MORFOLOGIA NO ESTUDO E NO ENSINO DE PORTUGUÊS Horácio França Rolim de Freitas (UERJ) Nos estudos de Morfologia, dois objetivos norteiam o professor e o especialista: primeiro, a atualização dos fatos gramaticais que permitirá um novo enfoque interpretativo, desenvolvido sob um ponto de vista epistemológico; segundo, a possibilidade de simplificação, visando à economia da língua e ao aprendizado do estudante. Em face destes objetivos, duas exigências se impõem: a constância na pesquisa e o uso adequado dos termos técnicos empregados na descrição dos fatos de língua. É o que nos cumpre fazer, inicialmente, caracterizando o termo morfologia. Destacamos três especialistas para conceituálo. Segundo E. Nida, um dos mais renomados nomes estrangeiros, "A morfologia estuda os morfemas e seus encontros na formação de palavras". Para Olmar Guterres da Silveira, outro eminente especialista dentre os brasileiros, "a morfologia é o estudo dos elementos formais constitutivos do vocábulo" e, para Mattoso Câmara, que dispensa adjetivos, "a morfologia estuda os morfemas e os processos de estruturação do sintagma lexical" (i. é. morfemas e processos de formação de palavras) . Vê-se, portanto, que não cabe à morfologia o estudo das classes de palavras como enuncia a NGB. Mattoso Câmara em seu Dicionário de Filologia e Gramática assim ensina: "Espécies de Vocábulos: estudo das classes de palavras e suas categorias gramaticais." É comum dividir-se a morfologia em dois campos: morfologia flexional - estudo das flexões - e morfologia derivacional estudo da formação de palavras. Quanto à técnica de análise, temos a análise mórfica ou análise morfêmica. Estas denominações são formadas à base de morfema que, em geral, é definido como unidade mínima significativa, embora nem sempre os autores apliquem, adequadamente, tal conceito, quando olvidam o traço significativo. CRITÉRIO LINGÜÍSTICO ADOTADO PELO PROFESSOR Dependendo do critério lingüístico, as análises mórficas serão diferentes. Por exemplo, se for aplicado o critério mecanicista, de Bloomfield, falar-se-á em prefixação na palavra receber, uma vez que bastará a comutação entre receber e perceber para marcar o processo de derivação. Contudo, num critério semântico-funcional, estas palavras receber e perceber constituem radicais simples, não se levando em conta a primeira sílaba re- ou per-, como prefixo, visto que a parte seguinte -ceber não tem existência livre na língua, não existindo, portanto, o processo de derivação. É oportuno lembrar a lição de grandes mestres que não dissociam a significação e função da forma. Saussure: "Formas e funções são solidárias e é difícil, para não dizer impossível, separá-las." A primeira função do estruturalismo, ainda segundo Saussure: "é estabelecer o signo como elemento de união entre significante e significado ou da expressão e conteúdo." Mattoso Câmara: "A análise mórfica está inelutavelmente ligada aos valores significativos e funcionais." Daí o eminente lingüista B. Pottier ter definido língua como "um funcionamento de formas portadoras de substância semântica: forma e substância semântica são aspectos inseparáveis" (Lingüística Moderna y Filología Hispánica, p. 165). Assim Pottier define o morfema: "Elemento mínimo distintivo portador de substância semântica”. (idem, p. 105) ATUALIZAÇÃO E ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA O professor não pode prescindir de uma boa orientação bibliográfica e saber onde procurar os fatos de língua para sanar dúvidas e adquirir conhecimentos sólidos e atualizados. Devo esclarecer que uma obra atualizada não é, necessariamente, uma obra de publicação recente. A seleção deve ser feita em relação aos autores . Há os bons, pela formação lingüístico-filológica e pela autoridade nos assuntos; há os maus, copiadores e modernosos, isto é, os que alteram e deturpam os fatos para parecerem inovadores e atuais. E ainda há aqueles