saber: utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição destinados ao público; procura de subscritores para os títulos por meio de empregados ou corretores; e negociação feita em estabelecimento aberto ao público ou com a utilização dos serviços públicos de comunicação.39 Identificam-se aspectos importantes na distinção entre emissão pública e emissão privada de quaisquer valores mobiliários, até mesmo debêntures, visto que a primeira está submetida ao poder fiscalizatório da Comissão de Valores Mobiliários, a qual possui o dever, entre outras atribuições, de proteger os investidores contra a emissão irregular de valores mobiliários, conforme art. 4º da Lei n. 6.385/1976. Ademais, a emissão pública de valores mobiliários somente pode ser realizada por companhia que esteja registrada na CVM, posto que, nos termos do art. 1º da Instrução Normativa de n. 202 da CVM, a negociação de valores mobiliários no mercado de valores mobiliários depende de prévio registro da companhia na Comissão de Valores Mobiliários.40 39 BRASIL. Lei 6.385/1976. Art. 19. §3°- Caracterizam a emissão pública: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios destinados ao público; II - a procura de subscritores ou adquirentes para os títulos por meio de empregados, agentes ou corretores; III - a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público, ou com a utilização dos serviços públicos de comunicação. Brasil. Instrução Normativa n. 400 da Comissão de Valores Mobiliários. Art. 3º. São atos de distribuição pública a venda, promessa de venda, oferta à venda ou subscrição, assim como a aceitação de pedido de venda ou subscrição de valores mobiliários, de que conste qualquer um dos seguintes elementos: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios, destinados ao público, por qualquer meio ou forma; II - a procura, no todo ou em parte, de subscritores ou adquirentes indeterminados para os valores mobiliários, mesmo que realizada através de comunicações padronizadas endereçadas a destinatários individualmente identificados, por meio de empregados, representantes, agentes ou quaisquer pessoas naturais ou jurídicas, integrantes ou não do sistema de distribuição de valores mobiliários, ou, ainda, se em desconformidade com o previsto nesta Instrução, a consulta sobre a viabilidade da oferta ou a coleta de intenções de investimento junto a subscritores ou adquirentes indeterminados; III - a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público destinada, no todo ou em parte, a subscritores ou adquirentes indeterminados; ou IV - a utilização de publicidade, oral ou escrita, cartas, anúncios, avisos, especialmente através de meios de comunicação de massa ou eletrônicos (páginas ou documentos na rede mundial ou outras redes abertas de computadores e correio eletrônico), entendendo-se como tal qualquer forma de comunicação dirigida ao público em geral com o fim de promover, diretamente ou através de terceiros que atuem por conta do ofertante ou da emissora, a subscrição ou alienação de valores mobiliários. 40 Instrução Normativa de n. 202. Comissão de Valores Mobiliários. Art. 1º: A negociação de valores mobiliários, emitidos por sociedades por ações, em Bolsas de Valores ou no mercado de balcão, depende de prévio registro da companhia na Comissão de Valores Mobiliários - CVM, de acordo com as normas previstas na presente Instrução. 26 Ainda a respeito do referido normativo, o seu art. 5º determina que para a companhia ser registrada na CVM o estatuto social ou o Conselho de Administração deve atribuir a um diretor a função de relações com investidores, que poderá ou não ser exercida cumulativamente a outras atribuições executivas. Tal providência constitui, assim, requisito preliminar para o registro de companhia aberta. O pedido de registro de companhia aberta na CVM deve ser instruído com ata de reunião do Conselho de Administração ou da Assembléia Geral que houver designado o diretor de relação com investidores; com informações sobre as principais características da distribuição de valores mobiliários; demonstrações financeiras; e parecer do auditor independente, além de outros documentos referidos no art. 7º da I.N. n. 202/2003.41 41 Instrução Normativa de n. 202 da Comissão de Valores Mobiliários. Art. 7º: “O pedido de registro de companhia deverá ser instruído com os seguintes documentos: I - ata de reunião do Conselho de Administração ou da Assembléia Geral que houver designado o diretor de relação com investidores (art. 5º); II - requerimento assinado pelo diretor de relação com investidores, contendo informações sobre : a) principais características da distribuição de valores mobiliários; ou b) dispersão acionária da companhia indicando a forma pela qual suas ações foram distribuídas no mercado, anexando lista nominal dos atuais acionistas e respectivas quantidades de ações possuídas; ou c) outras razões que justifiquem o pedido de registro. III - quando se tratar de pedido de registro para negociação em Bolsa de Valores ou mercado de balcão organizado, declaração da entidade informando do deferimento do pedido de admissão à negociação do valor mobiliário da companhia, condicionado apenas à obtenção do registro na CVM; IV - exemplar atualizado do estatuto social; V - demonstrações financeiras e notas explicativas previstas no artigo 176 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, referentes aos três últimos exercícios sociais, indicando-se os jornais e as datas em que forem publicadas; VI - demonstrações financeiras referentes ao último exercício social ou levantadas em data posterior ao encerramento do exercício social elaboradas em moeda de capacidade aquisitiva constante, nos termos da regulamentação emanada da CVM; VII - relatório da administração referente ao último exercício social, elaborado de acordo com o artigo 133 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e com o Parecer de Orientação CVM nº 15, de 28 de dezembro de 1987; VIII - parecer do auditor independente, devidamente registrado na CVM, relativo às demonstrações financeiras do último exercício social (inciso V) e relativo as demonstrações financeiras referidas no inciso VI acima; IX - demonstrações financeiras consolidadas, elaboradas de acordo com a legislação em vigor (Lei nº 6.404/76, artigos 249 e 250, e regulamentação da CVM, e também em moeda de capacidade aquisitiva constante, acompanhadas de notas explicativas e de parecer de auditor independente, referentes ao último exercício social, ou levantadas em data posterior ao encerramento do mesmo, caso nesse período os investimentos adicionados aos créditos de qualquer natureza em controladas representem mais de trinta por cento do patrimônio líquido da companhia; X - demonstrações financeiras e, se for o caso, demonstrações consolidadas, acompanhadas de notas explicativas e parecer de auditor independente devidamente registrado na CVM, elaboradas de acordo com as disposições da Lei nº 6.404/76 e em moeda de capacidade aquisitiva constante, levantadas em data que anteceder, no máximo, três meses o pedido de registro na CVM, quando: a) o último exercício social for de doze meses e, na data do pedido de registro, já tiver transcorrido período igual ou superior a quarenta e cinco dias da data de encerramento do último exercício social; b) o último exercício social compreender período superior a doze meses e a companhia ainda não tiver levantado as respectivas demonstrações financeiras; c) o exercício social em curso compreender período superior a doze meses e, na data do pedido de registro, já tiver transcorrido período igual ou superior a doze meses. XI - atas de todas as assembléias-gerais de acionistas, realizadas nos doze meses anteriores à data de registro na CVM; XII - fac-símile dos certificados de todos os tipos de valores mobiliários emitidos pela companhia ou, se for o caso, cópia do contrato mantido com instituição para execução de serviço de ações escriturais; 27 Além do registro de companhia aberta na CVM, o art. 19 da Lei n. 6.385/1976 dispõe que nenhuma emissão pública de valores mobiliários será distribuída no mercado sem prévio registro na Comissão. De igual sorte, o art. 2º da Instrução Normativa n. 400 da Comissão de Valores Mobiliários dispõe que toda oferta pública de valores mobiliários nos mercado primário e secundário deve ser submetida a prévio registro na CVM.42 A distribuição pública de valores mobiliários só poderá ser efetuada com a intermediação das instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários43, cuja principal atribuição, entre outras, é a de ter cautela e diligência para assegurar que as informações prestadas pelo ofertante são verdadeiras, permitindo aos investidores a tomada de uma decisão fundamentada a respeito da oferta.44 A Comissão de Valores Mobiliários poderá indeferir o pedido de registro por inviabilidade ou temeridade do empreendimento, ou por inidoneidade dos fundadores, quando se tratar de constituição de companhia; ou quando não forem cumpridas as exigências formuladas pela CVM45. Entretanto, Eizirik46, relativamente à emissão de debêntures, sustenta que a CVM não pode fazer juízo meritório, mas apenas formal: Entre nós, da mesma forma, não compete à CVM realizar qualquer exame sobre a qualidade dos títulos ofertados, sobre a empresa emissora, ou mesmo sobre a conveniência da emissão pública. A única hipótese de exame de mérito da emissão por parte da CVM é aquela prevista no art. 82 da Lei das S.A., relativo à constituição da companhia mediante subscrição pública de ações, de raríssima ocorrência na prática. XIII - quando se tratar de companhia em fase pré-operacional, estudo de viabilidade econômico-financeira do projeto, indicando, inclusive, os fatores de risco envolvidos no empreendimento, elaborado em data que anteceder em até três meses a entrada do pedido na CVM; XIV - formulário de Informações Anuais - IAN (artigos 22 e 23); XV - formulário de Demonstrações Financeiras Padronizadas - DFP apresentadas em moeda de capacidade aquisitiva constante (artigos 22 e 23); XVI - formulário de Informações Trimestrais - ITR contendo informações sobre os três primeiros trimestres do exercício social em curso, elaboradas em moeda de capacidade aquisitiva constante, desde que transcorridos mais de quarenta e cinco dias do encerramento de cada trimestre, acompanhadas de Relatório sobre Revisão Especial, emitido por auditor independente, devidamente registrado na CVM, consoante metodologia prevista no Comunicado Técnico - CT-IBRACON nº 2, de 23 de julho de 1990, do Instituto Brasileiro de Contadores, aprovado pela Resolução CFC nº 678, de 24 de julho de 1990, do Conselho Federal de Contabilidade (artigos 22 e 23).” 42 Instrução Normativa de n. 400. Comissão de Valores Mobiliários. Art. 2º. “Toda oferta pública de distribuição de valores mobiliários nos mercados primário e secundário, no território brasileiro, dirigida a pessoas naturais, jurídicas, fundo ou universalidade de direitos, residentes, domiciliados ou constituídos no Brasil, deverá ser submetida previamente a registro na Comissão de Valores Mobiliários – CVM, nos termos desta Instrução. 43 Instrução Normativa de n. 400. Art. 3º. §3º: A distribuição pública de valores mobiliários só poderá ser efetuada com intermediação das instituições integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários (“Instituições Intermediárias”), ressalvada a hipótese de dispensa específica deste requisito, concedida nos termos do art. 4º.” 44 Instrução Normativa de n. 400. Art. 56. 45 Instrução Normativa de n. 400. Art. 16. 46 EIZIRIK, Nelson. Emissão de debêntures. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 101, p. 42-47, 1996, p. 42. 28 Assim, por ocasião da emissão pública de debêntures, a CVM não pode entrar no exame do mérito dos títulos, nem da qualidade da companhia, nem da conveniência da colocação pública. Não obstante a posição defendida por Eizirik, é fora de dúvida que o objetivo básico do registro da emissão pública é o de assegurar a proteção dos interesses do público investidor e do mercado em geral. Tal atuação conduz à conclusão de que a Comissão de Valores Mobiliários poderá fazer juízo meritório acerca da qualidade da companhia, conforme preconiza o art. 16 da Instrução Normativa de n. 400 da CVM. Lado outro, em se tratando de emissão privada, a qual não tem por objetivo captar de recursos financeiros junto a um público indeterminado, não há necessidade de prévio registro da companhia ou dos valores mobiliários na Comissão de Valores Mobiliários e tampouco a emissão está condicionada ao deferimento por parte da citada autarquia federal. Feitas tais considerações, infere-se que na emissão privada as condições da escritura de emissão serão livremente estabelecidas pela assembléia de acionistas da companhia emissora, sem que haja qualquer interferência da Comissão de Valores Mobiliários. A análise da operação caberá exclusivamente ao investidor, que, no exercício da autonomia da vontade, poderá aderir ou não à escritura de emissão. 3.4 Valor nominal Por ter natureza de título de crédito, é inegável que a debênture tem valor nominal, posto que se assim não fosse não portaria liquidez. E, de fato, o art. 54 da LSA dispõe que “a debênture terá valor nominal expresso em moeda nacional, salvo nos casos de obrigação que, nos termos da legislação em vigor, possa ter o pagamento estipulado em moeda estrangeira”. A regra geral, portanto, é que o valor nominal da debênture esteja expresso em moeda nacional, o que se alinha ao art. 1º do Decreto-lei n. 857/1969, que dispõe que são nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro. 29 O chamado “curso forçado da moeda nacional” – adoção obrigatória da moeda nacional – ficou ainda mais fortalecido com o advento do Código Civil de 2002, que estabelece, em seu art. 318, que “são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e a moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial”. Admite-se, contudo, o pagamento em moeda estrangeira no caso expresso no art. 2º do Decreto-lei n. 857/1969, o qual dispõe que a vedação de estipulação de pagamento em moeda estrangeira não se aplica “aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional”. Dessarte, é possível concluir que as debêntures, caso sejam emitidas com o objetivo de serem oferecidas exclusivamente a investidores residentes e domiciliados no exterior, poderão ter o seu valor nominal expresso em moeda estrangeira. É que, sendo o art. 2º do Decreto-lei n. 857/1969 norma de caráter especial, autoriza a emissão na hipótese por ele excepcionada. 3.5 Correção monetária A debênture, por ser um instrumento de empréstimo de longo prazo, deve conter cláusula de correção monetária, a fim de que o seu valor nominal não se desvalorize com o decorrer do tempo. Caso não tenha cláusula de correção monetária, a debênture perde a sua atratividade em relação ao público investidor, deixando de ser um eficiente instrumento de captação de recursos em favor da companhia emissora. No Brasil, a debênture com correção monetária foi introduzida pela Lei n. 4.728/65, que, em seu art. 26, dispunha que as sociedades por ações poderiam emitir debêntures com cláusula de correção monetária, desde que observadas determinadas condições, entre elas a da correção ser efetuada em períodos não inferiores a 3 (três) meses e em bases idênticas às aplicáveis às Obrigações do Tesouro Nacional. Posteriormente, com o advento da Lei n. 6.404/76, permitiu-se a emissão de debênture com cláusula de correção monetária baseada nos índices fixados para a correção monetária dos títulos da dívida pública e na variação de taxa cambial. Entretanto, sobreveio a 30 Lei n. 6.423/7747, que determinou a correção monetária de todas as obrigações pecuniárias com base nas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN). Em face do caráter geral da Lei n. 6.423/77, sobreveio a discussão se ela teria o poder de revogar parte do parágrafo único do art. 54 da Lei n. 6.404/76, que tratava especificamente de debênture. A Comissão de Valores Mobiliários, no Parecer CVM/SJU n 65/83, defendeu que a correção monetária das debêntures não poderia ser fixada em índice diferente daquele previsto na Lei n. 6.423/77. Seguiram-se várias normas que ora permitiam a correção monetária da debênture com base na variação cambial, ora proibiam, como as leis que trataram do Plano Real. Contudo, a base da controvérsia acerca da admissibilidade, ou não, da correção da debênture com base em variação cambial reside justamente em avaliar se as leis gerais que sucederam a Lei n. 6.404/76 tiveram o condão de revogá-la, mesmo sendo lei especial. As regras básicas de hermenêutica jurídica atestam que lei geral não revoga lei especial, razão pela qual se pode concluir que, em relação às debêntures, é permitida a sua indexação à variação cambial desde a Lei n. 6.404/76. Não obstante, com o advento da Lei n. 10.303/2001, desapareceu qualquer controvérsia sobre a possibilidade de a debênture estar indexada à taxa de variação cambial. De fato, a Lei n. 10.303/2001 converteu o parágrafo único do art. 54 da Lei n. 6.404/76 em parágrafo primeiro, atribuindo-lhe nova redação, in verbis: “A debênture poderá conter cláusula de correção monetária, com base nos coeficientes fixados para correção monetária da dívida pública, na variação da taxa cambial ou em outros referenciais não expressamente vedados em lei”. Sendo a Lei n. 10.303/2001 uma norma especial posterior à Lei n. 6.423/77, a qual supostamente teria restringindo a correção monetária de debênture ao câmbio, não resta dúvida de que hoje a debênture pode estar indexada não apenas à variação cambial, mas a quaisquer índices para a correção de dívida pública ou outros referenciais não expressamente vedados por lei. Assim, é forçoso reconhecer que, atualmente, aos órgãos reguladores falece competência para restringir a adoção de qualquer referencial como indexador de correção monetária para as debêntures, posto que a partir da vigência da Lei n. 10.303/2001 somente à 47 BRASIL. Lei 6.423/1977. Art. 1º. “A correção, em virtude de disposição legal ou estipulação de negócio jurídico, da expressão monetária de obrigação pecuniária somente poderá ter por base a variação nominal da Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN)”. 31 lei é dada tal possibilidade, conforme se observa do disposto do §1º do art. 54 da Lei das Sociedades por Ações. 3.6 Rendimentos O art. 54 da LSA dispõe que “a debênture poderá assegurar ao seu titular juros, fixos ou variáveis, participação no lucro da companhia e prêmio de reembolso”. O legislador concedeu à companhia emissora ampla liberdade para, na elaboração da escritura de emissão, estabelecer um critério de remuneração que atenda aos seus interesses e seja atrativa como investimento. As vantagens a serem conferidas pela debênture – juros, participação nos lucros e prêmio de reembolso – são facultativas, podendo acumular-se ou não. Embora não seja comum, é possível a emissão de debênture sem rendimento, já que o art. 56 da LSA dispõe ser uma faculdade da companhia emissora a estipulação de rendimento. Nesse sentido, a lição de Valverde48: “Não conhecemos exemplo, mas é possível a emissão de debêntures sem a fixação de juro. Isso pode acontecer na emissão destinada a solver dívidas da companhia emissora, cujas debêntures deverão ser resgatadas em breve termo”. Contudo, é natural que a escritura de emissão de debêntures contenha a estipulação de alguma remuneração, já que, do contrário, não seria atrativa aos olhos dos investidores. Daí porque, quase sempre, as debêntures conferem a seus possuidores o direito de receberem juros, variáveis ou não, participarem dos lucros ou de receberem prêmio de reembolso. 3.6.1 Taxa de juros No que diz respeito ao juro, o encargo pode ser estipulado em taxa fixa ou taxa variável. Sendo fixa, a escritura de emissão irá estabelecer o valor anual da taxa; sendo variável, a taxa estará atrelada a algum sistema de remuneração qualquer, como a TR (taxa 48 VALVERDE, 1959, p. 177. 32 referencial), a TJLP (taxa de juros a longo prazo) e a SELIC (Sistema Especial de Liquidação e Custódia). Independentemente de a taxa de juros ser fixa ou variável, discute-se se os juros estipulados na escritura de emissão da debênture devem ou não obedecer às normas legais que limitam a cobrança de juros, especificamente o art. 59149 do Código Civil ou o Decreto n. 22.626/1933, que, em seu art. 1º, dispõe ser vedado estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal. A princípio, pontua-se que o Supremo Tribunal Federal, na Súmula n. 596, excluiu a aplicação da Lei da Usura às instituições financeiras ao determinar que “as disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional”. Assim, não sendo os debenturistas instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional, poder-se-ia supor que a taxa de juros estabelecida na escritura de emissão de debêntures deve obedecer ao limite imposto pelo Decreto n. 22.626/1933, visto que, a teor da Súmula n. 596 do STF, tal regulamento somente não seria aplicável às instituições financeiras. Nesse diapasão, Modesto Carvalhosa50 noticia que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento à Apelação Cível de número 289.991, ocorrido em 28 de junho de 1979, estabeleceu que o mútuo debenturístico deve observar o limite máximo de juros constante do art. 1º do Decreto n. 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei da Usura). Franco e Sztajn51 defendem que “aplica-se às debêntures, em todo o seu teor, o disposto na norma do art. 591 do CC/2002 ordenando o pagamento de juros ademais de outras retribuições que possam ser estabelecidas como renda, participação nos lucros ou o prêmio no valor de reembolso”. Ao que parece, as autoras admitem que os juros estabelecidos para as debêntures devam limitar-se ao teto referido no dispositivo de lei. Entretanto, o entendimento de que o art. 591 do CC e a Lei da Usura são aplicáveis ao mútuo debenturístico é criticável, pelo fato de retirar da debênture a competitividade para concorrer com inúmeras outras modalidades de investimento. Com 49 BRASIL. Código Civil. Art. 591: Destinando-se a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual. 50 CARVALHOSA, 2002, p. 649. 51 FRANCO, Vera Helena de Mello; SZTAJN, Rachel. Manual de Direito Comercial: sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. v. 2, p. 116. 33 efeito, a limitação dos juros incidentes à taxa legal retiraria da debênture a eficiência que lhe é peculiar como instrumento de captação de recurso. Além dos inconvenientes econômicos da aplicação da Lei da Usura às debêntures, destaca-se que a escritura de emissão, por constituir uma declaração unilateral de vontade, não tem natureza contratual. Portanto, considerando que o art. 591 do Código Civil e o art. 1º do Decreto n. 22.626/33 regulam os juros ajustados em contrato, não são aplicáveis à escritura de emissão, que é uma declaração unilateral de vontade. Ademais, é inadmissível que a companhia emissora, ao elaborar a escritura de emissão, estipule determinada taxa de juros e, posteriormente, possa alegar a ilegalidade da cláusula pelo fato de ter sido estipulada acima do limite legal. Caso assim agisse, a companhia estaria se valendo de sua própria torpeza para obter vantagem, o que é inadmissível pelos princípios gerais de direito. Peixoto52, examinando o §7º do art. do Dec. n. 177-A, de 1893, já explicava que a regra geral é que a nulidade do empréstimo só ocorre em benefício dos debenturistas. Não é dado à sociedade invocá-la, pois não lhe é possível beneficiarse com seus erros. A sociedade é sempre responsável pelos empréstimos, como pelas debêntures por ela emitidas. Exatamente nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ao recurso especial de n. 784.881-CE, relatado pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, concluiu que a companhia emissora não pode vir a juízo alegar a existência de cláusulas abusivas, em acórdão publicado no D.O. de 18 de dezembro de 2006, p. 379, assim ementado: Debêntures. Emissão: condições. Cláusulas abusivas. 