CONSTRUIR O REGIME REPRESENTATIVO NO BRASIL: MISSÃO IMPOSSÍVEL? Prof. Paulo Kramer (Instituto de Ciência Política da UnB/ O&K – Consultoria) PARA COMEÇAR, COM A PALAVRA... BENJAMIN CONSTANT DE REBECQUE (1767-1830) “O que é o interesse geral senão a transação que se faz entre os interesses particulares? O que é a representação geral senão a representação de todos os interesses parciais que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse geral é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não é contrário a eles. Falase sempre como se uma pessoa ganhasse o que os outros perdem; o geral não é senão o resultado desses interesses combinados; deles difere como um corpo difere das suas partes. Os interesses individuais são os que mais concernem aos indivíduos; os interesses dos distritos são os que mais concernem a estes. Ora, são os indivíduos e os distritos que compõem o corpo político; são, consequentemente,os interesses desses indivíduos e desses distritos os que devem ser protegidos... - continua - - continuação Ao protegê-los a todos, suprimir-se-à de cada um deles o que prejudica aos demais, disso resultando o verdadeiro interesse público, que coincide com os interesses individuais, uma vez que lhes foi tirado o poder de se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos de um Estado levam ao seio da assembleia os interesses particulares, as preocupações locais dos seus representados. Essa base é útil a eles: forçados a deliberarem juntos, logo percebem os sacrifícios respectivos que são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão deles, e nisso reside uma das maiores vantagens da forma de sua designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação consegue um caráter mais geral. [...] - conclui na próxima lâmina - - conclusão Convém que o representante de um distrito atue como órgão do mesmo, que não abra mão de nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão depois de tê-los defendido; que seja parcial na defesa dos interesses de que é mandatário, porque se cada um for parcial nessa defesa, a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos”. Fonte: CONSTANT, B., Princípios de política (1815), apud VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo, Ética empresarial: conceitos fundamentais. Londrina: Humanidades, 2003, pp. 55-56, REPRESENTAÇÃO, LIBERALISMO, EXTENSÃO GRADUAL DO SUFRÁGIO A “DEMOCRATIZAÇÃO DA IDEIA LIBERAL” INSTITUIÇÕES DO REGIME REPRESENTATIVO Primórdios: Inglaterra (1215): Magna Carta - Conselho Geral do Reino, depois Câmara dos Lordes. - meados séc. XIV: Câmara dos Comuns - séc. XVII: conflito religioso e guerra civil (rei X Parlamento). Execução de Carlos I, 1649 - conclusão - Ditadura de Oliver Crowell: 1653/1658 - Revolução Gloriosa (1688/89). Influência de John Locke (Segundo tratado sobre o governo civil). Contra o arbítrio do soberano, um regime submetido à lei. Primazia do Parlamento (Poder Legislativo) Bill of Rights, 1689: Poder Executivo (governo) não pode suspender as leis ou descumpri-las sem consentimento parlamentar. Bill of Rights, 1689. (continuação): Tributação: prerrogativa parlamentar Tamanho do exército em tempo de paz: idem Executivo responsável pela liberdade nas eleições ao Parlamento Imunidade parlamentar no exercício do mandato. Eleições periódicas Mais tarde: anuidade dos impostos (convocação anual do Parlamento); mandato parlamentar de 3 anos. Act of Settlement (Lei Sucessória), 1701: Judiciário independente: juízes vitalícios Guilherme de Orange, o rei holandês levado ao trono pela Revol. Gloriosa, e sua mulher, Maria, não tinham filhos. O pai dela, Jaime II, tinha um filho católico (absolutista). Nova linha sucessória: Ana Stuart, sua prima Sofia, casada com o príncipe alemão Ernesto (eleitor de Hanover) Dinastia de Hanover ocupa até hoje o trono britânico (por causa da guerra, mudou o nome para Windsor) Lei de União, 1707: Reino Unido da Grã-Bretanha (Inglaterra + Escócia). Parlamento único (cadeiras para representantes escoceses na C. Lordes e na C. Comuns). ­ Dinastia de Hanover Jorge I e Jorge II Conselho de Ministros (governo): maioria parlamentar O primeiro