que treslêem e ensinam errado. No campo da Morfologia, citarei alguns nomes de bons autores porque são seguros nos assuntos, têm critério científico e suas lições são seguidas por décadas. Dentre os nacionais, destacamos: Said Ali - Gramática Histórica da Língua Portuguesa José Oiticica - Manual de Análise Léxica e Sintática Mattoso Câmara Júnior - História e Estrutura da Língua Portuguesa ––––––. Dispersos (capítulos sobre morfologia nominal e verbal) Olmar Guterres da Silveira - Fundamentos da Análise Morfológica ––––––. Prefixos e Não-Prefixos Portugueses ––––––. Análise de Alguns Regressivos Evanildo Bechara - Moderna Gramática Portuguesa (cap. Estrutura da Palavra: análise mórfica e cap. Formação de Palavras) Walmírio Macedo - Elementos para uma Estrutura da Língua Portuguesa José Lemos Monteiro - Morfologia Portuguesa. Horácio Rolim de Freitas - Princípios de Morfologia Dentre os estrangeiros, destacamos: B. Pottier - Presentación de la Lingüística, Acalá, 1968 A. Martinet - Elementos de Lingüística Geral Frédéric François - La Descripción Lingüística Eugene Nida - Morphology - The Descriptive Analysis of Words Potter, Simeon - Modern Linguistics Louis Guilbert - La Créativité Lexicale Matthews , P.H. Morphology (An introductione to the theory of word-structure) Laurie Bauer - English Word-formation. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO VOCÁBULO MÓRFICO Dos elementos constitutivos do vocábulo mórfico, destaquemos, para exemplo, os afixos: prefixo, sufixo, infixo e circunfixo. Os dois primeiros são de uso pertinente na língua portuguesa. Quanto ao infixo, autores há que o vêem em vocábulos como: café + z + al; chuva + r + ada; café + t + eira; bambu + z + al, denominando os elementos z, r, t de infixos. Terão estes elementos alguma função, alguma especificação significativa? Não. Não apresentam tais traços, logo, não sendo pertinentes, não são infixos. Lembro a lição de Mattoso Câmara: "Só devem ser considerados na análise mórfica os elementos significativos e funcionais." No latim, como em outras línguas, há infixo. O elemento nasal / n / em vinco (presente do verbo vincěre) distingue-se do perfeito vici, onde não aparece o infixo. É clara a distinção entre vincimus e vicimus. Mas esses elementos em cafezal, chuvarada, cafeteira, chaleira e vogais em camoniano, gasômetro, frutífero etc. que têm recebido a denominação de consoantes e vogais de ligação, por não terem função específica ou significação própria, não são morfemas. Não cabem, portanto, numa análise mórfica. Classificá-los como elementos de ligação constitui-se numa expressão vazia, insignificativa. Entre nós, Mattoso Câmara, propõe uma análise coerente sincrônica, a análise de variantes sufixais, a saber: -zal (por -al); -rada (por -ada); -leira (por -eira); -iano (por -ano) etc. Dentre os estrangeiros, citamos Laurie Bauer que, tomando o exemplo do diminutivo da palavra animal em Português, animalzinho, descreve o -z como "um elemento que não constitui morfema." (p. 26) MORFOLOGIA NOMINAL: A ESTRUTURA DE GÊNERO Constatamos que a NGB, sob o título Flexão do substantivo, distribui o gênero em masculino, feminino, epiceno, comum de dois e sobrecomum. Como encontraremos flexão de gênero em cobra, artista e cônjuge? Vê-se ser errôneo o conceito de flexão, além da mistura entre gênero gramatical e sexo dos animais. Tanto os nomes ditos epicenos, que designam animais, têm um só gênero: a cobra, o tigre; como os sobrecomuns, que designam pessoas: o cônjuge, a vítima, a testemunha, o algoz. Essa confusão entre gênero gramatical e sexo do animal vem do gramático latino Donato, do séc. IV d. C. Todavia, o primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, 1536, não copia Donato, pois distribui os gêneros em: masculino, feminino, indeterminado (isto) e comum (maior, menor). Também, o primeiro gramático brasileiro de obra publicada no Brasil, Antônio da Costa