Trabalho - Sintese Eventos

XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS NORTE E
NORDESTE E PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro de 2012
UFPI, Teresina – PI
GT29 – Ciências Sociais & Cinema: entre narrativas, políticas e poéticas
TECNOLOGIA E UPDATE DO CORPO NO CINEMA DE FICÇÃO
CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEO
Cristina Alesxandra do Nascimento Alves ([email protected])
Universidade Federal de Sergipe - UFS
1. INTRODUÇÃO
A técnica moderna, entendida como modo de o homem se relacionar
com o mundo, provoca mudanças na sua percepção sobre si mesmo e sobre o
mundo à sua volta. A capacidade de intervir de maneira mais efetiva, por meio
da técnica, abre um novo horizonte de possibilidades que hoje nos assaltam
com maior velocidade e força do que o faziam ontem e provavelmente menor
do que o farão amanhã. O desenvolvimento tecnológico, atrelado às
descobertas científicas, transforma o modo como entendemos e pensamos o
mundo e a sociedade. Aí também estão inscritos o próprio homem e seu corpo.
Ao longo de toda a era moderna, desde a revolução industrial aos dias
contemporâneos, assistimos o acelerar desse processo de mudança. As novas
formas de comunicação, a internet e o celular, entre outras milhares de
novidades tecnológicas, pelas quais somos constantemente interpelados,
alteraram o modo como nos relacionamos uns com os outros, modificaram os
padrões culturais, aproximaram e distanciaram povos. As pesquisas e
descobertas da tecnociência, da medicina genética e da neurobiologia,
afetaram definitivamente o modo como concebemos a saúde, a doença, o
corpo, a vida, a morte. Um novo universo de possibilidades de criação,
reprodução, construção e destruição se abre ao homem, tanto em relação ao
mundo à sua volta quanto a respeito de si mesmo.
O corpo humano, seja entendido como materialidade ou como invólucro
da essência do homem, é o instrumento através do qual ele vive e experimenta
o mundo. Constitui também o primeiro espaço onde o homem intervém
tecnicamente e é onde se anunciam as mudanças de uma sociedade. Desde
meados do século XX o corpo tem sido objeto de estudos mais atentos no
âmbito das ciências sociais e tem adquirido maior importância e visibilidade, na
medida em que nos dias atuais este tem sido manipulado, esquadrinhado e
questionado com maior frequência. Pesquisas científicas abordam a temática
da corporeidade tanto no intuito de alcançar um corpo perfeito como também
de melhorá-lo técnica e maquinicamente.
2
Animal incompleto que vem ao mundo com um fraco sistema instintivo, o
homem em contrapartida é dotado de uma plasticidade que lhe permite
adaptar-se ao mundo e adaptar o mundo a si. Para Galimberti (2006), a técnica
é o remédio à carência instintiva do homem e a condição primordial à sua
sobrevivência no mundo. Através da técnica o homem busca remediar sua
incompletude biológica e compensar a sua carência instintiva. Pois, o corpo
longe de ser uma realidade puramente biológica traz em si uma forte dimensão
cultural e social.
O corpo é o instrumento através do qual o homem se relaciona com o
ambiente a sua volta, é a partir dele que tem o primeiro contato com o mundo.
Amparado pela plasticidade do seu organismo, o homem consegue superar a
sua carência instintiva e interagir com a natureza para criar no mundo um
espaço para si. Para Mauss (2003), o corpo é o mais natural dos objetos
técnicos à disposição do homem, é a primeira ferramenta humana.
Com o advento da internet e com a maior proximidade do discurso
tecnocientífico do ambiente social, cria-se um imaginário no qual o corpo ocupa
um lugar de destaque, seja em busca de uma transcendência do biológico para
algo mais que humano, seja na perspectiva de torná-lo dispensável. Tal cenário
é um reflexo da saída da ficção científica de uma posição subvalorizada no
ambiente literário, para um patamar onde adquire alguma importância na
compreensão das mudanças promovidas pelo rápido avanço das tecnologias.
É através de seus produtos culturais que a sociedade revela seu
imaginário, seu modo de pensar, compreender e lidar com as mudanças na
sociedade. Além disso, é através desses mesmos produtos que se dá o
primeiro contato com as perspectivas da ciência moderna, mesmo que isso
aconteça a partir de um cenário distante e fantástico. No caso da tecnociência,
especificamente, esse imaginário vem à tona por meio das narrativas de ficção
científica. E, dentre estas, as cinematográficas, por seu apelo visual e por
atingir um público bem mais vasto que a literatura, nos permitem ampliar o
horizonte dos nossos pensamentos, na medida em que misturam ficção e
elementos da realidade.
