Per Musi - Escola de Música da UFMG

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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA
volume 22
julho/dezembro - 2010
ISSN: 1517-7599
Editorial
Este volume 22 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 23, são volumes temáticos dedicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, finalmente
refletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três
partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifestações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais)
ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades
referenciais (como Ernesto Nazareth, Pixinguinha, K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Hermeto Pascoal,
Baden Powell, Egberto Gismonti, Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI).
O renomado etnomusicólogo inglês Philip Tagg aceitou o convite de contribuir com dois artigos. Neste volume, nos traz
um inusitado e fascinante estudo em torno da canção Yes we can, que embalou a campanha presidencial norte-americana de Barack Obama. A partir de seu original sistema de análise da música popular, ele compara materiais harmônicos,
melódicos, rítmicos, de instrumentação e da relação texto-música em canções de ícones como Bob Dylan, Beatles, Bob
Marley e Dixie Chicks, entre outros, para estabelecer ligações entre estilo, política e poder.
A partir da história de vida de Hermeto Pascoal, Fausto Borém e Fabiano Araújo explicam o desenvolvimento das linguagens harmônicas na música eclética do genial “bruxo” da música brasileira instrumental.
Luiz Costa-Lima Neto analisa uma faceta pouco conhecida do multi-instrumentista, compositor e arranjador Hermeto
Pascoal, qual seja a multiplicidade de recursos vocais e vocal-instrumentais que utiliza para dar vida à inquietude e
originalidade de suas ideias musicais.
Fausto borém e Maurício Freire Garcia revelam o entrelaçamento dos aspetos musicais e religiosos na obra-prima
Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal na interpretação do próprio compositor,
a partir da análise melódico-harmônica da partitura restaurada, das práticas de performance e relações texto-música
percebidas na gravação, e das experiências místico-religiosas na vida do compositor-intérprete.
A partitura de performance de Cannon para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal, transcrita e editada por Fausto Borém a partir de sua gravação e desenho artístico de Ruy Pereira no disco Slaves Mass (1977)
é aqui apresentada integralmente pela primeira vez.
A partir dos textos de Vinícius de Moraes e José da Veiga Oliveira, ambos ligados ao emblemático LP Canção do Amor
Demais, Liliana Harb Bollos discute as fronteiras entre o popular e o erudito na Bossa Nova.
Silvio Augusto Merhy discute o embate entre letra, melodia e arranjo na canção O morro não tem vez de Antonio Carlos
Jobim e Vinícius de Moraes e seus desdobramentos frente à divisão geográfica e social do Rio de Janeiro: favelas e Zona
Sul, escolas de samba e Bossa Nova.
Carlos de Lemos Almada nos traz uma inovadora abordagem analítica ao adaptar procedimentos schenkerianos para
compreender a música popular, revelando estruturas harmônicas, melódicas e intervalares que dão unidade a Chovendo
na roseira, obra-prima de Tom Jobim.
Vera Lúcia Rocha Pedron Peres aborda a multiplicidade e o pós-modernismo na obra Rimsky (quinteto para cordas e
piano) do compositor Gilberto Mendes, revelando sua intertextualidade e justaposição de estilos em que convivem referências muito díspares da música erudita (atonalismo, serialismo, cadenza) e música popular (música de cinema, rock, fox
trot, ritmos nordestinos, bossa nova, tango), além de citações que homenageiam o inspirador, Rimsky-Korsakov.
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas aborda um dos aspectos mais marcantes do ritmo na música popular, a síncopa, desde
o seu valor nos antigos tratados eruditos, suas relações com alturas, harmonia e ornamentação até sua presença nos
“modernos” da música popular, ilustrando com trechos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Tom Jobim, Hermeto Pascoal,
Edu Lobo e Gilberto Gil.
Para refletir sobre a relação entre música, teatro, rádio e infância, Eugênio Tadeu Pereira, Cristiane da Silveira Lima,
Gabriel Murilo Resende e Reginaldo Santos falam de sua experiência com o programa experimental “Serelepe – uma
pitada de música infantil” da Rádio UFMG Educativa.
Maura Penna discute o processo de autonomia dos jovens em relação aos seus pais, sob o prisma da sociologia e da
psicologia, tendo como pretexto canções populares brasileiras das duplas Roberto de Carvalho e Rita Lee, Marina Lima e
Antônio Cícero e Fábio Jr.
Jorge Luiz Schroeder apresenta seu conceito de corporalidade musical a partir da performance de dois dos mais reconhecidos violonistas da música instrumental brasileira: Baden Powell e Egberto Gismonti.
Sob o ponto de vista dos estudos culturais, Álvaro Neder discute conceitos e ferramentas de análise aplicáveis à música
popular (e à música popular brasileira, em particular), visando afirmar a música popular como área autônoma, com demandas teóricas e metodológicas próprias e irredutíveis àquelas originadas nos campos erudito e tradicional.
A partir de pesquisa de campo realizada em Sergipe e Pernambuco, Yukio Agerkop discute o fenômeno do mangue beat na
expressão musical regional e híbrida de quatro grupos: Sulanca, Naurêa, Maria Scombona e Chico Science e Nação Zumbi.
Tocando em um tema normalmente evitado na academia, Armando Alexandre Castro propõe uma visão alternativa do
gênero Axé music, tendo como subsídio a tabulação de dados coletados em Salvador, epicentro de um dos gêneros mais
populares e rentáveis da música popular brasileira.
Cruzando as visões dos estudos literários, das artes cênicas e dos estudos em performance, Conrado Vito Rodrigues
Falbo discorre sobre perspectivas teóricas para a análise da palavra cantada no âmbito da música popular.
Fausto Borém entrevista Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical, gênero em franco crescimento no Brasil que integra as áreas artísticas do teatro, da dança e da música com tradições
populares e eruditas.
Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão disponíveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/
permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail
[email protected].
Fausto Borém
Fundador e Editor Científico de Per Musi
PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a
diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião do Editor ou dos Corpos Editoriais. PER MUSI está indexada nas
bases do Scielo, RILM Abstracts of Music Literature, The Music Index, EBSCO e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).
Fundador e Editor Científico
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Escola de Música da UFMG
Diretora Maria Inêz Lucas Machado
Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG
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Planejamento e Produção
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Projeto Gráfico
Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG
Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG
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ABM
O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos
PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 22, julho/dezembro, 2010 Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 –
Revisão Geral
Fausto Borém
Maria Inêz Lucas Machado
Assistente Editorial
Sandra Pugliese
n.: il.; 29,7x21,5 cm.
Semestral
ISSN: 1517-7599
1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos.
I. Escola de Música da UFMG
Sumário
artigos científicos
Os acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak Obama ...................... 7
The Yes we can chords
Philip Tagg (Tradução de Fausto Borém)
Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica ................ 22
Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language
Fausto Borém
Fabiano Araújo
O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz .................................................................... 44
The singer Hermeto Pascoal: instruments of voice
Luiz Costa-Lima Neto
Cannon de Hermeto Pascoal:
aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para flauta ................................................ 63
Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpiece
Fausto Borém
Maurício Freire Garcia
Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta, humming na flauta e
sons pré-gravados ........................................................................................................................... 80
Cannon (dedicated to Cannonball Aderley), for flute, flute humming and pre-recorded sounds
Hermeto Pascoal (Transc. e Ed. de Fausto Borém)
Canção do Amor Demais: um marco da música popular brasileira contemporânea ................ 83
Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: more than the presentation of Bossa Nova,
a milestone of contemporary Brazilian popular music
Liliana Harb Bollos
Letra, melodia, arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de
Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes ................................................................................. 90
Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes
Silvio Augusto Merhy
Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana ......................................... 99
Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach
Carlos de Lemos Almada
As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes.................................... 107
Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes
Vera Lúcia Rocha Pedron Peres
A memória e o valor da síncope:
da diferença do que ensinam os antigos e os modernos........................................................... 127
Memory and the value of syncopation:
on the difference between what the old and the modern teach
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas
Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG-Educativa ..................... 150
Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG-Educativa station
Eugênio Tadeu Pereira
Cristiane da Silveira Lima
Gabriel Murilo Resende
Reginaldo Santos
“Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras ................. 157
“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music
Maura Penna
Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de
Baden Powell e Egberto Gismonti .............................................................................................. 167
Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitar
Jorge Luiz Schroeder
O estudo cultural da música popular brasileira ........................................................................ 181
The cultural study of Brazilian popular music
Álvaro Neder
Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da
região do mangue nordestino ..................................................................................................... 196
Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of
northeastern Brazil
Yukio Agerkop
Axé music: mitos, verdades e world music ................................................................................ 203
Axé Music: myths, truths and world music
Armando Alexandre Castro
A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções
no âmbito da música popular ..................................................................................................... 218
The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular music
Conrado Vito Rodrigues Falbo
ENTREVISTA
Entrevista com Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza
sobre o Projeto Teatro Musical ................................................................................................... 232
Interview with Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza about the Teatro Musical Project
Fausto Borém
6
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
Os acordes de Yes we can do vídeo da
campanha presidencial de Barak Obama
Philip Tagg (Faculté de Musique, Université de Montreal, Montreal, Canadá)
[email protected]
Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)
[email protected]
Resumo: Estudo sobre o loop de quatro acordes ║: Sol Maior – Si Maior – Mi Menor – Dó Maior :║ na canção Yes we can
[Sim, nós podemos] do vídeo de Will.i.am (ADAMS, 2008) lançado durante a campanha presidencial de Barack Obama nos
Estados Unidos. A partir da identificação de IOCMs (Materiais Interobjetivos de Comparação) e PMFCs (Campos Paramusicais Conotativos) da análise musemática (TAGG, 2009), compara-se Yes we can com materiais harmônicos, melódicos,
rítmicos, de instrumentação e de letras de canções populares da tradição afro-britânico-americana, levando-se também
em consideração as atitudes de relevantes compositores e intérpretes populares social e politicamente engajados.
Palavras-chave: Barack Obama, música e política, música e sociedade, análise musemática, harmonia da música popular, intertexto.
The Yes we can chords
Abstract: Study of the four-chord loop ║: G – B – Em – C :║ in the song Yes We Can from the video by Will.i.am (ADAMS,
2008) released during the 2008 US presidential campaign of Barack Obama. Departing from IOCM and PMFC identification of the musematic analysis (TAGG, 2009), Yes We Can is compared to harmony, melody, rhythm, instrumentation and
lyrics found in iconic popular songs of the Afro-Bristish-American tradition, also taking into consideration the attitudes
of relevant composers and performers engaged in social and political issues.
Keywords: Barack Obama, music and politics, music and society, musematic analysis, popular music harmony, intertext.
1 – Introdução
Este artigo surgiu como uma simples resposta a uma simples questão enviada por Carol Vernallis à lista online da
IASPM (International Association for the Study of Popular
Music; veja www.iaspm.net) em Janeiro de 2009. Ela lançou a pergunta: “Alguém já se perguntou sobre a progressão harmônica de Yes we can (Sim, nós podemos), sobre seu
conteúdo musical, ou mesmo, sobre as canções populares
que ela pode ecoar?”. Vernallis estava se referindo ao vídeo
de mesmo nome da campanha presidencial de Barak Obama (ADAMS, 2008). 1 As respostas dos membros da IASPM
podem ser sumariadas nos seis pontos descritos a seguir:
(1) Mike Daley e Allan Moore refletiram sobre o potencial do acorde de Si Maior, o progredir harmonicamente
“para um lugar inesperado” e o aspecto do “conforto e
segurança” relativos da sequência de seu turnaround plagal (2) Allan Moore sugeriu similaridades com progressões de outras gravações, como Jungle (1973) da banda
ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA (ELO), What becomes of the
brokenhearted (1966) de Jimmy RUFFIN e Southern man
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
(1970) de Neil YOUNG. 2 (3) Barbara Bradby se referiu à
Sitting on the dock of the bay [daqui para frente chamada
apenas de Dock of the bay] (1968) de Otis RED­DING, numa
similaridade intertextual que também foi observada por
diversos de meus alunos em Montreal. Ela também observou uma similaridade melódica entre a frase cantada
em 0:31 [aos 31 segundos da gravação] de Yes we can
no vídeo de Obama e a frase incial “When the night. . .”
(“Quando a noite. . .”) na canção Stand by me (1961) de
Ben E. KING. (4) Matthew Bannister apontou similaridades
com No woman no cry (1974) de Bob MARLEY e os Wailers
e possíveis conotações antêmicas (do inglês anthemic, ou
seja, com uma melodia fácil de cantar por muita gente
e com o caráter digno ou solene dos hinos [anthems])
em Another girl another planet (1978) da banda de rock
norte-americana THE ONLY ONES. (5) Danilo Orozco sugeriu similaridades com matrizes harmônicas de origem
espanhola na América Latina. (6) Finalmente, David Uskovich fez referência à canção Don’t stop be­lieving (1981) da
banda de rock norte-americana Journey. 3
Recebido em: 21/06/2009 - Aprovado em: 15/03/2010
7
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
Esta lista de associações intertextuais contribui para um razoável conjunto de IOCMs (Materiais de Comparação Interobjetiva, do inglês Interobjective Comparison Material; veja
glossário de termos da análise musemática ao final desse
artigo e mais detalhes em www.tagg.org/articles/ptgloss.
html#IOCM), como normalmente aconteceria em um seminário respeitável sobre música popular, no qual a análise
musemática está na ordem do dia e no qual todas as referências são relevantes, embora umas mais do que outras.
2 – Os quatro acordes
Antes de iniciar a análise musemática de Yes we can, gostaria de esclarecer, dentro do possível, sobre as estruturas
convencionais da progressão harmônica com a qual estamos lidando. Assim como meus colegas da IASPM, escutei
o loop de quatro acordes que ocupa quatro compassos
quaternários ║: G – B – Em – C :║ ou, em termos relativos, ║:I – III – vi – IV :║, como mostra o Ex.1. 4
Primeiro, com o andamento q =100, ouve-se esta sequência harmônica se repetir nos primeiros 2:28 do tempo
de duração total de 4:26 da canção, tocada em um violão
acústico com seis cordas de aço (e não de nylon), com
a batida mostrada no Ex.2. A não ser pelo acorde de Si
Maior (III grau) no segundo compasso, realizado com uma
pestana a partir da segunda casa na corda Lá, todos os
acordes são tocados na primeira posição. Com exceção
do acorde de Dó Maior (IV grau), cuja nota Dó aguda (primeira casa na corda Si) é substituída por uma nota Ré
(terceira casa na corda Si) para criar um efeito de Cadd9
(acorde de Dó Maior com nona maior acrescentada) com
pedal, nenhum acorde contém notas estranhas às tríades
comuns (terças) em questão. 5 Todos os quatro acordes
na sequência de Yes we can são ritmicamente articulados
de maneira semelhante (ou idêntica) àquela mostrada na
batida do acorde de Sol Maior do Ex.2. A fundamental de
cada acorde geralmente aparece com a duração de duas
colcheias, a segunda ligeiramente abafada, seguida das
notas restantes do acorde, que podem ser uma semínima
ou duas colcheias com uma batida que vai do grave para
o agudo, tangendo as três ou quatro cordas superiores do
violão. Por exemplo, a nota mais aguda do acorde mostrado acima, um Sol, nem sempre é audível.
Não consigo pensar em nenhuma música, além de Yes we
can, que corresponda exatamente a todas essas características descritas acima. Referências intertextuais apresentadas por alguns dos meus alunos e por mim mesmo,
assim como aquelas dos colegas na discussão online da
IASPM, todas elas mostram alguma característica estrutural comum. Mas, como veremos, alguns dados comparativos podem se mostrar mais relevantes do que outros.
Em outras palavras, precisamos olhar as referências intertextuais com um foco mais preciso.
Ex.1 – Os quatro acordes do turnaround de Yes we can
(ADAMS, 2008; fotos em substituição às fotos originais publicadas no YouTube. Crédito das fotos: Dindão)
Ex.2 – A batida do violão em Yes we can
8
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
3 - A alta Renascença e a bi-modalidade
andina
As referências de Danilo Orozco às matrizes harmônicas que Carlos Vega provavelmente teria chamado de
bi-modais são significativas porque há um denominador
comum entre os acordes de Yes we can e, por exemplo,
a gravação de Guardame las vacas a que ele se refere. 6
Os acordes de Guardame las vacas mencionados por Orozco são semelhantes àqueles da canção La folia 7 cuja
ubiquidade em toda a Europa na alta renascença é comparável àquela do blues de doze compassos nos Estados
Unidos do século XX. Uma variação comum da matriz de
La Folia se desenrola como mostrado no Ex.3:
Se o acorde finalis nessa matriz de oito compassos, um
Mi Menor, for considerado como tônica principal, então as
funções relativas dos outros acordes serão aquelas da linha
do meio mostrada no Ex.3. Se, por outro lado, escutarmos
essa matriz no tom de Sol Maior (o tom do acorde initialis),
será que a linha de baixo, em itálico, seria a mais correta?
Bem, de fato não, porque a matriz termina com uma inequívoca cadência perfeita V-i (acordes de Si Maior – Mi
Menor). Além disso, como ocorre na progressão de La Folia
(mostrada acima), o acorde de Mi Menor é sempre precedido ou seguido apenas por tríades maiores de Ré (bVII) ou Si
(V), ambas, em termos da harmonia triádica europeia, tendo a função dominante no tom de Mi Menor, especialmente o acorde do V grau (Si Maior, alterado ascendentemente
para incluir a sétima Ré #, ao invés das tríades específicas
Si Menor e Ré Maior do tom, que tem o Ré natural). Além
disso, não há uma relação cadencial no turnaround, nem
plagal nem de dominante, entre os acordes finalis e initialis
seguintes. O mesmo acontece em muitas progressões harmônicas no estilo andino huayño, a exemplo da matriz de
quatro acordes C – G – B – Em, a qual pode ser encontrada
na versão de Quiaquenita (incluída em La flûte indienne,
1966) de LOS CALCHAKIS. Não consigo ouvir esta progressão como sendo totalmente no tom de Sol (IV – I – III – vi):
para mim, sempre soa como bVI - bIII – V - i, principalmente no tom de Mi Menor.8
Resumindo esta breve incursão pelas matrizes da alta
renascença e andina, esses acordes, diferentemente daqueles de Yes we can: (1) terminam como cadências envolvendo a dominante (V-i) no tom menor; (2) se iniciam
na tríade da relativa maior ou da subdominante relati-
va maior; (3) geralmente são duas vezes mais longos.
Considerando outros parâmetros da expressão musical
associados com os acordes de Yes we can, seria relevante também observar que; (4) os andamentos dos IOCMs
andino e da alta renascença, na maioria das vezes, são
mais rápidos que q = 100; (5) sua métrica geralmente
não é 4/4, mas sim 3/4 ou 6/8, ou uma combinação de
ambas formando hemíolas; (6) quando tocado com batidas do tipo rasgueado, qualquer instrumento harmônico
de cordas é mais rápido do que quando dedilhado; (7)
se o timbre de um violão com cordas de aço é pouco
comum, o timbre de um violão com cordas de tripa ou
nylon é mais comum (o som do violão “espanhol”), e o
timbre mais agudo e metálico de uma bandola, tiple ou
charango é ainda muito mais comum. Embora possamos
especular a partir de possíveis bases comuns divergentes da imagem sônica triádica da harmonia “clássica”,
ligada à europeidade urbana do século XIX, as razões
acima me levam a pensar que as similaridades estruturais não são suficientemente marcantes para defender
uma comparação interobjetiva mais aprofundada nesta direção. Por isso, tentarei restringir as comparações,
tanto quanto possível, aos materiais que mais de perto
lembram os acordes de Yes we can.
4 - Quatro acordes, quatro harmonias
Investigar o significado de uma sequência de acordes é o
mesmo que tentar encontrar exemplos intertextuais de
todas as harmonias presentes. Embora possa soar tautológico, vale a pena lembrar que, a não ser que a matriz
comece e termine no mesmo acorde, uma sequência de
três acordes contém três harmonias, uma sequência de
quatro acordes contém quatro harmonias e assim por
diante. Esta obviedade deve ser reafirmada porque é fácil
subestimar um dos mais importantes aspectos tonais do
loop de acordes: a harmonia do último acorde do turnaround e sua volta para o primeiro. Em Yes we can, isto
é representado pelo movimento da cadência plagal dos
acordes de Dó Maior para Sol Maior (IV→I). De fato, é
esta harmonia, e não o movimento V→vi (acordes de Ré
Maior para Mi Menor) no meio do loop, que encerra algum potencial de finalização real. 9
O movimento plagal no sentido horário do círculo das
quintas é quase tão comum em estilos como gospel, country modal, rock folk e o rock baseado no blues quanto é
raro no universo das sonatas de Corelli, óperas de Wag-
Ex.3 – Sequência harmônica da canção renascentista La Folia.
9
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
ner, canções de câmara vitorianas, stand­ards de jazz etc.
que priorizam o sentido anti-horário do círculo das quintas. 10 As harmonias do turnaround plagal de Yes we can
podem, de fato, constituir uma razão pela qual nós provavelmente escutamos essa música como popular, como
norte-americana e não como clássica e europeia. Podemos
até escutar a referência plagal em algum Amém, canção
gospel ou canção folclórica baseada na escala pentatônica
maior mas, conotativamente, é difícil falar especificamente
sobre o IV-I sem falar que esse encadeamento harmônico é muito idiomático nos outros estilos. E pode, mesmo,
ser a marca de conclusão harmônica preferida em muitas
canções no amplo leque das tradições da canção popular
na língua inglesa. 11 Por isso, ao invés de nos determos aí,
vamos investigar o passo harmônico inicial da sequência,
que é, ainda, menos comum do que o IV-I.
5 – Primeiras impressões: → I
É dito que a primeira impressão é a que fica. Este ditado certamente se aplica às partidas harmônicas porque
o segundo acorde em qualquer sequência é o que cria a
primeira impressão de uma progressão ou direção harmônica. Entretanto, antes de discutir o passo I-III de Yes we
can, devemos considerar aquele que é o primeiro passo
de fato, ou seja, o passo que leva o ouvinte da ausência
musical a algo musical. Em outras palavras, partindo do
antes e fora da música para o primeiro som da canção. O
acorde de Sol Maior na primeira posição do violão acústico em Yes we can é importante porque sua sonoridade
cria a primeira impressão real da canção.
Exemplos de acordes de Sol Maior na primeira posição no
início de canções, com levadas rítmicas ou simplesmente dedilhados, em um violão acústico com seis cordas de
metal, e com um andamento moderado ocorrem no início
das seguintes gravações de Bob DYLAN: The Times they
are a-changing (1964a), It ain’t me babe (1964b), John
Wesley Harding (1967), George Jackson (1971) e Knockin’ on heaven’s door (1973).12 Esse acorde de Sol Maior
também ocorre como primeiro acorde da tônica com
frequência em um razoável número de canções de Woody GUTHRIE como, por exemplo, Oklahoma Hills (1937),
Grand Coulee Dam (1946) e Two good men (1946?). 13 O
primeiro som em Yes we can é, em outras palavras, virtualmente idêntico ao primeiro som de diversas canções
populares de reconhecidos cantores-compositores norte-americanos associados com políticas progressistas e
mudanças sociais. Se estas alusões são intencionais ou
não em Yes we can, as promessas de mudança e justiça
social da recente eleição presidencial dos Estados Unidos,
por outro lado, certamente poderiam estar, teoricamente, conectadas a figuras muito menos apropriadas dentro
das tradições da música popular norte-americana do que
Woody Guthrie e Bob Dylan. Basta imaginar as imagens,
sons e palavras de artistas como Alice Cooper, Charlie
Daniels ou Barry White como acompanhamento musical
para uma plataforma eleitoral de um governo responsável! 14 Obviamente, existe muito mais correspondência,
tanto do ponto de vista da letra quanto da sonoridade,
10
entre o “It’s time for a change. . . ” (“É hora de mudar. . . ”)
de Obama e The Times they are a-changing (“Os tempos
de mudança”) de DYLAN.
Outro ponto significativo a respeito do acorde de Sol
Maior, com suas quatro cordas soltas e terça dobrada (Si
nas cordas Lá e Si) é que, assim como os outros dois acordes na primeira posição que se repetem (Mi Menor e Dó
Maior), é fácil para qualquer violonista amador que encontramos em festinhas ou acampamentos. Os acordes de Sol
Maior, Mi Menor e Dó Maior são acordes que milhões de
norte-americanos podem saudar com um yes, we can!. E
mesmo o acorde de Si Maior, o segundo acorde de Yes we
can, que pode ser entendido como um acorde de Lá Maior
tocado com uma pestana na segunda casa, não apresenta
nenhum desafio técnico para o músico amador de habilidade mediana. 15 Mas não é tanto a acessibilidade poïética
em si mesma que é semioticamente importante, mas sim
o seu significado para a maioria dos que não tocam violão,
mesmo pouco. Graças ao fato de que tocar esses acordes
fáceis está dentro da capacidade de uma significativa minoria da população que toca violão, a maioria da sociedade, por meio da exposição repetida a estes acordes de uma
maneira simples no violão, tem aprendido a associá-los às
palavras, ideias e situações que os acompanham.
6 – O passo harmônico inicial I→III
O passo harmônico inicial I→III (acordes de Sol Maior para
Si Maior em Yes we can) não é o início mais comum e nem
o início mais incomum dos encadeamentos harmônicos da
música popular na língua inglesa: I→IV, I→V, I→vi, provavelmente também I→ii e I→iii são, provavelmente, mais
comuns do que I→III, o qual, por sua vez, talvez seja menos
usual do que I→II, I→bI II or I→bVII, mas provavelmente
mais comum do que I→bVI (veja MOORE, 1992).
Em todo caso, o número de peças, ou seções de peças,
que começam com I→III que chamaram minha atenção
dentro do repertório relevante, ou pelo menos parcialmente relevante, não impressiona. Achei apenas onze, listadas a seguir em ordem alfabética: [1] Abilene (George
HAMILTON IV, 1963); [2] Bell-bottom blues (Eric CLAPTON, 1970); [3] The Charleston (GOLDEN GATE ORCHESTRA, 1925); [4] Crazy (Patsy CLINE, 1961); [5] Creep
(RADIOHEAD, 1992); [6] Jungle (ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA, 1979); [7] Nobody knows you when you’re
down and out [daqui para frente chamada apenas de
Down and out] (Bessie SMITH, 1929); 16 [8] Dock of the
bay (Otis Redding, 1968); [9] Who’s sorry now (Connie
FRANCIS, 1957); [10] Woman is the nigger of the world
(John LENNON, 1975); [11] A World without love (PETER
e GORDON, 1964). 17 Inicialmente, sem saber o porquê,
descobri que apenas três dessas onze canções soavam
suficiente parecidas como Yes we can para serem usadas
como IOCMs convincentes para a sequência de acordes
em questão. Uma vez que esse tipo de “intuição” não é
muito útil em si mesmo, tentarei identificar e explicar as
diferenças nos parâmetros da expressão musical que se
articulam aí e em conexão com o passo harmônico inicial
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
I-III, comum entre Yes we can e as onze peças comparativas. Este processo de eliminação deverá melhorar o foco
para se observar as características mais salientes do loop
de acordes de Yes we can.
