repensando a critica de marx ao capitalismo

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REPENSANDO A CRITICA DE MARX AO CAPITALISMO
Moishe Postone
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, desenvolverei uma reinterpretação fundamental da teoria crítica madura de Marx
a fim de reconceituar a natureza da sociedade capitalista. A análise de Marx das relações sociais
e das formas de dominação que caracterizam a sociedade capitalista pode ser mais
proveitosamente reinterpretada pelo repensar das categorias centrais de sua crítica à economia
política. (1) Com este objetivo, procurarei desenvolver conceitos que preencham dois critérios:
primeiro, que os mesmos devem apreender o caráter essencial e o desenvolvimento histórico da
sociedade moderna; e, segundo, serem capazes de superar as familiares dicotomias teóricas
entre estrutura e funcionamento, significado da vida e vida material. Com base nesta abordagem,
tentarei reformular a relação entre a teoria marxiana e os atuais discursos da teoria política e
social, de uma forma tal que tenha significação teórica, hoje, e forneça uma crítica básica às
teorias marxistas tradicionais e ao que foi denominado de "socialismo realmente existente". Ao
fazer isto, espero lançar os fundamentos de uma análise crítica da formação social capitalista,
diferente e mais poderosa; uma crítica mais adequada ao final do Século XX.
Tentarei desenvolver tal compreensão do capitalismo com base na análise de Marx, distinguindo
conceitualmente o núcleo fundamental do capitalismo, na atualidade, das formas que assumia no
Século XIX. Fazer isso significa questionar muitos dos pressupostos básicos das interpretações
marxistas tradicionais. Por exemplo, não analiso o capitalismo, primordialmente, em termos da
propriedade privada dos meios de produção ou em termos do mercado. Ao contrário, como se
tornará claro mais adiante, conceituo o capitalismo em termos de uma forma historicamente
específica de interdependência, com um caráter impessoal e aparentemente objetivo. Esta forma
de interdependência concretiza-se através de formas das relações sociais historicamente
específicas, que são constituídas por formas determinadas de prática social e, além disso,
tornam-se quase independentes das pessoas engajadas nessas práticas. O resultado é uma
forma de dominação social nova e crescentemente abstrata - uma forma que subordina as
pessoas a imperativos estruturais impessoais e a restrições que não podem ser adequadamente
captadas em termos de dominação concreta (e. g., dominação pessoal ou de grupo) e que gera
uma dinâmica histórica progressiva. Ao reconceituar as relações e as formas de dominação que
caracterizam o capitalismo, tentarei fornecer bases para uma teoria capaz de analisar as
características sistêmicas da sociedade moderna, tais como, seu caráter historicamente
dinâmico, seus processos de racionalização, sua forma particular de "crescimento" econômico e
seu modo de produzir dominante.
Esta reinterpretação trata a análise do capitalismo desenvolvida por Marx menos como uma
teoria das formas de exploração e de dominação no interior da sociedade moderna, e mais como
uma teoria social crítica da própria natureza da modernidade. Modernidade não é um estágio
evolucionário na direção da qual evoluem todas as sociedades, mas uma forma específica de
vida social que se originou na Europa Ocidental e tem se desenvolvido como um sistema global
complexo. (2) Embora a modernidade tenha tomado diferentes formas em diferentes países e
regiões, minha preocupação não é examinar estas diferenças, mas explorar, teoricamente, a
natureza da modernidade per se. Dentro do quadro de uma abordagem não-evolucionária, tal
investigação deve explicitar e explicar a feição característica da modernidade, naquilo que se
relaciona a formas sociais historicamente específicas. Meu argumento é que a análise de Marx
acerca das formas sociais consideradas básicas para a estruturação do capitalismo - a
mercadoria e o capital - fornece um excelente ponto de partida para a tentativa de aprofundar
socialmente o entendimento das características sistêmicas da modernidade e sinaliza no sentido
de que a sociedade moderna pode ser fundamentalmente transformada. Além disso, tal
abordagem é capaz de sistematizar a elucidação daquelas características da sociedade
moderna, que no quadro das teorias de progresso linear ou de desenvolvimento histórico
harmônico podem parecer anômalas. Essas teorias são incapazes de explicar a visível e
crescente produção da pobreza em meio à abundância e o grau em que importantes aspectos da
vida moderna têm sido modelados e subordinados aos imperativos de forças sociais abstratas e
impessoais, mesmo que se tenha ampliado substancialmente a possibilidade de controle coletivo
sobre as circunstâncias da vida social.
Minha leitura da teoria crítica de Marx concentra-se em sua concepção da centralidade do
trabalho para a vida social, a qual é geralmente considerada como estando situada no núcleo de
sua teoria. Argumento que o significado da categoria trabalho em suas obras maduras é diferente
do que tradicionalmente tem sido apresentado: ela é historicamente específica, no lugar de
transhistórica. Na crítica madura de Marx, a noção de que o trabalho constitui o mundo social, e é
a fonte de toda a riqueza, não se refere à sociedade em geral, mas especificamente à sociedade
moderna ou capitalista, Além do mais, e isto é crucial, a análise de Marx não se refere ao
trabalho como ele é concebido em geral e transhistoricamente - uma atividade social direcionada
para um objetivo que estabelece a intermediação entre o homem e a natureza, criando produtos
específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas - mas atribui-lhe um papel
peculiar que desempenha na sociedade capitalista. Como aprofundarei mais tarde, o caráter
historicamente específico deste trabalho está intrinsecamente relacionado à forma de
interdependência social, característica da sociedade capitalista. Ele constitui uma forma de
mediação social, historicamente específica e quase objetiva que, no quadro analítico de Marx,
serve como o fundamento social decisivo das características básicas da modernidade.
É esta reconsideração do significado do conceito de trabalho em Marx que fornece a base para
minha reinterpretação de sua análise do capitalismo. Ela introduz considerações de
temporalidade e situa a crítica à produção no centro da análise de Marx, e lança o fundamento
para uma análise da moderna sociedade capitalista como uma sociedade dinamicamente
regulada, estruturada por uma forma historicamente específica de mediação social que, embora
socialmente constituída, possui um caráter abstrato, impessoal e quase objetivo. Esta forma de
mediação é estruturada por uma forma de prática social historicamente determinada (o trabalho
no capitalismo) e por estruturas, no lugar das ações das pessoas, de suas visões do mundo e de
suas competências e talentos. Tal abordagem reformula a questão da relação entre cultura e vida
material, transformando-a em uma relação entre uma forma de mediação social historicamente
específica e formas de "objetividade" e de "subjetividade" sociais. Como uma teoria da mediação
social, é um esforço para superar a clássica dicotomia teórica entre sujeito e objeto na medida
em que explica esta dicotomia historicamente.
Assim, em termos gerais, estou sugerindo que a teoria marxiana deveria ser entendida não como
uma teoria universalmente aplicável, mas como uma teoria crítica específica da sociedade
capitalista. Ela analisa a especificidade histórica do capitalismo e a possibilidade de sua
superação por meio de categorias que captam suas formas específicas de trabalho, riqueza e
tempo. (3) Além disso, a teoria marxiana, de acordo com esta abordagem, é auto-reflexiva e, por
conseguinte, é, ela mesma, historicamente específica: sua análise da relação entre teoria e
sociedade é tal que pode, de uma maneira epistemologicamente consistente, localizar-se
historicamente através das mesmas categorias com as quais analisa seu contexto social.
Esta interpretação relativa à teoria crítica madura de Marx tem importantes implicações que
tentarei desvendar no decorrer desta obra. Para tanto, iniciarei fazendo a distinção entre duas
importantes vertentes da análise crítica, fundamentalmente diferente: uma que considera a crítica
ao capitalismo do ponto de vista do trabalho, e a outra vertente, para qual deve ser feita a crítica
ao trabalho no capitalismo. A primeira, baseada em uma compreensão transhistórica do trabalho,
pressupõe que exista uma tensão estrutural entre os aspectos da vida social que caracterizam o
capitalismo (por exemplo, o mercado e a propriedade privada) e a esfera social constituída pelo
trabalho. O trabalho, portanto, constitui a base da crítica ao capitalismo, o marco a partir do qual
esta crítica é elaborada. De acordo com a segunda vertente de análise, o trabalho no capitalismo
é historicamente específico e permeia as estruturas essenciais desta sociedade. Assim, o
trabalho é o objeto da crítica à sociedade capitalista. Do ponto de vista da segunda vertente de
análise, é possível identificar que diferentes interpretações de Marx mantêm em comum vários
pressupostos básicos da primeira vertente de análise. Por este motivo, caracterizo estas
interpretações como "tradicionais". Investigarei seus pressupostos do ponto de vista da minha
interpretação da teoria de Marx como sendo uma crítica ao trabalho no capitalismo, a fim de
demonstrar não apenas as limitações da análise tradicional como a necessidade de uma outra
mais adequada teoria crítica da sociedade capitalista.
Apresentar a análise de Marx como uma crítica historicamente específica do trabalho no
capitalismo conduz a uma compreensão da sociedade capitalista muito diferente daquela que
está presente nas interpretações marxistas tradicionais. Isso sugere, por exemplo, que, na
análise de Marx, as relações sociais e as formas de dominação que caracterizam o capitalismo
não podem ser suficientemente entendidas enquanto relações de classe enraizadas em relações
de propriedade e mediadas pelo mercado, como pretendem as interpretações tradicionais. Ao
contrário, sua análise da mercadoria e do capital - ou seja, das formas quase objetivas de
mediação social constituídas pelo trabalho no capitalismo - deveria ser entendida como uma
análise das relações sociais fundamentais desta sociedade. Estas formas sociais impessoais e
abstratas não apenas encobrem o que tradicionalmente tem sido avaliado como as "reais"
relações sociais do capitalismo, isto é, as relações de classe; elas são as reais relações sociais
da sociedade capitalista, estruturando sua trajetória dinâmica e seu modo de produzir.
Longe de analisar o trabalho como o princípio de constituição social e a fonte de riqueza em
todas as sociedades, a teoria de Marx sugere que, o que caracteriza inequivocamente o
capitalismo são suas relações sociais básicas constituídas precisamente pelo trabalho e, por
conseguinte, em última instância, uma espécie fundamentalmente diferente daquelas que
caracterizam as sociedades não-capitalistas. Embora sua análise crítica do capitalismo inclua a
crítica à exploração, à desigualdade social e à dominação de classe, vai além disso, ao procurar
elucidar o próprio tecido das relações sociais na sociedade moderna, e a forma abstrata de
dominação social que lhes é intrínseca, através de uma teoria que fundamenta sua constituição
social em determinadas e estruturadas formas de práticas.
Esta reinterpretação da teoria crítica madura de Marx desloca o foco central de sua crítica para
longe das considerações sobre a propriedade e o mercado. Diferentemente das abordagens
marxistas tradicionais, a mesma fornece a base para uma crítica da natureza da produção, do
trabalho e do "crescimento" na sociedade capitalista, ao sustentar que tais dimensões, em vez de
tecnicamente, são socialmente constituídas. Tendo assim deslocado o foco da crítica ao
capitalismo para a esfera do trabalho, a interpretação aqui apresentada conduz a uma crítica ao
processo industrial de produção - por conseguinte, a uma reconceituação das definições básicas
de socialismo e a uma reavaliação do papel político e social tradicionalmente atribuído ao
proletariado, na possível superação histórica do capitalismo.
À medida que esta reinterpretação implica numa crítica ao capitalismo que não está presa às
condições do capitalismo liberal do Século XIX, e acarreta uma crítica à produção industrial,
enquanto capitalista, pode fornecer a base para uma teoria crítica capaz de esclarecer a natureza
e a dinâmica da sociedade capitalista contemporânea. Tal teoria crítica pode também servir como
o ponto de partida para uma análise do "socialismo realmente existente", enquanto uma forma
alternativa (e fracassada) de acumulação de capital - no lugar de um tipo de sociedade que
representou, não obstante, de maneira imperfeita, a negação histórica do capitalismo.
A CRISE DO MARXISMO TRADICIONAL
As considerações apresentadas têm sido desenvolvidas em contraposição ao pano de fundo da
crise do marxismo tradicional e à emergência do que parece ser uma nova fase no
desenvolvimento do capitalismo industrial avançado. Neste trabalho, a expressão "marxismo
tradicional" refere-se, não a uma tendência histórica do marxismo, mas, de um modo geral, a
todas as abordagens teóricas que analisam o capitalismo do ponto de vista do trabalho e
caracterizam esta sociedade, essencialmente, em termos de relações de classe, estruturadas
pela propriedade privada dos meios de produção e por uma economia regulada pelo mercado. As
relações de dominação são entendidas, principalmente, em termos de dominação de classe e de
exploração. Como é bem conhecido, Marx argumentou que no decorrer do desenvolvimento
capitalista emerge uma tensão estrutural ou uma contradição entre as relações sociais que
caracterizam o capitalismo e as "forças produtivas". Esta contradição tem sido comumente
interpretada em termos de um conflito entre a propriedade privada e o mercado, de um lado, e o
modo industrial de produzir, de outro, de tal maneira que, a propriedade privada e o mercado são
tratados como marcas características do capitalismo, e a produção industrial apresentada como a
base para uma futura sociedade socialista. O socialismo é entendido, implicitamente, em termos
da propriedade coletiva dos meios de produção e do planejamento econômico num contexto
industrializado. Isso significa que a negação histórica do capitalismo é entendida principalmente
como uma sociedade na qual a dominação e a exploração de uma classe por outra estão
superadas.
Esta caracterização ampla e preliminar do marxismo tradicional é útil na medida em que delineia
um quadro interpretativo geral compartilhado por um amplo grupo de teorias que em outros
aspectos diferem consideravelmente umas das outras. Minha intenção neste trabalho é analisar,
criticamente, os próprios pressupostos básicos desse quadro teórico geral, em vez de reconstituir
a história das várias linhas teóricas e escolas de pensamento no interior da tradição marxista.
No centro de todas as formas de marxismo tradicional encontra-se uma concepção transhistórica
de trabalho. A categoria trabalho analisada por Marx é entendida em termos de uma atividade
social com objetivo definido que efetiva a mediação entre os homens e a natureza, criando
produtos específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas. O trabalho, assim
entendido, é considerado como sendo central a toda a vida em sociedade: constitui o mundo
social e é a fonte de toda a riqueza social. Esta abordagem atribui transhistoricamente ao
trabalho social àquilo que Marx analisou como características historicamente específicas do
trabalho no capitalismo. Tal concepção transhistórica do trabalho está amarrada a uma
determinada compreensão das categorias básicas da crítica de Marx à economia política e, por
conseguinte, de sua análise do capitalismo. A teoria do valor de Marx, por exemplo, tem sido
geralmente interpretada como uma tentativa de mostrar que a riqueza social é sempre, e em
qualquer lugar, criada pelo trabalho humano e que, no capitalismo, o trabalho fundamenta o nãoconsciente, "automático", modo de distribuição mediado pelo mercado. (4) Sua teoria da maisvalia, de acordo com tais abordagens, procura demonstrar que, apesar das aparências, o produto
excedente no capitalismo é criado apenas pelo trabalho e é apropriado pela classe capitalista.
Dentro deste quadro geral, por conseguinte, a análise crítica do capitalismo elaborada por Marx
é, principalmente, uma crítica à exploração do ponto de vista do trabalho: desmistifica a
sociedade capitalista, primeiro revelando ser o trabalho a verdadeira fonte da riqueza social; e,
segundo, demonstrando que esta sociedade repousa sobre um sistema de exploração.