3
2. O CORPO NA MODERNIDADE
O corpo é o palco onde podemos perceber com maior evidência as
transformações sociais. Desde os costumes, passando pela moda e chegando
às tendências de virtualização e ciborguização do homem encabeçadas pela
cibercultura. As novas tecnologias aplicadas ao corpo querem transformá-lo
num objeto remodelável, plástico, substituível, descartável, que possa ser
transformado segundo as expectativas e desejos do indivíduo ou ―usuário‖. O
upgrade do corpo humano é um processo que visa adequar o homem ao ritmo
acelerado e ao ambiente tecnicizado da sociedade atual.
Os primeiros estudos de anatomia marcam o momento da ruptura inicial
do homem com seu corpo de modo concreto. Ao dissecar e desvendar o
interior do corpo a medicina dissociou-lhe de seu caráter místico e metafísico.
―Descartes formula com clareza o termo chave da filosofia mecanicista do
século XVII: o modelo do corpo é a máquina, o corpo humano é uma mecânica
discernível das outras apenas pela singularidade de suas engrenagens‖ (LE
BRETON, 2003, p. 18).
Durante muito tempo, prevaleceu a ideia de que o corpo era assunto
para a biologia e a psicologia, visto que era concebido pela natureza tal e qual.
Entretanto, a partir do início do século XX, começa a esboçar-se com a
psicanálise a ideia de que o corpo não é simplesmente um organismo
biológico, mas também carrega marcas da sociedade e de sua história pessoal.
Com isso, nasce o interesse nas ciências sociais pelo assunto. Porém,
somente a partir da década de 1960, é que se assume o desafio de localizar o
corpo no pensamento sociológico (BATISTA, 2010).
O individualismo e a tomada do homem como construtor de sua história
e seu futuro reflete-se no corpo em forma de uma libertação de certos
costumes, certas ―amarras‖, por assim dizer, que o colocavam num padrão.
Promover mudanças no seu corpo (desde mudar a cor do cabelo até cirurgias
estéticas mais radicais) significa libertar-se dessa padronização e construir sua
própria imagem. A aparência física reflete aquilo com que o sujeito se identifica,
é o invólucro da sua identidade, instrumento através do qual mostra quem é,
em que acredita e a qual grupo pertence.
4
O processo de modificação do homem pela técnica não é novidade. Na
verdade, está presente desde que a espécie humana começou a construir
ferramentas para facilitar a realização de seus objetivos e potencializar o
alcance de seu agir mundo. O que ocorre na modernidade técnica é uma
aceleração exacerbada desse processo, alavancado pelo cada vez maior
conhecimento que a ciência possui do corpo humano e do maior domínio do
homem sobre as tecnologias informáticas. Para Santaella, o processo de
ciborguização, pelo qual passa o homem, nada mais é do que a continuidade
do processo de saída deste da natureza, através da técnica.
Pensadores radicais do status do corpo na modernidade técnica falam
de sua obsolência, um corpo que é carregado como um fardo pelo homem e
que com o desenvolvimento da tecnologia informática, telecomunicações e da
neurociência, bem como outras ciências biológicas, tende a se transformar
radicalmente, podendo inclusive ser substituído por peças cibernéticas, menos
instáveis e perecíveis. Ou, numa concepção mais radical ainda, alguns
preveem e anseiam a substituição completa do corpo por um banco de dados,
virtualizando assim a existência humana, tendo em vista que, as tecnociências
encaram o pensamento do homem como um banco de dados que pode ser
interpretado por código binário, tal qual um computador (RÜDIGER, 2006;
SANTAELLA, 2003; SIBILIA, 2002).
O corpo na visão da tecnociência contemporânea é um vasto campo de
experiências. O desencanto do mundo e da vida a que chegou a ciência ao
desvendar o funcionamento do corpo, tem como consequência a transformação
deste num laboratório de experiências que desperta a imaginação no sentido
de melhorar, potencializar, curar, criar e recriar o corpo humano.
Na contemporaneidade, as mudanças advindas do âmbito da ciência e
tecnologia passam a acontecer num ritmo cada vez mais acelerado, ficando
cada vez mais evidentes no cotidiano. Isso se reflete no surgimento de
manifestações culturais e artísticas voltadas para o universo científico, que se
propõem a pensar, com maior liberdade que a ciência, as novidades
tecnológicas e seus efeitos e consequências sobre a vida do homem.
Os meios de comunicação de massa contribuíram para aproximar todo o
planeta e universalizar um padrão de beleza. ―Engenharia genética, cirurgia a
5
laser, transplantes, silicones, alimentos transgênicos, esteroides anabolizantes
compõem
um
instrumental
contemporâneo
diversificado,
que
vai
redimensionando o corpo numa velocidade espantosa, ao mesmo tempo em
que o torna contingente‖ (FRAGA, 2006, p.63).