ministro e o governo de gabinete (razão do nome) ­ Século XVIII: gradual convergência entre whigs (liberais) – protagonistas da Rev. Gloriosa – e tories (previamente absolutistas) no apoio a governo limitado com base no poder do parlamento. ­ Fiasco do rei Jorge III (independência americana): abandono de pretensões personalistas/absolutistas. ­ Consolidação do regime de gabinete/parlamentarista O rei reina, mas não governa. William Pitt, o jovem (1759-1806). Ameaça da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. ­ A razão para o voto baseado em critério de renda e a extensão gradual do sufrágio. ­ Revolução Industrial: novos interesses se afirmam. ­ A questão dos burgos podres (600 deputados à C. Comuns, 2 por distrito) ­ Reforma eleitoral (proposta whig), 1832: suprimidas 56 circunscrições com menos de 2 mil habitantes. distritos com menos de 4 mil habs.: só 1 deputado. 43 cidades passam a ser representadas. ­ Reforma eleitoral, 1832 (cont.): De 220 mil para 670 mil eleitores. Reformas liberalizantes (comércio, navegação). Grã-Bretanha: potência número 1. ­ Nova reforma eleitoral, 1867 Maior representação para as cidades. ­ 1872: voto secreto ­ 1884: distritos com 1 deputado (eleitorado: 4 milhões) ­ 1918: sufrágio universal – homens (21), mulheres (30 anos), ­ Igualdade homens/mulheres: 1928. ­ Liberalismo = democracia ­ Mandato fiduciário x mandato imperativo (E. Burke) ­ Democratização da ideia liberal: Expansão do sufrágio solidamente desenvolvimento de grupos de interesse associada ­ De blocos parlamentares a partidos políticos modernos. ao AMPLIAÇÃO DO SUFRÁGIO E REFORMA ELEITORAL NA EUROPA CONTINENTAL (ALGUNS EXEMPLOS) FRANÇA (“[...] sempre a mesma revolução” – Tocqueville) ­ Da monarquia constitucional ao jacobinismo democratista (Terror) ­ Restauração Bourbon. Monarquia Orleãs (1830-1848) ­ Segunda república e retrocesso imperial (Napoleão III) Efeito perverso do sufrágio universal prematuro. FRANÇA (continuação) ­ III República (1870 – derrota na Guerra Franco-Prussiana/1870/1940 – invasão alemã e regime de Vichy. Parlamentarismo. Sist. representação proporcional: lista hierarquizada. Revanchismo, imperialismo/militarismo, anticlericalismo ­ IV República (1945-1958) Instabilidade dos gabinetes (representação proporcional) De dez. 46 a maio de 58.: dois gabinetes por ano (média) Crise colonial (Argélia) ­ V República (1958-?) De Gaulle escreve a nova constituição ­ sist. Representação (voto majoritário em dois turnos) ­ Semipresidencialismo (eleição direta a partir de 1962) ­ Plebiscitos. ALEMANHA (voto proporcional, polarização e tragédia) ­ Unificação (1871): Bismarck Sufrágio universal (repres. proporcional) Kaiser: escolha do chanceler (primeiro ministro) e dissolução do Reichstag. Parlamento sem poder sobre o orçamento Poder do Bundesrat (Conselho dos Estados) Antecipação das demandas operárias e proibição do socialismo (PSD) ALEMANHA (continuação) ­ Derrota de 1918 e Const. da República (Weimar), 1919 Semipresidencialismo (eleição presid. direta, 7anos c/ reeleição, Forças Armadas, dissolução do Reichstag, suspensão de garantias) Representação proporcional impediu afunilamento dos interesses e a formação de maioria nítidas. ­ Paz humilhante, hiperinflação (novembro de 1923: 1 dólar = 4,3 trilhões de marcos!) ­ Incapacidade dos partidos liberais, conservadores e da esquerda democrática (PSD expurgado) de formar coalizões estáveis de governo. ­ Proliferação de peqs. partidos. ­ Extremos totalitários: comunistas e nazistas. ALEMANHA (conclusão) ­ Crise de 29/30: desemprego. Receituário da Escola Austríaca (Von Mises). Nada de keynesianismo. ­ Eleições de 32 e 33: Hitler chanceler, desmanche do sist. representativo. ­ Livro de Ferdinand A. Hermens, Democracia ou anarquia: estudo sobre o sistema proporcional (1941) ­ Pós-Guerra: RFA (K. Adenauer). Início da integração européia. Programa Bad Godsberg (adeus, marxismo!). Introd. voto semimajoritário (distrital misto). Claúsula de barreira/desempenho: 5% (somente 4 partidos desde a eleição: de 1976). Voto de censura construtivo. RP ou voto distrital (majoritário)? ­ O trade off: Espelho fiel de todas as