1. A emissão de debêntures é de competência privativa da assembléia geral da emitente, que estabelece as condições gerais de lançamento, não podendo depois, no momento do resgate, argüir a existência de cláusulas abusivas alcançando a remuneração estipulada em prejuízo dos investidores que acreditaram na oferta mais atrativa. 2. Recurso especial não conhecido. Nos fundamentos de seu voto, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito destacou que não há que impugnar as condições da emissão com base no Decreto-Lei n 22.626/33, posto que, embora não se trate de contratos bancários, não quer dizer que as 52 PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedades por ações: comentários ao Decreto-lei n. 2.627, de 26 de setembro de 1940, com as alterações da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, Lei do mercado de capitais. São Paulo: Saraiva, 1972-73, p. 167. 34 condições remuneratórias para captação de investidores por meio de debêntures estejam subordinadas ao sistema de usura. O acórdão fundamenta a sua conclusão pela simples razão de que foi a própria companhia emissora, por meio de sua assembléia-geral, a responsável pela estipulação de atrativos para trazer recursos necessários ao desenvolvimento de suas atividades industriais. Por esse motivo, não há como identificar cláusula abusiva, porque não se pode imputar tal favor em proveito daquele que a estipulou. E, finalmente, o ministro relator Carlos Alberto Menezes Direito ainda destacou que, se admitida a pretensão da companhia emissora de modificar a taxa de juros, equivalerse-ia a escancarar a porta do mercado de debêntures a todo tipo de manobra em prejuízo do investidor que acreditou nas condições aprovadas pela emitente por seu órgão diretivo, que detém competência privativa para tanto. Assim, considerando que o Código Civil e a Lei da Usura referem-se à limitação de juros ajustados exclusivamente mediante contrato e que a companhia emissora, após estipular unilateralmente determinada condição para a emissão de debêntures, não poderia se insurgir contra tal condição, é certo considerar que não há limite legal para a estipulação da taxa de juros para as debêntures. 3.6.2 Participação nos lucros As debêntures, quando conferem a seus titulares o direito de participar nos lucros da companhia emissora, deixam de ser um título de renda fixa e passam a ter o seu rendimento condicionado ao lucro do exercício, tornando a remuneração do capital contingente e eventual. Assim, questiona-se se a debênture que confere direito à participação nos lucros seria uma obrigação condicionada. Carvalhosa53 explica que os titulares de debêntures com rendimentos em lucros têm uma pretensão decorrente da obrigação assumida pela companhia de pagar determinado percentual do lucro anualmente apurado. Trata-se de direito certo, a que corresponde uma obrigação, cuja exigibilidade pode não se configurar em determinados exercícios, mas que nem por isso possui as características de obrigação condicionada. 53 CARVALHOSA, 2002, p. 597. 35 Outrossim, explicada a certeza da obrigação dos titulares das debêntures com rendimentos em participação nos lucros, pontua-se que a companhia emissora, a cada exercício social, estará obrigada a verificar qual foi o lucro daquele exercício, a fim de que possa destinar o percentual constante da escritura de emissão aos debenturistas e satisfazer a sua obrigação. Para fins de apuração do lucro que servirá de parâmetro para a remuneração das debêntures, deve-se ter em conta que não poderão ser deduzidos do resultado os prejuízos acumulados relativos aos exercícios anteriores. É que, diferentemente dos empregados, administradores e beneficiários, que têm direito à participação nos lucros, o debenturista é credor da companhia. Assim, não se aplica à apuração do lucro que servirá de parâmetro para a fixação da remuneração das debêntures que conferem direito à participação nos lucros o disposto no art. 189 do LSA, que dispõe que “do resultado do exercício serão deduzidos, antes de qualquer participação, os prejuízos acumulados e a provisão para o Imposto sobre a Renda”. Aliás, nesse sentido, cita-se o escólio de Borba54: Os prejuízos acumulados, que provêm de outros exercícios, não poderão, contudo, reduzir a base de cálculo das participações dos debenturistas, uma vez que estas têm por pressuposto o lucro do exercício. Assim, quando o art. 189 se refere a “qualquer participação”, a referência, obviamente, não alcança as participações dos debenturistas, mas apenas, conforme enumerado no art. 190, “as participações estatutárias dos empregados, administradores e partes beneficiárias”, que são atribuições de natureza interna. Conclui-se que a participação dos debenturistas será paga após a dedução da provisão de imposto de renda. É inadmissível, portanto, que se decotem os prejuízos dos exercícios anteriores e as participações dos empregados, administradores e beneficiários para a fixação do lucro da companhia emissora que servirá de parâmetro para pagamento dos rendimentos aos debenturistas. 54 BORBA, 2005, p. 56. 36 3.6.3 Prêmio de reembolso Carvalho de Mendonça55 já explicava que “a diferença entre o capital recebido e o capital a reembolsar, por outra (sic) palavras, entre a taxa de emissão e o preço de reembolso, chama-se prêmio de reembolso”. Embora reconhecesse a possibilidade do pagamento do prêmio de reembolso, o autor ponderava que ela parecia ir de encontro ao art. 1256 do Código Civil 1.916, que mandava restituir o mútuo na mesma quantidade. Entretanto, o art. 1.256 do Código Civil de 1916, que corresponde ao art. 586 do Novo Código Civil, diz respeito apenas a contrato. A escritura de emissão, por não conter natureza contratual, e sim de declaração unilateral de vontade, pode, assim, estabelecer o prêmio de reembolso, sem que isso signifique afronta à regra de que se deve restituir o mútuo na mesma quantidade. Ademais, a possibilidade de emitir debênture com prêmio de reembolso está expressamente prevista no art. 55 da LSA, que dispõe que “a debênture poderá assegurar ao seu titular juros, fixos ou variáveis, participação no lucro da companhia e prêmio de reembolso”. Assim, não cabe nenhuma discussão acerca da legalidade do prêmio de reembolso. Aliás, o que se pode questionar é se é possível a emissão de debêntures conversíveis em ações com prêmio de reembolso, vez que a Lei n. 6.404/76, em seu art. 13, veda a emissão de ações por preço inferior ao seu valor nominal. Para PEIXOTO, a emissão é possível porque a companhia, se pagasse a debênture, pagaria o seu valor nominal, e não o preço de emissão. Veja a sua lição: Na emissão de debêntures conversíveis em ações com deságio não há uma quebra do princípio que veda o lançamento da ação por valor inferior ao nominal. É que o preço da debênture será apurado por ocasião da opção. Nesse dia, o investidor tem um débito integral, isto é, do valor nominal e, conseqüentemente, a sociedade teria de pagar-lhe a importância. Portanto, se, em vez de dar-lhe o dinheiro, entrega-lhe uma ação, esta está sendo vendida pelo valor nominal. O tomador da debênture adquiriu a ação com a importância que tinha a receber, que, evidentemente, era superior ao desembolsado. Manifestando entendimento contrário, Carvalhosa argumenta que o valor da emissão deliberado pela assembléia deverá observar os parâmetros do art. 170 da LSA. Tal artigo determina que, tratando-se de aumento de capital social mediante subscrição de novas 55 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 144. 37 ações, o preço de emissão deve ser fixado observando a rentabilidade da companhia, o patrimônio líquido e o valor de mercado das ações em bolsa. O autor explica que no caso de emissão de debêntures conversíveis em ações com deságio estaria sendo inobservada a relação entre o valor nominal da debênture e o preço de emissão das ações. Acrescenta, ainda, que haveria emissão de ações com valor nominal superior àquele recebido pela companhia, o que importaria em duplo prejuízo para a companhia e para os antigos acionistas. 3.7 Outros direitos 3.7.1 Debêntures conversíveis em ações As debêntures conversíveis em ação foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 4.728/65, importando que a criação de um tipo de debênture confere ao seu titular a opção entre o reembolso do capital investido e a conversão de seu crédito em ação da companhia. A Lei das Sociedades por Ações recepcionou as debêntures conversíveis em ações ao estabelecer, em seu art. 57: A debênture poderá ser conversível em ações nas condições constantes da escritura de emissão, que especificará: I - as bases da conversão, seja em número de ações em que poderá ser convertida cada debênture, seja como relação entre o valor nominal da debênture e o preço de emissão das ações; II - a espécie e a classe das ações em que poderá ser convertida; III - o prazo ou época para o exercício do direito à conversão; IV - as demais condições a que a conversão acaso fique sujeita. Para a doutrina56, as debêntures conversíveis em ações possuem natureza de títulos de crédito e de legitimação: títulos de crédito, porque conferem aos seus titulares um crédito exigível contra a companhia emissora; títulos de legitimação, porque outorgam aos seus titulares o direito de se tornarem acionistas, caso o exerçam no momento constante da escritura de emissão. 56 CARVALHOSA, 2002, p. 658. 38 A emissão de debênture conversível depende de deliberação privativa da assembléia geral de acionistas e confere direito de preferência – na proporção do número de ações que possuírem – aos acionistas da companhia, a fim de que possam subscrevê-las e conservar, assim, a sua participação societária, conforme estabelece o § 2º do art. 57 da LSA. A lei presume que a assembléia geral que deliberar a emissão de debêntures conversíveis em ações também terá deliberado o aumento de capital social. Verifica-se tal presunção, pois, caso o acionista faça a opção pela conversão do seu título em ação, restará à assembléia geral declarar o novo capital social e proceder à reforma estatutária, para fazer constar o novo valor do capital social. No que tange ao preço de emissão das debêntures conversíveis em ações, este deve ser fixado em observância aos parâmetros constantes do art. 170 da LSA, o qual estabelece que o preço de emissão das ações a serem emitidas pela companhia deverá ser fixado com base, de forma alternativa ou conjunta, na rentabilidade da companhia, no patrimônio líquido ou no valor de mercado das ações. A opção para conversão da debênture em ação deverá ser exercida unilateralmente pelo debenturista, no prazo ou na época constante da escritura de emissão. Caso o debenturista não exerça o direito de converter a debênture no prazo referido, o debenturista verá o seu direito caducado, sobrando-lhe apenas o direito de crédito contra a companhia emissora. Conforme estabelece o §2º do art. 57 da LSA, as deliberações sobre a mudança do estatuto social para alterar o objeto da companhia e para criar ações preferenciais ou modificar as vantagens das existentes, em prejuízo das ações em que são conversíveis as debêntures, dependerão de prévia aprovação dos debenturistas, enquanto puderem exercer a opção de se tornar acionista. O quórum de aprovação das alterações do estatuto social a ser observado pelos debenturistas, reunidos em assembléia especial, será aquele constante da escritura de emissão, que, contudo, não será inferior à metade das debêntures em circulação. A dissidência de eventual debenturista não lhe confere direito de retirada, porque o debenturista não é acionista, mas apenas alguém que tem a expectativa de sê-lo futuramente. 39 3.7.2 Debêntures perpétuas A companhia pode emitir debêntures cujo vencimento somente ocorra nos casos de inadimplemento da obrigação de pagar juros, dissolução ou de outras condições previstas no título, ex vi do §3º do art. 21 da LSA. Nesse caso, a exigibilidade do título fica subordinada à inadimplência da companhia em relação aos juros ou a sua dissolução. 3.8 Espécies O art. 58 da LSA dispõe que “a debênture poderá, conforme dispuser a escritura de emissão, ter garantia real ou garantia flutuante, não gozar de preferência ou ser subordinada aos demais credores da companhia”. Assim, a classificação das debêntures por espécie decorre da preferência que a lei confere ao crédito representado pela debênture em relação ao patrimônio da companhia emissora. Referindo-se à classificação das debêntures por espécie, Teixeira e Guerreiro57 explicam que ela se baseia na segurança jurídica que podem conferir, em maior ou menor grau, a seus titulares no que tange à vinculação do patrimônio da companhia emissora ao efetivo pagamento da obrigação assumida. Ressaltam, ainda, a importância da liberdade oferecida à companhia emissora em relação à escolha da debênture a ser emitida. No sistema legal anterior, regulado pelo Decreto n. 177-A, de 15 de setembro de 1893, as debêntures emitidas pelas sociedades anônimas tinham por fiança todo o ativo e bens da companhia emissora, preferindo a quaisquer outros títulos de dívida, mas também poderiam conter uma abonação especial com hipoteca, conforme estabeleciam os §§ 1º e 2º do decreto. O decreto citado, ao dispor que o empréstimo debenturístico era afiançado por todo o ativo e bens da sociedade, criou uma garantia legal. Nesse sentido, Mendonça58 denominava as debêntures que gozavam de tal privilégio de “ordinárias”, destacando que a garantia mantinha-se indeterminada e flutuante, facultado à emissora negociar livremente os bens do seu patrimônio, porque nenhum deles era especialmente oferecido em garantia. 57 58 TEIXEIRA; GUERREIRO, 1979, p. 354. MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 107. 40 De outro lado, ao referir-se a empréstimos abonados especialmente com hipotecas, o decreto conferia aos debenturistas, além da garantia legal, o privilégio particular sobre os bens hipotecados, resultantes de convenção. Mendonça denominava as debêntures com “privilégio particular fundado em hipoteca de obrigações hipotecárias”, destacando que nesta hipótese a sociedade não poderia alienar os bens dados em garantia. No sistema da Lei n. 6.404/76, as obrigações são classificadas em “debêntures com garantia real”, “debêntures com garantia flutuante”, “debêntures sem garantia” e “debêntures subordinadas aos demais credores da emissora”. Dessa forma, o privilégio conferido à debênture passou a ser opcional, ficando facultado à companhia emissora a escolha de emitir debêntures com garantias ou sem garantias. São modalidades de garantias reais: a hipoteca, o penhor e a anticrese. Não há dúvida acerca da legalidade de emissão de debênture com garantia hipotecária, mas discutese acerca da possibilidade de emitir debênture com garantia pignoratícia ou anticrética, já que nessas modalidades de garantia real deve haver, em tese, transferência da posse dos bens aos credores. Valverde59 nega a possibilidade de a debênture ser garantida por penhor ou anticrese quando afirma que, dada a dificuldade de se constituir penhor ou anticrese em garantia do pagamento das debêntures, já que os bens dados em penhor ou anticrese, salvo no penhor agrícola ou pecuário, devem passar às mãos do credor ou de terceiro, como depositário deles, a abonação especial é sempre hipotecária. Entretanto, em que pese ao entendimento defendido por Valverde, não se trata de penhor comum – isto é, no qual há a transferência da posse da coisa dada em garantia ao credor –, mas sim de penhor especial, no qual a posse dos bens dados em garantia continuam em poder da companhia, em virtude da cláusula constituti, por meio da qual o devedor se torna depositário do bem. Carvalhosa60 defende a garantia anticrética para as debêntures, na medida em que se pode dar aos credores uma garantia efetiva não só quanto ao valor do imóvel, como também quanto às rendas provenientes do seu uso, locação ou exploração. Assim, haveria a entrega aos debenturistas de imóveis pertencentes à companhia emissora, para que pudessem receber, como pagamento gradativo do mútuo, os seus frutos e rendimentos. 59 60 VALVERDE, 1959, p. 171. CARVALHOSA, 2002, p. 683. 41 Ainda sobre as debêntures com garantia real, questiona-se se as garantias constituídas para uma série poderiam ser estendidas para outra. Borba61 entende que tal possibilidade violaria a prioridade e afetaria o direito de seqüela, que são próprios do crédito hipotecário. Por esse motivo, o autor conclui que restaria à companhia emissora apenas a oportunidade de constituir para as outras séries garantias de graus inferiores. Já a garantia flutuante assegura ao debenturista privilégio geral sobre o ativo da companhia. Nesse aspecto, pode-se dizer que ela não constitui uma inovação introduzida pela Lei n. 6.404/76, pois o Decreto n. 177-A/1.893 já estabelecia que as obrigações das sociedades teriam por fiança todo o ativo e bens sociais, preferindo a quaisquer outros títulos de dívida, sem impedir a companhia de negociar os seus bens. Para Teixeira e Guerreiro62, a expressão “garantia flutuante” deriva da denominação inglesa floating security, ou floating charge, que designa uma garantia sobre os bens da companhia, sem impedi-la de com eles transacionar no curso normal dos negócios. Contudo, ressaltam que o conceito inglês não foi inteiramente recepcionado por nossa lei, já que aqui as negociações não são restritas às operações normais da sociedade. Mendonça63 defendia que a faculdade de negociar, vender e onerar livremente esses bens deveria limitar-se às operações ordinárias da empresa, como ocorre no Direito inglês. Todavia, ressalta o autor que no Brasil é comum a sociedade contrair um segundo empréstimo por obrigações ao portador dando em hipoteca especial bens que, indeterminadamente, afiançam o primeiro empréstimo. Em relação às debêntures sem garantias, elas não gozam de nenhum privilégio, de sorte que em caso de falência da companhia emissora os seus titulares concorrerão com os credores quirografários. No silêncio da escritura de emissão, a debênture é considerada sem garantia, já que a constituição de garantia depende de expressa previsão na escritura de emissão, conforme estabelece o art. 58, caput e §4º, da LSA. As debêntures sem garantia poderão ser subordinadas aos demais credores da companhia, de sorte a preferirem apenas os acionistas, em caso de liquidação da companhia. Não obstante, as debêntures subordinadas preferem, além dos acionistas, também os titulares 61 BORBA, 2005, p. 69-70. TEIXEIRA; GUERREIRO, 1979, p. 355. 63 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 107. 62 42 de partes beneficiárias, já que o §3º do art. 48 da LSA dispõe que estes somente serão pagos após solvido todo o passivo da sociedade.64 Finalmente, a Lei n. 6.404/76 contempla a possibilidade de a companhia se obrigar a não alienar ou onerar bem imóvel ou outro bem sujeito a registros de propriedade, nos termos do §5º do art. 58: “a obrigação de não alienar ou onerar bem imóvel ou outro bem sujeito a registro de propriedade, assumida pela companhia na escritura de emissão, é oponível a terceiros, desde que averbada no competente registro”. 3.9 Limites de emissão É necessário que haja um limite para a emissão de debêntures, de modo que haja um equilíbrio entre a solvabilidade da companhia emissora e o valor dos empréstimos tomados ao público investidor. A legislação brasileira, no Decreto n. 177-A/1893 e na Lei n. 6.404/1976, adotou como parâmetro para o limite de emissão de debêntures o valor do capital social. A lei não exige que o capital social esteja integralizado. Mendonça65 destaca que nenhum prejuízo advém para os terceiros se a companhia emite debêntures sem ter o seu capital integralizado, porque, pela publicação do manifesto, a eles é dado o conhecimento da situação da mutuária. Já Valverde66 manifesta preferência pelo sistema italiano, que limita o valor da emissão ao capital realizado e ainda existente. A adoção do valor do capital social como limite para a emissão de debênture não alcança o objetivo da lei, que quis garantir, tanto quanto possível, a satisfação dos direitos dos debenturistas. É que o capital social não representa um indicador confiável da solvabilidade da companhia emissora, já que pode encontrar-se inteiramente esvaziado em razão de prejuízos acumulados. O melhor parâmetro para a fixação de um limite de emissão de debêntures seria o do patrimônio líquido. Tanto é verdade que a Lei n. 4.728/1.965, no §1º do art. 26, estabeleceu que “a emissão de debêntures nos termos deste artigo terá por limite máximo a 64 Art. 48, §3º, LSA. No caso de liquidação da companhia, solvido o passivo exigível, os titulares das partes beneficiárias terão direito de preferência sobre o que restar do ativo até a importância da reserva para resgate ou conversão. 65 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 107. 66 VALVERDE, 1959, p. 174. 43 importância do patrimônio líquido da companhia, apurado nos termos fixados pelo Conselho Monetário Nacional”. Não obstante o texto legal de 1965 ter adotado um critério para a estipulação do limite de emissão de debêntures que melhor representava a capacidade de pagamento da companhia emissora, a Lei n. 6.404/76 voltou ao sistema do Decreto n. 177-A/1893, limitando a emissão de debêntures ao valor do capital social, em redação que mereceu severa crítica de Modesto Carvalhosa67: E, com efeito, esse erro crasso numa lei que os seus arautos declaravam moderníssima, editada numa época (1976) em que o valor do patrimônio líquido já era referência para qualquer análise de valor e de investimento, vem demonstrar o intento de deixar aberta a porta para a emissão de debêntures por qualquer companhia que ostente um valor de capital nominal compatível com a emissão, independentemente de ser ou não o seu patrimônio liquido negativo ou de qualquer outra forma altamente comprometido. Poder-se-ia argumentar que, não obstante o critério perverso usado pelo legislador de 1976, no que respeita à proteção dos tomadores, haverá sempre um exame prévio por parte dos analistas do mercado sobre a viabilidade da emissão. E, de fato, muito difícil imaginar-se esta sem aqueles procedimentos analíticos. Porém essa prudência não é de natureza legal, pelo que nenhuma responsabilidade assumem os analistas do mercado sobre as suas avaliações. Isto quer dizer que a esperada prudência técnica do mercado não impede todo o tipo de fraude na emissão de debêntures por aquelas companhias que, como nos velhos tempos do encilhamento, desejam ilaquear a opinião pública e apropriarse dos recursos dos investidores incautos. A crítica de Carvalhosa procede, pelo menos em parte. É que, embora a LSA tenha estabelecido como limite de emissão o valor do capital social, o grau de segurança dos credores varia de acordo com a companhia emissora. É que a lei atual deu à Comissão de Valores Mobiliários poderes para fixar outros limites para as debêntures colocadas no mercado de valores mobiliários, ex vi do §3º do art. 60 da LSA. Ademais, reconhece-se o mérito da Lei n. 6.404/76 pelo fato de ter tornado mais flexíveis os limites da emissão, estabelecendo que os limites para a emissão de debêntures com garantia real poderão superar o valor do capital social até alcançar 80% do valor do bem dado em garantia e para a emissão de debêntures com garantias flutuantes poderão alcançar até 70% do valor contábil dos bens do ativo não onerados. Ainda sobre as debêntures com garantias reais, a lei, para permitir que as sociedades utilizem as obrigações como instrumento de financiamento, permite que o limite de 80% do valor do bem dado em garantia seja superado, desde que o produto fique sob o 67 CARVALHOSA, 2002, p. 714. 