A teoria crítica de Marx, naturalmente, também delineia um desenvolvimento histórico que indica
a possibilidade emergente de uma sociedade livre. De acordo com as interpretações tradicionais,
sua análise do percurso do desenvolvimento capitalista pode ser esboçada como segue: a
estrutura do capitalismo de livre mercado dá origem à produção industrial a qual aumentou
significativamente o montante de riqueza social criada. Contudo, no capitalismo, esta riqueza
continua a ser extraída mediante um processo de exploração e é distribuída de forma
extremamente desigual. Todavia, desenvolve-se uma crescente contradição entre a produção
industrial e as relações de produção existentes. Como um resultado do processo contínuo de
acumulação de capital, caracterizado pela concorrência e pelas crises, o modo de distribuição
social baseado no mercado e na propriedade privada torna-se cada vez menos adequado a uma
produção industrial desenvolvida. Deste modo, a dinâmica histórica do capitalismo, não apenas
torna anacrônicas as antigas relações de produção, mas também dá lugar à possibilidade de um
novo conjunto de relações sociais. Ela gera as pré-condições técnicas, sociais e organizacionais
para a abolição da propriedade privada e para o planejamento centralizado - por exemplo, a
centralização e concentração dos meios de produção, a separação entre a propriedade e a
gestão, e a constituição e concentração de um proletariado industrial. Estes desenvolvimentos
fariam emergir a possibilidade histórica da abolição da exploração e da dominação de classe e o
surgimento de um novo modo de distribuição, justo e racionalmente regulado. O foco da crítica
histórica de Marx, de acordo com esta interpretação, é o modo de distribuição.
Esta afirmação pode parecer paradoxal, porque o marxismo é geralmente considerado uma
teoria de produção. O papel da produção na interpretação tradicional pode ser assim resumido.
Se as forças produtivas (que, segundo Marx, entram em contradição com as relações capitalistas
de produção) estão identificadas com o modo industrial de produzir, em consequência, este modo
é entendido implicitamente como um processo puramente técnico, intrinsecamente independente
do capitalismo. O capitalismo é tratado como um conjunto de fatores exógenos colidindo com o
processo de produção: propriedade privada e condições exógenas de valorização do capital no
interior de uma economia de mercado. Analogamente, a dominação social no capitalismo é
entendida, essencialmente, como uma dominação de classe que permanece externa ao processo
de produção. Esta análise implica que a produção industrial, uma vez constituída historicamente,
é independente do capitalismo e não a este intrinsecamente relacionada. A contradição marxiana
entre as forças produtivas e as relações de produção, quando apresentada como uma tensão
estrutural entre a produção industrial, de um lado, e a propriedade privada e o mercado de outro,
é entendida como uma contradição entre o modo de produzir e o modo de distribuir.
Consequentemente, a transição do capitalismo para o socialismo é vista como uma
transformação do modo de distribuir (propriedade privada, mercado), e não do modo de produzir.
Ao contrário, o desenvolvimento da produção industrial de larga escala é tratado como a
mediação histórica ligando o modo capitalista de produção à possibilidade de uma outra
organização social de distribuição. Uma vez desenvolvido, o modo industrial de produção
baseado no trabalho proletário é considerado historicamente definitivo.
Esta interpretação da trajetória do desenvolvimento capitalista expressa claramente uma atitude
afirmativa com relação à produção industrial, como um modo de produzir que gera as condições
para a abolição do capitalismo e constitui o fundamento do socialismo. O socialismo é visto como
um novo modo de administrar politicamente e regular economicamente o mesmo modo industrial
de produzir que o capitalismo fez surgir; e é concebido como uma forma social de distribuição
que não somente é mais justa, mas também a mais adequada à produção industrial. Esta
adequação é considerada assim como sendo a pré-condição histórica central para uma
sociedade justa. Tal crítica social é essencialmente uma crítica histórica do modo de distribuição.
Enquanto uma teoria da produção, o marxismo tradicional não requer uma crítica à produção. O
fundamental é exatamente o oposto: o modo de produzir proporciona a base para a crítica e o
critério com o qual é avaliada a adequação histórica do modo de distribuição.
Esta crítica ao capitalismo implica numa outra maneira de conceituar o socialismo, como sendo
uma sociedade na qual o trabalho, liberto das relações capitalistas, estrutura a vida social
abertamente e a riqueza que ele cria é distribuída de forma mais justa. Dentro do quadro
tradicional, a "realização" histórica do trabalho - seu pleno desenvolvimento histórico e sua
emergência como a base da vida social e da riqueza - é a condição fundamental da emancipação
social geral.
A visão de socialismo como a realização histórica do trabalho está também evidente na idéia de
que o proletariado - a classe trabalhadora intrinsecamente relacionada à produção industrial surgirá como a classe universal no socialismo. Isto é, a contradição estrutural do capitalismo é
vista, em outro nível, como uma oposição de classes entre os capitalistas, que possuem e
controlam a produção, e os proletários, que com o seu trabalho criam a riqueza da sociedade (e a
riqueza dos capitalistas), ainda que tenham que vender sua força-de-trabalho para sobreviver.
Esta oposição de classes, porque está fundamentada na contradição estrutural do capitalismo,
tem uma dimensão histórica: ao mesmo tempo em que a classe capitalista é a classe dominante
da presente ordem, a classe trabalhadora está enraizada na produção industrial e, por
conseguinte, nos alicerces históricos de uma nova ordem, a ordem socialista. A oposição entre
estas duas classes é vista imediatamente como um conflito entre explorados e exploradores e
como um conflito entre interesses universais e interesses individuais. A riqueza social geral
produzida pelos trabalhadores não beneficia a todos os membros da sociedade sob o
capitalismo, mas é apropriada pelos capitalistas, para os seus fins particulares. A crítica ao
capitalismo do ponto de vista do trabalho é uma crítica na qual as relações sociais dominantes
(propriedade privada) são tidas como particularizadas, a partir de uma posição universalista. O
que é universal e verdadeiramente social é constituído pelo trabalho, porém impedido, pelas
relações capitalistas individualizadas, de se tornar plenamente realizado. A visão de
emancipação contida nesta compreensão do capitalismo é, como veremos, uma visão de
totalização.
No interior deste quadro básico, que tenho denominado "marxismo tradicional", existem
diferenças políticas e teóricas extremamente importantes. Por exemplo, teorias determinísticas
em oposição a tentativas de tratar a subjetividade social e a luta de classes como aspectos
essenciais da história do capitalismo; conselhos comunistas versus partidos comunistas; teorias
"científicas" versus aquelas que procuram, de várias maneiras, sintetizar marxismo e psicanálise,
ou desenvolver uma teoria crítica da cultura ou da vida cotidiana. Apesar disso, na medida em
que todas elas têm-se apoiado nos pressupostos básicos relacionados ao trabalho e às
características essenciais do capitalismo e do socialismo acima esboçadas, permanecem presas
á estrutura do marxismo tradicional. E não importando quão incisivas tenham sido as diversas
análises sociais, políticas, históricas, culturais e econômicas que esta estrutura teórica tenha
gerado, suas limitações tornaram-se crescentemente evidentes à luz das várias transformações
ocorridas no Século XX. Por exemplo, a estrutura teórica em questão tem sido capaz de analisar
a trajetória histórica do capitalismo liberal que o conduziu a um estágio caracterizado pela
substituição parcial ou total do mercado pelo Estado intervencionista como o agente primário de
distribuição. Porém, como o cerne da crítica tradicional é o modo de distribuição, o crescimento
do capitalismo baseado na intervenção do Estado colocou sérios problemas a esta abordagem
teórica. Se as categorias da crítica à economia política aplicam-se somente a uma economia
auto-regulada, com a mediação do mercado, e à apropriação privada do excedente, o
crescimento do Estado intervencionista tem feito com que estas categorias se tornem menos
adequadas a uma crítica social contemporânea. Ou seja, que não mais captam a realidade social
adequadamente. Consequentemente, a teoria marxista tradicional tornou-se cada vez menos
capaz de fornecer uma crítica histórica ao capitalismo pós-liberal, ficando confinada a duas
opções. Pode-se apoiar nas transformações qualitativas do capitalismo do Século XX e se
concentrar naqueles aspectos da estrutura de mercado que continuam a existir - e deste modo
reconhecer implicitamente que se tornou uma crítica parcial; ou limitar a aplicabilidade das
categorias marxianas ao capitalismo do Século XIX e tentar desenvolver uma nova crítica,
presumivelmente mais adequada às condições contemporâneas. No decorrer deste trabalho,
discutirei as dificuldades teóricas encontradas por algumas das tentativas concernentes a esta
última opção.
As fragilidades do marxismo tradicional, ao considerar a sociedade pós-liberal, tornam-se
particularmente visíveis quando analisa de maneira sistemática o "socialismo realmente
existente". Nem todas as formas de marxismo tradicional afirmaram como "efetivamente
socialistas" sociedades como a União Soviética. Contudo, tal abordagem teórica não permite uma
análise crítica adequada dessa forma de sociedade. As categorias marxianas, quando
tradicionalmente interpretadas, são de pouca utilidade para a formulação de uma crítica social a
uma sociedade que é regulada e dominada pelo Estado. Assim, a União Soviética foi com
frequência considerada socialista porque a propriedade privada e o mercado foram abolidos; a
persistente falta de liberdade foi atribuída às instituições burocráticas repressivas. Esta posição
sugere, portanto, que não existe relação entre a natureza da esfera sócio-econômica e o caráter
da esfera política, indicando que as categorias da crítica social de Marx (tais como o valor),
quando entendidas em termos do mercado e da propriedade privada, não podem captar as
razões para a contínua ou crescente falta de liberdade no "socialismo realmente existente" e não
podem, portanto, fornecer a base para uma crítica histórica de tais sociedades. Dentro de tal
quadro, a relação entre socialismo e liberdade tornou-se uma contingência. Por conseguinte, isso
implica que uma crítica histórica ao capitalismo, desenvolvida a partir do ponto de vista do
socialismo, não pode mais ser considerada uma crítica dirigida às razões da falta de liberdade e
da alienação, da perspectiva da emancipação humana geral. (5) Estas questões fundamentais
apontam os limites da interpretação tradicional. Mostram que uma análise do capitalismo que se
concentre exclusivamente no mercado e na propriedade privada não pode mais servir como uma
base adequada para uma teoria crítica emancipatória.
À medida que esta fragilidade fundamental vai se tornando mais evidente, o marxismo tradicional
vai sendo questionado com maior frequência. Além disso, a base teórica de sua crítica social ao
capitalismo - a afirmação de que o trabalho humano é a fonte de toda a riqueza - tem sido
criticada à luz da crescente importância do conhecimento científico e da tecnologia avançada
para o processo de produção. O marxismo tradicional não somente falha no sentido de fornecer
bases para uma adequada análise histórica do "socialismo realmente existente" (ou de seu
colapso), mas sua análise crítica do capitalismo e de seus ideais de emancipação tem se tornado
crescentemente distanciada dos temas e razões da atual insatisfação social nos países
industriais avançados. Isto é particularmente verdade no que respeita à ênfase exclusiva e
positiva sobre as classes, e sua afirmação de que são o trabalho proletário industrial e as formas
específicas de produção e "progresso" técnico que caracterizam o capitalismo. Num momento de
crescente crítica a tal "progresso" e "crescimento", de exaltação à consciência acerca dos
problemas ecológicos, de descontentamento generalizado quanto às formas de trabalho
existentes, de aumento da preocupação concernente à liberdade política e de uma progressiva
importância relacionada às identidades sociais não baseadas em classe (gênero ou etnia, por
exemplo), o marxismo tradicional parece definitivamente anacrônico. Tanto no Leste quanto no
Ocidente tem-se revelado historicamente inadequado, diante das transformações ocorridas no
decorrer do Século XX.
A crise do marxismo tradicional, no entanto, de forma alguma invalida a pertinência de uma crítica
social adequada ao capitalismo contemporâneo. (6) Ao contrário, estimula a necessidade de que
tal crítica seja elaborada. A presente situação histórica pode ser entendida em termos de uma
transformação da moderna sociedade capitalista que tem um alcance tão significativo - social,
política, econômica e culturalmente - quanto a transição anterior do capitalismo liberal para o
capitalismo intervencionista de Estado. Parece-nos ainda que se configura uma outra fase
histórica do capitalismo desenvolvido (7) Os contornos desta nova fase ainda não estão claros,
mas as duas últimas décadas testemunharam o relativo declínio da importância das instituições e
instâncias de poder que estiveram no centro do capitalismo intervencionista de Estado - este,
caracterizado pela produção geograficamente centralizada, grandes sindicatos industriais,
crescente intervenção progressiva do governo na economia e um Estado de bem-estar
amplamente expandido. Duas tendências históricas aparentemente opostas têm contribuído para
este enfraquecimento das instituições centrais da fase intervencionista do Estado no capitalismo:
de um lado, uma parcial descentralização da produção e da política e com ela a emergência de
uma pluralidade de grupamentos sociais, organizações, movimentos, partidos e subculturas; e,
de outro, um processo de globalização e concentração de capital que tem ocorrido em novas
bases, seguramente abstratas, sem qualquer paralelo com a experiência imediata e,
aparentemente, pelo menos por enquanto, para além do controle efetivo do Estado.
Essas tendências, no entanto, não deveriam ser entendidas em termos de um processo histórico
linear. Elas incluem mudanças que destacam o caráter anacrônico e inadequado da teoria
tradicional - por exemplo, o surgimento de novos movimentos sociais, tais como os movimentos
ecológicos de massa, os movimentos de mulheres, os movimentos de emancipação das
minorias, bem como o crescente descontentamento (e a polarização concernente) com as formas
existentes de trabalho e os sistemas tradicionais de valores e instituições. Ainda, o momento
histórico, desde o início dos anos de 1970, tem sido caracterizado também pela reemergência de
manifestações "clássicas" do capital industrial, tais como suas relocalizações econômicas em
todo o mundo e a intensificação da rivalidade intercapitalista, em escala global. Tomadas em
conjunto, essas mudanças sugerem que uma análise crítica adequada à sociedade capitalista
contemporânea deve ser capaz de incluir suas novas e significativas dimensões e os
fundamentos de sua continuidade enquanto capitalismo.
Em outras palavras, tal análise deve evitar a visão teórica unilateral das versões mais ortodoxas
do marxismo tradicional. Estas são frequentemente capazes de afirmar que crises e rivalidade
intercapitalistas são características que acompanham a evolução do capitalismo (apesar da
emergência do Estado intervencionista); mas incapazes de se reportar às mudanças históricas
qualitativas na identidade e na natureza dos grupamentos sociais que expressam
descontentamento e oposição, ou no caráter de suas necessidades, insatisfações, aspirações e
formas de consciência. Ainda, uma análise adequada deve também evitar a tendência igualmente
unilateral de se reportar apenas às mudanças mais recentes, ignorando a "esfera econômica" ou
simplesmente pressupondo que, com o surgimento do Estado intervencionista, as considerações
econômicas tomaram-se menos importantes. Finalmente, nenhuma crítica adequada pode ser
formulada, simplesmente juntando as análises que se concentravam em questões econômicas
àquelas que se reportavam à análise das mudanças qualitativas sociais e culturais - e assim, com
os pressupostos teóricos básicos de tal crítica permanecendo aqueles da teoria marxista
tradicional. O caráter crescentemente anacrónico do marxismo tradicional e suas sérias
fragilidades, enquanto uma teoria crítica emancipatória, são intrínsecas a esta abordagem da
sociedade capitalista. Em última análise, estão na origem de sua insuficiência na tentativa de
apreender adequadamente o capitalismo.
Essa insuficiência tem se tornado mais clara diante da atual transformação da moderna
sociedade capitalista. Da mesma forma que a Grande Depressão revelou os limites da
"autoregulação" de uma economia mediada pelo mercado e as deficiências de concepções que
igualavam capitalismo, a capitalismo liberal, o período caracterizado pelas crises que marcaram o
final da era de prosperidade e expansão econômica do pós-Guerra, evidenciou os limites da
capacidade do Estado intervencionista de regular a economia. Isto abalou as concepções
lineares de desenvolvimento do capitalismo, de uma fase liberal a uma outra centrada no Estado.
