macbeth uma análise da adaptação do diretor

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FERNANDO HENRIQUE DE OLIVEIRA
MACBETH: UMA ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO DO DIRETOR GABRIEL VILLELA
CURITIBA
2013
FERNANDO HENRIQUE DE OLIVEIRA
MACBETH: UMA ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO DO DIRETOR GABRIEL VILLELA
Artigo apresentado para a obtenção do título
de Licenciado em Letras no curso de
graduação em Letras Português do Setor de
Ciências Humanas da Universidade Federal
do Paraná.
Orientadora: Profa. Liana de Camargo Leão
CURITIBA
2013
RESUMO
Um dos mais consagrados diretores e encenadores do teatro brasileiro
contemporâneo, Gabriel Villela fez sua terceira incursão no universo shakespeariano
em 2012, com a sua adaptação de Macbeth, uma das mais célebres obras de
William Shakespeare, com texto traduzido para o português do original em inglês por
Marcos Daud. Na montagem, Villela imprime suas marcas na encenação do texto,
reduzido a partir de cortes e com algumas liberdades em relação à obra original,
como a inclusão de um narrador na trama. O presente artigo pretende identificar e
analisar as escolhas do diretor para a elaboração de sua adaptação e avaliar de que
maneira essas escolhas interferem ou não na trajetória do personagem título a partir
da estrutura da peça, da natureza do personagem central da obra e o
aproveitamento do texto traduzido por Marcos Daud.
Palavras-chave: William Shakespeare; Macbeth; Gabriel Villela; Marcus Daud.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................
2 NOTAS SOBRE SHAKESPEARE .............................................................................
3 A ADAPTAÇÃO DE VILLELA ...................................................................................
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
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1 INTRODUÇÃO
Há uma estranha e antiga superstição que envolve as encenações de
Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616), principalmente as montagens em
língua inglesa. Diz, a tradição teatral, que a peça, a mais sombria e obscura do
bardo inglês, é cercada de “má sorte”, haja vista os relatos de sucessivos incidentes
desastrosos relacionados às montagens da obra que remontam desde a sua estreia
na corte do Rei James I, sucessor da Rainha Elizabeth I, na Inglaterra do início do
século XVII. Há quem diga, de acordo com LANIER (2006, pp. 22-23), que basta
pronunciar o nome “Macbeth” para que a malfadada sorte se instaure sobre a
produção – o que requer, segundo o autor, “elaborados rituais de exorcismo” para
que possa ser eliminada. É por causa desta superstição que, tradicionalmente, se
refiram a Macbeth como “A peça escocesa” ou “A comédia de Glamis”, em
referência ao país onde se passa trama e ao castelo do trágico herói
shakespeariano respectivamente.
Os desfortúnios ao redor da peça também remontam a um mito inicial
segundo o qual bruxas reais da época de Shakespeare teriam lançado uma
maldição sobre a obra por causa da inclusão de rituais mágicos nas cenas das
“Weird Sisters” (as três bruxas da peça). Verdade ou ficção, fato é que inúmeros são
os incidentes desastrosos, de acidentes e até mesmo mortes a críticas destruidoras,
relacionados a diversas produções da obra “assombrada” ao longo de sua história
(LANIER, 2006, p. 23).
No entanto, a despeito da má sorte associada à peça, Macbeth é uma das
peças mais encenadas de Shakespeare (WILLIAMS, 2006; p. 2). Escrita como uma
homenagem ao Rei James I, possivelmente em 1606, a obra conta com um sem
número de montagens em língua inglesa, além de ter inspirado dezenas de outras
peças, filmes, romances, séries televisivas etc.
No Brasil, não se tem conhecimento de um registro sistematizado de
encenações
da
“penúltima
das
chamadas
‘quatro
grandes’”
tragédias
shakespearianas (HELIODORA, 1995, p. 175). Entretanto, nos últimos três anos,
Macbeth ganhou duas importantes montagens no país, dirigidas por grandes nomes
do teatro brasileiro: a de Aderbal Freire-Filho, em 2010, e a de Gabriel Villela, em
2012, sobre a qual se debruça o presente artigo.
