REFLEXÕES SOBRE POLÍTICA EDUCACIONAL NO E DO

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REFLEXÕES SOBRE POLÍTICA EDUCACIONAL NO E DO CAMPO
[email protected]
Apresentação Oral-Políticas Sociais para o Campo
ROSA ELANE ANTÓRIA LUCAS1; LÚCIO ANDRÉ DE OLIVEIRA FERNANDES2.
1.UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS, PELOTAS - RS - BRASIL;
2.UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS, PELOTAS - RS - BRASIL.
REFLEXÕES SOBRE POLÍTICA EDUCACIONAL NO E DO CAMPO
Resumo
Este artigo tem por finalidade refletir sobre a importância da política educacional, no campo,
enquanto política social no modo de produção capitalista. A política social gestada por um
estado capitalista se propõe a atender às necessidades do mercado. Dentre as políticas sociais,
a política educacional, por sua vez, baseia-se na relação de poder. Para compreender essa
relação tem-se duas linhas de políticas clássicas, que são o pensamento dos filósofos Platão e
Aristóteles. Entendendo a educação do campo como uma política educacional, aborda-se a
sua trajetória pela história da educação brasileira e dos movimentos sociais organizados do
campo na conquista da sua participação na formação de uma sociedade mais humanizadora e
solidária, desenvolvendo, assim, o processo de cidadania. Os movimentos sociais do campo
elaboram uma proposta pedagógica de educação básica no e do campo que tem como
princípios filosóficos a transformação social e a formação da sociedade por meio de valores
humanistas e socialistas; e como princípios pedagógicos a relação entre teoria e prática, a
gestão democrática das escolas, atividades de pesquisa e associação de interesses coletivos e
individuais. Com a redemocratização do país, a urgência de uma nova Constituição/1988 e
através de pressões organizadas pelos movimentos sociais fica em aberto um espaço para que
ao homologarem a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional/1996 se pudesse
encaminhar a regulamentação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do
Campo/2002, por sua vez, suscitando uma política educacional para o campo. Nesse contexto,
a trajetória desempenhada pelos movimentos sociais salienta a ausência na política
educacional brasileira de diretrizes que valorizem a cultura local daqueles que historicamente
construíram o campo.
Palavras-chave: Política Social. Política Educacional. Educação do e no campo.
Abstract
This article has for purpose to reflect on the importance of the educational policy, in the field,
while social policy in the way of capitalist production. The social policy ruled by a capitalist
state has as main goal to take care of to the necessities of the market. Amongst the social
policies, the educational policy, on it's turn, is based on the relation of power. To understand
this relation one has two lines of classic policies, that are the thought of the philosophers Plato
and Aristotle. Understanding the education of the field as an educational policy, one
approaches to its trajectory through the history of the Brazilian education and the organized
2
social movements of the field in the conquest of its participation in the formation of a more
humanizer and solidary society, developing, thus, the citizenship process. The social
movements of the field elaborate a pedagogical proposal of basic education in and of the field
that has as philosophical principles the social transformation and the formation of the society
by means of humanist and socialist values; and as pedagogical principles are the relation
between theory and practice, the democratic management of the schools, activities of research
and association of collective and individual interests. With the redemocratization of the
country, the urgency of a new Constitution/1988 and through pressures organized for the
social movements, it was open a space so that when homologating the Law of Lines of
Direction and Base of the Nacional Education/1996 it was possible to start the regulation of
the Operational Lines of Direction for the Basic Education of the Field/2002, on it's turn,
exciting one educational policy for the field. In this context, the trajectory played for the
social movements salient the absence in the Brazilian educational policy of lines of direction
that value the local culture of tohse that had historically constructed the field.
Keywords: Social policies. Educational Policies. Education of and in the Field.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca fazer uma reflexão sobre as políticas sociais que se
organizam para o campo. Tem sua origem em pesquisas desenvolvidas desde o final da
década de 90 junto a escolas rurais. Ao observar o cotidiano dessas instituições em cinco
municípios da região sul do Rio Grande do Sul, percebeu-se que possuem uma metodologia
de ensino que não se diferencia das escolas urbanas. Essa observação contrasta com a
proposta pedagógica do Movimento dos Trabalhadores Rural Sem-Terra (MST), elaborada
após a criação do setor de Educação deste movimento, em 1987. Percebeu-se que as
secretarias de educação e professores dos municípios não possuem nenhum documento que
trate de uma adequação com relação à educação rural de acordo com a proposta pedagógica
até então propalada pelos movimentos sociais organizados do campo.
Os acampamentos e os assentamentos exigem uma escola com outra educação.
Dizem eles: “não queremos uma escola igual àquela que nos expulsou do campo, porque
pensávamos que já nascíamos pobres. Não entendíamos por que tinha o pobre e o rico”
(Assentados Piratini). Continuando o debate e encontros nas secretarias municipais do sul da
região sul e na 5ª Coordenadoria Regional do Estado sobre o ensino nas escolas rurais, em
2004, após a homologação das Diretrizes Operacionais do Campo/2002, constatou-se que não
havia estudo e projeto com relação à nova legislação.
Esse desconhecimento das escolas quanto às legislações que tratam de resgatar o
lugar do campo como um espaço local e não mais de atraso, mas valorizando as diferenças
que se complementam, ampliando os aspectos políticos, econômicos e sociais num espaço
global, fez com que se buscasse compreender o distanciamento da política educacional com
relação às demandas sociais.
Nesse sentido, o trabalho traz compreensões a respeito da política social. Sendo
esta uma fração das políticas públicas, que respondem simultaneamente às necessidades de
valorização do capital e à mediação política dos interesses antagônicos que perpassam a
sociedade urbano-industrial. Dentre as políticas sociais estão as de habitação, saúde,
transporte, educação, lazer e outras que de acordo com o movimento da sociedade são
incluídas como direitos da cidadania. Nessa perspectiva, o texto terá como foco as políticas
educacionais, expondo como elas se desenvolvem em um país que está inserido de forma
3
periférica no modo de produção capitalista. Dessa forma, a trajetória dos movimentos sociais
organizados do campo demonstra que não há como se pensar em escola sem reconhecer o
campo como um lugar específico e com sujeitos que lhes são próprios. A partir dessa
realidade, buscam-se alternativas para a elaboração de uma política pública de Educação do
Campo, o que será apresentado a partir da discussão sobre a educação do e no campo e das
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo/2002.
1 Política social
Na ascensão do capitalismo, ocorreu um predomínio da política econômica sobre
a política social. O modo de produção capitalista trata a força de trabalho como mercadoria,
sendo produtora de valor de uso1 e valor de troca2. Esse processo provoca necessidade de
ações compensatórias à extração de valor da classe trabalhadora. Essas ações tomam no
decorrer do tempo forma de políticas sociais.
Segundo Vieira (2000), Behring e Boschetti (2007), não se sabe de uma época
precisa de início das exigências por parte dos movimentos com relação às reivindicações
trabalhistas. Há indicações que isso está relacionado com o movimento operário e o
desenvolvimento da intervenção do Estado, em especial no século XIX, na Europa. A adoção
de políticas sociais por parte dos Estados capitalistas iniciou-se na segunda metade do século
XIX, fundamentada no pressuposto errôneo de que os indivíduos eram culpados de sua
situação de pobreza e atraso cultural. O fato de existirem pobres e ricos, conforme entendia a
moral dos pensadores da época, mormente aqueles alinhados com os princípios do
protestantismo – era um fenômeno natural, e não o resultado do modo de produção existente.