Antes de tudo, há duas características estritamente harmônicas que se destacam, do ponto de vista da semiótica,
em relação à natureza do passo I→III: a linhas do baixo
e o prolongamento harmônico. Todas as notas do baixo
do loop de Yes we can coincidem com a fundamental das
tríades, enquanto que CLAPTON, em Bell-Bottom Blues
(1970), utiliza uma linha descendente no baixo por graus
conjuntos de tal forma que os acordes, de fato, progridem
como I→III5→vi→[I5→] IV (as notas do baixo, no tom
de Sol Maior seriam Sol, Fá#, Mi [Ré] e Dó; e os acordes
seriam G, Ré/F#, Em, G/D, C), uma progressão que contém
dois acordes com inversão. Graças a precedentes famosos
como Whiter shade of pale / Ária de BACH (I-V3-vi-I5, etc.,
Bach, 1731; PROCOL HARUM, 1967), acordes invertidos
com linhas do baixo por grau conjunto se tornaram um
confiável símbolo pop de “eruditismo” ou “pop clássico”.
Trata-se de um mecanismo que retira esta canção-arranjo
da esfera de participação popular, participação popular que
pode ser exemplificada pelo estilo de violão toque-e-cante
de Yes we can e suas tríades na posição fundamental. A
utilização de acordes invertidos e graus conjuntos na linha do baixo elitizam a peça. Esta é apenas um das razões
para tratar uma similaridade estrutural óbvia como a partida harmônica I→III com cautela. Outra razão harmônica
para por em dúvida a relevância de uma comparação que
envolva I→III é o prolongamento harmônico. Por exemplo,
somente duas das dez peças que constituem IOCMs (Dock
of the bay e Creep) apresentam I→III no início do loop de
quatro compassos. Muitas das outras canções, na verdade, incluem encadeamentos de harmonias com dominantes
do círculo das quintas (sentido anti-horário) incompatíveis
com o idioma tonal geral de Yes we can. Além disso, parâmetros como andamento, padrão de acompanhamento e
instrumentação podem também fazer algumas harmonias
I→III soarem bastante diferentes daquelas de Yes we can.
As músicas The Charleston (q = 96) e Who’s sorry now (q
= 88), por exemplo, embora sejam tocadas em um andamento semelhante ao de Yes we can (q =100), são muito
diferentes em termos de instrumentação, rítmica e prolongamento harmônico. Tanto (1) a orquestração tradicional
de jazz band em The Charleston, quanto (2) sua sonoridade
lo-fi 18 típica dos discos de 78 rpm, (3) quanto, no caso
de Who’s sorry now, sua sonoridade semi-amplificada dos
pop combos da década de 1950, que se torna mais típica
ainda com as tercinas constantes no piano, remanescentes do jazz “clink-clink-clink” de Stan FREBERG (1956) 19,
são opções comparativas muito longínquas de Yes we can,
que é tocada com a simplicidade de notas e tríades de um
violão acústico. O prolongamento do I-III em The Charleston e Who’s sorry now em uma sequência de dominantes
em quintas descendentes (I-III-VI-II-V-I nas tonalidades de
Si b Maior e Mi b Maior, que são amigáveis para os metais
e saxofones) são outras indicações óbvias dos estilos mu-
sicais e conotações de um mundo distante daquele de Yes
we can. As duas canções country (Abilene e Crazy) podem
também ser eliminadas como IOCMs por razões semelhantes de incompatibilidade de instrumentação, padrão de
acompanhamento e prolongamento harmônico. 20
As canções Down and out (q. = 90, 12/8), Sitting on the
dock of the bay (q = 103, 4/4) e Creep (q = 92, 4/4), por
outro lado, seguem no mesmo caminho de Yes we can e
pertencem, todas, ao repertório pop internacional angloamericano pós-1955. Embora nenhuma destas canções
apresente a batida simples de acompanhamento do cantor
com violão acústico, elas se assemelham mais a Yes we can
do que The Charleston, Who’s sorry now, Abilene e Crazy.
Apesar disto, existem diversas diferenças estruturais importantes entre as três canções em discussão (Down and
out, Dock of the bay e Creep) e, por outro lado, Yes we
can. Por exemplo, todas as gravações de Down and out,
sejam elas com q. = 90, tanto na gravação de Bessie SMITH (1929) quanto na de Eric CLAPTON (1992), sejam muito mais lentas, com o próprio CLAPTON (1970) ou Stevie
WINWOOD (1966), todas elas tem o acompanhamento
shuffle do blues lento ( ¼ , mesmo quando notado como
o), tendo como acompanhamento a corneta, o piano e a
tuba (na gravação de Bessie Smith) ou a guitarra elétrica, o órgão Hammond e a bateria (nas gravações de Clap­
ton e Winwood), enquanto que os acordes Yes we can são
apresentados em colcheias sem swing iiiq . 21 Além disso, o passo I-III inicial de Down and out segue com uma
progressão de quintas descendentes que inclui o VI grau (E
ou E7), ao invés do vi grau (Em), depois inclui o ii grau (Am)
e, depois, passa por harmonias como #IVdim (C#dim), para
seguir com II7 (A7), V7 (D7) e I (G). Não se ouve nenhum
acorde diminuto ou uma extensa progressão com dominantes no círculo da quintas em qualquer parte de Yes we
can. Esta canção foi concebida em um idioma diferente,
seja nos aspectos tímbrico, métrico, rítmico ou tonal.
Sitting on the dock of the bay (REDDING, 1968), por outro
lado, é em colcheias contínuas e sem swing iiiq e
apresenta os quatro acordes de sua sequência virtualmente no mesmo andamento (q =104) de Yes we can: I – III
– IV - II (G - B - C - A). Esta sequência de Dock of the bay
é notável porque não contém nenhum passo harmônico plagal (IV→I) ou de dominante (V→I). Somente uma
ponte de 19 segundos (1:24 - 1:43) do total dos 2:45 da
canção inclui uma breve progressão: bVII→V→I (1:37 1:43) que leva de volta à sequência de acordes harmonicamente estática que ocupa toda a gravação, exceto
por alguns segundos. A sequência de Dock of the bay é
interessante também porque consiste em dois pares de
acordes: primeiro, o I e o IV graus (Sol Maior e Dó Maior
no tom de Sol Maior), que estão próximos entre si no
círculo das quintas; segundo, o III e o II graus (Si Maior
e Lá Maior no tom de Sol Maior), ambos para o lado dos
sustenidos no círculo das quintas (longe dos graus I e IV)
e separados entre si apenas pelo VI grau (Mi Maior). Mas
esses quatro acordes não são tocados nessa disposição
- experimente o efeito de tocá-los, ao contrário, na sequ-
11
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
ência G-C-A-B ou, então, G-B-A-C[-G] -, uma vez que I e
III (G→B) pertencem à mesma frase que Redding canta
“Sitting on the dock of the bay. . .” (“Sentado na doca da
baía. . .”), depois da qual ele respira. Após esta cesura no
meio da canção, ele canta “Watching the tide roll in. . . ”
(“Olhando a maré que chega. . .”) na segunda metade do
loop de acordes (no seu encadeamento IV→II , C→A),
que é um tipo de I-VI em Dó Maior, refletindo o mesmo
tipo de distância harmônica de terça, como no encadeamento I-III (na primeira metade do loop, G→B).
Não haveria nada de especial a respeito desta divisão da
sequência em duas partes se os dois acordes triádicos, em
cada metade, estivessem mais perto um do outro no círculo
das tonalidades. Mas não é o caso. A segunda tríade de
cada par, Si Maior e Lá Maior, situa-se distante não apenas um ou dois passos harmônicos de quinta da primeira
tríade, mas a uma distância de quatro passos harmônicos
no círculo das quintas (Sol Maior→(Ré Maior→Lá Maior→Mi
Maior)→Si Maior ou, em termos relativos, I→(V→II→VI)→III)
e a uma distância de três passos harmônicos no círculo
das quintas (Dó Maior→(Sol Maior→Ré Maior)→Lá Maior ou,
em termos relativos, IV→(I→V) →II), respectivamente. É
isto que faz a sequência de Dock of the bay soar como dois
acordes vai-e-vem (shuttle chords) semelhantes, um após
o outro – um constante movimento para frente e para trás
– ao invés de uma sequência única e repetida de acordes
como I-vi-IV-V ou I-V-bVII-IV. Este movimento de vai-evem em Dock of the bay, que é sublinhado pelo acréscimo
de efeitos sonoros de praia como ondas que vem e vão,
estão ausentes, é claro, em Yes we can, cuja sequência de
acordes contém dois passos harmônicos de tonalidades vizinhas muito claros: Si Maior → Mi Menor (III→vi, com
função dominante) e Dó Maior → Sol Maior (IV→I, com
função plagal), o que dá a ela um definitivo caráter de repetição e não de vai-e-vem duplo. 22
Nada disso significa que Sitting on the dock of the bay é
inadmissível como uma evidência IOCM dos acordes de
Yes we can. Mesmo que o caráter de vai-e-vem harmônico da gravação de Redding, seu prolongamento harmônico e sua orquestração divirjam claramente de Yes we
can, sua ponte repete uma curta frase melódica (no trecho
“Nothing’s gonna change. . .” [“Nada irá mudar. . .”], “I can’t
do what ten people tell me to do. . .” [“Não posso fazer o que
dez pessoas me pedem para fazer. . . “], etc., 1:24-1:37)
que recorre de maneira semelhante em 0:31 de Yes we
can (“It was sung by immigrants. . .” [“Era cantado pelos
imigrantes. . .”]). 23 Como apontou bem Barbara Bradby na
seu e-mail na lista da IASPM, aquela frase de Yes we can
chega muito perto da declamação inicial “When the night. . .” [“Quando a noite. . . ”] em Stand by me (1961) na
voz de Ben E. KING. Eu acrescentaria que as frases melódicas em cada uma dessas três canções podem ser caracterizadas como proclamatórias, sinceras e apaixonadas. Eu
também caracterizaria essas frases como sendo frases tipicamente masculinas dos cantores soul da década de 1960
(por exemplo, Otis Redding, Wilson Picket, Marvin Gaye),
que estão associados à luta norte-americana pelos Direi-
12
tos Civis e com o tipo de engajamento social que Michael
Haralambos documenta em Right on! From blues to soul in
black America (HARALAMBOS, 1974). Se há alguma validade nesta análise da frase no ponto 0:31 de Yes we can,
a conexão com o I-III de Dock of the bay se reforça ciclicamente por associação-cruzada. Sua corrente de conotações contém os seguintes tipos de elos indexadores: (1) a
frase melódica de Yes we can lembra arquétipos melódicos
cantados por cantores homens de música soul na final da
década de 1960; (2) a música daquela época estava associada a uma imagem mais esperançosa e assertiva entre
os afro-americanos nos Estados Unidos, (3) um dos mais
famosos desses cantores foi Otis Redding, sendo Sitting on
the dock of the bay um de seus maiores sucessos; (4) essa
canção também contém o mesmo passo harmônico I-III
como ocorre em Yes we can, a canção da campanha presidencial de Barak Obama; (5) o governo presidencial de
Obama marca outra grande mudança positiva nos Direitos
Civis dos Estados Unidos.
A canção Jungle (1979) da banda ELO, mencionada por Allan Moore, é no mesmo andamento de Yes we
can (q=100). Seus três primeiros encadeamentos harmônicos são idênticos àqueles da canção de Obama: Ré Maior
– Fá # Maior - Si Menor - Sol Maior (Jungle, no tom de
Ré Maior) = I III vi IV = Sol Maior – Si Maior - Mi
Menor - Dó Maior (Yes we can, no tom de Sol Maior). “Na
mosca!”, poderíamos pensar. De fato, parece haver aí 100%
de correspondência. Mas há um problema, uma vez que
esta correspondência perfeita não soa exatamente como
os acordes de Yes we can. Existem pelo menos quatro razões para não se encaixarem: (1) os acordes da banda ELO
não são utilizados em loop; (2) a sequência da banda ELO
segue com uma cadência V→I (A→D) repetida, (3) os quatro acordes cobrem dois compassos, e não quatro, e são
espaçados assim: | h.q |h. q |, com apenas uma nota
para cada acorde, e não um compasso inteiro de
,
ou
, ou qualquer outra padrão similar para cada
acorde; (4) a instrumentação é totalmente diferente, preenchida com instrumentos tropicais do tipo “world music”
associados, pelo menos na cultura musical urbana e nãotropical do “primeiro-mundo”, como o título da canção:
Jungle (Selva). Posso escutar instrumentos que lembram
o agogô, o guiro [tipo de reco-reco da América Central],
cowbell, wood block e maracas. Mais ainda – e já fora da
conotação deste campo (ou selva, para ser mais preciso),
um bem audível e denso string pad [um sample sintetizado do naipe das cordas orquestrais]. Todas estas diferenças
me deixam relutante para fazer referência aos acordes da
banda ELO como um IOCM para os acordes de Yes we can
de Obama, apesar da correta similaridade em termos de
uma teoria harmônica convencional. Estas duas canções
simplesmente não soam suficientemente similares.
Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à canção Woman is the nigger of the world (1975) de John LENNON,
embora por diversas razões de dessemelhança. Além do
fato de que a sequência de John Lennon não é um loop,
mas parte de uma sequência de um chorus de oito compas-
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
sos (|| I - III - vi - I - IV - iv- I - I || no tom de Mi Maior), a
batida da canção de Lennon é suingada (12/8 feel), o efeito geral da intensidade sonora muito mais alto, o registro
vocal mais agudo e o timbre mais rascante do que em Yes
we can. Há também diferenças radicais de instrumentação
entre as duas canções, sendo que a música de Lennon inclui um piano percussivo, guitarra e contrabaixo elétricos,
um saxofone estridente em primeiro plano e eventos de
alta intensidade na bateria. Não se ouve nenhuma dessas
características na canção de Obama.
Restam apenas duas músicas de IOCM I→III para discutir,
a canção A World without love (PETER e GORDON, 1964)
de Lennon e McCart­ney e Creep da banda de rock inglesa
Radio­head (RADIO­HEAD, 1992).
De 1964 até recentemente, trabalhei equivocadamente
achando que os primeiros quatro compassos de cada verso de A World without love eram harmonizados com os
acordes Mi Maior | Sol # Maior |Dó # Menor | Lá Maior
(I−III−vi−IV), ou seja, a mesma progressão relativa do
loop de acordes de Yes we can. A sequência, de fato, é Mi
Maior | Sol # Maior | Dó # Menor | Dó # Menor (I−III−
vi−vi). E a toquei com harmonia errada muitas vezes sem
que qualquer ouvinte ou colega músico tenha reclamado,
provavelmente porque a única nota melódica no quarto
compasso, um Dó #, soa bem tanto sobre um acorde de
Lá Maior quanto de Dó # Menor. O meu ponto de vista,
neste caso, é sugerir mais uma vez que a correspondência harmônica exata não é necessariamente o fator mais
importante, se uma sequência de acordes em uma música soa como uma sequência de acordes de outra música.
Neste contexto, isto significa que a parecença harmônica
mais importante entre A World without love e Yes we can
é o fato de ambas compartilharem os mesmos passos harmônicos iniciais I→ III→ vi. Mas a sequência de Lennon
e McCartney soa diferente de Yes we can principalmente porque: (1) a primeira é cantada em um andamento
mais rápido ( = 134); (2) o acompanhamento é dominado pelas pela pesada figuração “one-five
oompah” do baixo de Paul McCartney; 24 (3) o seu I-III-vi
não se repete em loop. Dito isto, o I-III-vi-vi em World
Without Love não ocorre regularmente no início de cada
verso em compasso 4/4 sem swing, com um acorde por
compasso e com a batida do acompanhamento básico do
violão acústico, mesmo que pouco audível na mixagem.
Além disso, o prolongamento harmônico I - iv - I - I - ii
- V - I (acordes de Mi Maior - Lá Menor - Mi Maior - Mi
Maior - Fá # Menor - Si Maior - Mi Maior) em World
without Love permanece dentro do mesmo idioma de tríades comuns no estado fundamental como em Yes we
can, enquanto que sua instrumentação pop simples tem
muito mais em comum com Yes we can do que Jungle da
banda ELO, Woman is the nigger of the world de Lennon,
isto para não citar The Charleston (que recebeu muitas
gravações, inclusive da Golden Gate Orchestra) e Down
and out com Bessie Smith etc. 25 Como em Dock of the
bay, o I→III em World without love não compartilha com
Yes we can alguns elementos estruturais comuns.
Entretanto, diferentemente de Dock of the bay, a gravação
de Peter & Gordon não contém nenhum elemento de soul
or gospel que dirija o ouvinte em direção a qualquer tipo de
conotação relativa aos Direitos Civis. Se isto é verdade, que
tipo de mensagem paramusical World without love contem?
Vejamos seus versos [com o texto original após a tradução]:
[verso 1, verso 3] Por favor, prenda-me longe daqui e não permita
o dia aqui dentro, onde me escondo com minha solidão. Não me
importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.
[verso 2] Pássaros cantam desafinados e nuvens de chuva escondem a lua. Estou bem, aqui ficarei com minha solidão. Não me
importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.
[ponte] Aqui vou esperar, daqui a pouco verei o sorriso do meu
amor. Ela virá, não sei quando. Quando vier, perco, por isso baby,
até lá.
[v.1, v.3] Please lock me away and don’t allow the day here inside
where I hide with my loneliness. I don’t care what they say I won’t
stay in a world without love.
[v.2] Birds sing out of tune and rain clouds hide the moon. I’m OK,
here I’ll stay with my loneliness. I don’t care what they say I won’t
stay in a world without love.
[bridge] Here I wait and in a while I will see my lover smile. She may
come, I know not when. When she does I lose, so baby until then.
À primeira vista, as divagações deste jovem e apaixonado
rapaz não têm nada a ver com a luta, esperança e coisas
cotidianas que podemos encontrar nas frases de efeito dos
discursos de Obama que ocorrem ao longo de Yes we can.
Assim, basta escarafunchar um pouco abaixo da superfície
da letra de Lennon e Mc­Cartney para encontrar um paralelo: um processo emocional que, se pudermos simplificar, vai
do relativo desespero e escuridão a uma relativa esperança
e luz, sempre com o mesmo sentido de determinação.
A sequência harmônica na canção Creep de Radiohead é o
loop ║: I→III→IV→iv :║ (Sol Maior | Si Maior | Dó Maior |
Dó Menor) com q=92 durante os quatro minutos que dura a
canção. Cada loop cobre quatro compassos, com um acorde
por compasso e rítmica de quatro colcheias ou semínimas
sem swing na bateria e no violão ( iiiq no ximbau) e o
padrão de simples q.e ‫ ׀‬eq e no baixo. Considerando o
movimento de acompanhamento como um todo, estas partes são mais semelhantes ainda ao padrão iq q do violão
acústico de Yes we can do que aqueles de Dock of the bay. E,
certamente, são muito mais próximos da canção de Obama
do que o padrão |h. q| da banda ELO, ou o padrão suingado
|q eq e| de Down and out ou de Woman is the nigger of the
world, ou o padrão |iiq iiq| de Who’s sorry now. E, como
acabei de afirmar, eles são, da mesma forma que Yes we can,
repetidos sobre o mesmo período de quatro compassos em
4/4. Além disso, as harmonias do turnaround do loop de Radiohead, que vão de Dó Menor para Sol Maior (iv→I) é plagal como o turnaround de Yes we can, e os padrões de acompanhamento são todos epítomes de um estilo pop-rock sem
firulas (desenhos de ximbau standard simples na bateria,
arpejos simples no violão, virtualmente sem reverberação ou
qualquer outro tratamento de sinal sonoro etc.). A estética
da essência crua em Creep se alinha bem com o caráter sem
firulas do som do violão em Yes we can.
13
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
Nenhuma das similaridades acima mencionadas pode
refutar o fato de que há claras diferenças entre Creep
e Yes we can, sendo a mais óbvia a gritaria nervosa e
alienada e a guitarra elétrica com um poderoso overdrive ocorrendo em 39% do tempo da faixa rock de
Radiohead. 26 Harmonicamente, há outra diferença importante: enquanto que Yes we can repete a sequência
I-III-vi-IV, o loop em Creep segue o encadeamento IIII-IV-iv. Isto significa que, embora o turnaround em
ambas as canções sejam plagais, o acorde de IV grau
(Maior) em Creep ocorre um compasso antes, no lugar
do Mi Menor (vi) de Yes we can e a tríade de Dó Maior
(IV grau) de Yes we can ocorre na mesmo posição do
loop do Dó Menor (iv grau) de Radiohead. Este acorde de Dó Menor, com sua nota Mib, enarmonicamente
contrastando, em termos de direcionalidade de condução de voz, contra a nota Ré # ascendente do acorde
de Si Maior, imprime ao loop de Creep um caráter único
que pode contribuir para o dramático sentido de desesperança da canção: 27 o Ré # sobe para o Mi natural,
mas o Mib repetidamente reverte este movimento para
baixo fechando novamente sobre o Ré natural e Sol. Yes
we can não contém nenhum cromatismo descendente.
Apesar das claras diferenças entre Yes we can e Creep,
essas duas canções definitivamente compartilham mais
coisas em comum do que o encadeamento inicial I-III do
loop quaternário de quatro compassos em Sol Maior. A
questão é: como uma canção raivosa de auto-comiseração, que trata de um personagem pilantra e esdrúxulo
pode ter alguma coisa musicalmente significativa em
comum com um personagem que afirma uma crença coletiva na esperança, como ocorre em Yes we can.
Uma razão poderia estar na ideia levantada por outros
membros da IASPM, a de que o encadeamento apresenta uma forte qualidade de movimento para um lugar
diferente, do tipo para cima e para fora que se observa
no baixo ascendente I-III-vi e no movimento melódico
5 - #5 - 6 (voz interna Ré - Ré# - Mi) já mencionado; e
que este movimento para cima e para fora indo para
um lugar diferente é essencial tanto para expressar
confiança na superação de dificuldades – “yes, we can”
(“sim, nós podemos”’), quanto para vociferar aversão a
qualquer coisa que gere auto-repulsa. O loop de acorde
de Yes we can não tem a escorregada cromática descendente de Creep, nem seu encadeamento I-III, seguido
pelo segundo encadeamento IV-II (Dó Maior - Lá Maior)
direcionalmente “de engano” de Dock of the bay, possui
nenhum dos efeitos para frente-e-para trás daqueles
dois acordes vai-e-vem daquela canção. De fato, para
aprofundarmos na questão do significado dos acordes
de Yes we can, precisamos examinar o material comparativo que apresenta os outros dois acordes do loop da
canção de Obama: vi e IV. Para ser mais preciso, precisamos encontrar IOCMs que apresentem loops harmônicos no esquema I – x - vi - IV, no qual x é um alternativa para III como meio viável de passar de I para vi. O
acorde x mais comum seria, é claro, iii ou V (no tom de
Sol Maior: Si menor ou Ré Maior).
14
7 - I – iii – vi - IV
Os quatro primeiros acordes de What becomes of the
brokenhearted? (RUFFIN, 1966) são Bb → Dm → Gm →
Eb (ou, em termos relativos, I→iii→vi→IV), que parece
ser o que estamos procurando. Infelizmente, este não
é o IOCM curinga que precisamos, porque a sequência de acordes na verdade se apresenta com inversões,
Bb/F → Dm/F → Gm → Eb/G (ou, em termos relativos, I5→iii3→ vi→ IV3): três das quatro tríades estão
invertidas. É verdade que não há uma linha do baixo
em graus conjuntos cobrindo o intervalo de uma quarta
justa ou intervalo maior nesta sequência, como ocorre
em A Whiter shade of pale (PROCOL HARUM, 1967) ou,
na voz de Clapton, Bell-Bottom blues (DEREK AND THE
DOMINOES, 1970). Entretanto, as inversões das tríades
e o caráter de nota pedal na linha do baixo na canção
de Ruffin criam um efeito parcial de estaticidade harmônica que não se resolve em um movimento substancial até muito mais à frente na peça. Além disso, assim
como Bell-bottom blues de Clapton, a sequência inicial
de What becomes of the brokenhearted? não é em loop
e seu prolongamento contém harmonias incompatíveis
com os acordes no estado fundamental e sistematicamente sem swing de Yes we can. 28 Soma-se a isso o fato
de que a canção da Mowtown é claramente orquestrada
de maneira muito diferente, com piano, cordas, backing
vocals e percussão. Talvez o iiiq em 4/4 e com q = 100
com timbre de voz masculina, semelhante ao que se ouve
em 0:31 na canção de Obama possa atenuar algumas das
diferenças acima mencionadas. Se for o caso, conexões
interobjetivas eventuais entre elas são improváveis de
fundamentarem uma parecença harmônica audível.
Incipts harmônicos I-iii no estado fundamental não
são incomuns em outros tipos de canção da música
pop anglofônica. Por exemplo, Puff the magic dragon
(PETER, PAUL & MARY, 1963), The Weight (THE BAND,
1968) e Dan­iel and the sacred harp (THE BAND, 1970),
todas começam com I-iii-IV, enquanto que Sukyaki
(SAKAMOTO, 1963) 29 e Hasta mañana da banda sueca
Abba (ABBA, 1974), ambas apresentam a progressão Iiii-vi. O encadeamento harmônico ocorrendo mais no
meio da canção e progredindo do I grau para o IV ou
vi graus, passando antes pelo iii grau, também ocorre
em Hangman (Pe­ter, Paul and Mary, 1965), assim como
em pontos proeminentes de It’s all over now Baby Blue
(1965: I-iii-IV) e I pity the poor immigrant (1968: I-iiivi) de Bob DYLAN. 30 Exceto por Sukiyaki e Hasta Mañana, todas essas canções pertencem aos repertórios folk
e folk rock norte-americano. Além disso, a canção
Hangman, as duas canções de Dylan e as duas faixas
da banda de rock canadense The Band (que acompanhou Dylan entre 1964 e1967) apresentam letras que
divergem da temática de amor, diversão, raiva adolescente e nostalgia do pop. Apenas uma das canções,
The Weight, utiliza um loop de acordes, I-iii-IV-I com q
= 124 em um 4/4 regular com um acorde por compasso. Assim como Hangman, a letra de The Weight conta uma história de experiências negativas e positivas,
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
contrastantes, enquanto que o I-iii-vi de I pity the poor
immigrant de Dylan acompanha a virada em direção
à justiça no final de cada verso. 6 Por outro lado, embora todas essas canções apresentem um violão com
batidas simples em progressões I-iii-IV ou I-iii-vi, com
todos os acordes no estado fundamental, apenas uma
delas (The Weight) apresenta um loop de acordes, e
mesmo assim, como uma unidade de três acordes, e
não de quatro. Mais ainda, nenhuma das canções tem
a progressão I-iii-vi-IV, que seria a variante mais próxima do I-III-vi-IV de Yes we can. Resumindo, mesmo
que haja similaridades e algumas possíveis referências
às canções folk e folk rock norte-americanas com letras sérias, realmente precisamos buscar similaridades
harmônicas mais convincentes em outras plagas.
