Construção/Representação do Conhecimento Matemático no Quotidiano do Jardim de Infância João Sampaio Maia Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politécnico do Porto (IPP), Portugal Conceição Menino Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) e ESE-IPP, Portugal Márcia Alves ESE-IPP, Portugal Resumo Neste trabalho, falamos da construção do conhecimento matemático no quotidiano do Jardim de Infância através da sua representação oral e gráfica. Realçamos dois tipos de atitude do educador que consideramos favoráveis a uma consistente construção matemática no jardim de infância: a) partir de situações de quotidiano e dos interesse das crianças para tratar questões matemáticas; b) incentivar as crianças a expressar as suas ideias, a falar sobre a questão em si e a registar graficamente as suas ideias, usando as suas próprias notações. O primeiro, porque entendemos que a criança deve ser um sujeito activo na sua própria aprendizagem e portanto deve estar envolvido nas actividades que suportam a sua construção matemática. O segundo, porque se a criança fala sobre o que está a acontecer, precisa de organizar o seu pensamento para o poder fazer, e se escreve, traduzindo as suas ideias, e com as suas próprias notações, precisa de criar uma lógica nessas representações, ou seja, desenvolve o pensamento; além disso, se essa escrita traduz o seu pensamento, o educador poderá, assim, compreender mais facilmente como a criança pensa. Suportamos esta nossa perspectiva pedagógica nos trabalhos de diversos autores de que destacamos o NCTM, Tolchinsky, Kamii e Housman. Apresentamos então duas situações passadas, em Maio de 2004, em dois locais diferentes da cidade do Porto, que se enquadram nesta perspectiva pedagógica e onde são abordados conceitos numéricos. Na primeira, uma criança de cinco anos, feitos em Abril, resolve uma questão elementar de adição, faz a reunião de subconjuntos e a adição dos respectivos cardinais para determinar o cardinal dos conjuntos em causa e faz a representação escrita correspondente, usando os numerais indo-árabes e o desenho. Na segunda, quatro crianças, de cinco e seis anos de idade, contam objectos e fazem o respectivo registo gráfico, usando as notações que entendem. Abstract In this paper, we talk about the construction of mathematics in daily situations of Kindergarten, through oral and writing representation. We underline two kinds of attitudes of kindergarten teachers that we think important for mathematics learning in kindergarten: a) to use the daily situations in the children’s interest to work mathematics; and b) to motivate children to express their ideas using own notations. The first one, because we think children must have an active part in own learning, particularly when learning mathematics. The second one, because when children are talking about what is happening, and writing, choosing their notations, they are thinking about it and the kindergarten teacher can understand better children’s thinking through their writing. Our pedagogical perspective is supported on several authors, especially NCTM, Tolchinsky, Kamii and Housman. We present and comment two situations that happen in 2004, May, at different kindergartens in Porto. In the first one, a five years old child solves problems of sets and additions. In the second one, four 5-6 years old children solve a counting problem. In both cases, they use the notations they want to represent the situations. A Matemática no quotidiano do jardim de infância Os conteúdos matemáticos tratados na Educação de Infância são muito elementares, dado o nível educativo em causa e o carácter hierárquico da Matemática. Mas tão importante como esses conteúdos é a forma como estes são tratados nas salas com as crianças. Em termos básicos, podemos apontar dois caminhos opostos: um será fazer uma abordagem directa aos conteúdos que se pretende transmitir às crianças, sejam conceitos, representações, técnicas ou mesmo estratégias de pensamento, a partir de situações específicas pré-definidas pelo educador para o efeito; outro será criar condições e oportunidades para que as crianças possam construir os conhecimentos a partir das situações que vão surgindo no quotidiano do jardim de infância e centradas nos seus interesses e preocupações. Segundo Ribeiro (2002, p. 33), o primeiro apoia-se «nas teorias da aprendizagem centradas sobre mecanismos de condicionamento e reforço. Correspondem-lhe práticas educativas de feição tecnicista, orientadas por princípios de convergência nos fins e eficácia nos meios»; o segundo apoia-se «em teorias desenvolvimentistas e construtivistas, elaboradas à volta de fenómenos como a interacção e a