Duarte, com o Compêndio de Gramática Portuguesa, 1829, tem o cuidado de não misturar gênero gramatical com sexo animal. "A nossa língua tem somente dois gêneros: masculino e feminino." Epicenos são aqueles nomes de animais que, sem mudar de gênero, significam macho e fêmea, como sabiá, jacaré, os quais são sempre masculinos, e águia, cobra, sempre femininos. Se quisermos falar de macho ou fêmea, diremos o sabiá macho, a cobra fêmea. Os especialistas, contudo, divergem na depreensão de vogal temática nominal e desinência de gênero. Para o eminente lingüista Evanildo Bechara, havendo comutação, como em alun-o./ alun-a, estes elementos -o e -a constituem morfemas de gênero: desinências nominais. Não havendo comutação, como em livro, casa, estes elementos finais são vogais temáticas. Para Mattoso Câmara, os nomes se distribuem em temáticos e atemáticos. Nos primeiros, o índice temático em Português é uma das vogais a, e, o, como em livro, tribo, casa, poeta, telefonema, ponte. São atemáticos os terminados em consoante ou em vogal tônica: mar, sabiá, colibri, tatu. Observe-se que as vogais dos nomes temáticos não coincidem obrigatoriamente com a indicação de gênero, como é o caso entre (o) livro, (a) tribo; (a) casa, (o) poeta; (o) pente, (a) ponte. Daí reconhecer Mattoso Câmara que a marca de gênero em Português se faz extrinsecamente através do artigo, que foi denominado por Galichet como marco de classe. Também nos nomes de dois gêneros sem flexão: pianista, por exemplo, só o artigo poderá indicá-lo. Quando ocorre flexão, que só se efetua num pequeno número de substantivos, esta se processa pelo acréscimo do morfema -a, desinência de gênero: aluno / aluna; mestre / mestra. E a flexão, que não é generalizada, constitui uma forma redundante na indicação de gênero. Pode também ocorrer que, além da semelhança de forma, haja significação diferente. Casos como barco / barca, fruto / fruta, bolso / bolsa etc. não apresentam flexão de gênero pela especialização de sentido. A significação de barco não é a mesma de barca. São palavras diferentes no emprego frasal. Logo sua análise será barc-o (rad. + VT o) e barc-a (rad. + VT a). Não há desinência de gênero. Walmírio Macedo assim distribui as palavras: Palavras femininas: mulher, casa Palavras femininas de outras (flexão): senhor, senhora Palavras de forma feminina: bolsa (em relação a bolso) mas não feminino de bolso. Logo sem flexão. O o e o a são vogais temáticas, sem desinência de gênero. A ESTRUTURA DE NÚMERO Além do acréscimo da desinência de plural -s, deve-se levar em conta as alterações morfofonêmicas. Ocorre, por exemplo, que em muitas palavras a vogal temática no singular está latente, como em mar-, em animal-, mas no plural está patente: mar-e-s, animal-e-s - animais. Também nos nomes em -ão, como pão, só no plural a vogal temática está patente: pães. Há ainda o caso do morfema Ø, como em pires, lápis, sobre o qual os autores divergem. Para uns, como Mattoso Câmara e E. Nida, o morfema zero caracteriza a inexistência de qualquer segmento. Em Inglês, teremos o caso de sheep ou fish, onde não há morfema de número. Outros autores, como Sílvio Elia e o Prof. Walmírio Macedo, só admitem morfema zero quando há oposição entre presença (+) e ausência (-) , como em mar (morfema Ø de singular) e mares (morfema -s de plural). Em palavras como pires, lápis, para estes autores, não há morfema zero, por serem amorfemáticas, isto é, desprovidas de morfema de número. PARADIGMAS E FORMAS SUPLETIVAS Podemos dizer que paradigma é um traço lingüístico permanente ao qual se associa um conjunto de formas. É , portanto, um modelo ou padrão geral. Há, contudo, outros conjuntos divergentes desse modelo que, antigamente, eram chamados de irregulares. Na lingüística moderna constituem padrões especiais que recebem o nome de formas supletivas. O que poderia parecer uma "irregularidade" em face do padrão geral, da forma