8 - I - V - vi - IV
A segunda de nossas duas alternativas para o III grau
como elemento de ligação entre o I e o vi graus (entre Sol
Maior e Mi Menor em Yes we can) é o V grau (Ré Maior em
Sol Maior). A simples questão harmônica que se coloca é
que o V grau é o relativo maior do iii grau (uma tríade de
tonalidade específica em estado fundamental no terceiro
grau da escala maior) e que, assim como o ii grau ou o
III grau, o V grau contém duas notas adjacentes à tríade
alvo, que é o vi grau. 32 Esta alternativa do segundo acorde muda o loop de I-III-vi-IV (Yes we can) para I-V-vi-IV.
Convenhamos que esta sequência soa bastante similar ao
início do Canon de Pachelbel – ║: V │vi -iii │IV-I │ IV-V
:║ –, um padrão que parece ter sido disseminado amplamente na música pop de língua inglesa. 33 Esta progressão
de acordes constitui toda a base harmônica de All together now (1991) da banda de Liverpool THE FARM, com
andamento q =108 em 4/4 e sua taxa de ritmo harmônico de um acorde por compasso. 34 Mais especificamente, a sequência I-V-vi-IV, também em 4/4 e com taxa de
um acorde por compasso, pode ser escutada no início de
cada verso de Let it be (1970: q =76 |C |G |Am |F) dos
BEATLES, bem como, com taxa de dois acordes por compasso, em No woman no cry (1974: q = 78 |C G3|Am F)
de Bob MARLEY. O mesmo I-V-vi-IV também acompanha
a deixa do coro em Country roads (1971: q =80 |D |A |Bm
|G) de John DENVER e Not ready to make nice (2006:
q=86 ║: G |D |Em |C :║ ) da banda country norte-americana DIXIE CHICKS. 35 Esta sequência de acordes também ocorre em canções barulhentas e otimistas de rock
como We’re not going to take it (TWISTED SISTER, 1984:
q =144) ou Another girl another planet (THE ONLY ONES,
1978: q =156), mas o andamento, rítmica, instrumentação
e tipo de impostação vocal nessas canções seriam uma
tentativa muito distante do caminhar relativamente tranquilo e ordenado, sem firulas dos acordes de Yes we can.
36
De fato, a sequência de acordes da canção de Obama
utiliza um andamento e um ritmo de discurso que têm
muito mais em comum com as canções extremamente
populares mencionadas antes. Mas a história não acaba
aí. All together now, Let it be, No woman no cry, Country
roads e Not ready to make nice, todas elas têm um caráter
antêmico. Todas elas são eminentemente cantaroláveis e
todas elas apresentam letras que expressam esperança ou
estímulo frente a problemas ou tempos difíceis. Tudo bem,
a letra de Country roads menciona, apenas de passagem,
um discreto arrependimento – “Tenho a sensação de que
deveria ter voltado pra casa ontem. . .” – mas todas as
outras apresentam, claramente, experiências tanto de dificuldades quanto de esperança, como mostra o Ex.4.
O vídeo Yes we can com a canção Yes we can encapsula
os tipos de sentimentos listados na coluna Esperança,
estímulo, determinação da tabela acima (Ex.4). A coluna Problemas, no caso da canção de Obama, seria preenchida com citações como “escravos e abolicionistas”,
“imigrantes [que desbravam] os confins implacáveis”,
“os trabalhadores [que tiveram de] organizar”, “as mulheres [que tiveram] de lutar pelo voto”, “os obstáculos
[que] estão no nosso caminho”, o “coro de cínicos que
fala mais alto e mais dissonante”, e “a garotinha que
estuda na escola desmoronando em Dillon”. Além do
slogan “Yes we can” que diz tudo, a coluna três também
abrigaria “eles forjaram um trilha”, “Rei que nos levou
ao topo da montanha e nos apontou o caminho da Terra
Prometida”, “oportunidade e prosperidade”, “curar esta
nação”, “consertar este mundo”, “nunca houve nada de
falso com a esperança” etc.
Embora nenhuma das quatro canções mencionadas no
Ex.4 apresente um acompanhamento de violão de seis
cordas com batida simples, todas elas, assim como Yes
we can, transcorrem com a regularidade de um acorde
para cada compasso ao longo de períodos de 4 compassos em métrica 4/4. Dois deles (No woman no cry e Not
ready to make nice) repetem a sequência I-V-vi-IV pelo
menos duas vezes em seguida, enquanto que a letra de
todas as canções, incluindo Yes we can, justapõe experiências de dificuldades e esperança.
8 - IOCM em combinação
Seria realmente uma surpresa se houvesse qualquer
outra canção que contivesse o mesmo tipo de loop de
acordes, como ocorre em Yes we can, tocada com andamento semelhante e de maneira semelhante em relação
à instrumentação, tonalidade e métrica. Por outro lado,
o IOCM apresentado acima mostra que uma variedade
de elementos encontráveis na tradição da música pop de
língua inglesa está incorporada na sequência de acordes
de Yes we can. Deve-se deixar claro também que aqueles
elementos estruturais específicos são geralmente associados àquelas tradições com noções, atitudes, emoções,
atividades, eventos e processos que, juntos, constroem
um campo semântico razoavelmente coerente e conotativo. As características estruturais mais importantes e
seus principais PMFCs (Campos Paramusicais Conotativos, do inglês Paramusical Fields of Connotation) podem
ser sumariados, a grosso modo, na tabela do Ex.5.
Resumindo, há boas razões para acreditar que os acordes
de Yes we can, ao recorrerem a tradições específicas da
música popular em língua inglesa, contribuem para co15
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
Canção
Problemas
The Farm:
All together now
(1991)
Esperança, estímulo, determinação
“…forefathers died, lost in mil­lions for a country’s pride”;
“All those tears shed in vain; Noth­
ing learnt and nothing gained”.
“…they stopped fighting and they were one”;
“‘hope remains”; “‘Stop the slaughter, let’s go
home”; …”joined together”; “All together now”.
[“… antepassados morreram, perdidos entre
milhões pelo orgulho de um país”; “Todas
aquelas lágrimas derramadas em vão; não
aprendemos nada e não ganhamos nada”.]
“times of trouble”; “the broken hearted people”; “the night is cloudy”
Beatles:
Let it be (1970)
Bob Marley:
No woman no cry
(1974/5)
The Dixie Chicks:
Not ready to make
nice (2006)
[“tempos difíceis”; “o povo desiludido”; “a
noite está nublada”.]
“The government yard in Trenchtown“; “observing the hypocrites“; “good friends we’ve
lost’“.
[“O quintal do governo em Trenchtown”;
“observando os hipócritas”; “os bons amigos
que perdemos”.]
“I’ve paid a price and I’ll keep paying“; “too
late to make it right“; “sad, sad story“; “my
life will be over“.
[“Paguei um preço e continuarei pagando”;
“tarde demais para consertar”; “triste, triste
história”; “minha vida será finda”.]
[“… eles pararam de lutar e se tornaram um
só”; “a esperança permanece”; “Pare a matança, vamos para casa”; “…unidos”; “Todos
juntos agora”.]
“Mother Mary comes to me“; “words of wisdom“;
“There will be an answer“; “Still a chance“; “A
light that shines on me“.
[“Mãe Maria venha a mim”; “palavras sábias”;
“Haverá uma resposta”; “Ainda uma chance”;
“Uma luz que brilha em mim”.]
“No woman no cry“; “dry your tears“; “I’ll share
with you“; “got to push on through“.
[“Não, mulher, não chore”; “seque suas
lágrimas“; “Dividirei com você”; “temos que
continuar”.]
“I’m through with doubt“; “I’m not ready to back
down“; [I won’t] “do what… you think I should“.
[“Chega de dúvidas”; “Não estou disposto me
retirar“; “Não farei ... o que você acha que eu
deveria”.]
Ex.4 – Tabela comparativa com frases-chave ”superando dificuldades” em letras de
canções pop antêmicas que apresentam a variante I-V-vi-IV dos acordes de Yes we can
Características estruturais gerais
(sempre 4/4 em
andamento moderado)
Conotações
(PMFCs)
Gênero(s)
(anglófono[s])
Sol Maior e outros acordes fáceis em
violão acústico com 6 cordas de metal
Relacionado
ao folk
Fácil de tocar, participativo, democrático, politicamente
progressista, “sim, nós podemos”
I - III
Pop
I - iii - vi
Folk, folk rock,
country rock
IV - I
Gospel, soul, rock
Pop de lingual inglesa, afirmativo, determinado, participativo (“Amém”)
I - V - vi - IV
Pop, rock
Vai da dificuldade ao estímulo, determinação e esperança,
antêmico, participativo, politicamente progressista
Orientação para cima e para fora, possivelmente
problemático
Narrativo, do povo
Ex.5 – Tabela-resumo dos IOCMs harmônicos e seus respectivos PMFCs em Yes we can.
16
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
notações de estímulo, engajamento, afirmação, divisão do
poder e participação democrática que parece fazer parte
do ethos e programa político de Barack Obama. A justaposição entre dificuldade e esperança que se observa no
IOCM I-V-vi-IV (Ex.4) corresponde às citações do discurso
de Obama sobre escravos, abolicionistas, imigrantes, trabalhadores, mulheres e sua determinação em superar as
diversas formas de injustiça. Olhando de perto um exemplo
muito mais recente e específico, vale a pena acrescentar
que as Dixie Chicks utilizaram uma variação do I-V-vi-IV
do loop de acordes de Yes we can para acompanhar sua
determinação de desafiar as ameaças pessoais que resultaram do fato da banda expressar a vergonha que sentiu pelo
fato do ex-presidente norte-americano George Bush ser
do mesmo estado natal que elas, o Texas. 37 Nas palavras
de Obama, foi um tempo para mudanças e, mesmo, nas
palavras de Dylan, os tempos são, espera-se, de “mudanças
prá valer” (“a-changing for real”).
Embora este artigo já passe de 8.000 palavras, ainda
há muito mais a ser dito sobre a música do vídeo da
eleição de Obama e suas conotações. Pode-se argumentar, por exemplo, que o caráter antêmico do IOCM
I-V-vi-IV não seja de grande importância para Yes we
can e para sua letra, que é quase totalmente falada.
Mas este argumento se esvazia em pelo menos um
ponto: quais gravações consistindo de frases curtas
chamativas apresentadas por diversos artistas, um depois do outro, formando uma série de conclamações,
existem no gênero das canções pop reconhecidamente desde, pelo menos, Do They know it’s Christmas? da
BAND AID (1984). E canções nesta forma – que chamo
de charity stringalong (canções de solidariedade com
solos de cantores) –, invariavelmente envolvendo uma
chamada de participação em uma causa nobre. 38 Este
cantar ou declamar consecutivamente, ao invés de simultaneamente é simplesmente uma outra maneira de,
musicalmente, apresentar um sentido de comunidade,
que se pode comparar a um salmo ou hino. Yes we can
combina, por assim dizer, o universo harmônico comunitário progressista da revista Sing out! 39, com um tipo
de comunidade beneficente e participativa em prol de
uma causa humanitária.
Os acordes de Yes we can também se referem a outras
tradições da música popular anglófona, como a banda
de rock formada por quatro homens (por exemplo, os
Beatles, a primeira formação do Radiohead etc.), country-rock e folk-rock (por exemplo, The Band) e soul (por
exemplo, Otis Redding). Além disso, Yes we can acrescenta o rap e a pregação afro-americana àquela mistura
de estilos, fundindo-os em um único produto. Esta fusão
certamente parece se alinhar com os objetivos de unificação e colaboração de Obama. Entretanto, todas essas
questões – a inclusão musical de expressões da comunidade, o papel do rap e da pregação religiosa em Yes
we can, e sua relação com o contexto político no qual
o vídeo foi produzido e utilizado – estão, infelizmente,
fora do escopo deste artigo.
Glossário:
Para uma lista completa de termos e abreviaturas da análise musemática, veja www.tagg.org/articles/ptgloss.html
Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja
p.27-30 do Tagg’s Har­mony Handout em www.abretagg.
org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf
Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo criado por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre
dois acordes, por exemplo, entre as tríades de Si  Menor e
Sol  Maior no início da Marche funèbre de Chopin, também
conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG, 1989).
Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC.
Comparação interobjetiva (Interobjective comparison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para
descrever a comparação musical de intertextos de um ou
mais elementos estruturais de uma obra musical com outra.
Estésico: Do francês esthésique (Molino, via Nattiez), é
um adjetivo relacionado à aesthesis, ou seja, à percepção
da música, ao invés da produção/construção/criação/realização musical. Basicamente, o mesmo que recepcional e
o oposto de construcional ou poïético. Na música, busca
descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de
suas qualidades conotativas percebidas, ao invés de sua
construção, por exemplo, “delicado”, “som de detetive”,
“allegro” ao invés de “con sordino”, “acorde menor com
sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” etc.
Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo
criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmonias baseadas na superposição de terças que se entrelaçam (por exemplo, tríades comuns, acordes de sétima,
acordes de nona etc.), ao contrário da harmonia quartal,
em que há a superposição de quartas.
IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interob-
jetiva (Interobjective Comparison Material), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais
nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra
musical que é objeto de análise.
Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM.
Musema: Menor unidade de significado musical. Para
o conceito original, veja o artigo de Charles Seeger On
the moods of a musical logic no Journal of the American
Musicological Society, v.13, p.224-261 (SEEGER, 1960);
re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975
(Berkeley: University of California Press, 1977, p.64-88;
musema é definido na p.76).
Paramusical: Qualidade de um elemento semiologicamente relacionado a um discurso musical específico sem
ser estruturalmente intrínseco àquele discurso. Neologismo criado por Phillip Tagg em 1983 que significa literalmente “ao lado da música”.
17
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conota-
ção (Paramusical Field of Connotation), um neologismo
criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas).
De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusical Field of Comparison).
Poïético: Do francês poïétique (Molino, via Nattiez), é um
adjetivo relacionado à poïesis, ou seja, o fazer musical, ou
invés da percepção musical. Basicamente, o mesmo que
construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Na
música, busca descrever um elemento da estrutura musical do ponto de vista de sua construção, ao invés de suas
qualidades conotativas percebidas, por exemplo, “con
sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” ao invés de “delicado”, “som
de detetive”, “allegro” etc.
Turnaround: Sequência repetida de acordes, geralmente
em número de três ou quatro, ocupando uma frase de dois
a quarto compassos, por exemplo, a sequência de acompanhamento I-vi-ii/IV-V, também conhecida como vamp
(termo usado, por exemplo, na frase “vamp till ready”).
Referências de textos:
BJÖRNBERG, Alf. On aeolian harmony in contemporary popular music. Org. Göteborg. IASPM - Nordic Branch Working Papers, no. DK 1. 1989 (também disponível online em www.tagg.org/others/bjbgeol.html) (Acesso em 18 de março, 2009).
HARALAMBOS, Michael. Right on: from blues to soul in black America. London: Eddison Press: 1974.
MOORE, Allan F. Patterns of harmony. Popular Music, v.11, n.1, 1992. p.73-106.
VEGA, Carlos. Panorama de la música popular argentina. Buenos Aires: Losada: 1944.
TAGG, Philip. Glossary of special terms, abbreviations, neologisms, etc. used in writings by Philip Tagg. www.tagg.org/
articles/ptgloss.html. (Acesso em 19 de outubro de 2009).
______. Tagg’s harmony handout. www.tagg.org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf . (Acesso em 19 de outubro de 2009).
Referências de áudio:
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fevereiro, 2008; gravado em 31 de janeiro, 2008).
ANDERSSON, Lena. Hej du glada sommar. Polar POS 1175. 1973.
BACH, Johann Sebastian. Air, Orchestral Suite in D Major (BWV 1068), 1731. Leipzig: VEB Deutscher Verlag fur Musik
(1973); also on Six Brandenburg concertos and four orchestral suites (Ouverturen). Archiv 423 492-2 (1988).
BAND AID. Do They Know It’s Christmas?. FEED 1 [single], 1984.
BEATLES, The. She loves you. Parlophone 5015. 1963.
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DANIELS, Charlie. A Few more rednecks. Radio special. Epic 1780. 1989.
DENVER, John. Country roads. Poems, prayers and promises. RCA Victor SF 8219. 1971.
DEREK AND THE DOMINOES. Nobody knows you when you’re down and out; Bell Bottom Blues. Derek and the Dominoes.
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18
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Referência de vídeo:
PECK, Cecília; KOPPLE, Bárbara. Shut up and sing (Cabin Creek Films/Weinstein, 2006).
19
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
Notas
1. O vídeo, que nunca foi oficialmente sancionado pela campanha de Obama, foi disponibilizado online em fevereiro de 2008 e, até julho do mesmo ano,
foi assistido mais de 21 milhões de vezes. O vídeo é de autoria de “Will.i.am” (nome artístico de William Adams) e foi dirigido por Jesse Dylan, filho de
Bob Dylan. Fonte: www.en.wikipedia.org/wiki/Will.i.am (Acesso em 15 de março de 2009).
2. O loop de acordes ║: Em |C - Am:║ / ║:Em - Em7 - C - Am:║ de Southern man não será discutido neste artigo. É, na verdade, uma variante dos
acordes vai-e-vem (shuttle chords) no modo eólio (BJÖRNBERG, 1989).
3. Meus comentários foram enviados à lista da IASPM em 19 de Janeiro de 2009.
4. Estou considerando o tom da peça como Sol Maior (I grau), mesmo que a matriz e a gravação ao final, na verdade, termine em Dó Maior (IV grau).
5. No acorde de Dó Maior no início de Not ready to make nice (2006), as Dixie Chicks utilizam o mesmo efeito de nona adicionada (add9). Veja www.
youtube.com/watch?v=IHH8bfPhusM (Acesso em 6 de fevereiro de 2009).
6. Como explica Carlos VEGA (1944, p.160), se referindo à musica nessa tradição, “No hay melodias en mayor y melodias en minor: hay simplemente melodias bimodales” [não há melodias em maior ou menor: há simplesmente melodias bi-modais”.
7. La Folia foi uma canção bastante popular no início do século XVI, provavelmente de origem portuguesa, também conhecida como Les folies d´Espagne
e que serviu de tema para muitas variações no século XVII.
8. De fato, quando eu estava produzindo uma canção de solidariedade no Chile com nossa banda RÖDA KAPELLET (Solidaritetssång för Chiles folk, 1974),
optei, sem refletir o porquê naquela época, pela matriz VI–III–V–i (F–C–E–Am). Todos os músicos envolvidos nesta performance, mais Pedro
van der Lee (musicólogo e performer argentino-sueco e tocador de huayño), consideravam a peça em Lá Menor, e não em Dó Maior. As outras canções
mencionadas por Oro­zco apresentam características semelhantes. Polo Margariteño também é bi-modal — G D (B) Em Am B Em — e Rio Manzanares, harmonicamente, segue quase como Quiaquenita — G C E Am (VII–III–V–i). A versão de Elida Nuñes de Uruchaqina, referida por Orozco, é
melodicamente bi-modal, mas na sua performance, não se observa nenhuma mudança de campo harmônico. Há, sim, uma espécie de fluxo permanente
entre Lá Menor e Dó Maior. Sobre o comentário de VEGA (1944) a respeito de bi-modalidade, veja a nota anterior no presente artigo.
9. A mudança de Si Maior para Mi Menor pode ser um tipo de progressão mais direcional, com função dominante (como um tipo de cadência interrompida), mas ocorre tão claramente no meio da sequência que apresenta mais o caráter de uma progressão tonal temporária do que de uma finalização.
10. Por exemplo, comparando-se a sequência C G D A E (plagal) de Jimi Hendrix com a sequência (B) E A D G (função dominante) de Sweet Georgia Brown. O jazz modal e o free jazz estabeleceram outras regras tonais, mas quase todos os outros tipo s de jazz, inclusive o bebop, se baseiam
claramente na direcionalidade V-I e não IV-I.
11. As DIXIE CHICKS, por exemplo, terminam ambas Not ready to make nice e Taking the long way round (2006) com V–IV[–I], uma sequência mais
idiomática do que V-I. O modo jônico e o passo harmônico V-I aparecem em alguns tipos de música country, mas sua ausência também acontece.
Esta característica tonal pode ser derivada de sua preponderância relativa, dentro das músicas tradicionais afro-britânico-americanas, em modos que
apresentam a 7ª maior a partir da tônica.
12.Sol Maior é uma das tonalidades preferidas de DYLAN. As seguintes canções são também em Sol Maior, embora sejam articuladas de maneira diferente
do que acontece em The Times they are a-changing ou Yes we can: I pity the poor immigrant (em 3/4, 1968), I shall be released (com swing), Lay, lady,
lay (com órgão e violão de aço, 1969), Don’t think twice (com palhetadas sistemáticas, 1963) e It’s all over now Baby Blue (Sol maior, mas com uso do
capotraste preso no braço do violão, 1965).
13.O acorde da tônica Sol tocado na primeira posição marca o início de outras canções de GUTHRIE, como All you fas­cists are bound to lose e Hey Lolly Lolly
(1944). Mesmo a sempre popular This land is your land (1944) de Guthrie, que foi cantada nas festividades de inauguração da campanha de Obama,
começa com um acorde de Sol Maior com cordas soltas, embora a canção seja m Ré Maior com o loop de acordes ║: G|D|A|D :║.
14.Por exemplo, School’s out (COOPER, 1972), A Few more rednecks (DANIELS, 1989), I Can’t get enough of your love babe (WHITE, 1974).
15.Os acordes mais fáceis de se tocar no violão, na primeira posição, são Mi Maior, Mi Menor, Sol Maior, Lá Maior, Lá Menor, Dó Maior, Ré Maior e Ré Menor. Não tive qualquer instrução no violão, mas posso produzir esses oito acordes sem dificuldade. Posso mesmo, geralmente com alguns milisegundos
de atraso, fazer acordes com pestana como aquele Si Maior de Yes we can. Não consigo lembrar de uma única “canção de protesto” popular dentro das
tradições do folk ou folk rock na língua inglesa que não esteja em uma daquelas oito tonalidades. A tonalidade menos comum seria Ré Menor, enquanto
que, certamente, Sol Maior e Ré Maior estão entre as tonalidades mais comuns neste tipo de música.
16.Veja também as versões de CLAPTON (1971, 1992) e WINWOOD (1967).
17.Seria interessante incluir neste estudo a progressão I–III–IV que ocorre na sequência ao final de Imagine de John Lennon (1971): IV–V–I–III–IV–V–I.
Com a letra, temos: [IV] “You may [V] say I’m a [I] dreamer [III] but I’m [IV] not the only [I] one; [IV] I hope some [V] day you’ll [I] join us [III ‐ IV] and the [V] world will [I] live as one” {traduzindo: [IV] “Você pode [V] dizer que sou um [I] sonhador [III] mas não [IV] sou o [I] único; [IV] espero que algum [V] dia você se [I] junte a nós [III ‐ IV] e aí o [V] mundo [I] viverá como um só]. Infelizmente, tive de excluir esta
referência porque o seu III grau não é um passo harmônico inicial e nem é seguido pelo vi grau.
18.O termo lo-fi (low-fidelity, ou “baixa fidelidade”) foi criado por Murray Schafer como antônimo de hi-fi (high-fidelity).
19.Veja a paródia de Stan FREBERG (1956) da música The Great pretender dos THE PLATTERS (1955).
20.Os acordes de Abilene são G|B|C|G|A|D|G C|G [D]| (com swing 4/4 rápido), enquanto que os de Crazy são G|B7|Em|Em|D |D7 |G |G [D]| (balada
um pouco lenta). Os acordes de Who’s sorry now são E|G7|C7|F7|B7|E etc. no tom de Mi Maior e andamento q = 88, e os acordes The Charleston são B|D7|G7|C7| F7|B no tom de Si Maior e andamento q= 96.
21. Por exemplo, na gravação de CLAPTON (1972), o andamento é q. = 56.
22.Note a distinção entre os acordes vai-e-vem (que BJÖRNBERG,1989, chama de pendu­lum) e o loop de acordes. No passo harmônico vai-e-vem, o
acordes vão e depois voltam, mas no loop, os acordes giram ao redor. São necessários três pontos pelo menos para se criar uma forma tri-dimensional. Quanto maior o número de ângulos em uma forma bi-dimensional, mais ela se parecerá com o círculo. O diamante que se forma no campo
de baseball norte-americano tem quatro ângulos (as “bases”), o que também acontece na área do pitch do jogo inglês rounders. Pode-se caminhar
ao redor de um quarteirão completamente retangular. Mas não se caminha ao redor de uma linha reta entre dois pontos, não pelo menos dentro
da física de Newton. Ocorre o mesmo com as sequências de acordes. Incidentalmente, Sitting on the dock of the bay também contém os sons de
gaivotas na praia obrigatórios, além do barulho das ondas do mar.
23.O contexto desta frase na letra de Yes we can é o seguinte: “ ‘Yes we can’. It was sung by immigrants as they struck out from distant
shores and pioneers who pushed westward against an unforgiving wildeness. ‘Yes we can’ “. [“ ‘Sim, nós podemos”, cantaram os imigrantes,
quando se lançaram de praias distantes, assim como os pioneiros que se embrenharam no oeste contra a natureza inóspita. ‘Sim, nós podemos’ ”.]
24.Quando digo “one five oompah” [“I-V um-pá”], quero dizer a levada do contrabaixo em que “oom” são semínimas pontuadas leves no grave nos tempos
1 e 3, e “pah” são semicolcheias pesadas no registro médio. Para cada acorde, o baixo toca primeiro a fundamental do acorde da cifra e, depois, a quinta
em relação àquela nota. Por exemplo, Mi e Si para o acorde de Mi Maior; Sol # e Ré # para o acorde Sol #, Dó# e Sol# para o acorde de Dó# etc. Algumas
vezes, a ordem pode ser inversa quando for o acorde do V grau. Por exemplo, Fá# e Si para o acorde de Si Maior (V) no tom de Mi Maior (I).
20
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.
25.A sequência de acordes nos 12 compassos dos versos de A World without love é a seguinte: ║: E|G#|C#m|C#m|E|Am|E |E |F#m |B |E ||1ª casa: C B
turnaround :║ 2ª casa: E ... seguindo até a ponte de 8 compassos ou até o final|. A instrumentação da canção consiste de: (1); os pesadamente pontuados “one-five oompahs” de Paul McCartney; (2) uma bateria simples e discreta; (3) uma batida simples do violão; (4) um órgão Vox acompanhando
com string pads praticamente inaudíveis junto com a melodia do verso no break instrumental. A linha vocal é cantada por vozes masculinas jovens de
maneira lírica e simples.