decisão. Correspondem-lhe práticas de inspiração humanista, favoráveis à divergência e à descoberta». A nossa aposta é nesta segunda linha e diversos autores apontam várias razões para essa opção. Nos Princípios e Normas para a Matemática Escolar (PN), editados em 2000, pelo National Council of Teachers of Mathematic (NCTM), dos USA, podemos ler que: As crianças aprendem explorando o seu mundo; os interesses e actividades do quotidiano são os veículos naturais para o desenvolvimento do pensamento matemático. Usando objectos, no “faz-deconta”, desenhando e contando as crianças mostram o que sabem. O “não saber” reflecte mais vezes falta de oportunidade para aprender do que incapacidade para aprender (p. 75). […] É neste período que se dá o maior crescimento cognitivo. As crianças são seres activos que constroem, modificam e integram ideias interagindo como mundo físico, os adultos e os seus pares. Aprendem falando sobre o que estão a pensar e a fazer e trocando ideias com os outros. Os programas devem ser construídos baseando-se na intuição das crianças e no seu conhecimento informal, encorajando e desenvolvendo as suas capacidades e a sua tendência natural para resolver problemas (p. 76). […] Nos níveis etários mais baixos os problemas devem estar relacionados com rotinas diárias e a situações matemáticas que partem de histórias (p. 116). Também Zabalza (1992) parece ter a mesma posição quando diz que «o aluno da escola infantil é um sujeito não sectorizável» (p. 47) e que «a escola infantil não aborda os conteúdos, entendidos estes em sentido restrito. É um mundo de experiências polivalentes em que os conteúdos desempenham um papel puramente instrumental: servem como oportunidade para a acção. [...] Falar de conteúdos, no contexto infantil, nada tem a ver a dimensão informativo-cultural que tal denominação adquire em outros níveis educativos» (pp. 159-60). Reforça esta ideia ao afirmar que «não se aplica à escola infantil [...] a ideia de que ensinar é “transmitir conhecimentos”» (p. 162). Gestwicki (1995, pp. 23-4) refere que «uma prática focada na aprendizagem cognitiva e em áreas fragmentadas como Ciências, Matemática, Linguagem e Educação Física» não é adequada ao desenvolvimento da criança do jardim de infância; diz ainda que um dos contrastes entre uma “prática apropriada ao desenvolvimento”1 e uma “não apropriada ao 1 Tradução de “developmentally appropriate practice” – DAP. desenvolvimento” é que esta «enfatiza o produto de uma aprendizagem específica [enquanto que aquela] reconhece que a aprendizagem, nestes níveis etários, é um processo contínuo, [em que], na mesma actividade, diferentes crianças farão diferentes aprendizagens». Também Clements (2001, p. 270) afirma que «[a Matemática pré-escolar de qualidade é a que] convida as crianças à experiência matemática enquanto brincam, descrevem e pensam acerca do mundo». Ou seja, parece-nos importante que as crianças possam ser sujeitos activos nas acções que se desenrolam na sala. Isto é, não se trata só da aprendizagem dever assentar no quotidiano do jardim de infância; é o próprio quotidiano que deverá partir dos interesses das crianças e não ser determinado pelos objectivos definidos pelo educador, já que, como salienta o NCTM (2000, p. 74), «o brincar é o trabalho das criança». O número e suas representações Uma das dificuldades que se põem no trabalho da Matemática no Jardim de Infância é resultante do facto dos conceitos matemáticos serem abstractos. Em particular, como dizem Kamii e Housman (2002, p. 35), «os números são sempre abstractos [e] cada criança os constrói através de abstracção construtiva. Portanto, não há uma coisa como um número concreto». Assim sendo, não há outra maneira de lidar com eles senão através de representações e como referem Menino e Maia (1996, p. 6), quando as crianças «entram no Mundo dos Números, aprendem a construir e a compreender [os conceitos], a relacioná-los e a representá-los numa linguagem, primeiro oral, e depois, escrita». Ora, apesar das representações orais dos números (os numerais orais) serem aprendidas naturalmente, integradas na língua materna que vão ouvindo no dia-a-dia, pois usamos, constantemente, termos como um, dois, primeiro, último, etc., como refere Steel (1999, p. 39), «linguagem e significado desenvolvem-se juntos somente quando o novo vocábulo é apresentado num contexto com sentido, isto na Zona de Desenvolvimento Proximal2 da criança». Desta forma, é importante que o educador, durante as actividades relacionadas com matemática, incentive as crianças a falar para que vão associando cada termo ao seu significado, permitindo que se cumpra a ideia de Steel (id., ibid.), quando diz que «generalizar ideias através