A expansão do Estado de bem-estar social, após a II Guerra Mundial, tornou-se possível em
virtude da expansão por um longo período da economia mundial, que se notabilizou como a fase
de ouro do desenvolvimento capitalista; não como um resultado do fato das esferas políticas
terem, exitosa e permanentemente, assumido o controle da esfera econômica. Contudo, o
desenvolvimento do capitalismo nas últimas duas décadas fez retroceder as tendências visíveis
do período anterior, enfraquecendo e impondo limites ao intervencionismo do Estado. Isto ficou
manifesto na crise do Estado de bem-estar no Ocidente - que proclamou a morte do
keynesianismo e, de modo patente, reafirmou a dinâmica contraditória do capitalismo - bem
como, na crise e colapso na maioria dos estados e partidos comunistas no Leste. (8)
É digno de atenção que, comparada à situação depois do colapso do capitalismo liberal no final
dos anos de 1920, as crises e desarticulações associadas às mais recentes transformações do
capitalismo estimularam poucas análises críticas, desenvolvidas a partir de uma perspectiva que
apontasse para a possível superação do capitalismo. Isto pode ser interpretado como uma
expressão de incerteza teórica. A crise do capitalismo intervencionista de Estado serviu para
indicar que o capitalismo continuou a se desenvolver com uma dinâmica quase autônoma. Este
desenvolvimento, portanto, demanda uma reconsideração crítica daquelas teorias que haviam
interpretado a substituição do mercado pelo Estado como significando a eliminação definitiva das
crises econômicas. No entanto, a natureza fundamental do capitalismo, do processo dinâmico
que se afirma a si mesmo, mais uma vez, permanece sem explicação. Não é mais convincente
clamar que o "socialismo" representa a resposta para os problemas do capitalismo, quando o que
se está querendo justificar é simplesmente a introdução do planejamento central e da
propriedade estatal (ou mesmo pública).
A frequentemente evocada "crise do marxismo" não expressa, então, apenas a rejeição
desiludida ao "socialismo realmente existente", a descrença no proletariado e a incerteza quanto
a quaisquer outros possíveis agentes sociais de transformação social fundamental. Mais
fundamentalmente é a expressão de uma profunda incerteza quanto ao significado essencial do
capitalismo e do que viria substituí-lo com sua superação. A diversidade de posições teóricas
formuladas nas décadas passadas - o dogmatismo de muitos grupos da Nova Esquerda do final
dos anos de 1960 e no início dos anos de 1970, as críticas puramente políticas que reemergiram
subsequentemente e muitas das posições "pós-modernas" contemporâneas - pode ser vista
como expressão de tal incerteza quanto à natureza da sociedade capitalista e mesmo como um
desapontamento quanto à possibilidade de iniciativas no sentido de captá-la. Esta incerteza pode
ser entendida, em parte, como uma expressão da insuficiência básica da abordagem marxista
tradicional. Suas fragilidades têm sido reveladas não somente pelas dificuldades com relação ao
"socialismo realmente existente" e diante das necessidades e insatisfações inerentes aos novos
movimentos sociais. Mais fundamentalmente, tem-se tornado claro que este paradigma teórico
não fornece uma concepção satisfatória sobre a própria natureza do capitalismo; uma concepção
que estabeleça uma análise adequada das mudanças que o atingem e que seja capaz de
proporcionar o entendimento de suas estruturas fundamentais de modo a apontar a possibilidade
de sua transformação histórica. A transformação subentendida pelo marxismo tradicional não é,
em nenhuma medida, plausível como uma "solução" para os males da sociedade moderna.
Se a sociedade moderna deve ser analisada enquanto capitalista e, por conseguinte, como
transformável em um nível fundamental, então, o núcleo fundamental do capitalismo deve ser
redefinido. Sobre esta base poderia ser formulada uma teoria crítica diferente acerca da natureza
e trajetória da sociedade moderna - uma teoria que buscasse apreender, social e historicamente,
as raízes da não-liberdade e da alienação na sociedade moderna. Tal análise contribuiria
também para uma teoria política da democracia. A história do marxismo tradicional tem apenas
revelado explicitamente que a questão da liberdade política deve ser central para qualquer
posição crítica. Não obstante, é preciso ainda considerar que uma adequada teoria da
democracia requer uma análise histórica das condições sociais de liberdade, que não pode ser
elaborada a partir de uma posição abstratamente normativa ou de uma posição que atribua uma
existência material à esfera da política.
RECONSTRUINDO UMA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE MODERNA
A presente reinterpretação da natureza da teoria crítica de Marx é uma resposta à transformação
histórica do capitalismo e às fragilidades do marxismo tradicional esboçadas acima. (9) Minha
leitura dos Grundrisse de Marx, uma versão preliminar de sua crítica à economia política, levoume a rever a teoria crítica que ele desenvolveu em seus escritos maduros, particularmente em O
Capital. Esta teoria, como a entendo, é diferente e mais poderosa do que as interpretações do
marxismo tradicional; e também possui um significado mais contemporâneo. Considero que a
reinterpretação da concepção de Marx, quanto às relações estruturantes básicas da sociedade
capitalista aqui apresentada, pode servir como ponto de partida para uma teoria crítica do
capitalismo, superar muitas das deficiências da interpretação tradicional e ser mais adequada
para se reportar a muitas mudanças e questões postas recentes.
A reinterpretação aqui apresentada tanto tem sido influenciada pelas, quanto pretende ser uma
crítica às abordagens desenvolvidas por Georg Lukács (especialmente na obra History and Class
Consciousness) e por adeptos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Tais abordagens,
baseadas em compreensões sofisticadas da crítica de Marx, expressam uma resposta teórica à
compreensão da transformação histórica do capitalismo, da forma liberal, regulada pelo mercado,
para uma forma organizada, burocrática, dirigida pelo Estado, mediante um redirecionamento do
capitalismo. Dentro dessa tradição interpretativa, a teoria de Marx não é considerada como uma
teoria da produção material e da estrutura de classes, e menos ainda, uma teoria da economia.
No lugar disso, é entendida como uma teoria da constituição histórica de formas determinadas,
reificadas, de objetividade e subjetividade sociais. Sua crítica à economia política é considerada
como uma tentativa de analisar criticamente as formas culturais e as estruturas sociais da
civilização capitalista. (10) Adicionalmente, a teoria de Marx é considerada como capaz de
compreender a relação entre teoria e sociedade, de maneira auto-reflexiva, por procurar analisar
seu contexto - a sociedade capitalista -, situando-se historicamente e creditando-se à condição
de se tornar o próprio ponto de vista. (Esta tentativa de fundamentar socialmente a possibilidade
de uma crítica teórica é vista como um aspecto necessário a qualquer tentativa de fundamentar a
possibilidade de ação social antitética e transformadora.) Encaro com simpatia o projeto geral de
desenvolver uma ampla e coerente crítica social, política e cultural, adequada à sociedade
capitalista contemporânea, por meio de uma teoria social auto-reflexiva, com objetivo
emancipatório. Todavia, como ainda irei aprofundar, alguns dos pressupostos teóricos básicos
impediram, de modo diferenciado, Lukács, bem como membros da Escola de Frankfurt, de
realizarem plenamente seus objetivos teóricos. Por um lado, eles reconheceram as inadequações
de uma teoria crítica da modernidade que definisse o capitalismo situando-o apenas no Século
XIX, ou seja, em termos do mercado e da propriedade privada. Por outro, entretanto,
permaneceram presos a alguns pressupostos deste mesmo tipo de teoria, em particular, no que
diz respeito a sua concepção transhistórica do trabalho. O objetivo programático de ambos, em
desenvolver uma concepção de capitalismo adequada ao Século XX, não poderia ser realizado
com base em tal compreensão acerca do trabalho. Pretendo melhor adequar a força propulsora
crítica dessa tradição interpretativa, reexaminando a análise de Marx sobre a natureza e
significado do trabalho no capitalismo.
Segundo minha reinterpretação, embora a análise marxiana do capitalismo pressuponha uma
crítica à exploração e ao modo burguês de distribuição (o mercado, a propriedade privada), não é
desenvolvida a partir do ponto de vista do trabalho; ao contrário, está baseada na crítica ao
trabalho no capitalismo. A teoria crítica de Marx procura mostrar que o trabalho no capitalismo
desempenha um papel historicamente específico para mediar as relações sociais e para elucidar
as consequências desta forma de mediação. Sua ênfase sobre o trabalho no capitalismo não
implica que o processo material de produção seja necessariamente mais importante do que
outras esferas da vida social. Ao contrário, sua análise da especificidade do trabalho no
capitalismo sugere que a produção no capitalismo não é um processo puramente técnico; mas
sim que está inextricavelmente relacionada e moldada pelas relações sociais básicas desta
sociedade. Estas, por sua vez, não podem ser compreendidas tomando por referência apenas o
mercado e a propriedade privada. Esta interpretação da teoria de Marx fornece a base para uma
crítica da forma de produção e da forma de riqueza (isto é, o valor), que caracterizam o
capitalismo, ao invés de simplesmente questionar sua apropriação privada. Também caracteriza
o capitalismo em termos de uma forma abstrata de dominação associada à natureza peculiar do
trabalho nele existente, e situa nesta forma de dominação, o fundamento social último para o
"crescimento" anárquico e o caráter crescentemente fragmentado do trabalho, e até mesmo da
existência individual, na sociedade capitalista. A presente interpretação sugere que a classe
trabalhadora é essencial para o capitalismo, em vez de materializar sua negação. Como
veremos, tal abordagem reinterpreta a concepção de alienação em Marx à luz da sua crítica
madura ao trabalho no capitalismo e situa esta concepção reinterpretada de alienação no centro
de sua crítica à sociedade capitalista.
Claramente, tal crítica da sociedade capitalista difere inteiramente daquele tipo de crítica
"produtivista", característica de muitas interpretações marxistas tradicionais, que ratificam o
trabalho proletário, a produção industrial e um "crescimento" industrial totalmente livre. Na
verdade, do ponto de vista da reconsideração aqui apresentada, a posição produtivista não
representa uma crítica fundamental: não apenas fracassa por não apresentar uma alternativa de
uma possível futura sociedade além do capitalismo, mas ratifica alguns aspectos centrais do
próprio capitalismo. A este respeito, a reconstrução da teoria crítica madura de Marx assumida
neste trabalho fornece o ponto de vista para uma crítica ao paradigma produtivista na tradição
marxista. Como deixarei claro, aquilo que a tradição marxista tem geralmente tratado como
positivo, é precisamente o objeto de crítica nas obras mais recentes de Marx. Pretendo enfatizar
tal diferença, não somente para assinalar que a teoria de Marx não era produtivista e, portanto,
questionar uma tradição teórica que professa se apoiar nos textos de Marx - mas também
mostrar como a própria teoria de Marx fornece uma crítica poderosa ao paradigma produtivista, e
que, não por acaso, o rejeita como falso, e ainda procura torná-lo compreensível em termos
sociais e históricos. Assim o faz, fundamentando teoricamente a possibilidade de tal concepção
nas formas sociais estruturantes da sociedade capitalista. Desse modo, a análise categorial (11)
de Marx do capitalismo estabelece a base para uma crítica ao paradigma do produtivismo
enquanto uma posição que, na verdade, expressa um momento da realidade histórica da
sociedade capitalista mas o faz numa perspectiva transhistórica e, por conseguinte, numa
perspectiva não-crítica e ratificadora.
Apresentarei uma interpretação similar à teoria da história de Marx. Nas obras maduras, sua
noção de uma lógica imanente ao desenvolvimento histórico também não é transhistórica e nem
categórica, mas é crítica e se refere especificamente à sociedade capitalista. Marx identifica o
fundamento de uma forma particular de lógica histórica nas formas sociais específicas da
sociedade capitalista. Sua posição nem afirma a existência de uma lógica transhistórica da
história, nem nega a existência de algum tipo de lógica histórica. Ao contrário, trata tal lógica
como uma característica da sociedade capitalista que pode ser, e tem sido projetada sobre toda a
história da humanidade.
A teoria de Marx, ao expressar dessa maneira formas de pensamento, social e historicamente
plausíveis, procura tornar válidas, reflexivamente, suas próprias categorias. A teoria, então, é
tratada como parte da realidade social na qual ela existe. A abordagem que proponho é uma
tentativa de formular uma crítica ao paradigma da produção com base nas categorias sociais da
crítica marxiana da produção e, através disso, amarrar a crítica da teoria a uma possível crítica
social. Esta abordagem fornece a base para uma teoria crítica da sociedade moderna que não
exige nem uma afirmação abstratamente universalista e racionalista da modernidade, nem uma
crítica anti-racionalista e antimoderna. Ao contrário, procura superar ambas as posições, tratando
suas contradições como historicamente determinadas e enraizadas na natureza das relações
sociais capitalistas.
A reinterpretação da teoria crítica de Marx aqui apresentada baseia-se na reconsideração das
categorias fundamentais de sua crítica à economia política - tais como valor, trabalho abstrato, a
mercadoria e o capital. Estas categorias, de acordo com Marx, "expressam as formas de ser
[Daseinsformen], as determinações de existência" [Existenzbestimmungen]... desta sociedade
específica. (12) Elas se apresentam como se fossem categorias de uma etnografia crítica da
sociedade capitalista realizada em suas entranhas - categorias que pretendem expressar as
formas básicas de objetividade e de subjetividade que estruturam as dimensões da vida social,
econômica, histórica e cultural desta sociedade, sendo elas mesmas constituídas por formas
determinadas de prática social.
No entanto, muito frequentemente, as categorias da crítica de Marx têm sido consideradas como
sendo categorias puramente econômicas. A "teoria do valor-trabalho" de Marx, por exemplo, tem
sido entendida como uma tentativa de explicar, "em primeiro lugar, os preços relativos e a taxa de
lucro em equilíbrio; em segundo, a condição de possibilidade do valor-de-troca e do lucro; e, por
último, a alocação racional de produtos em uma economia planejada". (13) Uma abordagem tão
restrita das categorias, quando trata das dimensões sociais, históricas, cultural-epistemológicas
da teoria crítica de Marx, o faz apenas quando aparecem referências àquelas passagens que se
referem explicitamente a estas dimensões, retiradas do contexto de sua análise categorial. A
amplitude e a natureza sistêmica da teoria crítica de Marx, no entanto, só podem ser captadas
completamente através de uma análise de suas categorias, entendidas como determinações do
ser social no capitalismo. Apenas quando as afirmações explícitas de Marx são entendidas com
respeito aos desdobramentos de suas categorias, é possível reconstruir adequadamente a lógica
interna de sua crítica. Por conseguinte, dedicarei especial atenção à reconsideração das
determinações e implicações das categorias básicas da teoria crítica de Marx.
Ao reinterpretar a crítica marxiana, tentarei reconstruir sua natureza sistêmica e resgatar sua
lógica interna. Não examinarei a possibilidade de ocorrências de divergências ou contradições
nas obras maduras de Marx, nem reconstruirei o percurso do desenvolvimento de seu
pensamento. Metodologicamente, minha intenção é interpretar as categorias fundamentais da
crítica à economia política feita por Marx de uma maneira logicamente coerente e
sistematicamente rigorosa, tanto quanto possível, a fim de desenvolver a teoria do núcleo do
capitalismo embutida na essência de tais categorias - aquela que define o capitalismo enquanto
tal, ao longo de seu desenvolvimento. Minha crítica ao marxismo tradicional é uma parte desta
retomada conceitual da teoria marxiana, em seu nível mais coerente.
Esta abordagem poderia servir também como o ponto de partida de um esforço no sentido de
situar historicamente as próprias obras de Marx. Tal esforço reflexivo permitiria examinar as
prováveis tensões internas e os elementos "tradicionais" contidos nesses trabalhos, do ponto
vista da teoria da natureza imanente e da trajetória do capitalismo derivada de suas categorias
fundamentais. Algumas dessas tensões internas poderiam, então, serem entendidas em termos
da tensão que se estabelece, de um lado, entre a lógica da análise categorial de Marx do
capitalismo como um todo e, de outro, sua crítica mais imediata ao capitalismo liberal - isto é, em
termos de uma tensão entre dois diferentes níveis situados historicamente. Contudo, este
trabalho será desenvolvido como se a autocompreensão de Marx fosse aquela derivada da lógica
de sua teoria do cerne da formação social capitalista. Uma vez que espero contribuir para a
reconstituição de uma teoria social crítica sistemática do capitalismo, a questão se a efetiva
autocompreensão de Marx era, na verdade, adequada àquela lógica é, para este propósito, de
importância secundária.