3. AS NOVAS TECNOLOGIAS E O UPDATE DO CORPO
Os meios de comunicação de massa que proporcionaram que pessoas
das mais diferentes partes do mundo se conectassem e se comunicassem em
tempo real, contribuiu também para a difusão de certos padrões, por assim
dizer, de beleza e de aceitabilidade que uma vez difusos se tornam quase que
onipresentes. O mundo da moda e Hollywood são exemplos bem gritantes
deste aspecto da sociedade contemporânea, onde as pessoas procuram cada
vez ―aperfeiçoar-se‖. Isso quer dizer, nesse contexto, tornar-se o mais próximo
possível com aquele padrão, que mesmo que não seja imposto pela força,
espera-se que seja tornado o desejo comum dos indivíduos contemporâneos.
Nesse contexto, presenciamos um considerável aumento no número de
cirurgias plásticas com fins simplesmente estéticos, a corrida para as
academias que torna-se cada vez mais um apelo estético que pela saúde, o
uso de cosméticos e procedimentos dos mais variados na busca de prolongar a
juventude ao máximo, e outras formas de intervenção que o homem faz no seu
próprio corpo, desde as mais sutis às mais radicais. A esse processo, Sibilia
(2008) denomina update do corpo.
Se observarmos como o homem se relaciona com seu corpo nos dias
atuais podemos com facilidade compreender essa relação como uma
experimentação. Hoje o corpo é considerado um palco de transformações, um
campo
de
experiências,
que
a
ciência
desvela
para
entender
seu
funcionamento e trabalha no sentido de potencializar, melhorar, curar,
transformar e mesmo criar.
A ideia de que através das intervenções técnicas possa-se chegar ao
―corpo perfeito‖, seja ele modelado por exercícios físicos, dietas ou cirurgias
estéticas é amplamente difundido pelos meios de comunicação. Tornando-se o
6
objetivo de muitos homens e mulheres que buscam através de seu corpo
exteriorizar sua saúde e suas qualidades. Exemplo disso é que o Brasil figura
entre os primeiros países na lista dos que mais realizam intervenções estéticas.
Apenas nos primeiros meses de 2011, verificou-se um aumento de 60% na
procura por implantes de próteses nos glúteos1, sem mencionar outras
especialidades da cirurgia plástica.
Segundo Le Breton, o corpo tornou-se um acessório, uma prótese, um
kit, um objeto imperfeito, que necessita ser corrigido. O sucesso da cirurgia
plástica atesta que de fato muda-se o corpo para mudar a vida (LE BRETON,
2003).
O biólogo e gerontologista inglês Aubrey Grey acredita que a ciência
está muito perto de alcançar a ―cura‖ para a velhice, bem como de ser capaz
de eliminar por meio de tratamentos genéticos todas as doenças. Segundo ele,
os benefícios da ciência médica contemporânea possibilitarão o aumento
exponencial da expectativa média de vida. Em entrevista à revista Veja em
junho de 2011, De Grey afirma que ―temos 50% de chances, com os avanços
dos estudos a respeito da degenerescência das células, de estender a vida
humana a 200 anos até 2030-2040‖2. Entretanto, faz questão de frisar que não
está em busca de uma fórmula para a imortalidade. Seu objetivo é estender a
vida e erradicar as doenças do corpo humano.
De Grey é um dos muitos entusiastas da ciência e técnica modernas e
demonstra um claro desejo de mudar o mundo a partir dos resultados de suas
pesquisas. Para tanto, criou uma fundação que leva o nome de seu projeto, a
Sens3 (sigla em inglês para Strategies for Engineered Negligible Senescence)4.
O cientista corre o mundo divulgando sua pesquisa e suas expectativas em
busca de financiamento e apoio para seus projetos. Empreitada na qual vem
obtendo sucesso mas também sendo alvo de muitas críticas por parte de
1
Revista Veja Edição 2239 – ano 44 – n° 42 (19 de outubro de 2011) Especial: Projeto Verão
Revista Veja – edição 2221 – ano 44 – n° 24 (15 de junho de 2011) – Especial: Longevidade
3
http://sens.org/ (site oficial da Fundação Sens).
4
Numa tradução livre é algo como “Estratégias para engenharia de senescência mínima”.
2
7
outros cientistas, que julgam suas ideias absurdas e seus objetivos impossíveis
de serem alcançados.
Entretanto, ele não é o único, nem tampouco o primeiro disposto a
anunciar as maravilhas que a tecnologia, supostamente, pode trazer para a
qualidade de vida do homem. Um dos mais respeitados e conceituados nomes
no campo da tecnologia é o inventor americano Ray Kurzweil 5 que, dentre
outras façanhas, previu nos anos 1980 o que seria a internet hoje.