44 controle do agente fiduciário dos debenturistas, que o entregará à companhia à medida que for aumentado o valor das garantias constituídas. Finalmente, pontua-se que a emissão de debêntures subordinadas aos credores quirografários – isto é, aquelas que preferem apenas os acionistas – não está sujeita a qualquer limite, conforme estabelece o §4º do art. 60 da LSA. 45 4 DEBÊNTURE COMO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL A Lei n. 8.953, de 1994, deu nova redação ao inciso I do art. 585 do Código de Processo Civil, para determinar que a debênture – ao lado de outros títulos de crédito como a letra de câmbio, a nota promissória e o cheque – é título executivo extrajudicial. A inovação legal restaurou a executividade da debênture, a qual tinha sido olvidada pelo Código de Processo Civil de 1973. Não obstante não restar nenhuma dúvida quanto à qualificação da debênture como título executivo extrajudicial, não é menos verdade que a sua execução tem merecido especial atenção da doutrina e da jurisprudência. É que, sendo a debênture um título imaterial, isto é, não estando incorporado numa cártula, torna-se impossível o atendimento ao disposto no art. 614 do CPCI, verbis: Art. 614. Cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: I – com o título executivo extrajudicial; II – com o demonstrativo do debito atualizado até a data da propositura da ação, quando se tratar de execução por quantia certa; III – com a prova de que se verificou a condição, ou ocorreu o termo (art. 572). Acerca da imaterialidade da debênture, ficou assentado no corpo deste trabalho que, com a adoção obrigatória da forma nominativa, o certificado de debênture tornou-se inútil, visto que a propriedade das debêntures presume-se mediante a inscrição no livro próprio ou o extrato fornecido pela instituição depositária, operando-se a transferência por termo lavrado no livro de transferência. A esse respeito, o art. 31 da LSA: Art. 31. A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome do acionista no livro de “Registro de Ações Nominativas” ou pelo extrato que seja fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações. § 1º A transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado no livro de “Transferência de Ações Nominativas”, datado e assinado pelo cedente e pelo cessionário, ou seus legítimos representantes. No caso das debêntures escriturais, a lei proíbe a emissão de certificado, conforme se observa do art. 34 da LSA: “O estatuto da companhia pode autorizar ou estabelecer que 46 todas as ações da companhia, ou uma ou mais classes delas, sejam mantidas em contas de depósito, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem emissão de certificados”. Ainda sobre a imaterialidade das debêntures, o §2º do art. 63 da Lei n. 6.404/1976 estabelece que “a escritura de emissão pode estabelecer que as debêntures sejam mantidas em contas de custódia, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem emissão de certificados, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 41”. Assim, se a debênture não está materializada numa cártula, torna-se impossível a instrução da ação executiva com um documento representativo do título executivo extrajudicial, requisito este estabelecido pelo art. 614 do Código de Processo Civil. Entretanto, a desmaterialização das debêntures não pode ser óbice à sua execução, sob pena de fazer do inciso I do art. 585 do Código de Processo Civil letra morta. De fato, a legislação tem avançado para permitir que, em determinadas hipóteses, a comprovação do título ocorra mediante indicações do credor. É o ocorre com a duplicata que, após ser remetida ao sacado, não é devolvida ao credor. Nesta hipótese, é facultado ao credor o protesto por simples indicações, conforme autorizam o art. 13, §1º, da Lei n. 5474/6868 e o parágrafo único do art. 8º da Lei n. 9492/199769. De igual sorte, a lei societária, ao dispensar a emissão do certificado para a comprovação da propriedade da debênture e para a sua transferência, exclui a debênture do regime do art. 614 do Código de Processo Civil, permitindo a sua execução sem a apresentação material do título executivo. Exatamente nesse diapasão, cita-se a lição de Gustavo Borba70: Apesar de o título escritural não possuir um documento corpóreo (título de papel) onde os direitos nele contidos estejam expressos, ele possui todas essas informações no sistema computadorizado onde está registrado. Destarte, em virtude da impossibilidade de levar o próprio sistema de registro para o juízo, devem os documentos dele extraídos ser considerados idôneos para embasar uma ação executiva, em virtude de serem os únicos documentos materiais existentes. Não obstante, o debenturista deve comprovar a titularidade do crédito, bem como a sua extensão. Para tanto, deverá instruir a execução com a escritura de emissão, que relata todas as condições todo do mútuo, e com o comprovante de titularidade das debêntures, isto é, 68 BRASIL. Lei 5474/1968. Art. 13. §1º. Por falta de aceite, de devolução ou de pagamento, o protesto será tirado, conforme o caso, mediante apresentação da duplicata, da triplicata, ou, ainda, por simples indicações. 69 Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas. 70 BORBA, 1999, p. 96. 47 a cópia do registro do título no livro próprio ou os lançamentos e extratos da instituição escrituradora ou depositária. Nesse sentido, a lição de Carvalhosa71. Entretanto, deve-se entender que, se a própria lei societária no artigo ora comentado dispensou a emissão dos certificados dos títulos, conferindo a outros documentos, quais sejam, os lançamentos e seus extratos da instituição escrituradora ou depositante, a força comprobatória da propriedade das debêntures, tal extrato, juntamente com a escritura de emissão, deve ser considerado como documento hábil a instruir a execução, em lugar do certificado, se inexistente e, se existente, inútil. A jurisprudência tem entendido que é irrelevante, para fins de instrução do processo executivo, o certificado da debênture. O Primeiro Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, em julgamento à Apelação Cível n. 481.698-6, na data de 20/10/1993, em que figuraram como partes Indústria e Comércio Jorge Camasmie S/A e Banco do Estado de São Paulo S/A, relatada pelo juiz Joaquim Garcia, proferiu acórdão assim ementado: EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL – Cambial – Debêntures – Alegação de inexistência de título por não estar instruído o feito com o certificado de emissão – Lei no 6.404, de 1976, artigos 52 e 64 – Irrelevância, já que suprido pelos boletins de subscrição e recibos de integralização, com a demonstração dos créditos através da escritura de emissão Embargos do devedor improcedentes - Recurso improvido. Nos fundamentos de seu voto, o juiz Joaquim Garcia destacou que o processo principal foi instruído com a escritura de emissão, os boletins de subscrição e os respectivos recibos de subscrição, os quais, na ausência do certificado, são suficientes para a instrução da execução, já que demonstram, a par da escritura de emissão, o crédito dos debenturistas. O STJ72 também reconheceu que, “não expedidos os certificados, o que cumpria fosse feito pela companhia, não há como pretender que, para a cobrança dos valores correspondentes as debêntures, sejam eles exibidos” e que, “constando da escritura de emissão a obrigação de pagar e sendo completada com os recibos e boletins de subscrição, não se pode negar a natureza de titulo executivo”. Se mesmo antes do advento da Lei n. 10.303/2001 a jurisprudência já dispensava a instrução da ação executiva com o certificado de debênture, hoje ela o faz com muito mais razão, posto que o art. 52 da LSA, na sua atual redação, dispensa a emissão do certificado de 71 CARVALHOSA, 2002, p. 568. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento de número 107738 / SP, relatado pelo ministro Eduardo Ribeiro, publicado no DJU de 09/12/1997, p. 64.686. 72 48 debênture, afastando qualquer dúvida sobre a irrelevância de tal documento para a cobrança judicial do título. Entretanto, em relação aos julgados acima colacionados, não se pode deixar de censurá-los pelo fato de terem exigido apenas a apresentação do boletim de subscrição com o respectivo recibo para a comprovação do crédito. É que tais documentos não são aptos à comprovação da titularidade do crédito, já que, sendo a debênture um valor mobiliário73, o subscritor do título pode tê-lo negociado. Eizirik74 realça que, “constituindo valores mobiliários, as debêntures, uma vez registradas na CVM, podem ser objeto de livre e irrestrita negociação no mercado de capitais”. De fato, depois da subscrição de uma debênture, o investidor pode converter as aplicações novamente em dinheiro, vendendo as suas posições a um investidor. Daí porque o recibo de subscrição é insuficiente para a comprovação da titularidade da debênture. Não bastasse, admitir o recibo de subscrição como prova de propriedade da debênture significa negar vigência aos arts. 31, 34 e 41 da LSA. É que, pela exegese legal, a propriedade da debênture presume-se pela inscrição do nome do debenturista no livro próprio, pelo extrato fornecido pela instituição custodiante ou pelo registro na conta de depósito, aberta em nome do debenturista nos livros da instituição escrituradora. Assim, a execução da debênture, como título executivo extrajudicial imaterial, requer a apresentação da escritura de emissão, da qual constarão as condições relativas ao mútuo debenturístico, e cópia do registro do título no livro próprio, ou os lançamentos e extratos da instituição escrituradora ou depositante, para comprovação da titularidade do crédito. 73 BRASIL. Lei 6.385/1976. Art. 2º. São valores mobiliários sujeitos ao regime desta lei: I – as ações, debêntures e bônus de subscrição; [...]. 74 EIZIRIK, 1996, p. 47. 49 5 COMUNHÃO DE DEBENTURISTAS 5.1 Natureza da comunhão de debenturistas As debêntures de uma mesma série têm origem comum, conferem aos debenturistas, obrigatoriamente, os mesmos direitos e atribuem à companhia emissora as mesmas obrigações, o que, aliás, está expresso no parágrafo único do art. 53 da Lei 6.404/1976, in verbis: “As debêntures da mesma série terão igual valor nominal e conferirão a seus titulares os mesmos direitos”. Assim, se o mútuo debenturístico tomado pela companhia emissora é único, embora sejam vários os credores sujeitos às mesmas condições gerais e aos mesmos riscos, é forçoso reconhecer que haverá entre os debenturistas uma comunhão de interesses, consistente na defesa de seus direitos contra a companhia emissora, seus acionistas, administradores ou fiscais. Embora seja evidente a existência de uma comunhão de interesses entre os debenturistas, o legislador de 1893 não previu a possibilidade de se reunirem e de deliberarem os assuntos comuns. Dessa forma, cada um agia singularmente na defesa de seus interesses, o que, muitas vezes, causava prejuízos aos próprios debenturistas e à companhia emissora. Nesse sentido, o escólio de Carvalho de Mendonça75: Podemos dizer que os obrigacionistas “não se conhecem, não se reúnem; são como que poeira impalpável espalhada por toda parte, e somente muito tarde, quando não é mais tempo, acontece que extraordinariamente se mostrem, se liguem e pareçam agir”. Do que se passa na sociedade somente conhecem pelo balanço que a lei obriga a publicar. A lei, não havendo organizado a ação coletiva nem a representação jurídica da massa dos obrigacionistas, para saírem do isolamento a que foram condados, sacrificou interesses respeitáveis. Muitas vezes, uma providencia tomada em tempo, uma dilação ao pagamento de juros ou à amortização, certas modificações no contrato salvariam a sociedade e assegurariam direitos dos obrigacionistas. Somente em 1933, pelo Decreto n. 22.431, foi reconhecida a possibilidade de os debenturistas se organizarem com o objetivo de salvaguardar direitos e conciliar interesses de 75 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 155. 50 ambas as partes.76 Entretanto, como bem destacou Valverde, a lei não criou a comunhão de interesses, já que esta é inerente ao mútuo debenturístico, mas apenas reconheceu a possibilidade de os debenturistas se organizarem.77 Com o advento do Decreto-lei n. 781, de 1938, a organização da comunhão de interesses em assembléia ficou condicionada à sua expressa criação pela escritura de emissão, conforme se observa de seu art. 1º.78 Entretanto, a inovação trazida pelo Decreto-lei foi considerada um retrocesso no Direito brasileiro, como se depreende da lição de Valverde: Agora, pelo dec.-lei n.º 781, de 1938, essa organização é, como na lei francesa de 1935, facultativa, depende condição expressa contida no manifesto do lançamento do empréstimo e no contrato devidamente inscrito. A orientação do legislador francês pode justificar-se, porque o decreto de 1935 regula a comunhão de interesses, não só entre os portadores de obrigações negociáveis emitidas pelas sociedades, como ainda a dos portadores de quaisquer títulos ou empréstimos negociáveis, emitidos pelas coletividades públicas, inclusive, em certos casos, os Estados soberanos. Entre nós, porém, o decreto-lei de 1938 positiva um retrocesso, a falta de técnica na regulamentação da matéria. Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto79, referindo-se ao advento do Decreto-lei n. 781, de 1938, também defendeu que a modificação trazida pelo seu artigo 1º foi sensível e para pior, ao tornar facultativo o que, por natureza, era obrigatório, isto é, a comunhão de interesses entre os obrigacionistas/debenturistas, já que estão unidos por um proveito comum. Atualmente, a Lei n. 6.404/1976 revogou o art. 1º do Decreto-Lei 781/1938, tendo reconhecido expressamente a existência de uma comunhão de interesses entre os debenturistas, capaz de justificar a sua aglutinação para a formação de uma massa (aqui entendida no seu aspecto exclusivamente subjetivo), com conseqüências impositivas a todos os participantes.80 De fato, o reconhecimento legal da comunhão de interesses entre os debenturistas e da possibilidade de se reunirem para deliberar assuntos de interesse comuns está expressa no 76 Decreto 22.431/1933. Art. 2º. “Todos os atos, que respeitem ao exercício dos direitos fundados nos contratos destes empréstimos e nos títulos emitidos em virtude dos mesmos e cujos efeitos se estendam á coletividade dos portadores de tais títulos, ficam reservados às deliberações das assembléias gerais desses portadores (obrigacionistas) ou aos representantes por elas anteriormente designados, excluídas da ações individuais, salvas as exceções expressamente consignadas nesta lei”. 77 VALVERDE, 1959, p. 200: “É fora de dúvida que a lei não criava a comunhão de interesses entre os debenturistas, mas a organizava com o objetivo de salvaguardar e conciliar os interesses de ambas as partes”. 78 BRASIL. Decreto-Lei 781/1938, art. 1º: “Os empréstimos por obrigações ao portador (debêntures) contraídos pelas sociedades anônimas, ou em comandita por ações, ou pelas autorizadas por leis especiais, criarão, quanto al condição contar do manifesto da sociedade e do contrato devidamente inscrito, uma comunhão de interesses entre os portadores dos títulos da mesma categoria, a saber, emitidos com fundamento no mesmo ato, subordinados às mesmas condições de amortização e juros, e gozando das mesmas garantias.” 79 PEIXOTO, 1972-73, p. 169. 80 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 25. 51 art. 71 da Lei n. 6.404/1976, ao dispor que “os titulares de debêntures da mesma emissão ou série podem, a qualquer tempo, reunir-se em assembléia a fim de deliberar sobre matéria de interesse da comunhão dos debenturistas”. Ante a indiscutibilidade da existência da comunhão de interesses e a possibilidade de os debenturistas reunirem-se para tratar de assuntos comuns, a doutrina debruçou-se sobre a análise da natureza da comunhão, já que a Lei n. 6.404/1976, embora tenha previsto a sua existência legal, foi omissa quanto à discussão sobre a sua capacidade como sujeito de direito e de obrigações. Peixoto81 sustenta que “inexiste suporte jurídico para se considerar a comunhão de portadores de títulos uma pessoa jurídica, uma vez que não é ela uma sociedade nem tem patrimônio próprio”. Borba82, atestando que não se constitui uma pessoa jurídica, a não ser por força de lei, e que tampouco existe patrimônio para ser gerido pela comunhão, também recusa a personificação da pessoa jurídica: Afigura-se evidente que a hipótese não configura sociedade ou associação, posto que não se constitui uma pessoa jurídica, nem tampouco um patrimônio separado para ser gerido pela sociedade [...]. A comunhão de interesses corresponderia, com efeito, a uma massa de origem legal, a exemplo do que já ocorre com outras situações correlatas, como a concernente à massa de credores em uma falência, que pode se reunir, e tomar decisões no interesse comum, ou ainda como o condomínio, que também envolve uma comunhão despersonalizada de interesses. Para Carvalhosa83, a comunhão de interesses trata-se de uma entidade personificada, de natureza deliberativa e representativa, sem patrimônio próprio, tendo como órgão soberano a assembléia geral, a cuja deliberação ficam submetidos os negócios relativos ao exercício dos direitos fundados no mútuo debenturístico. Afinal, conclui que se trata de uma associação sem personalidade jurídica formal, embora personalizada. Manifestando-se em sentido semelhante, Pinto Júnior84 refuta o entendimento daqueles que retiram o caráter personificado da comunhão de debenturistas. Segundo o autor, o fato de a personalidade jurídica ser atribuída ope legis não afasta a possibilidade de ser reconhecida, implicitamente e de modo indireto, a capacidade para a prática de determinados atos jurídicos a entidades não expressamente personificadas. 81 PEIXOTO, 1972-73, p. 169. BORBA, 2005, p. 136-137. 83 CARVALHOSA, 2002, p. 560. 84 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 25. 82 52 O jurista salienta que a capacidade para estar em juízo é decorrência natural da capacidade para ser titular de direitos e obrigações também no plano material. A tentativa de invocação de uma capacidade de direito puramente processual esbarra em um obstáculo de ordem lógica, consubstanciado pelo princípio vigorante no Direito alemão de que é capaz de ser parte quem tem capacidade de direito. Considerando a capacidade para contratar atribuída à comunhão dos debenturistas, o autor conclui ser inaceitável o negativismo absoluto de sua personalidade jurídica e que tal conclusão pode lançar dúvidas sobre a idéia de que é taxativa a enumeração contida no art. 18 do Código Civil (1916), em se admitindo a impossibilidade de equiparação do agrupamento dos obrigacionistas a qualquer das figuras associativas ali previstas. Para referendar o seu entendimento, o jurista lembra o que ocorre com o condomínio edilício da Lei n. 4.591/64, cuja capacidade jurídica vem sendo reconhecida pela jurisprudência, não obstante a ausência de personalidade explícita. Entretanto, a comunhão dos debenturistas não pode ser confundida com o condomínio edilício, posto que a lei garante a este último a possibilidade de ser titular de direito dominial. De fato, o art. 63, §3º, da Lei n. 4.591/64 estabelece que “no prazo de 24 horas após a realização do leilão final, o condomínio, por decisão unânime da Assembléia Geral em condições de igualdade com terceiros, terá preferência na aquisição dos bens, caso em que serão adjudicados ao condomínio”. É tal peculiaridade que tem motivado a doutrina e a jurisprudência a reconhecer a personalidade jurídica do condomínio edilício. Diniz85 ressalta que o art. 63, §3º, da Lei n. 4.591/64 admitiu, implicitamente, a personalidade jurídica do condomínio edilício, autorizando-o a tornar-se proprietário dos bens adjudicados. Diferentemente do que ocorre com o condomínio edilício, nenhum dispositivo legal autoriza a comunhão de debenturistas a adquirir bem em nome próprio ou a titularizar direito patrimonial. Ademais, não se pode dizer sequer que a comunhão de debenturistas tenha capacidade processual, posto que a LSA não lhe confere a possibilidade de estar em juízo. Nesse diapasão, é relevante lembrar que a lei societária, ao enumerar as atribuições do agente fiduciário, atesta que ele, nos processos judiciais, deve representar os debenturistas, e não propriamente a comunhão. Nesse sentido, cita-se o §3º do art. 68 da LSA: 85 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 22. ed. rev. e atual. De acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2005a. v. 1, p. 285. 53 § 3º O agente fiduciário pode usar de qualquer ação para proteger direitos ou defender interesses dos debenturistas, sendo-lhe especialmente facultado, no caso de inadimplemento da companhia: a) declarar, observadas as condições da escritura de emissão, antecipadamente vencidas as debêntures e cobrar o seu principal e acessórios; b) executar garantias reais, receber o produto da cobrança e aplicá-lo no pagamento, integral ou proporcional, dos debenturistas; c) requerer a falência da companhia emissora, se não existirem garantias reais; d) representar os debenturistas em processos de falência, concordata, intervenção ou liquidação extrajudicial da companhia emissora, salvo deliberação em contrário da assembléia dos debenturistas; e) tomar qualquer providência necessária para que os debenturistas realizem os seus créditos. Assim, não sendo a comunhão de debenturistas um ente personalizado, já que não figura no rol do art. 44 do Código Civil e tampouco titulariza direito patrimonial, parece acertado o entendimento de Borba acima transcrito, que equipara a comunhão de debenturistas a um grupo despersonalizado, cujo conceito está assim elaborado por Gonçalves86: Nem todo grupo social constituído para a consecução de fim comum é dotado de personalidade. Alguns, malgrado possuam características peculiares à pessoa jurídica, carecem de requisitos imprescindíveis à personificação. Reconhece-lhes o direito de, contudo, na maioria das vezes, representação processual. A lei prevê, com efeito, certos casos de universalidades de direito e de massas identificáveis como unidade que, mesmo não tendo personalidade jurídica, podem gozar de capacidade processual e ter legitimidade ativa e passiva para acionar e serem acionadas em juízo. São entidades que se formam independentemente da vontade dos seus membros ou em virtude de um ato jurídico que os vincule a determinados bens, sem que haja a affectio societatis. Ainda acerca da natureza da comunhão de debenturistas, Borba87 conclui que a comunhão de interesses, ao reunir os debenturistas por força de uma atribuição legal, não leva à constituição de um órgão, mesmo porque os órgãos são típicos das pessoas jurídicas e têm um sentido estrutural. A comunhão representa apenas um estado jurídico, resultante do fato, legalmente qualificado, da identidade de interesses. Vencida a questão relativa à natureza da comunhão dos debenturistas, a proteção aos interesses comuns dos debenturistas dá-se por meio da reunião da assembléia de titulares de debêntures de mesma série, à qual compete deliberar sobre assunto de interesse dos 86 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: parte geral. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 192. 87 BORBA, 2005, p. 138-139. 54 debenturistas, e da atuação do agente fiduciário, que, quando existente, tem a função de proteger os interesses dos debenturistas. 