Este trabalho foi concebido para ser o estágio inicial de minha reinterpretação da crítica
marxiana. Antes de qualquer coisa, propõe-se a ser mais um trabalho de esclarecimento teórico
fundamental, do que uma exposição plenamente elaborada dessa crítica, e menos uma teoria
acabada do capitalismo contemporâneo. Portanto, não me reportarei à fase mais atual da
sociedade capitalista desenvolvida. Em vez disso, tentarei interpretar a concepção de Marx sobre
as relações estruturantes fundamentais da sociedade moderna, da forma como estão expressas
em suas categorias da mercadoria e do capital, de modo a não limitá-las a quaisquer das
principais fases do capitalismo desenvolvido - e talvez, através disso, permitir-lhes esclarecer a
natureza imanente da formação social como um todo. Isto pode fornecer a base para uma análise
da sociedade moderna do Século XX em termos de uma acentuada e crescente distinção entre o
capitalismo na atualidade e sua forma burguesa primitiva.
Iniciarei com um esboço geral de minha interpretação baseado na análise de várias seções dos
Grundrisse de Marx. Sobre esta base, no Capítulo 2, prosseguirei no exame mais aprofundado
dos pressupostos fundamentais do marxismo tradicional. A fim de esclarecer minha abordagem,
e explicitar sua relevância para uma teoria crítica contemporânea, examinarei, no Capítulo 3, as
tentativas empreendidas por membros do círculo da Escola de Frankfurt - em particular, Friedrich
Pollock e Max Horkheimer - de desenvolver uma teoria crítica social adequada às importantes
mudanças ocorridas na sociedade capitalista do Século XX. Tomando como referência minha
interpretação do marxismo tradicional e a de Marx, examinarei os dilemas e fragilidades
envolvidas nessas tentativas. Em minha argumentação, procuro revelar que tais questões
indicam os limites de uma teoria que tenta entender o capitalismo pós-liberal, mantendo ainda
certos pressupostos básicos do marxismo tradicional.
Minha análise daqueles limites tem a pretensão de ser uma resposta crítica aos dilemas teóricos
da Teoria Crítica. A obra de Jürgens Habermas, obviamente, pode ser entendida como uma outra
resposta; porém, ele também retém o que considero uma compreensão tradicional sobre o
trabalho. Minha crítica a esta compreensão procura também apontar para a possibilidade de uma
teoria social crítica reconstituída, que difere daquela apresentada por Habermas. Tal teoria
prescindiria das concepções evolucionárias da história e da noção de que a vida humana em
sociedade esteja baseada sobre um princípio ontológico que "se afirma a si mesmo" no curso do
desenvolvimento histórico (por exemplo, o trabalho no marxismo tradicional, ou a ação
comunicativa na obra mais recente de Habermas). (14)
Na segunda metade deste trabalho, iniciarei minha reconstrução da crítica marxiana, a qual irá
esclarecer, ainda que retrospectivamente, a base para minha crítica ao marxismo tradicional. N’O
Capital, Marx busca desvendar a sociedade capitalista identificando suas formas sociais
fundamentais, e sobre esta base, desenvolve, cuidadosamente, um conjunto de categorias interrelacionadas, com as quais explica seu funcionamento subjacente. Começando com as
categorias que ele presume serem capazes de revelar as estruturas nucleares da formação
social - tais como a mercadoria, o valor e o trabalho abstrato - Marx então desvenda seu
significado, criteriosa e rigorosamente, a fim de incorporar aspectos e níveis cada vez mais
concretos e complexos da realidade social. Minha intenção é esclarecer as categorias
fundamentais com as quais Marx inicia sua análise, isto é, o nível mais abstrato e básico desta
análise. Na minha opinião, vários intérpretes passaram muito rapidamente para o nível analítico
da realidade social concreta imediata e, consequentemente, não perceberam alguns aspectos
cruciais das próprias categorias estruturantes fundamentais.
Examino a categoria trabalho abstrato, no Capítulo 4, e o tempo abstrato, no Capítulo 5. Com
base nestas categorias, examino criticamente a crítica de Habermas a Marx, no Capitulo 6 e, em
seguida, nos Capítulos 7, 8 e 9, reconstruo as determinações iniciais do conceito de capital de
Marx e suas noções de contradição e dinâmica histórica. Nesses capítulos, procuro esclarecer as
principais categorias básicas da teoria marxiana, para assim fundamentar minha crítica ao
marxismo tradicional e justificar meu ponto de vista de que a lógica da apresentação categorial
revelada n’ O Capital aponta na direção consoante com a apresentação da contradição do
capitalismo e da natureza do socialismo contidas nos Grundrisse. Ao estabelecer o fundamento
para o posterior desenvolvimento de minha reconstrução, algumas vezes extrapolarei meus
argumentos para revelar suas implicações quanto a uma análise da sociedade contemporânea.
Tais extrapolações são determinações abstratas e iniciais de aspectos do capitalismo moderno,
baseadas em minha reconstrução do nível mais fundamental da teoria crítica de Marx; elas não
representam uma tentativa de analisar diretamente, sem quaisquer mediações, níveis mais
concretos da realidade social com base nas categorias mais abstratas.
Com base no que estou desenvolvendo aqui, pretendo prosseguir meu projeto de reconstrução
[de uma teoria crítica] num trabalho futuro. Em minha opinião, este trabalho demonstra a
plausibilidade de minha reinterpretação da crítica à economia política de Marx e da crítica ao
marxismo tradicional a esta associada. Revela ainda a força teórica da teoria marxiana e sua
possível relevância para a reconstrução de uma teoria crítica da sociedade moderna. Não
obstante, a abordagem deve ser mais aprofundada antes que a questão da viabilidade das
categorias nela contidas, tendo em vista uma teoria crítica da sociedade contemporânea, seja
discutida adequadamente.
OS GRUNDRISSE:
REPENSANDO A CONCEPÇÃO DE MARX SOBRE O CAPITALISMO E A SUA SUPERAÇÃO
Minha reinterpretação da teoria crítica madura de Marx origina-se do exame de aspectos dos
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, os importantes fundamentos escritos por Marx em
1857-1858. (15) O conteúdo dos Grundrisse ajusta-se muito bem para servir como ponto de
partida para a pretendida reinterpretação: são mais fáceis de decifrar do que o Capital, o qual é
sujeito a mal-entendidos por estar estruturado de uma maneira rigorosamente lógica enquanto
uma crítica imanente isto é, uma crítica desenvolvida a partir de um ponto de vista que é
imanente ao seu objeto de investigação, em vez de externo. Como os Grundrisse não estão
estruturados tão rigorosamente, o objetivo estratégico geral da análise categorial de Marx é mais
acessível, particularmente naquelas seções onde ele apresenta sua concepção da contradição
básica da sociedade capitalista. Nelas, sua análise do núcleo essencial do capitalismo e da
natureza da sua superação histórica tem importante significação na atualidade, pois lança
dúvidas acerca das interpretações de sua teoria, centradas em considerações relativas ao
mercado e à dominação e exploração de classe. (16)
Tentarei mostrar como essas seções dos Grundrisse indicam que as categorias da teoria de Marx
são historicamente específicas, que sua crítica do capitalismo é direcionada tanto para seu modo
de produzir como para seu modo de distribuir, e que sua noção da contradição básica do
capitalismo não pode ser concebida simplesmente como uma contradição entre o mercado e a
propriedade privada, de um lado, e a produção industrial, de outro. Em outras palavras, minha
discussão acerca do tratamento dado por Marx à contradição do capitalismo nos Grundrisse
aponta para a necessidade de uma reconsideração de mais longo alcance sobre a natureza de
sua teoria crítica madura: em particular, sugere que sua análise do trabalho no capitalismo é
historicamente específica, e sua teoria crítica madura é uma crítica ao trabalho no capitalismo,
não uma crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho. Assim estabelecido, estarei em
condições para me referir ao problema do porquê, na crítica de Marx, as categorias fundamentais
da vida social no capitalismo são categorias do trabalho. Isto não é, absolutamente, evidente por
si mesmo, e não pode ser justificado meramente apontando para a importância óbvia do trabalho
para a vida social humana em geral. (17)
Nos Grundrisse, a análise de Marx acerca da contradição entre as "relações de produção" e as
"forças produtivas" no capitalismo difere da análise das teorias marxistas tradicionais, que se
concentram no modo de distribuir e entendem a contradição como uma contradição entre as
esferas da distribuição e da produção. Marx critica, explicitamente, aquelas abordagens teóricas
que conceituam a transformação histórica em termos do modo de distribuir sem considerar a
possibilidade de que o modo de produzir seja transformado. Marx toma como exemplo de tais
abordagens, a afirmação de John Stuart Mill para quem "as leis e condições da produção da
riqueza compartilham do caráter das verdades físicas... Não é assim com a distribuição da
riqueza. Esta é, unicamente, um problema das instituições humanas." (18) Esta separação, de
acordo com Marx, é ilegítima: "As 'leis e condições' da produção da riqueza e as leis da'
distribuição da riqueza' são as mesmas leis sob diferentes formas, e ambas se modificam,
experimentam o mesmo processo histórico; sendo, enquanto tal, puramente momentos de um
processo histórico." (19)
A noção de Marx sobre o modo de distribuir, no entanto, não se refere apenas à maneira pela
qual as mercadorias e o trabalho são socialmente distribuídos (por exemplo, através de
mecanismo do mercado); vai mais adiante, ao descrever que "a condição de não-proprietários
dos trabalhadores e a ...apropriação do trabalho alheio pelo capital", (20) isto é, as relações
capitalistas de propriedade enquanto "modos de distribuição [que ] são as próprias relações de
produção, porém sub specie distributionis. (21) Estas passagens indicam que a noção de Marx
de modo de distribuição envolve as relações capitalistas de propriedade. Elas também implicam
que sua noção sobre "relações de produção" não pode ser entendida apenas em termos do modo
de distribuir, mas deve também ser considerada como sub specie productionis - por outras
palavras, que as relações de produção não podem ser entendidas como tradicionalmente têm
sido. Se Marx considera as relações de propriedade como sendo relações de distribuição, (22)
decorre daí que o seu conceito de relações de produção não pode ser plenamente captado em
termos de relações capitalistas de classe, baseadas na propriedade privada dos meios de
produção e expressas na desigual distribuição social do poder e da riqueza. Ao contrário, aquele
conceito deve também ser entendido com referência ao modo de produzir no capitalismo. (23)
No entanto, se o processo de produção e as relações sociais fundamentais do capitalismo estão
inter-relacionados, o modo de produzir não pode ser igualado às forças produtivas, que acabam
entrando em contradição com as relações capitalistas de produção. Em vez disso, o próprio
modo de produzir deveria ser visto como intrinsecamente relacionado ao capitalismo. Estas
passagens sugerem, em outras palavras, que a contradição marxiana não deveria ser concebida
como uma contradição entre a produção industrial de um lado, e o mercado e a propriedade
privada capitalista do outro; sua compreensão acerca das forças e das relações de produção
deve ser, portanto, profundamente repensada. A noção de Marx acerca da superação do
capitalismo sugere que a mesma significa uma transformação, não somente do modo de distribuir
existente, mas também do modo de produzir. É precisamente a este respeito que, com certa
simpatia, Marx aprova o significado do pensamento de Charles Fourier: "O trabalho não pode se
transformar em diversão, como Fourier gostaria, o que não desmerece sua grande contribuição
em ter expressado a substituição, não da distribuição, mas do próprio modo de produzir, por uma
forma superior, como o objetivo último." (24)
Assumindo que o "objetivo último" é a "derrubada" ou superação do próprio modo de produzir,
este deve incorporar as relações capitalistas. Na verdade, a crítica de Marx a estas relações
aponta, numa passagem posterior, para a possibilidade de uma transformação histórica da
produção:
"Não é necessário um grande esforço para compreender que, onde, e.g., o trabalho livre ou o
trabalho assalariado resultado da dissolução da servidão, é o ponto de partida, as máquinas
surgem como antítese ao trabalho vivo, como propriedade que lhe é alheia e como força que lhe
é hostil; i.e., que elas devem confrontá-lo na condição de capital. Mas, da mesma forma é fácil
perceber que as máquinas não cessarão de ser agentes de produção social quando se tornam,
e.g., propriedade de trabalhadores associados. No primeiro caso, porém, sua distribuição, i.e.,
em que elas não pertencem ao trabalhador, obedece à mesma condição de ser do modo de
produção baseado no trabalho assalariado. No segundo caso, a modificação da distribuição se
iniciaria a partir de um fundamento da produção modificado, uma nova base a ser primeiramente
criada pelo processo da história." (25)
A fim de entender mais claramente a natureza da análise de Marx e alcançar o que ele quer dizer
ao se referir à transformação do modo de produzir, devemos examinar sua concepção quanto ao
"fundamento" da produção (capitalista). Isto é, devemos analisar sua noção de "modo de
produção baseado no trabalho assalariado" e refletir sobre o que poderia significar uma "base de
produção modificada".
O NÚCLEO FUNDAMENTAL DO CAPITALISMO
Minha investigação da análise do capitalismo feita por Marx inicia-se com uma seção
crucialmente importante dos Grundrisse, intitulada "Contradição entre a base da produção
burguesa (valor como medida) e seu desenvolvimento". (26) Marx começa esta seção como se
segue: " A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado -i.e., o posicionamento do trabalho social
na forma da contradição entre capital e trabalho assalariado - é o desenvolvimento último da
relação valor e da produção baseada no valor." (27) O título e a frase inicial desta seção dos
Grundrisse indicam que, para Marx, a categoria valor expressa as relações básicas de produção
do capitalismo -aquelas relações sociais que caracterizam a especificidade do capitalismo como
um modo de vida social -, bem como indicam que a produção no capitalismo está baseada no
valor. Em outras palavras, valor, na análise de Marx, constitui o "fundamento da produção
burguesa."
Uma peculiaridade da categoria valor é que aparenta expressar tanto uma determinada forma de
relações sociais como uma forma particular de riqueza. Qualquer análise do valor deve, portanto,
esclarecer ambos os aspectos. Temos observado que o valor, enquanto uma categoria de
riqueza, geralmente tem sido concebido como uma categoria do mercado. Contudo, quando Marx
se refere à "troca" no desenrolar da análise, quando da consideração da "relação valor" nas
passagens citadas, o faz tendo em vista o processo capitalista de produção em si. A troca a qual
se refere não é própria da circulação, mas sim, à troca que ocorre na produção -"a troca de
trabalho vivo por trabalho objetivado". Isto implica que o valor não deveria ser entendido
meramente como uma categoria do modo de distribuição de mercadorias, isto é, como um
argumento para fundamentar o automatismo do mercado auto-regulável. Ao contrário, deveria ser
entendido como uma categoria da produção capitalista em si. Parece, então, que a noção
marxiana da contradição entre as forças e as relações de produção deveria ser reinterpretada
como se referindo a momentos distinguíveis do processo de produção. O fato da "produção
baseada no valor" e "o modo de produção baseado no trabalho assalariado" parecerem estar
intimamente relacionados requer um exame mais aprofundado.
Quando Marx discute a produção baseada no valor, ele a descreve como um modo de produção
cujo "pressuposto é - e permanece sendo - a quantidade de tempo de trabalho direto, a
quantidade de trabalho empregado, como o fator determinante da produção de riqueza." (28)
Segundo Marx, o valor, como uma forma de riqueza, é caracterizado por ser constituído a partir
do dispêndio de trabalho humano direto no processo de sua produção - por permanecer preso a
tal dispêndio como o fator determinante na produção da riqueza e por ter uma dimensão
temporal. O valor é uma forma social que expressa o, e está baseada no, dispêndio de tempo de
trabalho direto. Para Marx, esta forma está no coração da sociedade capitalista. Como uma
categoria das relações sociais fundamentais que constituem o capitalismo, o valor expressa o
que é, e permanece sendo, o fundamento básico da produção capitalista. Todavia, surge uma
crescente tensão entre este fundamento do modo capitalista de produção e os resultados de seu
próprio desenvolvimento histórico:
"Porém, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real vai depender
menos do tempo de trabalho, e da quantidade de trabalho empregado, e passa a depender mais
da força produtiva dos agentes [instrumentos] postos em movimento durante o tempo de
trabalho, cuja "potência efetiva" é, em si mesma, ... desproporcional ao tempo de trabalho direto
gasto em sua produção; mas que depende, sobretudo, do estado geral da ciência e do progresso
da tecnologia… A riqueza real manifesta-se, excepcionalmente, ...na fantástica desproporção
entre o tempo de trabalho aplicado e seu produto, bem como no desequilíbrio qualitativo entre
trabalho, reduzido a uma pura abstração, e a capacidade produtiva do processo de produção que
ele supervisiona" (29)
O contraste entre valor e "riqueza real" - isto é, o contraste entre a forma de riqueza que depende
do "tempo de trabalho e do montante de trabalho empregado" e outra que não depende - é
crucial nestas citações e para o entendimento da teoria do valor em Marx e sua concepção
quanto à contradição básica da sociedade capitalista. O contraste sugere claramente que o valor
não se refere à riqueza em geral, mas é uma categoria historicamente específica e transitória que
pretende expressar o fundamento da sociedade capitalista. Além do mais, o valor não é somente
uma categoria do mercado, uma categoria que capta um modo particular da distribuição social da
riqueza. Tal interpretação, centrada no mercado - e que está próxima da posição de Mill de que o
modo de distribuição é mutável historicamente, mas o modo de produção não o é - implica a
existência de uma forma transhistórica de riqueza diferentemente distribuída nas distintas
sociedades. Porém, de acordo com Marx, o valor é uma forma historicamente específica de
riqueza social e está intrinsecamente relacionada a um modo de produção historicamente
específico. Dizer que as formas de riqueza podem ser historicamente específicas significa,
obviamente, que a riqueza social não é a mesma em todas as sociedades. A discussão de Marx
sobre estes aspectos do valor sugere, como veremos, que a natureza do trabalho e a verdadeira
tessitura das relações sociais diferem em várias formações sociais.