A partir da publicação de A Riqueza das Nações, do economista inglês Adam Smith (1776),
solidifica a ideia do laissez-faire, segundo a qual “[...] os capazes, os inteligentes é que
prosperariam num regime de livre concorrência” (FALEIROS, 1995, p. 11).
O Estado, ao elaborar as políticas sociais ou as políticas públicas em geral, o faz
justamente para assegurar sua sobrevivência, à medida que está envolvido com o processo de
acumulação, visando a administrar os conflitos e as tensões das classes excluídas, legitimando
a ordem social. Esse processo é necessário para criar as condições da acumulação capitalista,
uma vez que ela não é um processo natural, mas vem de relações de conflito, não apenas entre
capital e trabalho, mas entre as diferentes frações do capital.
A articulação das políticas sociais com o capitalismo pode ser evidenciada durante
a primeira Revolução Industrial, na Inglaterra, quando os serviços sociais tornaram-se
encargos do governo central. Isso ocorreu porque faltaram aos governos locais as condições
indispensáveis para enfrentar os problemas decorrentes das necessidades de ordem
educacional, sanitária, habitacional, de auxílio aos desempregados, surgidos com o processo
crescente de urbanização. (VIEIRA, 1992). As políticas sociais consistem em ações
viabilizadas pelo Estado no sentido de criar as condições para ampliar o processo de
acumulação capitalista em determinado país. Elas sempre estiveram relacionadas a essa
acumulação e, por isso mesmo, seu estudo só é possível pela análise do modo de produção
capitalista e seus modos de desenvolvimento, sendo necessário considerar as diferenças entre
1
“[...] dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade
de trabalho útil e concreto, produz valor de uso (MARX, 1987 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 50).
2
“[...] dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano
igual ou abstrato, cria valor de mercadorias.” (MARX, 1987 apud BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 50).
4
as regiões e países como resultado próprio do desenvolvimento desigual desse modo de
produção.
Em geral, as políticas sociais não partem da iniciativa dos Estados, mas decorrem
de pressões, da ação empreendida pelos movimentos populares, isto é, do exercício da
cidadania por parte das massas populares. Elas também são expressão da luta de classes e da
dissimulação das contradições sociais pelas ideologias humanistas, progressistas ou liberais,
as quais apresentam as medidas de política social como instrumentos de igualdade social, de
melhoramento do bem-estar, de igualdade de oportunidades.
Faleiros (1991, p. 9) esclarece que “[...] não é só na saúde, na educação e na
habitação que se localizam as políticas sociais; cada dia surgem novos programas de
assistência ao estudante, velho, deficiente, doente e à criança, [...]”. Esses auxílios e serviços,
geralmente garantidos por lei, aparecem como favores prestados à população. Não raras
vezes, sua implantação visa a prestigiar grupos que estão no poder, beneficiar candidatos ou
criar empregos para apadrinhados. (FALEIROS, 1991).
As questões sociais podem ser consideradas, no desenvolvimento capitalista,
como processos relacionados à formação e reprodução da força de trabalho para o capital.
Portanto as políticas sociais (educacional, saúde, habitação, política de assistência,
previdência e outras) se inserem em estratégias governamentais que “[...] pretendem intervir
nas relações de produção (no caso da política econômica) ou intervir nas relações sociais (no
caso da política social)”. (VIEIRA, 2001, p. 18). A distinção entre política social e econômica
“só é sustentável do ponto de vista didático, porque não existe nada mais econômico que o
social e não existe nada mais social que o econômico”. (VIEIRA, 2001, p. 18).
O discurso oficial a respeito das intervenções do Estado na área assistencial
apresenta, invariavelmente, as políticas sociais como boas, por si, e como bons os governos
que as praticam. A tônica desses comentários é a tentativa de fazer o povo aceitar e legitimar
as intervenções do Estado e de seus agentes, levando-o a acreditar na bondade do sistema e no
fracasso individual.
Todavia, em geral, elas se aplicam ao fato consumado, e não à matriz geradora da
disfunção sócio-econômica. No caso do trabalhador rural, do homem do campo, as políticas
sociais deveriam ser aplicadas nos polos de expulsão, e não nos de atração. O êxodo rural só
poderá ser contido ou reduzido de intensidade se os governos se dispuserem a dar mais
atenção ao rurícola, encaminhando alternativas para este não abandonar o campo e migrar
para a cidade. (FALEIROS, 1991).
Para isso, faz-se necessária uma mudança de paradigma em torno da política
social. Demo (2002) retoma em Boaventura de Souza Santos os pontos que estão sendo
problematizados para recuperar o compromisso emancipatório das políticas sociais, revendo
os conceitos de autogestão e autossustentação, já que esses não comungam da linguagem do
liberalismo econômico da emancipação. Que a política social saia das amarras do capital e vá
além da reprodução da vida, que não sirva somente para sobrevivência, com fins assistenciais,
que dê condições ao ser humano de libertar-se pelo seu potencial de vida e não espere pelo
opressor a sua libertação.
Dessa forma, a autogestão deve visar “[...] o desafio de se governar com autonomia,
[...] levar em conta a implícita dependência em relação aos outros. Deve caber o gesto solidário
para dentro e para fora, a fim de evitar que a emancipação seja apenas uma guerra particular”
(DEMO, 2002, p. 271). E que a autossustentação desenvolva “[...] a habilidade de criar ou gerir
os próprios meios de subsistência, de tal sorte que a mera sobrevivência seja ultrapassada,
sobretudo não se permite que limites da sobrevivência se transformem em privilégios de
usurpadores” (DEMO, 2002, p. 272). Olhando a questão da marginalização pela dimensão
política e não essencialmente material; é preciso aliar as questões econômicas às sociais, de
5
forma que haja um planejamento sócio-econômico, buscando a distribuição dos bens a partir
de critérios de justiça e não para economia de mercado – critério eficiência.
Por conseguinte, alterar a estrutura de uma sociedade existente está na capacidade
da organização de uma sociedade civil. A participação popular promoverá políticas sociais
redistributivas3, que buscam alterar a concentração de renda e de poder e, no caso agrário, a
concentração de terra, modificando a estrutura social. Ela também amplia o entendimento da
política social, superando a visão compensatória e de iniciativa somente do Estado, trazendo
mudanças efetivas, através de novas políticas agrícolas que desconcentrem a riqueza e alterem
a estrutura social de poder. O desenvolvimento do campo não se efetivará se as políticas
agrícolas do país não sofrerem grandes transformações. (GONÇALO, 2001).
Nessa perspectiva, para compreender as políticas sociais brasileiras, é preciso
observar as características do Estado brasileiro, sua articulação com a dinâmica capitalista,
principalmente a partir da adesão ao projeto neoliberal, pois as transformações na esfera
econômica atingem inevitavelmente a sociedade e, embora com intensidade variável,
promovem novas articulações nas instituições político-sociais.
As transformações que ocorreram na sociedade brasileira com o avanço das
relações capitalistas de produção não foram exatamente aquelas sofridas pelos polos
hegemônicos, quando da sua consolidação, no advento do capitalismo industrial. Desse modo,
quando se trata de explicar o desenvolvimento capitalista de uma formação social
determinada é preciso examinar as contradições particulares responsáveis pela configuração e
pelo avanço das diferentes formas de dominação capitalista e também considerar a sua
articulação com o desenvolvimento internacional do capitalismo. (XAVIER, 1990).
No que tange à política social, é importante salientar que, no período de 1951 a
1964, ela “[...] constituiu estratégia de mobilização e de controle das populações carentes por
parte dos governos federais. [...] representou um conjunto de direitos da população, perante o
Estado”. (VIEIRA, 1983, p. 232). Devido às lutas sociais e às pressões sobre o poder estatal,
ela irrompeu como limite de concessão do capitalismo, “[...] tomando a forma dos direitos
sociais e do bem-estar social. [...] de 1951 a 1964, houve representatividade em órgãos
pertencentes à política social, como, por exemplo, na Previdência Social.” (VIEIRA, 1983, p.
