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Boletim
do
CIM
c e n t r o d e
i n f o r m a ç ã o
d o m e d i c a m e n t o
Introdução
Eu, Lemuel Gulliver, observei fenómenos fantásticos em muitos
territórios por onde viajei.
há 50 a 150 anos, muito antes da eclosão das actuais epidemias da
infecção VIH/SIDA.8
As modificações simultâneas dos parâmetros epidemiológicos e
Nesta minha última narrativa, esforçar-me-ei para vos conven-
socioeconómicos na África Central e Ocidental, nomeadamente a
cer de que empreendemos uma dolorosa e nova aventura que, só
urbanização descontrolada e os movimentos migratórios, contribuí-
agora, começa a ser revelada.1
ram para uma maior e mais fácil dispersão, entre as populações, da
Esta minha crónica diz respeito a uma criatura ainda mais peque-
infecção provocada por estes dois vírus.
na do que os Liliputianos, de tal maneira minúscula que é invisível,
chamada – depois de uma disputada discussão entre um grupo de
sábios, em 1986 – Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).1,2
2. Os compartimentos anatómicos onde se concentra
o VIH e sua correlação com a patogénese.
Este vírus invade o corpo humano e corrompe lentamente as suas
defesas3,4 de tal modo que, sem a intervenção dos medicamentos dos
a) Órgãos linfóides
boticários ou de uma vacina, as pessoas infectadas perecerão por
Os reservatórios anatómicos de VIH são constituídos por célu-
causa da invasão de outros micróbios e de um definhamento geral
las-alvo distribuídas pelos tecidos dos diversos compartimentos do
do corpo e da mente,6 uma combinação de padecimentos chamada
organismo.
Síndroma de Imunodeficiência Adquirida (SIDA).7
JULHO/OUTUBRO 2007
As Viagens de Gulliver pelos territórios
do VIH: da patogénese à prevenção
Durante a infecção aguda por VIH, as mucosas são os locais
dominantes de interacção com o vírus. O tracto gastrintestinal e
Onde residem os Vírus da
Imunodeficiência Humana?
outros tecidos linfóides concentram, pelo menos, metade da totalidade das células T CD4+ do organismo. Estas células são predominantemente CCR5+ e muitas delas estão em estado de activação.
1. A origem símia do VIH
A análise filogenética da sequenciação completa dos Vírus da Imunodeficiência dos Símios (VIS), estudados a partir do isolamento vírico
Na infecção aguda o VIH multiplica-se rapidamente e propaga-se
pelo tecido linfóide da mucosa intestinal, perturbando gravemente
e muito precocemente o sistema imunitário.14
de 13 espécies de primatas, os dados epidemiológicos, geográficos
Estudos recentes revelaram que em humanos infectados por
e virológicos sustentam a hipótese da origem símia dos VIH, sendo o
VIH e em primatas não humanos infectados por VIS, a maior parte
Vírus da Imunodeficiência Humana do tipo 1 (VIH-1) filogeneticamen-
das células T CD4+ da lâmina própria e intra-epiteliais é destruída
te relacionado com os lentivírus dos chimpanzés (Pan troglodytes)
nas primeiras semanas após a infecção.14,15 Esta perda das células
– complexo VIScpz/VIH-1 – e o Vírus da Imunodeficiência Humana do
T CD4+ persiste até aos estádios mais tardios da infecção.
tipo 2 (VIH-2) com os lentivírus que infectam os macacos Cercocebus
atys e Macaca spp – complexo VISsm/VISmac/VIH-2.8-10
A depleção acelerada das células T CD4+ das mucosas tão precocemente, no decurso da infecção por VIH, sugere que a contagem
Apesar da sua designação, os VIS, constituídos por uma grande
das células T CD4+ no sangue periférico subestima a magnitude
variedade de vírus que infectam primatas africanos, domesticados ou
da destruição das células T. Estas alterações são responsáveis por
selvagens, não são responsáveis pelo desenvolvimento de uma doença
perturbações acentuadas da homeostase das células T, que carac-
semelhante à SIDA, nem por uma profunda depleção das células T CD4+,
terizam a fase crónica da infecção por VIH.14
mesmo em presença de valores de carga vírica tão elevados quanto
aqueles que se verificam em humanos infectados por VIH.11,12
Assim sendo, a patogénese da infecção por VIH pode ser definida
como um “processo em dois tempos” – a infecção aguda durante
Pelo contrário, a transmissão de VIS a outros primatas que não
a qual o vírus é responsável por uma depleção massiva das célu-
são os reservatórios destes vírus, tais como o macaco rhesus (Maca-
las memória T CD4+ nas mucosas e a infecção crónica durante
ca mulatta) e primatas humanos, provoca uma depleção progressiva
a qual o sistema imunológico disfuncional decai lenta e progressi-
das células T CD4+ e uma elevada susceptibilidade para o desen-
vamente.15
volvimento de infecções oportunistas.13
Na infecção aguda, mas sobretudo durante o estádio de infec-
Estes factos, no seu conjunto, sugerem que tanto a infecção por
ção crónica, a replicação de VIH ocorre também em outros órgãos
VIH-1 como por VIH-2 são zoonoses, isto é, doenças transmitidas
linfóides periféricos. Concentrações elevadas de viriões VIH acu-
dos animais ao homem, em condições naturais.