5.2 Assembléia dos debenturistas 5.2.1 Generalidades A assembléia dos debenturistas representa o instrumento de deliberação da comunhão. Tem por função precípua deliberar sobre os assuntos de interesses comuns dos debenturistas, conforme se extrai da exegese do art. 71 da LSA: “os titulares de debêntures da mesma emissão ou série podem, a qualquer tempo, reunir-se em assembléia a fim de deliberar sobre matéria de interesse da comunhão dos debenturistas”. A assembléia de debenturistas pode ser convocada pelo agente fiduciário, pela companhia emissora, por debenturistas que representem 10% (dez por cento), no mínimo, dos títulos em circulação e pela Comissão de Valores Mobiliários. A convocação deve obedecer às regras do art. 124 da LSA88, já que se aplicam à assembléia dos debenturistas, no que couber, as regras sobre a assembléia geral de acionistas.89 O quórum de instalação da assembléia de debenturistas em primeira convocação é de metade, no mínimo, das debêntures em circulação e em segunda convocação é de qualquer número. O quórum de aprovação para promover mudanças nas condições das debêntures deve estar previsto na escritura de emissão, não podendo ser inferior à metade das debêntures em circulação. 88 Art. 124. “ convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. § 1º: o A primeira convocação da assembléia-geral deverá ser feita: (Redação da pela Lei n. 10.303, de 31.10.2001) I - na companhia fechada, com 8 (oito) dias de antecedência, no mínimo, contado o prazo da publicação do primeiro anúncio; não se realizando a assembléia, será publicado novo anúncio, de segunda convocação, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias;(Alínea incluída pela Lei nº10.303, de 31.10.2001) II - na companhia aberta, o prazo de antecedência da primeira convocação será de 15 (quinze) dias e o da segunda convocação de 8 (oito) dias.(Alínea incluída pela Lei nº10.303, de 31.10.2001)” 89 Art. 71, §2º, LSA: “Aplica-se à assembléia de debenturistas, no que couber, o disposto nesta Lei sobre a assembléia-geral de acionistas” 55 A lei exige que o quórum de deliberação seja qualificado apenas para as deliberações de eficácia externa (mudança nas condições de debêntures), de modo que, em se tratando de deliberações de eficácia interna, por exemplo, substituição de agente fiduciário, o quórum de deliberação é o da maioria absoluta, isto é, metade mais uma das debêntures em circulação presentes ao conclave. Cada debênture corresponde a um voto. Entretanto, não podem votar nas assembléias debenturistas que têm interesses conflitantes com os da comunhão. Assim, são impedidos de votar os acionistas controladores – direta e indiretamente – da companhia emissora, os seus administradores e, eventualmente, até mesmo os acionistas minoritários. Nesse sentido, o escólio de Carvalhosa90: Assim, não pode prevalecer o voto dos acionistas controladores da companhia e o dos que com eles se agregam para o efeito de formar o quorum deliberativo. Estão, portanto, impedidos de votar na assembléia dos debenturistas esses controladores, diretos ou indiretos, da companhia emissora, e que sejam titulares de debêntures de qualquer emissão ou série em circulação, e não apenas daquela correspondente à própria assembléia. A nominatividade das debêntures, via forma escritural, facilita imensamente a identificação desses controladores diretos e indiretos e suas holdings. E o impedimento de votarem na assembléia é absoluto. Já com aos acionistas minoritários da companhia emissora ou de coligadas, a presunção do impedimento é relativa, pois dependem de prova o eventual abuso de direito e o desvio de finalidade práticos por eles nas deliberações da assembléia debenturística. Há, neste caso, também um conflito, ainda que de proporções menores do que aquele absoluto dos controladores, diretos e indiretos. Além das matérias de interesse da comunhão de debenturistas, a lei submete aos obrigacionistas a aprovação de operações de incorporação, fusão ou cisão da companhia emissora (art. 23191 da LSA) e a aprovação do cancelamento de registro da companhia emissora na CVM (art. 1792 da Instrução Normativa n. 361 da Comissão de Valores Mobiliários). Os titulares de debêntures conversíveis em ações, enquanto puderem exercer o seu direito de converter o crédito em ação, também deverão aprovar a alteração do estatuto da 90 CARVALHOSA, 2002, p. 820. Art. 231. A incorporação, fusão ou cisão da companhia emissora de debêntures em circulação dependerá da prévia aprovação dos debenturistas, reunidos em assembléia especialmente convocada com esse fim. 92 Art. 17. A companhia que tenha efetuado emissão ou distribuição pública de debêntures somente poderá ter cancelado o seu registro de companhia aberta se comprovar, por declaração do agente fiduciário, que: I – resgatou a totalidade das debêntures em circulação; II – vencido ou antecipado o prazo para resgate e não tendo sido resgatada toda a emissão, procedeu ao depósito do valor de resgate das debêntures em banco comercial, ficando tal valor à disposição dos debenturistas; III – o ofertante ou pessoa vinculada adquiriu a totalidade das debêntures em circulação; ou IV – todos os debenturistas concordaram com o cancelamento de registro de companhia aberta, e declararam expressamente ter ciência de que, em razão disto, será cancelado o registro para a negociação das debêntures em mercado secundário organizado, se houver. 91 56 companhia emissora para mudar o seu objeto e para criar ações preferenciais ou modificar as vantagens das existentes, em prejuízo das ações em que são conversíveis as debêntures. 5.2.2 Limitação dos poderes da assembléia geral de debenturistas O interesse comunitário deve sobrepor-se aos interesses individuais dos debenturistas, de modo que a minoria deve submeter-se à decisão da maioria. O §5º do art. 71 da LSA permite a alteração nas condições das debêntures, o que tem motivado os estudiosos a questionarem se haveria um limite para a alteração das condições das debêntures. Sobre o tema, Valverde93 afirma que a lei conferiu à assembléia competência para tomar medidas de conservação e salvaguarda dos interesses comuns e para deliberar sobre todas e quaisquer modificações, temporárias ou definitivas, do contrato de empréstimo, tais como prorrogação do prazo de amortização do empréstimo, supressão do prêmio das obrigações e redução da taxa de juros, entre outras matérias. Tal entendimento encontrava amparo no art. 3º do Dec.-lei n. 781/1938, ao estabelecer que poderiam ser objeto das deliberações da assembléia de debenturistas todas as medidas de conservação, defesa e salvaguarda dos interesses comuns dos obrigacionistas e quaisquer das cláusulas e estipulações do contrato de empréstimo, tais como a redução da taxa de juros e do valor de cada obrigação, entre outras. Entretanto, a ampla liberdade conferida pelo Dec.-lei n. 781/1938 à assembléia de debenturistas, a qual seria competente, até mesmo, para modificar as cláusulas essenciais do mútuo debenturístico, contrapõe-se ao princípio de que o debenturista não pode exercer o direito de voto do qual possa resultar prejuízo para a comunhão de debenturistas, nos termos do art. 115 da LSA, também aplicável às debêntures. Cita-se: Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.(Redação dada pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001) [...]. § 3º o acionista responde pelos danos causados pelo exercício abusivo do direito de voto, ainda que seu voto não haja prevalecido. 93 VALVERDE, 1959, p. 204-205. 57 § 4º A deliberação tomada em decorrência do voto de acionista que tem interesse conflitante com o da companhia é anulável; o acionista responderá pelos danos causados e será obrigado a transferir para a companhia as vantagens que tiver auferido. Exatamente em razão do disposto no art. 115 da Lei n. 6.404, de 1976, a atual doutrina brasileira tem limitado o direito da maioria, ao entender que para suprimir direito essencial do debenturista não basta a vontade da maioria dos debenturistas, mas sim o consentimento individual de cada um dos debenturistas. A esse respeito, cita-se a lição de Pinto Júnior94: Não basta a determinação do quorum exigido, pois o problema permanece sem solução, se considerarmos a possibilidade da existência de direitos essenciais ou mínimos atribuídos aos debenturistas, que, à semelhança dos acionistas (art. 109 da Lei 6.404), não poderiam ser derrogados pela respectiva assembléia. A recomendação da doutrina italiana é no sentido de prestigiar a utilização de um critério restritivo para delimitar a competência da assembléia dos obrigacionistas, tratando-se de alterações posteriores nas condições das debêntures. Assim, seriam permitidas modificações por imposição majoritária da assembléia somente quanto à modalidade e não quanto à essência do direito consubstanciado nas debêntures. Para tanto, haveria necessidade do consentimento individual do próprio obrigacionista. Carvalhosa95 também defende que não pode a assembléia praticar atos de liberalidade ou gratuitos, ou estranhos ao interesse da comunhão; não pode derrogar direitos da comunhão. A assembléia, portanto, está voltada sempre para a consecução de objetivos e interesses da comunhão e à proteção dos respectivos direitos. Não pode a deliberação, em hipótese alguma, atender aos interesses da companhia emissora. Borba96, após ressaltar que a legislação brasileira encontra-se entre aquelas que não enumeram quais condições podem ser modificadas pela maioria de debenturistas, destaca que a tendência nos países que se defrontam com tal indefinição é a de inclinar-se pela posição restritiva, separando as condições acessórias das substanciais, sendo estas últimas modificáveis apenas mediante manifestação unânime dos debenturistas. A jurisprudência brasileira, não dissente do entendimento doutrinário, tem considerado inválida a deliberação que reduza direito essencial de debenturista. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ao Recurso Especial de n. 303.825, oriundo de 94 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 25. CARVALHOSA, 2002, p. 822. 96 BORBA, 2005, p. 145-147. 95 58 São Paulo, relatado pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar, publicado no DJ na data de 29.10.2001, p. 211, e na LEXSTJ 149/219: DEBÊNTURES. Assembléia geral. Redução do valor. A assembléia geral dos debenturistas não está autorizada pelo art. 71, § 5º, da Lei 6.404/76 a reduzir o valor das debêntures. Omissão inexistente. Questão dos honorários vinculada à matéria de fato. Recurso não conhecido. No voto condutor do acórdão, o ministro relator Ruy Rosado de Aguiar destacou que o valor da debênture não é condição que possa ser alterada por decisões da assembléia geral – nos termos do art. 71, §5º, da Lei 6404/1976 - pois confunde-se com a própria essência do título e que a legislação não permite a alteração do valor monetário das debêntures. Assim, em razão do disposto no art. 115 da LSA, é forçoso reconhecer que a assembléia de debenturistas somente tem poderes de alterar, por votos não inferior à metade mais uma das debêntures, as condições assessórias da escritura de emissão, de sorte que as modificações das condições essenciais das debêntures dependem da aprovação unânime dos debenturistas. 5.3 Agente fiduciário Mesmo na vigência do Decreto n. 177-A/1893, Carvalho de Mendonça97 defendia que era livre aos debenturistas nomear um mandatário para representá-los perante a companhia emissora, já que têm liberdade para estipular tudo que não seja contrária à lei e à moral, bem como o que possa ser útil aos seus interesses. O autor fazia expressa referência ao sistema inglês, nos seguintes termos: O sistema inglês é muito prático. As debêntures podem fundar-se no trust deed ou não, sendo aconselhável o primeiro caso, onde as despesas são insignificantes relativamente a um grande empréstimo e as vantagens extraordinárias. Essas vantagens resumem-se nas seguintes. O trust deed: 1.º Nomeia para trustees um grupo de pessoas, homens de negócio de boa posição, cujo dever é velar os direitos e interesses dos debenturistas e, se for necessário, sustentar esses direitos e proteger esses interesses. 97 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 158. 59 2.º Organiza os debenturistas, isto é, provê sobre as reuniões dos debenturistas que, chamados a discutir, resolvem, sob a presidência de um dos trustees, qualquer questão que diretamente se refira aos seus interesses e garantia, e confere poderes a uma forte maioria para tomar resoluções, obrigando a todos. A companhia pode assim ajustar com a classe dos debenturistas qualquer assunto da maior importância. 3.º Investe nos trustees a massa legal (legal estate). Na conformidade do trust deed, a garantia ordinariamente consiste na hipoteca ou no penhor sobre o ativo geral da companhia. A massa assim transferida nos trustees (essa transferência é peculiaridade das leis inglesas) constitui certamente uma apreciável sentença. 4.º Provê sobre todas as eventualidades ordinárias que possam surgir (in Manson, The debentures and debenture stock, p. 60-61). Os trustees são remunerados, de ordinário, pela própria companhia de acordo com as estipulações do trust deed. Por meio dessa combinação, os obrigacionistas mantêm a defesa vigilante dos seus direitos, sem embaraçarem, com a sua ação individual, a marcha da sociedade. Bem podia ela ser adotada pelas nossas leis ou usos. No Brasil, com o advento do Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938, restou expressamente prevista a possibilidade de a assembléia de debenturistas nomear um representante para exercer os direitos fundados na escritura de emissão. Contudo, a instituição de um representante estaria condicionada à constituição, na escritura de emissão, da assembléia de debenturistas. A figura do representante dos debenturistas, no entanto, somente ganhou similaridade com o trustee do sistema anglo-saxão com o advento da Lei n. 6.404/1976. O atual normativo societário previu e regulou as funções do agente fiduciário, com a expectativa de conferir maior proteção aos investidores no mercado. A esse respeito, cita-se a exposição de motivos da lei98: Para maior proteção dos investidores do mercado, o Projeto prevê e regula a função do agente fiduciário dos debenturistas, tomando por modelo o “trustee” do direito anglo-saxão, e adaptando-o à nossa técnica jurídica. A experiência dos países, que, na tradição do direito continental europeu, desconhecem essa função, revela a inadequação da solução adotada pelo nosso Decreto-lei nº 781, de 12.10.1938, da reunião eventual de assembléia de debenturistas, o que em geral somente ocorre quando a companhia emissora tem interesse em modificar as condições das debêntures em circulação ou já se ache inadimplente. A proteção eficiente dos direitos e interesses dos debenturistas requer fiscalização permanente e atenta por pessoa habilitada, com as responsabilidades de administrador de bens de terceiros, independente da companhia devedora e dos demais interessados na distribuição das debêntures, e que não tenha interesses conflitantes com os dos debenturistas, cujos direitos e interesses deve proteger. 98 LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 233. 60 Entretanto, deve ficar claro que no Direito brasileiro não há negócio fiduciário entre os debenturistas e o agente fiduciário, posto que não há transferência de crédito em favor do agente, mas apenas é conferida ao agente a representação dos debenturistas.99 Já no negócio fiduciário há, obrigatoriamente, transferência da propriedade da coisa ao fiduciário. O agente fiduciário tem a função de representar a comunhão de interesses dos debenturistas perante a companhia emissora. Em se tratando de emissão pública de debêntures, cuja participação do agente fiduciário é obrigatória, a sua nomeação é feita pela companhia emissora na própria escritura de emissão, conforme reza o art. 66 da Lei n. 6.404/1976, in verbis: “Art. 66. O agente fiduciário será nomeado e deverá aceitar a função na escritura de emissão das debêntures”. A intervenção do agente fiduciário na escritura de emissão tem duplo efeito, posto que, por meio dela, ele tanto aceita o múnus de representar os debenturistas, como também declara que a escritura de emissão atende a todas as formalidades legais. Assim, desde a aceitação de seu encargo na escritura de emissão, o agente fiduciário já está agindo em defesa dos interesses da comunhão.100 A esse respeito, deve-se destacar que o art. 12101 da Instrução Normativa n. 28 da CVM, ao tratar do exercício da função de agente fiduciário, dispõe que faz parte de suas 99 TEIXEIRA; GUERREIRO, 1979, p. 368. CARVALHOSA, 2002, p. 766. 101 Art. 12. São deveres do agente fiduciário: I - proteger os direitos e interesses dos debenturistas, empregando no exercício da função o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios bens; II - renunciar à função, na hipótese da superveniência de conflito de interesses ou de qualquer outra modalidade de inaptidão; III - conservar em boa guarda toda a escrituração, correspondência e demais papéis relacionados com o exercício de suas funções; IV - verificar a observância, pela companhia emissora, dos limites de emissão prescritos no artigo 60 da LEI Nº 6.404/76, em função da garantia real oferecida; V - verificar, no momento de aceitar a função, a veracidade das informações contidas na escritura de emissão, diligenciando no sentido de que sejam sanadas as omissões, falhas ou defeitos de que tenha conhecimento; VI - promover nos competentes órgãos, caso a companhia não o faça, o registro da escritura de emissão e respectivos aditamentos, sanando as lacunas e irregularidades porventura neles existentes; neste caso, o oficial do registro notificará a administração da companhia para que esta lhe forneça as indicações e documentos necessários; VII - acompanhar a observância da periodicidade na prestação das informações obrigatórias, alertando os debenturistas acerca de eventuais omissões ou inverdades constantes de tais informações; VIII - emitir parecer sobre a suficiência das informações constantes das propostas de modificações nas condições das debêntures; IX - verificar a regularidade da constituição das garantias reais, flutuantes e fidejussórias, bem como valor dos bens dados em garantia, observando a manutenção de sua suficiência e exeqüibilidade; X - examinar a proposta de substituição de bens dados em garantia, quando esta estiver autorizada pela escritura de emissão, manifestando a sua expressa e justificada concordância; XI - intimar a companhia a reforçar a garantia dada, na hipótese de sua deterioração ou depreciação; XII - solicitar, quando julgar necessário para o fiel desempenho de suas funções, certidões atualizadas dos distribuidores cíveis, das Varas de Fazenda Pública, cartórios de protesto, Juntas de Conciliação e Julgamento, 100 61 atribuições verificar, no momento de aceitar a função, a veracidade das informações contidas na escritura de emissão, diligenciando no sentido de que sejam sanadas as omissões, falhas ou defeitos de que tenha conhecimento. Procuradoria da Fazenda Pública, onde se localiza a sede do estabelecimento principal da companhia emissora e, também, da localidade onde se situe o imóvel hipotecado; XIII - solicitar, quando considerar necessário, auditoria extraordinária na empresa; XIV - examinar, enquanto puder ser exercido o direito à conversão de debêntures em ações, a alteração do estatuto da companhia emissora que objetive mudar o objeto da companhia, ou criar ações preferenciais ou modificar as vantagens das existentes, em prejuízo das ações em que são conversíveis as debêntures, cumprindolhe ou convocar assembléia especial dos debenturistas para deliberar acerca da matéria, ou aprovar, nos termos do § 2º do artigo 57 da LEI Nº 6.404/76, a alteração proposta; XV - convocar, quando necessário, a assembléia de debenturistas, através de anúncio publicado, pelo menos por três vezes, nos órgãos de imprensa onde a companhia emissora deve efetuar suas publicações; XVI - comparecer à assembléia dos debenturistas a fim de prestar as informações que lhe forem solicitadas; XVII - elaborar relatório destinado aos debenturistas, nos termos do artigo 68, § 1º, b da LEI Nº 6.404/76, o qual deverá conter, ao menos, as seguintes informações: a) eventual omissão ou inverdade, de que tenha conhecimento, contida nas informações divulgadas pela companhia ou, ainda, o inadimplemento ou atraso na obrigatória prestação de informações pela companhia; b) alterações estatutárias ocorridas no período; c) comentários sobre as demonstrações financeiras da companhia, enfocando os indicadores econômicos, financeiros e de estrutura de capital da empresa; d) posição da distribuição ou colocação das debêntures no mercado; e) resgate, amortização, conversão, repactuação e pagamento de juros das debêntures realizados no período, bem como aquisições e vendas de debêntures efetuadas pela companhia emissora; f) constituição e aplicações do fundo de amortização de debêntures, quando for o caso; g) acompanhamento da destinação dos recursos captados através da emissão de debêntures, de acordo com os dados obtidos junto aos administradores da companhia emissora; h) relação dos bens e valores entregues à sua administração; i) cumprimento de outras obrigações assumidas pela companhia na escritura de emissão; j) declaração acerca da suficiência e exeqüibilidade das garantias das debêntures; l) declaração sobre sua aptidão para continuar exercendo a função de agente fiduciário. XVIII - colocar o relatório de que trata o inciso anterior à disposição dos debenturistas no prazo máximo de 4 (quatro) meses a contar do encerramento do exercício social da companhia, ao menos nos seguintes locais: a) na sede da companhia; b) no seu escritório ou, quando instituição financeira, no local por ela indicado; c) na CVM; d) nas Bolsas de Valores, quando for o caso; e e) na instituição que liderou a colocação das debêntures. XIX - publicar, nos órgãos da imprensa onde a companhia emissora deva efetuar suas publicações, anúncio comunicando aos debenturistas que o relatório se encontra à sua disposição nos locais indicados no inciso XVIII; XX - manter atualizada a relação dos debenturistas e seus endereços, mediante, inclusive, gestões junto à companhia emissora; XXI - coordenar o sorteio das debêntures a serem resgatadas ou amortizadas, inutilizando os certificados correspondentes às debêntures resgatadas; XXII - administrar os recursos oriundos da emissão de debêntures na ocorrência da hipótese prevista no § 2º do artigo 60 da LEI Nº 6.404/76; XXIII - fiscalizar o cumprimento das cláusulas constantes da escritura de emissão, especialmente daquelas impositivas de obrigações de fazer e de não fazer; XXIV - notificar os debenturistas, se possível individualmente, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, de qualquer inadimplemento, pela companhia, de obrigações assumidas na escritura de emissão, indicando o local em que fornecerá aos interessados maiores esclarecimentos. Comunicação de igual teor deve ser enviada: a) à CVM; b) às Bolsas de Valores, quando for o caso; c) ao Banco Central do Brasil, quando se tratar de instituição por ele autorizada a funcionar. 