paradigmática, pode representar tendência a uma uniformização sob novo padrão, um padrão especial. Mattoso Câmara assim definiu as formas supletivas: "Formas heterônimas que suprem a deficiência de um paradigma gramatical." Creio que o termo deficiência não é adequado, uma vez que há casos em que consta mais de uma forma, sendo uma delas supletiva. É exemplo o particípio aceito ao lado do paradigma aceitado. Eu propus a seguinte definição: Forma que, diferindo do padrão geral, aparece formando padrão especial. Nos nomes encontramos formas supletivas como: maior, menor, melhor, pior para o comparativo de superioridade ao lado da forma paradigmática que é analítica: mais bom, mais pequeno. Forma paradigmática: cavaleira / Forma supletiva: amazona. Forma paradigmática: elefanta / Forma supletiva: aliá. Há verbos cujo particípio só possui a forma supletiva: visto, feito, posto, dito. É obrigatória por ser a única existente. Pode ser opcional quando existe a de padrão geral: eleito e elegido. As formas supletivas são formas rizotônicas que recebem uma vogal temática nominal: feit-o; eleit-o. MORFOLOGIA VERBAL Reconhecimento das conjugações Ver quadro das desinências e sufixos modo-temporais PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PALAVRAS A composição (Visão sincrônica) Sob critério sincrônico muitos exemplos que aparecem em nossas gramáticas não constituem processo de composição. Para embasamento deste critério, citaremos a lição de dois grandes mestres e, depois, a nossa. SAID ALI (Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 3ª ed., S. Paulo, Ed. Melhoramentos, 1964, p. 260): Quando se estuda o fenômeno da composição dentro do domínio de certo idioma, deve-se atender principalmente ao que este idioma tem produzido com seus próprios recursos. Não servem de prova para os fatos palavras compostas préexistentes à formação do dito idioma. Pela criação do vocábulo vinagre não é responsável a língua portuguesa e este exemplo não atestaria a possibilidade de formarmos um novo vocábulo. MATTOSO CÂMARA (Dicionário - verbete: aglutinação): “A aglutinação, como fato sincrônico, só deve ser levada em conta quando a análise mórfica depreende as formas aglutinadas. Em caso contrário, trata-se, para a descrição da língua, de vocábulo primitivo”. Daí a minha explicação e posição em Princípios de Morfologia, 4ª ed., p. 48: Não se pode falar em processo formador de composição, se não houver junção de dois radicais ou bases livres. Em aguardente, planalto, passatempo etc. é possível . O mesmo não se dará em vinagre, fidalgo, agrícola, vinicultura. Na composição é necessário que os elementos constitutivos sejam formas livres para a formação de novo sintagma. A DERIVAÇÃO PREFIXAL A prefixação faz parte do processo de composição ou de derivação? Há autores, inclusive Mattoso Câmara, que a incluem na Composição. Diz-nos Mattoso Câmara no verbete Prefixo in Dicionário: Na língua portuguesa, o prefixo, que é a variante presa das formas dependentes chamadas preposições, cria uma nova significação externa para a palavra, a que se adjunge, e por isso se deve considerar o processo de prefixação como uma modalidade de composição vocabular. Esse conceito que inclui a prefixação na composição se baseia em duas falsas premissas: 1ª) certos prefixos correspondem a formas independentes, podendo ser usados como formas livres, 2ª) esses prefixos provêm de preposições. Contra tais afirmações argumenta: SAID ALI – A divisão em derivação sufixal e prefixal que aqui adotamos coincide com a maneira de ver de modernos lingüistas, contrariando portanto aqueles que excluíam ou excluem do conceito de derivação os prefixos e todas as palavras formadas por prefixos. Estoutra doutrina, plausível à primeira vista, em se tratando de partículas usadas como vocábulos independentes, tropeça, contudo, ao chegar o momento de analisar elementos formativos do tipo dis-, re-, in- negativo, e