mulam-se nas células foliculares dendríticas dos nódulos linfáticos,
Análises de mutação genética estimam que a ramificação filogenética dos retrovírus humanos VIH-1 e VIH-2 se teria verificado
as quais se tornam no maior reservatório de viriões infecciosos nas
fases tardias da infecção.14
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BOLETIM DO CIM
O estádio de infecção crónica assintomática resulta da imunoac-
A diversidade genética de VIH é um enorme desafio para os in-
tivação generalizada, processo que se segue após a depleção das
vestigadores que continuam a trabalhar arduamente na investigação
células T das mucosas, embora estudos de experimentação animal
de vacinas contra este vírus.
sugiram que a imunoactivação crónica pode ser consequência da
A estratégia convencional de produção de uma vacina que mi-
replicação de VIH, independentemente da magnitude da destruição
metiza uma infecção natural, induzindo a produção de anticorpos,
das células T CD4+ do tracto gastrintestinal.
revelou-se ineficaz porque este vírus tem a capacidade de escapar
De facto, a tese de que a replicação contínua de VIH parece ser
um requisito obrigatório é reforçada pela constatação de que o seu
controlo, através da terapêutica anti-retrovírica combinada (TARVc),
reverte o processo da imunoactivação.15
à acção dos anticorpos neutralizantes produzidos pela imunidade
natural do hospedeiro.
O desenvolvimento de vacinas que amplifiquem a resposta imunitária celular contra o VIH representa uma outra oportunidade de
investigação. Estes produtos não evitariam a infecção, mas crê-se que
b) Sistema Nervoso Central (SNC)
A capacidade de o VIH causar doença do SNC sugere que este
contribuiriam para diminuir a carga vírica, retardando a progressão
para SIDA e reduzindo a transmissão secundária de VIH.16
vírus pode persistir e multiplicar-se neste compartimento. Variantes
de VIH isoladas no líquido cefalorraquidiano (LCR) dos doentes com
sintomas neurológicos tendem a apresentar um maior tropismo para
os macrófagos do que os vírus circulantes isolados no plasma.
Nota final
Mesmo que uma vacina preventiva ou um microbicida fossem desenvolvidos, seria improvável alcançar taxas de eficácia de 100%.
Em doentes em tratamento com combinações subóptimas, foram
Este facto, em conjunto com o conhecimento de que a circun-
identificados diferentes padrões de mutações responsáveis por re-
cisão masculina oferece uma protecção parcial contra a transmis-
sistência quando são comparados isolamentos víricos simultâneos
são heterossexual de VIH, significa que, no futuro, a prevenção da
a partir de LCR e do plasma, sustentando que o SNC pode actuar
transmissão da infecção por VIH envolverá a conjugação de novos
como reservatório onde este vírus se multiplica, mesmo quando os
métodos com os actualmente disponíveis.
doentes estão em TARVc eficaz.14
Em conclusão, nenhuma medida de prevenção, isoladamente,
será capaz de conter a propagação de VIH.
c) Aparelho Geniturinário
A barreira hematotesticular não impede que o VIH atinja o sémen.
Kamal Mansinho
Verificou-se replicação de VIH nas células T e nos macrófagos presen-
Director do Serviço de Infecciologia e Medicina Tropical
tes no sémen, no epitélio renal e nos linfócitos do colo do útero.
Tal como as variantes víricas isoladas no LCR, a compartimentalização genotípica e fenotípica de VIH isolado a partir das secreções
genitais sugere que os ARVs atravessam com dificuldade a barreira
Hospital de Egas Moniz/ Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, EPE
Professor Auxiliar Convidado
Instituto de Higiene e Medicina Tropical
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade Nova de Lisboa
hematotesticular.
Não é claro se o VIH se mantém em estado de latência no aparelho geniturinário ou se continua a multiplicar-se lentamente. Estes
factos têm implicações não apenas sobre o curso clínico da infecção,
mas também sobre a intensidade de transmissão deste vírus aos
parceiros(as) sexuais.14
Prevenção
Os conhecimentos mais recentes sobre a patogénese molecular
da infecção por VIH e, particularmente, sobre a interacção inicial VIH-células mucosas do hospedeiro abrem uma nova era na prevenção
da transmissão de VIH.
A recente publicação dos resultados dos ensaios sobre a circuncisão
masculina levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a ONUSIDA
a recomendar a circuncisão masculina como uma das intervenções
para reduzir o risco de transmissão heterossexual de VIH.16
Continua a ser urgente desenvolver novas tácticas para prevenir
a transmissão sexual de VIH na mulher e no homem.
Embora os preservativos possam assegurar um elevado nível
de protecção, 80% a 90%, contra a transmissão sexual de VIH,
quando utilizados correcta e regularmente, muitas mulheres e
homens não estão em condições de persuadir o(a) parceiro(a) sexual a usá-los.
Os microbicidas vaginais e rectais são substâncias antimicrobianas para aplicação local que têm como objectivo destruir, bloquear
ou inactivar o VIH, impedindo os mecanismos iniciais de interacção
entre este vírus e as células mucosas do hospedeiro.
Uma esperança mais longínqua para a prevenção da transmissão de VIH é o desenvolvimento de uma vacina eficaz que poderia
proporcionar protecção duradoura contra um espectro alargado de
variantes de VIH em circulação.
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