62 Pode ser agente fiduciário a pessoa natural que satisfaça os requisitos para exercer cargo em órgão da administração da companhia. Assim, o agente fiduciário deve ser residente no país102 e não ter os impedimentos do art. 147, §2º, da Lei nº 6404/76103. Também pode ser agente fiduciário a instituição financeira que, autorizada pelo Banco Central do Brasil, tenha por objeto a administração ou a custódia de bens de terceiros. O art. 8º da I.N. n. 28/1983 da CVM estabelece que nas emissões de debêntures que se destinarem à negociação no mercado de valores mobiliários, o agente fiduciário da emissão ou série de debêntures será, obrigatoriamente, instituição financeira, sempre que ocorra uma das seguintes hipóteses: I - seja a emissão garantida por caução; ou II - a emissão ultrapasse o capital social, desde que não se trate de debênture subordinada. O §3º do art. 66 da LSA veda o exercício das funções de agente fiduciário por qualquer pessoa que possa ter interesses conflitantes com os da comunhão de debenturistas, tais como, exemplificativamente, pessoa que já exerça a função em outra emissão da mesma companhia, instituição financeira coligada à companhia emissora, sociedade por elas controlada e credor da sociedade emissora. Uma vez nomeado o agente fiduciário na escritura de emissão, pode ele ser substituído tanto pela CVM, como também pelos debenturistas reunidos em assembléia especial. Embora o art. 67 da Lei n. 6.404/1976 seja omisso em relação à possibilidade de os obrigacionistas deliberarem a substituição do agente fiduciário, o art. 3º da I.N. n. 28/1983 da CVM assim estabelece: É facultado aos debenturistas, após o encerramento do prazo para a distribuição das debêntures no mercado, proceder à substituição do agente fiduciário e à indicação de seu eventual substituto, em assembléia dos debenturistas especialmente convocada para esse fim. Para Carvalhosa104, a lei societária outorgou existência legal à comunhão de debenturistas, dotando-a de órgãos com capacidade para a prática de determinados atos jurídicos, como sejam, o agente fiduciário e a assembléia de debenturistas. Nesse sentido, o 102 Art. 146, LSA. “Poderão ser eleitos para membros dos órgãos de administração pessoas naturais, devendo os membros do conselho de administração ser acionistas e os diretores residentes no País, acionistas ou não”. 103 Art. 147, §1º, LSA. ”São inelegíveis para os cargos de administração da companhia as pessoas impedidas por lei especial, ou condenadas por crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno, concussão, peculato, contra a economia popular, a fé pública ou a propriedade, ou a pena criminal que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos”. 104 CARVALHOSA, 2002, p. 767. 63 referido autor conclui que o agente fiduciário é o representante orgânico da comunhão de debenturistas. Borba105, entretanto, rechaça o entendimento que atribui ao agente fiduciário a condição de órgão da comunhão de debenturistas, sob o fundamento de que a comunhão não é dotada de personalidade jurídica. Assim, para este autor o agente fiduciário é uma figura híbrida, que funde e combina elementos do trust com elementos de representação legal. Com efeito, se a comunhão de debenturistas não é dotada de personalidade jurídica, fica afastada a possibilidade de ser o agente fiduciário um órgão. Ademais, não se pode olvidar que o art. 68 da LSA, ao estabelecer que “o agente fiduciário representa, nos termos desta Lei e da escritura de emissão, a comunhão dos debenturistas perante a companhia emissora”, coloca-o na condição de representante. Como representante da comunhão dos debenturistas, o agente fiduciário tem as obrigações legais de proteger os direitos e interesses dos debenturistas, empregando no exercício da função o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios bens, além de notificar aos debenturistas qualquer inadimplemento da companhia emissora. A lei confere, ainda, ao agente fiduciário legitimidade para usar de qualquer ação para proteger direitos ou defender interesses dos debenturistas, tais como executar garantias reais, requerer a falência da companhia emissora se não existirem garantias reais e tomar qualquer providência necessária para que os debenturistas realizem os seus créditos. Caso o agente fiduciário não aja com a cautela e a diligência necessárias à proteção, conservação e realização dos direitos dos debenturistas, responderá civilmente perante estes, conforme dispõe o art. 68, §4º, da Lei 6.404/1976, in verbis: “O agente fiduciário responde perante os debenturistas pelos prejuízos que lhes causar por culpa ou dolo no exercício das suas funções”. Ainda sobre a responsabilidade do agente fiduciário, cabe anotar que ele somente se eximirá da responsabilidade pela não adoção das medidas judiciais necessárias à realização dos créditos dos debenturistas quando, convocada a assembléia especial, esta assim o autorizar, por deliberação da unanimidade das debêntures em circulação. 105 BORBA, 2005, p. 158. 64 Finalmente, pontua-se que, apesar da importância do agente fiduciário na promoção da defesa dos direitos dos debenturistas, a legislação pátria somente tornou obrigatória a sua intervenção nas distribuições públicas de debêntures, de modo que nas emissões privadas a sua participação é facultativa, conforme estabelece o §1º do artigo 61 da Lei n. 6.404/1976106. 106 A escritura de emissão, por instrumento público ou particular, de debêntures distribuídas ou admitidas à negociação no mercado, terá obrigatoriamente a intervenção de agente fiduciário dos debenturistas (artigos 66 a 70). 65 6 PARTE, PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E CONDIÇÕES DA AÇÃO 6.1 Parte Vistas as principais questões relativas ao mútuo debenturístico, tais como os seus aspectos conceituais, suas características gerais, as atribuições e funções da assembléia especial de debenturistas e do agente fiduciário e, sobretudo, a sua executividade, o presente estudo, a partir de agora, convergirá para a análise da legitimidade ativa para a execução de debêntures. Entretanto, para que se avance na análise de quem possui legitimidade para a propositura de execução de debêntures contra a companhia emissora, é importante investigar, inicialmente, o conceito de “parte” em sentido processual, capacidade processual e legitimidade ativa no processo de execução. Os autores clássicos encaravam o conceito de parte tendo em vista a relação de direito material. “Autor” seria a designação atribuída ao credor quando postulava em juízo; “réu”, o nome pelo qual se designava o devedor. Entretanto, se a ação de cobrança era julgada improcedente, v.g., porque a dívida fora paga, não haveria credor nem devedor, embora o processo tenha se desenvolvido normalmente até a sentença de mérito.107 O conceito de parte evoluiu juntamente com o próprio conceito de “ação”, vez que a consagração da autonomia do direito de ação em relação ao direito material influenciou na definição de parte.108 Por esse viés, o direito à tutela jurisdicional não é o direito à proteção do direito subjetivo material da parte. Direito de ação é o direito à composição do litígio pelo Estado, que independe da existência do pretenso direito da parte.109 Assim, a parte, além de sujeito da lide ou da relação jurídica de direito material deduzida em juízo, é também sujeito do processo, no sentido de que é uma das pessoas que constitui o processo, seja no sentido ativo, seja no passivo. Daí porque se distinguem dois 107 CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 3. DESTEFENNI, Marcos. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento e cumprimento da sentença. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1, p. 153. 109 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa. Revista de Processo, n. 17, p. 41-49, 1980, p. 42. 108 66 conceitos de parte, como sujeito tanto da lide – sentido material – como do processo – sentido processual.110 Exatamente nesse sentido, Campos estabelece o conceito de parte como um gênero que comporta diversas espécies, de modo que são os sujeitos da lide, titulares dos interesses conflitantes, partes em sentido material, porque os titulares do direito de ação são partes em sentido formal ou processual, e não necessariamente em sentido material, os sujeitos da lide.111 Santos distingue partes nos sentidos processual e material, ao dizer que no primeiro serão sempre autor e réu e que no segundo sentido os sujeitos da lide, isto é, aqueles cujos interesses se conflitam, com a pretensão de um e a resistência de outro.112 O autor destaca que na substituição processual o legitimado está autorizado a defender interesse alheio, mas os efeitos do julgamento atingem apenas os sujeitos da lide. Albergaria Neto esclarece que, enquanto os titulares do direito material estão em posição antagônica, em contenda e em duelo, as partes presentes no processo encontram-se em posição convergente, em participação em igualdade de condições para a obtenção de uma sentença. Assim, enquanto os titulares do direito material desejam o mesmo bem da vida, as partes presentes no processo buscam um provimento favorável.113 Verificada a existência de conceitos distintos de parte, cabe, inicialmente, estabelecer uma definição de parte processual. Chiovenda, segundo Albergaria Neto, opta por conceituar parte no sentido essencialmente processual, centrado naquele que pede e que está presente na demanda, ou melhor, o sujeito que pede ou em relação ao qual se pede, em nome próprio, a tutela jurisdicional.114 Acerca de tal conceituação, Lopes da Costa explica ser “uma definição dogmática, não mais discutida a que deu Chiovenda.”115 Entretanto, há crítica a tal definição por afastar qualquer vínculo com a intervenção de terceiro, em que este, muitas vezes, não pleiteava e 110 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 84. 111 CAMPOS, Ronaldo Cunha. Estudos de Direito Processual. Uberaba: Rio Grande Artes Gráficas, 1974, p. 85. 112 SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57. 113 ALBERGARIA NETO, Jason. Partes na ação de dissolução de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 2001. 270f. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2001, p. 116. 114 ALBERGARIA NETO, 2001, p. 123. 115 LOPES DA COSTA, Alfredo de Araújo. Manual elementar de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Edição Revista Forense, 1956, p. 56. 67 nem a ele se pleiteava, mas estava inserido no processo com o intuito de obter sentença de mérito.116 A partir de tal crítica, Liebman estabelece que são partes do processo os sujeitos do contraditório instituído perante o juiz (os sujeitos do processo diversos do juiz, para os quais este deve proferir o seu provimento).117 Nessa linha, Theodoro Jr define como parte processual o sujeito que intervém no contraditório ou que se expõe às suas conseqüências na relação processual.118 Yarshell119 expõe que, para se determinar a parte no processo, esta deve participar, em contraditório, da formação do provimento, mediante a participação no iter procedimental, devendo considerar-se, além do autor e do réu, os litisconsortes e os intervenientes, de modo que a denominação de parte pertence àqueles que ostentam esta qualidade em contraditório, perante o juiz. Para Marinoni, o conceito de parte em Liebman revela amplitude excessiva, se importado para o direito processual pátrio sem as devidas correções. Isso porque, diante do conceito, seria correto ter-se também o assistente simples como parte. O autor reforça que o próprio Liebman, reconhecendo a amplitude de seu conceito, aproximou-o daquele sugerido por Chiovenda.120 A demonstrar a inviabilidade de se conceituar assistente simples como parte, o autor esclarece que ele será sempre terceiro em relação ao litígio a ser decidido, uma vez que não é titular da relação jurídica de direito material posta em juízo (e por isso não é parte, ao contrário do que sucede com o assistente litisconsorcial). Justamente porque o direito em discussão não lhe pertence, ele não pode ser atingido pela coisa julgada.121 De outro lado, o conceito de parte como sujeito do contraditório também se apresenta restrito ao excluir da conceituação de parte aquele que foi substituído no processo por força de lei (art. 6º do CPC122). De fato, o substituído, embora não faça pedido em nome próprio e tampouco participe do contraditório, também sujeita-se aos efeitos do provimento. Nesse sentido, o escólio de Theodoro Jr123: 116 ALBERGARIA NETO, 2001, p. 123. LIEBMAN, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984. v. I, n. 41, p. 89. 118 THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 84. 119 YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 199, 67. 120 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 169. 121 MARINONI; ARENHART, 2006, p. 183. 122 Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 123 THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 86. 117 68 Uma conseqüência importante da substituição processual, quando autorizada por lei, passa-se no plano dos efeitos da prestação jurisdicional: a coisa julgada forma-se em face do substituído, mas, diretamente, recai também sobre o substituto. Fazzalari construiu o conceito de que será considerado parte aquele ou aqueles que devem receber os efeitos do provimento ou da medida jurisdicional por ele imposta124, de modo que para se determinar quem é parte deve-se observar o pedido requerido, assim como os sujeitos que serão alcançados pela medida jurisdicional pleiteada – isto é, os quais sofrerão os seus efeitos. Da conceituação de Fazzalari de parte não escapam o autor, o réu, o terceiro interveniente e o substituído no processo, ainda que não tenham feito pedido ou em relação a eles não se tenha pedido, ou não tenham participado do contraditório. Lado outro, o conceito de parte como aquele que deve receber os efeitos do provimento exclui o assistente simples. Não obstante o conceito de Fazzalari parecer imune à crítica mais contundente, Albergaria Neto125 conclui que para determinar a situação de ser parte é necessário observar quem pediu, contra quem se pediu e, por conseqüência, o pedido requerido, os sujeitos que participaram do contraditório e os sujeitos que serão alcançados pela medida jurisdicional pleiteada e que sofrerão os seus efeitos. 6.2 Pressupostos processuais Expostos os conceitos de parte no sentido processual, deve-se pontuar que pressupostos processuais são aqueles elementos indispensáveis à existência jurídica do processo e às condições necessárias para o seu desenvolvimento válido. Sinteticamente, são os requisitos necessários para a existência jurídica e o desenvolvimento válido do processo.126 A lei processual não enumerou quais são os pressupostos processuais, ficando tal tarefa a cargo da doutrina. Theodoro Jr127 classifica-os em: subjetivos e objetivos. Os pressupostos processuais subjetivos referem-se aos sujeitos do processo: juiz e partes. Manifestam-se por meio da competência e da ausência de impedimento ou suspeição do juiz. 124 FAZZALARI, Elio. La giustizia civile in Itália. In: FAZZALARI, Elio (Coord.). La giustizia civile nei paesi comunitari. Padova: Cedam, 1994, p, 263, apud ALBERGARIA NETO, 2001, p. 141. 125 ALBERGARIA NETO, 2001, p. 158. 126 DALL’AGNOL, Jorge Luiz. Pressupostos processuais. Porto Alegre: Letras Jurídicas Editora Ltda., 1988, p. 22. 127 THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 343. 69 Do lado dos litigantes, relacionam-se com a capacidade das partes e da representação processual. Os pressupostos processuais objetivos, segundo o referido autor, dizem respeito à regularidade dos atos processuais, segundo a lei que os disciplina, principalmente no tocante à forma do rito, quando for da substância do ato, e à ausência de fatos impeditivos do processo, tais como litispendência, coisa julgada, compromisso arbitral, inépcia da inicial ou nulidade prevista na legislação processual. Embora o tema relativo a pressupostos processuais seja extenso, no presente trabalho, que tenciona investigar a parte legítima para a execução de debêntures, limitar-se-á a analisar os pressupostos processuais subjetivos relativos às partes, isto é, aqueles relativos à capacidade de ser parte, capacidade processual ou ad processum e capacidade postulatória. Feita a devida ressalva, passa-se à análise de quem tem capacidade de ser parte, a qual não se confunde com capacidade processual. Pontes de Miranda explica que a capacidade processual é menos do que a capacidade de ser parte, vez que é possível ter a capacidade de ser parte e não ter a capacidade processual; porém não vice-versa. Onde não há aquela não pode haver essa.128 Para o autor, a capacidade de ser parte é inerente à pretensão à tutela jurídica. Quem tem pretensão à tutela jurídica tem a capacidade de ser parte; quem tem capacidade de ser parte tem a pretensão à tutela jurídica, salvo se está em causa prestação futura para a qual não haja promessa de tutela jurídica ou se não há necessidade de tutela jurídica.129 É certo que quem possui personalidade jurídica possui também capacidade de ser parte, de modo que tanto as pessoas naturais como as pessoas jurídicas, na qualidade de sujeitos de direitos e obrigações, têm plena capacidade de ser parte. Entretanto, o Código de Processo Civil não limita a capacidade de ser parte aos entes personificados, vez que reconhece a determinados entes despersonificados a capacidade de ser parte. O Código de Processo Civil estabelece, em seu art. 13, que serão representados em juízo: i) a massa falida, pelo síndico; ii) a herança jacente ou vacante, por seu curador; iii) o espólio, pelo inventariante; iv) as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos seus bens; e v) o condomínio, pelo administrador ou pelo síndico. 128 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo II. (Arts. 80-160), 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 11. 129 MIRANDA, 1958, p. 13. 70 Enquanto a capacidade de ser parte prende-se à titularidade da pretensão jurídica, a capacidade processual ou de estar em juízo diz respeito à prática e à recepção eficazes de atos processuais, a começar pela petição e a citação, isto é, ao pedir e ao ser citado. É a capacidade de exercício, para que nasça e seja eficaz a relação jurídica processual e se prossiga no processo130. A capacidade processual é também denominada capacidade ad processum. Albergaria Neto explica tratar-se da capacidade de estar em juízo, eis que muitas pessoas previstas pelo direito material como titulares de direitos e obrigações, mesmo detendo personalidade, não possuem exercício pleno da capacidade, o que faz com elas possuam capacidade de ser parte, mas não capacidade processual131. O art. 7º do Código de Processo Civil estabelece que “toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo”. Daí, levando em conta que o art. 5º do Código Civil dispõe que “a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”, conclui-se que, em regra, o sujeito com mais de 18 anos possui capacidade processual. É claro que se o sujeito, ainda que possua 18 anos de idade completos, tiver enfermidade ou condição que lhe retire a aptidão e o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil, sendo considerado absoluta ou relativamente incapaz132, não terá capacidade processual para estar juízo, devendo estar representado ou assistido por seu curador. Lado outro, dá-se a representação processual quando uma pessoa (capaz ou incapaz) precisa agir em juízo. Esta forma de representação é originária da exclusiva atribuição dos advogados de falarem, em nome das partes, aos juízes. Por isso, a 130 MIRANDA, 1958, p. 29. ALBERGARIA NETO, 2001, p. 153. 132 Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. 131 71 representação processual é esta relação entre a pessoa que necessita agir em juízo e o advogado que fala por ela.133 A presença de advogados representando as partes no processo é essencial. Só o advogado tem o jus postulandi e deve exercer este munus publico com independência. Tratase de um colaborador parcial da justiça, cuja atividade, revestida de imunidades, contribui decisivamente para um processo verdadeiramente dialético, sendo certo que sua atuação atende não apenas às partes, mas sobretudo ao interesse público.134 O Código de Processo Civil, em seu art. 36, estabelece que a parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Da exegese legal extrai-se que, caso a parte não esteja representada por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, não terá ela capacidade postulatória e, por tal razão, não se fará ouvir perante o Juízo. 6.3 Condições da ação Cumpre reconhecer que o Código de Processo Civil filiou-se à teoria eclética do processo, que condiciona o exame do mérito ao exame dos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo e das condições da ação, os quais são a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido. Assim, eleita a teoria eclética pelo Código de Processo Civil, a qual, ilustre-se, foi formulada por Enrico Tulio Liebman, incumbe ao juiz, antes de entrar no exame de mérito, verificar se a relação processual que se instaurou desenvolveu-se regularmente e se o direito de ação pode ser validamente exercido no caso concreto135. Condições da ação, para Marinoni136, seriam requisitos para a existência da ação, de modo que quando não estivessem presentes as condições não haveria ação, nem mesmo função jurisdicional. Mas o autor critica a teoria eclética que formula tal conceito, tendo em vista que o juiz não exerceria função jurisdicional se não julgasse o mérito e se não estivessem presentes as condições da ação. 133 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 164. PORTANOVA, 1999, p. 165. 135 PELLEGRINI, Ada. As condições da ação penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 16, p. 179-199, 2007. 136 MARINONI; ARENHART, 2006, p. 63. 134 72 Para contrapor-se à teoria eclética, o autor destaca a existência do direito de requerer ao juiz uma manifestação, ainda que a despeito da presença de uma condição da ação. Para ele, se tal prerrogativa não é um direito de ação, porque as suas condições não estão presentes, seria um outro direito muito importante, já que obriga o juiz a atender à possibilidade da parte recorrer à Justiça.137 Acrescenta tal jurista que as condições da ação, por dizerem respeito ao direito material, fazem com que a afirmação da ausência de uma delas seja um caso de afirmação macroscópica de falta de amparo do autor perante o direito material. Exemplifica que se no processo individual o juiz afirma que o autor não tem legitimidade porque não é o titular do direito material ele está afirmando que o autor não tem direito material postulado. Alinha-se ao entendimento supracitado Didier Júnior138 ao afirmar ser fato inegável que quando ocorrer extinção do processo sem julgamento do mérito haverá exercício do direito ação, assim como de jurisdição, pois esta se aplica ao caso concreto ainda que para dizer que o autor não preencheu determinadas condições ou requisitos impostos pela lei processual (também direito) para que o processo prossiga regularmente. Em posição que se mostra sensível às considerações dos ilustres processualistas retroreferidos, pontua-se que os julgadores, quando instados a se manifestarem sobre preliminar de carência de ação, têm postergado a sua decisão para a sentença, sob o fundamento de que tal matéria se confunde com o mérito, fato este certamente visto por qualquer um que vivencie o meio forense. Em defesa à teoria eclética, Thedoro Jr139 sustenta que, para os que entendem que a ação não é um direito concreto à sentença favorável, mas sim um poder jurídico de provocar a sentença de mérito, isto é, a sentença que componha definitivamente o conflito de interesses de pretensão resistida, a conceituação das condições da ação deve ser procurada apenas no campo do direito processual, e não no do direito material controvertido. Acerca da autonomia do direito processual, Santos140 exemplifica que seria absurdo filosófico, mas não ilógico e contraditório, afirmar que todo credor tem direito de receber de seu devedor, mas quem tem direito de propor ação para recebimento do crédito é o pai do credor, exatamente porque a definição 137 MARINONI; ARENHART, 2006, p. 63. DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2918>. 139 THEODORO JÚNIOR, 1980, p. 42. 140 SANTOS, 1997, p. 49-51. 