232).
A internacionalização da economia brasileira acelerou-se com o golpe militar de
1964. O país abriu-se totalmente aos monopólios internacionais. Isso quer dizer que as
carências do mercado interno foram colocadas em segundo plano, preponderando os
interesses do mercado externo. (SINGER, 1998). Com isso, ela “trouxe benefícios, até para
certos grupos sociais durante algum tempo, há indícios seguros de que relegou e explorou a
grande massa popular. [...] serviu, sobretudo à burguesia do monopólio, aliás, nem sempre fiel
a seus protetores.” (VIEIRA, 1983, p. 211).
Já quanto à política social, uma das constatações mais claras que se pode
identificar é a desigualdade de tratamento entre as populações rurais e urbanas. Desde Getúlio
Vargas e do final da República Velha, quando o Brasil aderiu às políticas sociais, a legislação
(assistencialista) privilegiou o trabalhador urbano, sem tratar do obreiro do meio rural. Esse
foi, com toda certeza, um dos fatores que mais contribuiu para o êxodo rural. Conforme
Faleiros externa, “é nas cidades onde se encontra a maioria das instituições de assistência para
responder à emigração rural e à miséria urbana gerada pelo processo produtivo capitalista,
3
Podem ser um meio de amenizar as desigualdades sociais e a pobreza, porque, nos países capitalistas
desenvolvidos, onde essas políticas foram praticadas, conforme Behring e Boschetti (2007, p. 193), elas “[...] não
são formas capazes de acabar com as desigualdades sociais dada sua incapacidade de agir na estrutura de
produção e reprodução do capital. Entretanto, é inegável que contribuíram para ampliar os direitos e a cidadania
[...]”.
6
pela expulsão da mão-de-obra e pelos baixos salários." (FALEIROS, 1991, p. 56). Dessa
forma, o trabalhador e/ou pobre sem renda não tem condições de morar condignamente, sendo
expulso para a periferia urbana, onde vai morar em cortiços ou favelas.
Vieira (2001) avalia que, no Brasil, não se encontram políticas sociais, mas
serviços sociais setorizados, emergenciais. Desse modo, o governo instável, com baixa
hegemonia, capacidade de controle das mentes e, sobretudo, baixo consenso, exibe políticas
sociais e políticas econômicas muito fugazes, extremamente rápidas por causa da
recomposição permanente da classe dirigente, que lá está. “[...] a política de saúde, a política
de habitação popular, a política de educação, de assistência, de lazer, de condições de trabalho
não formam um todo com alguma coerência. Por isto, educação não se articula com saúde e
alimentação.” (VIEIRA, 2001, p. 18-20). Nessa perspectiva busca-se compreender o papel da
política educacional (PE) como se verá a seguir.
1.1 Política educacional
Historicamente, o Estado orientou a política educacional imprimindo para o país
medidas que, adotadas pelo governo, situaram a educação na chamada área social e, por isso,
reconhecida como política social. Segundo Saviani (1998), a expressão política social está
ligada a certa maneira de conceber, organizar e operar a administração da coisa pública. Com
respeito à educação, alguns Estados evocam para si o ministério do ensino, outros transferem
o encargo inteiramente à iniciativa privada.
As políticas educacionais colocadas em prática pelo Estado brasileiro, desde o
período colonial até os nossos dias, demonstram uma educação discriminatória, elitista,
competitiva, reprodutora das condições capitalistas, de certa forma não contribuindo para a
construção do homem-sujeito, capaz de transformar o mundo e mudar os rumos da história,
(FREIRE, 1999; ARROYO, 1999, 2000). Analisando a escola tradicional, fruto dos Estados
capitalistas, Carnoy (1987, p. 16) observa que “[...] as crianças, desde tenra idade, freqüentam a
escola e são lhes inculcados, sistematicamente, as habilidades, os valores e a ideologia que se
adaptam ao tipo de desenvolvimento adequado à continuação do controle capitalista”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) define as linhas mestras
do ordenamento geral da educação brasileira. Dado a esse caráter de uma lei geral, diversos de
seus dispositivos necessitam ser regulamentados através de legislação específica de caráter
complementar. É precisamente nesse contexto que vai se processando, através de iniciativas
governamentais, o delineamento da política educacional que se busca programar.
A aprovação da LDB necessariamente precederá a aprovação da legislação
específica destinada a regulamentar aquele dispositivo que na própria LDB remete à
elaboração de uma legislação complementar através de decretos e emendas constitucionais.
Essa visão, evidentemente, não exclui o caráter ideológico. Uma educação humanizadora
propõe uma troca de opção, ao invés de os professores priorizarem os interesses, valores e
aspirações da burguesia, coloca em evidência os do proletariado. Seu trabalho não se dará em
proveito da minoria detentora do capital e dos meios de produção, mas tendo em vista o bemestar da massa de trabalhadores, isto é, da maioria.
A educação sendo um aparelho do Estado, jamais será ideologicamente neutra.
Ela se estrutura segundo objetivos a serem alcançados e, consequentemente, adota modelos
pedagógicos, estratégias didáticas e práxis educativas coerentes com o que o Estado, através
da política de educação, pretende. (CARNOY, 1987). Nessa compreensão busca-se
compreender a história da educação brasileira, que, marcada pela discriminação de classes,
demonstra que as muitas reformas introduzidas, principalmente durante o período
7
republicano, não foram suficientes para reverter o caráter elitista tradicional. Por exemplo, a
nova LDB, sancionada em dezembro de 1996 trouxe satisfações e insatisfações. Demo (1998)
entende que a LDB ocasionou avanços, mas, no cômputo geral, trouxe, em seu bojo, inúmeros
ranços das legislações anteriores, devido aos encaminhamentos da comunidade escolar não
terem recebido atenção.
Por conseguinte, para os grupos populares, é imprescindível a participação no
exercício pleno da cidadania no caso da implementação de uma educação das massas, porque
se acredita que a maior virtude da educação está em ser ela um instrumento de participação
política. (DEMO, 1996). Sem os movimentos sociais bem coordenados e sem uma tomada de
consciência da classe trabalhadora capaz de mobilizá-la, não há como transformar a situação
vigente. O processo de conquista do direito passa normalmente pelas fases do planejamento
participativo como “[...] tomada de consciência, que descobre a discriminação como injustiça;
proposta de enfrentamento prático da questão; necessidade de organização política” (DEMO,
1996, p. 63).
A conquista do direito está ligada não só à sobrevivência material, mas também à
necessidade de organização política democrática pela sociedade com direitos de ordem
cultural; à defesa da cidadania em geral, de minorias e assemelhados, como a legislação da
mulher, do negro, do índio, do idoso e da criança. (DEMO, 1996).
Com a evolução da sociedade, a educação, que antes se processava sem seriação
escolar, sem classes de alunos (as) e sem professores (as) especialistas, foi se constituindo aos
poucos em um processo que envolveu escolas, salas, docentes e métodos pedagógicos. Esse
processo, em um primeiro momento, passou a exigir planejamento e direção no caminho,
etapas necessárias para que os objetivos fossem atingidos. É nesse momento que surge a
política educacional. No segundo, questiona-se o que significa e qual o seu conceito. Percebese que não há como fazê-lo através de um único termo, advinda de um processo, a PE está
presente em cada época histórica, em cada contexto, em cada momento dado à organização
dos seres humanos em uma ou várias formas concomitantes da ação humana. Dessa forma,
para compreendê-la, precisa-se conhecer a sua dinâmica, que tem uma força motora própria
que impulsiona e edita sua relação com as demais esferas do mundo social. (XAVIER, 1994).