26.39% da canção Creep, que dura 4:00, corresponde a 1:34. A gritaria e o overdrive ocorrem em dois pontos desta gravação:
1:02 -1:24 (22”) e 2:06-3:08 (1:02”).
27.A canção Creep é única, dentro do conhecimento que tenho sobre outras canções que se baseiam na sequencia do loop I-III-IV-iv. Baseio esta interpretação de dramática desesperança não tanto na letra da canção, embora seu conteúdo contenha bastante drama e desesperança, mas na harmonia,
como é comum no tipo de análise musical exagerada que os alunos geralmente apresentam, geralmente com respostas do tipo alienado, com raiva,
sem esperança, desesperado, cínico etc. Experimente substituir o acorde de Dó Menor por Ré Maior ou Ré Menor ou Fá Maior.
28.Além de outras inversões de tríades, Brokenhearted contém um acorde de Mi diminuto e apresenta alternâncias bem marcadas para o campo de Dó
Maior-Lá Menor para depois voltar a Si Maior-Sol Menor.
29.Na verdade, Sukiyaki começa com acordes vai-e-vem plagais (I-IV-I no tom de Sol Maior) mas, antes, progride harmonicamente para I-iii-vi-V no
compasso 5 do verso.
30. A progressão iii-IV em Baby Blue ocorre mais ao final de cada verso (em “Look out, the saints are coming through” [“Cuidado, os santos estão passando”
no verso 1]. O iii‐vi reaparece logo antes do ral­lentando final ao final de cada verso de I pity the poor immigrant com Joan Baez no disco A Hard Rain
concert, 1976).
31. O tipo de letra contando histórias que se observa em Hangman, The Weight e I pity the poor immigrant de Dylan também ocorre em outra canção bem
conhecida que utiliza a partida harmônica I-iii [-vi] em andamento andante: A Day In the life (1967: “I read the news today” [“Leio as notícias de
hoje”], “A crowd of people stood and stared” [“Uma multidão de pessoas parou e encarou”], etc.) dos Beatles. Sem qualquer consciência dessa conexão,
nossa banda também utilizou este I-iii[-IV] por razões narrativas semelhantes em Revolutionens vagga (RÖDA KAPELLET, 1974).
32. O Ré e o Fá# do acorde de Ré Maior no tom de Sol Maior são ambos adjacentes à fundamental da tônica de Mi Menor.
33. Para um hilariante pot-pourri de canções de derivadas do Canon de Pachelbel, veja PARAVONIAN (2006).
34. Vale a pena mencionar que esta canção aparece no “. . . álbum Spartacus, o qual tem sido conectado. . . com temas favoritos da banda [The Farm], tais
como socialismo, fraternidade e futebol americano” (artigo All together now da Wikipedia (Acesso em 17 de março de 2009).
35. Voltando a falar, pela última vez, do repertório político de esquerda da banda de rock da qual fui membro de 1972 a 1976, talvez valha a pena comentar
que utilizamos o loop I-V-vi-IV em Sol Maior (G - D - Em - C) para acompanhar as seções narrativas da montagem de 10 minutos de Lärling (RÖDA
KAPELLET, 1976). A letra se refere ao tratamento injusto recebido por aprendizes na indústria e sua determinação de mudanças para melhorar de vida.
36. Don’t stop believing (1981) de JOURNEY tem um andamento mais moderado (q = 122) do que as faixas de Twisted Sister e Only Ones, e repete o
loop I-V-vi-IV durante os versos. Mas, suas quatro semínimas duras, amplificadas no piano e arpejos de semicolcheias pseudo-clássicos na guitarra
elétrica, revelam uma instrumentação muito diferente de Yes we can. Mesmo assim, a canção tem algum valor antêmico, com sua letra que clama
alguém a não desistir (“Não pare de acreditar”). Um outro exemplo de rock antêmico com I-V-vi-IV em Sol Maior é Free bird de LYNYRD SKYNYRD
(1973, q = 120). Entretanto, esta sequência harmônica faz parte de um período de 8 compassos - ║: I |V|vi|vi ] IV|IV|V|V :║ com o grau IV no compasso 5 iniciando uma segunda frase. Mais apropriada, bastante antêmica e politicamente progressista é a icônica canção sueca Man måste veta vad
man önskar sig (1972, ║: D|A|Bm|G :║; q = 120) da banda progressiva sueca HOOLA BANDOOLA. Entretanto, assim como ocorre com as referências
de RÖDA KAPELLET (notas de fim 7, 29, 33), mesmo com raízes estilísticas na tradição pop/rock anglo‐americana, a letra é em sueco, e não em inglês.
37. A história completa do incidente no teatro O2 Shepherd’s Bush Empire em Londres, em 2003, quando a cantora Natalie Maines das Dixie Chicks expressou sua vergonha de ter nascido no mesmo estado que o presidente George Bush e suas consequências para aquelas três heróicas musicistas jovens do
Texas é contada no tocante documentário Shut up and sing (PECK e KOPPLE, 2006).
38. Alguns exemplos destes grupos são Artists united against apartheid (1985), os suecos Svensk rock mot apartheid (1985), Hear’n aid (1986) e Disco aid
(1986). O verbo string along, de acordo com o Oxford Concise English Dictionary (1995), é uma expressão coloquial que significa “estar em companhia
de”. Singalong, de acordo com o mesmo dicionário, significa “uma canção que alguém pode cantar junto” ou “uma ocasião de canto comunitário”. Se
várias pessoas cantam ou falam, uma de cada vez e sucessivamente durante uma canção, elas certamente estão em companhia umas com as outras (e
também com a canção), mas elas o fazem consecutivamente e não simultaneamente: daí o termo stringalong.
39 Entre os fundadores da revista Sing Out! estão Pete Seeger, Woody Guthrie, Paul Robeson, Alan Lomax e Irwin Silber. Para uma descrição e história
da revista, veja www.singout.org/sohistry.html (Acesso em 18 de março, 2009)
Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). Co-fundador da International Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW),
publicou dezenas de artigos nos mais prestigiosos periódicos. Foi professor do Institute of Popular Music da University of
Liverpool (Inglaterra), onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia, análise, harmonia e
semiologia relacionados à música popular. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Research in the Humanities and Social Sciences (Suécia). É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop, entre elas
Röda Kapellet. Como compositor, escreveu obras corais e canções populares. É autor e colaborador de diversos programas
de rádio educacionais relacionados à música popular. Recebeu diversos prêmios nas áreas de composição, ensino e pesquisa.
Seu site www.tagg.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo,
no qual dispobiniliza gratuitamente significativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa.
Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado
e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro,
dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia da
música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais nos
principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista,
teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo
Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI,
Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão e Fabiano Araújo Costa.
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
Hermeto Pascoal: experiência de vida e a
formação de sua linguagem harmônica
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)
[email protected]
Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES)
[email protected]
Resumo: Estudo panorâmico sobre a trajetória musical e a formação das linguagens harmônicas do compositor, arranjador
e multi-instrumentista Hermeto Pascoal ao longo de suas fases musicais, linguagens que são geralmente associadas,
na música erudita, ao tonalismo, modalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta. São
observados como elementos de sua experiência de vida (cultural, social, religiosa e profissional) podem ter influenciado
a combinação vertical de sons na sua criação musical, bem como a sua proposta e utilização de conceitos como música
universal, cifragem universal, música da aura, música dos ferros e método do corpo presente.
Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; etnomusicologia brasileira; harmonia; análise musical;
auto-didatismo em música.
Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language
Abstract: Panoramic study about the musical trajectory and development of the harmonic languages of the Brazilian
composer, arranger e multi-instrumentalist Hermeto Pascoal through his musical phases, languages which are usually
associated with the “classical” terms tonalism, modalism, atonalism, polimodalism, soundscape and concrete music. It is
observed how elements of his life experience (cultural, social, religious and professional) may have influenced the vertical
combination of sounds in his musical output as well as his proposition and usage of concepts such as universal music,
universal chord notation, aura music, iron scraps music and present-body method.
Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music, Brazilian ethnomusicology; harmony; musical analysis;
autodidacticism in music.
“Eu uso a teoria, a teoria não me usa. . .”
Hermeto Pascoal (CAVALCANTI, 2004)
1 – Introdução
Este estudo panorâmico tem o objetivo de apresentar a
formação da linguagem harmônica na trajetória musical de Hermeto Pascoal. Conhecer o percurso não-convencional de sua formação nos mostra como surgem, se
acomodam e se integram, dentro da sua obra, as diversas nuances de sua linguagem harmônica, que tem sido
associada, na música erudita, aos termos tonalismo, modalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e
música concreta.
O conjunto de 366 peças do Calendário do som, bem
como a maioria de sua vasta produção, se associa à música tonal. Entretanto, os procedimentos peculiares de
Hermeto (músico de formação intuitiva, não letrada) de
se afastar e de se aproximar dos centros tonais em cada
uma delas, assim como sua grafia especial de cifras (que
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
22
explicita a condução de vozes), podem revelar um pensamento estruturado que, se nasceram de sua intuição
e autodidatismo brasileiros, encontram eco e explicação
nos princípios sistematizados por outro importante compositor do século XX, o europeu Arnold Schoenberg (músico de formação erudita, racional, mas autodidata como
Hermeto Pascoal).
Ao desenvolver o princípio da Monotonalidade (ou seja, a
manutenção de apenas uma tônica em uma peça ou porções significativas da mesma) e seus conceitos relacionados (Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tonalidade Suspensa, Transformação, Substituição, Regiões,
Regiões Intermediárias, Acordes Vagantes), SCHOENBERG
(2004, 2001, 1999) buscou simplificar as explicações para
os crescentes afastamentos harmônicos proporcionados
Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
por notas alteradas estranhas à tonalidade inicial. Esta
perspectiva inovadora foi aproveitada, no Brasil, por Paulo José TINÉ (2002) dentro do contexto do ensino da música popular, cujo repertório e práticas de performance
quase sempre evitam os conceitos de modulação, politonalidade e atonalismo.
Hermeto Pascoal e sua obra constituem um rico manancial de temas de estudo, e proveria temas para diversas
áreas de pesquisa em música: composição, performance,
etnomusicologia, educação musical, organologia, música
e tecnologia, sociologia e psicologia da música. Entre os
trabalhos acadêmicos sobre o compositor, destacam-se
sete dissertações de mestrado, em que a trajetória musical de Hermeto Pascoal serve de contexto para focos
diversos. Entretanto, ainda há uma grande dificuldade de
obtenção de fontes consolidadas e atualizadas sobre esse
tema. PRANDINI (1996) concentrou seu estudo nos elementos rítmicos, harmônicos e melódicos característicos
em improvisações que transcreveu de gravações de Hermeto Pascoal. TABORDA (1998) busca explicar a obra de
quatro músicos populares brasileiros (Hermeto Pascoal,
Caetano Veloso, Jards Macalé e Chico Mello) com base
em matrizes eruditas europeias. K. RODRIGUES (2006)
analisou o pianista Hermeto Pascoal juntamente com
mais sete outros destacados pianistas da música popular brasileira. ARAÚJO (2006), procurando avançar a proposta de TINÉ (2002), desenvolveu um modelo de análise
harmônica aplicado à realização de leadsheets de peças
selecionadas do Calendário do som, a partir de conceitos
harmônicos de Schoenberg (sistematizados e discutidos
por DUDEQUE, 2006), explicando a manutenção e afastamento de centros tonais na música de Hermeto. Dentro
do viés da semiologia, ARRAIS (2006) focou em aspectos
do ritmo, timbre e contorno melódico. A maioria das informações históricas nestes estudos quase sempre parte
de artigos divulgados pela mídia, muitas vezes conflitantes. Neste cenário, Luiz Costa-Lima Neto e Lúcia Campos
são exceções, pois oferecem discussões substanciadas em
fontes etnomusicológicas primárias, entrevistas com o
próprio compositor e seus parceiros em grupos diversos.
Luiz COSTA-LIMA NETO (1999) estudou a caracterização
de elementos rítmicos, harmônicos, melódicos e timbrísticos no período de Hermeto pascoal e Grupo (1981-1993).
Lúcia CAMPOS (2006) abordou a influência do forró,
choro e bandas de pífanos na rítmica do compositor. Luiz
COSTA-LIMA NETO (2000, 2008, 2010a, 2010b) se destaca como o autor que mais publicou trabalhos sobre a vida
e obra de Hermeto Pascoal em periódicos no Brasil e no
exterior (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz
como instrumento neste número de Per Musi às p.44-62).
É grande o número de discrepâncias em relação a datas,
nomes de pessoas, músicas e lugares a respeito de Hermeto
Pascoal. O site oficial do compositor informa que o escritor
baiano Roberto Torres “. . . está escrevendo a biografia do
Hermeto há mais de 20 anos. . .”. Ao que tudo indica, Torres,
que seria “. . . o pesquisador que mais conhecimento de
causa tem a respeito da vida e obra do Hermeto” (MORE-
NA, Aline e PASCOAL, Hermeto, 2009b), ainda não terminou este trabalho. No mesmo site, encontra-se também
uma errata de duas páginas (provida por Aline Morena e
pelo próprio Hermeto Pascoal) sobre outra fonte importante: o livro para crianças O Menino Sinhô, vida e música
de Hermeto Pascoal para crianças (VILLAÇA, 2007). Agradecemos a Hermeto Pascoal, Aline Moreno, Jovino Santos
Neto e Itiberê Zwarg por terem generosamente revisado as
informações históricas deste artigo.
Grosso modo e quase cronologicamente, a trajetória musical de Hermeto Pascoal pode ser dividida em oito fases:
I (1936-1942): do nascimento à idade escolar, período de
atenção e familiarização com sons de animais, melodias
da fala, objetos, instrumentos musicais e festas do interior em Lagoa da Canoa (Alagoas).
II (1943-1949): da infância à adolescência, período de prática instrumental e trabalho informal como músico (fole de
oito baixos/pandeiro) em Lagoa da Canoa e adjacências.
III (1950-1957): migração para grandes cidades do Nordeste (Recife, Caruaru, João Pessoa), consolidação profissional (sanfona/pandeiro) e experimentação com o piano.
IV (1958-1968): migração para grandes centros do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), mudança do foco de
sanfoneiro de regional para pianista de grupos instrumentais, desenvolvimento como compositor e multi-instrumentista e experiência em festivais da canção.
V (1969-1977): viagens aos Estados Unidos, gravações
como solista, consolidação internacional como compositor, arranjador e multi-instrumentista.
VI (1978-1993): consolidação da Escola Jabour com Hermeto Pascoal e Grupo, desenvolvimento da notação musical, experiência com gravadoras de pequeno porte.
VII (1994-2002): socialização da Escola Jabour, projetos musicais isolados, como a escrita do Calendário
do som, shows nacionais e internacionais com outros
solistas e grupos.
VIII (2003-presente): parceria com Aline Morena e formação do duo multi-instrumentista Chimarrão com Rapadura, rompimento com as grandes gravadoras multinacionais e projeto de socialização da obra de Hermeto
Pascoal na internet (partituras, textos, vídeos e gravações), shows com seu duo, grupo e big bands.
Quando não indicadas por citação, as informações históricas incluídas neste artigo resultam de um cruzamento
e concordância de dados das seguintes fontes: PASCOAL (2009a, 2009b, 2009c), MORENA e PASCOAL (2009a,
2009b, 2009c, 2009d), SIXPACK (2009), COSTA-LIMA NETO
(1999, 2000, 2008, 2010a, 2010b), VILLAÇA (2007), CAMPOS (2006), PRADINES (2006) e MARCONDES (1998).
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
2- A trajetória musical eclética de Hermeto
Pascoal
“A minha música começou no meu cordão umbilical. Foi quando eu nasci, o meu primeiro som foi esse. . .” Hermeto Pascoal
(BARROSO, 2009).
Hermeto Pascoal nasceu em 22 de Junho de 1936 no sítio
Olho d’Água em Lagoa da Canoa, no município alagoano
de Arapiraca, “filho de agricultores [Pascoal José da Costa
- ou Seu Pascoal, e Vergelina Eulália de Oliveira – ou
Dona Divina], albino e de olho virado” (O. RODRIGUES,
2003). Por parecer um pequeno homenzinho, recebeu
da família o carinhoso apelido de Sinhô (VILLAÇA, 2007,
p.5-7). Logo se familiarizou com os sons que o rodeavam
e vinham de fontes diversas: o fole do pai, os músicos
Vicente Cego e Juvenal Tatu que vinham tocar no bar do
pai, as sobras de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha,
os animais, o sino da igreja, as festas e cantos populares
de Lagoa da Canoa, os gritos dos vendedores na feira da
vizinha Arapiraca (VILLAÇA, 2007, p.8-25). Aos sete anos,
iniciou-se no fole de oito baixos, sem teclado, apenas
com botões, também conhecido como harmônico ou péde-bode, pela simplicidade. Mas uma simplicidade dentro
da qual Hermeto já vislumbrava combinações pouco usuais. Esse oito baixos em Dó de seu pai era essencialmente
diatônico, mas incluía um Fá sustenido, segundo relata
Hermeto em uma entrevista a Álvaro CAVALCANTI (2004,
CD 4; ouça a faixa única entre 7’:48’‘ e 8’:05’’). Seu Pascoal se animou, ao ver o talentoso filho tocando escondido seu fole, “. . .você vai agora é tocar, papai vai comprar um para você, eu vou vender aí uma vaca, um boi,
para comprar um bonito para você” (BARROSO, 2009). Do
universo musical de sua infância, também faziam partes
as flautas (pifes) de talo de mamona (carrapateira). Aos
11, com apoio da família, formou a dupla Os Galegos do
Pascoal com o irmão Zé Neto, também albino, revezando
fole e pandeiro em bailes da região (VILLAÇA, 2007, p.26).
No início de sua carreira profissional, Hermeto Pascoal
percorreu um caminho ligado à prática de música ao
vivo nas rádios. Os Galegos do Pascoal mudaram-se para
o Recife em 1950, onde foram contratados pela Rádio
Tamandaré. Conheceram Sivuca, que sentiu em Hermeto
“. . . ainda de calças curtas. . . ‘o fogo sagrado’ ” (SIVUCA,
2000) e o ajudou a ingressar na Rádio Jornal do Commercio, onde seu irmão já estava. Juntos, os três formaram
o trio O Mundo Pegando Fogo, nome imposto pelo produtor da rádio Amarílio Niceias e referência à cor rosada e cabelos avermelhados dos três albinos; no trio foi
também imposto a Hermeto o apelido de “Sivuquinha”.
Na estreia do grupo no Largo da Paz, sem ensaio e com
instrumentos novos que Hermeto e Zé Neto mal conheciam (sanfonas de 80 e 120 baixos, ao invés do fole de
8!), o grupo agradou, até o momento em que o locutor
pediu Vassourinha. Não conhecer o clássico do frevo em
Recife foi fatal, apesar da tentativa de Sivuca, que antes
de morrer considerou Hermeto “o Beethoven do século
XX” (SIVUCA, 2000), de lhes salvar a pele. Hermeto foi
obrigado, então, a tocar pandeiro na rádio. No progra24
ma ao ar livre A Felicidade bate à sua porta, Jackson do
Pandeiro lhe deu um conselho: “Hesmeto [Jackson não
conseguia falar Hermeto], se você ficar nesse negócio
de tocar pandeiro, você não vai pra frente não. Não vê
eu, estou começando a cantar, não vou ficar no pandeiro
toda hora não”. (BARROSO, 2009). Resultado: suspenso do
trabalho por quinze dias, por não aceitar tocar apenas
pandeiro e ser chamado de “Sivuquinha”, Hermeto foi enviado para a rádio de Caruaru e, Zé Neto, para a rádio de
Garanhuns, para recomeçarem da estaca zero (VILLAÇA,
2007, p.36-37). O maestro Giusepe Mastroianni da Rádio
Difusora de Caruaru percebeu que o jovem talento tinha
ouvido absoluto, o que levou Hermeto a procurar a escola
de música do maestro e violinista Laranjeiras. Mas deste
ouviu que não poderia aprender música ali devido à sua
deficiência visual, ao que respondeu: “Maestro, eu não
preciso das aulas para aprender música. Música eu já sei.
Vim até aqui para aprender como é que se escreve a música!” e logo decidiu que “Música não é para ver. Música
é para sentir. Se eu deixar de tocar só porque não consigo
ler as notas no papel, eu tô é frito!” (VILLAÇA, 2007, p.4243). Mas pediu ao amigo Zé Gomes que lhe comprasse um
livro de música, o Método para Acordeon do carioca Alencar Terra onde, pela primeira vez e aos dezesseis anos, em
meio ao oceano desconhecido de símbolos musicais, viu
“aquela bola branca, quatro tempos. . . aquela hastezinha.
. . a mínima pretinha. . .”. Aí, deixou de lado esta aprendizagem, pelo menos por um tempo, porque aquela “. . .
teoria ia me atrapalhar” (BARROSO, 2009).
Zé Neto mudou-se para o Rio de Janeiro a convite de Luiz
Gonzaga. Hermeto, aos 19 anos, retorna ao Recife, onde
passa a tocar sanfona no regional de choro da Rádio Jornal do Commercio. No ambiente das rádios, podia assistir
aos ensaios de grupos orquestrais com os maestros Guerra-Peixe, Clóvis Pereira, Duda e Joaquim Augusto. Com o
convite do guitarrista Heraldo do Monte para trabalhar na
Boate Delfim Verde, transfere sua técnica da sanfona para
o piano e aprende a tocar “jazz para americano ouvir. . .
[para] marinheiros da base militar americana” (VILLAÇA,
2007, p.48-49). Ainda no Recife, tocou no regional de Romualdo Miranda, cuja filha Ilza tornou-se sua esposa em
1954, com quem viveu 46 anos e teve seis filhos: Jorge,
Fábio (músico multi-instrumentista como o pai), Flávia,
Fátima, Fabíula [escrito assim mesmo!] e Flávio. Aceitando o convite de trabalhar no regional da Rádio Tabajara
em João Pessoa, Hermeto teve contato com diversos gêneros musicais – “bossa-nova, rock-and-roll, samba-jazz”
(VILLAÇA, 2007, p.51), começou a compor e construiu
uma grande reputação na Paraíba, mesmo sem saber ler
música. Atraído pela efervescência musical do sudeste do
Brasil, mudou-se para o Rio em 1958, para tocar sanfona com Pernambuco do Pandeiro em rádios. Na década
de 1960, em meio aos festivais da canção, viu surgir a
Bossa Nova, a Jovem Guarda, as canções de protesto e o
Tropicalismo. Embora não se alinhe a nenhum destes movimentos, Hermeto parece ter se identificado com aquele
que é considerado o mais sofisticado harmonicamente,
o que o levou a ser incluído no time de instrumentistas
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
“herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes)
da linhagem da bossa-nova” por Ana Maria BAHIANA
(1979-1980b, p.77). Para estudar o piano, instrumento
caro e trancado a “sete chaves”, mas que fazia parte do
instrumental básico das rádios e boates, Hermeto contou
com o “jeitinho brasileiro” de Heraldo do Monte na Boate
Delfim (VILLAÇA, 2007, p.49) e de Pernambuco do Pandeiro na Rádio Mauá (CAMPOS, 2006, p.83).
No Rio de Janeiro, Hermeto logo expandiu sua cultura musical tanto na música instrumental quanto acompanhando cantores em boates, como a Chicote. Tocou piano no
conjunto e na boate do violinista Fafá Lemos. Substiuindo
o acordeonista Chiquinho do Acordeom, fez parte, brevemente, do Trio Surdina com Fafá Lemos e o violonista
Garoto. Depois, participou do conjunto do maestro, flautista e saxofonista Copinha no Hotel Excelsior. Em 1961,
mudou-se para São Paulo onde, em 1964, a convite de
Airto Moreira, com o fim do Sambalança Trio (que tinha o
pianista César Camargo Mariano), fundou o Sambrasa Trio
(ROBINSON, 2000). Além de tocar em casas noturnas como
Stardust, sempre atento e autodidata, dedica-se ao estudo
da flauta e saxofone. Acompanhou cantores de festivais
como Geraldo Vandré, Edú Lobo e Marília Medalha (com
Ponteio, 1º Lugar no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1967). Mais tarde, se apresentou como
compositor de Serearei, cantada por Alaíde Costa no VII FIC
- Festival Internacional da Canção de 1972 e de O Porco
da festa cantada por Aleuda e ele no Festival Abertura da
Rede Globo de Televisão em 1975.
Hermeto sabia que acompanhar cantores era o ganhapão mais certo, mas sentia que não poderia se submeter
para sempre às exigências dos shows, rádio e TV:
“. . . sob a patrulha ideológica do nacionalista Geraldo Vandré,
Hermeto trajava terno e gravata e mantinha o cabelo bem curto.”
(COSTA-LIMA NETO, 2008, p.24)
“Nem modernismo nacionalista, nem cosmopolitismo antropofágico. O conflito de Hermeto com a intelligentsia urbana representada por Geraldo Vandré [diversas vezes acompanhado pelo Quarteto
Novo], de um lado, e com a vanguarda da música popular [termo
que não se aplica aqui, segundo Hermeto Pascoal] representada
por Gilberto Gil [o qual o Quarteto Novo recusou acompanhar
na música Domingo no parque], de outro, marcaram o caminho
pessoal que Hermeto escolheria em seguida.” (COSTA-LIMA NETO,
2008, p.14)
Finalmente, o vácuo após o relativo declínio da canção
brasileira com o fim dos grandes festivais abriu o espaço
para a música instrumental, que levaria Hermeto a uma
era de maturidade e autonomia musical:
“O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais,
nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros
murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente, incensurável e livre – se fizeram ouvir. . . mas o jejum forçado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por
música instrumental. . . só começou a registrar dados positivos de
crescimento a partir de 1974. . . A realização, extremamente bem
sucedida, de uma verdadeira maratona de música improvisada, em
78 – o Festival de Jazz de São Paulo, em setembro – serviu para
atestar a existência inequívoca de um interesse pelo gênero. . . e a
tendência ao modismo. ‘Ouço muita gente falar do Hermeto. Mas
poucos entendem’, afirmou Theo de Barros, ex-companheiro de
Hermeto no Quarteto Novo, em dezembro de 78. ‘Não sei se felizmente ou infelizmente, ele está sendo tratado como um modismo.
. .’ ” (BAHIANA,1979-1980b, p.79-81)
“Ao se encerrar a década [de 1970], a música instrumental tinha
no Brasil pelo menos dois grandes nomes. . . dois nomes que exemplificavam perfeitamente essa passagem da linha jazz/bossa para
uma linguagem mais misturada e mais ampla: Egberto Gismonti e
Hermeto Paschoal [sic.]” (BAHIANA,1979-1980b, p.82-83).
Em 1969, a convite da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira, que mandava notícias otimistas de
sua experiência de tocar com Miles Davis, Hermeto viajou
para os Estados Unidos. Lá, participou dos LPs Natural Feelings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto, atuando como compositor, arranjador e instrumentista. Através de Airto, Hermeto e Miles Davis se conheceram, após
um show do jazzista norte-americano. Hermeto lembra
da súbita amizade que se estabeleceu entre os dois:
“Aquele jeitão dele, meio carrancudo. . . você tem que acreditar
em alguma energia celestial. Isso foi antes de começar o show.