6
Com elenco exclusivamente masculino e estrelada pelos atores Marcello
Antony, no papel-título, e Claudio Fontana, como Lady Macbeth, Macbeth, de Villela,
estreou em São Paulo (SP), onde cumpriu temporada de 1º de junho a 22 de julho
de 2012 no Teatro Vivo, e depois seguiu em turnê por diversas capitais brasileiras,
incluindo Curitiba (de 26 a 28 de outubro, no Teatro Bom Jesus). Elogiada pela
crítica nacional – exceto por Barbara Heliodora, crítica de teatro do jornal O Globo,
do Rio de Janeiro, e, talvez, a maior autoridade em Shakespeare do Brasil – a
adaptação de Villela do texto original, traduzido por Marcos Daud, trazia uma
estética visualmente arrojada, com inspirações barrocas e elementos do teatro nô, e
a inclusão, controversa (para a crítica), de um narrador inexistente na obra de
Shakespeare.
O texto levado ao palco por Villela priorizava a ação descrita na peça,
eliminando aspectos secundários do original – o que permitiu que a montagem
tivesse uma duração enxuta para os padrão shakespearianos (75 minutos no total).
A edição do texto também levou a uma diminuição no número de personagens,
passado de mais de 30 no original, entre os personagens centrais e coadjuvantes,
para cerca de 13 na montagem, interpretados pelos oito atores em cena – só se
preservam nos seus papeis Antony e Fontana (Macbeth e Lady Macbeth,
respectivamente).
De acordo com o crítico do jornal A Folha de São Paulo, Luiz Fernando
Ramos, a adaptação de Villela reduziu as situações dramáticas de modo que a
trama se “desenhasse com clareza” sem que o aspecto essencial da obra fosse
eliminado. A “narrativa compacta e cristalina”, segundo ele, é um dos elementos do
êxito da peça que, também, “dialoga de modo criativo com a rica tradição
shakespeariana” (RAMOS, 2012).
Mas, afinal, o que viria a ser a “tradição shakespeariana”? Defini-la não é
tarefa fácil. Sem um registro das montagens originais, pelo menos no caso de
Macbeth, o que se tem são associações e hipóteses do que poderia ou não ser
considerado tradicional em matéria de adaptações da obra de Shakespeare. A
“tradição das interpretações” (PAVIS, 1996, p. 126) pode indicar o que já foi
realizado em termos de encenação, mas não estabelece, propriamente, a forma
como deve ser concebida uma montagem, ainda mais quando um mesmo texto
sofre diferentes transformações ao longo da história.
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No caso de Macbeth, a primeira encenação documentada da peça é de
1611 – ou seja, cinco anos depois da sua provável primeira montagem, em 1606 –
no Globe, o teatro de Shakespeare em Londres, e atribuída a Simon Forman, que a
descreveu em seu diário. Forman, porém, não menciona, “impressionantemente”,
algumas cenas emblemáticas, como a inicial, com as três bruxas, na primeira cena
do primeiro ato (Ato I, Cena i), e a do caldeirão com as profecias associadas à morte
de Macbeth (IV, i), o que leva a crer que as montagens da peça neste período não
as incluíam (WILLIAMS, 2006; p. 2).
O corte de cenas que caracterizam a obra em encenações no teatro do
próprio Shakespeare, segundo WILLIANS, evidencia que, desde o início, o texto já
sofrera adaptações radicais. Isto é, a utilização integral do texto não institui a
tradição em torno da obra caso ele, o texto, fosse utilizado como um dos objetos
para a definição de tal tradição.
Esta perspectiva é importante, justamente, para analisar um dos aspectos
negativos que a crítica Barbara Heliodora aponta sobre a montagem de Villela: os
cortes operados pelo encenador do original que deixaria o texto da peça
“irreconhecível” como sendo Macbeth (MERTEN, 2012). Esta é uma opinião
possível: ao operar sua adaptação, Villela retira partes importantes para a
caracterização dos personagens, por exemplo, como trechos que revelam conflitos
“espirituais” que assaltam o protagonista, partes estas que a tradição crítica – aqui
sim a tradição se trona possível – costuma identificar como essenciais ao texto.
Barbara Heliodora é, no Brasil, uma das principais referências sobre
Shakespeare. Além de crítica, é também tradutora da obra do bardo inglês e
ensaísta. É, por fim, uma autoridade em assuntos shakespearianos e uma das
principais referências para este artigo. Todavia, a avaliação que ela faz da
montagem de Villela tem, ao menos, uma utilidade: indicar, sem ser preciso um
grande apanhado de evidências, que a tradição que se estabelece sobre
Shakespeare – e, no caso, Macbeth – está associada não aos originais, mas ao que,
ao longo da história, foi sendo dito a respeito da obra do poeta.