Mesmo que as origens da educação estejam voltadas para o desenvolvimento do
ser humano, não se pode pensar que PE seja um processo voltado para esclarecer, criar e
revelar valores. Esse processo só existe quando a educação assume uma forma organizada,
sequencial, ditada e definida de acordo com as finalidades e os interesses que se têm em
relação aos aprendizes envolvidos na caminhada. (FREIRE, 1988; XAVIER, 1990).
A política educacional tem por finalidade programar a formação dos tipos de
pessoas de que a sociedade necessita. Isso ocorre através de uma educação escolarizada,
restringindo-se aos muros e às paredes escolares. Mas, também existe aquela educação que
está em diversos grupos sociais, nos quais existem formas, maneiras de aprendizado, o que
aprender e o conhecimento a ser transmitido de pessoa a pessoa. Ela surge quando a educação
passa a não dar conta de atender às necessidades do capital. Nesse contexto, a sociedade, ao
evoluir, passa a exigir um processo que requer a construção de escolas com salas, docentes e
métodos pedagógicos, objetivos e certa direção para atingi-los. Não se pode pensar que toda
PE restringe-se ao processo pedagógico escolar. Embora para que ela se concretize seja
necessário um sistema escolar hierárquico, não corre o mesmo com as sociedades tribais,
apesar delas também se constituírem através de uma PE.
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A diferença está no significado da sua elaboração. Nas sociedades tribais, o
conhecimento sobre a relação do homem com a natureza, o trabalho, o mundo transcendental
e místico de cada tribo é transmitido para um determinado fim e por meio de uma
metodologia muito específica, geralmente baseada na tradição4 que assegura a educação como
processo. A observação e o aprender fazendo são etapas básicas e comuns a todas as tribos.
Dessa forma, a educação acontece sem muita sistematização, ocorre à medida que seus
membros definem os tipos de homem e de mulher que cada sociedade deseja.
Na sociedade moderna, a educação exige outros conhecimentos, como psicologia,
sociologia e economia, baseando-se em dados estatísticos e considerações sobre o momento
atual. Processa-se onde há pessoas imbuídas da intenção de aos poucos conduzir a criança a
ser o modelo social de adolescente e posteriormente de jovem e ser adulto idealizado pelo
grupo social em que ela ocorre. Outro dado que se associa à PE é a questão do poder. Para
compreender como ele situa-se nela faz-se necessário apontar duas linhas políticas clássicas e
ao mesmo tempo atuais, que contribuem no entendimento desse poder. São as linhas de
pensamento de Platão5 e Aristóteles6, dois dos filósofos mais importantes da Grécia Antiga.
Pensando-se em um projeto participativo, contrário à PE tecnocrática de
inspiração platônica tem-se a municipalizante que é considerada democrática. A comunidade
participa da administração colegiada da escola e tem poder decisório sobre o currículo
escolar. A figura do administrador escolar serve de ponte entre a instituição e o contexto em
que ela está situada, resultando em uma PE que oferece subsídios para que as escolas
desenvolvam a gestão democrática.
No Brasil, a política municipalizante é defendida por muitos setores sociais e até
mesmo por segmentos representantes do Estado. Mas, em muitos casos, as intenções dessa
defesa mais ocultam a pouca vontade do Estado de assegurar recursos públicos para o ensino
elementar do que propriamente traduzem interesses verdadeiros relativos à melhoria da
qualidade de ensino por meio da participação. (XAVIER, 1994).
Enquanto a educação historicamente ajuda a pensar e desenvolver homens e
mulheres a viverem socialmente de acordo com a sua cultura, a política educacional,
dependendo da sua concepção, encaminhará ou não a formação de certos tipos de seres
humanos. Na concepção liberal, essa formação dar-se-á pela definição da forma e o conteúdo
do saber que deverá ser passado de pessoa a pessoa, constituindo e legitimando o mundo que
o capital necessita. Na visão progressista, a formação será construída a partir das origens e
necessidades da sociedade mediatizadas pela realidade, dessa forma assegurando a
sobrevivência dos diversos tipos de realidade. (LIBÂNEO, 1985).
Em sociedades da América Latina, como a brasileira, em que o modo de produção
capitalista tem como seu ponto alto de ascensão a PE, esta apresenta um rol de metas e planos
setoriais que não se esgotam em programas de governo, mas estão presentes e atuam na
4
Os meninos observam os homens adultos fazendo seus arcos e flechas para aprender também a fazê-los, depois
treinam a pontaria com eles para, quando atingirem a idade adulta, tornarem-se guerreiros e/ou caçadores. As
meninas aprendem a usar as plantas como remédios, produzir cestos e balaios para utilização doméstica,
empregar a argila para fazer potes, curtir a pele dos animais caçados pelos homens para fazer suas sandálias e
roupas, fazer a colheita e cozinhar.
5
Defende uma política de educação tecnocrática, reserva para si o monopólio das virtudes necessárias para a
direção da educação, não se tornando perceptível para a sociedade civil de imediato. O planejamento é feito de
cima para baixo e a PE se reduz a uma questão técnica. Não sofre mudanças de acordo com a dinâmica da
realidade. (XAVIER, 1990).
6
Advoga uma política de educação municipalizante. O poder não se esgota no âmbito administrativo ou
pedagógico, mas pressupõe uma reorientação do exercício do mesmo. O reconhecimento da maioridade das
comunidades municipais locais é muito mais que descentralização administrativa. (XAVIER, 1990).
9
subjetividade humana. Ao encaminhar a educação, que deve ser transmitida de geração a
geração, a PE interfere no corpo de regras sociais constituintes da moralidade de um grupo,
incluindo ou excluindo valores. Dessa forma, delimita o próprio processo de formação
subjetiva do ser humano, que envolve os sentimentos e as disposições emocionais que vão
regular a sua conduta. (XAVIER, 1990).
Portanto, refletir sobre PE é também pensar nos seres humanos de hoje e do
futuro, enfocando principalmente os aspectos social, cívico e individual. A interferência na
constituição da subjetividade humana é pouco explícita na PE, pois sempre o que está mais
evidente é a sua ação sobre o processo de organização do trabalho, delimitando a forma como
a criança ou adolescente vão adquirir o conhecimento necessário para o exercício de uma
profissão, no caso do processo escolar institucional, de uma função ou um ofício ou no caso
do processo de treinamento e convívio contínuo no local de trabalho.
Contrariando essa política, a partir dos anos 80 reascendeu um novo debate sobre
as políticas de educação tanto para a cidade como também para o campo. Nesse contexto os
movimentos sociais do campo tiveram como meta não mais uma extensão da educação urbana
e, sim, um ensino que valorizasse as origens do homem e da mulher rural, buscando não só a
transformação do meio rural brasileiro como também novas reflexões com relação à posse da
terra no contexto da Reforma Agrária.
A instituição escolar do campo, dentro do contexto da educação nacional, merece
um planejamento diferenciado, tendo em vista as particularidades que a envolvem, bem como
a sua dinâmica peculiar, considerando que o universo rural possui formas próprias na
conjugação do trabalho e da produção, além da coexistência de valores culturais e de
competências específicas dos seus membros.
Para compreender a trajetória do ensino rural ao longo do processo de
colonização, do império e da república, faz-se necessário retroceder na história e refletir sobre
a política educacional para o campo frente a uma política social. Nesse sentido será
apresentada resumidamente a trajetória da educação rural ao longo das constituições.