Eu acredito nisso, senti um vibração bonita dele. Aí ele fez o show
dele, eu assisti o show, depois eu fui em um, dois, três shows. A
música dele eu não achava boa naquela época. . . aquele rock. . .
Mas ele aí me ligou e disse que queria me ver de qualquer maneira.
. . Quando eu cheguei lá e tal, levei um violão, ele se sentou, toquei
um monte de música[s], cantando e solando. . .Quando acabei de
tocar, ele chegou e disse: ‘Que pena que eu não posso gravar todas
as suas músicas!’. Aí eu falei: ‘Mas como você sabe que eu quero
te dar todas pra gravar? Eu vim também pra gravar aqui. Eu vou
escolher as que eu quero te dar’. A partir daquele dia houve aquela
simpatia geral. . . Ao ponto de eu ir pra casa dele e a gente lutar
boxe. Uma vez eu dei uma porrada nele, errei e dei uma porrada
nele. . .” (BARROSO, 2009).
E, de fato, através de Airto, conheceu Miles Davis, que se
interessou logo pelas suas músicas:
Mostrei a ele umas 12 músicas, que eram bem diferentes de tudo
aquilo que ele fazia. Disse que queria colocar algumas no disco
dele e eu me senti à vontade para brincar e dizer que eu veria
quantas músicas deixaria ele colocar no disco dele. (IVANOV, 2002)
Ao final, fora incluídas Nem um talvez e Igrejinha no disco Live evil lançado por Miles Davis em 1972. Nesse disco
histórico, além de Hermeto e Airto Moreira, participaram
muitas lendas do jazz: Keith Jarret, Joe Zawinul, Herbie
Hancock, Chick Corea, John McLaughlin, Steve Grossman,
Dave Holland, Jack DeJohnette, Art Farmer, Wayne Shorter,
Joe Farrel, Hubert Laws, Ron Carter e Thad Jones (COSTALIMA NETO, 2010a; 2000, p.124). A partir daí, só cresceu o
reconhecimento de Hermeto em todo o mundo e a experiência de interagir com grandes artistas como Stan Getz,
Joe Pass, Barney Kessel, Dizzy Gillespie, Jhonny Griffin, Opa
Trio (grupo uruguaio que acompanhava Flora e Airto), Abdullah Chhadeh, Laura Fygi, Pedro Jóia, entre outros.
Hermeto tem recebido muitas homenagens e prêmios
como reconhecimento pelo seu trabalho. Em 1984, foi
inaugurada uma escola municipal com seu nome em Campestrinho (Alagoas). Em 1985, recebeu o título de cidadão
honorário de Arapiraca, cidade vizinha à sua cidade natal.
Em 1972 e 1973, recebeu os prêmios de Melhor Solista e
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
Melhor Arranjador , respectivamente, pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. No Rio, recebeu o Prêmio Sharp
de Música por cinco vezes: Melhor Grupo em 1987, Melhor
Disco Instrumental em 1993 com o disco Festa dos deuses,
Melhor Disco Instrumental com Por Diferentes Caminhos
e Melhor Música Instrumental por Pixitotinha em 1989 e
Melhor Arranjo pelo disco Kids of Brazil do duo de violões
Duofel. Em 1994, sua apresentação no Queen Elizabeth Hall foi considerada pelo jornal The Guardian como o
maior concerto de música popular da década. Em 2002,
foi homenageado pelo SESC com a exposição Hermetismos Pascoais, sobre sua obra. Ainda em 2002, os flautistas
da Pró-Música do Rio de Janeiro o escolheram como tema
do espetáculo O Aprendiz de feiticeiro. Em 2004, recebeu
o Troféu Monsueto no 3º Prêmio Rival Petrobrás de Música
na categoria Música Instrumental pelo disco Mundo Verde
Esperança, disco que ainda recebeu dois troféus no Prêmio
Tim de Música. Em 2007, o DVD Chimarrão com Rapadura
foi escolhido como um dos dez melhores em todo o mundo
pelo historiador e produtor de jazz Arnaldo DeSouteiro, no
qual Hermeto foi homenageado como Artista do Ano e Aline Morena com Artista Revelação.
Em outubro de 2002, durante um workshop em Londrina
conheceu a cantora Aline Morena, descrita por um crítico
argentino como “Impactante. . . con una capacidad vocal
asombrosa” (MOUJÁN, 2007), e a convidou para dar uma
canja no dia seguinte com o seu Grupo em Maringá. Em
seguida ela o acompanhou ao Rio de Janeiro e, no fim de
2003, Hermeto, “. . . assustado com a violência no Rio de
Janeiro, colocou à venda sua casa na Zona Oeste. . .” (ALBIN, 2009) e passou a residir com ela em Curitiba. Ensinoulhe viola caipira, piano e percussão e, em março de 2004,
estreou com ela o duo Chimarrão com Rapadura (ou seja,
gaúcha com alagoano) no Sesc Vila Mariana em São Paulo
(MORENA e PASCOAL, 2009a).
Hermeto Pascoal é mais conhecido tocando sanfona, fole
de oito baixos, piano, flautas e saxofones. Mas, versátil
multi-instrumentista e dotado de grande curiosidade em
relação aos timbres, tem se expressado como virtuoso nos
discos (e shows) em muitos outros instrumentos convencionais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmônio, cravo, órgão, escaleta, flauta de bambu, bombardino,
fluguel, trumpete, violão, cavaquinho, viola caipira, bandola, craviola, clavinete, bateria, caixa, surdo, zabumba,
pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos,
objetos e animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas,
berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira,
máquina de costura, baldes, bacias, panelas, garfos, facas,
balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do
estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e
coelhos (PASCOAL, 2009b, 2009c).
Estima-se que Hermeto Pascoal tenha composto mais de
4.000 músicas até 2007 (VILLAÇA, 2007, p.59; PRADINES,
2006), muitas das quais estão sendo editadas pelo exdiscípulo, pianista e professor Jovino Santos Neto. A sua
produção fonográfica também é grande, especialmente
26
se levarmos em consideração as dificuldades históricas
que as gravadoras lhe impuseram. Seu site oficial www.
hermetopascoal.com.br (PASCOAL, 2009c) lista 35 gravações comerciais, o que inclui apenas os discos em que é
o artista principal ou líder de grupos, os discos em que
participa como um dos solistas principais ou discos em
participa como arranjador ou diretor artístico: Hermeto
(1971), A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves
Mass (1977), Missa dos Escravos (1977), Zabumbê-bumá (1979), Ao Vivo Montreaux Jazz Festival (1979), Cérebro Magnético (1980), Hermeto Pascoal & grupo (1982),
Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (1984), Brasil
Universo (1985), Só Não Toca Quem Não Quer (1987), Por
Diferentes Caminhos: Piano Acústico (1988), Mundo Verde
Esperança (1989, não lançado comercialmente), Festa dos
Deuses (1992), Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, Série
Música Viva (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti
- CCBB, ao vivo (1993), O Melhor da Música de Hermeto
Pascoal (1998), Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), Mundo
Verde Esperança (2002), Chimarrão com Rapadura (2006)
em CD e DVD em duo com Alina Morena.
Hermeto aparece como arranjador, maestro e instrumentista convidado em diversos discos. Para citar panoramicamente alguns de uma enorme lista, temos: Roteiro Noturno (1964) de Mauricy Moura; The Real Bobby Mackay
(1969) de Bobby Mackay, Tide (1970) de Tom Jobim, Cantiga de Longe (1970) de Edu Lobo, Natural Feelings (1970)
e Seeds On the Ground (1971) de Airto Moreira, Live, Evil
(Sony, 1972) de Miles Davis, Taiguara (1976) de Taiguara,
Open Your Eyes, You Can Fly (1976) e Encounter (1977) de
Flora Purim, Orós (1977) de Fagner, Robertinho no Passo
(1978) de Robertinho do Recife, Maraponga (1978) de
Ricardo Bezerra, Elis Regina, 13th Montreux Jazz Festival (1982) junto com Elis Regina, Instrumento do CCBB
(1993) de Renato Borghetti (com Hermeto Pascoal), Kids
of Brasil do Duofel (1996) e Stephan Kurmann Strings
Play Hermeto Pascoal (2008) de Stephan Kurmann.
A estreia de Hermeto em gravações comerciais foi como
sanfoneiro em três discos de Pernambuco do Pandeiro
e seu Regional (CAMPOS, 2006, p.92-97, 141): No meu
Brasil é assim (1954), Batucando no Morro (1954) e No
arraial de Santo Antônio (1958). Gravou também no disco
Ritmos Alucinantes (1956) do maestro Clóvis Pereira. Estreou como pianista em gravações no disco Boate em sua
casa, vol.2 (1958) com José Neto e seu Conjunto, grupo
de seu irmão mais velho. Em São Paulo, gravou flauta,
recém-aprendida, no disco de estreia Caminhos (1964)
do baiano pioneiro da bossa-nova Walter Santos. Ainda
na década de 1960, começou a gravar música instrumental em trios e quartetos: o disco Conjunto Som 4 (1964)
com o Som Quatro; o disco Em Som Maior (1965) no qual
liderou o Sambrasa Trio, aparecendo também como compositor pela primeira vez com a música Coalhada; o disco Quarteto Novo (1967) com o Quarteto Novo, o qual
recebeu o nome do grupo e no qual incluiu O Ovo, uma
de suas músicas mais tocadas até hoje. Em 1969, lançou
Brazilian Octopus, o disco que teve o mesmo nome do
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
“grupo mais estranho surgido na música brasileira”, criado para musicar os espetáculos promocionais de empresa
Rhodia (Marcelo Dolabela, citado por CALADO, 2000).
No primeiro disco lançado no exterior, Hermeto (1971), os
jazzistas convidados dão uma mostra do reconhecimento
internacional do compositor: Gil Evans, Joe Farrell, Hubert
Laws e Ron Carter, entre outros. A Música Livre de Hermeto Paschoal (1973) foi seu primeiro disco solo gravado
como artista principal no Brasil e no qual consolidou seu
primeiro grupo (Nenê, Mazinho, Hamleto, Bola, Alberto e
Anunciação); o compacto Hermeto Pascoal (1975) foi o
primeiro disco solo orquestral (com Porco na Festa de um
lado e Rainha do Mar do outro). Em Slaves Mass (1977),
gravado nos Estados Unidos, recorreu a dois porquinhos
de estimação de dois garotinhos do Texas (veja foto do
Ex.1 à p.65 nesse número de Per Musi). O álbum duplo Hermeto Pascoal Ao Vivo – Montreux Jazz (1979) foi
seu primeiro disco ao vivo. Em Cérebro Magnético (1980),
além da composição e arranjos, fez o desenho da capa.
Sete LPs - Zabumbê-bum-á (1979), Cérebro Magnético
(1980), Hermeto Pascoal e Grupo (1982), Lagoa da Canoa
Município de Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985),
Só Não Toca Quem Não Quer (1987) e Festa dos Deuses
(1992) - são frutos do período de extrema dedicação à
prática musical, no qual se consolida o trabalho de Hermeto Pascoal e Grupo. Os músicos da assim chamada
Escola Jabour (ZWARG, 2009a) ensaiavam todos os dias
“from 2 to 8 pm”, segundo entrevista do músico Jovino
a GILMAN (2009), o que é corroborado por COSTA-LIMA
NETO (2008, p.2, 8), informando também que isto ocorreu
“. . . durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”,
sendo que esse tempo de ensaio era acrescido “. . .pela
prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os
trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .”. Hermeto sempre foi receptivo com músicos que quiseram
conhecer sua rotina diária de ensaios. Além daqueles que
se tornaram membros efetivos de longa duração no seu
grupo - Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Márcio Bahia,
Nenê, Carlos Malta, Antonio Luis Santana (mais conhecido como Pernambuco, mas que não deve ser confundido com Pernambuco do Pandeiro), Vinícius Dorin, André
Marques, Fábio Pascoal – também passaram pela Escola
Jabour os músicos Zabelê, Joyce, Jane Duboc, Aleuda,
Paulo Braga, Zé Eduardo Nazário, Nivado Ornelas, Cacau,
Mazinho, Anunciação, Arismar do Espírito Santo, Ricardo
Silveira, Alfredo Dias Gomes, entre outros.
A fluência de Hermeto em todos os instrumentos que conheceu permite a ele realizar projetos arrojados, como
gravar dois álbuns sozinho, sem outros instrumentistas: o
disco duplo Por Diferentes Caminhos (1989), de piano solo,
e o disco Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), que se refere ao
fato do compositor tocar todos os instrumentos nesta gravação. Depois da dissolução do Grupo do Jabour, Hermeto
gravou alguns discos com formações menores, como Pau
Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, com o grupo de mesmo
nome (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti - CCBB,
ao vivo (1993) e Solos do Brasil (2000), com o violonista Sebastião Tapajós e o pianista Gilson Peranzzetta. Em
Mundo Verde Esperança (2002), depois de 12 anos, Hermeto volta a contar com a participação de Hermeto Pascoal
e Grupo, e mais 13 músicos da Itiberê Orquestra Família,
em um disco que 13 das 14 músicas receberam nomes dos
netos de Hermeto. Nele, ainda homenageia Vitor Assis Brasil, na música Vitor, e Nivaldo Ornelas, na guarânia Camila
(CALADO, 2003). Em 2003, Hermeto participou, juntamente com outros compositores como Caetano Veloso e Egberto Gismonti, de um projeto da Companhia Balé da Cidade
de São Paulo para homenagear o pintor Cândido Portinari,
compondo parte da trilha sonora com base no quadro Baile
na roça (VILLAÇA, 2007, p.59).
Chimarrão com Rapadura (2006) reflete a mais recente
parceria de Hermeto Pascoal: Aline Morena, uma multiinstrumentista que, além de se tornar sua esposa, abraçou
sua concepção de música universal. Nas 19 faixas deste
disco, cujo título explicita uma integração entre o Nordeste e o Sul do Brasil (gaúcha com alagoano), o duo utiliza
dezenas de instrumentos, convencionais e exóticos, como
a porta do estúdio onde gravaram, balde, garfo, faca, chaleira, mangueira com voz, vestido de copos de iogurte, chapéu de castanholas, bota, sapatilha, plástico no tablado,
saia de alumínio, percussão com água e boca, entre outros.
Atualmente, Hermeto mantém uma agenda cheia de
compromissos no Brasil e no exterior, apresentando-se
com cinco formações diferentes: solo, com seu grupo, em
duo com Aline Morena e à frente de big bands e orquestras sinfônicas.
3 - O afeto, a alegria e apoio familiar contra
as dificuldades do mundo
“Como será a cidade grande? O mar. . . Como será o som do mar?”
Hermeto Pascoal, aos 14 nos, antes de sair de casa (VILLAÇA,
2007, p.31)
A trajetória vitoriosa de Hermeto Pascoal contrapõe-se aos
muitos nãos e hostilidades que recebeu ao longo da vida.
Isto se deve, em grande parte, ao apoio que sempre recebeu
dos pais, Seu Pascoal e Dona Divina. O triunfo do autodidatismo que o acompanhou até a maturidade sobre o academicismo tem raízes na sólida e afetiva estrutura familiar:
“Hermeto sempre soube que era diferente, mas nunca se sentiu inferior nem desenvolveu complexos - aliás, eis um caso em que se pode
afirmar: muito pelo contrário. Ainda era menino, em Lagoa da Canoa, a molecada da escola colocava um apelido atrás do outro, era
aquela zuada - e ele nem aí. Era tão talentoso e divertido que no fim
as meninas mais interessantes gostavam dele. E bastava um chamego para a turma cair em cima: ‘Como é que você namora um cara
desses, ele não enxerga direito e o olho dele vira!’ Na saída, Hermeto
ia em um por um - era mais fortinho. ‘Você falou que eu sou feinho?’
E pá neles. Mais tarde, sempre aparecia um pai ultrajado. ‘Seu filho
bateu no meu.’ Seu Pascoal, tranquilo, olhava pra Hermeto. ‘Filho,
por que você bateu?’ Primeiro ouvia, depois acrescentava: ‘Então fez
certo’. A mãe, dona Divina, dava também aquela proteção. Acontecia, por exemplo, de as mocinhas lavando roupa no rio começarem
a fazer troça com o menino. ‘Que esquisito, olha como ele é branco!
Você enxerga bem?’ Hermeto tinha pronta a resposta: ‘Levanta a
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
saia que eu digo’. E lá iam as mocinhas fazer queixa do galego com
dona Divina. Que primeiro ouvia, depois... ‘Respondeu certo. E tem
mais: fui eu que ensinei.’ É por isso, graças a seu Pascoal e a dona
Divina, que Hermeto se gosta, se acha bonito. ‘Sou uma árvore muito original’.” (O. RODRIGUES, 2003).
O seguinte diálogo, recuperado da infância de Hermeto,
mostra seu avô tranquilizando sua mãe sobre seu talento
musical:
“Pai, eu acho que Sinhô ta doido! Meu filho tá doido! Sabe aqueles
ferros que o senhor joga fora? O Sinhô pegou uma porção deles!. .
. Deixe o menino brincar. . .E ele tá lá até agora, trancado, batendo
nos ferros. . . Olhe minha filha, eu acho que quem está doida é
você! Ele está tocando. . .o baião Asa Branca de Luiz Gonzaga, que
tanto tocava na feira. . .” (VILLAÇA, 2007, p.22)
Numa carta de 30 de abril de 2003 a seu ex-aluno do
curso primário, Zélia Gaia se lembra “. . . dos pandeirinhos de latas de goiabada que Dona Divina, sua mãe,
ensinava a fazer. . . das flautas de carrapateira que fazíamos na escola. . . ricas experiências. . .” (GAIA, 2003).
A paciência que Hermeto encontrou na sua primeira e
amorosa professora, não encontrou depois nos professores de música que procurou: “Há muitos anos, arranjaram um professor para me ensinar teoria, mas ele se
recusou porque eu não enxergava direito.” (GONTIJO,
2000, p.2). Para CABRAL (2000, p.11),
“Hermeto Pascoal é um desses brasileiros que, pela determinação e
pelo talento, conseguiram superar as deficiências do nosso sistema
educacional. Nascido e criado em uma região desprovida de escola
de música, ainda assim sempre quis ser músico . . . assumindo sozinho, a própria educação. . . teve só uma professora na vida: dona
Zélia, que o alfabetizou. . . ”.
Em Recife, Hermeto encontrou muitos obstáculos. Do
produtor musical da Rádio Jornal do Commercio e patrão
Amarílio Niceias, ouviu: “Você não toca bem a sanfona. .
. Nem oito nem oitenta [baixos]!. . . Se quiser continuar
na rádio, vai ter que tocar pandeiro. . . Você não tem é
jeito pra música!” (VILLAÇA, 2007, p.39). Mas isto não foi
empecilho para o determinado músico: Sempre prevaleceu seu otimismo: “Siga em frente! Você tem o dom da
música! Confie em você!”, dizia para si mesmo (VILLAÇA,
2007, p.40).
Certo dia, em Caruaru, já conhecido como bom sanfoneiro, Hermeto achou uns penicos de ágata em um ferro-velho e os levou para tocar em um estúdio da rádio.
VILLAÇA (2007, p.44-45) reconstrói o diálogo entre ele e
os colegas músicos galhofeiros:
“- Que loucura é essa? O que é isso?
- Isso é música, ouça que maravilha! A ágata dá um som danado!
- Não, isso é só um penico – zombou um deles.
Hermeto ficou sério: - Os objetos têm sons. Estão só esperando
para serem usados como instrumentos.
. . .O máximo que Hermeto conseguiu foi arrancar o riso de seus
companheiros.”
Na volta ao Recife, já saudado por Sivuca como o “O
Maior Sanfoneiro do Agreste” (BARROSO, 2009), Hermeto
28
não guardou ressentimentos contra o produtor da Rádio
Jornal do Commercio Amarílio Niceias: “Eu não fiquei
revoltado com nada disso. . .” (CAVALCANTI, 2004), pois
queria apenas “. . . mostrar pra esse cara, sem raiva dele,
que ele me fez um bem, não me fez um mal. Ele se arriscou, ele podia ter feito um mal se eu fosse um cara que
não tivesse a força que eu tenho. Eu poderia ter me dado
mal, ter ficado desgostoso. Escutar um negócio desses
com 14 anos de idade. . .” (BARROSO, 2009).
Já reconhecido como excelente instrumentista no meio
musical em São Paulo, Hermeto ainda era visto cinicamente por boa parte da crítica especializada como “hermético”
(CABRAL, 2000, p.12). Não faltaram produtores que quiseram manipular seu talento em prol da indústria fonográfica. Hermeto fala do episódio em que foi convidado para
gravar um disco como artista principal na Continental:
“O primeiro contrato que eu fui assinar era na Continental, com
um produtor de disco e os produtores eram ‘donos dos músicos’.
Quando eu fui convidado pra gravar, pra mim era uma grande
chance, uma oportunidade de gravar, as minhas músicas todas
debaixo do dedo para tocar. Quando eu chego lá, tava lá uma lista, um papel com um monte de nomes de músicas. Aí ele pediu
para eu sentar, e começou a ler, e disse: “E agora? Está bom essas
músicas aqui?” Eu digo: “Pra que?”. [Produtor:] “Já escolhi as músicas pra você gravar”. [Hermeto:]”As minhas músicas, o senhor
me desculpe, mas, modéstia parte, quem escolhe sou eu. Isso aí
que o senhor me falou, não são músicas, são letras. Tá muito ruim,
quadrado. Isso aí eu toco na noite algumas vezes, uma ou duas
dessas”. . . E eu estava na faixa dos 20 e poucos anos. [Produtor:]
“Mas menino! Você vai perder uma chance dessas de gravar na
Continental?” Eu digo: “Porque eu vou gravar? Porque eu sou bom
músico ou não?”. [Produtor:] “É, mas você tem que escolher música
conhecida”. Eu disse: “Mas eu quero ficar conhecido, se eu tocar
música conhecida eu não vou ficar conhecido. Eu quero que as
minhas músicas também fiquem conhecidas e que eu fique conhecido através das minhas músicas. Se for assim eu gravo, se não for
assim, eu quero lhe agradecer, desculpa, mas eu não quero gravar
nunca, não é só hoje não. Não quero que ninguém me convide,
pode avisar para todos seus amigos empresários, diretores, que eu
não quero gravar nunca a não ser as minhas músicas e como eu
quero tocar. Não abro mão do jeito que eu quero gravar. Quem me
chamar para gravar com alguém, tem que ser como eu quero tocar.
Não estou precisando de nada, não quero nada” (BARROSO, 2009).
Falando sobre a música comercial-popular brasileira,
WISNIK (1979-1980, p.7) distingue
“. . . dois modos de produção diferentes, tensos mas interpenetrantes dentro dela: o industrial, que se agigantou nos chamados
anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que
controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende
os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada, onde a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica
e parodicamente.”
Dentro desta música artesanal, Hermeto criou, ainda, um
nicho ainda menos comercial, menos disposto, como se
tornou chavão na gíria cultural brasileira, “a fazer concessões”. A opção de Hermeto por uma música instrumental
mais sofisticada, mesmo em discos de cantores, é quase
religiosa e deixou uma produção histórica, como foi mostrado acima. Ele não abre mão de sua posição radicalmente oposta à linha comercial geralmente imposta pelas
gravadoras e mídia: “Essa turma não evoluiu nada. Minha
intenção ao trabalhar com eles foi abrir a cabeça deles,
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
mas eles apelaram: foram fazer música para novela.
Como o meu amigo Fagner, que criticava a TV Globo
e acabou cedendo. Ganhou muito dinheiro, mas cadê
a alegria interior?” (CALADO, 2003). Perguntado sobre
seus cantores preferidos, Hermeto parece se identificar
apenas com aqueles dispostos a uma interação mais flexível e menos óbvia com a parte instrumental, aqueles
que valorizam a criação, a improvisação. Cita alguns,
como Johnny Alf e Guinga, mas diz que não ouve “figurões” como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto
Gil, apesar de gostar deles, pois “. . . isso já passa no rádio, né? Aliás isso tem a ver com aquilo que falei sobre o
não evoluir. . .” (IVANOV, 2002). Entre as cantoras, elogia
a “genial Jane Duboc, quebramos tudo que tinha direito”
(PASCOAL, 2000a, p.101-102) e dedicou a balada Dá-lhe
coração a Eliane Elias, a quem diz “. . . ter visto nascer
musicalmente” (MILLARCH, 1989c).
Mesmo no meio puramente instrumental, Hermeto mostra-se muito exigente. Ele não tem boas lembranças do
encontro que seria o sonho dos fãs da música instrumental
brasileira, o show Virada do milênio realizado no ATL Hall
no Rio de Janeiro em 1999, quando tocou simultaneamente no palco com três outros grandes pianistas brasileiros
- Arthur Moreira Lima, Egberto Gismonti e Wagner Tiso:
“. . . ‘Foi aquela coisa que se imagina que vai ser muito bom e acaba
não sendo. Era para ser algo de improviso e o Egberto e o Wagner
se prepararam para isso. Foi uma briga, não foi música. O Arthur,
que era o erudito, foi o que mais me surpreendeu e se soltou.
Carregamos os outros nas costas’, diz, brincando à sério. Arthur
[presente à entrevista], depois, confirmou a coisa toda com um
riso.” (IVANOV, 2002)
A imagem messiânica de Hermeto Pascoal que seus admiradores adotam parece derivar da religiosa obsessão com
que vive a música no seu dia-a-dia. Esta devoção, que às
vezes parece beirar o transe religioso, é aparente também
nos shows, como em uma inauguração de uma casa de
jazz em Pendotiba (Niterói), na qual Hermeto e seu grupo
“. . . tocaram por cinco horas e meia” (COSTA-LIMA NETO,
2008, p.9). Em outra oportunidade, durante o 1º Festival
Internacional de Jazz, realizado em São Paulo em 1978, o
show de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongouse até às 4 horas da madrugada, e com nomes internacionais como McLaughlin, Chick Corrêa e Stan Getz subindo
ao palco e, praticamente pedindo para se integrarem ao
seu som totalmente inusitado, múltiplo. . .” (MILLARCH,
1979). Esta obstinação em que cria um mundo particular
com a música e que não se enquadra dentro dos limites
de horário dos teatros onde se apresenta tem rendido a
Hermeto algumas dificuldades. Na sua segunda apresentação durante os concertos do festival Som da gente no
Town Hall em Nova Iorque em 1989, sentiu-se tolhido ao
saber do tempo que teria e
“. . .não fez por menos: após demorar-se em falar numa homenagem a alguns amigos presentes - como a pianista Eliana Elias e o
baterista Dom Um Romão (que subiu ao palco, para um demorado
abraço) ou ausentes - Miles Davis, que lhe havia telefonado à tarde - referiu-se a uma suíte de 20 minutos que ainda está compondo, ‘mas que gostaria de apresentar’. . . começaram a mostrar
a belíssima composição, mas não passaram dos primeiros acordes;
Hermeto interrompeu a apresentação, dizendo que o seu tempo
de show havia acabado. . . Todos retiraram-se para os bastidores
enquanto o público que lotava o Town Hall, em pé, aplaudia e
gritava o seu nome, pedindo o retorno do grupo. . . Apesar do estímulo de Rob Crocker, um dos mais populares apresentadores da
WQCD-101. . . Hermeto e seus músicos não retornaram ao palco.