Tendo isso em vista, o que se propõe no presente artigo não é uma crítica
sobre a montagem de Gabriel Villela, nem determinar se ela se enquadra ou não
nesta “tradição shakespeariana” da que falam os críticos, mas identificar as escolhas
do diretor para a elaboração da sua adaptação da peça de Shakespeare, buscando
avaliar de que maneira essas escolhas interferem – ou não – na trajetória do
8
personagem título de Macbeth a partir da análise da estrutura da peça, da natureza
do protagonista e do aproveitamento do texto traduzido por Marcos Daud a partir do
original em inglês. Com esta análise, não se pretende justificar ou rechaçar a opinião
de Barbara Heliodora ou de quaisquer outros críticos, mas apenas identificar de que
maneira a adaptação está próxima ou distante do texto original de Macbeth.
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2 NOTAS SOBRE MACBETH
Parte da tradição crítica sobre Shakespeare costuma apontar a ausência de
cenas na versão de Macbeth que conhecemos hoje para justificar a extensão da
peça, a menor, em termos de extensão, das tragédias shakespearianas e uma das
menores peças do poeta. No entanto, segundo HELIODORA (1995, p. 175), “a
opinião mais geralmente aceita seja de que a peça foi terminada um pouco às
pressas”.
Provavelmente, diz HELIODORA (1995, p. 175), o texto que conhecemos
hoje foi copiado de um prompt-book, o livro de contrarregra, os seja, já como roteiro
do espetáculo depois dos ensaios, e publicado pela primeira vez em “Mr. William
Shakespeare Comedies, Histories, & Tragedies”, popularmente conhecido como
Primeiro Fólio [First Folio]. A obra, impressa em 1623, reuniu pela primeira vez todas
as 36 peças conhecidas de Shakespeare até então em um único documento e é
notável por preservar o texto de, pelo menos, 17 peças do poeta inglês que, talvez,
não chegariam à posteridade, como é o caso de Macbeth e outras obras
importantes, como A Tempestade, Júlio Cesar e etc. (PROUTY, 1954, p. vii).
A razão da “pressa” para a finalização de Macbeth a que se refere
HELIODORA se deve a uma apresentação na corte de Jaime I, por ocasião da visita
de Cristiano IV, rei da Dinamarca, à Inglaterra em 1606. Não há uma informação
clara, segundo a autora, de que Macbeth tenha sido mesmo escrita neste ano, mas
“não faltam indícios nesse sentido”, como as festas na corte para receber o
convidado dinamarquês (HELIODORA, 1995. P.175).
Fato é que, para a tradição crítica, Macbeth apresenta não só uma extensão
menor se comparada a outras peças de Shakespeare, mas também alguns
problemas. “Na verdade, no último ato aparecem alguns versos até simplórios se
comparados com o resto da peça e outras obras da mesma época, enquanto a
própria ação é levada um pouco precipitadamente para a conclusão.” (HELIODORA,
1995, p.175). Além disso, há evidências de que Shakespeare, para concluir a peça,
tenha recebido a colaboração de outro dramaturgo da época, Thomas Middleton,
que teria sido, segundo muitos estudiosos, o responsável “pelo quinto ato e seus
problemas” (HELIODORA, 1995, p. 175).
De qualquer forma, segundo BLOOM (1998, p. 634), Macbeth “apresenta
uma espantosa unidade de enredo, personagens, tempo e lugar, costurados com
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mais perícia do que em qualquer outra peça shakespeariana”. Nela, conjugam-se
uma série de elementos de ordem física e psicológica para retratar a ruína do seu
herói trágico que, para atender a ambição que se instaura por meio de uma profecia,
comete diversos crimes para assumir o trono da Escócia e é atormentado pela culpa
até a sua morte.
Para HELIODORA (1995, p. 176; 2004, p. 159), Macbeth é uma investigação
sobre a natureza do mal e tem como fonte dois textos anteriores: as “Crônicas da
Inglaterra Escócia e Irlanda”, de Raphael Holinshed, publicada em 1577 e que
serviram de base para muitas das peças de Shakespeare; e “História e as Crônicas
da Escócia”, de John Bellenden. Macbeth, o protagonista, é inspirado em um
personagem real. A linha geral da peça tem como base o reinado do Macbeth real
descrito por Holinshed, “mas para o episódio da morte de Duncan ele [Shakespeare]
aproveitou o relato do assassinato de um rei mais antigo, Duff, por Donwald. Este
último, segundo Holinshed, foi, como Macbeth [o personagem], encorajado por uma
mulher ambiciosa” (HELIODORA, 1995, p. 176).