A educação brasileira já nasceu fragmentada, pois se baseou no modelo europeu,
que se destinava em um primeiro momento aos índios, através da catequese e do trabalho
manual e também aos filhos dos colonizadores com a leitura e a escrita orientadas pelos
jesuítas. As atividades educacionais destes começaram, em 29 de março de 1549, com a
construção de colégios junto aos conventos, tornando-se eles os únicos educadores da colônia
portuguesa na América até 1759.
Em meados do século XVII houve a criação das primeiras escolas públicas para
preparar funcionários como mão-de-obra especializada para suprir as necessidades da colônia,
através do trabalho. Após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, surgiu um novo período
educacional, o Pombalino. Este era inspirado pelo Iluminismo, que tomou corpo no final do
século XVII e caracterizou-se no século XVIII. Com a vinda da família real, o sistema
educacional brasileiro modificou-se para atender à aristocracia portuguesa e preparar quadros
para as novas ocupações técnico-administrativas. Mais uma vez, a educação foi usada a
serviço dos interesses governamentais.
Nesse contexto, iniciou o século XIX com um sistema educacional praticamente
inexistente. Em 1808, meio século se passou sem que a colônia tivesse uma educação
organizada. Com a autonomia política conseguida pelo Brasil, em 1822, fazia-se necessária
uma Constituição. A Constituição de 1824, de cunho liberal, mudou o discurso, mas a prática
manteve-se. Não havia acesso à educação para a maioria das pessoas, principalmente as da
zona rural. O contato com a Europa intensificava-se. Surgiram propostas de mudanças para a
educação, mas desvinculadas da realidade brasileira.
As transformações na sociedade brasileira devido à ascensão da República
encaminharam uma nova Constituição, a de 1891. Esta regulamentou a obrigatoriedade da
10
escola primária e omitiu-se quanto a um sistema nacional de ensino, tanto para a realidade
urbana como para a rural. Enfim, as Diretrizes das Constituições de 1824 e 1891
demandaram a ausência de uma consciência a respeito do valor da educação no processo de
constituição da cidadania.
A fase compreendida entre 1894 e 1920 foi definida pelo processo de
industrialização e reformas no ensino. Nas décadas de 1920 e 1930, a alfabetização foi uma
das reivindicações das classes populares e apareceu como plataforma política dos discursos
governamentais. Nesse período começaram a ocorrer as primeiras preocupações com a
educação no campo, que foram registradas nos anais dos seminários e nos congressos rurais.
Em 1930, criou-se o Ministério de Educação e Cultura (MEC), cuja pedagogia passou a ser
feita através de portarias. A educação passou a ser policiada e disciplinada pelo MEC, apesar
do caráter liberal da revolução.
O processo de industrialização instaurou-se no Brasil. Em consequência disso e
apesar das reformas, o quadro educacional continuou elitista, seletivo, intelectualista,
antipopular, com pouca preocupação com a formação do magistério. A Lei Geral do Ensino
Elementar de 1827, que vigorou até 1946, evidencia os limites de organização escolar, não
havendo distribuição de escolas por todo o território nacional, restringindo o acesso à
educação para a maioria das pessoas, principalmente as da zona rural, pois ela não faz
nenhuma referência à educação rural.
Para acompanhar os novos segmentos da sociedade foram organizadas
Constituições, a de 1934, 1937 e 1946. Na de 1934, a educação tornou-se direito de todos e
dever do Estado. Mesmo que de maneira ainda frágil, o financiamento para o atendimento
escolar do campo foi de responsabilidade do poder público. Já a de 1937 não trouxe
proposições para o ensino agrícola. E a de 1946 assegurou o direito de todos à educação, mas
quanto ao ensino rural retomou o que já contemplava a Constituição de 1934, mas,
diferentemente desta, transferiu à iniciativa privada, inclusive às agrícolas, a responsabilidade
pelo custeio desse incremento; fixou como um dos princípios a ser adotado pela legislação de
ensino, a responsabilidade das empresas com a educação; retomou a obrigatoriedade de as
empresas industriais e comerciais ministrarem, em cooperação, a aprendizagem de seus
trabalhadores menores, excluindo dessa obrigatoriedade as empresas agrícolas.
Em conformidade com a constituição, em 1961 foi aprovada a Lei de Diretrizes e
Base da Educação Nacional nº 4024/61. O debate iniciou-se em 1948 e concluiu-se com a
homologação da Lei. O ensino no Brasil passou a ser direito tanto do poder público quanto da
iniciativa privada. Além de contribuir para a reprodução da estrutura de classe e das relações
de trabalho, ela também reproduziu a ideologia da igualdade. O ensino rural ficou no nível da
adaptação. O debate assumiu um papel questionador até 1964, quando ocorreu o verdadeiro
cala a boca nacional, em vista da entrada em vigor da ditadura militar.
A fim de implementar a hegemonia absoluta do Poder Executivo sobre o Poder
Legislativo foram possibilitadas nos anos de 1967 e 1969 novas Constituições. Essas
Constituições repetiram os dispositivos das Constituições de 1934 e 1946, quando
estabeleceram a obrigatoriedade das empresas convencionais agrícolas e industriais
oferecerem o ensino primário gratuito aos seus empregados e respectivos filhos. Nesse
panorama, a educação escolar foi voltada para os saberes da sociedade que compunha e
ocupava os espaços e processos de industrialização.
O processo de modernização da agricultura brasileira – conservador, parcial,
excludente e insustentável –, baseado no modelo que foi genericamente chamado de
Revolução Verde, acelerou a exclusão social e a degradação ambiental no campo. Utilizou o
padrão tecnológico adequado para romper com a cultura organizativa dos agricultores,
integrou as famílias rurais a novas formas de racionalidade produtiva, mercantilizou a vida
social e fragilizou os processos cooperativos e solidários existentes no campo.
11
A redemocratização do país, após o período militar, exigiu uma nova Constituição
Federal. Em 1988 esboçaram-se algumas mudanças, como a obrigatoriedade da
universalização do Ensino Fundamental e a progressiva expansão do Ensino Médio. Também
se consolidou que a educação é um direito de todos e é dever do Estado garanti-la (Art. 205),
transformando-a em direito público subjetivo, independentemente de os cidadãos residirem
nas áreas urbanas ou rurais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96,
superou o conceito de adaptação que, até então, vinha sendo colocado pelas constituições
anteriores, quando mencionavam as atividades agrícolas, passando a utilizar o termo
adequação, reconhecendo a diversidade sócio-cultural e o direito à igualdade, à diferença e os
processos próprios de aprendizagem.
Os princípios e os preceitos constitucionais da educação abrangeram todos os
níveis e modalidades de ensino ministrado em qualquer parte do país. Dessa forma, apesar de
não se fazer referência direta e especificamente ao ensino rural na Carta Magna, possibilitouse às Constituições Estaduais e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional o tratamento
da educação rural no âmbito do direito à igualdade e do respeito às diferenças.
A partir dos artigos 208 e 210 da Carta Magna de 1988 e inspirado de alguma
forma numa concepção que considerava as peculiaridades do campo como espaço específico,
diferenciado e, ao mesmo tempo, integrado no conjunto da sociedade, o artigo 28 da LDB
9.394/96 estabeleceu:
na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino
promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida
rural e de cada região, especialmente: I – conteúdos curriculares e metodologias
apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II –
organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário escolar às fases do
ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação à natureza do trabalho na
zona rural.