Kurzweil acredita que a inteligência humana é a força mais poderosa do
universo e que, graças a ela, em poucos anos a inteligência artificial chegará
ao mesmo patamar da inteligência humana. Com isso, prevê que com o avanço
exponencial da tecnologia ―vamos transcender nossas limitações biológicas‖6 e
em última instância a ciência será capaz de num futuro muito próximo
proporcionar ao homem a imortalidade. Acredita ainda, que a ciência será
capaz de restituir a vida aqueles que já se foram, seja por meio da hibridização
do corpo humano à máquina ou pela transferência do cérebro do indivíduo para
uma realidade virtual7.
Os dois exemplos acima parecem saídos da ficção científica, no entanto,
são muito reais e provocam e desafiam a imaginação e os limites da ciência.
Mais que modelar e ―melhorar‖ o corpo as novas tecnologias prometem alçar o
corpo à condição máquina: mais durável, mais eficiente, enfim, ―pretende alçar
o corpo à altura da tecnologia de ponta e submetê-lo a uma vontade de
domínio integral, percebendo-o como uma série de peças destacáveis e
hibridáveis à máquina‖ (LE BRETON, 2003, p.46). O corpo humano natural
torna-se a cada dia mais ultrapassado.
Porém, parece escapar aqueles que acreditam que as novas tecnologias
constituem a tábua de salvação do homem, a lógica do mercado e a dinâmica
econômica moderna, que nos moldes de funcionamento atual, provavelmente
5
http://www.kurzweilai.net/ (Site Oficial Raymond Kurzweil)
Kurzweil In: Revista Veja – ed. 2221, ano 44, 15 de jun. 201, p. 146 – Especial Longevidade.
7
Transcendent Man (Homem Transcendental), Robert Barry Ptolemy (diretor) – Ptolemaic Productions
(2009 / documentário).
6
8
impõe sérios entraves e empecilhos a esse processo de transcendência
tecnológica – se é que podemos chamar assim. Primeiro porque não seriam
procedimentos
acessíveis
à
totalidade
da
população,
se
tal
projeto
eventualmente viesse a ser concretizado, o cenário mais provável a se
imaginar é uma nova divisão social que dividiria os indivíduos entre os
―aperfeiçoados‖ e os ―outros‖. Destarte, esse pós-humanismo que prevê um
mundo futuro perfeito, ideal e igualitário, de tão fantástico se assemelha em
demasia às narrativas de ficção científica, como se elas tivessem sido
transportadas e tomado uma forma na realidade.
4. A CIBERCULTURA E UMA NOVA CONCEPÇÃO DE CORPO
A cibercultura tem suas condições de surgimento, juntamente com a
expansão do conhecimento científico e tecnológico a outros âmbitos da
sociedade que não o acadêmico. Pode ser descrita como ―um campo de
experiência através do qual esse fator constituinte dos tempos modernos
começa a se tornar cotidiano‖ (RÜDIGER, 2008, p. 11), ou ainda como uma
forma de cultura na qual as novas tecnologias de informação e comunicação
desempenham papel central (FELINTO, 2005).
O surgimento da cibercultura estimula o surgimento de um imaginário
tecnológico, constituído pelos conhecimentos e fantasias acerca da tecnologia
e que tem sua representação máxima nas obras de ficção na literatura e no
cinema. O desenvolvimento científico e tecnológico conecta-se com a criação
ficcional, pois, ambas são interdependentes. Enquanto a ficção, valendo-se das
possibilidades da tecnociência, liberta a imaginação para pensar que tudo é
possível, a tecnociência se inspira nas criações ficcionais para elaborar,
modificar ou mesmo ultrapassar suas descobertas e invenções. Não ao acaso,
muitas tecnologias surgidas na ficção deram origem a artefatos reais.
É interessante, entretanto, perceber que as declarações de alguns
cientistas de peso das tecnociências parecem mais carregadas de ousadia que
as narrativas de ficção científica. Ray Kurzweil, com sua crença na
transcendência e virtualização do homem, e Aubrey De Grey, com sua fé que a
tecnologia nos fará viver por mil anos, são bons exemplos disso. ―É como se a
9
capacidade de fabulação que sempre caracterizou o mundo da arte e da ficção
e que nos fazia conhecer universos e presentes paralelos à nossa realidade
tivesse sido usurpada pelos novos tecnocientistas‖ (TUCHERMAN, 2006, p.87).