As lâmpadas foram acesas e o público deixou o teatro entusiasmado com a música que ouviu naquela noite mas, no fundo sentindo
que Hermeto não tivesse mostrado mais de seu som original, rico
e harmonioso.” (MILLARCH, 1989b)
Em outra oportunidade, apresentando-se no Rio Monterey Jazz Festival em 1980 no Rio de Janeiro, não teve
paciência com o público e sua interferência:
, “. . . Hermeto falou muito, experimentou vários instrumentos e
fez alguns trocadilhos. Depois reclamou do barulho. Deu um aviso
prévio. Começou a fazer um belíssimo solo de flauta, com o tema
que apresentou em Montreux (gravado no LP da WEA, nas lojas),
mas parou ao ouvir o barulho entre o público que se acotovelava a
sua frente. E, irritado, saiu do palco, sob vaias. Tumultos, confusão.
Voltou minutos depois, mas recebido com vaias, jogou a flauta
no chão e se foi. Mais tarde, nos bastidores, disse que gostaria de
‘tocar para a imprensa’. A noite mais longa do festival acabou mais
cedo.” (MILLARCH, 1980a)
Depois das primeiras experiências de gravação com grupos
de regionais, Hermeto trabalhou com grandes gravadoras
multinacionais, como EMI (1967), Polygram (1973 e 1992)
e WEA (de 1977 a 1980), mas as dificuldades crônicas com
a política comercial das mesmas o direcionou a pequenas
gravadoras, como Som da Gente (1981-1993) e Maritaca:
“Convites eu sempre tive, mas não quero mais gravar por gravadoras grandes. . . Elas não evoluíram nada. Querem gravar comigo só
para dizer que têm Hermeto Pascoal no catálogo. Me tratam como
aquela jóia exposta na vitrine para deixar as pessoas com água na
boca, mas que ninguém consegue comprar.” (CALADO, 2003)
A saída encontrada por Hermeto para o tratamento hostil
e explorador que as gravadoras lhe destinam é extrema
e tem resultado na liberação ou perda de seus direitos
autorais. Em relação às cópias domésticas do LP Brazilian
Octopus no formato CD que estavam circulando em São
Paulo, foi categórico: “Se a gravadora não se interessa
em fazer o CD, essas pessoas têm que copiar mesmo. É
o único jeito que o público tem de ouvir a nossa música” (CALADO, 2000). MILLARCH (1979) relata que “. . .o
próprio Hermeto recomenda que todos que vão assistir
seus espetáculos devem levar gravadores, pois nunca há
a mesma sequência, o mesmo show.”. Ele, às vezes, deixa
transparecer sua revolta com os impedimentos de socializar sua obra com o público:
Meu discos estão sendo pirateados pelas Gravadoras. As minhas
Gravadoras lançam os meus discos e não me dão satisfação. . .
Nenhuma delas tem um recibo assinado por mim lá, deles pedindo
uma autorização para lançar meus discos. Eu sei que as músicas
são deles, mas para todos discos eu tenho direito autoral. . . Eu já
falei: PIRATEIEM MEUS DISCOS. . . Não toco em rádio, pirateiem,
vendam. Quem está dizendo sou eu. . . A [Rádio] MEC é uma rádio
pobre. . . é do governo. . . Nós queremos a cultura. Mas se eles não
tocarem. . . eu dou essa porra também. Eu quero é isso. Pirateiem
os discos do Hermeto, estou mandando piratear, eu assumo. . .
Todas são Ladras, estão me roubando e vão me roubar até eu morrer. . . Eu nunca recebi mil reais no Brasil, já assinei 70 recibos no
ECAD de Brasília e nunca foi [equivalente a] mil reais. Da editora
na França eu recebi seis mil reais da primeira vez. Aqui, a Rádio
29
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
MEC fez cinco mil discos, mas não tem distribuição. . . Eles falam,
anunciam na rádio dizendo: “Nas boas lojas”. Que boa nada, tem
que vender em qualquer lugar. . .” (BARROSO, 2009).
Mas a vingança de Hermeto “tocando viola de papo pro
ar” contra a indústria fonográfica já começou. O advento da internet ofereceu a Hermeto um instrumento ideal
para socializar sua música. Ao comentar sobre o projeto
de disponibilização gradual e gratuita da obra de Hermeto Pascoal no site www.hermetopascoal.com.br a partir em meados de 2007, Aline Morena comenta sobre a
política injusta das multinacionais da gravação: “Então,
adeus às grandes editoras que fizeram isso até hoje. Que
elas aproveitem enquanto podem, porque vamos oferecer tudo gratuitamente.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA,
2007). Em 2008, Hermeto decidiu declarar livre acesso
para aqueles que quiserem gravar sua obra. Em uma folha
colorida a lápis e emoldurada com desenhos de fermatas, acidentes musicais e um auto-retrato, o compositor
documenta sua postura universalizadora: “Eu, Hermeto
Pascoal, declaro que a partir desta data libero, para os
músicos do Brasil, e do mundo, a gravação em CD de todas as minhas músicas que constam na discografia deste
site [www.hermetopascoal.com.br]. Aproveitem bastante.
Hermeto Pascoal. Curitiba 17 do 11 de 2008. Testemunha:
Aline Morena” (PASCOAL, 2008).
Jovino, que guarda boa parte dos originais da obra de
Hermeto, fala sobre o que considera sua missão após a
dissolução do Grupo:
“Desde que saí do Hermeto Pascoal e Grupo em 1993, disponibilizar sua música para músicos em todo o mundo se tornou uma
de minhas prioridades. Sempre fui uma espécie de bibliotecário
dos manuscritos, organizando-os e guardando-os. Quando me
mudei para Seattle, comecei a editar algumas peças em computador. Agora estamos perto de publicar um livro com parte de sua
música para piano solo. Em seguida, viriam música para grupos
de flautas, quartetos de cordas, peças sinfônicas, para big band e,
claro, alguns dos arranjos para nosso Grupo. Tenho cerca de 1.000
peças em arquivo, o que será muito trabalho. Entretanto, sou o
responsável por isto e considero minha missão garantir que este
acervo musical surpreendente seja conhecido e ouvido. Trabalho
diretamente com o Hermeto neste projeto e esperamos ter o primeiro livro em breve” (GILMAN, 2009).
30
são e, mais tarde, tudo foi resolvido” (COMODO, 1996),
explicando que “Eu gravei no disco do Miles Davis duas
músicas minhas e saiu que o Miles tinha roubado as
minhas músicas. Saiu mesmo o nome dele nas minhas
músicas. Mas jamais eu, pelo conhecimento que eu tenho com ele, [digo que] jamais ele ia fazer isso comigo,
nem com ninguém” (BARROSO, 2009).
A determinação e a alegria parecem, de fato, nortear a
vida de Hermeto Pascoal. Com o humor cáustico que permeia os relatos de sua expedição para conhecer de perto
a música brasileira, o jornalista norte-americano John
KRICH (1993, p.117-118) comenta que Hermeto poderia
ter razões para ser infeliz: ”. . . obeso, um olho-virado,
atributos realçados pela barba de Papai-Noel despenteada e a massa de cabelos brancos anelados que repousa
sobre sua cabeça como tirinhas de papel de empacotar”.
Mas se redime dizendo que
“. . . a partir do momento em que entrei na sua casa no subúrbio do
Rio [no Bairro Jabour], senti que nunca havia encontrado alguém
mais alegre. . . ‘Posso tocar qualquer coisa. Se você quiser, posso
tocar até você!’ . . .Fiquei uma tarde assistindo à banda de Hermeto
[Hermeto Pascoal e Grupo]”. . . [que] desaparece escada abaixo e
volta com um cabide de paletó. Em segundos, ele arranca cada
um dos ganchos torneados e [acha o som] que precisava e [que]
somente pode ser obtido esfregando um no outro. . . Quando sua
devotada esposa aparece perguntando pelo cabide, o grupo morre
de rir. Eles já viram esta história se repetir muitas vezes. A esposa
de Hermeto nem precisa da resposta para entender que mais uma
peça da mobília acabara de se tornar um instrumento musical.”
O. RODRIGUES (2003) relata outro trecho que sugere a
rejeição da mídia ao aspecto visual de Hermeto, que tem,
no humor, um aliado para brincar com situações difíceis:
“Pouca gente lembra, mas em 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira da Record, foi o Quarteto Novo - Hermeto, Heraldo, Théo de Barros e Airto Moreira - que ajudou “Ponteio”, de Edu
Lobo, a chegar ao primeiro lugar. De vez em quando, trechos do
festival são reprisados e quase nunca se vê Hermeto no palco, só
suas mãos tiritando na flauta. “Eles deviam me achar muito feio
pra mostrar.” Numa dessas grandes noites, ele se escondeu atrás
de um cenário. Logo, o diretor apareceu para ver o que estava
acontecendo. Hermeto: “Meus filhos estão duvidando que eu toco
na televisão”. Nunca mais sumiram com ele.”
Com os colegas, Hermeto também aprendeu a lidar com
constrangimentos profissionais de uma maneira positiva,
como no polêmico episódio com Miles Davis. Numa época
em que os produtores do grande trompetista de jazz não
se preocupavam em dar os créditos de músicas de outros
compositores, Hermeto não teve seu nome incluído como
autor das músicas Nem um talvez e Igrejinha gravadas no
disco Live evil, lançado em 1972.
Este mesmo humor com que tem driblado os obstáculos
que encontra pela vida, aparece na sua música. Entre seus
projetos estava a ideia de transformar em música uma
fita que recebeu de um gago alemão recitando poemas de
amor (COMODO, 1996). Juntos, o humor e a alegria fazem
parte da memória afetiva de Hermeto, nos festejos populares nas ruas do Brasil, como na reencarnação das bandinhas, que Jovino presenciou como membro do Grupo:
MILLARCH (1988), citando outra escorregadela de MiIes
Davis, em que ele aparece como autor de Corcovado
(Tom Jobim) e Aos pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé
da Zilda) no disco Quiet Nights (1962), o chama de “. . .
useiro em se apropriar de temas alheios, tendo feito isto
com ‘Igrejinha’ de Hermeto Paschoal, só pagando direitos após ameaças judiciais e mil broncas de Airto.” O
erro não deixou Hermeto magoado: “Houve uma confu-
“Certa vez, em 1982, durante o concerto no Teatro IBAM, começamos a sair do palco com o piccolo, dois saxofones, tuba e
percussão e depois, para fora do teatro, nas ruas, tocando alguns
temas que o Hermeto havia escrito para aquela formação. A plateia nos seguiu. Desfilamos por um tempo e, então, voltamos
para o teatro pra terminar o show. Aquilo criou situações extremamente engraçadas, como subir nos ônibus coletivos, entrar
nos bares e, algumas vezes circular centenas de metros longe do
teatro; Algumas vezes, tínhamos milhares de pessoas dançando
atrás da gente nas ruas.” (GILMAN, 2009)
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
Esta mesma memória afetiva que lhe remete sempre às
suas raízes, à sua família, o motiva musicalmente. A voz
do pai, Seu Pascoal, incluiu na faixa São Jorge, no
disco disco Zabumbê-bum-á (1979). Na gravação de
Santo Antônio, no mesmo disco, Hermeto gravou
sua mãe Dona Divina descrevendo um ritual típico
do interior, improvisando pedidos de prenda em
uma típica procissão nordestina do santo casamenteiro. Hermeto achou, nas dificuldades encontradas
pela vida, motivações para traçar seu caminho e viver
bem. Não é à toa que a frase escolhida por ele para finalizar cada uma das 366 partituras do Calendário do som foi
o voto generoso e otimista “tudo de bom, sempre”.
4 - A natureza
“Os animais são meus maiores professores.” Hermeto Pascoal
(O. RODRIGUES, 2003)
A bandeira ecológico-musical de Hermeto pode ser apreciada nos títulos de suas músicas, como Dança da selva
na cidade grande, Terra verde, Música das nuvens e do
chão, Peixinho, Nascente, Quando as aves se encontram
nasce o som, Caminho do sol, Fauna universal, Água limpa, Saudade do Tietê, Batucando nas Matas, Cordilheira
do Andes, entre outras. E também em vídeos. Por exemplo, Hermeto Pascoal e Grupo foram temas do vídeo ecológico Bagre Cego de Ricardo Lua (disponível em www.
youtube.com como Hermeto e Grupo, Ballad for a blind
albino catfish), em que ele e seus músicos aparecem fazendo música nas cavernas do Vale do Ribeira, em São
Paulo, ameaçadas de destruição (MILLARCH, 1986). Já
no vídeo Hermeto Pascoal and the music fom the frogs
(disponível em www.youtube.com), Hermeto fala sobre a
natureza e, tocando uma flauta de bambu ininterruptamente, entra em um poço de um riacho e gradualmente,
saltando como um sapo, desaparece sob as águas. Este
envolvimento com a natureza é antigo. Ele relata:
“Eu comecei a tocar no mato tudo que tinha de coisa . . .Então a
gente inventava. Eu inventava muito. . . Você começa a analisar
suas coisas de criança. Foi quando eu comecei a ver esse lado todo,
o lado dos animais, que eu conversava com os animais, naturalmente. Eles entendiam tudo, a gente se entendia. Eles me entendiam porque eu via a ação deles. . . o cavalo fazia com a orelha.
Eu sabia os sinais. Por exemplo: Quando o cavalo via uma visage.
O quê que é uma visage? É uma visão, uma coisa espiritual, uma
energia. Que o animal é muito sensível. A gente põe eles no lugar
errado, acha que o animal não tem espírito. É conversa fiada. O
espírito deles é tão elevado quanto o nosso. . . Os sapos são gênios!
São gênios, escondidos, excluídos por nós. Os sapos já dão a aula
do que é orquestração natural. Eles são gênios, os sapos, os pássaros. Deus botou os animais como o espelho verdadeiro da vida.
. . O porco é tido como rude, talvez o animal mais rude que tem. .
. Ele queria justamente [ouvir] um instrumento médio. Eu pegava
um talo de abóbora. . . rachar no meinho com uma faquinha, com
cuidado. . . e sopra como se fosse aquelas gaitas escocesas, empurra no céu da boca, que fica aquele som assim, de céu da boca,
como gaita escocesa. . . O porco, você toca aquilo ali, ele pára. . .
Você sentia a felicidade dele. . . Hoje em dia, eu posso fazer com
sax soprano. . . o porco vai delirar com você. . .” (BARROSO, 2009).
Os sons da natureza foram os primeiros sons musicais a
habitarem a mente de Hermeto Pascoal; eram sons de altura “indeterminada” (cuja fundamental não é claramente
distinta ao ouvido humano), antes mesmo dos tons e semitons do pé-de-bode de seu pai. Muito antes do conceito de
paisagem sonora de Murray Shaffer: “Até os 14 anos fiquei
lá em Lagoa da Canoa em contato total com a natureza,
com todos os animais. . . não escutava nem rádio porque
nem havia luz elétrica. . .” (CAVALCANTI, 2004). Já adulto,
Hermeto resgatou imagens da infância, de sua comunhão
com a natureza e as reverte em música, como em Mercosom do álbum Hermeto Pascoal: eu e eles,1999):
Um dia, na estrada até Lagoa da Canoa, ele descobriu as formigas
em travessia, trabalhando duro. Tiveram de chamar seu Pascoal em
casa: ‘Seu filho ficou maluco, está deitado lá na estrada e não quer
deixar os vaqueiros passarem com a boiada.’ Uma das coisas que
encanta Hermeto é o que ele chama de ‘sonzinho’ das formigas.
‘Aquela areia branca, elas se arrastando na areia. . . Na gravação
de um disco, comecei a me lembrar desse sonzinho, fiz assim na
calça, saiu algo interessante. O técnico se assustou. Aí pronto, já
comecei a tocar um forró. Você escuta um som que parece zabumba, mas não é: é calça jeans! Você vê que tudo é música. E isso
que eu tô falando vale pra vaca, cavalo, boi, vale pra todos eles.’ O.
RODRIGUES (2003)
Em entrevista sobre o primeiro disco Mundo Verde Esperança (1989; não lançado comercialmente; o segundo
Mundo Verde Esperança foi lançado em 2002), Hermeto
Pascoal relaciona seu pensamento ecológico-musical com
uma filosofia de vida que aprendeu no interior do Brasil:
“Eu, que sou um cara da roça, que fui criado na roça, via muito
bem que o dono do cercado tinha o cuidado de fazer uma vala do
tamanho do terreno e plantava um negócio chamado macambira,
que não pega fogo, para que o dono do outro terreno pudesse
preparar o terreno para plantar, sem prejudicar o vizinho. Tudo era
bem feito, feito com muito cuidado. Creio que isso acontece na
música também.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007).
“. . . passarinhos, formigas, sapos, porcos, bois, cavalos. ‘Os animais
são meus maiores professores.’ E é na terra natal que Hermeto
recebe as primeiras bênçãos do sol, da chuva, do mato, do vento;
é onde ele descobre o som da areia e percebe as vozes da alma.
‘Eu arrancava um pedaço de carrapateira, aquele canudinho da
mamona, e com uma faquinha fazia uma flautinha e começava a
tocar. Primeiro, aquele som novo assustou os bichos. Mas aos poucos. . . Eu começava a tocar uma melodiazinha e ficava naquela só,
para eles se acostumarem. No segundo dia já tinha dois. No terceiro, foi aumentando, aumentando, a ponto de eu tocar tudo que
quisesse. Agora não precisava mais escolher a musiquinha pra eles,
não. . . Quando eu tocava o primeiro som na flauta, eles vinham e
cobriam a árvore.’ O. RODRIGUES (2003)
Esta aprendizagem inicial, não orientada pela tradição
europeia, acompanhou Hermeto no seu contato com as
outras músicas: “Quando eu era pequenininho tocando a
oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando forró.
. . baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos, eu
já ’entortava‘ a oito-baixos. . . umas músicas muito doidas.
Eu extraía dos ferros, das pancadas que eu dava nos ferros,
aquelas harmonias” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.78). Para
Hermeto, “O atonal é a coisa mais natural que existe”, o
que levou COSTA-LIMA NETO (1999, p.190) a propor a
perspectiva de uma trindade sonora experimental cujas
raízes estão na infância do músico alagoano, e que, mais
tarde, passou a subsidiar o sistema musical singular de
Hermeto, incluindo suas melodias e harmonias. Esta trindade sonora paradigmática, segundo a qual som musical e ruído são equivalentes, é derivada de três fontes
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
distintas, percebidas por Hermeto graças a sua escuta
ampliada: sons de animais, sons dos objetos e sons da
voz humana. O próprio Hermeto percebe uma relação do
atonalismo que chama de “fala dos objetos” com o atonalismo que ouve na fala humana, que conceituou com
música da aura: “Os pedaços de ferro já tinham alguma
coisa a ver com a música da aura. . . o som da aura que
percebi desde minha infância. . .” (COSTA-LIMA NETO,
2000, p.131-132). Assim, se nos objetos, que são instrumentos musicais esperando para serem tocados - como
os “resultados incríveis” das moedas de 25 centavos de
dólar (além do pé esquerdo de seu sapato!) que colocou
entre as teclas de um Steinway para provocar o público
novaiorquino (MILLARCH, 1989b) -, ele percebe a música
dos ferros, nas pessoas ele percebe a música da aura.
Na sua análise da música Ferragens para piano solo, COSTA-LIMA NETO (2000, p.135) observa a intenção programática nas indicações de pedal e de fermatas sucessivas,
como uma representação da reverberação que descreve os
sons de pedaços de sucata de ferro do avô ferreiro Sena da
Bolacha que povoaram sua prática musical na infância. Do
ponto de vista harmônico, as alturas “indeterminadas” traduzidas para o piano resultam em clusters acompanhando
uma melodia atonal e fragmentada (Ex.1). Entretanto, estas “. . . combinações harmônicas complexas. . .” têm raízes
em “. . . elementos harmônicos simples como as tríades. . .”
(COSTA-LIMA NETO, 1999, p.94-96).
O conceito de música da aura surgiu na década de 1980,
quando se deu conta de que “O cantar das pessoas, na
minha concepção. . . é o que chamamos de fala. Assim
como os pássaros, nós somos pássaros também” (entrevista a Luís Carlos Saroldi da Rádio MEC em 1997, citado por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.177). No disco Lagoa
da Canoa, município de Arapiraca (1983), na faixa Som
da aura, ele utilizou os famosos trechos onomatopaicos de narração esportiva “tiruliruli-tirulirulá” e “parou,
parou, parou” dos locutores esportivos Osmar Santos e
José Carlos Araújo, respectivamente. Hermeto descreve
o procedimento para a realização da música da aura,
simples para ele que tem ouvido absoluto e uma prática de reconhecimento auditivo enorme: “É muito fácil
tocar o som da aura, que nada mais é do que a energia
do som de cada pessoa através da música. E quando eu
escuto a voz da pessoa, eu toco aquilo que estou escutando” (ESSINGER, 2000).
No disco Festa dos deuses (1992), pode-se apreciar várias
instâncias de música da aura. Uma análise auditiva de
três destas músicas - Pensamento positivo (a partir de
uma fala do Presidente Collor de Melo), Aula de natação
(a partir de uma aula ministrada pela filha Fabíula Pascoal) e Três coisas (a partir de um poema de Mário Lago
recitado por ele mesmo) - mostra procedimentos comuns:
(1) escolha de trechos da fala humana pré-gravadas como
ponto de partida para a criação musical, (2) apresentação
da fala sozinha primeiro, (3) repetição da fala com dobramento instrumental de teclados (piano e harmônio)
aproximando de suas alturas “indeterminadas” e ritmos,
o que resulta em um contorno melódico atonal heterofônico (um “quase-uníssono”), (4) acompanhamento com
acordes esparsos em encadeamentos não funcionais ou
atonais. Jovino, que foi quem tocou piano e harmônio
nestas três faixas, observa que
“A música da aura ainda está nos seus estágios iniciais. . . pode
imaginar um filme em que os diálogos do atores é também a trilha
sonora? . . . Embora outros tentaram algo similar, em minha opinião, somente Hermeto conseguiu capturar a essência musical da
fala.” (GILMAN, 2009)
Na faixa Três coisas, Hermeto Pascoal, Jovino Neto e Fábio
Pascoal avançaram um pouco além desta fórmula básica
acima, descobrindo redundâncias de células rítmicas na
declamação poética de Mário Lago e as acompanhando
com levada e instrumentação de baião; coincidindo cadências da fala com tríades perfeitas maiores e menores.
Ainda no disco Festa dos deuses, a faixa Quando as aves
se encontram, nasce o som também pode ser considerada música da aura, mas os elementos primários aqui são
as “vozes” de aves (uirapuru, sabiá, corvo, fogo-apagou,
galo, bacurau, marreco) com um tratamento mais sofisticado: há solos a cappella alternando com trechos acompanhados (com Hermeto nos teclados), dobramentos que
se entrelaçam, células manipuladas com loops, acompanhadas com levadas de gêneros diversos (samba e valsa),
harmonias contrastantes (atonalismo, tonalismo, modalismo, cromatismo). Embora a transcrição musical de can-
Ex.1 – Exemplo de música dos ferros com clusters atonais em Ferragens de Hermeto Pascoal.
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
tos de pássaros nos remeta à iniciativa do compositor e
ornitologista Olivier Messiaen, a abordagem de Hermeto
é única no sentido da eclética liberdade de compor com
os motivos que descobre nos cantos e as associações que
faz com a rítmica popular.
Muitos dos animais que povoaram a infância de Hermeto reaparecem na sua obra. No disco Slaves Mass (1977),
por exemplo, Hermeto utiliza trechos com gravação de
guincho de dois porquinhos, “naturalmente afinados” em
alturas diferentes, “. . . ‘executados’ por [Airto] Guimorvan [Moreira], proposta que Hermeto já tentou aplicar
no Festival da Canção de 1972, no Maracanãzinho, em
72, e quase o levou à cadeia” (MILLARCH, 1977). A ideia
dos porcos retorna no Festival Abertura da Rede Globo de
Televisão em 1975, quando Hermeto ganhou o prêmio de
melhor arranjo com O Porco da Festa (MILLARCH, 1975).
COSTA-LIMA NETO (1999, 2000) aponta vários exemplos
da relação que Hermeto faz entre as vozes dos animais e
sua tradução atonal na partitura. Esse atonalismo “natural” ou ruidismo “ecológico” pode ser apreciado nos primeiros 16 compassos de Arapuá, incluída no disco Brasil
universo (1986), em que um cluster no registro médiograve sobre uma 4ª justa no baixo imita o zunido do tipo
de abelha que dá nome à música (Ex.2; transcrição de
Jovino Santos Neto, citado por COSTA-LIMA NETO, 2000,
p.129). Já em Cores (disco Hermeto Paschoal e Grupo,
1982), cujo nome é uma referência ao arco-íris, às cigarras e aos amoladores de facas (COSTA-LIMA NETO, 1999,
p.130), Hermeto utiliza o Lá4 de uma cigarra “gravada
no jardim de sua casa” como um pedal agudo sobre dois
pianos cuja somatória harmônica soa como um cluster
(COSTA-LIMA NETO, 1999, p.140-142). Ainda em Cores,
na coda, ele recorre a um cluster na região médio-aguda
do piano para emular as “cores indefinidas” - parciais
inarmônicos - de um pedaço de ferro sendo percutido
(ou amolado) (Ex.2; transcrição de Jovino Santos Neto,
citado por COSTA-LIMA NETO, 2000, p.136).
Se nos exemplos acima o atonalismo hermetiano resulta
de uma abordagem vertical e homofônica, em Papagaio
alegre (disco Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca,
1984), é fruto da escrita linear e polifônica. Embora as
vozes sejam baseadas individualmente em escalas diversas, o resultado sonoro de sua superposição polimodal
não pode, auditivamente, ser considerado tonal, como
mostra o trecho do Ex.3, que é uma redução da transcrição de Jovino Santos Neto do original para piccolo,
saxofone tenor, piano e contrabaixo elétrico sobre uma
gravação da fala do papagaio de Hermeto, chamado Floriano, em torno do registro de Sib3 (COSTA-LIMA NETO,
1999, p.151-161; COSTA-LIMA NETO, 2000, p.129).
A valorização dos sons de animais pode ter inspirado
Hermeto em alternativas de utilização da voz que não
a fala humana. Foi ele “. . . quem sugeriu que ela [Flora
Purim] experimentasse improvisação vocal sem palavras.