nuances do eleitorado? Governabilidade? BRASIL: (construção, destruição, reconstrução da representação) ­ Mortalha de Penélope ­ Independência: Portugal e Brasil sob o signo de La Pepa de Cádiz (Const. liberal espanhola, 1812) Influência da const. monárquica moderada da França/1791 Eleição indireta (votantes e eleitores) Cortes de Lisboa, retorno de D. João VI a Portugal (juntas eleitorais de freguesia, de comarca, de província e, finalmente, os eleitores) BRASIL: (continuação) ­ Constituinte de 1823, Carta outorgada de 1824. ­ Eleição indireta (2 graus): votantes e eleitores. Critério censitário (renda) ­ Monarquia constitucional, e não parlamentar (P. Moderador, Conselho de Estado) ­ Da Regência ao Regresso (sedimentação dos mecanismos do sistema representativo) ­ Alternância entre os blocos Conservador e Liberal (derrubadas) BRASIL: (continuação) ­ Lei Saraiva (1881): fim da eleição indireta. Meras formalidades na verificação da renda. Sistema se tornava representativo dos grupos de interesse (MG, mais urbana: predomínio dos liberais) ­ República: interrupção dessa evolução gradual. BRASIL: (continuação) ­ Militarismo da etapa inicial (Positivismo: a república cientificista acima dos interesses e contra eles) ­ Constituição castilhista (RS) ­ Circulação de elites políticas (dos estadistas do Império aos bacharéis filhos/genros dos grandes cafeicultores) ­ Regime de partido único nos estados (PRs) ­ Políticas dos governadores (Campos Salles) ­ Eleições presidenciais até 1930: eleitorado = -10% pop. BRASIL: (continuação) ­ Revolução de 30 e Ditadura do Estado Novo. Mais um ciclo de modernizaçãodo patrimonialismo (antes: Pombal, no séc. XVIII) ­ Getúlio Vargas implanta nacionalmente o regime castilhista ­ Código Eleitoral proporcional. de 32 (Assis Brasil): representação ­ Estado Novo: 1937-1945. ­ Democratização e Constituição de 46: voto uninominal em lista aberta. BRASIL: (continuação) ­ Regime militar ­ Camisa de força bipartidária (Arena X MDB), sem voto distrital. Remando contra a Lei de Duverger... BRASIL: (continuação) ­ Nova República Manutenção do sistema de voto uninominal em lista aberta O interminável nhenhenhém da reforma política Tentativas mais recentes PLs 2679/03 e 1210/07. BRASIL: (continuação) ­ Substitutivo do relator Ronaldo Caiado (DEM/GO) na comissão especial de reforma política da Câmara ds Deputados. Fim das coligações nas eleições proporcionais Federações de pequenos partidos (duração mínima de 3 anos) Listas fechadas e preordenadas (bloqueadas): voto na legenda e não mais no candidato. Financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais (R$ 7,00 x 130 milhões de eleitores) BRASIL: (continuação) ­ O pacote de reforma política ‘fatiada’ do Executivo (fevereiro/09) PL 4633/09 punição à compra de votos. Federações de pequenos partidos (duração mínima de 3 anos) Listas fechadas e preordenadas (bloqueadas): voto na legenda e não mais no candidato. Financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais BRASIL: (continuação) PEC 322/09: cláusula de barreira/desempenho. Mínimo de 1%dos votos válidos em eleição geral para a CD, distribuídos, pelo menos,em um terço dos estados, com mínimo de meio por cento dos votos válidos em cada um deles. (Acrescenta parágrafo ao art. 17 da CF.) Obs.: a Lei dos Partidos Políticos (9.096/95) previa para 2006 mínimo de 5% dos votos apurados, distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles. BRASIL: (continuação) ­ Na Câmara dos Deputados, começa a surgir um precário consenso em torno de dois pontos: Lista fechada (mas PR, PP, PSB, PTB e parte do PMDB são contra); e Financiamento público Apoio: DEM, PSDB, PPS, PCdoB, PT, parte do PMDB. CONCLUSÕES ­ Sistema representativo Argumento de James Madison no art. Federalista nº 10: república representativa como governo de maior lucidez e espírito público em razão das qualidades superiores dos cidadãos escolhidos pelo povo para dirigi-lo (argumento elitista) Argumento de B. Constant de Rebecque: aumento da pop., da extensão territorial, aprofundamento da divisão social do trabalho (argumento funcional) CONCLUSÕES (continuação) ­ MANIN, Bernard, The