aqueles que, como pre-, ob-, já não usamos como palavras isoladas. É fácil afirmar que dis-, re-, e o negativo inrepresentam partículas inseparáveis que são ou foram preposições ou advérbios. Equivale este argumento a uma petição de princípio. Nada se sabe da existência de tais vocábulos independentes, nem em latim nem em qualquer outra língua indoeuropéia. Por toda a parte ocorrem estes elementos funcionando sempre como prefixos. OLMAR GUTERRES DA SILVEIRA (Prefixos e Não-Prefixos Portugueses): "A rigor, estamos convencidos de que não existe o prefixo como forma livre, mantemos na língua, isto sim, formas livres homônimas de certos prefixos." VISÃO SINCRÔNICA DA DERIVAÇÃO Dentro de um critério sincrônico, como expusemos na obra Princípios de Morfologia, dois aspectos devem ser considerados para o processo de derivação: 1º) formação sintagmática, isto é, um elemento base (radical) e um afixo. O elemento base com função autônoma no léxico; 2º) a possibilidade de o segmento, como elemento significativo, estar à disposição dos sujeitos-falantes para formarem novos derivados. Assim, em palavras como conduzir, receber, reduzir, perceber etc. não admitimos existência de prefixação. Trata-se de palavras primitivas, podendo constituir base de derivação para outras palavras, como, por exemplo: re/conduzir, re/admitir. Esta é a mesma tese dos lingüistas do estruturalismo semântico-funcional. Citemos alguns para confirmação: Loius Guilbert: O critério essencial é que a criação do termo seja motivada pelo falante, de tal maneira que em seu espírito exista a possibilidade de dissociar o elemento afixo do resto da palavra, e que ele considere a substituição do afixo que existe na palavra por outro, como um mecanismo normal da língua. (La créativité lexicale, Paris, Librairie Larousse, 1975, p. 154) Olmar Guterres da Silveira: "Só aceitamos na língua sincronicamente descrita os prefixos que se possam considerar membros de sintagma lexical” (Prefixos e Não-Prefixos Portugueses) REDUNDÂNCIA PREFIXAL Na formação popular é comum a repetição de um elemento para intensificar, isto é, reforçar a idéia . Ex.: de inquieto — desinquieto; de infeliz — desinfeliz; de insofrido — desinsofrido. Isso ocorre também com sufixo: ex. de satisfeitíssimo — satisfeitissíssimo A FORMAÇÃO PARASSINTÉTICA Praticamente encontramos em nossas gramáticas a explicação para o reconhecimento da parassíntese: "Consiste a derivação parassintética na criação de palavras com o auxílio simultâneo de prefixo e sufixo." Antenor Nascentes (citação na Gramática Resumida, de Celso Pedro Luft) acrescenta: "Para haver parassíntese, é necessário que o vocábulo não exista quando despojado do prefixo ou do sufixo. Empobrecer, por exemplo. Não há um adjetivo empobre nem um verbo pobrecer”. Contudo, nas exemplificações, os autores apresentam palavras como enterrar, embarcar, adoçar, aclarar, além de entristecer, apedrejar dentre outras. Observe-se que nos primeiros exemplos os elementos constitutivos são um prefixo en-, -a + o nome: terra, barca, doce, claro e a terminação -ar. Esta terminação não é um sufixo derivacional. É formada pela vogal temática -a mais o sufixo flexional indicativo de infinitivo. Já no segundo grupo: entristecer e apedrejar temos os prefixos en- e -a, os nomes triste e pedra seguidos de sufixo derivacional -ec e -ej mais a terminação -ar. Nestes há realmente o processo de derivação parassintética. Mas são poucos os nomes que apresentam sufixo derivacional. Anoitecer, envelhecer, amanhecer, onde há o sufixo -ec, noção incoativa, idéia de "começo de"; em apedrejar o sufixo -ej traduz a idéia de repetição, freqüência. Outros ainda como: adocicar, em que o sufixo derivacional é -ic, idéia de diminutivo; amolentar, em que o sufixo derivacional é -ent, que traduz a idéia de execução de ação. Devemos a Mattoso Câmara uma explicação precisa da parassíntese, na obra História