. .” (McGOWAN e PASSANHA, 1999, p.167). Essa incorporação de uma grande variedade de efeitos vocais, como
grunhidos, choros, rangidos, emulação de distorções eletrônicas, scatting aleatório e ondas de glissandi ajudou
Flora Purim a vencer o prêmio de Melhor Cantora da Revista Down Beat por quatro vezes e ser nomeada duas
vezes para o Grammy.
Ao descrever a Sinfonia do boiadeiro (1995), Hermeto recorre mais uma vez às vozes da natureza:
“Você já viu uma boiada de 3 mil reses em movimento? Eu via
e ainda vejo essas boiadas viajarem dois, três meses de uma fazenda para a outra, o vaqueiro tangendo, o gado atravessando
o rio, o aboio, o barulhos dos cascos na água. É essa a sinfonia.”
(CABRAL, 2000, p.15).
5 – Três princípios da Música Universal
“A Harmonia é a mãe da música, o ritmo é o pai e a melodia ou o
tema é o filho”
“Bom gosto não se aprende na escola”
“A prática é quem manda”
Princípios da Música Universal de Hermeto Pascoal
(MORENA, 2008)
O primeiro, o terceiro e o décimo-quarto princípios da
música universal de Hermeto Pascoal, listados na epígrafe acima, sintetizam e norteiam o processo de formação
de sua linguagem harmônica. Diferentemente de muitos
músicos populares que, por não terem tido a oportunidade de estudar a música erudita, por isso criam, em torno
dela, o mito de uma cultura superior e inatingível, Hermeto Pascoal sempre encontrou caminhos alternativos diante dos impedimentos de uma educação formal em música
que lhe foram impostos. Ele relata: “. . . vim a aprender
teoria com 42, 43 anos de idade. Eu memorizava muito as
Ex.2 – Clusters imitando o zumbido da abelha arapuá na música Arapuá (transcrição de Jovino Santos Neto) e
os parciais inarmônicos de um pedaço de ferro percutido na música Cores (transcrição de Jovino Santos Neto),
ambas de Hermeto Pascoal.
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
Ex.3 - Atonalismo resultante do contraponto polimodal em Papagaio alegre
(transcrição de Jovino Santos Neto) de Hermeto Pascoal.
coisas. Quando eu viajava para São Paulo, mais ou menos
uma hora de ônibus, ia cantando. Dava uma gorjeta ao
cobrador e dizia: “Não sou doido, não sei música, não sei
escrever e nem tenho gravador. Eu preciso ir cantando
essa música até chegar na boate, até chegar no lugar em
que eu toco”. (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007)
Percebe-se, ainda hoje, entre músicos, diletantes e leigos,
o automatismo de associar sofisticação musical e formação erudita. Não é o caso de Hermeto, mas após quase
40 anos de profissão, ele viu-se atormentado com as frequentes perguntas de repórteres ávidos de saber sobre
sua educação musical:
Quando fiz os meus 50 anos. . .eu falei para minha esposa Ilza. . .
estou um pouco preocupado, as pessoas estão cobrando muito de
mim. . . eu não sei dizer como foi que eu aprendi. . . tão achando
que eu estou escondendo alguma coisa. . .vocês acham que se
alguém fosse meu professor não estaria feliz de ser meu professor,
não seria conhecido?. . . não tenho um professor aparente. . . estou
me sentindo órfão. . . aquele filho que nasceu e gostaria de conhecer os pais (CAVALCANTI, 2004).
A constatação de seu autodidatismo vitorioso e tão eficiente quanto qualquer formação acadêmica, entretanto,
não implica em um desconhecimento de sua parte dos
valores musicais mais racionais e menos intuitivos, característicos do músico letrado. Em Recife, Hermeto se
maravilhava com os ensaios de Guerra-Peixe, “. . . mestre
da arte da composição e do arranjo. . . ” (VILLAÇA, 2007,
p.36), e com o pianista Alberto Figueiredo, “. . . que tocava
só Chopin. . . [que] lia a partitura e criava” (CAMPOS,
2006, p.81). A influência da música erudita aparece em
algumas músicas do Calendário do som. Em 8 de dezembro de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.211), Hermeto comenta
tanto sobre a questão da harmonia, quanto a questão da
técnica no piano: “Esta música é muito erudita e cheia de
modulações. Até breve! Haja mão esquerda”. Ainda refletindo uma prática erudita, somente esta música e mais
quatro, em todo o livro, têm a mão esquerda realizada,
com típicos gestos do pianismo romântico: repetidos arpejos em colcheias marcando as mudanças de harmonia e
arpejos em quiálteras num jogo polirítmico de seis notas
no acompanhamento contra quatro na melodia.
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No Rio de Janeiro, admirava os ensaios do erudito-popular
Radamés Gnattali. Com Edú Lobo, Hermeto, então pianista do Quarteto Novo, teve a oportunidade de conhecer
metrópoles mundiais da música erudita na Europa e nos
Estados Unidos. Um importante contato de Hermeto com
partituras de música do século XX parece ter ocorrido “.
. . em Los Angeles, o Edu [Lobo] ficava mostrando umas
partituras do Stravinsky para ele. . .”, embora Hermeto não
considere muito o peso desta experiência na sua formação, pois “. . . Ah, eu não tava muito interessado nisso não.”
(entrevista de Jovino a COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6). Mas
o mesmo Hermeto, que em entrevista à Jazz Magazine em
1984 (citado por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.4) disse: “Eu
adoro tocar música ‘clássica’ ”, certamente tocou muitas
vezes a Pavane de G. Fauré, incluída no LP Brazilian Octopus (1969) e a ária Kein Wort do Segundo Ato da ópera
A Flauta mágica de Mozart, incluída no mais recente CD/
DVD Chimarrão com Rapadura (2006). Sintomaticamente,
sua parceria com Aline Morena, “. . . formada em canto
lírico pela Universidade de Passo Fundo” (CASTRO, SOUZA
e ROCHA, 2007), o motivou a compor para este último
álbum uma música chamada À Capela.
Para descrever o estilo improvisatório de Hermeto, o crítico do The New York Times Stephen Holden fala mais de
uma referência erudita do que do jazz norte-americano:
“. . .ofereceu momentos de virtuosismo no piano, embora não faça
exatamente aquilo que os americanos pensam a respeito do jazz. .
. ‘citações’, improvisando em torno de standards da música americana - como Two for the Road (de Henry Mancini, composta em
1967 para a trilha do filme Um Caminho Para Dois), My Funny
Valentine e Round Midnight. . . Poderia-se descrever seu som e
estilo como uma lembrança e improvisação de Rachmaninoff com
a força do fogo latino-americano”. (MILLARCH, 1989a)
É muito provável que o contato com procedimentos da
música erudita, diretamente com músicos de formação
tradicional ou via outros estilos populares influenciados
pela música erudita (como o jazz moderno), tenha inspirado Hermeto em harmonias e métricas mais complexas.
O baterista Nenê conta que, como pianista do Quarteto Novo, Hermeto tocava “Garota de Ipanema em 7/4”
(CAMPOS, 2006, p.109). Em Pintando o sete de Hermeto,
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
a “. . . assimetria do compasso 7/8 cria o efeito de estranhamento em relação à música popular convencional. .
. ” (ARRAIS, 2006, p.12, 13). No “chorinho em sete” (um
7/4), que aparece na música 1º de Fevereiro de 1977 do
Calendário do som (CAMPOS, 2006, p.102), também se
podem reconhecer diversos padrões assimétricos, como
[4/4 + 3/4], [2/4 + 2/4 + 6/8], mostrados no Ex.4, que
não se relacionam com as métricas aditivas afro-brasileiras apontadas por SANDRONI (2001), mas provavelmente com uma leitura jazzística de práticas eruditas.
Admirador de Radamés Gnattali, ícone da música brasileira que melhor integrou as músicas erudita e popular,
Hermeto lhe dedicou Mestre Radamés, música centrada
em um complexo solo de bateria, cuja partitura revela
“melodia de timbres”, “frases ritmico-melódicas deslocadas”, a “coexistência de diferentes pulsações”, a “fusão e
alternância de células rítmicas” e a ausência ou “poucas
barras de compasso” (CAMPOS, 2006, p.120-121).
Ironicamente, os problemas crônicos enfrentados pelo
músico erudito no Brasil podem ter favorecido Hermeto
ter se cercado de instrumentistas de alto nível e com
experiência sinfônica. As “. . . dificuldades profissionais
da classe de instrumentistas – onde se incluem desde
os músicos de sinfônica até os integrantes de bandas
carnavalescas. . .” de que falava Plínio Marcos, geraram
(e têm gerado) uma desilusão, instabilidade profissional e, mesmo, provocado a evasão das orquestras, em
grande parte devido à incompetência do “. . . sindicato,
a Ordem dos Músicos . . . nada fazem, nada reivindicam.
. . ” (BAHIANA,1979-1980b, p.78). COSTA-LIMA NETO
(1999, p.72) lembra que “. . . com exceção do percussionista Pernambuco, os demais integrantes do Grupo
[do Jabour] tiveram passagens pela música erudita e a
abandonaram para se dedicar à música popular . . . [formando um grupo] semelhante a um conjunto de música de câmara. . .” Márcio Bahia tocou na Orquestra
Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Itiberê
estudou piano clássico. Carlos Malta estudou na Escola
de Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos.
Jovino, que hoje leciona no Cornish College of the Arts
(Estados Unidos) no qual compositores avant-garde
como John Cage, Joshua Kohl e Jarrad Powell foram
compositores residentes, declarou a GILMAN (sem data)
seu plano de re-orquestrar A sagração da primavera de
Stravinsky para 10 músicos apenas.
Apesar de não ter tido professores eruditos, a proximidade de Hermeto com a música erudita é visível na suas
obras sinfônicas que compôs, ainda muito pouco conhecidas, como Sinfonia em Quadrinhos; Sinfonia Berlim e
sua gente; Suíte Pixitotinha; Suíte Paulistana; Suíte Mundo Grande; Suíte Norte, Sul, Leste, Oeste; Sinfonia Vale do
Ribeira e Sinfonia do Boiadeiro. Um dos ícones da música
erudita brasileira, Isaac Karabtchevsky, quando o regeu à
frente da Orquestra Jovem de São Paulo no Teatro Municipal, não economizou elogios: “Ele sempre me impressionou pelo domínio instrumental aliado a uma inventividade rítmica e melódica, que engloba uma visão de todos
os sons num resultado fantástico” (COMODO, 1996).
Mas Hermeto não reteve as terminologias eruditas, as regras
formais e harmônicas, preferindo se guiar pelo resultado da
realização musical, pelas sonoridades que diziam respeito
à sua percepção e pelo vocabulário próprio da aprendizagem oral. Daí surgiram termos como “cacho de uva” (acordes), “três andares” (superposição de três acordes) (ZWARG,
2009b), “garfinho” (síncope), “pendurada” (acento contramétrico), “chão” ou “fora do chão” (ênfase nos tempos ou
contratempos), “quebrar” (sair da ênfase nos tempos) (CAMPOS, 2006, p.86-87). Não estar preso à formação tradicional
de música também lhe permitiu criar conceitos mais amplos
como música universal, cifragem universal, música da aura,
música dos ferros e utilizar o método do corpo presente, criado por Itiberê Zwarg (MORENA, 2009).
Favorecendo a prática, e não a teoria, na sua rotina
musical, Hermeto alcançou um nível criativo em que a
improvisação tornou-se muito próxima da composição,
ao mesmo tempo fluente, em tempo real e com extraordinária riqueza de ideias:
“A surpreendente originalidade dessas ideias e a grande variedade
de procedimentos composicionais empregados, resultam em improvisações extremamente bem concebidas e finalizadas, podendo
Ex.4 - Padrões de [4/4 + 3/4] e [2/4 + 2/4 + 6/8] na métrica 7/4 em 1º de Fevereiro de 1977 de Hermeto Pascoal.
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ser ouvidas e estudadas independentemente de seus temas de origem, demonstrando complexidade e nível artístico de composições
previamente elaboradas PRANDINI (1996, p.91).
Da mesma forma, a diversidade harmônica que se encontra
nas composições de Hermeto também parece estar presente em suas improvisações e é fruto de sua abordagem,
como relata Jovino: “É necessário compor e escrever como
se fosse improviso e tocar como se fosse escrito” (COSTALIMA NETO, 1999, p.23). Após analisar alguns solos improvisados no período entre 1985 e 1992, José Carlos Prandini
observou a existência de padrões que dão unidade à sua
música criada espontaneamente. Embora tenha utilizado
uma amostragem pequena e tenha simplificado a harmonia de Hermeto nas suas transcrições e grafia, PRANDINI
(1996, p.89-90, p.4 da segunda partitura do Anexo I) fala
da improvisação de Hermeto como um frequente “grande
adensamento de notas”, com predomínio de semicolheias,
tercinas e fusas dentro de um “pensamento diatônico” junto com os quais podem aparecer a fixação em um acorde
apenas, uma preferência pelas escalas Lídia, Superlócria e
Dórica (e, em menor grau, a escalas Menor melódica, Mixolídia e Tons inteiros). Mas observa também que ocorrem
“. . . superposições de elementos originários de outras áreas
tonais, ou emprego de tonalidade expandida. . .” e, mesmo,
“fala e ruído de animais”, como ocorre ao final da improvisação em O Tocador quer beber.
A orientação pela prática, e não pela teoria, permitiu ao
discípulo Itiberê Zwarg, “herdeiro” das práticas musicais
de Hermeto no Jabour, desenvolver o conceito de método
do corpo presente, no qual a composição e a performance
são processos quase simultâneos e participativos, característica fundamental no processo criativo e coletivo da
Itiberê Orquestra Família. Ele explica:
“. . . As músicas vão surgindo segundo o método de corpo presente.
. . a capacidade de compor na hora, burilando as músicas ali no
contato com os instrumentistas. . . O que sai dessas reuniões de
corpo presente é delirantemente variado. Em Pedra do Espia há chorinho, forró, samba, valsa e muito mais. Tudo 100% instrumental. .
. Partimos do som, da referência auditiva, ao invés do método tradicional - que usa a visão, o olhar cravado na partitura. As músicas
amadurecem muito rápido. Ensaiamos muito. . .” (BARBOSA, 2001)
“Conforme vou compondo, em um instrumento qualquer,a música
vai sendo executada quase simultaneamente à sua criação. Por
exemplo: faço uma frase melódica e passo para o clarinetista; a
harmonia para o pianista; e em seguida vou abrindo as vozes para
todos os instrumentistas, parte por parte. . . Reproduzir de ouvido o
que vou criando desenvolve a percepção rítmica, melódica, harmônica e a memória musical. . . a memória de cada um dos músicos
é acionada pelo estímulo do som e não pelo estímulo gráfico. Só
depois de parte da composição e arranjos prontos é que cada um
dos instrumentistas com a ajuda de meu monitor, escreve o que
executou, desenvolvendo a habilidade da escrita musical. . . aprendem a escutar todos os instrumentos, presenciando [grifo nosso] e
participando de todo o processo de criação.” (ZWARG, 2009c)
Jovino procura explicar as raízes do conceito harmônico
de Hermeto, os quais aprendeu na Escola Jabour e levou
para o exterior:
É sempre difícil explicar os conceitos harmônicos de Hermeto,
mesmo para outros músicos. . . ele disse que costumava, na infância, ficar na oficina do avô ferreiro. . . batia na peças de ferro
e tentava emular todos os harmônicos que ouvia no seu fole de
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oito baixos. . . ele não segue as progressões harmônicas usuais,
por isso, soa sempre novo e inesperado. . . embora seus acordes
sejam bastante elaborados, são, na maioria, formados por tríades
simples empilhadas umas sobre as outras. . . o que é radicalmente
diferente do que é ensinado na maioria das escolas. Isto nos dá a
oportunidade de criar música sem ser baseada na utilização de
escalas e modos. Tenho mostrado este conceito aos meus alunos
aqui na [Escola de Música do] Cornish College of the Arts em Seattle [Estados Unidos] e é surpreendente como reagem quando
descobrem que simples acordes podem criar harmonias complexas
(GILMAN, 2009)
Na música De bandeja e tudo, COSTA-LIMA NETO (1999,
p.148) reconhece ecos modais e sonoridades de “. . . efeito
imponente, solene e místico” resultantes dos acordes com
quartas e quintas justas sem terças, os quais normalmente
se associam, na música erudita, desde os organa medievais,
até as quintas diretas dos power chords do rock, passando pelas harmonias paralelas de Debussy. Novamente, e
apesar da possibilidade de Hermeto ter ouvido estas referências na sua vida de músico profissional maduro entre
músicos letrados, é mais provável que estas sonoridades
tenham surgido na sua música mais a partir da conformação de suas mãos sobre os instrumentos (sanfonas e
teclados, como o recorrente acorde X4568) e mesmo, do
modalismo típico nordestino, remanescente dos trovadores
renascentistas, que José SIQUEIRA (1981) identificou no
seu Sistema Modal na música folclórica do Brasil.
Outro recurso de complexidade harmônica comum em
Hermeto, oriundo das exaustivas práticas de ensaio diárias e não da teoria, é o dobramento da mesma linha
melódica por outro instrumento transpositor sem se
preocupar em manter a mesma tonalidade COSTA-LIMA
NETO (1999, p.150), superposição que, obviamente, terá o
mesmo efeito prático da politonalidade.
O contraponto, um elemento típico da música erudita,
pertence ao vocabulário de Hermeto desde o início de sua
carreira. Na gravação do disco Brazilian Octopus (1969),
bolou uma linha contrapontística para duas flautas para
acompanhar o repetitivo tema da música O Pássaro do guitarrista Lanny Gordim. O saxofonista Carlos Alberto relata
a importância que Hermeto confere à sofisticação de sua
criação musical: “Só que, na hora da mixagem, o contracanto tinha sumido da gravação. O Hermeto ficou tão bravo que queria pegar o técnico. . .”(CALADO, 2000). Muitas
vezes, ele deixa claro seu pensamento contrapontístico
nas partituras, como na música 10 de setembro de 1996
do Calendário do som, inspirada em Tom Jobim (PASCOAL,
2000a, p.102). Mas a simultaneidade de linhas melódicas
na música de Hermeto não parece derivar de suas experiências com música erudita mas, antes, podem remeter
às experiência sonoras de sua infância, muitas vezes complexas. Por exemplo, a superposição de materiais desconectados, gerando a sensação de caos pela simultaneidade
de diversas pulsações, andamentos e atmosferas é relatada
por ele mesmo, “. . . [na feira de Lagoa da Canoa, em que]
haviam os cantadores de embolada, os vendedores anunciando, os discos do Luiz Gonzaga tocando no megafone. .
. e era tudo isso junto, de uma vez só. . . ”, o que pode ter
servido de modelo para ele na “. . . bandinha da escola, na
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
qual tocava tambor. . . atravessado de propósito para ver a
marcha ficar trocada. . . ” (CAMPOS, 2006, p.134).
Uma das características do estilo composicional de Hermeto Pascoal é a economia de meios na utilização do
vocabulário harmônico. Geralmente ele recorre à repetição dos mesmos tipos de acordes e a transposições de
encadeamentos harmônicos (sequências), tanto em obras
mais antigas quanto mais recentes. Mais do que isto, em
muitas músicas, a predominância de um tipo de acorde
sobre os demais é muito comum. Por exemplo, no manuscrito do compositor de O Ovo (PASCOAL, 2008), peça
gravada pela primeira vez no disco Quarteto Novo (1967),
nota-se que a recorrência de acordes do tipo X4568 / 4
ocupa 75,6 % dos 45 acordes da peça. Já em Amor, paz e
esperança (PASCOAL, 1980), os acordes menores do tipo
Xm479 correspondem a 48,8% e os acordes do tipo X479
correspondem a 29,2 % do total de 41 acordes da peça
(juntas, essas versões maior e menor deste acorde equivalem a 78% do conteúdo harmônico utilizado!).
A economia de meios é ainda mais evidente em 22 de
agosto de 1996, que ele diz ter composto “com um tipo
de acorde, só com modulações” (PASCOAL, 2000a, p.83).
Aqui, ele recorre mais uma vez ao típico acorde X 4568
(sem terça, com 4ª, 5ª, 6ª e reforço da oitava). Estão claros
os dois procedimentos nos quais Hermeto se baseou para
compor os encadeamentos harmônicos desta música: o
mesmo tipo de acorde com fundamentais diferentes, mas
sobre o mesmo baixo (como nos c.9-10: Bb 4568/F, Ab
4568/F, G 4568/F, Eb 4568/F) e, esporadicamente, o mesmo tipo de acorde com a mesma fundamental, mas sobre
baixos diferentes (como no c.13: B 4568/D#, B 4568/D).
A genialidade harmônica de Hermeto fica evidente com
a solução encontrada para sua concepção planejada
para a música 12 de novembro de 1996, que ele descreve assim: “compus esta música nos doze tons, maiores
e menores” (PASCOAL, 2000a, p.165). Como se fosse um
Bach da música popular do século XX, ele consegue concentrar, em apenas 24 compassos contendo uma cifra
cada, um passeio “bem-temperado” por todos os acordes das tônicas dos 24 tons maiores e menores, baseando-se em apenas dois tipos de acorde (X7+ e Xm 479).
Desta forma, consegue utilizar uma variedade máxima
de acordes, sem perder a coerência do discurso tonal
tradicional da música popular. Tal coerência poderia ser
explicada alternativamente como ambiguidades ou polarizações em torno da tônica e da supertônica, ao invés
de configurar modulações (Ex.5).
Avesso a rótulos, Hermeto precisou criar um para dar
conta da diversidade que é o princípio básico de seu
conceito de música universal, no qual cabem “. . . todos
os estilos e todas as tendências. O Brasil, sendo o país
mais colonizado do mundo, não poderia ser outra coisa .
. . aquela mistura bem feita . . .”, como afirmou em uma
entrevista à revista eletrônica Jungle Drums (citado por
ARRAIS, 2006, p.7). Este conceito torna a música uma
experiência mais ampla do que apenas o fazer musical.
COSTA-LIMA NETO (2008, p.24-25) identifica na música
universal opções de estilo de vida, como “arte” e “qualidade”, em oposição a “dinheiro” e “quantidade”. De fato,
o documento com dezessete Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal, organizado pela discípula a atual esposa Aline MORENA (2008), é visionário
e valoriza atitudes como “. . . amar, criar, imaginar e se
inspirar nos sons da natureza. . . misturar sem preconceitos, mas com bom gosto. . . são todos os mundos. . .
só busca encontrar-se. . . a confraternização e o amor
entre os povos. . . é alimento para a alma”.
Ex.5 – Economia de meios harmônicos, máxima variedade de acordes e ambiguidade tonal de Hermeto Pascoal na
música12 e novembro de 1996.
37
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
6 - Hermeto Pascoal: “Minha religião é a
música” (GONTIJO, 2000, p.2)
“Eu rezo com a música, com o instrumento”. Hermeto Pascoal
(O. RODRIGUES, 2003)
A religião, especialmente aquela dos ritos populares brasileiros, sempre fez parte do mundo musical de Hermeto
Pascoal. As experiências religiosas estão presentes desde sua infância em Lagoa da Canoa, nas procissões dos
benditos e nas rezas das novenas (CAMPOS, 2006, p.69),
nos mistérios das crenças, que ele mesmo relata: “Com
8 anos, achava que era alma, mas não era nada mais do
que os morcegos dentro da igreja” (CASTRO, SOUZA e
ROCHA, 2007). A religiosidade de Hermeto aparece nos
títulos de muitas músicas, como Velório (disco Hermeto,
1971; relançado em CD como Hermeto Pascoal, Brazilian adventure), Religiosidade (disco Cérebro Magnético,
1980), Novena (disco Hermeto Pascoal e Grupo, 1982),
Santo Antônio (disco Zabumbê-bum-á, 1979), São Jorge
(disco Zabumbê-bum-á, 1979), Santa Catarina (1984),
Monte Santo (disco Lagoa da Canoa, município de Arapiraca,1984), Mentalizando a cruz (disco Brasil Universo,
1985), Magimani Sagei (disco,1982), Missa dos escravos
(disco Slaves Mass, 1977), Igrejinha (gravada como Little
church no disco Live evil de Miles Davis), Devoção, Mestre Mará (1979), 25 de dezembro de 1996 do Calendário
do som (dedicada a Jesus), 16 de março de 1997 do Calendário do som (dedicada ao médium espírita Doutor
Fritz e seus irmãos espirituais), entre outras.
Falando da “cosmologia pessoal” de Hermeto Pascoal,
COSTA-LIMA NETO (2010a), acredita que o Calendário do
som (2000) é “uma obra sacra ‘inspirada por Deus’”. Ou
Deuses. Ecumênico, Hermeto está atento às tradições religiosas indígenas e afro-brasileiras. No processo de gravação de Magimani Sagei (1982), música com clima de
dança tribal que se refere à índia cabocla Magimani Sagei
(um possível “alter-ego de Hermeto”), e que tem correspondência com uma alta entidade espiritual na umbanda:
“. . . o técnico de estúdio Zé Luiz inventou, a pedido de Hermeto, palavras com sonoridade tupi (“oirê, ogorecotara, tanajura”), enquanto,
nos breques instrumentais, os músicos falavam palavras desconexas,
sopravam apitos e gritavam. Os latidos dos cachorros Spock, Bolão e
Princesa adensavam a textura geral, enquanto o andamento acelerava até o final free, improvisado” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.10).
Em Missa dos escravos, incluída no disco Slaves Mass,
pode-se observar novamente a voz como elemento típico
da música ritualística:
“A frase cantada ‘Chama Zabelê pra poder te conhecer’ é entoada
hipnoticamente num crescendo, em uma mesma nota grave contínua, como em um recitativo (recto tono) de uma missa católica
medieval, acompanhada pelo naipe dissonante de flautas e tendo
como base os batuques dançantes dos tambores da bateria. No
final, um duo de porcos grunhindo dialoga com o solo vocal de
gargalhadas, choro e gritos de Flora Purim, superpostos a uma
melodia lenta tocada na flauta transversa em uníssono com a voz
cantada, aparentemente inspirada nos cantos de rezadeiras e nos
benditos e incelenças do catolicismo popular nordestino (COSTALIMA NETO, 2008, p.11).
38
Em outro exemplo do sincretismo afro-indígena no Brasil, Hermeto recorre a “. . . recursos vocais não convencionais, como sussurros, chiados, glissandi, ataques glotais, tosse, gritos” para criar a ambiência afro-brasileira
de Mestre Mará (1979), e uma série de aliterações com
palavras em torno do título:
“. . . técnica muito comum na embolada nordestina, para associar a denominação do ritmo afro-brasileiro ‘maracatu’, com o
instrumento indígena ‘maracá’, além do gato-do-mato (na língua
indígena) ‘maracajá’ e, finalmente, o nome do mestre ‘Mará’. Nesta música, a melodia cantada por Hermeto está numa velocidade
(andamento) lenta, enquanto o coro explorando recursos vocais
não convencionais está em outro andamento, mais rápido. A superposição incomum dos dois andamentos em “Mestre Mará” indica a presença de duas dimensões simultâneas. De fato, além da
Umbanda, do espiritismo, e das tradições musicais relacionadas ao
catolicismo popular do nordeste, nesta música o alagoano revela
outra faceta de sua espiritualidade ao cantar: ‘Ô Mestre, recebi
sua mensagem, foi com muita alegria que musiquei sua imagem.’