No decorrer deste trabalho, investigarei o caráter histórico do valor e tentarei esclarecer a relação
que Marx apresenta entre valor e tempo de trabalho. Antecipando alguma coisa, muitos
argumentos com respeito à análise de Marx acerca da exclusividade do trabalho como a fonte de
valor não reconhecem sua distinção entre "riqueza real' (ou "riqueza material") e valor. A "teoria
do valor trabalho" de Marx, não obstante, não é uma teoria das propriedades imanentes ao
trabalho em geral, mas é uma análise da especificidade histórica do valor como uma forma de
riqueza e do trabalho que, supostamente, a constitui. Consequentemente, é irrelevante para as
pretensões de Marx argumentar a favor ou contra sua teoria do valor, como se esta significasse
uma teoria do trabalho-riqueza (transhistórica) - isto é, como se Marx tivesse escrito uma
economia política em vez de umacrítica à economia política. (30) Obviamente, isto não quer dizer
que a interpretação da categoria valor desenvolvida por Marx, como uma categoria
historicamente específica, comprove que sua análise da sociedade moderna esteja correta.
Porém, requer que a análise de Marx seja considerada em seus próprios termos, historicamente
determinados, e não como se fosse uma teoria transhistórica de economia política, do tipo que
ele criticou severamente.
O valor, no contexto da estrutura analítica de Marx, é uma categoria crítica que revela a
especificidade histórica da forma de riqueza e da maneira de produzir características do
capitalismo. O parágrafo anteriormente citado mostra que, de acordo com Marx, o modo de
produção baseado no valor desenvolve-se de uma maneira tal que aponta para a possível
negação histórica do próprio valor. Marx argumenta que, no curso do desenvolvimento da
produção industrial capitalista, o valor torna-se menos e menos adequado como uma medida da
"riqueza real" produzida. Ele compara o valor, uma forma de riqueza circunscrita ao dispêndio de
tempo de trabalho humano, ao gigantesco potencial de produção de riqueza associado à ciência
e à tecnologia modernas. O valor torna-se anacrônico, tendo em vista o potencial criado pelo
sistema de produção ao qual dá sustentação. A realização deste potencial acarreta a abolição do
valor.
Esta possibilidade histórica, no entanto, não significa meramente que quantidades cada vez
maiores de mercadorias poderiam ser produzidas com base no modo de industrial produção
existente e distribuídas mais equitativamente. A lógica da crescente contradição entre "riqueza
real" e valor, que aponta para a possibilidade de que a primeira supere a segunda, como a forma
determinante de riqueza social, também implica na possibilidade de um processo de produção
diferente, um processo baseado numa mais nova e adequada estrutura emancipatória do
trabalho social:
"O trabalhador não mais se apresenta tão importante quanto antes, para ser incluído no processo
de produção; ao contrário, o ser humano tende a se transformar muito mais num supervisor e
regulador do processo de produção em si ... Ele se coloca ao lado do processo de produção em
vez de seu principal ator. Com esta transformação, o que ele conclui não é nem trabalho humano
direto e nem o tempo durante o qual ele trabalha. Ao contrário, em virtude da inclusão enquanto
um corpo social ocorre a apropriação de sua capacidade produtiva geral, de sua compreensão da
natureza e domínio sobre o trabalho - em uma palavra, ocorre o desenvolvimento do indivíduo
social que surge como a grande pedra fundamental da produção e da riqueza. O roubo do tempo
de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza presente está baseada, aparece como uma desprezível
pilastra frente a esta nova potência criada pela própria indústria de larga escala." (31)
A seção dos Grundrisse que estamos considerando deixa extremamente claro que, para Marx, a
superação do capitalismo envolve a abolição do valor como a forma social de riqueza, a qual, por
sua vez, exige a superação do modo determinado de produzir desenvolvido sob o capitalismo.
Explicitamente afirma que a abolição do valor significa que o tempo de trabalho não mais serviria
como medida de riqueza, e que a produção de riqueza não mais seria efetuada primordialmente
pelo trabalho humano direto aplicado ao processo de produção: "Tão logo o trabalho na sua
forma direta tenha cessado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve
deixar de ser sua medida e, por conseguinte, o valor de troca (deve deixar de ser a medida) do
valor de uso." (32)
Em outras palavras, com sua teoria do valor, Marx analisa as relações sociais básicas do
capitalismo, sua forma de riqueza e sua forma material de produção, como estando interrelacionadas. De acordo com a análise de Marx, como a produção se apoia no valor, o modo de
produção fundado no trabalho assalariado e a produção industrial baseada no trabalho proletário
estão intrinsecamente relacionados. Sua concepção do caráter crescentemente anacrônico do
valor também se estende ao caráter crescentemente anacrônico do processo industrial de
produção desenvolvido sob o capitalismo. A superação do capitalismo, de acordo com Marx,
acarreta uma transformação fundamental da forma material de produção, no modo como as
pessoas trabalham.
Esta posição difere fundamentalmente do marxismo tradicional que, conforme já foi observado,
concentra sua crítica apenas na transformação do modo de distribuição e trata o modo industrial
de produção como uma evolução técnica que se torna incompatível com o capitalismo. No que foi
apresentado até aqui fica óbvio que Marx não tratou a contradição do capitalismo como sendo
uma contradição entre a produção industrial e o valor, isto é, entre a produção industrial e as
relações sociais capitalistas. Ao contrário, considerou a primeira moldada pela segunda: a
produção industrial é o "modo de produção baseado no valor". É neste sentido que, em seus
últimos escritos, Marx refere-se, explicitamente, ao modo industrial de produção como uma
"forma de produção especificamente capitalista ...(também ao nível tecnológico)" (33) e, em
assim fazendo, dá a entender que deve ser transformado com a superação do capitalismo.
Obviamente, o significado das categorias básicas de Marx não pode ser resumido em poucas
palavras. A segunda metade deste livro será dedicada à elaboração de sua análise do valor e do
papel desta categoria na conformação do processo de produção. Neste momento, simplesmente
observaria que a teoria crítica de Marx, como está expressa nessas passagens dos Grundrisse,
não é uma forma de determinismo tecnológico, pois trata a tecnologia e o processo de produção
como socialmente constituídos, no sentido de que são amoldados pelo valor. Portanto, não
deveriam ser absolutamente identificados com a noção de Marx de "forças produtivas", as quais
entram em contradição com as relações sociais capitalistas. Apesar disso, incorporam uma
contradição: a análise de Marx estabelece uma distinção entre a realidade da forma de produção
constituída pelo valor e seu potencial - um potencial que fundamenta a possibilidade de um novo
modo de produção.
Está claro, a partir das citadas passagens dos Grundrisse que, quando Marx descreve a
superação da contradição do capitalismo e afirma que a "massa de trabalhadores deve, por ela
mesma, se apropriar de seu próprio trabalho excedente", (34) ele está se referindo não apenas à
expropriação da propriedade privada e ao uso do produto excedente de uma maneira mais
racional, humana e eficiente. A apropriação à qual se refere vai muito além disso, pois também
envolve a aplicação reflexiva das forças produtivas desenvolvidas sob o capitalismo, ao próprio
processo de produção. Isto é, ele vislumbra que o potencial embutido na produção capitalista
avançada poderia tornar-se o meio pelo qual o próprio processo de produção industrial poderia
ser transformado; o meio pelo qual o sistema de produção social, no qual a riqueza é criada
através da apropriação do tempo de trabalho direto e do trabalho dos operários, como dentes de
engrenagem de um aparato produtivo, poderia ser abolido. De acordo com Marx, estes dois
aspectos do modo de produção industrial capitalista estão relacionados. Por conseguinte, a
superação do capitalismo, conforme apresentada nos Grundrisse, implicitamente envolve a
superação tanto dos aspectos formais, quanto dos aspectos materiais do modo de produção
fundado no trabalho assalariado. Ela acarreta a abolição de um sistema de distribuição baseado
na troca de força-de-trabalho, enquanto uma mercadoria, por um salário com o qual os meios de
consumo são adquiridos; também acarreta a abolição de um sistema de produção baseado no
trabalho proletário, isto é, baseado no tipo de trabalho unilateral e fragmentado, característico da
produção capitalista industrial. A superação do capitalismo, em outras palavras, também envolve
a superação do trabalho concreto realizado pelo proletariado.
Esta interpretação, na medida em que fornece a base para uma crítica histórica da forma
concreta de produção no capitalismo, lança luz sobre a bem conhecida afirmação de Marx de que
a formação social capitalista sinaliza o fim da pré-história da sociedade humana. (35) A idéia da
superação do trabalho proletário implica que a "pré-história" deveria ser entendida como se
referindo àquelas formações sociais nas quais a produção de excedente continua a existir e está
baseada primordialmente no trabalho humano direto. Esta característica é compartilhada por
sociedades nas quais o excedente é criado pelo escravo, pelo servo ou pelo trabalhador
assalariado. Todavia, de acordo com Marx, a formação baseada no trabalho assalariado
caracteriza-se por possuir uma dinâmica que lhe é exclusiva, a partir da qual emerge a
possibilidade histórica de que a produção excedente baseada no trabalho humano como um
elemento imanente ao processo de produção, possa ser superada. Uma nova formação social
pode ser criada na qual o "trabalho excedente da massa tenha cessado de ser a condição para o
desenvolvimento da riqueza geral, da mesma forma que o não-trabalho de poucos, tenha deixado
de ser a condição para o desenvolvimento das potencialidades gerais do cérebro humano." (36)
Para Marx, então, o fim da pré-história significa a superação da separação e oposição entre
trabalho manual e intelectual. No entanto, dentro do quadro de sua crítica histórica, esta oposição
não pode ser superada simplesmente com a junção do trabalho manual e do trabalho intelectual,
como praticados na atualidade (por exemplo, como enaltecido na República Popular da China
nos anos de 1960). Nos Grundrisse, o tratamento dado por Marx à produção demonstra que não
apenas a separação destas modalidades de trabalho, mas também as características
determinantes de cada uma delas, estão enraizadas na forma de produção dominante. A
separação somente poderia ser superada mediante a transformação das modalidades de
trabalho manual e intelectual existentes, isto é, pela constituição histórica de uma nova estrutura
e organização social do trabalho. Tal nova estrutura toma-se possível, de acordo com a análise
de Marx, quando a produção excedente não mais estiver necessária e primordialmente baseada
no trabalho humano direto.
CAPITALISMO, TRABALHO E DOMINAÇÃO
A teoria social de Marx - em oposição à posição marxista tradicional - conduz, dessa maneira, a
uma análise crítica do modo de produzir desenvolvido sob o capitalismo e à possibilidade de sua
transformação radical. Claramente, isso não significa a glorificação produtivista desse modo de
produzir. Marx, ao tratar o valor como uma categoria historicamente determinada de um modo de
produção específico, e não apenas como um modo de distribuição, sugere - e isto é crucial - que
o trabalho que produz valor não deveria ser identificado com trabalho como se este existisse
transhistoricamente. Ao contrário, trata-se de uma forma historicamente específica que seria
abolida, não realizada, com a superação do capitalismo. A concepção de Marx acerca da
especificidade histórica do trabalho no capitalismo requer uma reinterpretação fundamental de
sua compreensão das relações sociais que caracterizam esta sociedade. Estas relações são,
segundo Marx, constituídas pelo próprio trabalho e, consequentemente, têm um caráter peculiar,
quase-objetivo; e não podem ser completamente apreendidas em termos de relações de classe.
No que diz respeito às relações sociais fundamentais do capitalismo, as diferenças entre a
interpretação "categorial" e aquelas "centradas em classes" são consideráveis. A primeira referese a uma crítica do trabalho no capitalismo; a segunda, uma crítica do capitalismo do ponto de
vista do trabalho. Essas interpretações embutem concepções bastante diferentes acerca do
modo de dominação determinante no capitalismo e, por conseguinte, quanto à natureza de sua
superação. As consequências dessas diferenças tornar-se-ão mais claras à medida que analiso
mais de perto a discussão de Marx sobre como o caráter específico do trabalho no capitalismo
constitui suas relações sociais básicas e como ele é imanente, tanto à especificidade do valor,
enquanto uma forma de riqueza, quanto a natureza do modo industrial de produzir. O caráter
específico do trabalho - dando um pequeno salto adiante neste momento - também constitui a
base para uma forma de dominação social historicamente específica, abstrata e impessoal.
Na análise de Marx, a dominação social no capitalismo, em seu nível mais fundamental, não
consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação de pessoas por
estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas. Marx procurou desvendar esta
forma de dominação abstrata, estrutural - que envolve e se estende para além da dominação de
classe - com suas categorias, a mercadoria e o capital. Esta dominação abstrata não somente
determina a finalidade da produção no capitalismo, segundo Marx, como também sua forma
material. Dentro do contexto do quadro de análise de Marx, a forma de dominação social que
caracteriza o capitalismo não é, em última instância, uma decorrência da propriedade privada, da
propriedade dos meios de produção e da apropriação do produto excedente pelos capitalistas. Ao
contrário, [a dominação] está fundamentada na forma valor da própria riqueza, uma forma de
riqueza social que contrapõe o trabalho vivo (os trabalhadores) a uma força estruturalmente
alheia e dominante. (37) Tentarei mostrar como, para Marx, esta oposição entre a riqueza social
e as pessoas está baseada no caráter específico do trabalho na sociedade capitalista.
De acordo com Marx, o processo pelo qual o trabalho no capitalismo molda estruturas sociais
abstratas que dominam as pessoas é o mesmo que impulsiona um rápido desenvolvimento
histórico nas forças produtivas e no conhecimento da humanidade. Todavia, isso assim ocorre
mediante a fragmentação do trabalho social - isto é, às expensas da limitação e da redução da
importância do indivíduo em particular. (38) Marx argumenta que a produção baseada no valor
cria enormes possibilidades de riqueza, mas somente "estabelecendo ...a totalidade do tempo de
um indivíduo enquanto tempo de trabalho, [o que resulta em] sua degradação, por conseguinte, à
condição de mero trabalhador." (39) Sob o capitalismo a capacidade e o conhecimento da
humanidade são acrescidos enormemente, mas de uma forma alienada que oprime as pessoas e
tende a destruir a natureza. (40)
Desse modo, uma marca central do capitalismo é que as pessoas realmente não controlam sua
própria atividade produtiva ou o que elas produzem, mas são, em última instância, dominadas
pelos resultados desta atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma contradição
entre indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura abstrata. A análise de Marx sobre
esta forma de dominação é uma tentativa de fundamentar e explicar o que ele tratou como sendo
alienação em seus primeiros escritos. Sem entrar numa discussão extensiva da relação entre os
escritos iniciais de Marx e sua análise crítica mais recente, tentarei mostrar que não foram
abandonados os temas centrais contidos nos trabalhos iniciais, mas sim que alguns - por
exemplo, a alienação - permanecem centrais em sua teoria. Na verdade, somente nos trabalhos
mais recentes é que Marx fundamenta rigorosamente a posição que ele apresenta nos Economic
and Philosophic Manuscripts of 1844 especialmente, que a propriedade privada não é a causa
social, mas a consequência do trabalho alienado e que, portanto, a superação do capitalismo não
deveria ser concebida somente em termos da abolição da propriedade privada, mas deve
acarretar a superação de tal trabalho. (41) Ele fundamenta esta posição em suas últimas
contribuições com a análise do caráter específico do trabalho no capitalismo. Todavia, esta
análise também exige uma modificação na sua noção inicial da alienação. A teoria da alienação
implícita na teoria crítica madura de Marx não se refere à alienação daquilo que previamente
existia como propriedade dos trabalhadores (e que, portanto, deveria ser exigida por eles). Ao
contrário, refere-se ao processo de constituição histórica de capacidades e de conhecimentos
sociais que não pode ser compreendido com referência às imediatas habilidades e destrezas do
proletariado. Com sua categoria o capital, Marx analisou como essas capacidades e
conhecimento sociais são moldadas em formas objetivadas que se tornam quase independentes
e exercem um tipo de dominação social abstrata sobre os indivíduos que as constituem.