da comunicação é fundamental quando se constrói linguagem matemática». Sobre o levar as crianças a falar durante as acções que desenvolvem, nomeadamente, naquelas em que estão a trabalhar matemática, o NCTM (2000, p. 128) é muito claro quando diz que «a linguagem oral é tão importante para aprender matemática como para aprender a ler. Os professores devem encorajar os alunos a “conversar sobre matemática”». No que respeita à linguagem escrita, o problema é mais complexo pois a sua aprendizagem não é feita naturalmente como acontece com a oral; ou seja, de alguma forma tem de ser ensinada. No entanto, não é pelo facto de haver, na nossa cultura, um símbolo específico para cada conceito numérico que as crianças aprendem no jardim de infância, que os devemos ensinar, logo que possível, para que elas possam usá-los quando necessitarem. O NCTM (2000, p. 131) refere especificamente que «o uso de símbolos matemáticos deve seguir-se a outras formas de comunicar ideias matemáticas e não precedê-las» e Smole (1996,p. 67) diz que «para as crianças pequenas, desenvolver representações pictóricas é 2 Tradução de Zone of Proximal Development – ZPD. tão fundamental quando consideramos a construção da linguagem materna quanto a da matemática». Tolchinsky (2003, p. 98) dá grande importância ao uso, pelas crianças, de notações próprias, dizendo mesmo que «a informação que as crianças obtêm das notações, bem como a informação que são capazes de produzir, não é somente um suplemento das noções adquiridas previamente e que servem para as ampliar. Pelo contrário, é um ingrediente permanente do processo de desenvolvimento». Perry e Atkins (2002, p. 201) são ainda mais assertivos quando afirmam que Se quisermos que as crianças joguem o mesmo “jogo” e com as mesmas “regras” que nós, então devemos mostrar-lhes as nossas convenções matemáticas. Por exemplo, as nossas maneiras de contar e os significados das operações. No entanto, se o nosso objectivo é que as crianças criem e pensem criticamente acerca de matemática, devemos primeiro dar-lhes tempo para realizar tarefas matemáticas, usando as suas próprias representações. Olhando para as informações que o educador pode obter através das representações das crianças, o NCTM (2000, pp. 136-7) diz que «o uso de representações pessoais mostra o esforço que a criança fez para compreender e torna o seu entendimento acessível aos outros» e Woleck (2001, p. 215) afirma que «as representações não são estáticas. Pelo contrário, elas capturam o processo de construção de um conceito ou de uma relação matemática». Isto é, se as crianças usarem representações gráficas próprias, o educador pode compreender mais facilmente a forma como aquelas organizam o seu pensamento e agir da maneira adequada, no sentido de as ajudar a desenvolver o pensamento matemático. Vejamos dois exemplos de situações do quotidiano passadas em dois jardins de infância da cidade do Porto, durante o mês de Maio de 2004. A primeira trata de uma adição elementar, da reunião de subconjuntos, da adição dos respectivos cardinais para determinar o cardinal do conjunto em causa e das respectivas representações. A segunda trata de contagens de objectos e respectivas representações. 1ª Situação Numa conversa de grande grupo, na sala dos cinco anos de um jardim de infância da cidade do Porto, discutia-se quem sabia o maior número de nomes dos jogadores do FCPorto3 e outros assuntos considerados pelas crianças como sendo de elevado grau de dificuldade. O João, o menino mais novo do grupo, assistia a tudo sem fazer grandes intervenções. A determinada altura, resolve dizer que sabia uma coisa difícil. Sabia quanto era três mais três. Fizemos um ar de admiração e, uma vez que a discussão do grupo estava a ser sobre assuntos difíceis, a questão do João tinha de ser considerada como um assunto também difícil. Depois de ter dito que três mais três era seis, pedimos-lhe que escrevesse isso. Já na mesa de trabalho, o João, depois de colocar o seu nome numa folha de papel, escreve “3+3=6” e diz que 3 mais 3 faz 6. Pediu então, “diz uma conta difícil para eu fazer”. Sugerimos que escrevesse “dois mais dois” ao que prontamente responde, “quatro”. Escreveu “2+2=4” e, quando perguntámos como se escrevia “quatro flores”, desenhou, a seguir ao “2+2=4”, duas flores (ver fig. 1). Quando indagámos se assim já sabíamos que ali estava escrito “4 flores”, respondeu que sim, escrevendo “4”, a seguir às duas flores. Perguntámos-lhe, então, porque é que tinha desenhado 2 flores quando, efectivamente, tínhamos dito 4, ao que ele responde que “tem de ser assim porque são flores, não é flor”. 3 O FCPorto iria disputar, alguns dias depois, a final da Liga dos Campeões Europeus de futebol. Aqui, o João, aos numerais indoárabes desenhados e que também já tinha usado no caso anterior, acrescentou a representação figurativa, mas sem deixar de atender ao facto da palavra “flores” estar no plural. fig. 1 Esta mistura de tipos de escrita é frequente quando a criança pretende escrever uma frase completa (não somente um numeral) e está habituada a usar livremente as formas de representação gráfica que conhece e enquadra-se no tipo de representação «valor de cardinal e tipo de objecto» referido por Kamii e Housman (2002, p. 37). Continuou a querer fazer “outras contas e escrever números difíceis” e sugerimos então que escrevesse quantas cadeiras havia junto à mesa onde estávamos a trabalhar. Levantou-se, contou “dois mais três mais dois é sete” e assim registou (ver fig. 2). A mesa era rectangular e tinha, num dos lados, 2 cadeiras, noutro lado, 3, e noutro, 2. Depois, quis contar as cadeiras que estavam junto a outra mesa, também rectangular e com 2 cadeiras de cada lado. Levantou-se e contou, “dois mais dois mais dois mais dois”. Perguntámos quantas cadeiras eram e respondeu oito. Pedimos-lhe que contasse mais uma vez para ter a certeza que a contagem estava certa. Levantou-se novamente e percorrendo cada par de cadeiras disse, “dois mais dois mais dois mais dois é oito”. Pedimos-lhe que escrevesse e registou “2+2+2+2”. Disse que era oito mas não quis escrever, parecendo já estar cansado. De notar que, apesar de estar familiarizado com a simbologia “clássica”, incluindo o sinal “+”, o João, nestas expressões, não conseguiu escrever correctamente. Nota-se que alguns dos algarismos estão mal desenhados e fora da sua orientação e que a sequência dos símbolos não está certa – a sintaxe da linguagem matemática é bem mais complexa do que a do desenho. fig. 2 É importante realçar que o João contou as cadeiras em função da sua disposição à volta da mesa e traduziu para o registo essa disposição. Como Tolchinsky (2003, p. 115) diz «as crianças estão ligadas à especificidade da situação e tentam mostrar, o mais directamente possível, os significados das quantidades que estão a representar». Isto é, a contagem (e respectiva representação) foi determinada pela disposição das cadeiras. 2ª Situação A história começa com a construção de um instrumento musical, a pandeireta 4, num outro jardim de infância da cidade do Porto. 4 Pandeireta é um instrumento musical popular constituído por um aro, em geral, de madeira, onde se penduram caricas (tampas metálicas de refrigerantes e cervejas). Juntámos várias caricas e um grupo de crianças furava-as enquanto que outro espalmava-as. Lançámos então o seguinte desafio: “Vamos escrever quantas caricas já estão espalmadas”. A primeira criança que respondeu ao desafio foi a Liliana, de cinco anos de idade. Depois de fazer a contagem das caricas, Liliana registou, numa relação termo-a-termo, da esquerda para a direita, as 16 caricas presentes. De notar que não usou numerais na sua notação escrita (fig.3), optando por fazer corresponder, a cada carica, uma letra. Esta representação enquadra-se no tipo de representação «correspondência termo-a-termo com símbolos (“símbolos” no sentido piagetiano)» referido por Kamii e Housman (2002, p. 37). fig. 3 A segunda criança a fazer o registo, foi a Viviana, de cinco anos de idade. Registou, numa relação termo-a-termo, as caricas presentes, que, neste caso, eram 40. Para tal, decidiu registar um traço para cada carica (fig. 4). Durante a contagem, a Viviana mostrou dificuldade na sequência numérica, dizendo, por exemplo: ...27, 28, 29, 5 e ...38, 39, 14. Nestes dois momentos interviemos, dizendo-lhe a sequência correcta. O seu registo foi feito da esquerda para a direita mas, por duas vezes, a Viviana ocupou com, um traço, um espaço que tinha ficado maior que os restantes. fig. 4 Neste caso, podemos dizer que, dentro da classificação definida por Kamii e Housman (2002, p. 37), a notação usada pela Viviana é do tipo «representação global da quantidade». Apesar de nenhuma das duas crianças usar numerais gráficos para representar o cardinal do conjunto em causa, a correspondência um-a-um que suporta o conceito numérico parece perfeitamente construída e os numerais orais foram, em geral, usados adequadamente. Quanto a este tipo de representação, Tolchinsky (2003, p. 115) diz que «[as crianças], antes de aceitarem as diferentes formas em que os numerais representam quantidades, precisam de passar por uma fase de representação analógica [com elementos discretos, letras ou mesmo numerais] em que as quantidades são mostradas figurativamente […] num padrão iterativo e em correspondência um-a-um». A terceira criança a fazer o registo foi o Joni, de seis anos de idade. Depois de ter contado 16 caricas espalmadas, pedimos-lhe para escrever quantas eram. O Joni disse: “mas eu não sei escrever”. Compreendendo que o Joni estava a dizer que não sabia escrever alfabeticamente, perguntámos então como podíamos dizer que estavam 16 caricas espalmadas. Respondeu: “escrevo um 1 e um 6?”