138 73 da relação processual, em conseqüência, da legitimação para a causa é dada por conceito próprio e exclusivo. Sem embargo da discussão acerca da existência ou não das condições da ação como requisito para a prestação jurisdicional, verdade é que o Código de Processo Civil – certo ou errado – determina que para obterem um provimento devem as partes atender às condições da ação, que são, vale repetir, a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido. Seguindo o mesmo critério utilizado para a análise dos pressupostos processuais, aqui também o presente trabalho não examinará todas as condições da ação, mas somente a legitimidade das partes – ou legitimidade ad causam –, que constitui o foco de interesse deste estudo, cujo objetivo é identificar a quem pertence a legitimidade para a execução de debêntures. O Código de Processo Civil, em seu art. 3º, estabelece que para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. Mais adiante, especificamente no art. 267, dispõe que o processo será extinto sem resolução de mérito quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual. A legitimidade é a titularidade ativa e passiva da ação, na linguagem de Liebman.141 Assim, legitimados são os sujeitos da lide, isto é, os titulares dos interesses em conflito. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão, conforme lição de Amaral Santos.142 Além da legitimação ordinária, isto é, a que decorre da posição ocupada pela parte como sujeito da lide, prevê o direito processual, em casos excepcionais, a legitimação extraordinária, que consiste em permitir-se, em determinadas circunstâncias, que a parte demande em nome próprio, mas na defesa de interesse alheio, hipótese esta chamada de “substituição processual”.143 Especificamente em relação à legitimidade para o ajuizamento de execução, o art. 566 do Código de Processo Civil estabelece que podem promover a execução forçada: o credor, a quem a lei confere título executivo, e o Ministério Público, nos casos prescritos em 141 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di Diritto Precessuale Civile. Ed. 1952, n. 14, p. 42, apud THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 67. 142 AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 146. 143 THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 67. 74 lei. Credor, segundo a lei, está empregado como titular do direito exigível do executado, isto é, do devedor.144 O art. 567 do Código de Processo Civil estabelece que também podem promover a execução, ou nela prosseguir: o espólio; os herdeiros ou os sucessores do credor, sempre que, por morte deste, lhes for transmitido o direito resultante do título executivo; o cessionário, quando o direito resultante do título executivo lhe foi transferido por ato entre vivos; e o subrogado, nos casos de sub-rogação legal ou convencional. Embora o Código de Processo Civil, no livro II, que trata do processo de execução, não se refira à hipótese de substituição processual, o seu art. 598 prevê que “aplicam-se subsidiariamente à execução as disposições que regem o processo de conhecimento”, razão pela qual se admite também no processo executivo o instituto do substituto processual, previsto no art. 6º do CPC. Araken de Assis145, referindo-se à substituição processual – ou legitimidade extraordinária, como ele prefere – no processo executivo, pontua que o maior exemplo é o agente fiduciário (trustee), o qual, a teor do art. 68, §3º, da Lei n 6.404/1976, tem “qualquer ação” em caso de inadimplemento da obrigação pela companhia emissora das debêntures. Assim, são partes legítimas para figurar no pólo ativo de execução de título executivo extra-judicial: o credor, a quem a lei confere o título executivo extrajudicial; o Ministério Público, nos casos prescritos em lei, o espólio; os herdeiros ou sucessores do credor, sempre que, por morte deste, lhes for transmitido o direito resultante do título de crédito; e o substituto processual, nos termos do art. 6º do CPC. 144 AMARAL SANTOS, Moacir. Primeiras linhas de Direito Processual Civil: adaptados ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 238. 145 ASSIS, Araken de. Manual de processo de execução. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 220. 75 7 LEGITIMAÇÃO PARA EXECUÇÃO DE DEBÊNTURES 7.1 Legitimação extraordinária do agente fiduciário O §1º do art. 61 da Lei n. 6.404/1976 estabelece que “a escritura de emissão, por instrumento público ou particular, de debêntures distribuídas ou admitidas à negociação no mercado, terá obrigatoriamente a intervenção de agente fiduciário dos debenturistas”. Inferese, portanto, que a presença do agente fiduciário é obrigatória na emissão pública e facultativa na emissão privada.146 Intervindo o agente fiduciário na escritura de emissão do mútuo debenturístico, é fora de dúvida que ele possui legitimação para promover qualquer ação para proteger direitos ou defender interesses dos debenturistas, tais como executar garantias reais e requerer a falência da companhia emissora, se não existirem garantias reais, ex vi do §3º do art. 68 da Lei n. 6.404/1976. A clareza da Lei n. 6.404/1976 não deixa dúvida acerca da legitimação do agente fiduciário para a promoção de todas as ações contra a companhia emissora, com o fim de proteger os interesses da comunhão de debenturistas. Entretanto, colhe-se na doutrina divergência acerca da natureza da legitimação do agente fiduciário – isto é, se ordinária ou extraordinária. Para Carvalhosa, o agente fiduciário representa em juízo a comunhão de debenturistas, sendo o único legitimado a promover a execução das garantias reais dadas pela companhia inadimplente. Essa legitimação é ordinária e exclusiva, não sendo concorrente com a dos debenturistas individualmente. Assim, não podem estes promover a execução da dívida debenturística, seja no total, seja na fração do mútuo por eles tomada.147 146 Nota Explicativa CVM Nº 27, de 23 de novembro de 1983. A Instrução estabelece, em conformidade com a lei, inicialmente, que a obrigatoriedade de nomeação de um agente fiduciário somente se configura na hipótese de emissão pública de debêntures a serem distribuídas no mercado de valores mobiliários (art. 1º). De conseguinte, nas emissões particulares a indicação de um agente fiduciário tem caráter facultativo. 147 CARVALHOSA, 2002, p. 804. 76 Como sustentou o Dr Flávio Luiz Yarshell148, no I Seminário de Direito Administrativo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, realizado entre 29 de setembro e 3 de outubro de 2003, “na legitimação ordinária parte é aquele que é titular da relação jurídica material controvertida”. Assim, para dizer que o agente fiduciário possui legitimação ordinária é imprescindível que o reconheça como titular da relação jurídica material. No Direito anglo-saxão, o trustee of debentures assume a posição de parte no negócio de emissão de debênture.149 Há entre ele e os debenturistas um verdadeiro negócio fiduciário (trust), que é aquele em que se transmite uma coisa ou um direito a outrem, para determinado fim, assumindo o adquirente a obrigação de usar deles segundo aquele fim e, satisfeito este, de devolvê-lo ao debenturista.150 Entretanto, conforme já anotavam Teixeira e Guerreiro151, não existe um negócio fiduciário entre os debenturistas e o agente, já que este é composto por dois elementos: de natureza real e de natureza obrigacional. No primeiro, há a transmissão da propriedade; e o segundo relaciona-se com a sua restituição ao transmitente. Contudo, na constituição do agente fiduciário os debenturistas não lhe transmitem o direito de crédito. Comparando o trust do Direito anglo-saxão com a constituição do agente fiduciário, Mário Engler Pinto Júnior152 também sustenta que não existe propriamente um negócio fiduciário entre a coletividade dos obrigacionistas e seu representante legal (agente fiduciário), pois aqueles não transferem a este a titularidade de seu direito de crédito contra a companhia emissora. Assim, se não há transferência da propriedade das debêntures ou da titularidade do crédito por elas representado ao agente fiduciário, é forçoso reconhecer que ele não é o titular da relação jurídica material controvertida. Por esse motivo, a sua legitimação não é ordinária, mas sim extraordinária, já que possui autorização legal para pleitear em nome próprio direito alheio. A esse respeito, o art. 6º do CPC: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Exatamente nesse sentido, Borba153 defende que o agente fiduciário recebeu da lei essa legitimação extraordinária, tanto que ele próprio é o autor da ação. Procede, portanto, 148 YARSHELL, Flávio Luiz. As “partes” no Processo Administrativo e a legitimação dos interessados. I SEMINÁRIO DE DIREITO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em: <http://www.tcm.sp.gov.br/legislacao/doutrina/29a03_10_03/5flavio_luiz3.htm>. 149 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 29. 150 LIMA, Otto Souza. Negócio fiduciário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1962, p. 243. 151 TEIXEIRA; GUERREIRO, 1979, p. 368. 152 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 29. 153 BORBA, 2005, p. 160. 77 como substituto processual dos debenturistas, sendo a sua legitimação extraordinária exclusiva, sempre que a matéria tratada se refira à comunhão, isto é, à coletividade representada pelos titulares da emissão. Neste ponto, vale repetir que, Araken de Assis154, referindo-se à legitimidade extraordinária de parte no processo executivo, destaca que o “maior exemplo é o agente fiduciário (trustee), o qual, a teor do art. 68, §3º, da Lei n. 6.404, de 15.12.76, tem qualquer ação em caso de inadimplemento da obrigação pela companhia emissora das debêntures”. Assim, o agente fiduciário é um substituto processual e, como tal, goza da condição de parte no processo, estando habilitado a atuar segundo suas próprias vontades e escolhas, sem vínculos às do substituído. Para tanto, ele propõe a demanda inicial ou oferece contestação, formula pedidos e requerimentos ao longo do procedimento, recorre e etc. Tem todos os ônus inerentes a essa condição, inclusive o de realizar preparos de custas.155 O extinto Tribunal de Alçada Cível do Estado do Rio de Janeiro, por meio de sua Oitava Câmara Cível, em julgamento à apelação cível de número 28.632, relatada pelo desembargador Amyntor Villela Vergara, reconheceu que o agente fiduciário, nos termos do art. 68 da Lei n. 6.404/1976, possui legitimação extraordinária para a execução de debêntures, em acórdão assim ementado: Execução fundada em título extrajudicial. Cerceamento de defesa inexistente se o juiz julga embargos de devedor conforme o estado do processo quando desnecessária a produção de provas pericial e oral. Inviabilidade da denunciação da lide quando se trata de execução. Superação de eventual ausência de citação, se a parte comparece a juízo e não se limita a argüi-la. Processo com rito previsto no art. 585, inciso III, do CPC. O agente fiduciário dos debenturistas tem legitimidade ativa extraordinária para promover a execução da garantia real: Lei nº 6.404, de 15-12-76. Caracterização da mora da sociedade emitente das debêntures. Confirmação da sentença que julgou improcedentes os embargos do executado e bem fixou os honorários advocatícios. O voto condutor do acórdão está fundamentado na compreensão de que o agente fiduciário representa a comunhão dos debenturistas e pode usar, ele mesmo, “de qualquer ação para proteger direitos ou defender interesses dos debenturistas, respondendo pelos prejuízos que a eles causar, reputando-se não escritas as cláusulas limitadoras de seus deveres, atribuições e responsabilidade”. 154 ASSIS, 1998, p. 220. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. v. II, p. 311. 155 78 Na hipótese, fazendo expressa referência à autorização constante do §3º do art. 68 da Lei n. 6.404/1976, o v. acórdão concluiu que se trata, sem dúvida, de uma das hipóteses de legitimação ativa extraordinária, com atribuição do direito de ação processual a quem não é parte na relação de direito substantivo, caracterizada, assim, a figura da substituição processual, expressamente prevista no art. 6º do Código de Processo Civil. Dessa forma, é inquestionável que o agente fiduciário tem legitimidade extraordinária para promover a ação contra a companhia emissora. A dúvida, na realidade, consiste em saber se a sua legitimação extraordinária exclui a legitimação dos debenturistas para agirem individualmente contra a companhia emissora em busca da satisfação de seus créditos, o que será objeto de exame no tópico subseqüente. 7.2 Inexistência de exclusão do direito de ação dos debenturistas pela lei n. 6.404, de 1512-1976 Antes de passar à análise da legitimação dos debenturistas para a cobrança de seu crédito, pontua-se que Barbosa Moreira classificou a legitimação extraordinária em autônoma ou subordinada, exclusiva ou concorrente e primária ou subsidiária. A sua classificação foi assim sintetizada por José Augusto Delgado – hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça156: a) Legitimação extraordinária autônoma, que ocorre quando “o legitimado extraordinário tem absoluta independência para atuar”, sem necessitar “da iniciativa, da vontade ou da intervenção do legitimado ordinário e podendo agir até contra a vontade expressa deste”. b) Legitimação subordinada que se faz presente quando apenas “os protagonistas da relação substancial podem iniciar ou responder a demanda, sendo a participação do legitimado extraordinário em caráter acessório. E o caso do assistente, que se alia a uma das partes contra a outra, em defesa de um direito que é do assistido e não seu. Também daquele que é chamado ao processo por via de denunciação da lide: da mesma forma que o assistente, alia-se o denunciado ao denunciante, em defesa de um direito que é deste e não daquele.” c) Legitimação extraordinária autônoma e exclusiva por excluir “a possibilidade de o legitimado atuar em Juízo como parte.” “É o caso da defesa dos bens dotais da mulher pelo marido, cabendo somente a este demandar e ser demandado a respeito daqueles bens. A legitimação da mulher fica restrita a poder atuar no processo como assistente do marido.” 156 DELGADO, José Augusto. Reflexões sobre a substituição processual. Data de Publicação: 1994. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16640>. 79 d) Legitimação autônoma e concorrente quando “não exclui a ordinária e nem esta aquela”, permitindo o aperfeiçoamento “da relação processual, com a só presença do legitimado ordinário ou do extraordinário, indistintamente, podendo também haver a atuação simultânea de ambos.” e) Legitimação extraordinária autônoma concorrente primária por caber, também, ao legitimado extraordinário “a instauração do processo, independentemente de qualquer atitude do legitimado ordinário. É o caso da ação declaratória de nulidade de casamento contraído perante autoridade incompetente (art. 208, do CC). Podem propô-la os cônjuges (legitimados ordinários), o Ministério Público e qualquer interessado, sem nenhuma ordem de preferência entre eles.” f) Legitimação extraordinária autônoma concorrente subsidiária, que se faz presente “quando o legitimado extraordinário só pode agir se o ordinário deixar de fazê-lo em certo prazo. Exemplo disso é a ação de responsabilidade civil contra os administradores pelo prejuízo causado à sociedade por ações (art. 159, § 3°, da Lei n. 6.404/76). A ação compete à sociedade, mas, caso não o faça dentro de três meses contados da deliberação da Assembléia Geral, qualquer acionista poderá fazê-lo, no interesse da pessoa jurídica. Também é o caso da ação revocatória, que qualquer credor poderá propor se houver omissão do síndico da falência (art. 55, do Dec-lei n. 7.661/45).” A legitimação extraordinária, portanto, nem sempre exclui a legitimação ordinária do titular da relação de direito material controvertida, já que a substituição processual pode ocorrer em caráter tanto exclusivo como concorrente. Contudo, especificamente em relação à atuação do agente fiduciário como substituto processual, parte da doutrina brasileira tende a concluir pela exclusividade de sua legitimação. Carvalhosa157 sustenta que a legitimação é exclusiva do agente fiduciário. Nesse sentido, afirma ser fundamento impeditivo da execução individual do mútuo o fato de o seu ajuizamento poder levar à precipitada declaração judicial da insolvência da companhia. Tal declaração importaria em prejuízo do princípio da par conditio, que é próprio fundamento do mútuo debenturístico. Tavares Borba158 destaca que o agente fiduciário detém a exclusividade da legitimação porque somente ele recebeu da lei a faculdade de agir no interesse da coletividade. A comunhão [...] constitui uma massa de origem legal, e a representação dessa massa foi conferida, de forma exclusiva, ao agente fiduciário. No mesmo sentido, Mário Engler Pinto Júnior159 reforça a tese da legitimação exclusiva do agente fiduciário ao expor que, embora a titularidade do direito de crédito permaneça nas mãos dos debenturistas, os respectivos poderes de gestão cabem 157 CARVALHOSA, 2002, p. 805. BORBA, 2005, p. 161. 159 PINTO JÚNIOR, 1982, p. 29. 158 80 exclusivamente ao agente fiduciário, já que a lei lhe atribui a tarefa, sancionada através de deveres e responsabilidades, de agir na defesa dos interesses da comunhão. Ao fazer referência às atribuições do agente fiduciário, Queiroz Assis160 destaca que é do agente a legitimidade processual para ingressar juízo contra a sociedade, podendo cobrar o valor da dívida, requerer a falência ou executar as garantias dadas e que o debenturista não pode, individualmente, praticar esses atos, salvo na hipótese de inexistência de agente fiduciário. Embora o assunto não seja recorrente nos tribunais, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul161, em julgamento ao Agravo de Instrumento de número 186.055.737, julgado pela 1ª Câmara Cível e relatado pelo desembargador Luiz Felipe de Azevedo Gomes, concluiu pela exclusividade da legitimação do agente fiduciário para a cobrança das debêntures, em acórdão assim ementado: DEBÊNTURES. AGENTE FIDUCIÁRIO. LEGITIMAÇÃO ATIVA. RESPONSABILIDADE PERANTE OS DEBENTURISTAS. No sistema da Lei n. 6.404, de 1976, o agente fiduciário representa em juízo a comunhão de debenturistas, sendo o único legitimado a promover a execução das garantias reais dadas pela companhia inadimplente. Permanecendo inerte, responde perante os debenturistas pelos prejuízos decorrentes de sua omissão. Agravo não provido. O voto condutor do v. acórdão esposa que, com o advento da Lei n. 6.404, de 1976, que regula por inteiro a matéria relativa a debêntures, foi introduzida a figura do agente fiduciário, com amplos poderes para representar em juízo a comunhão dos debenturistas, sendo total o silêncio sobre a legitimação individual dos debenturistas, em qualquer das hipóteses previstas no diploma anterior. No caso citado, o acórdão, considerando a revogação do art. 18 do Decreto Lei n. 781/1938 – que previa a possibilidade de ação individual dos debenturistas, o reconhecimento legal da comunhão dos debenturistas e a criação de órgãos de deliberação e de representação judicial – concluiu que não está mais o debenturista legitimado a promover a ação de execução contra a companhia em qualquer hipótese. Assim, sintetizando os fundamentos acima colacionadas, tem-se que a ação individual do debenturista seria inviável em razão de poder levar a companhia emissora a uma precipitada falência, de prejudicar o princípio da par conditio, de ter a lei conferido apenas ao 160 ASSIS, Olney Queiroz. Direito Societário. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004, p. 136-137. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento de n. 186.055.737. Julgado em 30.09.1986. Publicado em JTARGS, v. 61, p. 213. 161 81 agente fiduciário o poder de ajuizar ação contra a companhia e de o art. 18 do Decreto-lei n. 781, de 1938, ter sido revogado pela Lei n. 6.404/1976. Cada um dos argumentos citados pela doutrina e pela jurisprudência como fundamento da tese de legitimação exclusiva do agente fiduciário merece aprofundada reflexão, a fim de que possa ser convalidado ou afastado como óbice à ação individual do debenturista em face da companhia emissora. Assim, passa-se, a partir de agora, à análise de cada um dos fundamentos: a) A possibilidade de a ação individual conduzir a companhia emissora a uma precipitada falência e de prejudicar o princípio da par conditio não constitui óbice à ação individual do debenturista. A priori, há que se reconhecer que o fato de o mútuo debenturístico ter caráter unitário motivou renomados juristas brasileiros a sugerirem a adoção por parte da lei pátria do modelo inglês. Esse modelo, como já explicitado, conferia ao trustee a titularidade da ação executiva, evitando que os debenturistas agissem precipitada e desordenadamente, causando prejuízo não apenas a eles próprios, mas também à companhia emissora.162 Sensibilizado pelos anseios dos comercialistas, o legislador pátrio, na exposição de motivos da Lei n. 6.404/1976, fez referência expressa ao fato de, para maior proteção dos investidores do mercado, o projeto prever e regular a função do agente fiduciário dos debenturistas, tomando por modelo o “trustee” do direito anglo-saxão, e adaptando-o à nossa técnica jurídica.163 Entretanto, embora o legislador pátrio tenha, confessadamente, se inspirado no trustee do Direito anglo-saxão, a legislação brasileira dele se diferencia por inexistir a transferência fiduciária da coisa para o agente fiduciário, como ocorre no trust. No direito brasileiro inexiste qualquer negócio fiduciário entre os debenturistas e o agente fiduciário, como bem assinalam Franco e Sztajn.164 Por esse motivo, embora se reconheça e aplauda a eficiência do trustee que, na qualidade de titular das debêntures, tem legitimação ordinária para agir em defesa dos interesses comunitários dos debenturistas, fato é que a Lei n. 6.404/1976 não aderiu ao modelo inglês, preferindo apenas conferir legitimação extraordinária do agente fiduciário, sem que, ademais, excluísse expressamente a legitimação dos debenturistas. 162 MENDONÇA, 1946. v. IV, p. 158. LAMY FILHO, 1997, p. 233. 164 FRANCO; SZTAJN, 2005. v. 2, p. 119. 163 82 Assim, apesar de serem verdadeiras as preocupações decorrentes da possibilidade de a ação individual do debenturista conduzir a companhia emissora a uma falência precipitada, além de prejudicar o princípio da par conditio, tal argumento é apto apenas para demonstrar a necessidade de se repensar a lei brasileira, mas não a impedir a ação individual do debenturista, a qual não encontra nenhuma restrição na Lei n. 6.404/1976. Apenas para ilustrar a lacuna da lei brasileira nesse sentido, pontua-se que no Direito português, apesar de também não ter seguido o modelo inglês, o ajuizamento de demanda contra a sociedade emissora de debêntures (lá chamadas de “obrigações”) requer prévia deliberação da assembléia de obrigacionistas, a qual deve autorizar o representante comum dos obrigacionistas a promover a ação.165 A Lei nº 6.404/1976, diferentemente da lei portuguesa, não faz nenhuma ressalva ao fato de a ação individual do debenturista em face da companhia emissora exigir prévia deliberação da assembléia de debenturistas e tampouco estabelecer que o agente fiduciário detenha legitimação exclusiva para o ajuizamento das ações concernentes à cobrança das debêntures. Dessa forma, ainda que sejam relevantes as ponderações de Carvalhosa, especialmente a de que uma ação precipitada do debenturista pode conduzir a companhia emissora à falência, além de prejudicar o princípio da par conditio, não têm o poder de impedir o ajuizamento de ação individual por parte dos debenturistas, vez que a legislação não excluiu expressamente tal direito do debenturista. b) O entendimento de que a legitimação do agente fiduciário é exclusiva, em razão de a Lei n. 6.404/1976 conferir apenas a ele o direito de ação contra a companhia emissora, viola o princípio da legalidade, o princípio político, o princípio da inafastabilidade e o princípio do livre acesso ao Judiciário. Em relação ao entendimento de que a lei autorizou apenas o agente fiduciário a propor ação judicial contra a companhia emissora, contrapõe-se o fato de este militar contra o princípio da legalidade, consagrado no inciso II do art. 5º da Constituição Federal, do 165 PORTUGAL. Código das Sociedades Comerciais. Artigo 355 Assembléia de obrigacionistas. “1 - Os credores de uma mesma emissão de obrigações podem reunir-se em assembléia de obrigacionistas. [...].4 - A assembléia os obrigacionistas delibera sobre todos os assuntos que por lei lhe são atribuídos ou que sejam de interesse comum dos obrigacionistas e nomeadamente sobre: a) Nomeação, remuneração e destituição do representante comum dos obrigacionistas; b) Modificação das condições dos créditos dos obrigacionistas; c) Propostas de concordata e de acordo de credores; d) Reclamação de créditos dos obrigacionistas em acções executivas, salvo o caso de urgência; e) Constituição de um fundo para as despesas necessárias à tutela dos interesses comuns e sobre a prestação das respectivas contas; f) Autorização do representante comum para a proposição de acções judiciais.” 