principles of government. NY: Cambridge Univ. Press, 1997. representative Os 4 princípios institucionais comuns a todo e qualquer regime representativo: governantes escolhidos em eleições períodicas; independência decisória dos governantes em face dos governados que os elegeram; liberdade de opinião e manifestação política dos governados em face dos governantes; decisões dos governantes submetidas a debate público. CONCLUSÕES (continuação) ­ Bernard Manin, op.cit, e as metamorfoses do governo representativo (cap. 6) Regime representativo restrito (modelo parlamentarista clássico) Governo partidário (sufrágio massas/máquinas burocráticas). “Democracia de audiência” universal, partidos de CONCLUSÕES (continuação) Princípios do governo representativo e suas variações (MANIN, op.cit, p. 235) Parlamentarismo Democracia partidária Democracia de audiência Escolha dos representantes - escolha de candidato de confiança - vínculos locais - notáveis - lealdade a um único partido - expressão de pertinência a uma classe - ativista/burocrata partidário - escolha de cand. de confiança - resposta à oferta eleitoral. - profissional midiático. Autonomia parcial dos representantes - eleito vota conforme sua consciência - líderes partidários determinam prioridades dentro da plataforma/programa - eleição com base em imagens Liberdade da opinião pública - opinião pública e expressão eleitoral não coincidem - a voz do povo “nos portões do Parlamento” - opinião pública e expressão eleitoral coincidem - oposição - opinião pública e expressão eleitoral não coincidem (fragmentação) - pesquisas de opinião Discussão pública - Parlamento - debate dentro do partido - negociações interpartidárias - neocorporativismo - negociações governo/ grupos de interesse - debate na mídia/ eleitor flutuante CONCLUSÕES (continuação) ­ Democracia direta? (plebiscitos, referendos, iniciativas populares) O caso da Califórnia (EUA) (*) 1911 (gov. Hiram Johnson. 2,4 mi habs. Pop. homogênea) 1978 (Proposição 13: limitação drástica de taxas imobiliárias. Revolta fiscal) 2003 (revogação do Schwarzenegger) mandato do gov. Gray Davis, substituído por Arnold Média de 10 consultas populares/ano (limitação de mandatos, duração de penas de prisão, retirada de benefícios assistenciais a imigrantes ilegais, permissão para que tribos indígenas administrem cassinos Etc). ­ Impasse orçamentário no Legislativo decidido por consulta popular em 19 de maio último (dois terços em duas Casas para aumentar impostos e orçar despesas) ­ “Eleição especial” do dia 19: 6 proposições (se aprovadas, déficit de US$ 15,4 bi/ reprovadas, déficit de 21,3 bi) ­ Voto facultativo, participação maciça de extremistas (esquerda/direita) nas convenções partidárias, eleitos fora de sintonia com a maioria da população. (*) “The ungovernable state”, The Economist, May 16th 2009, pp. 33-36. CONCLUSÕES (final) ­ Democracia direta?... Não é uma questão meramente tecnológica! (N. Bobbio) Brasil: PEC 73/05 (sen. E. Suplicy, PT/SP): revogação de mandatos e ampliação do uso de plebiscitos e consultas populares. Possibilidade de recall do presidente e dos congressistas um ano depois da posse (senadores: referendo estadual; deputados federais: se eleitorado nacional decidir pela dissolução da Câmara, nova eleição dentro de 3 meses) Incompreensão da natureza do mandato representativo (fiduciário e não imperativo) Outros: Projeto Dec. Legislativo 519/05, do sen. Almeida Lima (PMDB/SE) convocando plebiscito sobre nova Constituinte. PEC 01/08, do sen. Geraldo Mesquita (PMDB/AC), possibilitando instalação de CPI mediante petição assinada por 0,5% dos eleitores inscritos no último pleito. O que está realmente em jogo é o fortalecimento da representação: partidos sólidos, representantes vinculados aos representados, BIBLIOGRAFIA BÁSICA ­ PAIM, Antonio, Momentos decisivos da história do Brasil. S. Paulo: Martins Fontes, 2000. ­ PAIM, Antonio, O liberalismo contemporâneo, 3ª edição (revista). Londrina: Humanidades, 2007. ­ PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo, Cidadania: o que todo cidadão precisa saber. Rio: Expressão e Cultura, 2002. MUITO OBRIGADO PELA SUA ATENÇÃO!