Ao submeter o processo de adaptação à adequação, a LDB instituiu uma nova
forma de sociabilidade no âmbito da política de atendimento escolar. A legislação reconheceu
a diversidade sociocultural e o direito à igualdade e à diferença, possibilitando a definição de
diretrizes operacionais para a educação rural sem, no entanto, recorrer a uma lógica exclusiva
e de ruptura com um projeto global de educação para o país. Para Arroio (1999, p. 30), “[...]
quando situamos a educação como um processo de transformação humana, de emancipação,
percebemos o quanto os valores do campo fazem parte da história. [...]”. Se os incisos I e II
do artigo 28 forem devidamente valorizados, pode-se concluir que o texto legal recomenda
levar em conta, nas finalidades, nos conteúdos e na metodologia, os processos próprios de
aprendizagem dos estudantes e o processo específico do campo. Isso quer dizer, segundo
Arroyo (1999, p. 30), “[...] ir às raízes culturais do campo e trabalhá-las, incorporá-las como
uma herança coletiva que mobiliza e inspira lutas pela terra, pelos direitos, por um projeto
democrático e também pede educação.”
No Brasil, embora as leis e reformas tivessem no seu corpo, objetivos e fins para
proporcionar uma mudança estrutural nas bases sociais, isso sempre foi muito ilusório,
havendo constante desvinculação entre teoria e prática. Além desses fatores, havia a ânsia de
buscar soluções para o problema das crianças acampadas e sem escola, o que fazer com elas?
No primeiro acampamento realizado em Encruzilhada Natalina, no ano de 1981, foi percebida
a necessidade de ampliar a luta pela terra, buscando também a educação e a escola como
direitos sociais que delimitam a cidadania. O grande número de crianças presentes no
acampamento exigiu que se deixasse no passado “[...] a concepção ingênua de que a luta pela
terra é apenas pela conquista de um pedaço de chão para produzir. Fica claro que está em jogo
12
a questão mais ampla da cidadania do trabalhador rural sem terra, que entre tantas coisas
inclui também o direito à educação e à escola” (CALDART; SCHWAAB, 1991, p. 86).
As organizações sociais representadas pelos movimentos populares, acrescidas do
meio acadêmico, das organizações governamentais e não-governamentais, entenderam que a
demanda do meio rural por educação não podia se limitar ao ato de levar escolas para o
campo. A partir desse contexto, passou-se a desenvolver ações, culminando com a criação do
Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, em 1987.
Na confluência de ampliar a conquista de novos espaços, em 1997 ocorreu o
Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (ENERA) e, em 1998,
houve a Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo. Os debates
desenvolvidos nesses encontros sobre uma educação básica para o campo esboçaram de que
forma essa educação estaria atendendo à demanda do campo e repensaram o modelo de
educação e de escola rural. Precisa-se desenvolver um projeto educativo contextualizado, que
trabalhe a produção do conhecimento e que leve em conta as questões relevantes para a
intervenção social na realidade, visto que
[...] a transformação na sociedade vai ocorrer não só porque lutamos por terra. Nós
temos que lutar também para reverter a lógica da estrutura capitalista que está aí,
porque não adianta dizer que os sem-terra não vão fazer a transformação, porque se
não fizermos em conjunto essa luta com toda a sociedade, urbana e rural,
trabalhando nas nossas escolas, com nossos filhos, as futuras gerações que estão
vindo, ela não vai acontecer. Sem eles nós não vamos fazer transformação, porque
precisamos ter a consciência do que está nos afetando hoje, mas também o que pode
nos afetar para o futuro [...] (Assentada/Assentamento Conquista da Liberdade).
Um dos grandes desafios é pensar numa proposta de desenvolvimento e de escola
do campo que leve em conta a urgência de superar a dicotomia rural/urbano, resguardando, ao
mesmo tempo, a identidade cultural dos grupos que ali produzem sua vida. Isso indica que a
escola do e no campo não precisa ser, necessariamente, uma escola agrícola, mas será uma
escola vinculada à cultura que se produz, a partir das relações sociais mediadas pelo trabalho
na terra e o meio ambiente.
A defesa de políticas específicas para o setor rural não pode ser vista como uma
forma de política compensatória. Historicamente, o Estado nem sempre cumpriu com a sua
função de resguardar os direitos sociais do cidadão. Paralelamente a esse descaso, a população
assumiu iniciativas com movimentos sindicais, organizações comunitárias e movimentos
sociais, para lutarem contra a exclusão, desenvolverem experiências formativas e forçarem a
emergência de novas políticas públicas que garantam o acesso à educação. As organizações
sociais agilizaram-se,
[...] porque não têm políticas públicas que atendam às necessidades agrárias e
agrícolas. Ficamos muitas vezes perguntando como deixamos as coisas acontecerem
do jeito como ficaram e o que eles e os seus antecessores fizeram por essa
sociedade. A própria caminhada de luta ajudou a responder que o grande
responsável pela situação que hoje nós vivemos – a miséria – é a educação, porque
nos iludiram durante todo esse tempo e nós não conseguimos formar nossa cabeça
para desenvolver uma mente para viver melhor. (Assentado/Assentamento
Conquista da Liberdade).
A vida no campo, portanto, passa ao largo da escola e de seus saberes, mesmo
quando, aparentemente, a escola deveria ter se rearticulado para dar respostas às pressões
13
vindas da necessidade de aprender novas técnicas, práticas e manejos da modernização. Essa
modernização é advinda da Revolução Verde, assumida pelas instituições extensionistas da
época, como a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) e a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), capacitando as cooperativas, as empresas
e os vendedores de máquinas e insumos. Essa política vem buscando mudar seu rumo, mas os
assentados percebem que o andamento é lento, porque “[...] o professor e o técnico não
ensinam aquilo que, na verdade, é da nossa realidade. Hoje, como se diz prá nós, são de outras
realidades e com outras práticas, por isso não fecham com as nossas ideias [...]”
(Assentado/Assentamento Passo Dorneles).
A educação do e no campo terá de dar conta de uma nova civilização que está a
emergir, aquela que se funda na liberdade e na igualdade cidadã dos trabalhadores rurais, na
capacitação para a ação e representação política. Sabe-se que dar corpo e alma ao novo pacto
entre a sociedade e a natureza é ir além do rudimentar, mergulhando na rede complexa dos
ecossistemas e das relações sociais. Os movimentos organizam propostas, mas esbarram na
hegemonia política do sistema econômico capitalista,
[...] que vem sendo administrado no país e nos municípios em que a gente vive. Ele
tem uma maneira de conduzir a educação que não é a proposta que a gente dentro do
assentamento acha a melhor, devido a essa questão dentro do nosso município, nós
temos um problema. O prefeito que não abre espaço para colocar as linhas de
propostas que nós esperamos da educação. A educação vem sendo da maneira que
eles pensam. O colégio é dentro do assentamento e a gente não consegue trabalhar a
proposta do Movimento, quando é fora, a gente encontra o mesmo problema. Eles
dão aula da maneira que eles pensam e não a proposta que a organização precisa.
(Assentado/Regional de Piratini).
Também dentro do contexto da educação nacional, ela deve merecer uma atenção
especial, tendo em vista as particularidades que a envolvem, considerando que o universo
rural possui uma dinâmica própria na conjugação do trabalho e da produção, além da
coexistência de valores culturais e de competências específicas dos seus membros. É preciso
que as instituições de ensino e extensão rural desafiem-se a construir uma proposta alternativa
que tenha como objetivo a função pedagógica e formativa tanto dos professores quanto da
assessoria técnica. Os professores e os técnicos em agropecuária, além de terem como
referência o ser humano, a cultura e o meio em que vivem, também devem compreender o
lugar que ocupam numa sociedade dividida em classes, a fim de contribuir na construção de
sujeitos coletivos e no processo de organização do povo.