Resta então à ficção expressar a inquietação e a angústia do homem
diante desse novo mundo de possibilidades, caracterizado quase sempre por
ela de maneira distópica8 e descrente, quase como um alerta para o que pode
estar para acontecer. A ficção científica hoje, no lugar de proporcionar uma
abertura para os prognósticos e possibilidades futuras – como é de seu caráter
desde seu surgimento – se posiciona muito mais de modo a germinar uma
desconfiança quanto a esse futuro maravilhoso que a tecnociência promete e
que se encaminha para o que alguns autores caracterizam como uma ruptura
antropológica. De um modo ou de outro, entretanto, as narrativas ficcionais nos
ajudam a discutir o nosso presente em mutação.
Torna-se menos absurdo, e até desejável, a possibilidade de escapar da
morte, abolir as doenças e a velhice, transferir a mente para outro corpo, ou
mesmo para uma máquina, enfim, ―mudar o corpo para mudar a vida‖ nas
palavras de Le Breton (2003). Nesse contexto, as narrativas de ficção
contribuem efetivamente para a redução do choque do futuro que as novas
ciências possibilitam ao homem. Dando a impressão de que
o futuro nunca chega, ou chega de modo cada vez menos notável,
não porque estejamos insensíveis, mas porque estamos cada vez
mais preparados para recebê-lo e, nele, nos encaixarmos
subjetivamente através da ficção científica, tornada acessível via
indústria cultural (RÜDIGER, 2008, p.31).
Pensar o humano a partir da cibercultura implica pensar num homem
cada vez mais envolvido em um processo de transformação que parece ser
uma possibilidade cada vez mais fácil de se concretizar e que promete
transformar radicalmente a sociedade em que vivemos.
5. FICÇÃO
CIENTÍFICA
E
AS
REPRESENTAÇÕES
DO
CORPO
MODIFICADO
8
A distopia na ficção científica caracteriza-se principalmente por isolar algumas categorias do
desenvolvimento tecnológico destacar de forma exagerada seus aspectos negativos.
10
Desde seu surgimento, a ficção científica se propõe a extrapolar os
limites da ciência de seu tempo para explorar as possibilidades mais
fantásticas da tecnologia, causando fascínio e apreensão tanto para leitores e
expectadores quanto para os próprios personagens.
Ao combinar a profundidade de subjetividade do humano, o uso da
técnica para mudar a sociedade, e o sonho de novos espaços em um tempo
futuro, o pensamento moderno cria também as condições de surgimento da
ficção científica (OLIVEIRA, 2003, p. 180).
Inicialmente um subgênero restrito a aficionados, e logo irrelevante no
campo acadêmico, a ficção científica tornou-se um dos mais populares gêneros
da literatura e do cinema. Com isso, acabou por tornar-se, a partir das décadas
de 1960 e 1970, foco de interesse de pesquisadores que se dedicam ao estudo
das mudanças que os artefatos técnicos causam no modo como os homens
relacionam-se entre si e com os referidos artefatos – que hoje, mais que
simples ferramentas mediadoras da relação do homem com o mundo, são o
elemento promotor ou mesmo delimitador desta.
A ficção científica, baseada nas perspectivas tecnocientíficas, é uma
narrativa da contemporaneidade, um novo paradigma para explicar o mundo.
Pois, mesmo povoada por seres e espaços estranhos, as narrativas ficcionais
referem-se quase sempre ao presente. Suas preocupações giram em torno dos
progressos tecnocientíficos e o impacto que podem causar na sociedade e no
mundo.
Considerando esse gênero literário como mais do que simplesmente
criador e propagador de fantasias, e levando em consideração que a ficção
científica se propõe desde o início a interrogar a cultura moderna, as novas
formas de organização social que surgem e a posição do homem diante destas
transformações, é possível a partir das temáticas e da estética desse gênero
narrativo estabelecer algumas ligações entre a ficção e a realidade.
Nesse contexto, figuras chave e que por muito tempo figuraram como
elementos característicos da ficção científica, se tornam menos frequentes e
instigantes quanto o ciborg: o homem tecnicamente modificado, com vistas a
11
alcançar um patamar de superioridade aos seus semelhantes ou de igualdade
à máquina.
Ícone da cibercultura o ciborg anuncia um futuro totalmente diverso da
realidade que experienciamos. As promessas desse futuro ultrapassam as
fronteiras da ficção científica quando pensadores da ciência se apropriam
dessa figura para compreender as transformações pelas quais passa o mundo
contemporâneo, quando o homem faz a experiência da sua própria
ultrapassagem (GALIMBERTI, 2006).
Ciborg é um termo cunhado em 1960 por Manfred E. Clynes e Nathan S.
Kline que denomina a junção de um organismo biológico a uma aparelhagem
tecnológica, cibernética (cib=cibernética + org=organismo) e foi difundido e
popularizado na literatura e no cinema cyberpunk, que teve seu advento na
década de 80. Um ciborg seria em tese um ser humano melhorado, mais forte,
mais inteligente, que por meio das próteses maquínicas tem supridas as
deficiências físicas do homem e potencializadas as capacidades de seu corpo.
Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley e publicado em 1931
é uma das mais importantes narrativas distópicas sobre o futuro do homem e
da sociedade. Num espírito um tanto quanto sombrio e sobrecarregado de um
tom deveras negativo, Admirável Mundo Novo retrata uma sociedade do futuro
estratificada e dominada pela tecnologia em todos os seus aspectos, desde a
concepção até a morte do indivíduo, em que os grandes avanços científicos
proporcionaram um grau elevado de manipulação genética e estabilização
social.
Admirável Mundo Novo traz de forma muito clara as preocupações e
receios de seu autor em relação ao crescente alcance dos meios técnicos,
preocupação que se torna mais latente se levarmos em consideração que a
época em que o livro foi escrito é marcada pelos horrores da I Guerra Mundial.
Em 1946 – depois de mais uma grande guerra – Huxley escreve um novo
prefácio para sua obra. Nele fica mais que evidente que essa desconfiança
sombria e esses receios continuam vivos na cabeça do escritor que, mesmo
fazendo ressalvas à sua estória, mantém seu argumento de que o poder
tecnocientífico tende a suprimir a liberdade do homem sob um ideal de
segurança e estabilidade. A estabilidade é resultado de vários métodos de
12
condicionamento físico e psicológico ao longo da vida. ―O tema de Admirável
Mundo novo não é o avanço da ciência em si; é esse avanço na medida em
que afeta os seres humanos‖ (HUXLEY, 2009, p.15).
A obra de Huxley inspirou também algumas produções cinematográficas,
entre elas Gattaca (1997), que apresenta uma sociedade onde o conhecimento
completo do código genético e o controle dos meios que possibilitam alterá-lo e
modificá-lo permite que os progenitores escolham as características dos seus
filhos, além, é claro, de prevenir os eventuais problemas de saúde que eles
possam vir a ter.
O filme conta a história de um homem concebido sem predeterminações
genéticas tentando superar os limites que lhe são impostos por uma sociedade
geneticamente controlada. Para realizar seu sonho de trabalhar na empresa
GATTACA ele se submete às mais radicais e dolorosas transformações
corporais para se adaptar àquele mundo onde o DNA determina a vida do
indivíduo e ser biologicamente natural não é mais suficiente.
A sociedade descrita em Gattaca é, tal como a descrita por Huxley,
marcada pela busca de uma sociedade ideal e hegemônica. O sucesso social e
profissional do indivíduo depende diretamente das características escolhidas
para ele por seus progenitores. Aqueles que são concebidos de modo
tradicional são marginalizados por essa sociedade, ficando responsáveis pelos
trabalhos mais simples e tornando-se quase invisíveis e sem importância aos
olhos dos ―predeterminados‖.
O determinismo biológico que o desenvolvimento das ciências da
medicina impõe acaba por gerar uma nova eugenia, não mais baseada na
raça, como aquela almejada pelo nazismo, mas na carga genética do indivíduo
que acaba por definir sua identidade e se torna seu ingresso para o mundo
social.
A manipulação genética também é explorada em A Ilha (2005), filme
baseado na novela homônima de Aldous Huxley. A estória se passa numa
colônia de clones criados para fornecer ―partes sobressalentes‖ para seus
originais, tais como órgãos para transplante e inclusive incubadora, os clones
são usados também para gestar crianças de seus originais.
13
Os clones, entretanto, não tem consciência de que não são os indivíduos
originais, e acreditam que o planeta foi dizimado por uma catástrofe ecológica e
que o único lugar seguro para se viver, além da própria colônia, é a ilha que dá
nome ao filme. A colônia entra em colapso quando um desses clones começa a
emergir as ―lembranças‖ da sua matriz e iniciam-se questionamentos acerca da
sua origem e sua presença naquele lugar, começa então a procurar respostas
e acaba por descobrir que ele e todos ali são clones e que não há ilha alguma
como também não houve nenhuma catástrofe ambiental.
A ciência mostra que tem a capacidade para ultrapassar os limites
biológicos e modificar a relação que o homem tem com seu corpo. Seja por
proporcionar-lhe um ―depósito‖ de peças sobressalentes para reposição, como
se o indivíduo fosse uma máquina, seja por levantar algumas questões acerca
dos limites dessas ações. A colônia é um projeto secreto e exclusivo, realizado
sem conhecimento do governo ou do grande público. O preço de um clone é
altíssimo, tornando-se um produto para poucos privilegiados. Quando dois
desses clones fogem da colônia e um deles encontra sua matriz abrem-se dois
pontos distintos para discussão. O primeiro refere-se ao dilema ético que
envolve criar pessoas que não são tratados como tal, mas como mercadoria,
depósito de material que após cumprir seu objetivo simplesmente deixa de
existir.