Segundo a autora, Jaime I, que assumira o trono inglês em 1603, era
escocês e, possivelmente descendente de Banquo, fiel amigo e irmão de armas de
Macbeth que, diferente deste, não seria rei, mas pai de muitos reis, conforme
profetizam as três bruxas na peça. Quando escreveu a obra, Shakespeare, de
acordo com HELIODORA (1995, p. 176), “continuava profundamente envolvido com
suas investigações sobre a natureza do mal e sobre os vários modos pelos quais o
homem lida com a presença deste em sua existência”. Para a homenagem ao novo
rei, o poeta foi buscar nas crónicas “o rei ou o reino por intermédio do qual lhe seria
possível dizer o que queria e, a partir desta base, manipulou os fatos segundo suas
necessidades, já que o que escrevia não era história e sim teatro.”
Inspirações à parte, Macbeth, de Shakespeare, não é, como reflete a autora,
“uma mera história de um criminoso”. Pelo contrário. Na peça, o que importa é
“acompanhar a terrível trajetória de um homem cheio de qualidades, bom súdito e
melhor general, que a certa altura é dominado pela ambição.” O que importa a
Shakespeare, segundo a crítica e ensaísta, “é o processo por que Macbeth passa
até poder reavaliar seus atos com maior sabedoria que seu ponto de crise, sua ação
crítica – o primeiro assassinato (...)” (HELIODORA, 1995, p. 177).
Divida em cinco atos, conforme a impressão no Primeiro Fólio, Macbeth
apresenta uma estrutura que muito vai dizer, segundo KERMODE (2006, p. 290),
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sobre o caráter específico da linguagem de Shakespeare na peça. Esta estrutura
pode ser dividida em cinco partes, não necessariamente ligadas a cada um dos atos.
Elas se estabelecem da seguinte maneira: a primeira, que vai do encontro de
Macbeth com as três “weird sisters”, na (Ato I, Cena iii), até o assassinato de
Duncan (II, ii); a segunda, que contemplaria as maquinações para o assassinato de
Banquo e seu filho Fleance (III, i) até a consequente morte do leal amigo de Macbeth
e a fuga de seu filho (III, iii); a terceira, que reuniria toda a cena do banquete no
palácio de Macbeth para comemorar a sua coroação como rei e a aparição do
fantasma de Banquo (III, iv); a quarta, que engloba o segundo encontro de Macbeth
com as bruxas (IV, i) e a arquitetura do plano para a recuperação do reino pelos
herdeiros reais de Duncan com a morte de Macbeth ao longo do quarto ato; e a
última parte, que contempla a famosa cena de sonambulismo de Lady Macbeth (V, i)
e o assassinato de Macbeth (V, x).
De acordo com KERMODE (2006, p. 290), “desde a primeira sugestão de
um plano contra a vida de Duncan até seu assassinato, a peça tem lugar em um
mundo de dúvida e decisão”. Para HELIODORA, é a partir do assassinato de
Duncan que “Macbeth envereda pelo caminho que a distingue de todas as outras
tragédias [de Shakespeare], ou seja, as consequências do crime para a experiência
de vida do criminoso” (1995, p. 178).
Ainda segundo HELIODORA (2004, p. 169), “o que mais claramente
configura a natureza do mal em Macbeth são as inúmeras transgressões à lei
natural, todas elas favoráveis à morte e não à vida”. E se, para a autora, a questão
fundamental da peça é a investigação de como o mal se opera no personagem
central da obra, “isto exige que determinada forma seja imposta à estrutura
dramática da obra, à maneira pela qual o autor arma a trajetória do seu protagonista.
A investigação do processo de desintegração do criminoso como consequência
direta do seu crime é o cerne do significado de Macbeth.”
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3 A ADAPTAÇÃO DE VILLELA
No aspecto temático, portanto, o assassinato de Duncan define duas
trajetórias do personagem central da peça.
A grande confrontação do bem com o mal existe, essencialmente, no
protagonista, e como a obra, a partir da Cena II do Ato II, será integralmente
dedicada à investigação de Macbeth quando sua metade má assume o
controle da sua personalidade, era necessário que todo o ato inicial fosse
gasto para representar, primeiro, a imagem positiva e heroica de Macbeth,
e, a seguir, o período conflituoso que o mostra em sua transição de herói
para assassino e tirano. Era preciso mostrar Duncan como bom governante,
justo e benevolente, pronto a reconhecer e premiar os bons atos de seus
súditos [...] Macbeth não só mata, como também, mais grave ainda,
transgride três circunstâncias básicas: mata um rei, um parente e um
hóspede. Incluindo a vítima nas três categorias, Shakespeare faz o crime de
Macbeth atingir a ordem do Estado, da família e da sociedade.
(HELIODORA, 2004, p. 170).
A perspectiva apresentada por HELIODORA coloca em paralelo duas
naturezas opostas – a do bem e a do mal – que, de alguma forma, indicam os
conflitos morais do personagem central depois do momento decisivo da trama. Esta
consciência da responsabilidade sobre a ação crítica (no caso, o assassinato de um
rei) em uma história que tem como foco um único personagem – e que o conduz a
sua própria morte – é o que caracterizaria, em resumo, o herói trágico
shakespeariano e diferenciaria as tragédias do poeta inglês das tragédias gregas
segundo HELIODORA (1995, pp. 184-187).
Esta dualidade de naturezas visualizadas no personagem título e
apresentada por HELIODORA (2004) é um dos elementos que Gabriel Villela
preserva na sua adaptação de Macbeth, mesmo que, em sua montagem, o diretor
reduza as situações dramáticas existentes no texto original, como coloca RAMOS
(2012). A eliminação de partes do texto integral da peça pelo encenador, no entanto,
não comprometem a estrutura principal da obra – as cinco partes anteriormente
descritas. A estrutura, neste sentido, é preservada e as escolhas do diretor, ao
eliminar situações dramáticas do texto original, sugerem que o seu objetivo
concentrar-se nos próprios elementos de ação presentes na peça e que definem a
sua estrutura, como já apresentado.
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Com Macbeth, Gabriel Viellela faz sua terceira incursão por um texto
shakespeariano. Considerado um dos mais importantes diretores e encenadores do
teatro brasileiro contemporâneo, Villela montou Romeu e Julieta com o Grupo
Galpão, de Minas Gerais, em 1992 – trabalho retomado em 2012 em comemoração
aos 20 anos do espetáculo que, inclusive, foi apresentado no Globe, em Londres. A
segunda passagem pelos textos de Shakespeare foi Sua Incelença, Ricardo III,
adaptação feita para o grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN). Para parte dos
críticos, a montagem de Romeu e Julieta é, até hoje, uma das mais importantes e
bem-sucedidas montagens de Shakespeare no Brasil – e uma das mais importantes
do teatro brasileiro da década de 1990.
Um fator que se destaca nas três montagens de Villela dos textos
shakespearianos é sua assinatura da encenação, isto é, “a atividade que consiste no
arranjo, num certo tempo e num certo espaço de atuação, dos diferentes elementos
de interpretação cênica de uma obra dramática” (VEINSTEIN, apud PAVIS, 1996, p.
122). Tal encenação estaria, inclusive, de acordo com ALVES JR (2012), acima do
próprio texto e do elenco exclusivamente masculino – o que remonta ao teatro
elisabetano e, portanto, à época de Shakespeare, na qual apenas homens exerciam
a atividade de ator. Ou seja, as escolhas do encenador, esta figura importante desde
a metade do século XIX e responsável pela transposição de um texto para a cena,
ou melhor, “encarregada de montar uma peça, assumindo a responsabilidade
estética e organizacional do espetáculo” (PAVIS, 1996, p. 128) dizem mais sobre o
texto encenado do que, simplesmente, o próprio texto.
Nas montagens de Romeu e Julieta e, principalmente, em Sua Incelença,
Ricardo III, o que o diretor realiza, mais do que uma adaptação, é uma apropriação
do texto de forma a traduzi-lo a um novo contexto, no caso o do sertão, como aponta
LEÃO (2011). Não seria este o caso de sua montagem de Macbeth, um clássico
absoluto de Shakespeare que Villela não ousa traduzir para um novo contexto.
PAVIS aponta uma dificuldade em encenar textos clássicos. Por se tratarem
de obras mais antigas “e dificilmente aceitáveis hoje sem uma certa explicação
quase que obriga o encenador a tomar partido quanto à sua interpretação ou situarse na tradição das interpretações” (1996, p. 126).
Como já mencionado, Macbeth possui uma longa história de encenações
desde que fora escrita em, possivelmente, 1606. No entanto, não há indícios de
como se dera a primeira encenação. Montagens posteriores no Globe, teatro que
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pertencia a Shakespeare, revelam que o texto sofrera alterações e interferências,
como a descrita por Simon Forman em 1611, o que indica que o caminho das
interpretações ao longo da história da peça passa, necessariamente, pelo processo
de adaptação.
Segundo PAVIS, a adaptação (ou dramatização) “tem por objetivo os
conteúdos narrativos (a narrativa, a fábula) que são mantidos (mais ou menos
fielmente, com diferenças às vezes consideráveis).” Neste sentido, é possível fazer
todas as operações textuais, desde cortes até a inclusão de novos elementos. “A
adaptação (...) goza de grande liberdade; ela não receia modificar o sentido da obra
original, de fazê-la dizer o contrário (...). Adaptar é recriar inteiramente o texto
considerado como simples matéria.” (1996, p. 10). Isto se aplica tanto na adaptação
de um gênero para o outro (um romance para o teatro, por exemplo), como também
a recriação de um mesmo texto teatral.
Uma das particularidades dos textos shakespearianos é a sua concepção de
acordo com o palco em que eram ocupados. Outra é o convite à imaginação.
“Shakespeare (...) tinha plena consciência de que nada que se apresente em um
palco pode ser comparável à imaginação incorpórea de cada um” (HELIODORA,
2004).
Ainda segundo HELIODORA:
O caso mais notável de apelo à imaginação em toda a obra de Shakespeare
(...) aparece em Henrique V, única peça em que o poeta cria cinco prólogos,
um no início de cada ato, compostos especificamente em torno da ideia de
provocar a imaginação da plateia para complementar o que se apresenta no
palco. É justamente a mobilidade de ação permitida pelo palco elisabetano
que induz a criação desses prólogos (2004, p. 54).
É como se, com tais prólogos e valendo-se de uma frase de KERMODE
(2006. P. 59), Shakespeare lembrasse a todos “de que, ao entrarmos em um teatro,
temos de aceitar o que o teatro nos oferece”. No primeiro dos seus cinco prólogos, o
narrador (coro) de Henrique V deseja “uma musa de fogo” para “escalar o céu mais
rutilante da invenção” e ter “por teatro, um grande reino, príncipes como atores” e
evoca a imaginação para que o público possa suprir “com pensamentos” as
“imperfeições” daquilo que é levado à cena:
Se de uma musa de fogo eu dispusesse
para escalar o céu mais rutilante
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da invenção! Por teatro, um grande reino,
príncipes como atores, e monarcas
para a cena admirável contemplarem!
Então viria o belicoso Henrique
tal como é mesmo: qual um novo Marte.
Como cães ajoujados, em seu rastro
seguiriam a fome, a espada e o fogo,
pedindo ocupação. Mas meus amáveis
espectadores, perdoai o espírito
pouco altanado que a ousadia teve
de evocar tal assunto em tão ridícula
armação. Poderá esta pequena
rinha de galos abranger os vastos
campos da França? Ou nos será possível
pôr neste O de madeira os capacetes
que os ares de Azincourt aterroraram?
Oh, mil perdões, que uma figura curva
Representa milhões em pouco espaço.
Por isso, permiti que nós, os zeros
Desta importância imensa, trabalhemos
Por excitar a vossa fantasia.
Imaginai, portanto, que, reunidos,
contemplais no interior deste recinto
dois possantes impérios, cujas frontes
confinantes e altivas, separadas
se encontram pelo oceano estreito e inçado
de perigos. Supri com o pensamento
nossas imperfeições. Cortai cada homem
em mil partes e, assim, formai exércitos
imaginários. Quando vos falarmos
em cavalos, pensai que à vista os tendes
e que eles as altivas ferraduras
na terra branda imprimem, pois são vossos
pensamentos que a nossos reis, agora,
hão de vestir, levando-os para todos
os lados, dando saltos pelo tempo,
concentrando numa hora do relógio
fatos que demandaram muitos anos.
Porque nos saia bem todo este agouro,
permiti que eu vos sirva ora de coro
e vos impetre paciência expressa
para julgardes esta nossa peça. (SHAKESPEARE, 2008, p. 217)
Em seu Macbeth, Villela introduz um prólogo não existente no texto original.
Mais exatamente, adapta o prólogo inicial de Henrique V para as circunstâncias
próprias de Macbeth e, assim como drama histórico, convoca o público a preencher,
com a imaginação, as lacunas da encenação:
Tivesse eu uma musa flamejante que ascendesse aos céus da intenção. O
reino da Escócia como palco. Príncipes e reis como atores (...). Multiplicai
oito atores por mil vozes e criai um exército capaz de abater o poderoso
Macbeth. Figurai bruxas, fantasmas, luz e trevas e quando chegar o
momento, permiti que uma grande floresta caminhe em direção ao castelo
real. Suprime minha insuficiente retórica com vossos pensamentos e deixai
que nossa fábula se instale em vossos corações. Imaginai!
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O prólogo não é o único elemento introduzido por Villela na montagem.
Quem o pronuncia é um narrador, inexistente no original e uma inovação em termos
de estrutura dramática da obra. Villela já havia explorado a figura do narrador em
Sua Incelença, Ricardo III e, antes, em Romeu e Julieta – neste último caso, o
narrador já existia na obra original. A recorrência, no caso, faz crer que, das marcas
de encenação próprias do diretor, em matéria de adaptações de Shakespeare, o
narrador torna-se elemento cativo.
À margem da ação da peça, o narrador de Macbeth assume uma posição de
destaque na cena, visualizada imediatamente a partir de sua introdução no palco:
trajando um longo vestido de veludo e segurando um grande guarda-chuva, ambos
vermelhos, ele é um elemento distinto na ambientação criada pelo encenador.
De acordo com PAVIS, o narrador não intervém no texto da peça, exceto em
ocasiões distintas, como o prólogo, como acontece na montagem de Villela, ou o
epílogo. Como personagem da peça, é ele “que se encarrega de informar os outros
caracteres ou o público contando e comentando diretamente os acontecimentos”
(2011, p. 258).
No Macbeth de Villela, o narrador também assume as falas de outros
personagens, fazendo as vezes do capitão da segunda cena do primeiro ato, ou de
Macduff na quarta cena do segundo ato, dentre outras. Esta incorporação de falas
de outros personagens, que coloca esta figura destoante de todo elenco em cena,
no entanto, está de acordo com o revezamento dos oito atores em diversos
personagens.
Além do prólogo, o narrador só assume o papel de narrar em dois outros
momentos. No primeiro, para indicar uma conversa paralela entre Malcolm e
Donalbain, filhos do rei Duncan, logo após à revelação do seu assassinato. Diz o
narrador: “Malcolm e Donalbain, os filhos do rei, conversam em segredo”. Esta
indicação se faz necessária para estabelecer quem são os personagens que
conversam em separado – uma vez que a troca de atores nem sempre caracteriza
quem são os personagens em cena – em um momento em que vários deles
encontram-se no palco.
O outro momento em que o narrador assume sua condição de se dirigir ao
público é na última cena do terceiro ato (III, v), caracterizado pelo banquete no qual
Macbeth é atormentado pela visão do fantasma de Banquo. Tal cena traz um diálogo
17
entre um nobre e Lennox, um dos barões escoceses, no qual a narrativa de fatos
passados e presentes é colocada apenas na voz do narrador, com pequenos cortes
de texto para que este elemento seja coerente.
Narrar aquilo que não pode ser encenado é uma das atribuições mais
frequentes do personagem-narrador (PAVIS, 2011, p. 258) e, no caso específico da
peça, ela se confirma nesta cena em que a narração é o ponto principal do diálogo.
Além desses dois momentos, o narrador também anuncia o início do terceiro ato, no
qual ocorre o assassinato de Banquo (“Terceiro ato: assassinato encomendado” é a
fala pronunciada).
Para o crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo, Luiz Carlos
Merten (2012), o narrador, ao segurar, constantemente, um livro na mão, “vira o
próprio conceito da encenação”, na qual se vê a montagem sair da página e voltar
para ela. Há dois momentos em que se percebe esta possibilidade de análise: na
segunda cena do primeiro ato, quando o rei pede para que levem o capitão ferido
para os médicos – chega-se ao narrador, arranca-se uma folha do livro e a folha
representa o capitão – e após a cena de sonambulismo de Lady Macbeth (V, i), em
que ela, a personagem, enfia-se por de baixo da saia do narrador, que sofre com
este acontecimento.
Para RAMOS (2012), o narrador introduzido por Villela caracteriza a opção
do diretor de contar mais do que dramatizar a história. No entanto, a distinção entre
narração e o dramatização não é de todo clara, uma vez que poucas são as
situações de narrativa assumidas pelo narrador. Esta função não se estabelece nem
mesmo quando há cortes generosos do texto original e eliminação integral de cenas
(III, ii; III, iii; IV, ii), o que leva a considerar que o narrador – tão peculiar em relação
à toda a concepção da peça – cumpra um papel que é mais alegórico ou mítico (até
pelo figurino que apresenta) do que, propriamente, efetivo em termos de estrutura e
concepção cênica.
De qualquer forma, os críticos apontam, em geral, para o caráter narrativo
ou a valorização da narrativa na peça em detrimento de uma interpretação realista,
como destaca LEMENTY (2012). Gestos e movimentos ficam contidos enquanto que
o texto, segundo a crítica de teatro do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, Helena
Carnieri, é “entregue quase que sem roupagem”. Em relação à movimentação em
cena, como já mencionado, a contenção determina a encenação, em movimentos
militarizados, exceto as bruxas, o narrador e Lady Macbeth, que ganha nuances
18
próprias do teatro nó, num quase levitar por sobre o palco de acordo com MERTEN
(2012).