A urgência de uma política educacional voltada para a sociedade rural com base
num conjunto de experiências deve fundamentar-se nos princípios da solidariedade, da
cidadania e do direito de todos vivenciarem a democracia, a justiça social e o acesso aos
meios de instrução e de formação do ser humano, porque
[...] para nós, os sem-terra, não foi negada só a terra, foi negada a cultura, o acesso à
escola [...]. [...] daí que brota a força e os objetivos das lutas incessantes por uma
escola que venha atender às necessidades do campo. E, ainda mais, os que já estão
assentados, que dela saíram e que estão voltando, porque foi da terra que a vida
deles teve sentido, porque foi ali que aprenderam a observar a natureza, deram os
seus primeiros passos, foi ali que sentiram a vida e de que aquela sociedade estava
esperando algo de novo deles, para que eles pudessem continuar vivendo e
revivendo o seu passado e construindo um futuro cheio de esperanças. A partir
dessas e outras reflexões que a educação da Escola Rural, sobretudo, deve ser no
sentido amplo do processo de formação humana, que constrói referências culturais e
14
políticas para a intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade, visando à
humanidade mais plena e feliz. (Assentado/Assentamento Conquista da Liberdade).
A educação que interessa aos trabalhadores e trabalhadoras do campo, nesta árdua
tarefa de construir um desenvolvimento alternativo, continua sendo a Educação Popular (EP).
A educação/escola não é o sujeito central da transformação, mas a transformação não
acontece sem a educação/escola. À EP no campo cabe inserir-se no processo já existente do
movimento organizado no e do campo que luta pela construção de um modelo alternativo de
desenvolvimento rural, teorizar e praticar uma pedagogia enraizada na vida dos trabalhadores
e trabalhadoras do campo e junto com eles constituir-se num constante exercício reflexivo de
busca de caminhos, trabalhando um projeto educativo contextualizado, que produza, junto
com os educandos, o ensino e a pesquisa relevantes para a intervenção na realidade.
(FUNDEP, 1994).
Nesse contexto, em dezembro de 2001, as Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do Campo foram aprovadas pela Câmara de Educação Básica
(CEB) e Conselho Nacional de Educação (CNE) e, posteriormente, encaminhadas para o
Ministério de Educação e Cultura (MEC), as quais foram homologadas, mas não divulgadas.
A divulgação ocorreu em 3 de abril de 2002 quando elas foram instituídas pela Resolução
CNE/CEB 1 e regulamentadas por quinze artigos. (KOLLING; CERIOLI; CALDART, 2002).
Os cinco elementos essenciais para que a escola do campo cumpra seu papel de inserção
cidadã da população rural na definição dos rumos da sociedade brasileira, baseados pela
Resolução nº 1, são regularizados pelos artigos 4º e 5º - os quais orientam a proposta
pedagógica e organização curricular; o art. 7º - o qual trata da organização do sistema de
ensino e estrutura escolar; os artigos 8º e 9º - que falam da gestão escolar participativa e valor
das parcerias; os artigos 12 e 13 – os quais enfocam a formação inicial e continuada dos
professores e os artigos 14 e 15 – que abordam o financiamento da educação nas escolas do
campo.
Desse modo, um novo projeto de desenvolvimento social para o campo deve
educar para a transformação, ou seja, aperfeiçoar indivíduos capazes de articular teoria com
prática e prática com teoria. Assim, supera-se, historicamente, aquela visão de que a escola é
apenas o lugar de conhecimentos teóricos que depois fora dela é que serão aplicados na
prática. A prática social dos estudantes deve ser a base do seu processo formativo, a matériaprima e o objetivo da educação que se faz.
1.1.1 Educação do e no campo
A urgência de uma política educacional voltada para a sociedade rural com base
num conjunto de experiências deve fundamentar-se nos princípios da solidariedade, da
cidadania e do direito de todos vivenciarem a democracia, a justiça social e o acesso aos
meios de instrução e de formação do ser humano. (LEITE, 1999).
A preocupação apontada pelos camponeses demonstra uma reflexão no ato de
planejar um ensino voltado para o meio rural, porque “[...] a educação na realidade
camponesa se expressa não apenas no espaço escolar, mas nas diversas formas de
manifestação do movimento camponês” (THERRIEN, 1993, p. 8). Uma estrutura curricular
para o ensino rural vai muito mais além de simplesmente elaborar legislações. Desde os anos
30, elas sempre foram pensadas no papel, esbarrando na prática, porque têm no seu bojo
determinações que não vêm ao encontro das expectativas do homem do campo. Elas têm
15
provocado, ao longo dos anos, estudos e pesquisas para elucidar as reais condições de
precariedades por que vêm passando as escolas rurais. (CALAZANS, 1993).
A escola do campo deve criar alternativas para que as pessoas tenham acesso a uma
educação de qualidade em um projeto político-pedagógico que estimule o conhecimento
administrativo e organizacional com “[...] exercícios práticos nas áreas de conhecimentos
necessários ao meio rural como a agricultura, a administração, a contabilidade e outros”
(MORISSAWA, 2001, p. 241).
No atual contexto, a educação que interessa aos trabalhadores e trabalhadoras do
campo continua sendo a educação emancipatória. Ela se expressa pela capacidade de
articulação da formação humana, com os problemas concretos da vida dos trabalhadores e
trabalhadoras do campo, com o movimento de organização e de luta na busca da sua própria
humanização.
Nesse processo, o educador é fundamental, porque só fará esse tipo de educação à
medida que se engajar, junto com seus alunos, na luta pela construção de um projeto popular
para o Brasil. Para acompanhar essa realidade, o professor precisa identificar-se como um
agente da comunidade. Segundo Cunha (1991, p. 169), “[...] é um processo que acontece no
interior das condições históricas em que ele mesmo vive. Faz parte de uma realidade concreta
determinada, que não é estática e definitiva, é uma realidade que se faz no cotidiano”. .
Os movimentos organizados do campo sabem que essa realidade só será possível
com a transformação da direção do desenvolvimento brasileiro e a construção de outro projeto
para o Brasil, a EP. (PALUDO, 2001). Dessa forma, a Escola pública para o meio rural deve
desenvolver um projeto popular que reconstitua a escola pública como um espaço
legítimo de educação de qualidade para o conjunto da população brasileira, tem sido
uma bandeira de luta de uma boa parcela da sociedade organizada. Especialmente de
uma parte significativa dos trabalhadores, em permanente confronto com a política
oficial de desmantelamento do sistema público de ensino e de exclusão escolar de
uma grande maioria da população. (CALDART, 1995, p. 1).
A Escola Pública idealizada pelos movimentos sociais do campo voltada ao
projeto popular de desenvolvimento rural centra-se em princípios filosóficos e pedagógicos.
Os princípios filosóficos baseiam-se na transformação social, cooperação, educação de classe,
valorização do indivíduo e formação da sociedade por meio de valores humanistas e
socialistas. Os pedagógicos buscam relacionar teoria e prática, combinar métodos de ensino e
de capacitação. Educar para o trabalho é vincular educação e cultura, incentivar a autoorganização dos estudantes, gerir democraticamente as escolas, criar coletivos pedagógicos,
incentivar atividades de pesquisa e associar interesses coletivos e individuais. (CALDART,
1995, 2000). A partir desses princípios foi delineada a proposta pedagógica que tem como
finalidade promover a
[...] participação da comunidade e das organizações populares na gestão da escola;
combinação entre estudo e trabalho; ensino voltado à realidade do meio rural e seus
desafios; escola como centro de desenvolvimento cultural; escola como centro de
educação ambiental e vivência ecológica; revelações pedagógicas intencionais à
evolução do caráter e ao desenvolvimento individual de cada aluno; criação de
coletivos pedagógicos; estímulo à auto-organização dos alunos; a escola como
espaço da educação do sonho (reacender a chama da utopia). (CALDART, 1995, p.