Esse processo de dominação estrutural autogerado não pode ser plenamente apreendido em
termos de exploração e dominação de classe, nem pode ser entendido em termos estáticos, não
tendenciais e "sincrônicos". A forma fundamental de dominação social caracterizante da
sociedade moderna, aquela que Marx analisou em termos do valor e do capital, é a forma que
gera uma dinâmica histórica para além do controle dos indivíduos que a constituem. Um impulso
central dado por Marx com a análise da especificidade do trabalho na sociedade capitalista foi
explicar essa dinâmica histórica: não simplesmente como uma teoria da exploração ou do
funcionamento da economia, limitadamente entendidas. A teoria crítica do capital em Marx é uma
teoria da natureza da história da sociedade moderna. Ela trata a história como sendo socialmente
constituída e, além disso, possuindo uma lógica de desenvolvimento quase autônoma.
Esta discussão preliminar implica numa compreensão da superação da alienação muito diferente
daquela colocada pelo marxismo tradicional. Ela sugere que Marx considerou o modo industrial
de produção desenvolvido sob o capitalismo, e a dinâmica histórica intrínseca desta sociedade,
como características da formação social capitalista. A negação histórica desta formação social
acarretaria, então, a abolição tanto do sistema historicamente dinâmico de dominação abstrata,
quanto do modo capitalista industrial de produção. Na mesma linha, a teoria da alienação
desenvolvida por Marx traz implícito que ele percebia a negação do núcleo estrutural do
capitalismo como possibilidade para a apropriação pelo povo das competências e conhecimento
que haviam sido constituídos historicamente de forma alienada. Tal apropriação acarretaria a
transcendência material do primeiro fosso constituído entre o indivíduo limitado e empobrecido e
o conhecimento produtivo geral alienado da sociedade, mediante a incorporação deste àquele.
Isso permitiria ao "mero trabalhador" (42) tornar-se um "indivíduo social" (43) - um indivíduo que
incorpora o conhecimento e a potencialidade do homem, desenvolvidos historicamente de uma
forma alienada.
O conceito de indivíduo social expressa a idéia de Marx de que a superação do capitalismo
acarreta a superação da oposição entre indivíduo e sociedade. De acordo com sua análise, tanto
o indivíduo burguês como a sociedade entendida como um todo abstrato confrontando os
indivíduos, foram constituídos à medida que o capitalismo substituiu formas anteriores de vida
social. Para Marx, entretanto, a superação desta oposição não acarretaria nem a subsunção do
indivíduo à sociedade, nem sua individualidade não mediada. A crítica marxiana da relação entre
o indivíduo e a sociedade no capitalismo não está, conforme tem sido comumente afirmada,
limitada à crítica do indivíduo burguês isolado e fragmentado. Da mesma forma que Marx não
critica o capitalismo do ponto de vista da produção industrial, ele não avaliou positivamente a
coletividade, na qual todas as pessoas participam, como o ponto inicial da crítica ao indivíduo
atomizado. Além de relacionar a constituição histórica do indivíduo monádico* à esfera da
circulação de mercadorias, Marx também analisa o mega-aparato, no qual as pessoas são meros
dentes de engrenagens, como característico da esfera da produção dominada pelo capital. (44)
Tal coletividade, de forma alguma, representa a superação do capitalismo. A oposição entre o
indivíduo atomizado e a coletividade (com uma espécie de "super sujeito"), portanto, não
representa a oposição entre o modo de vida social no capitalismo e o modo de vida numa
sociedade pós-capitalista. Ao contrário, é a oposição de duas conceituações unilaterais da
relação entre indivíduo e sociedade que juntas constituem uma outra antinomia da formação
social capitalista.
Para Marx, o indivíduo social representa a superação desta contradição. Esta noção não se
refere simplesmente a uma pessoa que trabalha comunitária e altruisticamente com outras
pessoas; na verdade, expressa a possibilidade de que cada pessoa exista como um ser humano
completo e amplamente desenvolvido. Uma condição necessária para a realização desta
possibilidade é que o trabalho de cada pessoa seja plena e efetivamente autoconstituído, de tal
maneira que corresponda à riqueza geral, à diversidade, à competência e ao conhecimento da
sociedade como um todo. O trabalho individual não mais seria a base fragmentada para a
riqueza da sociedade. A superação da alienação acarreta, então, não retomar a posse de uma
essência que existira anteriormente, mas a apropriação do que fora constituído de forma
alienada.
Desse modo, a discussão até aqui apresentada, revela que Marx viu o próprio trabalho proletário
como uma expressão materializada do trabalho alienado. Tal posição sugere que, na melhor das
hipóteses, seria ideológico afirmar que a emancipação do trabalho estaria realizada logo que a
propriedade privada fosse abolida e as pessoas tivessem uma atitude coletiva, socialmente
responsável com relação ao seu trabalho - com o trabalho concreto de cada um permanecendo o
mesmo que era sob o capitalismo. Ao contrário, a emancipação do trabalho pressupõe uma nova
estrutura de trabalho social. Dentro do sistema analítico de Marx, o trabalho pode ser constitutivo
do indivíduo social somente quando o potencial das forças produtivas for usado de tal forma que
revolucione completamente a organização do próprio processo de trabalho. As pessoas deverão
ser capazes de controlar e administrar o processo de trabalho direto no qual haviam
anteriormente trabalhado como uma peça do conjunto. O controle do "processo da natureza,
transformado em um processo industrial" (45) deve estar disponível não somente para a
sociedade como um todo, mas para todos os seus membros. Uma condição material necessária
para o pleno desenvolvimento de todos os indivíduos é que "o tipo de trabalho no qual um ser
humano faz aquilo que uma coisa pode fazer tenha cessado." (46)
A noção de Marx da apropriação pela "massa de trabaIhadores ...de seu próprio trabalho
excedente," (47) acarreta, então, um processo de auto-abolição enquanto um processo de
autotransformação material. Longe de significar a realização do proletariado, a superação do
capitalismo envolve a abolição material do trabalho proletário. A emancipação do trabalho requer
a emancipação com relação ao trabalho (alienado).
No decorrer de nossas investigações, observaremos que o capitalismo, na análise de Marx, é
uma formação social na qual a produção social é um fim em si mesmo, enquanto o indivíduo, por
sua vez, trabalha a fim de consumir. Minha discussão até aqui implica que Marx visualizou a
substituição do capitalismo por uma formação social na qual a produção social se destine ao
consumo e que o trabalho do indivíduo seja suficientemente satisfatório e que atenda suas
próprias necessidades. (48)
A CONTRADIÇÃO DO CAPITALISMO
A sociedade socialista, de acordo com Marx, não emerge como o resultado de um
desenvolvimento histórico evolucionário, linear. A transformação radical do processo de produção
esboçado anteriormente não é uma consequência automática do rápido crescimento do
conhecimento científico e tecnológico ou de sua aplicação. Ao contrário, é uma possibilidade que
decorre de uma crescente e intrínseca contradição social.
Qual é a natureza dessa contradição? É claro que, para Marx, a possibilidade uma nova estrutura
emancipatória do trabalho social surge no decorrer do desenvolvimento capitalista, mas que sua
realização geral é impossível sob o capitalismo:
"O capital em si mesmo é a contradição em processo [na] qual age no sentido de reduzir o tempo
de trabalho a um mínimo, enquanto, por outro lado, requer o trabalho como fonte e o tempo de
trabalho como única medida de riqueza. Por conseguinte, diminui o tempo de trabalho
relacionado a sua parte necessária de modo a aumentar aquela parte na forma supérflua.
Portanto, requer o supérfluo, em medida crescente, como uma condição - uma questão de vida
ou morte - para o necessário." (49)
Mais adiante considerarei detalhadamente a questão do tempo de trabalho "necessário" e
"supérfluo". Aqui é suficiente observar que, segundo Marx, embora o capitalismo tenda a
desenvolver poderosas forças produtivas, cujo potencial, de forma crescente, torna obsoleta uma
organização da produção baseada no dispêndio de tempo de trabalho direto, não possibilita a
realização completa destas forças. A única forma de riqueza constituída pelo capital é aquela
baseada no dispêndio de tempo de trabalho direto. Por conseguinte, o valor, apesar de sua
crescente inadequação como uma medida da riqueza material produzida, não é naturalmente
substituído por uma nova forma de riqueza. Para Marx, em vez disso, permanece como a précondição estrutural necessária da sociedade capitalista ( embora, como ele argumenta no Livro III
d' O Capital, esta não é a questão central). Assim, embora o capitalismo seja caracterizado por
uma dinâmica expansionista intrínseca, esta dinâmica permanece limitada ao capitalismo; não é
auto-superável. O que se toma "supérfluo" em um nível, permanece "necessário" no outro: em
outras palavras, o capitalismo prepara a possibilidade de sua própria negação, mas não a realiza,
evoluindo automaticamente para algo diferente. Como o dispêndio de tempo de trabalho humano
direto permanece central e indispensável, mesmo tendo se tornado anacrônico em virtude do
desenvolvimento do capitalismo, dá origem a uma tensão interna. Como elaborarei
posteriormente, Marx analisa a natureza da produção industrial e sua trajetória evolutiva,
tomando esta tensão por referência.
Esta importante dimensão da contradição fundamental do capitalismo, conforme entendida por
Marx, sugere que a mesma não deveria ser identificada imediatamente com as relações sociais
concretas de antagonismo ou conflito, tais como as relações de luta de classes. Uma contradição
fundamental é intrínseca aos elementos estruturantes da sociedade capitalista; ela transmite uma
dinâmica contraditória para o todo e prepara a possibilidade imanente de uma nova ordem social.
As passagens citadas indicam, além disso, que a concepção de Marx, com respeito à contradição
estrutural entre as forças e as relações de produção, não deveria ser interpretada da maneira
tradicional, na qual, "as relações de produção" são entendidas apenas em termos do modo de
distribuição, e as "forças de produção" identificadas com o modo industrial de produção, vistas
como um processo puramente técnico. Dentro de tal interpretação, os resultados da liberação
dessas "forças" de seus correlatos "grilhões", corresponderiam, presumivelmente, a uma
aceleração da dinâmica de produção, baseada na mesma forma concreta do processo de
produção e da mesma estrutura do trabalho. Todavia, as passagens dos Grundrisse discutidas
anteriormente sugerem que Marx trata o modo industrial de produção e a dinâmica histórica do
capitalismo como feições características da sociedade capitalista, e não como desenvolvimentos
históricos apontando para além das relações capitalistas, porém inibidos pelas mesmas. No que
lhe é mais essencial, a compreensão de Marx com relação à contradição do capitalismo não
parece referir-se essencialmente a uma contradição entre apropriação privada e produção
socializada, (50) porém a uma contradiçãono interior da própria esfera de produção, através da
qual, esta esfera inclui o processo imediato de produção e a estrutura de relações sociais
constituída pelo trabalho no capitalismo. Em sendo assim, no que se relaciona à estrutura do
trabalho social, a contradição marxiana deveria ser entendida como uma contradição crescente
entre o tipo de trabalho que as pessoas executam sob o capitalismo e o tipo de trabalho que
poderiam executar, caso o valor fosse abolido e o potencial produtivo desenvolvido sob o
capitalismo reflexivamente utilizado para libertar as pessoas da dominação das estruturas
alienadas constituídas por seu próprio trabalho.
No decorrer deste trabalho, mostrarei como Marx situa esta contradição na forma social
fundamental estruturante do capitalismo (isto é, a mercadoria), e elaborarei uma análise de como,
para Marx, a "liberação" das forças de produção dos "grilhões" das relações de produção requer
a abolição, tanto do valor, quanto do caráter específico do trabalho no capitalismo. Isto
acarretaria a negação da lógica histórica intrínseca, bem como a negação do modo industrial de
produção, ambos característicos da formação social capitalista.
Esta exposição preliminar da noção de alienação em Marx e da contradição do capitalismo
sugere que sua análise procura desvendar o curso do desenvolvimento capitalista como um
desenvolvimento que tem dois lados: um de enriquecimento e outro de empobrecimento. Isso
implica que este desenvolvimento não pode ser adequadamente apreendido de uma maneira
unidimensional, seja como o progresso do conhecimento e da felicidade, ou como o "progresso"
da dominação e da destruição. De acordo com sua análise, embora forneça a possibilidade
histórica de que a prática do trabalho social pudesse ser enriquecedora para todos, o trabalho
social,efetivamente, tornou-se empobrecedor para a maioria. O rápido crescimento do
conhecimento científico e tecnológico sob o capitalismo não significa, portanto, um progresso
linear na direção da emancipação. De acordo com a análise da mercadoria e do capital, feita por
Marx, tal elevação do conhecimento - por si, socialmente constituído tem levado à fragmentação
e ao esvaziamento do trabalho individual e ao crescente controle da humanidade pelos
resultados de sua atividade materializada. Ao mesmo tempo, também, aumentou a possibilidade
de que o trabalho pudesse ser enriquecedor, individualmente, e que a humanidade pudesse
exercer maior controle sobre o seu próprio destino. Este desenvolvimento ambivalente está
enraizado na estrutura alienada da sociedade capitalista e pode ser superado. A análise dialética
de Marx, portanto, não deveria ser, de maneira alguma, identificada com a fé positivista no
progresso científico linear e no progresso social, ou em sua relação recíproca. (51)
Assim, a análise de Marx implica numa idéia de superação do capitalismo que não acarreta, nem
a afirmação sem crítica de que a produção industrial seja condição de progresso humano, nem a
rejeição romântica do progresso tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do sistema de
produção desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio sistema, a
análise de Marx supera a oposição entre essas instâncias e mostra que cada uma significa um
momento de um desenvolvimento histórico muito mais complexo para se constituir a totalidade.
Isto é, a abordagem de Marx abrange a oposição entre a fé no progresso linear e sua rejeição
romântica, como expressando uma antinomia histórica que, em ambos os termos, é característica
da época capitalista. (52) Mais abrangentemente, sua teoria crítica não defende nem a simples
conservação, nem a destruição daquilo que foi historicamente constituído no capitalismo. Ao
contrário, sua teoria mostra a possibilidade de que, o que foi constituído de forma alienada, seja
apropriado e, em consequência disso, fundamentalmente transformado.
MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBJETIVIDADE E ANÁLISE HISTÓRICA
Esta interpretação da análise de Marx acerca do capitalismo e da natureza da sua contradição
fundamental restabelece a questão que permeia a relação entre classes sociais, movimentos
sociais e a possibilidade de superação do capitalismo. Ao se contrapor às análises nas quais o
modo industrial de produção é visto, fundamentalmente, em situação de tensão com o
capitalismo, a abordagem aqui apresentada rejeita a idéia de que o proletariado representa uma
contraposição social ao capitalismo. De acordo com Marx, as manifestações da luta de classes,
entre os representantes do capital e os trabalhadores, em torno de questões relacionadas à
jornada de trabalho ou da relação entre salários e lucros, por exemplo, são estruturalmente
intrínsecas ao capitalismo, por conseguinte, um importante elemento constitutivo da dinâmica
deste sistema. (53) Apesar disso, sua análise do valor, necessariamente, assegura-nos que a
base do capital é, e continua sendo, o trabalho proletário. Este tipo de trabalho, por conseguinte,
não é a base da negação potencial da formação social capitalista. A contradição no capitalismo,
conforme apresentada nos Grundrisse, não é entre o trabalho proletário e o capitalismo, mas
entre o trabalho proletário - isto é, a estrutura de trabalho existente - e a possibilidade de um
outro modo de produção. A crítica aqui apresentada ao socialismo - este concebido como uma
maneira mais justa, humana e eficiente de administrar o modo industrial de produção que se
erigiu com o capitalismo - é também, pelo mesmo motivo, uma crítica à concepção de que o
proletariado é um Sujeito revolucionário, no sentido de ser um agente social que tanto constrói a
história, como se auto-realiza no socialismo.