e Estrutura da Língua Portuguesa, p. 228, quando ensina ao falar dos tipos de derivação: "Outro mecanismo é dar ao nome flexão verbal concomitantemente com um dos prefixos -en ou -a acalmar, embandeirar." E em nota de rodapé acrescenta: "É o que na tradição gramatical se chama derivação parassintética". Está claro que Mattoso Câmara não admite, nos exemplos acima, sufixo derivacional, mas o diz flexão verbal e não concorda com a designação de parassintético por dois motivos: 1o) atribui-lhe o uso à tradição gramatical; 2o) coloca o nome parassintética entre aspas . É o que realmente ocorre. Pela tradição gramatical consideram-se parassintéticas palavras como: acalmar, enterrar, embarcar etc., nas quais não há sufixo derivacional. Diante dessas incoerências, propus um novo enfoque na conceituação de parassintetismo. Propus uma classificação combinatória. 1o - Processo real de derivação parassintética Quando houver afixos derivacionais, como aparecem nas seguintes palavras: anoitecer (a- e -ec); apedrejar (a- e -ej); adocicar (-a e -ic); amolentar (-a e -ent) 2o - Processo parcial de derivação parassintética Quando só houver o prefixo como elemento derivacional e a terminação -ar que constitui elemento de flexão: enterrar, embarcar, adoçar etc. A DERIVAÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA DE UM NOVO ENFOQUE Retrospecto O estudo da chamada derivação regressiva tem sido repetido ao longo do tempo em nossas gramáticas de forma simplista e sem objetividade, pois o critério utilizado é de ordem diacrônica. Diz-se que, quando o nome não proveio do latim e foi criado pelo falante após a existência do verbo, esse nome é um deverbal ou pós-verbal. Não havia, por exemplo, o nome referente ao verbo pescar, que recebemos do latim piscare. O falante criou o substantivo pesca, tirando-o de pescar. Pesca é, portanto, um deverbal. Houve derivação regressiva segundo o critério corrente. Por outro lado, se é o nome que precede o verbo, como em: casa, da qual se formou casar; de golpe , do qual se formou golpear; de almoço do qual se formou almoçar, temos aí o processo de derivação progressiva. Mas como reconhecer os dois processos? As gramáticas só fazem referência à precedência ora do nome, ora do verbo no processo de derivação, ou se limitam a apresentar uma relação de exemplos. Pelas explicações que se repetem, só um critério será capaz de distinguir se o termo é progressivo ou regressivo: o critério etimológico. Ora, este critério não é plausível em gramática que se pauta pela sincronia. É comum lermos em nossas gramáticas a seguinte explicação: "Além do processo normal, existe outro, o da derivação regressiva, em que se faz exatamente o contrário, obtendo-se a nova palavra não por adição, mas por subtração do elemento formativo. Dá-se o fenômeno por erro de raciocínio"(?!) Do verbo jantar (< latim iantare) tirou-se o substantivo janta, portanto, é um deverbal. Além desta repetida explicação, apresentam-se relações de deverbais. Uma das mais extensas pertence à obra de Said Ali com 105 deverbais. Mas como fica o estudante, e mesmo o professor? É preciso recorrer ao latim, verificar o étimo para determinar se a derivação é progressiva ou regressiva. Ou então decorar relações de exemplos. Tem havido tentativa de distinção deste processo derivacional, como a conhecida lição de Mário Barreto (De Gramática e de Linguagem , 2a ed., p. 331). Diz-nos o autor: Os substantivos que denotam ação são deverbais (isto é, palavras derivadas de verbos) .Ex.: caça < de caçar, o substantivo denota ação, será palavra derivada e o verbo, palavra primitiva. Mas se o nome denota algum objeto ou substância, se verificará o contrário, isto é, o nome será primitivo e o verbo, derivado. Exemplifica o autor: de fuzil (objeto) formou-se fuzilar; de azeite (substância) formou-se azeitar. Mas, perguntamos, diante de palavras como dúvida, anseio, devaneio, enlevo, que