83 qual deflui o princípio da autonomia da vontade, que coloca a lei como único limite à ação do particular.166 O princípio da autonomia da vontade confere ao particular a liberdade de agir, desde que não haja obstáculo ao seu exercício, isto é, a existência de uma lei proibitiva. Nesse viés, se a Lei n. 6.404/1976 não estabelece nenhuma regra restritiva ao direito de ação do debenturista, não pode o intérprete concluir pela exclusão do direito de ação, já que o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Além de ofender o princípio da autonomia, que confere ao particular o direito de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a tese que defende a exclusão do direito de ação do debenturista em face da companhia emissora também vulnera os princípios processuais político e da inafastabilidade, ambos consagrados no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Para Portanova167, o princípio político oportuniza o estudo da questão essencial da democracia, que é a participação do cidadão, por meio do processo, para a realização de seu direito individual e social. Assim, entende-se como político o poder da parte de atuar no centro das decisões do Estado. Enfim, é a abertura que o processo dá para que o cidadão ponha a questão e veja discutida e decidida a sua pretensão. Reportando-se ao princípio da inafastabilidade, Portanova168 ressalva que, “quando o inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal diz que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, verdadeiramente está abrindo o Judiciário a todo tipo de discussão” e, afinal, conclui que guarda “estreita relação com o princípio do acesso à Justiça”. Ademais, se os princípios gerais de direito, nos quais se funda um Estado Democrático de Direito, consagram a subjugação da ameaça ou lesão a direito à apreciação do Poder Judiciário e o livre acesso à Justiça, é certo que as normas que excluem o direito de ação devem ser consideradas como regras excepcionais. Por tal razão, merecem ser interpretadas restritivamente. Maximiliano169 explica a interpretação restritiva que se deve dispensar às normas excepcionais, enumerando os seguintes brocados: quod vero contra rationem juris receptum 166 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 260. 167 PORTANOVA, 1999, p. 31p. 168 PORTANOVA, 1999, p. 82-83. 169 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 226. 84 est, non este produc endum ad conseguentias170; in his quoe contra rationem juris constituta sunt, non possumus segui regulam juris171; Quoe propter necessitatem recepta sunt, non debent in argumentum trah.172 Exatamente por essa razão, Rizzardo173 destaca que, embora os titulares de debêntures sejam representados pelo agente fiduciário, não se retira a legitimidade dos mesmos de agirem pessoalmente contra a companhia emissora e, muito menos, significa renúncia a direito próprio garantido na Carta Constitucional e no art. 3º do Código de Processo Civil. O ilustre comercialista faz expressa referência ao acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro174 em julgamento ao Recurso de Apelação n. 1998.001.13796, relatado pelo desembargador Walter D’ Agostino, julgada na data de 05/08/1999, que reconheceu a legitimidade do debenturista para agir contra a companhia emissora, ementado: AÇÃO DE COBRANÇA – DEBÊNTURES CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO OCORRENTE INICIAL APTA – LEGITIMIDADE ATIVA AUSÊNCIA DE NULIDADE EM RELAÇÃO À APLICAÇÃO DO ART. 294 INADIMPLEMENTO. 1) Não ocorre cerceamento de defesa, se a respeito dos documentos apresentados não incidiu alegação de falsidade ou adulteração, e a questão a ser decidida é exclusivamente de direito. 2) A inicial não é inepta quando a causa petendi está presente e é resultado da conjugação dos fatos narrados no que respeita à relação jurídica dele derivada. 3) Os Debenturistas ao designarem o Agente Fiduciário seu representante, não estão renunciando ao que dispõe o art. 30 do CPC. Trata-se de outorga extraordinária mas sem exclusividade para a representação em Juízo. 4) Não é nulo o processo se o Juízo, com base no que dispõe o art. 296 do CPC, retrata-se de maneira sucinta, sem grandes formalidades, mas deixando claro o motivo. O inadimplente que não cumpre o que foi combinado em Assembléia por ele próprio, e no seu interesse realizada, deixando de pagar nos prazos devidos os juros remuneratórios e demais obrigações assumidas, é de ser condenado a pagar o valor estabelecido nas debêntures e seus acréscimos. Para melhor analisar a decisão em comento, é importante considerar que se trata de ação de cobrança proposta por debenturista na qual se alega o vencimento antecipado das debêntures – emitidas mediante escritura de emissão que contou com a intervenção de agente fiduciário –, em razão do inadimplemento da companhia emissora quanto ao pagamento dos juros remuneratórios. 170 O que, em verdade, é admitido contra as regras gerais de Direito não se estende a espécies congêneres. No tocante ao que é estabelecido contra as normas comuns de Direito, aplicar não podemos regra geral. 172 O que é admitido sob o império da necessidade, não deve estender-se aos casos semelhantes. 173 RIZZARDO, 2007, p. 369. 174 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 1998.001.13.796. Rel. Des. Walter D’Agostino. Julgado em: 05.08.1999. 171 85 Em defesa, a companhia emissora suscitou, entre outras matérias, a ilegitimidade ativa do debenturista, vez que, pela escritura de emissão, a qual guarda coerência com o disposto no art. 68, §3º, alínea “a”, da Lei n. 6.404/1976, o direito de ação para exigir o pagamento do valor nominal caberia exclusivamente ao agente fiduciário, por expressa substituição processual, em detrimento da atuação individual dos debenturistas. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a preliminar de ilegitimidade ativa do debenturista, consignando que, embora o §3º do art. 68 da LSA confira ao agente fiduciário a faculdade de valer-se de qualquer ação para proteger os debenturistas, tal outorga não é exclusiva, e muito menos implica renúncia a direito próprio garantido na Carta Constitucional e no art. 3º do Código de Processo Civil. No campo administrativo, vale destacar que a própria Comissão de Valores Mobiliários175, em julgamento ao Processo Administrativo de n. RJ2003/5400, relatado por Pedro Oliva Marcílio de Sousa, tendo como requerente a sociedade C & D DTVM Ltda, entendeu pela possibilidade de o próprio debenturista agir individualmente em juízo contra a companhia emissora. Nesse caso, a sociedade C & D DTVM Ltda. requereu a renúncia de sua função de agente fiduciário perante a companhia emissora, sob o fundamento de que a emissora não disponibilizou os recursos necessários à execução judicial dos créditos debenturísticos e ao pagamento de seus honorários e de que o debenturista não se posicionou quanto ao fornecimento dos recursos para sustentar a demanda judicial de execução. A CVM, inicialmente, considerou que o Estado do Paraná era o titular único das debêntures e que não havia uma comunhão de credores debenturísticos. Por esse motivo, a Comissão entendeu que o papel do agente fiduciário, no caso, perdeu importância, dado que sua função é, justamente, evitar que as dificuldades naturais da atuação coletiva dos debenturistas prejudiquem esses investidores. A decisão também destaca que o Estado do Paraná, em resposta ao ofício remetido pela CVM, confirmou a aquisição de todas debêntures e informou que se o fato de as debêntures serem nominativas e não endossáveis não fosse um empecilho a Procuradoria do Estado do Paraná tomaria as medidas judiciais cabíveis à satisfação dos créditos debenturísticos. 175 BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo CVM nº RJ2003/5400. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=5059-0.HTM>. 86 Afinal, a Comissão de Valores Mobiliários, considerando que o debenturista – Estado do Paraná – informou que atuaria diretamente na defesa de seus direitos, mediante ajuizamento das medidas judiciais cabíveis, acolheu o pedido de renúncia à função de agente fiduciário por parte do requerente C & D DTVM Ltda, deixando de indicar um novo agente fiduciário. Em que pese a ressalva de que todas as debêntures emitidas pela companhia emissora eram de titularidade de um único credor e que, por essa razão, não haveria comunhão de debenturistas, a decisão da Comissão de Valores Mobiliários, ao deixar a cargo do debenturista a execução de seu crédito, demonstra claramente que não há na Lei n. 6.404/1976 restrição ao direito de ação individual. Outrossim, a exclusão do direito de ação individual do debenturista para defender/cobrar o seu crédito perante a companhia emissora não se sustenta no entendimento de que a Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, autorizou expressamente apenas o agente fiduciário a promover ação contra a companhia emissora, especialmente porque permittitur quod nom prohibetur.176 c) Inexistência de revogação total do Decreto-lei nº. 781, de 12 de outubro de 1938 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul177 concluiu que o debenturista não está legitimado a promover execução contra a companhia, em qualquer hipótese, por considerar que o preceito excepcional do art. 18 do Decreto-Lei n. 781/1938 encontra-se revogado, em razão do reconhecimento legal da comunhão dos debenturistas e da criação de órgãos de deliberação e de representação judicial pela Lei n. 6.404/1976. A lei tem seu tempo. Entra em vigor na data estabelecida e vigora até o termo nela fixado ou até que outra a revogue. Revogar é tornar sem efeito uma. A revogação pode ser total, quando se denomina “ab-rogação”, e torna sem efeito toda a lei. Também pode ser parcial, quando se denomina “derrogação”, e torna sem efeito apenas uma parte da lei.178 176 Presume-se permitido tudo aquilo que a lei não proíbe. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento de número 186.055.737. Julgado em 30.09.1986. Publicado em JTARGS v. 61 p. 213. 178 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 24. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 389-391. 177 87 Gomes179 explica que revogar é o mesmo que extinguir a norma, retirando-lhe a eficácia formal, isto é, sua vigência, sua existência. Comporta duas espécies: a ab-rogação (supressão total da norma anterior, a qual é retirada inteiramente do mundo jurídico); e derrogação (consistente no corte ou na supressão de parte da norma, que segue em vigor com os dispositivos remanescentes, em relação aos quais não houve alteração). A revogação é expressa quando se refere determinantemente a lei ou leis revogadas. É tácita ou implícita quando seja incompatível com a lei revogada, ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.180 Aliás, sobre revogação tácita, cita-se o art. 2º do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil). Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. §1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. §2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. Referindo-se à revogação tácita, Diniz181 esclarece que esta ocorre quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que ela não conste a expressão “revogam as disposições em contrário”, por ser supérflua e por estar proibida legalmente, nem se mencione expressamente a norma revogada. Acerca da revogação tácita, a ilustre civilista, citando Fiore, explica que quando a lei nova é diretamente contrária ao próprio espírito da antiga, deve entender-se que a abrogação se estende a todas as disposições desta, sem qualquer distinção. Caso contrário, devese examinar cuidadosamente quais disposições da lei nova são absolutamente incompatíveis com as da lei antiga.182 Em se tratando de lei que não encerra revogação expressa de lei anterior, não é tarefa fácil identificar se houve revogação tácita e, caso tenha havido, se ocorreu sua abrogação ou derrogação. Para tanto, o intérprete deve considerar que as normas e leis integram 179 GOMES, José Jairo. Lei de introdução ao Código Civil em perspectiva. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2007, p. 14-15. 180 MONTORO, 1997, p. 392. 181 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, adaptada à Lei 10.406/2002. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005b, p. 69. 182 DINIZ, 2005b, p. 69. 88 um sistema jurídico, que não admite incompatibilidade entre as normas singularmente consideradas. A esse respeito, Del Vecchio183: As proposições jurídicas singulares, embora possam ser consideradas também por si mesmas, na sua abstração, tendem naturalmente a constituir-se em sistema. A necessidade da coerência lógica leva a aproximar as que são compatíveis ou respectivamente complementares, e a eliminar as contraditórias ou incompatíveis. A vontade, que é uma lógica viva, só pode se desenvolver, também no campo do direito, unindo as suas afirmações, de modo a reduzi-las a um todo harmônico. Sobre sistema jurídico, Bobbio184 ensina que: [...] sistema equivale a validade do princípio que exclui a incompatibilidade de normas. Se num ordenamento passam a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, significa que as normas de um ordenamento têm uma certa relação entre si, e essa relação é a relação de compatibilidade. Maria Helena Diniz ainda destaca que o intérprete, tendo dúvida acerca da incompatibilidade entre as normas contrapostas, deverá entender que as leis “conflitantes” são compatíveis, uma vez que a revogação tácita não se presume. A incompatibilidade deverá ser formal, de tal modo que a execução da lei nova seja impossível sem destruir a antiga.185 A lei cuja vigência se discute é o Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938, que regula a comunhão de interesses entre portadores de debêntures. A questão reside em saber se ele foi ab-rogado ou derrogado pela Lei n. 6.404/1976, que revogou expressamente apenas o Decreto-lei n. 2.627, de 26 de setembro de 1940, com exceção dos arts. 59 a 73.186 Considerando que não houve revogação expressa do Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938, é necessário analisar se ele é incompatível com a Lei n. 6.404/1976 ou se esta regulou inteiramente a matéria de que a lei anterior tratava. Para tanto, examinar-se-á especificamente os arts. 1º, 2º e 18 do referido decreto-lei, confrontando-os com a Lei n. 6.404/1976. O art. 1º do Decreto-lei n. 781/1938 dispõe que os empréstimos por obrigações ao portador (debêntures) contraídos pelas sociedades anônimas, ou em comandita por ações, ou pelas autorizadas por leis especiais, criarão, quando tal condição constar do manifesto da 183 BOBBIO, Norberto. Teoria geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. Revisão da tradução Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 223. 184 BOBBIO, 2007, p. 223. 185 DINIZ, 2005b, p. 69. 186 BRASIL. Lei 6.404/1976. Artigo 300. Ficam revogados o Decreto-Lei n. 2.627, de 26 de setembro de 1940, com exceção dos artigos 59 a 73, e demais disposições em contrário. 89 sociedade e do contrato devidamente inscrito, uma comunhão de interesses entre os portadores dos títulos da mesma categoria. A comunhão de debenturistas, na vigência do decreto-lei em questão, decorria de um ato convencional. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei n. 6.404/1976, a comunhão de debenturistas constituiu-se ex lege, nos termos do art. 71187. Na hipótese, relativamente ao art. 1º do Decreto-lei n. 781/1938, não há dúvida de que tal norma encontra-se tacitamente revogada pela Lei n. 6.404/1976, já que com ela incompatível. Já o art. 2º do referido Decreto-lei n. 781/1938 estabelece que os atos relativos ao exercício dos direitos fundados nos contratos desses empréstimos e cujos efeitos se estendam à coletividade ficam reservados às deliberações das assembléias de debenturistas ou aos representantes por elas anteriormente designados, excluídas as ações individuais, salvo as exceções expressamente consignadas nesta lei. Tal dispositivo encerra restrição ao direito de ação dos debenturistas, já que este fica reservado às deliberações das assembléias de obrigacionistas ou aos representantes por ela designados. Não há nada na Lei n. 6.404/1976 que seja incompatível com o disposto no referido dispositivo legal, razão pela qual, nesse particular, sustenta-se a sua vigência. Aliás, relativamente à compatibilidade do disposto no mencionado dispositivo legal com o microssistema da Lei n. 6.404/1976, relembra-se que Carvalhosa ressalta que se fosse legítima a execução isolada de qualquer debenturista, ele visaria à obtenção de pagamento antecipado apenas de seu crédito em detrimento do princípio da par conditio, que é próprio fundamento do mútuo debenturístico. Ademais, a Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, fez-se totalmente omissa em relação à eventual restrição de o debenturista acionar individualmente a companhia emissora para a defesa de seu crédito, razão pela qual, nesse diapasão, pode-se afirmar que ela não regulou inteiramente a matéria de que tratava o Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938. Dessa forma, não tendo a Lei n. 6.404/1976 tratado inteiramente da matéria regulada no Decreto-lei n. 781/1938 e não havendo qualquer incompatibilidade entre o seu art. 2º e o microssistema da atual lei societária, é forçoso reconhecer que não houve revogação do art. 2º do referido decreto-lei, que restringe o direito de ação individual do debenturista. Quanto ao art. 18 do Decreto-lei n. 781/1938, o mesmo dispõe que em caso de inadimplemento da companhia emissora qualquer debenturista poderá demandar o seu 187 BRASIL. Lei 6.404/1976. Artigo 71. Os titulares de debêntures da mesma emissão ou série podem, a qualquer tempo, reunir-se em assembléia a fim de deliberar sobre matéria de interesse da comunhão dos debenturistas. 90 pagamento se dentro do prazo de 60 dias da data em que a impontualidade se verificar não tiver sido convocada a assembléia dos obrigacionistas, que deverá deliberar sobre a providência mais conveniente aos interesses comuns. A Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, além de não excluir expressamente o direito de ação individual do debenturista, é totalmente omissa a respeito. Dessa forma, não é possível concluir pela revogação do art. 18 do Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1981, já que a atual lei societária não é incompatível com ele e tampouco regulou inteiramente a matéria. Apenas ilustrando a inexistência de incompatibilidade entre a legitimação concorrente do agente fiduciário e a dos debenturistas, pontua-se que o Direito Italiano prevê a figura do representante dos debenturistas, conferindo-lhe legitimação processual extraordinária para agir em defesa dos debenturistas, mas não exclui a ação individual dos debenturistas. Cita-se os arts. 2.418 e 2.419 do Código Civil Italiano188: Art. 2418. Obblighi e poteri del rappresentante comune. Il rappresentante comune deve provvedere all'esecuzione delle deliberazioni dell'assemblea degli obbligazionisti, tutelare gli interessi comuni di questi nei rapporti con la società e assistere alle operazioni di sorteggio delle obbligazioni. Egli ha diritto di assistere all'assemblea dei soci. Per la tutela degli interessi comuni ha la rappresentanza processuale degli obbligazionisti anche nell'amministrazione controllata, nel concordato preventivo, nel fallimento, nella liquidazione coatta amministrativa e nell'amministrazione straordinaria della società debitrice. Art. 2419. Azione individuale degli obbligazionisti. Le disposizioni degli articoli precedenti non precludono le azioni individuali degli obbligazionisti, salvo che queste siano incompatibili con le deliberazioni dell'assemblea previste dall'articolo 2415 . 188 Art. 2418. Obrigações e poderes do representante comum. O representante comum deve providenciar a execução das deliberações da assembléia dos obrigacionistas, garantir os interesses comuns destes nos relacionamento com a sociedade e assistir as operações de sorteio das obrigações. Ele tem o direito de assistir a assembléia dos sócios. Para a garantia dos interesses comuns, tem a representação processual dos obrigacionistas também na administração controlada, na concordata preventiva, na falência, na liquidação forçada administrativa e na administração extraordinária da sociedade devedora (tradução nossa). Art. 2419. Ação individual do obrigacionista. As disposições dos artigos precedentes não precluem as ações individuais dos obrigacionistas, salvo se estas forem incompatíveis com as deliberações da assembléia prevista no art. 2415 (tradução nossa). 91 Para Galgano189, al singolo obbligazionista non è impedito di agire individcualmente nei contronti della società a tutela dei propi diritti; gli sono, tuttavia, consentite solo quelle azioni indidividuali che siano compatibilili com le deliberazioni prese dall assemblea (art. 2.419). Cosí egli potrà, individualmente, pretendere il rimborso delle sue obbligazioni nei modi e nei tempi originariamente stabiliti e risultanti dal titolo [...].190 Assim, não havendo incompatibilidade entre a legitimação extraordinária do agente fiduciário e a legitimação ordinária do debenturista, fica demonstrado que o Decretolei n. 781, de 12 de dezembro de 1938, foi derrogado pela Lei 6.404/1976, mas que seus arts. 2º e 18 permanecem em vigor, já que não há incompatibilidade entre eles e a atual lei societária. 7.3 Legitimação concorrente e subsidiária do debenturista Parte da doutrina brasileira limita a legitimação do debenturista para agir individualmente contra a companhia emissora em relação às emissões privadas em que não há a intervenção do agente fiduciário. Entretanto, ressalva que, nestes casos, deverá o debenturista reclamar a integralidade do mútuo debenturístico. Nesse sentido, a lição de Carvalhosa191: Por outro lado, nas emissões privadas, em que não exista agente fiduciário, qualquer debenturista terá legitimidade ordinária para executar a dívida. Nesse caso de emissão privada sem agente fiduciário, a execução será de toda a dívida debenturística, promovida legitimamente por qualquer debenturista. Não pode ele executar apenas o valor de suas debêntures, porque a dívida é una, sendo a inadimplência também una. É a dívida que não foi paga e não as debêntures representativas de parcela do mútuo. Assim, o protesto especial preliminar ao pedido de execução coletiva correspondente ao valor do crédito debenturístico do protestante constitui título para a execução de toda a dívida debenturística. Do contrário estaríamos admitindo o fracionamento da inadimplência, e a derrogação do 189 GALGANO, Francesco. Trattado di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico dell’economia. Volume ventinovesimo. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2003, p. 394. 190 O obrigacionista pode agir em seu próprio nome e proteger seus direitos individualmente. São-lhe concedidas, portanto, aquelas ações individuais que sejam compatíveis com as deliberações realizadas na assembléia (art. 2.419). Assim, ele poderá, sozinho, exigir o reembolso das suas contribuições como anteriormente estabelecido, resultante do título [...]. (tradução nossa). 191 CARVALHOSA, 2002, p. 805. 92 princípio da par conditio, fazendo com que os debenturistas mais diligentes recebam o valor de suas debêntures antecipadamente. Borba192 também defende que pelo atual sistema, pode, pois, qualquer debenturista, não havendo agente fiduciário, ingressar em juízo desde logo para executar a emissora. A execução, todavia por força da unidade da emissão ou série, não compreenderá apenas o seu crédito individual, mas sim a totalidade das obrigações concernentes à série considerada. Não parece correto o entendimento esposado pelos ilustres Autores. É que, conforme já destacado alhures, somente se admite substituição processual nas hipóteses expressamente previstas pela lei, conforme estabelece o art. 6º do CPC, cujo teor vale aqui ser novamente transcrito: “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Bedaque193, acerca da substituição processual, lembra que também a legitimidade extraordinária é aferida sem necessidade de qualquer juízo de valor sobre elementos da relação material controvertida. Basta verificar se existe autorização especial para que a parte figure em um dos pólos do processo, em nome próprio, defendendo direito de outrem. Assim, o entendimento de que os debenturistas devem pleitear em juízo todo o crédito pertencente à comunidade de debenturistas, e não apenas os que efetivamente titularizarem, não se sustenta, vez que não há previsão legal que lhe atribua legitimação extraordinária. Aqui, vale lembrar que, tendo a substituição processual caráter excepcional, deve ser interpretada restritivamente. Lado outro, demonstrado que não houve ab-rogação (revogação total) do Decretolei n. 781, de 12 de outubro de 1981, e que seus arts. 2º e 18 permanecem em vigor, já que não são incompatíveis com a Lei n. 6.404, de 15.12.1976, pontua-se que os debenturistas terão legitimação concorrente e subsidiária à do agente fiduciário para promover as medidas judiciais necessárias à proteção de seu direito. Fala-se em legitimação subsidiária porque o debenturista somente adquire o direito de ação caso, vencida a obrigação da companhia, não seja convocada a assembléia de debenturistas nos 60 dias subseqüentes ao vencimento das debêntures, a fim de que possa 192 BORBA, 2005, p. 163. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual: tentativa de compatibilização. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 275. 193 93 deliberar sobre as providências mais conveniente aos interesses comuns. Nesse sentido, citase o art. 18 do Decreto-lei n. 781, de 12.10.1938: Art. 18. Em caso de impontualidade no pagamento dos juros e no reembolso das obrigações sorteadas, quando tal for o modo de amortização convencionado e ainda que no regime de comunhão, poderá qualquer obrigacionista demandar o seu pagamento ou requerer a falência da sociedade devedora se, dentro do prazo de 60 dias da data em que a impontualidade se verificar, não tiver sido convocada, pela sociedade devedora, ou pelos obrigacionistas, ou ainda pelo representante destes, já anteriormente nomeado, a assembléia dos obrigacionistas, que deverá deliberar sobre a providência mais conveniente aos interesses comuns. Esta disposição não compreende, porem, a hipótese em que a falta do pagamento for ato de ordem individual, que não interesse a coletividade dos obrigacionistas, caso em que a ação individual é admitida sem restrições. Peixoto194 leciona que, “como corolário da organização da comunhão de interesses entre os debenturistas, o Decreto-lei n.º 781 retirou-lhes a iniciativa sobre questões que se ligam ao empréstimo e, portanto, afetam a coletividade”. Veja que o fato de a legitimação do debenturista ser subsidiária à do agente fiduciário impede que ele se precipite em promover uma ação individual que conduza à falência da companhia emissora. Ademais, também fica minimizado o prejuízo ao princípio da par conditio, tendo em vista que o debenturista somente terá legitimação para agir em juízo se, decorridos sessenta dias do vencimento das debêntures, não for convocada a assembléia especial dos debenturistas para deliberar sobre as providências a serem tomadas em defesa dos interesses comuns. Nesse particular, não parece justo opor ao debenturista o argumento de que a sua ação individual pode acarretar prejuízo ao princípio da par conditio. É que, vencida a obrigação sem que a comunidade de debenturistas tome qualquer providência em defesa ao direito coletivo, é justo que o debenturista mais diligente receba o seu crédito, ainda que em detrimento de outro debenturista, visto que dormientibus non succurrit jus.195 Assim, diante da revogação parcial (derrogação) do Decreto-lei n.º 781/1938, conclui-se que qualquer debenturista, seja na emissão pública ou na emissão privada, terá legitimação para propor execução de seu crédito em face da companhia emissora, caso não se convoque assembléia especial de debenturistas num prazo de 60 dias da data em que se verificar o inadimplemento da companhia emissora. 194 195 PEIXOTO, 1972-73, p. 170. O direito não socorre os que dormem. 94 8 CONCLUSÃO A debênture constitui um eficiente instrumento de financiamento do desenvolvimento empresarial, já que possibilita às sociedades por ações a captação de recursos com o público investidor a um custo inferior àquele normalmente praticado pelo mercado financeiro, que, na maioria das vezes, impõe ao mutuário o pagamento de elevadas taxas de juros num prazo que nem sempre atende à necessidade do mutuário. Em contrapartida, a debênture representa para o investidor uma interessante opção de investimento, vez que, além de remunerar o capital do mutuante em patamares superiores àqueles oferecidos pelo mercado financeiro, não expõe o investidor aos riscos inerentes à atividade empresarial, cujo resultado depende de uma conjugação de fatores que, muitas vezes, são imprevisíveis até mesmo para os especialistas. No Brasil, a Lei n. 3.150/1882, que regulamentava o estabelecimento de sociedades anônimas e companhias, permitiu às sociedades anônimas contraírem empréstimo com o público mediante a emissão de obrigações ao portador. Entretanto, em face de uma crise provocada pela emissão fraudulenta de debêntures, foi sancionado o Decreto n. 177-A, de 1893, que se propunha a regular a emissão de debêntures. Em 1938, entrou em vigor o Decreto-lei n. 781, que instituiu e regulamentou a comunhão de interesses entre portadores de debêntures. Contudo, tal normativo recebeu acalorada crítica doutrinária, em razão de condicionar a criação da comunhão de debenturistas à previsão do manifesto de emissão, muito embora existisse, inequivocamente, uma comunhão de interesses entre os debenturistas. Posteriormente, a lei n. 6.404/76, de 15 de dezembro de 1976, trouxe inúmeras inovações em relação às debêntures, podendo destacar entre elas a liberdade conferida à companhia para definir as vantagens a serem conferidas aos debenturistas, ampliar as espécies de debêntures, criar a figura do agente fiduciário e reconhecer da comunhão de debenturistas. A debênture é classificada como “título de crédito imperfeito”, tendo em vista o fato de os requisitos da cartularidade e da literalidade sofrerem restrições nessa espécie de título de crédito. A cartularidade, porque a debênture não é representada por um documento; e a literalidade, porque cabe à assembléia de acionistas definir as vantagens e os direitos a serem conferidos pelas debêntures. 95 A imaterialidade das debêntures impossibilita a observância do disposto no art. 614 do Código de Processo Civil, que impõe ao credor a instrução da ação executiva com o título executivo. Não obstante, basta à instrução da ação executiva a juntada da cópia da escritura de emissão e do comprovante de titularidade das debêntures, o qual é feito pelo registro do título no livro próprio e pelos extratos da instituição escrituradora. O art. 53 da Lei n. 6.404/1976 dispõe que “as debêntures da mesma série terão igual valor nominal e conferirão a seus titulares os mesmos direitos”. Daí, se são vários os credores sujeitos às mesmas condições gerais e riscos, há entre os debenturistas uma comunhão de interesses, consistente na defesa de seus direitos contra a companhia emissora, seus acionistas ou administradores e fiscais. A proteção dos interesses comuns dos debenturistas dá-se por meio da reunião da assembléia de titulares de debêntures de mesma série, à qual compete deliberar sobre assunto de interesse dos debenturistas, e da atuação do agente fiduciário, que, quando existente, tem a função de proteger os interesses dos debenturistas, ajuizando, até mesmo, as medidas judiciais necessárias, conforme autoriza o art. 68, §3º, da Lei n. 6.404/1976. O agente fiduciário, como representante da comunhão, tem a obrigação legal de proteger os direitos e interesses dos debenturistas, empregando no exercício da função o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios bens. Dessa forma, o agente fiduciário poderá promover quaisquer ações que sejam necessárias à defesa dos direitos dos debenturistas. Diante da autorização legal para que o agente fiduciário promova as ações judiciais que se mostrarem necessárias à defesa dos interesses dos debenturistas, a qual está expressamente prevista no art. 68, §3º, da Lei n. 6.404/1976, não há dúvida de que ele possui legitimação extraordinária para, em caso de inadimplemento da companhia emissora, executar as debêntures. Entretanto, há relevante controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto à questão de a legitimação extraordinária do agente fiduciário excluir, ou não, a ação individual do debenturista, de sorte que enquanto uns entendem que somente o agente fiduciário possui direito de ação em face da companhia emissora, outros entendem que os debenturistas não renunciaram ao seu constitucional direito de ação. São os seguintes os fundamentos opostos à ação individual: a ação precitada de um debenturista poderia levar a companhia à falência; haveria prejuízo ao princípio de que os debenturistas têm os mesmos direitos; a lei conferiu apenas ao agente fiduciário o poder de 96 ajuizar ação contra a companhia; e o art. 18 do Decreto-lei n. 781/1938, que conferia excepcionalmente legitimidade ao debenturista para propor a ação individual, foi revogado. Quanto ao primeiro fundamento, pontua-se que, embora realmente a ação individual do debenturista possa criar dificuldades para a companhia emissora e desigualdade entre os debenturistas, a Lei n. 6.404/1976 não excluiu expressamente o direito de ação individual do debenturista. Dessa forma, ainda que tal argumento seja verdadeiro, ele não tem o poder de excluir a ação individual dos debenturistas. Em relação ao argumento de que a ação individual dos debenturistas prejudicaria o princípio da igualdade entre os debenturistas, também se opõe o fato de a lei não ter excluído o direito de ação dos debenturistas. Assim, para que se admita a legitimação exclusiva do agente fiduciário em prol do princípio da par condito, é necessário que haja uma reforma legislativa para excluir expressamente a ação individual do debenturista Lado outro, quanto ao fundamento de que a legitimação do agente fiduciário é exclusiva em razão de a Lei n. 6.404/1976 conferir apenas a ele direito de ação contra a companhia emissora, tal entendimento viola o sistema jurídico pátrio, especialmente o princípio da legalidade, o princípio político, o princípio da inafastabilidade e o princípio do livre acesso ao judiciário. Ora, se a Lei n. 6.404/1976 não excluiu o direito de ação individual do debenturista e se ele pode fazer tudo aquilo que a lei expressamente não o proíbe, torna-se impossível sustentar que o debenturista não tem direito de ação, porque a atual Lei das Sociedades por Ações conferiu apenas ao agente fiduciário o direito de ação contra a companhia emissora. Nesse diapasão, não se pode olvidar que a Constituição Federal consagra a subjugação da ameaça, ou lesão a direito, à apreciação do Poder Judiciário e o livre acesso à Justiça. Assim, as normas que excluem o direito de ação devem ser consideradas como regras excepcionais e por essa razão merecem ser interpretadas restritivamente, eis que quod vero contra rationem juris receptum est, non este produc endum ad conseguentias.196 Noutra esteira de argumentação, o entendimento de que a Lei n. 6.404/1976 abrogou o Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1938, também não é verdadeiro, posto que, não havendo revogação expressa, somente se admite a extinção da lei velha se ela for incompatível com a lei nova ou quando esta tenha regulado inteiramente a matéria tratada na lei velha. 196 O que, em verdade, é admitido contra as regrais gerais de Direito, não se estende a espécies congêneres. 97 O art. 2º do referido Decreto-lei n. 781/1938 estabelece que os atos relativos ao exercício dos direitos fundados nos contratos desses empréstimos e cujos efeitos se estendam à coletividade, ficam reservados às deliberações das assembléias de debenturistas ou aos representantes por elas anteriormente designados, excluídas as ações individuais, salvo as exceções expressamente consignadas nesta lei. Tal dispositivo encerra restrição ao direito de ação dos debenturistas, já que este fica reservado às deliberações das assembléias de obrigacionistas ou aos representantes por ela designados. A Lei n. 6.404/1976 não é incompatível com o disposto no referido dispositivo legal, razão pela qual, nesse particular, sustenta-se a vigência do art. 2º do Decreto-lei n. 781/1938. Quanto ao art. 18 do Decreto-lei nº. 781/1938, o mesmo dispõe que em caso de inadimplemento da companhia emissora qualquer debenturista poderá demandar o seu pagamento se dentro do prazo de 60 dias da data em que a impontualidade se verificar não tiver sido convocada a assembléia dos obrigacionistas, que deverá deliberar sobre a providência mais conveniente aos interesses comuns. A Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, além de não excluir expressamente o direito de ação individual do debenturista, é totalmente omissa a respeito. Dessa forma, não se pode concluir pela revogação do art. 18 do Decreto-lei nº. 781, de 12 de outubro de 1938, já que a lei das sociedades por ações não é incompatível com ele, nem tampouco regulou inteiramente a matéria. Por conseqüência, demonstrado que não houve ab-rogação do Decreto-lei n. 781, de 12 de outubro de 1981, e que seus arts. 2º e 18 permanecem em vigor, já que não são incompatíveis com a Lei n. 6.404, de 15.12.1976, pontua-se que os debenturistas terão legitimação concorrente e subsidiária a do agente fiduciário para promover as medidas judiciais necessárias à proteção de seu direito. Assim, diante da vigência do artigo 18 do Decreto-lei n. 781/1938, conclui-se que qualquer debenturista, seja na emissão pública ou na emissão privada, terá legitimação para propor a execução de seu crédito em face da companhia emissora, caso não se convoque assembléia especial de debenturistas num prazo de 60 dias da data em que se verificar o inadimplemento da companhia emissora. 98 REFERÊNCIAS ALBERGARIA NETO, Jason. Partes na ação de dissolução de sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 2001. 270f. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2001. AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1977. AMARAL SANTOS, Moacir. Primeiras linhas de Direito Processual Civil: adaptados ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1985. ASSIS, Araken de. Manual de processo de execução. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. ASSIS, Olney Queiroz. Direito Societário. São Paulo: Damásio de Jesus, 2004. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual: tentativa de compatibilização. São Paulo: Malheiros, 2005. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. Revisão da tradução Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BORBA, Gustavo Tavares. A desmaterialização dos títulos de crédito. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 14, 1999. BORBA, José Edwaldo Tavares. Das debêntures. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1971. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 1998.001.13.796. Rel. Des. Walter D’Agostino. Julgado em: 05.08.1999. BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução Normativa n. 28. 1983. BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Instrução Normativa n. 202. 1993. BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Nota Explicativa CVM Nº 27, de 23 de novembro de 1983. BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo CVM nº RJ2003/5400. Disponível em: <http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis.asp?File=5059-0.HTM>. Acesso em: 05 mar. 2008. BRASIL. Decreto-Lei 781/1938. BRASIL. Lei 1083/1860. BRASIL. Lei 3150/1882. 99 BRASIL. Lei 4.728/1965. BRASIL. Lei 5474/1968. BRASIL. Lei 5869/1973. Código de Processo Civil. BRASIL. Lei 6.385/1976. BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. BRASIL. Lei 6.423/1977. BRASIL. Lei 9.457/1997. BRASIL. Lei 10.406/2002. Código Civil Brasileiro. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial de número 784.881-CE. Publicado em: 18 dez. 2006, p. 379. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento de número 107.738-SP. Publicado em: 09 dez. 1997, p. 64.686. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial de número 303.825. Publicado em: 29 out. 2001, p. 211. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento de número 186.055.737. Julgado em: 30 set. 1986. Publicado em: JTARGS v. 61, p. 213. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 1998.001.13.796. Rel. Des. Walter D’Agostino. Julgado em: 05 ago. 1999. BRASIL. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo. Apelação Cível de número 481.698-6. Julgado em: 20 out. 1993. BRASIL. Tribunal de Alçada Cível do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível de número 28.632. Julgado em: 25 mar. 1987. CAMPOS, Ronaldo Cunha. Estudos de Direito Processual. Uberaba: Rio Grandes Artes Gráficas, 1974. CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros, São Paulo: Saraiva, 1998. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Ed. de 1997. São Paulo, Saraiva, 1997. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com as modificações das Leis nº 9.457, de 5 de maio de 1997 e 10.303, de 31 de outubro de 2001. São Paulo: Saraiva, 2002. CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade anônima. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 100 DALL’AGNOL, Jorge Luiz. Pressupostos processuais. Porto Alegre: Letras Jurídicas Editora Ltda., 1988. DELGADO, José Augusto. Reflexões sobre a substituição processual. Data de Publicação: 1994. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16640>. Acesso em: 10 jan. 2008. DESTEFENNI, Marcos. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento e cumprimento da sentença. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1. DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Jus Navigandi, Teresina, a. 6., n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2918>. Acesso em: 22 fev. 2006. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. v. II. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 22. ed. rev. e atual. De acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2005a. v. 1. DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, adaptada à Lei 10.406/2002. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005b. EIZIRIK, Nelson. Emissão de debêntures. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 101, p. 42-47, 1996. FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1989. FRANCO, Vera Helena de Mello; SZTAJN, Rachel. Manual de Direito Comercial: sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. v. 2. GALGANO, Francesco. Trattado di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico dell’economia. Volume ventinovesimo. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2003. GOMES, José Jairo. Lei de introdução ao Código Civil em perspectiva. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2007. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: parte geral. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1. ITÁLIA. Código Civil, 1942. LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1997. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984. v. I, n. 41. 101 LIMA, Otto Souza. Negócio fiduciário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1962. LOPES DA COSTA, Alfredo de Araújo. Manual elementar de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Edição Revista Forense, 1956. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. Ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997. MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial brasileiro. 4. ed. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1946. v. IV. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo II. (Arts. 80-160), 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 24. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de empresa. 3. ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. PAPINI. Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. Rio de Janeiro: Forense, 2004. PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedades por ações: comentários ao Decreto-lei n. 2.627, de 26 de setembro de 1940, com as alterações da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, Lei do mercado de capitais. São Paulo: Saraiva, 1972-73. PELLEGRINI, Ada. As condições da ação penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 16, p. 179-199, 2007. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. PINTO JÚNIOR, Mario Engler. Debêntures. Direito de debenturistas. Comunhão e assembléia. Agente fiduciário. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 48, p. 25-48, 1982. PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. PORTUGAL. Código das Sociedades Comerciais, 2006. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2003. v. II. RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 102 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: lei n. 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007. SANTOS, Durval José Soledade. A debênture como instrumento de aplicação e captação de recursos. Revista de Direito Mercantil, v. 101, p. 27-36, 1996. SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. TEIXEIRA. Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: Bushatsky, 1979. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2006. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa. Revista de Processo, n. 17, p. 41-49, 1980. VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações (comentários ao decreto-lei 2.627, de 26 de setembro de 1940). Rio de Janeiro: Forense, 1959. YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999. YARSHELL, Flávio Luiz. As “partes” no Processo Administrativo e a legitimação interessados. I SEMINÁRIO DE DIREITO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível <http://www.tcm.sp.gov.br/legislacao/doutrina/29a03_10_03/5flavio_luiz3.htm>. Acesso 29 mar. 2008. dos DE em: em: