Linguagem e preconceito 5

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O PARADOXO DA LINGUAGEM NÃO SEXISTA
Helena Feres Hawad*
Resumo: os preconceitos que se inscrevem na língua têm recebido crescente
repúdio. Em contraste, parece não haver a percepção de que a língua pode ser,
ela mesma, alvo de preconceitos. A rejeição ao emprego da forma masculina
com sentido genérico em português, como parte dos cuidados para evitar o
sexismo na linguagem, revela incompreensão do potencial de significado que
essa forma gramatical realiza e de sua funcionalidade discursiva.
Palavras-chave: linguagem não sexista; gênero masculino; preconceito
linguístico.
Introdução
Se o combate aos preconceitos que se inscrevem na língua e se perpetuam
por meio da língua tem avançado no Brasil, cresce, paradoxalmente, o preconceito
contra a língua. Exemplo disso é o estilo chamado “linguagem não sexista”,
integrante das preocupações com a linguagem politicamente correta.
Em 2009, o jornalista Marcos de Castro publicou um artigo no jornal O
Globo, o principal jornal impresso na cidade do Rio de Janeiro, em que criticava
o emprego, pela imprensa, da palavra presidente para fazer referência a Patrícia
Amorim, então recém-eleita para a presidência do Clube de Regatas do Flamengo,
na mesma cidade1. O jornalista denominou seu artigo de “Machismo gramatical”
e arrolou uma série de argumentos para embasar a defesa de que o título
empregado no caso deveria ser presidenta. Curiosamente, no material de
campanha da candidata Patrícia Amorim, por ocasião das eleições no clube, liase “Vote Patrícia Amorim Presidente”.
Os mesmos argumentos poderiam justificar o emprego de presidenta em
referência a Dilma Rousseff, que assumiu a Presidência da República em 2011. No
entanto, apesar da insistência do discurso oficial para essa forma, a alternativa sem
flexão redundante – a presidente – continua a ser preferida pela grande imprensa.
Os defensores da linguagem não sexista frequentemente veem, nesse tipo
de resistência por parte dos falantes, um sinal de que a consciência do povo brasileiro
ainda não foi profundamente despertada para os problemas relacionados à suposta
* Professor Adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
1
Disponível em http://oglobo.globo.com/ece_incoming/machismo-gramatical-3994662. Acesso
em 27/5/12.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 63
invisibilidade das mulheres no discurso, a qual refletiria e agravaria sua
invisibilidade na sociedade. Neste artigo, pretendo demonstrar que a resistência
da comunidade falante do português no Brasil ao estilo não sexista tem raízes
em outros fatos, de natureza estrutural e funcional, no âmbito da própria língua
portuguesa.
O caso da alternativa presidente / presidenta é um dos aspectos da questão.
O objeto do presente artigo, porém, é a rejeição, por parte dos defensores desse
estilo, do emprego da forma masculina para fazer referência a ambos os sexos,
indistintamente. Por exemplo, para esses defensores, a frase “Os convidados
ficaram impressionados com a suntuosidade da festa” (em que convidados
significa inequivocamente, para qualquer falante nativo, “pessoas convidadas”)
deveria ficar assim: “Os convidados e as convidadas ficaram impressionados /
impressionadas com a suntuosidade da festa”.
A argumentação se desenvolve, aqui, ao longo de duas linhas. Em primeiro
lugar, são apresentados e analisados excertos de matérias jornalísticas em que
fica patente a funcionalidade discursiva – e, por conseguinte, a necessidade,
para a comunidade falante – do emprego genérico do masculino em português.
Em segundo lugar, são examinadas diferenças estruturais entre a língua inglesa
e a portuguesa que tornam difícil e indesejável a importação para esta de usos
que surgiram e se consolidaram naquela.
Faz-se necessário esclarecer o emprego, neste artigo, dos termos “gênero”
e “sexo”. Ultimamente, nos estudos sociológicos e antropológicos, o termo “gênero”
vem sendo usado em referência a seres humanos, designando a noção cultural,
socialmente construída, de “masculino” e “feminino”, distinta da categoria biológica
“sexo”. Neste artigo, o termo “gênero” é usado apenas em referência a uma
categoria gramatical, assim definida por Dubois et alli (2001, p. 302):
Gênero é uma categoria gramatical que repousa sobre a repartição dos
nomes em classes nominais, em função de um certo número de
propriedades formais que se manifestam pela referência pronominal, pela
concordância do adjetivo (ou do verbo) e por afixos nominais (prefixos,
sufixos ou desinências casuais), sendo suficiente um só desses critérios.
Em português, a distribuição dos nomes pelos gêneros masculino e
feminino não apresenta correspondência sistemática com os significados dos
nomes. Segundo Camara Jr. (1979, p.88),
[...] o gênero é uma distribuição em classes mórficas, para os nomes, da
mesma sorte que o são as conjugações para os verbos. [...] Ora, as
conjugações verbais não têm a menor implicação semântica, e nada em
sua significação faz de falar, um verbo da 1ª conjugação, de beber, um
verbo da 2ª, ou de partir, um verbo da 3ª.
64
n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013
Ainda segundo Dubois et alli (2001, p. 302), a classificação em dois ou três
gêneros é a mais corrente nas línguas indo-europeias, mas, nas línguas africanas,
o número dessas classes nominais é bem maior. O kivunjo, língua da família banto,
por exemplo, segundo Pinker (2004: p.21-22;153), tem 16 gêneros, incluindo
humano singular, vários humanos, objetos finos ou extensos, objetos que
aparecem em pares ou grupos, partes do corpo.
Em português, o gênero de um substantivo pode servir para indicar o sexo
do referente (como em o homem, o bode, a mulher, a cabra, ou o menino / a
menina, o gato / a gata). No entanto, segundo Rosa (2002, p.125), apenas uma
minoria dos substantivos portugueses se inclui nesse caso. Para a esmagadora
maioria (estimada, em estudo citado pela autora, em mais de 95%), o gênero
não tem relação com sexo. Isso ocorre com todos os substantivos que se referem
a objetos inanimados (a cadeira, o banco, a ponte, o poste), com todos os que
denotam emoções e noções abstratas (a raiva, o ódio, a ostentação, o
despojamento) e ainda com muitos dos que se referem a seres sexuados,
humanos ou não (a pessoa, o algoz, a cobra, o jacaré).
A funcionalidade discursiva do masculino genérico em português
Não é raro encontrar exemplos de textos em que o emprego do masculino
genérico é a alternativa mais funcional para os propósitos discursivos em jogo.
Três casos são examinados nesta seção.
Em entrevista concedida à revista Quem, ao falar de um período difícil
que passou na vida, sem trabalho e sem dinheiro, uma atriz de telenovelas disse:
(1) Tive que pedir a minha filha para ir morar com o pai, porque acho que
se passa fome sozinha, mas com filho não dá.2
É evidente que, ao empregar a forma feminina filha, na primeira oração de
sua frase, a entrevistada tinha em mente um referente individualizado: a filha que
ela tem, uma pessoa do sexo feminino. Com o masculino filho, na última oração, a
atriz se refere a filhos “em geral”, à “espécie de ser” denominada filho (“descendente
direto, de primeira geração”), independentemente do sexo dos indivíduos. Na
primeira oração, ela relata um episódio concreto; na última, generaliza e “teoriza”:
formula sua opinião sobre filhos em geral. Esse é o entendimento normal que
qualquer falante nativo do português tem da fala citada.
Tentativas de reformular essa fala em estilo não sexista produziriam um
dos seguintes resultados:
2
Quem. Edição 421. 3 de outubro de 2008. p.56.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 65
(2) Tive que pedir a minha filha para ir morar com o pai, porque acho que
se passa fome sozinha, mas com filho ou filha não dá.
(3) Tive que pedir a minha filha para ir morar com o pai, porque acho que
se passa fome sozinha, mas com filha não dá.
Para o falante nativo do português, a alternativa (2) não oferece qualquer
vantagem discursivo-interacional em relação à versão original (1). A informação
“não dá para passar fome com um filho, qualquer que seja o sexo dele” está tão
clara em (1) quanto em (2), com a desvantagem de que (2), por isso mesmo,
parece prolixa. Em outras palavras, o termo filho ou filha, nesse caso, soa
redundante e, portanto, semanticamente esvaziado.
A alternativa (3), por sua vez, restringe o significado da fala original da
entrevistada (considerando-se o entendimento normal dessa frase por qualquer
falante nativo do português). Nessa reformulação, a atriz estaria excluindo os
filhos homens de sua afirmação de que não é possível passar necessidade tendo
filhos junto de si. No entanto, no contexto em que vivemos, é difícil imaginar
alguma situação em que passar privações com a família fosse menos ou mais
doloroso dependendo do sexo dos filhos envolvidos. Sendo assim, a frase (3)
soa incoerente em relação ao contexto de cultura. Em resumo, no exemplo (1),
o emprego genérico do masculino é a melhor opção, dados os recursos disponíveis
no português, para evitar, por um lado, a redundância, e, por outro, a incoerência
– ambas danosas ao bom funcionamento semântico do texto.
Há casos em que evitar o emprego genérico do masculino pode chegar ao
ponto de inviabilizar a realização de certos objetivos discursivos, como ocorre
no exemplo a seguir:
(4) Os irmãos Otaviano e José de Lima Pereira, agricultores, moram desde
pequenos a 70 metros da roça. “Aos 12 anos eu já aplicava veneno nas
plantações de algodão duas vezes por semana”, diz Otaviano. Ele hoje tem
dois filhos – duas meninas. Na casa ao lado mora o irmão, pai de quatro
filhos (três são garotas).3
Esse fragmento pertence a uma reportagem intitulada “A cidade das meninas”,
que trata do desequilíbrio demográfico na cidade de Jardim Olinda, no Paraná, onde,
há duas décadas, nascem muito mais meninas do que meninos. Segundo a
reportagem, os cientistas atribuem o fenômeno à contaminação por agrotóxicos,
que interfeririam no modo de ação dos hormônios no organismo humano.
No fragmento destacado, seria possível, sem dúvida, evitar o emprego do
masculino em sentido genérico. O resultado poderia ser o seguinte:
3
Veja. 7 de janeiro de 2009. p.63.
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n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013
(5) Os irmãos Otaviano e José de Lima Pereira, agricultores, moram desde
pequenos a 70 metros da roça. “Aos 12 anos eu já aplicava veneno nas
plantações de algodão duas vezes por semana”, diz Otaviano. Ele hoje tem
duas filhas. Na casa ao lado mora o irmão, pai de um garoto e três garotas.
Nessa alternativa para a redação do fragmento, é visível, porém, que algo
do significado da versão original se perdeu: o destaque para o sexo (feminino)
dos filhos – tema principal do texto. A informação sobre o número e o sexo dos
filhos, em (5), é mais neutra, do ponto de vista da focalização, do que a versão
original (4). Além disso, é menos precisa, pois, ao se afirmar “ele hoje tem duas
filhas”, não se deixa claro que Otaviano não tem filhos do sexo masculino, ou
seja, que cem por cento de seus descendentes são do sexo feminino – informação
que está explícita e enfatizada na versão original.
O que a versão original do texto faz é oferecer a informação sobre os
descendentes dos irmãos agricultores em duas parcelas: primeiro, o número de
filhos; depois, o sexo deles. Ao fazer isso, põe a informação sobre o sexo em
posição focal, o que é particularmente adequado ao contexto em que o fragmento
está inserido. Tem-se aqui um tipo de significado que, no modelo sistêmicofuncional, pertence à metafunção textual – aquela cujos recursos permitem
construir mensagens coerentes internamente, e relevantes em relação a seu
contexto (cf. Halliday: 1994, p. 37-67; Thompson: 1996, p. 117-146).
O período a seguir representa mais um exemplo especialmente interessante
do potencial semântico do masculino genérico:
(6) As mulheres são maioria na nova geração de avós.4
Esse fragmento, extraído de uma reportagem sobre as mudanças no
relacionamento entre avós e netos ocorridas nas últimas décadas, só pode receber
interpretação semântica adequada se o plural avós for entendido como masculino
genérico. Como o vocábulo, no fragmento, não está acompanhado de determinantes
ou modificadores, sua forma seria, em princípio, compatível também com o feminino
(“as avós”). No entanto, interpretá-lo como feminino tornaria a frase incoerente. “As
mulheres são maioria entre os avós” faz sentido: “entre as pessoas que têm netos,
há mais mulheres que homens”. “As mulheres são maioria entre as avós” é
semanticamente incongruente, já que todas as avós são mulheres. Isto é, para que o
falante construa uma interpretação coerente da frase, é preciso que ele acione seu
conhecimento do emprego genérico do masculino como um recurso previsto na
estrutura e corrente no uso da língua portuguesa.
Seria prolixa e redundante, como ocorre em (2), acima, a versão “não sexista”.
4
Veja. 26 de outubro de 2011. p.146.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 67
(7) As mulheres são maioria na nova geração de avôs e avós.
O emprego genérico do masculino na língua portuguesa é, portanto, um
recurso para produzir sentido – muito além de suas supostas implicações com
relação a uma invisibilidade das mulheres no discurso.
O funcionamento do estilo não sexista em inglês e em português
As críticas ao sexismo embutido na linguagem tiveram início entre os falantes
da língua inglesa. Nessa língua, por não existir a categoria gramatical de gênero, a
referência endofórica a substantivos que designam pessoas por meio do pronome
he, conforme o uso tradicional, é inteiramente arbitrária e, portanto, cabe o
questionamento sobre a escolha do pronome: por que uma palavra como teacher
ou citizen, usada em seu sentido geral, isto é, sem referente individualizado e
identificado em um texto, seria retomada coesivamente por he e não por she? A
partir desse questionamento, passou-se a empregar, nesses casos, em textos
escritos, he/she, depois s/he ou apenas she, e, finalmente, estabilizou-se nesse
uso a forma they (originalmente plural), que não contém referência ao sexo.
Transpostos para a língua portuguesa, o questionamento e o procedimento dele decorrente adaptam-se mal, já que, em português, todo substantivo
é, inescapavelmente, ou masculino ou feminino – e isso implica que todos os
termos referentes a um substantivo em um texto em português devem
concordar com ele em gênero, incluindo determinantes, modificadores e
pronomes de referência endofórica.
Nesta seção, examinam-se alguns procedimentos “não sexistas” adotados
na língua inglesa, e se avalia sua pertinência para a língua portuguesa. A análise
se baseia no documento “Guidelines for non-sexist language”, uma espécie de
pequeno manual especializado de redação jornalística, adotado pela organização
The Canadian Association of Broadcasters5. O manual lista sete procedimentos
para evitar a linguagem sexista. Examinam-se aqui os procedimentos 1, 3 e 4,
que se referem a elementos gramaticais.
O primeiro procedimento consiste em substituir formas como fireman,
policeman e mailman por outras ditas “neutras”, como fire fighter, police officer e
letter carrier. Esse procedimento é impossível de efetuar em português, porque
não temos nada que se assemelhe a man como elemento de composição para
formar nomes de profissões e ocupações. Os equivalentes desses nomes em nosso
léxico são formados pela adição de sufixos – como por exemplo -dor e -eiro – e as
formas resultantes da derivação (ao contrário do que ocorre com as formas
5
"Diretrizes para a linguagem não-sexista”, da Associação Canadense de Emissoras. Disponível
em http://www.cab-acr.ca/english/social/codes/guidelines_nonsexist.pdf. Acesso em 27/5/2012.
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n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013
derivadas com o sufixo inglês -er, dos exemplos citados) são forçosamente
masculinas ou femininas: o policial / a policial, o vendedor / a vendedora, o cozinheiro
/ a cozinheira6.
Comentário semelhante pode ser feito para o procedimento 3, que
recomenda “evitar terminologia que chame atenção para o gênero da pessoa
que faz o trabalho”, como por exemplo em authoress, lady doctor ou male nurse,
que devem ser substituídos por author, doctor e nurse. É desse tipo a motivação
que levou, em português, ao abandono da forma poetisa, substituída por poeta.
De modo geral, porém, esforços nesse sentido seriam inócuos, para o efeito de
eliminar a referência a sexo, em uma língua na qual o gênero do substantivo é
uma constrição gramatical inescapável: os equivalentes portugueses dos exemplos
dados no documento citado são autora, doutora e enfermeiro. Há hoje falantes
do português que creem poder eliminar o sexismo de seu discurso ao substituir
o substantivo aluno pelo substantivo estudante. A ilusão criada pela falta da flexão
aparente nesse caso parece desconsiderar que a inclusão da palavra em um dos
dois gêneros permanece clara em seus determinantes e modificadores (como
também no caso de presidente, citado na introdução, e de poeta).
O procedimento 4 sugere um cuidado especial com pronomes e recomenda
evitá-los quando possível, substituí-los por artigos, pluralizar o nome e o pronome
ou usar ambos (he/she) e variar a ordem. Os exemplos apresentados no documento,
com as formas a serem evitadas e as alternativas sugeridas, são reproduzidos abaixo:
NO
Each manager determines the best way he can increase production.
An experienced operator always has his lighting kit in his news car.
Each employee may bring his family along.
YES
Each manager determines the best way to increase production.
An experienced operator always has a lighting kit in the news car.
Each employee may bring his or her family along. / Employees may bring
their families along.
Mais uma vez, trata-se de procedimento inócuo em quase todos os casos
em português. No caso dos pronomes possessivos, a recusa não tem motivo na
esfera dos cuidados não sexistas, pois o pronome seu é o mesmo para “possuidores”
de ambos os sexos, flexionando-se conforme o gênero do substantivo que designa
“a coisa possuída”. No caso dos pronomes pessoais, na maioria das situações de
emprego, o gênero do substantivo forçará o uso de ele ou ela. A substituição pelo
6
Desconheço que circulem as formas a carteira e a bombeira, mas nada impediria que sim.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 69
plural também é inútil para a finalidade em questão, já que o plural do pronome
de terceira pessoa em português conserva a oposição de gênero, inexistente no
plural em inglês (eles / elas vs. they).
Incidentalmente, no primeiro dos exemplos de frase transcritos acima, a
tradução literal para o português não deixaria transparecer o gênero do
substantivo: Cada gerente determina a melhor forma como ele pode aumentar
a produção. Nesse caso, tratando-se de substantivo sem flexão aparente,
antecedido de determinante invariável, a retomada anafórica por meio de ele
seria tão arbitrária quanto a retomada por he no correspondente em inglês, no
caso de uma frase descontextualizada. No entanto, bastaria que, em uma frase
análoga, fosse empregado um substantivo com flexão aparente (p. ex. cada
funcionário ou cada vendedor), ou um determinante variável (p. ex. o gerente,
todo gerente ou nossos gerentes), para que o gênero do pronome pessoal
anafórico fosse selecionado automaticamente, sem possibilidade de oscilação.
Os demais procedimentos recomendados no documento citado referemse à seleção de itens lexicais e, em alguns casos, a correspondência com o
português se faz sem dificuldades. Assim, por exemplo, o procedimento 5
recomenda a seleção de itens não marcados quanto a sexo, em preferência a
itens mais marcados, como em acordo de cavalheiros, para o qual se sugere a
substituição por acordo informal, e mãe natureza, a ser substituído simplesmente
por natureza. O “empréstimo estilístico” é de difícil adaptação, porém, no que
diz respeito aos recursos propriamente gramaticais.
Recursos linguísticos e produção de sentido
Uma língua é um sistema semiótico: um conjunto potencial de recursos
para a construção de significado (Halliday: 1978, p. 4-5). Cada língua desenvolve,
historicamente, aqueles recursos de que seus falantes sentem necessidade, o
que acarreta que, em um momento dado, os recursos de fato existentes em
uma língua qualquer são perfeitamente funcionais para a comunidade falante.
Como fica clara pela análise dos exemplos do emprego do masculino genérico
em português, na segunda seção deste artigo, essa forma gramatical se mostra
útil – e mesmo, em alguns casos, indispensável – para a produção de certos sentidos.
A suposição de que o masculino genérico contribui para a invisibilidade das
mulheres no discurso baseia-se, por um lado, no preconceito que vê a linguagem
como um sistema essencialmente icônico, em que as formas léxico-gramaticais
teriam uma correspondência motivada, não arbitrária, com os significados, e os
significados não passariam de elementos dados na realidade extralinguística, apenas
“etiquetados” pelas formas da língua. Por outro lado, essa suposição também se
sustenta na desconsideração do potencial de ambiguidade que existe em todas as
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n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013
línguas. No português, o gênero gramatical masculino, no caso de substantivos
que designam seres sexuados e têm flexão de gênero, tanto significa o indivíduo
masculino de certa espécie, quanto a espécie em geral.
Outras línguas, como é o caso do inglês, podem apresentar um “terceiro
termo” para se referir a uma “espécie de ser” sem indicação do sexo – a par dos
dois termos que se referem aos indivíduos do sexo feminino e do sexo masculino
de uma espécie. O campo das relações de parentesco é especialmente propício
para exemplificar esse ponto, conforme se vê no quadro abaixo:
INGLÊS
PORTUGUÊS
child
filho (genérico)
son
filho
daughter
filha
parent(s)
pai(s) (genérico)
father
pai
mother
mãe
sibling
irmão (genérico)
brother
irmão
sister
irmã
Quadro 1: Relações de parentesco em inglês e em português.
O Quadro 1 apresenta a diferença de organização do léxico do inglês e do
português no que diz respeito às relações de parentesco apontadas e destaca a
ambiguidade da forma masculina no português: o masculino gramatical, além
de se referir ao indivíduo do sexo masculino de uma espécie, funciona como o
“terceiro termo”, necessário para fazer referência geral à espécie, sem levar em
conta o sexo. Repudiar essa ambiguidade é abrir mão de um recurso de produção
de sentido historicamente consolidado na língua, sem que se tenha conseguido
desenvolver uma alternativa léxico-gramatical que possa suprir as mesmas
necessidades discursivas de modo eficaz.
Halliday (1978, p. 44) lembra que, diante de duas alternativas léxico-gramaticais
que parecem ter o mesmo significado, é preciso um olhar mais cuidadoso, pois, quase
sempre, existe entre elas uma distinção semântica mais sutil. É o caso das tentativas
de reescrever os exemplos de masculino genérico examinados na segunda seção.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 71
Em função da configuração específica do potencial de recursos léxicogramaticais do português, o emprego de ambos os gêneros para evitar o sexismo
resulta em um texto prolixo e sobrecarregado, dada a necessidade de concordância
(p. ex. Os alunos e as alunas estão ansiosos e ansiosas com a proximidade da prova,
ou Os candidatos e as candidatas aprovados e aprovadas na primeira fase do
processo seletivo devem comparecer à entrevista munidos e munidas de seu
currículo). A consequência é que o falante do português pode conseguir, com algum
esforço, escrever assim, mas é quase impossível falar assim, o tempo todo e de
modo consistente. E, mesmo na modalidade escrita, o resultado é um texto pesado,
de difícil leitura, dado o acúmulo de informação redundante.
Uma solução aventada por alguns é substituir as terminações dos nomes
pelo símbolo @, em vez de o/a, em casos como aluno/aluna, candidato/candidata
(que se escreveriam, então, alun@, candidat@). O inconveniente é que o
“truque” só funciona na escrita. Na versão falada de textos escritos assim,
permanece o problema de se optar, ali, por um o ou por um a.
Considerações finais
As reflexões desenvolvidas aqui não sugerem que não há sexismo na língua
portuguesa, mas apenas que ele não se encontra consubstanciado na categoria
gramatical “gênero”. É forçoso que haja sexismo na língua, porque há sexismo
na cultura que dela se serve. O sexismo na linguagem se faz presente no
vocabulário. Para elucidar esse ponto, basta uma breve evocação dos termos
ofensivos em português: as injúrias mais pesadas que se podem dirigir a alguém
são, em última análise, referências à conduta sexual da mulher, ainda quando os
xingamentos sejam dirigidos aos homens.
Também não se pretende afirmar que os fatos de língua apontados sejam
imunes a pressões sociais. Com o tempo, os usos preconizados pelos defensores
da linguagem não sexista podem acabar se impondo no Brasil. Não é novidade
que a língua se adapta e se remodela continuamente, para se ajustar às
necessidades do grupo social que faz uso dela. Assim, por exemplo, se há sexismo
no vocabulário referente a profissões, é possível que, em breve, passem a circular
novos itens, como pedreira, carpinteira ou encanadora, ou que palavras até hoje
de gênero único, como piloto e babá, passem a ter dois gêneros. A mudança da
realidade social tende, normalmente, a produzir mudança na língua –
especialmente no léxico.
O que se buscou demonstrar aqui é que a resistência da comunidade falante
do português no Brasil em adotar as soluções preconizadas pelos defensores da
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linguagem não sexista com relação ao gênero gramatical não se deve a uma
suposta insensibilidade ou indiferença em relação às lutas sociais da mulher.
Ocorre que as soluções propostas tornam disfuncional a ferramenta valiosa e
indispensável que é a língua materna para a atividade discursivo-interacional.
Ao mesmo tempo, a insistência nelas incorre no risco de desqualificar,
implicitamente, o sistema de recursos semântico-gramaticais, que é a língua
portuguesa, como se ele fosse defeituoso ou insuficiente – e, por extensão,
desqualificar também seus falantes nativos. Eis aí o paradoxo de que é preciso escapar:
armar-se de uma atitude preconceituosa com o fim de combater preconceitos.
Referências bibliográficas
CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de linguística. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
HALLIDAY, Michael A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language
and meaning. London: Edward Arnold, 1978.
_____. An introduction to functional grammar. 2. ed. London: Arnold, 1994.
PINKER, Steven. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
ROSA, Maria Carlota. Introdução à morfologia. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002.
THOMPSON, Geoff. Introducing functional grammar. London: Arnold, 1996.
Abstract: prejudice inscribed in language has received increasing rejection.
In contrast, there seems to be no perception of the fact that language
itself may be object of prejudice. The refusal of the masculine form used
in generic sense in Portuguese, as part of the procedures to avoid sexist
language, reveals misunderstanding of the meaning potential this
grammatical form realizes and of its discursive functionality.
Keywords: non-sexist language; masculine gender; linguistic prejudice.
Linguagem & Preconceito – Helena Feres Hawad n 73
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