2).
16
O debate nos encontros e nas conferências pela proposta pedagógica emitiu um
novo olhar sobre o campo, que passou a exigir políticas públicas e expressões como campo e
educação básica.
Políticas públicas para garantir o direito à educação e a uma educação que seja no
e do campo. No, porque o povo do campo “tem direito a ser educado no lugar onde vive” e
do, pois “tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação,
vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.” (KOLLING; CERIOLI;
CALDART, 2002, p. 26). Visto que a relação organizativa da luta pela terra está ligada de tal
forma com a educação que ambas se reforçam no processo da reforma agrária.
A expressão campo ao invés de rural, já que remete a uma reflexão sobre o
sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam
garantir a sobrevivência desse trabalho. Também porque a educação rural é elaborada para
atender às necessidades do capital, enquanto a educação do campo representa os movimentos
organizados do campo, pois a proposta de educação foi construída por eles próprios. Enfim,
quando se discutir a educação do campo, estar-se-á tratando da educação que se volta ao
conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam camponeses, quilombolas ou
indígenas. (CALDART, 1995 e 2000a).
E educação básica significa a luta popular pela ampliação da escola pública,
desde a educação infantil (de zero a seis anos), embora a legislação atual garanta a
obrigatoriedade do ensino fundamental. Por isso, começa a ser incorporada na cultura do
campo a ideia de que todos devem estudar, pelo menos até a conclusão do ensino médio.
(CALDART, 1995 e 2000a).
O campo da educação foi avançando e, no final de 1996, o Coletivo Nacional do
Setor de Educação/MST decidiu pela criação de Comissões específicas em todos os estados
que tinham regionais do MST. Na trajetória dos debates e das conclusões, a tarefa da
educação assumiu dois caminhos para buscar uma política social, que é a luta pelo direito à
educação e à construção de uma nova pedagogia. Dando continuidade à tentativa de
desenvolver uma pedagogia voltada à problemática do meio rural, em 1997, ocorreu o
Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA). Nesse
encontro começaram a se materializar as ideias que vinham sendo debatidas e experienciadas
desde 1987, mas que passaram a ser articuladas a partir de 1998 com a Conferência Nacional
por uma Educação Básica do Campo.
Os trabalhadores sem-terra, que vêm reivindicando a sua condição de cidadãos,
exigindo mudanças qualitativas em suas vidas, como ressalta Martins (1993 apud
ANDRADE, 1997, p. 244), “[...] querem a reformulação das relações sociais e ampliação dos
direitos sociais”. Dentre esses direitos está o da educação escolar, sendo pensada como um
dos instrumentos mais relevantes para a formação do trabalhador da terra respeitado com
direitos iguais a todo e qualquer cidadão. Na legislação “[...] hão de se entender finalidades e
objetivos da educação, desde os políticos e cívicos até os pedagógicos e didáticos: são as
diretrizes da política educacional, seja exercida por quem quer que o faça, em iniciativa
pública ou privada.” (SILVA, 1998, p. 13).
Diante desse contexto, a sociedade brasileira, através de seus segmentos
organizados do campo, procurou reagir à falta de um plano educacional que leve em
consideração as especificidades do campo. Assim, passou a lutar pela ampliação dos direitos
sociais, escola pública, pelo direito de se tornar cidadão e de viver como ser civilizado e, no
momento atual, pela continuidade de escolas nos acampamentos.
17
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de o Brasil ser desde o período colonial caracterizado por um tripé que
tem como base econômica o latifúndio, a monocultura de exportação e o trabalho escravo, a
educação rural não foi objeto de estudo das constituições para implementar políticas
educacionais para o ensino rural. A ausência de diretrizes, o que salienta a falta de uma
consciência a respeito do valor da educação no processo de constituição da cidadania, ao lado
das técnicas arcaicas do cultivo, que não exigiam dos trabalhadores rurais nenhuma
preparação, nem mesmo a alfabetização, contribuíram para a inexistência de uma proposta de
educação escolar voltada aos interesses dos trabalhadores do campo.
Dessa forma a realidade vivida pelo meio rural demonstra que ele foi desprovido
de todo o tipo de assistência e conforto propiciado à cidade. Isso se refletiu na escola que se
encontra esquecida pelo mundo urbano, relegada à pobreza cultural e material e, ainda,
orientada para o saber e viver urbano. Percebe-se que não houve uma política educacional em
que a escola rural ao preparar para o trabalho tivesse um significado para o campo e que o
trabalho fosse ponto de partida, para, então, oferecer condições a cada um de complementar o
seu fazer-se como pessoa humana, procurando realizar atividades úteis para si e para a
construção de sua comunidade para que dessa forma a formação para o trabalho fosse uma das
etapas de educação. E a partir daí, acontecesse a prática cotidiana, que se desvela na realidade,
enxerga as contradições e faz perceber as relações sociais que se escondem atrás das relações
de trabalho.
Os agricultores através dos depoimentos demonstram que estão conscientizandose dos trunfos que o meio rural pode oferecer a uma estratégia de desenvolvimento baseada na
formação local. As comunidades rurais contam com importantes recursos, que podem ser a
base de aportes chaves para a melhoria da educação rural, pois essas comunidades podem ser
pobres em capital material, mas dispõem de capital humano (com conhecimentos formais e
informais), de capital cultural (normas e visões de mundo em constante evolução) e de capital
social (relações grupais de confiança e cooperação). Essas três formas de capital não material
podem apoiar a acumulação de capital humano formal no campo pedagógico e na gestão,
visando a uma comunidade educacional ampliada. (DURSTON, 1999).
Vê-se que as políticas sociais para o meio rural, entre elas a educação, podem
contribuir na formação de redes territoriais densas e diversificadas, ampliando o capital social
das comunidades locais a partir da criação e do fortalecimento das instituições de ensino. A
falta de uma educação para o mundo rural fez com que este passasse a ser subordinado a um
novo e insustentável padrão de consumo, de caráter eminentemente urbano definido pelas
variações do mercado. O ensino hegemônico, tendo como base o modelo neoliberal, agravou
e acentuou aspectos negativos. Ampliou danos à biodiversidade, a exclusão social, o
extermínio cultural, a dependência das economias nacionais aos capitais especulativos, o
abandono das políticas sociais essenciais à população, a desigualdade de gênero e a falta de
perspectivas para jovens e pessoas da terceira idade.
Nesse contexto, percebe-se que a iniciativa de construir uma proposta de educação
para o campo só ocorreu devido às pressões, às ações empreendidas pelos movimentos sociais
organizados do campo na luta por terra e educação. Estes buscam redirecionar o campo das
forças sociais capitalistas e interferir nas instituições públicas federais, estaduais e municipais.
Visto que, no avanço da construção do Brasil rural, de um campo de vida, a escola é o espaço
essencial para o desenvolvimento humano.
Sendo assim, campo e cidade serão percebidos como espaços geográficos
singulares e plurais, autônomos e interativos, complementando-se através das suas identidades
culturais. Por isso precisam ser compreendidos diante das suas particularidades.
18
REFERÊNCIAS
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social do campo. Brasília: Articulação Nacional por uma Educação Básica do Campo, 1999.
(Coleção por uma Educação Básica do Campo, n. 2).
ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. São Paulo: Vozes, 2000.
BEHRING, Elaine R.; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São
Paulo: Cortez, 2007.
BENJAMIN, César; CALDART, Roseli S. Um projeto popular para o Brasil. Brasília:
Articulação Nacional por uma Educação Básica do Campo, 2000. (Coleção por uma
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