. Depois de termos concordado, o Joni ia escrever 16; mas, entretanto, uma criança veio trazer outra carica espalmada e o Joni começou o seu registo em 17 (fig.5). Mas apareceu outra carica e ele escreveu 18 e quando outra criança trouxe mais duas caricas, escreveu 02, que disse ser o vinte. Depois de trazerem mais uma carica, escreveu 21. Por fim, escreveu também “Joni”. Apesar da dificuldade inicial, o Joni já usou os numerais gráficos para representar os números em causa. De referir que qualquer dos numerais está a representar o cardinal do conjunto das caricas espalmadas. fig. 5 Segundo Kamii e Housman (2002, p. 37), esta representação enquadra-se no tipo «somente valor cardinal» e para Tolchinsky (2003, p. 115) é «uma forma digital (quando são usados somente numerais convencionais)». O registo seguinte (fig.6) foi feito pelo Guilherme, de seis anos de idade. Enquanto contava oralmente, foi registando, numa relação um-a-um, os numerais correspondentes às 30 caricas presentes. Interviemos apenas para perguntar onde estava o 23, dado que registou o “2” e depois, na linha de baixo, o “3”. Então, o Guilherme decidiu escrever novamente “23”. QuickTime™ and a TIFF (LZW) decompressor are needed to see this picture. fig. 6 Esta criança, também escreveu numerais mas, contrariamente à anterior, precisou de escrever os ordinais correspondentes a cada carica que contava. Podemos considerar que a sua representação é do tipo que Kamii e Housman (2002, p. 37) designam por «correspondência termo a termo com numerais» Apesar de todas as crianças desta situação pertencerem à mesma sala e de qualquer delas já saber contar objectos, surgiram três tipos de representações escritas diferentes. De alguma forma, esta situação ilustra a afirmação de Tolchinsky (2003, p. 115) que diz que «[as crianças],seja quais forem os elementos que usam (isto é, numerais, ícones ou letras), usamnos repetidamente e em correspondência um-a-um com a idade ou com a quantidade que querem representar. […] Antes de aceitarem as diferentes formas em que os numerais representam quantidades, precisam de passar por uma fase de representação analógica explícita, em que as quantidades são mostradas figurativamente». Conclusões As questões matemáticas descritas surgiram de situações que, à partida, nada tinham a ver com Matemática. Na primeira, foi a criança, o João, que introduziu o tema, que o adulto “apanhou” e desenvolveu. Na segunda, foi o educador que aproveitou uma actividade que interessava às crianças para as “levar” para um dado caminho. Nenhuma das abordagens à matemática tinha sido planeada e aconteceram porque o educador estava atento e soube tirar partido da ocasião, propondo situações problemáticas, fazendo com que a criança pense no problema que se lhe depara, encontre as suas próprias soluções e explicite o seu pensamento, tanto oralmente como por escrito. Em ambas as situações, as crianças tiveram não só de usar o pensamento matemático durante as acções que desenvolviam, mas também de o explicitar. As contagens realizadas, um-a-um ou aos grupos, traduzindo a especificidade da situação, foram realizadas oralmente e representadas graficamente com diferentes tipos de notação. Ora, falar e escrever sobre o que se pensa leva a uma maior reflexão e cria «pontes entre a compreensão informal e formal. Algumas são feitas através da conversão, outras através da escrita e outras, do desenho. Todas são criadas pela mente daquele que aprende, muitas vezes guiadas pelo professor» (Ginsbourg e Baron, 1993, p. 10). Referências bibliográficas CLEMENTS, D. (Janeiro, 2001). Mathematics in the preschool. Teaching Children Mathematics, 7, 270-5. GESTWICKI, C. (1995). Developmentally appropriate practice – Curriculum and development in early education. Albany, N.I.: Delmar Publishers, Inc. GINSBURG, H. P.; BARON, J. (1993). Cognition: Young children´s construction of mathematics. In National Council of Teachers of Mathematics (JENSEN, R. J., ed.) (1993), Research ideas for the classroom. Early childhood mathematics. New York: Macmillan Publishing Company. KAMII, C.; HOUSMAN, L. B. (2002). Crianças pequenas reinventam a aritmética. Implicações da teoria de Piaget. S. Paulo: Artmed Editora. MENINO, M. C.; MAIA, J. S. (1996). Construção da sequência numérica: Um exemplo no jardim de infância. 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