Isto implica que não existe um continuum linear entre as lutas e concepções da classe
trabalhadora, se constituindo e se auto-afirmando historicamente, e as necessidades, lutas e
concepções que se apresentarem para além do capitalismo. Estas últimas - que deveriam incluir
a necessidade de uma atividade autorealizadora, por exemplo - não poderiam ficar limitadas à
esfera do consumo e às questões de justiça distributiva, mas deveriam questionar a natureza do
trabalho e a estrutura dos constrangimentos que caracterizam o capitalismo. Isto sugere que uma
teoria crítica ao capitalismo e a sua possível superação deve acarretar uma teoria da constituição
social de tais necessidades e das formas subjacentes de consciência - uma teoria que seja capaz
de se reportar às transformações qualitativas históricas ocorridas na subjetividade e de
compreender os movimentos sociais nestes termos. Tal abordagem poderia lançar nova luz
acerca da idéia de Marx sobre a auto-abolição do proletariado e poderia ser útil para analisar os
novos movimentos sociais das últimas duas décadas.
As categorias da teoria crítica em Marx, quando interpretadas como categorias das formas de
práticas estruturadas enquanto determinações tanto da "objetividade" social quanto da
"subjetividade" (ao invés de serem consideradas apenas como categorias da "objetividade"
social, e menos ainda, como categorias económicas ), podem fornecer a base para uma espécie
de teoria histórica da subjetividade. Em tal leitura, a análise do caráter dinâmico do capitalismo é
também, possivelmente, uma análise das transformações históricas da subjetividade. Se, além
disso, as formas sociais que estruturam a sociedade capitalista podem ser mostradas como
contraditórias, torna-se possível tratar a consciência crítica e de contraposição como sendo
socialmente constituída.
Contudo, esta interpretação da contradição marxiana, como sendo tanto "objetiva" quanto
"subjetiva", não deveria ser adotada dando a entender que a consciência de contraposição
necessariamente emergirá, e muito menos, que a emancipação será automaticamente
alcançada. O interesse aqui revelado não está voltado para o nível teórico de probabilidade, por
exemplo, a probabilidade de que tal consciência venha a emergir. Ao contrário, estou
considerando o nível de possibilidade, significando a formulação mais fundamental de uma
abordagem do problema da constituição social da subjetividade, incluindo a possibilidade de uma
consciência crítica ou de contraposição. A idéia de contradição abre espaço para uma teoria que
estabeleça, socialmente, a possibilidade de tal consciência. Se a sociedade capitalista não é
concebida como sendo um todo homogêneo, e se suas formas sociais não são consideradas
"unidimensionais", pode-se analisar formas de consciência crítica e de contraposição como
possibilidades socialmente constituídas.
Uma tal teoria da constituição social da subjetividade (incluindo a subjetividade crítica com
relação a seu próprio contexto) está em oposição à noção, implicitamente funcionalista, de que
somente a consciência que afirma ou perpetua a ordem existente é socialmente formada. Opõese, também, à noção, dissimuladamente relacionada à primeira, de que a possibilidade de uma
consciência crítica, de contraposição ou revolucionária deve estar enraizada ontológica ou
transcendentalmente - ou, no mínimo, baseada em elementos da vida social que sejam,
aparentemente, não-capitalistas. A abordagem que esboçarei não nega a existência ou
importância de tendências pontuais, não-capitalistas, que podem introduzir alguma
heterogeneidade na ordem dominante e promover uma crítica localizada a esta ordem. Porém,
fornece a base para uma crítica àquelas tentativas teóricas que se concentram exclusivamente
em tais tendências, porque estas consideram o capitalismo como sendo um todo homogêneo.
Considerando que tais abordagens ao problema da resistência e da contraposição concebem a
sociedade capitalista como sendo apenas coisificada e deformada, e que tratam o pensamento
crítico e as práticas sociais como hisioricamente indeterminadas, a análise do capitalismo,
enquanto uma sociedade contraditória, procura mostrar que as possibilidades para uma crítica
localizada e para a pluralidade são geradas socialmente, do interior da estrutura do próprio
capitalismo. Tal análise aponta o fundamento para uma teoria histórica da subjetividade
(incluindo formas contrárias de subjetividade) que, em meu julgamento, é muito mais poderosa
que as tentativas teóricas que pressupõem um simples antagonismo entre a ordem social
existente e as formas críticas de subjetividade e de práticas. Esta abordagem permite ainda
investigar as várias concepções e práticas críticas em relação ao respectivo contexto histórico em termos da constituição de tais concepções e práticas, bem como de seus possíveis efeitos
históricos - e, através disso, permite considerar o papel que tais subjetividade e práticas de
contraposição teriam desempenhado em relação à possível determinada negação do capitalismo.
Em síntese, uma tal abordagem permite analisar a possibilidade de que a ordem existente possa
ser transformada.
Nesse sentido, olhar o capitalismo como contraditório, abre espaço para uma crítica social que
seja consistente autoreflexivamente e que compreenda a si mesma com referência a seu
contexto. Este enfoque dá condições para analisar a relação intrínseca, embora mediada, entre a
teoria crítica e a emergência de necessidades e formas de consciência oposicionista construídas
em nível popular e que neguem o capital. Uma tal teoria social da subjetividade reflexiva,
contrasta fortemente com aquelas críticas que não podem servir de base para a possibilidade de
emergir uma consciência fundamentalmente antagônica à ordem existente, ou o faz somente
com extremo objetivismo, enfatizando, implicitamente, uma posição privilegiada de pensadores
críticos cujo conhecimento, inexplicavelmente, tem escapado da desfiguração social. Tais
abordagens retroagem às antinomias do materialismo do Iluminismo, criticado por Marx nas
"Teses sobre Feuerbach", segundo a qual uma população é dividida nos muitos que são
socialmente reconhecidos e os poucos críticos que, por alguma razão, não o são. (54) Também
representam, implicitamente, um tipo de crítica social epistemologicamente inconsistente, que
não pode levar em conta a própria existência e deve apresentar-se sob a forma de uma postura
trágica ou de uma pedagogia de vanguarda.
ALGUMAS IMPLICAÇÕES NA ATUALIDADE
Gostaria de apresentar, brevemente, algumas das implicações mais profundas da interpretação
da teoria crítica de Marx, baseada nos Grundrisse, que comecei a esboçar. Ao enfocar o tipo de
trabalho historicamente específico do capitalismo, lança o fundamento para um conceito de
capital e para um entendimento da dinâmica da formação social capitalista, que não depende
essencialmente do modo de distribuição mediado pelo mercado - em outras palavras, a
interpretação permite uma análise do capitalismo que não está presa a suas formas encontradas
no Século XIX. Tal abordagem poderia fornecer as bases para analisar, enquanto capitalista, a
natureza e a dinâmica da sociedade moderna num período em que as instituições estatais e as
grandes organizações burocráticas tornaram-se agentes importantes, às vezes os principais
agentes, da regulação social e da distribuição. Poderia também servir como ponto de partida para
a compreensão das atuais transformações sociais e econômicas globais, enquanto
transformações do capitalismo.
Além disso, Marx, ao se concentrar na crítica à produção, cria condições para recuperar sua idéia
de socialismo como uma forma de vida social pós-capitalista. Tenho argumentado que a relação
histórica entre o socialismo e o capitalismo, para Marx, não é simplesmente uma questão das
pré-condições históricas para a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a
substituição do mercado pelo planejamento. Esta relação pode, também, ser concebida em
termos da crescente possibilidade de que o papel historicamente específico do trabalho no
capitalismo pudesse ser substituído por uma outra forma de mediação social. Tal possibilidade,
de acordo com Marx, está fundamentada numa crescente tensão entre valor e "riqueza real",
gerada pelo desenvolvimento capitalista. Esta tensão aponta para a possível abolição sistêmica
do valor e, por conseguinte, da dominação abstrata, bem como da necessidade abstrata de uma
forma particular de "crescimento", e do trabalho humano direto como um elemento interno à
produção. O fundamento material de uma sociedade sem classes, de acordo com a exposição de
Marx, nos Grundrisse, é uma forma de produção na qual o produto excedente não mais é criado
primordialmente pelo trabalho humano direto. De acordo com esta abordagem, a questão crucial
do socialismo não é se existe uma classe capitalista, mas se o proletariado continua existindo.
As teorias críticas do capitalismo que tratam somente da superação do modo de distribuição
burguês não podem captar plenamente esta dimensão do capitalismo e, o que é pior, podem
encobrir o fato de que a superação da sociedade de classes exige a superação do modo de
produzir. Assim, uma variante do marxismo tradicional tornou-se uma ideologia legitimadora
daquelas formas sociais - os países "socialistas realmente existentes" - nas quais o modo liberal
burguês de distribuição foi abolido, mas o modo de produzir determinado pelo capital não o foi, e
a abolição do primeiro serviu, ideologicamente, para acobertar a existência do segundo. (55)
A noção de Marx de uma sociedade pós-capitalista, então, deve ser distinguida dos modos de
acumulação de capital dirigidos pelo Estado. A interpretação esboçada anteriormente, com sua
ênfase na forma específica do trabalho que constitui o capital, é consoante com a análise
histórica do surgimento dos países "socialistas realmente existentes", no que diz respeito à interrelação entre o desenvolvimento do capitalismo industrial nos centros metropolitanos da
economia mundial e o crescente papel do Estado nas nações "periféricas". Poder-se-ia
argumentar que, para uma fase do desenvolvimento do capitalismo global, o Estado serviu para
efetivar o surgimento do capital total no espaço nacional. Nesta circunstância, a interferência
estatal junto à livre circulação de mercadorias, dinheiro e capital não implicou em socialismo. Ao
contrário, foi um dos poucos, se não o único meio, pelo qual uma "revolução do capital" pode ter
sucesso na periferia do contexto de um mercado mundial, onde a conexão histórica original entre
a revolução burguesa e a consolidação do capital nacional, nunca tinha existido. O resultado não
foi, e não poderia ter sido, uma sociedade pós-capitalista. A sociedade determinada pelo capital
não é simplesmente uma função do mercado e da propriedade privada; e não pode ser reduzida
sociologicamente à dominação da burguesia.
Claramente, considerar as organizações estatais da sociedade moderna, em termos do
desenvolvimento da formação social capitalista, ao invés de encará-las como uma negação do
capitalismo, traz à baila a discussão da questão da democracia pós-capitalista. A análise aqui
apresentada fundamenta um modo abstrato de coerções e restrições, historicamente específico
do capitalismo, a partir das formas sociais do valor e do capital. Como as relações sociais
expressas por estas categorias não são completamente identificáveis ao mercado e à
propriedade privada, segue que essas coerções e restrições poderiam continuar a existir na
ausência das relações burguesas de distribuição. Em sendo assim, a questão da democracia
pós-capitalista não pode ser adequadamente apresentada apenas em termos de uma oposição
entre concepções de políticas estatizantes e não estatizantes. Ao contrário, deve-se considerar
uma dimensão crítica adicional, qual seja, a natureza das restrições impostas às decisões
políticas pelas formas do valor e do capital. Isto significa dizer que, a abordagem que começarei
a desenvolver nesta obra sugere que a democracia pós-capitalista acarreta mais do que formas
políticas democráticas na ausência da propriedade privada dos meios de produção. Ela
requereria do mesmo modo a abolição de coerções sociais abstratas enraizadas nas formas
sociais apreendidas pelas categorias marxianas.
Uma tal reconstrução da teoria marxiana se apresenta mais frutífera hoje enquanto uma maneira
de analisar criticamente a sociedade moderna. Ela pretende ser tanto uma crítica ao marxismo
tradicional, quanto uma tentativa de lançar fundamentos para uma teoria social crítica capaz de
responder às análises pessimistas de alguns grandes pensadores sociais, como Georg Simmel,
Émile Durkheim e Max Weber, cada um dos quais identificou e analisou elementos dos aspectos
negativos do desenvolvimento da sociedade moderna. (Por exemplo, o exame de Simmel do
crescente hiato entre a riqueza da "cultura objetiva" e o relativo estreitamento do indivíduo, da
"cultura subjetiva"; a investigação de Durkheim sobre o crescimento da anomia com a
substituição da solidariedade mecânica pela orgânica; e a análise de Weber sobre a
racionalização de todas as esferas da vida social.) Ao escreverem durante a transição de uma
forma de capitalismo mais liberal para uma forma mais organizada, cada um deles, preservando
o próprio caminho, asseverou que a teoria crítica do capitalismo - entendida como uma crítica da
propriedade privada e do mercado - não pode adequadamente apreender as características
essenciais da sociedade moderna; e cada um reconheceu que aspectos centralmente
importantes da vida social industrial moderna são deixados intactos, quando somente o modo de
distribuição e as relações de poder de classe são transformados. Para estes pensadores, a
substituição do capitalismo pelo socialismo, como visualizado pelo marxismo tradicional,
significava uma transformação não fundamental da formação social, se não uma amplificação de
seus aspectos negativos.
A reinterpretação da teoria crítica de Marx que apresento aqui é uma tentativa de enfrentar o
desafio posto por diversos críticos da sociedade moderna, mediante o desenvolvimento de uma
teoria crítica do capitalismo, mais ampla e profunda, uma crítica capaz de incorporar suas
críticas. Uma abordagem com esta pretensão, ao invés de considerar vários processos - tais
como o crescimento do hiato entre a cultura "objetiva" e a "subjetiva", ou a crescente razão
instrumental da vida moderna - como resultados necessários e irreversíveis de um
desenvolvimento predestinado, deverá permitir fundamentar socialmente tais processos com
referência a formas de prática social historicamente determinadas e captar sua trajetória
progressiva como sendo não-linear e transformável. Esta reinterpretação de Marx também
acarreta, conforme já observado, uma teoria sócio-histórica da subjetividade, com base na qual
se poderia desenvolver uma poderosa abordagem para a problemática weberiana da
modernidade e da racionalização. Ainda que confira importância às formas de pensar que foram
cruciais para o desenvolvimento do capitalismo e aos recorrentes processos de diferenciação e
de racionalização, a abordagem aqui apresentada pode dirigir-se a este pensamento e àqueles
processos, em termos das formas de vida social expressas pelas categorias marxianas.
Finalmente, veremos também que a teoria de Marx sobre a constituição das estruturas sociais e
da dinâmica histórica da sociedade moderna, mediante formas de práticas historicamente
determinadas, pode ser interpretada como uma teoria sofisticada do tipo recentemente proposto
por Pierre Bourdieu - isto é, como uma teoria da relação, mutuamente constituinte, entre a
estrutura social e as formas quotidianas de prática e de pensamento. (56) Uma teoria desta
natureza seria capaz de superar a antinomia atualmente muito difundida, entre o funcionalismo e
o individualismo metodológico, nenhum destes sendo capaz de relacionar intrinsecamente as
dimensões objetiva e subjetiva da vida social.
Mais importante ainda: uma teoria acerca do caráter socialmente constituído das estruturas e dos
processos históricos do capitalismo é também uma teoria da sua possível superação. Esta
superação pode ser concebida em termos da dialética invertida esboçada acima, enquanto
apropriação subjetiva da cultura objetiva, e a transformação desta, possibilitada pela superação
da estrutura de coerção social abstrata enraizada, em última instância, no trabalho alienado. A
diferença entre capitalismo, assim definido, e sua possível negação histórica pode, então,
justificadamente ser tratada como a diferença entre uma dada formação social e outra distinta.
NOTAS
(1) Patrick Murray e Derek Sayer desenvolveram, recentemente, reinterpretações da teoria de
Marx que, em muitos aspectos, se assemelham a esta aqui apresentada. Ver Patrick Murray,
Marx’s Theory of Scientific Knowledge (Atlantic Highlands, N. J., 1988); e Derek Sayer Marx's
Method (Atlantic Highlands, N.J., 1979) e The Violence of Abstraction (Oxford, 1987).
(2) S. N. Eisenstadt também formulou urna teoria não-evolucionária da visão de modernidade.
Sua preocupação principal é com as diferenças entre os vários tipos de sociedades modernas,
enquanto a minha está voltada para a modernidade em si, como uma forma de vida social. Ver,
por exemplo, S. N. Eisenstadt, "The Structuring of Social Protest in Modern Societies: The Limits
and Direction of Convergence", Yearbook of The World Society Foundation, vol. 2 (London,
1992).
(3) Anthony Giddens chamou a atenção para a idéia de especificidade da sociedade capitalista
que está implícita no tratamento dado por Marx às sociedades não-capitalistas nos Grundrisse:
ver Anthony Giddens, A Contemporary Critique of Historical Materialism (London and
Basingstoke, 1981), pp.76-89. Pretendo fundamentar essa idéia com a análise categorial de
Marx, por conseguinte, com sua concepção da especificidade do trabalho no capitalismo, a fim de
reafirmar sua compreensão do capitalismo e repensar a verdadeira natureza de sua teoria crítica.
(4) Ver Paul Sweezy, The Theory of Capitalist Development (New York, 1969), pp. 52-53; Maurice
Dobb, Political Economy and Capitalism (London, 1940), pp. 70-71; Ronald Meek, Studies in the
Labour Theory of Value (2d. ed., New York, 1956), p. 155.
(5) Um ponto similar poderia ser suscitado, considerando a relação entre socialismo e superação
da dominação de gênero, quando estabelecida no contexto do planejamento econômico e da
propriedade estatal dos meios de produção.
(6) Ver Stanley Aronowitz, The Crisis in Historical Materialism (New York, 1981).
(7) Para conhecer tentativas de delinear e teorizar esta mais nova fase do capitalismo, ver David
Harvey, The Condition of Postmodernity (Oxford and Cambridge, Mass., 1989); Scott Lash and
John Urry, The End of Organized Capitalism (Madison, Wisc., 1987); Claus Offe, Disorganized
Capitalism, ed. John Keane (Cambridge, Mass., 1985); Michael J. Piore and Charles F. Sabel,
The Second Industrial Divide (New York, 1984); Emest MandeI, Late Capitalism, trans. Joris De
Bres (London, 1975). Joachim Hirsch and Roland Roth, Das Neue Gesicht des kapitalismus
(Hamburg, 1986).
(8) A relação histórica entre os dois indica implicitamente que o "socialismo realmente existente",
bem como os sistemas de bem-estar no Ocidente, deveriam ser concebidos não como formações
sociais fundamentalmente diferentes, porém significando importantes variantes da forma geral do
estado intervencionista do capitalismo mundial do Século XX. Longe de demonstrar a vitória do
capitalismo sobre o socialismo, o recente colapso do "socialismo realmente existente" poderia ser
entendido como significando o colapso da forma mais rígida, mais vulnerável e mais opressiva de
capitalismo intervencionista de Estado.
(9) Iring Fetscher também criticou alguns dos dogmas centrais das noções de socialismo
pressupostas pelas mais tradicionais críticas ao capitalismo. Ele reivindica uma crítica
democrática renovada ao capitalismo, bem como ao "socialismo realmente existente", que seria
uma crítica com relação ao crescimento desordenado e às técnicas contemporâneas de
produção: ao mesmo tempo, preocupada com as condições sociais e políticas que garantam uma
heterogeneidade genuína, individual e cultural e sensível à questão de uma relação
ecologicamente sadia entre os homens e a natureza. Ver lring Fetscher, "The Changing Goals of
Socialism in the Twentieth Century", Social Research 47 (Spring 1980). Para uma versão antiga
desta posição, ver Fetscher, Karl Marx und der Marxismus (Munich, 1967).
(10) Para análises mais elaboradas acerca desta posição, ver, por exemplo, Georg Lukács,
History and Class Consciousness, tradução de Rodney Livingstone (London, 1971); Marx
Horkheimer, "Traditional and Critical Theory", in Max Horkheimer, Critical Theory, Matthew J.
O’Connel et al. (New York, 1972) [esta tradução não é adequada]; Herbert Marcuse, "Philosophy
and Critical Theory", in Stphen Bronner and Douglas Kellner, eds., Critical Theory and Society
(New York and London, 1989); Theodor Adorno, Negative Dialetics tradução de E. B. Ashton
(New York, 1973); Alfred Schmidt, "Zum Erkenntnisbegriff der Kritik der politischen bkeonomie", in
Walter Euchner and Alfred Schmidt, eds. Kritik der politischen Okonomie heute: 100 JahreKapital
(Frankfurt, 1968).
(11) A fim de evitar mal-entendidos que poderiam ser estimulados a partir do termo "categorial",
utilizo "categorial" para me referir à tentativa de Marx de compreender as formas da moderna vida
social por meio de categorias utilizadas na sua crítica madura.
(12) Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy, tradução de Martin
Nicolaus (London, 1973), p. 106 (tradução revisada).
(13) Jon Elster, Making Sense of Marx (Cambridge, 1985), p. 127.
(14) Ver Jürgens Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. I: Reason and
Rationalization of Sociely, tradução de Thomas McCarthy (Boston, 1984) e vol. 2: Lifeworld and
System: A Critique of Functionalist Reason, trad. de T. McCarthy (Boston, 1987).
(15) Alguns dos argumentos apresentados nesta seção foram inicialmente desenvolvidos em
Moishe Postone, "Necessity, Labor and Time", Social Research 45 (Winter 1978).
(16) A possível importância contemporânea dos Grundrisse foi também reconhecida por Herbert
Marcuse em "One-Dimensional Man" (Boston, 1964) e mais recentemente por André Gorz em
Paths to Paradise:On the Liberation from Work (Boston, 1964), tradução de Malcolm Imrie
(Boston, 1985). Para uma análise rica e extensiva dos Grundrisse e de sua relação com O
Capital, ver Roman Rosdolsky, The Making of Marx's "Capital", tradução de Pete Burgess
(London, 1977).
(17) Poder-se-ia levantar um argumento similar com respeito às teorias que colocam a linguagem
no centro de suas análises da vida social.
(18) John Stuart Mill, Principles of Political Economy (2d. ed., London, 1849), vol. I, pp. 239-40
(citado em Marx, Grundrisse, p. 832).
(19) Grundrisse, p. 832.
(20) Ibid.
(21) Ibid.
(22) Por questão de simplicidade, referir-me-ei às "relações de produção sub specie distributionis"
como as "relações de distribuição".
(23) Como discutirei posteriormente, a distinção entre as relações de produção e as relações de
distribuição é importante para entender a relação entre as categorias do Livro I d’ O Capital, tais
como valor, mais-valia, processo de valorização e acumulação, e aquelas categorias do Livro III,
tais como, preço, lucro e renda. As primeiras categorias pretendem expressar as relações sociais
subjacentes ao capitalismo, suas "relações de produção" fundamentais; as últimas categorias, de
acordo com Marx, são categorias de distribuição.
(24) Grundrisse, p. 712.
(25) Ibid., pp. 832-33.
(26) Ibid., p. 704 (o primeiro grifo em itálico foi acrescido).
(27) Ibid.
(28) Ibid., p. 704 (itálicos acrescidos).
(29) Ibid. pp. 704-5.
(30) Jon Elster fornece um exemplo de tal argumentação. Ele argumenta contra a teoria do valor
e da mais-valia de Marx, negando "que os trabalhadores tenham uma misteriosa capacidade de
criar ex nihilo" [do nada, explicação do tradutor]; assegura, em vez disso, que "a capacidade do
homem de extrair o sustento do meio ambiente torna possível a obtenção de um excedente
acima de qualquer nível de consumo" (Making Sense of Marx, p.141). Ao se referir à questão da
criação de riqueza de maneira transhistórica, o argumento de Elster, implicitamente, toma o valor
como um categoria transhistórica e, através disso, confunde valor e riqueza.
(31) Grundrisse, p. 705 (a segunda ênfase foi adicionada pelo autor).
(32) Ibid.
(33) Marx, Results of the Immediate Process of Production. tradução de Rodney Livingstone, in
Marx. Capital, vol. I, tradução de Ben Fowkes (London, 1976), p. 1024 (V. também pp. 1034-35).
(34) Grundrisse, p. 708.
(35) Marx. A Contribution to the Critique of Political Economy, tradução de S. W. Ryazanskaya
(Moscow, 1970), pp. 21-22.
(36) Grundrisse. 9. 705.
(37) Ibid., p. 831.
(38) O Capital, vol. 1, pp. 458, 469, 481-82.486.547.
(39) Grundrisse, p. 708.
(40) O Capital. vol. I, pp. 376 e 638.
(41) Marx, Economic and Philosophic M.anuscripts of 1844, in Karl Marx and Frederick Engels,
Collected Works, vol. 3: Marx and Engels: 1843-44 (New York. 1975). p. 279 ss. Uma discussão
mais completa da relação entre os manuscritos iniciais de Marx e seus trabalhos posteriores
mostraria que muitos outros temas dos primeiros escritos (por exemplo, as relações entre as
pessoas e a natureza, mulheres e homens, trabalho e lazer) permanecem implicitamente centrais
nos mais recentes, ainda que tenham sido reformulados por sua análise do caráter
historicamente específico do trabalho no capitalismo.
(42) Grundrisse. p. 708.
(43) Ibid., p. 705.
* O termo monádico refere-se a mônadas que, segundo o sistema filosófico desenvolvido por
Gottfiried Wilhelm Leibiniz (1646-1716), matemático e filosófo alemão, seriam centros
conscientes de força espiritual ou energia, dos quais se compõe o universo. Cada mônada,
portanto, representa um microcosmo individual refletindo o universo com graus variados de
perfeição e se desenvolvendo independentemente de todos os outros mônadas. (Microsoft
Encarta 99 Encyclopedia, CD-Rom, nota do tradutor).
(44) O Capital, vol. 1, pp. 477,547,614.
(45) Grundrisse, p. 705.
(46) Ibid., p. 325.
(47) Ibid., p. 708.
(48) Como discutirei no Capítulo 9, é importante distinguir duas formas de necessidade e de
liberdade na análise de Marx sobre o trabalho social. Que ele pensou o trabalho social em uma
sociedade futura, estruturado de forma a ser satisfatório e gratificante, não significa, conforme
vimos, que, para Marx, tal trabalho transformar-se-ia em brincadeira. A noção de trabalho não
alienado para Marx é que o mesmo está livre de relações de dominação social diretas e
abstratas. Por conseguinte, o trabalho torna-se uma atividade para a auto-realização, mais
parecida com lazer. Todavia, esta insubmissão com relação à dominação não implica a liberdade
com relação a todas as coerções, uma vez que qualquer sociedade humana requer, de alguma
maneira, trabalho a fim de sobreviver. Que o trabalho nunca poderá ser uma esfera de liberdade
absoluta, não significa dizer, contudo, que o trabalho não alienado seja não-livre da mesma
maneira e na mesma medida que o trabalho compungido pelas formas de dominação social. Em
outras palavras, Marx, ao negar que a liberdade absoluta pudesse existir no mundo do trabalho,
não está retrocedendo à oposição indiscriminada do trabalho com relação à liberdade e à
felicidade, como sugere Adam Smith. (Ver Grundrisse, pp. 611-12.)
É evidente que nem todo trabalho unilateral e fragmentado poderá ser abolido de imediato com a
superação do capitalismo. Além do mais, é concebível que alguns desses trabalhos nunca
poderão ser abolidos totalmente (embora o tempo a eles dedicado possa vir a ser drasticamente
reduzido, e tais tarefas realizadas de forma alternada pela população). Todavia, a fim de enfatizar
o que considero a principal instigação da análise do trabalho no capitalismo feita por Marx, e sua
concepção de trabalho relacionada a uma futura sociedade, não levarei em conta tais questões
neste trabalho. (Para uma breve discussão de tais questões, V. Gorz, Paths to Paradise, p. 47
ss.)
(49) Grundrisse, p.706.
(50) O argumento de que a contradição básica do capitalismo, para Marx, é estrutural e não se
refere simplesmente ao antagonismo social foi elaborado também por Anthony Giddens. No
entanto, este situa a contradição em termos da relação entre a apropriação privada e a produção
socializada, isto é, entre as relações burguesas de distribuição e a produção industrial: ver
Anthony Giddens, Central problems in Social Theory (Berkeley and Los Angeles, 1979), pp. 13541. Minha leitura dos Grundrisse fundamenta uma interpretação bastante distinta.
(51) Nos Capítulos 4 e 5, elaborarei mais extensivamente sobre esta posição, como ela tem sido
proposta por Jürgen Habermas em Knowledge and Human Interests, tradução de Jeremy Shapiro
(Boston 1971) e por Albrecht Wellmer em Critical Theory of Society, tradução de John Cumming
(New York, 1974).
(52) O Capital, vol. I, pp. 568-69, 798 ss.
(53) Ibid., p. 344.
(54) Marx, "Theses on Feuerbach", in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 5:
Marx and Engels: 1845-47 (New York, 1976), pp.5-8.
(55) Nesta obra, não procurarei as implicações da minha reconsideração da concepção de Marx
acerca dos parâmetros básicos do capitalismo com respeito à questão dos estágios ou formas da
sociedade pós-capitalista (por exemplo, "socialismo" e "comunismo"). No entanto, devo chamar a
atenção de que os termos da questão se modificam quando as formas de dominação social e
exploração, elementos centrais e característicos do capitalismo, não mais estão localizadas na
propriedade privada dos meios de produção, mas, em vez disso, nas estruturas das relações
sociais expressas pelas categorias mercadoria e capital; bem como, quando o processo de
alienação é entendido como uma forma estabelecida histórica e socialmente, em vez de ser
entendido como entranhado numa essência humana pré-concebida. Para uma abordagem
diferente desta questão, ver Stanley Moore, Marx and the Choice between Socialism and
Comunism (Cambridge, Mass., and London, 1980). Moore identifica a exploração com a
propriedade privada capitalista e, sobre esta base defende a superioridade de uma sociedade
onde existe a troca, mas sem a propriedade privada dos meios de produção (sua definição de
"socialismo") e uma sociedade sem nenhuma das duas (o "comunismo"); ver pp. viii-ix, 34-35 e
82. A intenção de Moore é argumentar contra a visão de que o socialismo, assim definido, é
meramente uma forma incompleta de sociedade pós-capitalista, um prelúdio para o
«comunismo". Ao fazer isso, procura enfraquecer uma justificativa ideológica para a repressão
política, social e cultural nas sociedades "socialistas realmente existentes" (p. x). Neste sentido,
há um paralelo em termos de intenção estratégica, entre a abordagem de Moore e a
interpretação bastante diferente de Marx aqui apresentada para a qual tais sociedades não
deveriam ser consideradas, de forma alguma, como pós-capitalistas.
(56) Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice, tradução de Richard Nice (Cambridge,
1977), pp. 1-30, 87-95.
MoishePostone é professor da Universidade de Chicago
(http://history.uchicago.edu/faculty/postone.html) e autor do livro "Time, Labor and Social
Domination. A Reinterpretation of Marx's Critical Theory",(Cambridge University Press, 1993, 424
pages, ISBN 0-521-39157-1), publicado nos Estados Unidos da América, e de que o texto acima
constitui o Capítulo I.
Time, Labor and Social Domination Chapter Contents
Part I. A Critique of Traditional Marxism: 1. Rethinking Marx’s critique of capitalism; 2.
Presuppositions of traditional Marxism; 3. The limits of traditional Marxism and the pessimistic turn
of Critical Theory;
Part II. Toward a Reconstruction of the Marxian Critique: The Commodity 4. Abstract labor; 5.
Abstract time; 6. Habermas’s critique of Marx;
Part III. Toward a Reconstruction of the Marxian Critique: capital; 7. Toward a theory of capital; 8.
The dialectic of labor and time; 9. The trajectory of production; 10. Concluding considerations.
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