No mundo real, ao menos aparentemente, a dinâmica da medicina
genética é bastante diferente, mas encontramos alguns pontos de confluência,
apesar de sutis. Não estamos pondo em debate a ideia de clonar seres
humanos, para que se tenha um duplo, ou uma reserva, mas o
desenvolvimento de terapias com base na clonagem de partes do próprio
indivíduo, que hoje já é possível e que se concretizado acabaria com as filas de
espera para transplante de órgão. Agora a ciência é capaz de criar um novo
órgão9 para o paciente a partir de suas próprias células, se necessário for. O
segundo ponto refere-se à crise de personalidade que se instala no
9
http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/885917-cientistas-constroem-novas-uretraspara-5-meninos.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u52255.shtml
14
personagem ―duplicado‖, por assim dizer. Ao se deparar um com o outro,
ambos sentem-se confusos a respeito de si mesmos.
Em ambos os filmes torna-se claro que tanto as perspectivas quanto os
desafios desse ―avanço‖ tecnológico não estão presos à produção intelectual
ou
científico-tecnológica,
mas
atingem
toda
a
sociedade
e
levanta
questionamentos acerca do que está por vir. As produções culturais surgidas
sob o signo da tecnologia que transforma radicalmente a vida do homem são
em sua maioria não só dotadas das promessas de um novo mundo, mas
também possuem uma grande carga crítica a respeito das novas tecnologias e,
principalmente são preocupadas com os parâmetros éticos que conduzem esse
caminho da humanidade.
Manipular genética e morfologicamente o corpo para melhorar o homem
e a sociedade e garantir-lhe mais tempo de vida ou substituí-lo por uma versão
virtual que dispensa preocupações com o corpo são duas das possiblidades
mais alardeadas pelas tecnociências. Outra se refere à interligação do homem
com as máquinas no sentido mais físico, tornar-se um ciborgue.
A possibilidade, entre tantas outras, de mesclar o corpo humano à
máquina ou a partes maquínicas configura um novo modo de encarar o
homem, o corpo e a vida. Terminator – Salvation (2009) oferece um ótimo
exemplo da mudança de percepção do indivíduo a partir do imbricamento
homem-máquina. Num cenário onde homens e máquinas estão em guerra pelo
controle do planeta o aparecimento de um ciborgue, híbrido de homem e
máquina, causa temor e desconfiança entre os humanos. Meio homem, meio
máquina, Marcus Wright se declara humano, pensa sente, age e reage como
humano, mas tem partes cibernéticas e com isso traz em si parte do inimigo
não sendo digno de confiança entre os humanos em guerra com as máquinas.
Se deixarmos um pouco de lado o cenário devastador da guerra
mostrada no filme e todo o seu caráter apocalíptico ainda teremos o que aqui
consideramos o ponto mais relevante que essa narrativa em especial desperta
na discussão do corpo contemporâneo: a partir de que ponto do imbricamento
do homem com as máquinas, ocorre uma ruptura antropológica e o homem
torna-se outra coisa?
15
Ícone da cibercultura, o ciborg anuncia um futuro totalmente diverso da
realidade que experienciamos, e as promessas desse futuro ultrapassam as
fronteiras da ficção científica quando pensadores da ciência se apropriam
dessa figura para compreender as transformações pelas quais passa o mundo
contemporâneo.
Entretanto, simbioses, manipulações genéticas e morfológicas dizem
muito mais a respeito do corpo do homem que de sua mente e seu espírito.
Para Le Breton (2003) a partir do momento que nos utilizamos da tecnologia
para nos relacionar com o mundo e com o outro, fazendo uso de aparelhos
celulares, internet e mesmo artefatos destinados a resolver deficiências físicas
(marca-passo eletrônico) e potencializar capacidades (óculos de grau,
aparelhos de surdez) nos tornamos ciborgue. Se considerarmos que o
processo de ciborguização do homem já está em andamento, a partir do que
nos diz Le Breton, observamos que essa ruptura antropológica está um tanto
quanto longe de se concretizar.
E ainda, se o corpo é algo plástico, completamente modelável e
substituível o mesmo não vale para a mente. A partir disso e considerando o
cogito e a ideia de que a essência do homem está em sua mente, podemos
com alguma certeza concluir que tais saltos antropológicos ou upgrades
corporais concorrem no sentido mais de adaptar o corpo humano às
imposições do dispositivo técnico, com sua exigência de funcionalidade e sua
tendência de aceleração e artificialização dos processos, do que realmente
alterar ou mesmo extinguir o homem.