Se há contenção em cena, ela não é percebida em relação ao texto levado à
cena. Os cortes empregados por Villela passam a ser empregados a partir do
segundo ato. Em momentos de grande tensão do texto (atos II e III, por exemplo), há
a supressão de partes das falas ou de falas inteiras. Por vezes, há supressão de
cenas completas, como já mencionado. Os cortes dão, nitidamente, a impressão
pela agilidade do texto levado ao palco e para maior dinamismo da ação, valorizada
pelo encenador, como destaca RAMOS (2012). No entanto, como coloca CARNIERI
(2012), os cortes levam a um não entendimento do texto encenado, apesar da
tradução de Daud valorizar a compreensão.
Esta compreensão se dá pela opção do tradutor (Daud) em ter como registro
a prosa ao invés dos versos presentes na obra original. Shakespeare, como aponta
QUELUZ (2011, p. 87), escrevia suas peças em pentâmeros iâmbicos (versos com
cinco pares de sílabas átonas e tônicas, ou curtas/longas), por vezes intercalados
por textos em prosa, o que leva, nas traduções da obra de Shakespeare em
Português Brasileiro, ora a versões em versos, ora em prosa – como acontece na
versão utilizada por Villela. Ao tornar mais coloquial a linguagem “extremamente
densa e cheia de recursos marcantes no uso de sons e imagens, além de jogos de
palavras, aliterações e brincadeiras tanto sonoras quanto semânticas” (MARTINS
apud QUELUZ, 2011, p. 88) que se percebe no texto original, Daud confere à sua
tradução uma clareza que aproxima o texto do espectador contemporâneo, o que
permite, como atesta CARNIERI que, diferente da tradução em versos de
HELIODORA (1995), a torná-lo mais compreensivo para a plateia.
Se o texto valoriza a compreensão, a sua encenação, no entanto, não
parece tão clara, como aponta a crítica. A clareza do texto encenado se perde por
duas razões principais: os cortes operados, que por vezes eliminam partes célebres
da obra original, como pondera HELIODORA (2012) em sua crítica sobre a peça
publicada no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e pela não distinção clara dos
personagens quando um mesmo ator assume mais de um papel em diferentes
momentos da peça. HELIODORA ainda aponta para um fator importante: embora o
texto seja claro, as marcações da direção obrigam os atores a declamar o texto ao
invés de interpretá-lo e “em vários momentos é de lastimar que não possa vir à tona
a emoção que os principais atores obviamente poderiam transmitir” (HELIODORA,
19
2012). Estes fatores comprometem, nitidamente a encenação, somado ao fato de
que outros elementos, como o narrador, não parecem estar de todo consistentes na
montagem.
20
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De qualquer forma, embora reduza as situações dramáticas existentes no
texto original, como coloca RAMOS (2012), em busca da agilidade do texto levado à
cena e com foco na ação presente no texto original, Gabriel Villela não elimina
partes fundamentais da obra de Shakespeare. Atento à questão da dualidade da
natureza do personagem, salientada por HELIODORA (2004), o diretor preserva os
elementos textuais que evidenciam as crises de consciência e culpa experimentadas
por Macbeth ao longo da peça. O monólogo de Lady Macbeth no seu sonambulismo
(V, i) também é preservado – a cena só elimina o diálogo do médico com a dama de
companhia da rainha presente no texto original.
Os cortes empregados também não comprometem a estrutura principal da
peça, com suas partes mais relevantes. Neste sentido, como salienta CARNIERI
(2012), há um comprometimento de sentido, mas não de estrutura propriamente. O
elemento destoante, inclusive na encenação, é o narrador introduzido por Villela. Ele
causa grande impacto visual e participa da cena como observador, mas seu papel
não parece ser explorado em totalidade e, sua função, não delineada de modo a
preencher as lacunas que o texto encenado apresenta.
Ainda assim, Macbeth, de Villela, pode ser considerado uma adaptação
engenhosa e eficiente da peça de Shakespeare. Isso porque, se o aproveitamento
do texto, como visto, não é integral e frágil em alguns momentos, a encenação, a
despeito da qualidade dos seus atores (Antony, no papel de Macbeth, recebeu
comentários negativos de alguns críticos pela sua atuação, mas foi elogiado por
HELIODORA), justifica as opções tomadas em relação ao texto original, além de
imprimir a marca pessoal de Villela em mais um texto do bardo inglês.
21
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