são deverbais? Não se constata o traço semântico de ação. São nomes que denotam sentimento, algo de caráter abstrato. Já a palavra golpe, que indica ação, não é deverbal . Vê-se, pois, que o critério semântico falha. O mesmo diremos dos critérios formal e funcional. Formalmente, as marcas do nome, por ex.: caça e do verbo (ele) caça não indicam precedência de um ou de outro. Funcionalmente, o nome na frase exercerá as mesmas funções seja proveniente de formação progressiva ou regressiva. A distinção, portanto, baseia-se na etimologia, logo, critério diacrônico. O trabalho mais amplo sobre o assunto, mas de ordem diacrônica, pertence ao Prof. Alfredo Marques de Oliveira Filho (Problemas de Lingüística e de Gramática) onde relaciona 475 deverbais, explicando-lhes a origem. Para refutar o critério de caráter semântico, o Prof. Oliveira fez um estudo diacrônico, partindo do indo-europeu. Conclui que, de uma mesma raiz, tira-se o substantivo e o verbo, tendo o substantivo a característica de expressar ação ou resultado. Exemplifica no grego, no latim e nas línguas românicas, onde este processo formativo apresenta considerável número de substantivos deverbais. Diz-nos ainda o Prof. Oliveira que este tipo de formação já no grego e no latim era normal e multissecular. Propõe este autor , para não termos que recorrer à diacronia, considerar-se sempre o substantivo depois do verbo, logo, pós-verbal. Ex.: 1o verbo: aterrar; 2o subst.: aterro. PROPOSIÇÃO DE UM NOVO CRITÉRIO (Horácio Rolim) Levando em conta que o único critério seguro é o diacrônico, através da etimologia; · que não consideramos processo de derivação uma vez que não há adição ou subtração de sufixo derivacional; há, sim, um radical nominal: pesca, combate, grito, com temas em -a, -e, -o, e um radical verbal : pescar, combater, gritar, caracterizado morfologicamente pela vogal temática mais o sufixo flexional -r; · que há uma coincidência de radical, de ordem semântica; · que coexistem no uso lingüístico o nome e o verbo (pesca - pescar), não importando a precedência deste ou daquele; · que, sincronicamente, tal distinção em nada contribui para o conhecimento da língua pelo estudante, proponho que tal processo formativo seja excluído dos compêndios gramaticais, ficando seu estudo no ensino universitário e no campo da diacronia. Obs.: A criação de verbos e nomes é um processo produtivo, principalmente, na linguagem popular. O nome de ação pode ser criado a qualquer tempo, como podemos observar no português contemporâneo: sufoco, chego, xingo, aprovo, revogo, rejeito, agito etc. E também verbos como xerocar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. 2a ed. Rio de Janeiro: Ozon, 1964. ––––––. Problemas de Lingüística Descritiva. Petrópolis: Vozes, 1968. DUARTE, Padre Antônio da Costa. Compêndio da Gramática Portuguesa. Maranhão: Tipografia Nacional, 1829. FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de Morfologia. 4a ed. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1997. MACEDO, Walmírio. Gramática da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1991. ––––––. Elementos para uma estrutura da Língua Portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Presença, 1987. NIDA, E. Morphology. – The Descriptive Analysis of Words. 2a ed. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1970. OLIVEIRA, Fernão de. Gramática da Linguagem Portuguesa (1536). Edição Crítica, Semidiplomática e Anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 2000. SAUSSURE, F. Cours de Linguistique Générale. 5a ed. Paris: Payot, 1955. SILVEIRA, Olmar Guterres da. Fundamentos da Análise Morfológica in A Obra de Olmar Guterres da Silveira – sua contribuição aos estudos das línguas portuguesa e latina. Organizada por Horácio Rolim. Rio de Janeiro: Metáfora, 1996. UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão (Org.). Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.