Observar as possibilidades da tecnociência para o futuro do homem sob
os olhos da ficção nos permite pensar com mais liberdade e ousadia as
prováveis consequências das ações humanas na atualidade. Embora o futuro
não seja passível de uma previsão inteiramente confiável, temos a
possibilidade de indagar os limites daquilo que nos é proposto hoje pela técnica
e pela ciência. ―Na ficção científica o homem rompe o eixo que o ligava à ética,
e esse desligamento humano dos valores morais implica sociedades
desajustadas
e,
muitas
vezes,
catastróficas,
refletidas
pelo
gênero‖
(BALDESSIN, 2006, 42).
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Entretanto, a técnica não aponta para um caminho único, também no
que se refere ao corpo. As técnicas ou a tecnologia desenvolvida e aplicada ao
corpo concorrem não apenas para o seu esquecimento mas tem como caminho
alternativo a construção de um corpo perfeito (upgrade do humano). Cirurgia
plástica, próteses, manipulação genética, trabalham numa dinâmica que
pretende levar a ―cura‖ da velhice, das doenças, prolongar a vida
indefinidamente e abre espaço para pensar o fim da morte (o mais antigo
desejo do homem). Essa forma de pensamento e o desenvolvimento de
pesquisas massivas nesse sentido apontam para um futuro de corpos
modificados protéticos, artificiais e consequentemente implica vários e graves
problemas éticos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O acelerado desenvolvimento tecnológico nos leva a pensar sobre o que
seria o homem no século XXI. Pesquisas sobre inteligência artificial,
biocibernética, nanotecnologia, realidade virtual, protética e manipulação
genética apresentam resultados cada vez mais impressionantes e tão próximos
da ficção científica que nos parece estarmos entrando numa nova realidade,
em que um novo tipo de humanidade se desenvolve auxiliado pela tecnologia.
Comparar o corpo humano à máquina e almejar que estes tenham sua
eficiência e funcionalidade, figura entre os pilares da cultura tecnológica
propagada principalmente pela internet. Entretanto, mesmo explorando ao
máximo e extrapolando os limites do que a ciência hoje considera plausível,
crer que a tecnologia será capaz de eliminar ao longo do seu desenvolver os
males causados por ela própria, nos parece um tanto quanto precipitado e
mesmo irresponsável, como afirma Jonas (2006).
Não há como saber qual o futuro do corpo humano: geneticamente
melhorado, unido simbioticamente a máquinas, abolindo o corpo e preservando
a mente em ambientes virtuais e bancos de dados ou sendo simplesmente
humano (mesmo que essa possibilidade pareça não figurar na discussão
tecnocientífica). A preocupação no que concerne à responsabilidade pelas
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intervenções técnicas do homem no mundo e no seu corpo não deve escapar
ao horizonte das descobertas e revoluções tecnocientíficas. Menos ainda do
debate intelectual acerca do que é possível, viável, ético e desejável para o
homem enquanto espécie.
O nosso tempo nos oferece liberdade de escolha como nunca antes,
mas também nos lança num estado de incerteza que nunca foi tão angustiante.
A ambivalência da ação humana sobre o mundo e seu corpo, levanta mais
questionamentos
que
certezas,
sobre
as
consequências
reais
das
transformações que ocorrem no tempo em que vivemos. O anúncio de uma
ruptura antropológica, baseada no desenvolvimento da tecnociência, parece
factível e ainda assim difícil de pensar como algo tão próximo. Factível, na
medida em que levamos em consideração a contingência do homem, que
ganha evidência na modernidade técnica. E, por outro lado, difícil pela
transformação radical que propõe ao corpo e o imaginário que temos sobre ele.
Contudo, as técnicas aplicadas ao corpo apontam não para um destino
único, mas demonstram uma abertura cada vez maior no horizonte de
possibilidades. Destas, as que a ciência médica apresenta para a solução de
problemas graves parecem as mais promissoras e plausíveis. Ainda assim, os
arautos da tecnociência parecem ignorar que vivemos numa época com uma
lógica de mercado que influencia e determina o acesso a essas novidades.
Anunciar um futuro promissor para a humanidade, amparado pela tecnologia,
sem levar em conta os determinantes econômicos, revela certa ingenuidade e
irresponsabilidade.
Não há como saber qual o futuro do corpo humano: geneticamente
melhorado, unido simbioticamente a máquinas, abolindo o corpo e preservando
a mente em ambientes virtuais e bancos de dados ou sendo simplesmente
humano (mesmo que essa possibilidade pareça não figurar na discussão
tecnocientífica). A preocupação no que concerne à responsabilidade pelas
intervenções técnicas do homem no mundo e no seu corpo não deve escapar
ao horizonte das descobertas e revoluções tecnocientíficas. Menos ainda do
debate intelectual acerca do que é possível, viável, ético e desejável para o
homem enquanto espécie.
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