O ‘mestre’ em questão parece estar relacionado a outra figura que
Hermeto denominou ‘O Dom’ ” COSTA-LIMA NETO (2008, p.11-12).
O jornalista Howard Mandel, da revista Down Beat, o
compara com outras referências místico-musicais: “. . .
Pascoal é um líder pan-global como [o compositor e pianista de jazz, poeta, filósofo, pioneiro da filosofia cósmica afro-futurismo] Sun Ra e um individualista como
[o multi-instrumentista e militante Afro-Americano]
Rashaan Roland Kirk ” (McGOWAN e PASSANHA, 1999,
p.161). Mesmo os músicos estrangeiros e que tiveram
pouco contato com Hermeto percebem a religiosidade com que ele abraça a música. Lyle Mays, tecladista
do Pat Metheny Group diz que “Ele tem uma verdadeira devoção com o fazer musical, e nos expressa isto...”
(McGOWAN e PESSANHA, 1991, p.160).
A música parece, de fato, ser um instrumento religioso de
comunicação para Hermeto. A amizade que estabeleceu com
Miles Davis refletiu-se na música de Hermeto muito tempo
após a morte do jazzista norte-americano, ao lhe dedicar a
música Capelinha e lembranças (disco Eu e eles, 1999):
“Essa música com o Miles foi o seguinte. . . aconteceu agora, depois dele lá no outro plano. . . por ser um gênio, um cara tão musical, ele aprendeu essas músicas minhas [Little church e Nem um
talvez no disco Live evil de Miles Davis], eu não precisei escrever
partitura nem nada. . . Ele aprendeu gravando essas músicas no
estúdio, e ficou. E eu tocando o Hammond. . . tocando num órgão
elétrico que ele tinha lá, horrível. . . aumentei o volume e o som
veio pela intuição. . . Uáaa, Uáaaa. . . Aí o Miles correu de lá e disse: ‘Oh, que som, que coisa bonita isso aí’. Então nesse meu disco
agora, que eu fiz essa música e dediquei a ele. . . [para] retribuir. . .
aquele convite que ele fez no disco dele [que] . . . me comunicando
muito com ele espiritualmente. Comecei a tocar e sentia muito a
presença dele na minha mente. . . Na gravação é que estava muito
mais forte a intuição. . . que começa a capella. . . com os quatro
flugelhorns. . . eu conversando com ele, brincando com ele. . . tocando samba no flugelhorn. . . colocaram como se fossem duas
músicas, não são duas músicas, aquilo é uma música só. Aquilo é
a introdução da melodia” (BARROSO, 2009)
Hermeto, ecumênico, admira a doutrina espírita, religião escolhida por muitos familiares de sua primeira
esposa, Dona Ilza. Ele diz: “Eu vivi nesse meio e tenho
muita experiência que o pai dela passou pra mim sobre
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.
Alan Kardec, mesa branca. Você não vê, por exemplo,
ninguém de Alan Kardec na TV pegando dinheiro, vê?”
(O. RODRIGUES, 2003).
Uma escuta atenta da música Chapéu de baeta (disco Festa
dos deuses, 1992 ) revela Hermeto recitando sobre “. . . o
som que embala a alma. . . quem premedita não procura e
jamais encontra . . .é sair com fé, coragem, com muita meditação. . .” Já em Mentalizando a cruz, no longo trecho de
piano solo que inicia a música, COSTA-LIMA NETO (2008,
p.11) diz que “. . . foi composta por Hermeto e dedicada ao
músico Paulo Cesar Wilcox” e que “Hermeto parecia convencido que o homenageado, recém-falecido, teria ‘soprado’ esta música aos seus ouvidos, como numa psicografia.”
A linguagem atonal geralmente aparece na música de
Hermeto Pascoal como música da aura, em que “meu ouvido absoluto, recebe os fenômenos sonoros cotidianos.
O familiar é tornado exótico e vice-versa. . .” motivada
por emulação de sons de altura não definida como a fala
humana (como em Aula de Natação, na qual “. . . transpõe
as diferentes durações e alturas da voz falada em prosa
para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal
e de ritmo assimétrico” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.176)
ou o som percutido de peças de metal de natureza programática como em Ferragens.
Em Canon para flauta solo, gravada no disco Slaves Mass
por Hermeto PASCOAL (1977), a sua religiosidade tornase explícita na intenção de emular uma sessão musical
espírita no estúdio de gravação e se comunicar como
o colega jazzista Julian “Cannonball” Adderley (19281976), recém-falecido. Uma análise da gravação e das
partituras (veja a partitura original desenhada em forma
de espiral no presente número de Per Musi [PASCOAL
e PEREIRA, 1977, p.70] e a partitura restaurada [PASCOAL e BORÉM, p.80-82, nesse volume de Per Musi.]),
revela uma utilização expandida da linguagem harmônica modal. Em Cannon, Hermeto alterna um modalismo
extremamente instável, sem centros modais definidos
(que, por isso, pode ser percebido como quase-atonal),
com polarizações modais (Sol Dórico/Eólio e, depois, Sol
Eólio/Menor Melódico) que sugerem as etapas de uma
sessão espírita: o contato, o transe, a incorporação espiritual, e a despedida com a alma de “Cannonball” (BORÉM e FREIRE, 2010; veja artigo completo às p.63-79 no
presente volume de Per Musi).
Sempre que lhe perguntam sobre religião, entretanto,
Hermeto diz que “Minha religião é a música. Deus me disse: ‘A religião de vocês aí, meu filho, é o trabalho. É o que
vocês gostam de fazer na vida’ ” (GONTIJO, 2000, p.2).
Não é algo separado das atividades do dia-a-dia. Este interesse nas tarefas comuns e trabalho dos que cercam
Hermeto também se reflete nos títulos de suas músicas,
como Ilza na feijoada, em que faz referência à atividade
da esposa desde seus tempos no Recife, ou Aula de natação que retrata a lida diária da filha Fabíula Pascoal,
formada em educação física.
Aos poucos, o culto à música por Hermeto e seus seguidores tem tomado a forma de um local público que
abrigará, segundo sua esposa e parceira musical Aline
Morena, “. . . um teatro, que terá o acervo do Hermeto, uma sala onde haverá o acervo multimídia. Além
de acontecerem espetáculos de música universal, vão
estar disponíveis os vídeos de shows, de workshops.”
(CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007). O Templo do Som
Hermeto Pascoal, cujo projeto arquitetônico “. . . já está
pronto e é assinado pelo arquiteto Mário Biselli” será
um espaço que, além de disponibilizar manuscritos
originais, gravações raras e imagens, terá uma função
educacional, onde pretende-se a discussão sobre música e seu papel na melhoria do ser humano (PAULA,
2007). Hermeto parece preparado para deixar o legado
de sua missão na terra:
“. . .Deus fez uma escada infinita e a deu de presente a cada um de
nós. Estou subindo os degraus e vou continuar subindo. Não é preciso olhar para trás, porque a vida já é um espelho.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007); “Tudo o que sei e serei agradeço a Deus, aos
Deuses e ao meu dom espiritual e musical”. (PASCOAL, 2000b, p.18)
7 - Considerações finais
Ouvidos desatentos às experiências de vida de Hermeto
Pascoal podem reconhecer, dentro do seu eclético estilo composicional, ecos derivados diretamente de estilos
eruditos, como melodias acompanhadas chopinianas;
acordes paralelos debussynianos; os contrapontos, superposições politonais e emancipação rítmica de Stravinsky;
os clusters atonais da segunda escola de Viena; as superposições métricas e harmônicas de Charles Ives; a complexidade rítmica de Boulez; as transcrições de Messiaen
de sons da natureza para o piano; as paisagens sonoras
de R. Murray Schafer; as manipulações eletroacústicas
remanescentes de Pierre Schaeffer e Pierre Henry; os ruidismo musicais de Luigi Russolo; a música conceitual de
John Cage; e, mesmo, os modelos modais de composição
e de improvisação oriundos do jazz.
Entretanto, basta acompanharmos a trajetória musical
deste músico genial, para o qual não existe divisão entre
composição, performance, arranjo e improvisação, para reconhecermos, já na sua infância, as premissas da economia política da música de Jacques Attali que COSTA-LIMA
NETO (1999, p.42-43) identifica em Hermeto Pascoal: o
“espelho do tempo e da sociedade”, a “ação crítica”, o “atributo do poder político e religioso” e o “germe da revolta”.
No caso de Hermeto, “. . .a tendência em buscar referências musicais ao mesmo tempo consagradas e generalizantes (música erudita, jazz). . .” (CAMPOS, 2006, p.78)
não se aplica. Embora seus ouvidos de “gravador infinito”
estiveram (e estão) literalmente atentos a todos os sons
que o cercaram, inclusive os eruditos, seu processo de
aprendizagem é único – resultado de suas experiências
de vida musicais e não-musicais - e centrado na transmissão oral do conhecimento. O caminho é outro, não
tradicional, não-letrado, autodidata, mas os resultados
sonoros não ficam aquém daqueles do tonalismo, mo-
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dalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e
música concreta da música erudita.
Espera-se que este estudo de caso sobre Hermeto Pascoal
possa servir de ponto de partida para estudos posteriores, quiçá aqueles de natureza indutiva que, a partir da
análise de um conjunto maior de músicas desse compositor genial, possam revelar mais detalhes sobre seu estilo
composicional, especialmente seus percursos harmônicos.
Respondendo ao jornalista Álvaro Cavalcanti da Radio
Nederland Wereldomroep sobre o encontro entre o tradicional e a vanguarda na música, Hermeto disse que “A
música para mim, não há como falar em vanguarda, falar
em jazz, falar em baião, falar em chorinho. . . não tenho
rótulos” e, mais à frente, sobre mesmice e variedade em
música, “. . . o povo cansa de uma coisa só. . . .” (CAVALCANTI, 2004). O “tacho de sons” no qual CAMPOS (2006)
descreve como os ritmos se misturam “tudo de uma vez
só” é o mesmo no qual Hermeto Pascoal experimenta suas
receitas em que cabem todos os ingredientes harmônicos,
muitas vezes “tudo de uma vez só”. Do alto de suas experiências de vida e maturidade musical, o sempre inusitado Hermeto Pascoal reflete, sem falsa modéstia, sobre si
mesmo: “. . . naquele tempo eu era lindo e agora sou um
santo.” (TÁRIK DE SOUZA, 1990).
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Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro,
três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia,
etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e
no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen
Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto
Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho
Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass,
o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a
2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo
Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).
Fabiano Araújo é Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de
Artes da UNICAMP. Foi professor da FAMES (Faculdade de Música do Espírito Santo) Atualmente é Professor Assistente
do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciona Harmonia, Estruturação, Improvisação
e Teclado. Lançou em 2007 o CD e DVD O Aleph, alcançando cotação máxima de crítica do Jornal O Globo. Seu novo
trabalho de interpretação de nove peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal foi gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do
saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal).
43
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
O cantor Hermeto Pascoal:
os instrumentos da voz
Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO, Rio de Janeiro)
[email protected]
Resumo: Artigo sobre a utilização da voz na música do compositor Hermeto Pascoal, seja cantando, falando, gritan-
do, sussurrando, rezando, tossindo, gargalhando, assobiando, produzindo sons guturais, sozinha ou simultaneamente
com instrumentos de sopro, de teclas, com objetos sonoros não conven­cionais ou, ainda, de outras formas. Ao contemplar a produção vocal na obra e na vida de Hermeto Pascoal, de maneira abrangente, pretendo mostrar uma faceta
pouco conhecida do versátil compositor alagoano, além de revelar que a sua música e a sua personalidade partilham
uma mesma ética, da qual a voz é instrumento.
Palavras-chave: etnomusicologia; Hermeto Pascoal; música popular brasileira; voz; música instrumental.
The singer Hermeto Pascoal: the voice’s instruments
Abstract: Article about Brazilian composer Hermeto Pascoal’s utilization of his voice in his music, whether singing,
talking, shouting, whispering, praying, coughing, laughing, whistling, producing guttural sounds, alone or simultaneously with wind instruments, keyboards, non-conventional sound objects or even other forms. In considering the use of
the voice in the work and life of Hermeto Pascoal, in a comprehensive way, I am seeking to show a lesser known facet
of the versatile composer from Northeastern Brazil, as well as revealing that his music and his personality share the
same ethics, in which the voice is the instrument.
Keywords: ethnomusicology; Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; voice; instrumental music.
1- Introdução
Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não escutei música para compor. Não. Eu me inspiro mais na pintura, no
timbre de uma voz. (...) O cantar das pessoas, na minha concepção,
o cantar de cada um de nós, é o que chamamos de fala. Assim
como os pássaros, nós somos pássaros também (PASCOAL, 1997).
Hermeto Pascoal (nascido em 22 de junho de 1936, no
Olho D’água da Canoa, Alagoas) é conhecido no Brasil
e no exterior como um músico multi-instrumentista, arranjador e compositor. Entretanto, em aproximadamente
60% das músicas gravadas em 13 discos autorais lançados a partir de 1972,1 ao invés de limitar-se a utilizar
somente instrumentos como piano, teclados eletrônicos,
flauta, sax, contrabaixo, bateria, etc. – além de instrumentos não convencionais –, Hermeto Pascoal também
utiliza a voz, mesmo não sendo ele, oficialmente, um cantor, nem um compositor de canções. Além disso, em seus
discos autorais Hermeto sempre contou com a participação de cantoras como Flora Purim, Zabelê, Jane Duboc e
Luciana Souza e, culminando o longo “namoro musical”
com o canto, o compositor se casou com a cantora gaúcha Aline Morena, sua atual companheira.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
44
Na citação utilizada como epígrafe deste artigo Hermeto
Pascoal relata que, desde quando ele era criança, a voz foi
algo que o motivou “para fazer música”. Depois, ao longo de sua carreira profissional, a voz se tornaria um instrumento tão importante quanto os sopros, as cordas, os
teclados e a percussão. De fato, ela parece integrar, com
os demais instrumentos, um continuum indivisível que
perpassa o território sonoro da Música Universal, conforme Hermeto Pascoal designa a sua música inovadora, que
problematiza a separação entre os pólos popular/erudito e
nacional/internacional. A quantidade numerosa de composições gravadas onde a voz se faz presente na obra do
alagoano demonstra sua importância, mas, apesar disso,
este não foi, até então, um tema devidamente contemplado nos estudos acadêmicos. Ao invés disso, Hermeto vem
sendo considerado apenas como um compositor “multiRecebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
instrumentista” vinculado às tradições da música instrumental popular, presente em gêneros e estilos, como, por
exemplo, o choro, o frevo, o forró, as bandas de pífano ou
o jazz. Entretanto, se Hermeto Pascoal está, de fato, relacionado a estes e a outros gêneros musicais importantes,
por outro lado, ele os ultrapassa através da utilização de
fontes sonoras que, convencionalmente, não são consideradas “música”, como a voz falada, por exemplo. Esclarecerei melhor meu argumento a seguir.
Ainda na epígrafe do presente artigo Hermeto Pascoal
afirma que, em sua concepção, o “cantar das pessoas é a
fala”. Não se trata de uma metáfora. Hermeto realmente escuta as falas das pessoas como se fossem melodias
cantadas. Esta percepção ampliada e precocemente experimental surgiu na infância do músico, tendo lhe causado, inclusive, alguns problemas junto aos familiares que
não compreendiam por­que o menino insistia em dizer que
essa ou aquela pessoa estava cantando enquanto falava.
Sua própria mãe o chamava de aluado (“lunático”) devido
à insistência in­comum do garoto e, desta maneira, Hermeto Pascoal chegou a acreditar que tinha algum problema auditivo. Décadas se passaram e somente a partir
de seu LP autoral, lançado em 1984, intitulado Lagoa da
Canoa, Município de Arapiraca, o compo­sitor decidiu se
libertar dos fantasmas que o assombravam desde a infância. Começou, então, a gravar em disco as melodias da
fala, que só ele parecia es­cutar, denominando-as músicas da aura.2 Nelas, as melodias da fala são reproduzi­das,
nota por nota, nos teclados e, depois, são har­monizadas
e arranjadas para outros instrumentos. Desta maneira,
ele provava para si mesmo e para os outros que não era
“aluado” e nem tinha problemas auditivos. Pelo contrário,
Hermeto é dotado de ouvido absoluto e de uma escuta
ampliada através da qual tudo parece se tornar música.
A fala humana forneceu para ele os rudimentos de sua
Música Universal ao lhe ensinar as primeiras melodias –
atonais e ritmicamente assimétricas. A fala se tornaria,
através da música da aura, uma estrela de primeira grandeza em sua música, demonstrando a maneira paradoxal
como o compositor alagoano exerce a experimentação
através dos sons cotidianos e daquilo que é mais prosaico.
Como Hermeto Pascoal afirmou: “A natureza é o cotidiano
(...) é tudo o que você vê pela frente”. Ela inclui não apenas
os animais e as matas, mas “pode estar também num carro na Avenida Brasil, na hora do rush, durante uma tempestade” (PASCOAL, entrevista com Gonçalves e Eduardo,
1998:48). E, complementando a afirmação anterior: “Eu
sou o oposto de muitas escolas. Muitas pessoas pensam
que Dó, Mi, Sol, Dó é natural, mas não é; é apenas o convencional (...). O atonal é a coisa mais natural que existe”
(PASCOAL, entrevista com o autor, 1999). Desta forma,
Hermeto Pascoal cria uma dicotomia entre, de um lado, o
“natural” (as sonoridades universais e atonais da fala, da
natureza, dos sons dos animais e dos objetos cotidianos,
rurais ou urbanos) e, de outro lado, o “convencional” (o
canto e os demais instrumentos, os gêneros e estilos modais e tonais, regionais, nacionais ou internacionais).
Através do “natural”, Hermeto ultrapassa o “convencional”, mas sem negá-lo. Como demonstrei em outro estudo
(COSTA-LIMA NETO, 1999), para chegar ao atonalismo, ruidismo, aleatorismo e outros “ismos” Hermeto Pascoal não
frequentou escolas de música nem dependeu da música europeia de concerto, do jazz norte-americano ou de qualquer
outro gênero musical. Ao invés disso, desde a sua infância
no Nordeste, ele escutou atentamente o que estava a sua
volta, na natureza e no cotidiano, e utilizou aquelas sonoridades em sua música. Ao fundir o “natural atonal” e o “convencional modal e tonal” ele cria a sua Música Universal.
Embora na citação utilizada como epígrafe Hermeto esteja se referindo ao papel fundamental que a musicalidade
da fala teve na gênese de sua Música Universal, acredito
que a partir de seu relato podemos depreender uma interpretação adicional: se “o cantar das pessoas é o que chamamos de fala”, a música abrangeria tanto o som, como,
também, a palavra e os sentidos por ela enunciados. Desta
forma, a análise etnomusicológica realizada neste artigo
contemplará não apenas o canto, os demais instrumentos
e os elementos da sintaxe musical (timbre, textura, ritmo,
harmonia, etc.), como também as letras, narrações e os
títulos das composições de Hermeto Pascoal. Estes dados
serão complementados pelas entrevistas realizadas com
membros de sua família, na região de Lagoa da Canoa,
onde estive em 2008. A partir destas entrevistas relacionarei a vida e a obra de Hermeto Pascoal a certos personagens no imaginário popular do Nordeste, como Zumbi
dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro.
Som musical e discurso, palavra cantada e palavra falada
podem ser considerados como instrumentos da voz. É o
que pretendo realizar neste trabalho.3
2- O cantor Hermeto Pascoal
Em quatro das nove faixas do primeiro disco autoral
lançado em 1972 (Buddah Records), nos EUA, intitulado
simplesmente Hermeto,4 a voz é utilizada pelo compositor
alagoano, pela cantora Googie e pelo casal Flora Purim e
Airto Moreira. O experimenta­lismo musical já transparece
na peça Velório, composição que exemplifica a importância da voz e dos objetos sonoros não convencionais na
música de Hermeto Pascoal. Nesta composição, as vozes de Hermeto, Flora e Airto são ouvidas logo na seção
inicial (00:14 – 01:11) e imitam a paisagem sonora dos
enterros na terra natal de Hermeto ao simular rezas-dedefunto5 entreouvi­das em meio a sussurros e murmúrios
aleatórios. As vozes são an­tecedidas e sucedidas por uma
orquestra dissonante e atonal constituída por 36 garrafas
(00:02 – 01:40). As notas e ritmos foram escritos por Hermeto em partitura e, depois, as partes foram interpretadas por jazzmen de renome, tais como Joe Farrel, Hubert
Laws, Ron Carter e Thad Jones, um pouco surpresos com
seus novos instrumentos de sopro.
Os objetos sonoros não convencionais foram os primeiros instrumentos de Hermeto Pascoal no Olho D’água da
Canoa, onde o músico nasceu – um local praticamen45
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
te inabitado, cercado por todos os lados pela natureza.
Lá, o garoto albino se divertia tocando em duo com os
pássaros utilizando flautas feitas por ele mesmo com
folhas de mamona, ou compunha suas primeiras peças
percutindo um carrilhão artesanal de ferrinhos roubados
do monturo (lixo) de seu avô ferreiro, apelidado Sena
da Bolacha.6 As melodias da voz, os sons dos pássaros e
de outros animais, assim como os sons inarmônicos de
objetos musicais não convencionais, como o carrilhão
de ferros, constituíram a “tríade” paradigmática experimental da música de Hermeto Pascoal. Dessa maneira,
enquanto que o som das garrafas da peça Velório parecia estar relacionado às flautas artesanais e ao carrilhão, as vozes imitando as rezas-de-defunto, por sua
vez, estavam associadas às melodias da fala que hoje
integram as músicas da aura.
Um esclarecimento terminológico. Na série harmônica,
presente na maioria dos instrumentos melódicos e harmônicos da orquestra, com exceção de alguns instrumentos de percussão, as frequências parciais mantém com
a frequência fundamental uma distância “igual à multiplicação desta [fundamental] por um número inteiro”
(CAESAR7). Nos sons inarmônicos dos sinos, carrilhões,
gongos e outros objetos metálicos, por sua vez, “as parciais estão em relação não-harmônica, isto é, em uma
relação matematicamente não inteira com a frequência
mais grave” (idem). O resultado psico-acústico é que o
som inarmônico é percebido sem uma altura definida; há
uma distorção na afinação. No que diz respeito aos sons
produzidos pela voz, é interessante observar que as vogais
têm parciais harmônicos, mas as consoantes têm características espectrais “muito mais complexas, porque apresentam pequenos aglomerados de ruído” (idem). Hermeto
Pascoal revelou em entrevista comigo (1999) que os sons
dos ferros percutidos serviram como modelo para que ele,
quando criança, descobrisse acordes atonais e dissonantes na sanfona de oito-baixos, popularmente denominada
pé de bode. Ilustrando a influência dos sons inarmônicos
em sua Música Universal, a composição intitulada Cores
(1982), por exemplo, apresenta acordes tocados por dois
pianos, cujas notas correspondem aproximadamente aos
parciais de uma placa de ferro percutida.
A transcrição destes parciais para os pianos foi possível
graças à percepção ampliada de Hermeto Pascoal. Acima
dos “acordes inarmônicos”, Hermeto Pascoal acrescentou
o silvo agudo de uma cigarra, cantando, destemperada.8
Após a introdução atonal da música Velório, em seguida, de maneira algo irônica, as vozes de Hermeto, Airto
e Flora passam a entoar glissandi “fantasmagóricos” em
“u” e “a” (01:22 – 01:42), sucedidos pelo solo estridente
do safo (ou sapho), um instrumento de cordas, fabricado
no Japão, o qual, segundo Hermeto Pascoal (citado por
CABRAL, 2000), é uma “mistura de berim­bau com máquina de escrever”. A ironia com que Hermeto e os músicos
parecem emitir os glissandi merecem um comentário à
parte, pois demonstram, a meu ver, a forma irreverente
46
através da qual o alagoano lida com a tradição, como a
declaração a seguir esclarece:
Aqui [no Brasil] estão sendo feitas as coisas mais novas e mais
importantes, enquanto lá fora todos estão esgotados. (...) Mas isso
não quer dizer que eu vou sair brandindo as raízes ou fazendo afirmação de nacionalismo musical. Folclore? O que é isso? Pra mim
só existe música. Ela é universal e está acima de rótulos ou marcas.
Eu nunca digo que sou um “músico brasileiro”, mas um brasileiro
que faz música. Porque, como músico, sou universal. (PASCOAL,
entrevista com Ezequiel Neves, 1975)
As tradições musicais regionais ou “folclóricas” não são,
para Hermeto, algo a ser preservado visando à perpetuação de uma suposta “autenticidade” das “verdadeiras
raízes” nacionais. Antes, o músico alagoano recorre à tradição para, a partir dela, exercer a experimentação. Em
sua obra, muitas vezes a modernidade parece emergir das
tradições populares, especialmente da música nordestina,
e vice-versa, num continuum sem rupturas, como exemplifica a peça Velório.
Sucedendo a seção inicial atonal ocorre a segunda seção,
a mais longa da peça, na qual Hermeto Pascoal se alterna
improvisando no safo (01:42 – 03:29), na flauta transversal em Dó (03:29 – 04:54), e no piano (04:54 – 05:42),
utilizando os modos Dórico (safo e flauta) e Mixolídio
(piano). A orquestra é introduzida na terceira seção, primeiro com os metais da big band, depois com as cordas
e, em seguida, com o tutti, sempre tendo a “cozinha”9 ao
fundo (05:43 – 07:32). Após o clímax orquestral, atonal, a
peça chega a quarta e última seção, novamente no modo
Dórico. O piano solo utiliza a textura bordão, como as
cordas graves da viola de um repente nordestino (07:34),
enquanto Hermeto Pascoal improvisa na flauta transversal baixo (08:00 – 08:32).
A sucessão de seções musicais contrastantes presentes
nesta composição sugere uma rapsódia ou, ainda, uma suíte, denominação que o próprio Hermeto adota para intitular suas composições mais extensas, com várias partes ou
seções. Talvez a forma suíte ocorra na música de Hermeto
Pascoal porque o músico, quando garoto, tocava sanfona
de oito baixos, pandeiro e triângulo em feiras, forrós, festas e bailes em Lagoa da Canoa, em Palmeira dos Índios
e em povoados próximos.10 Nestes bailes, as danças contrastantes eram encadeadas livremente, de acordo com a
vontade dos dançarinos. Quanto à forma livre denominada
rapsódia, acredito que outra explicação faz-se necessária.
O próprio Hermeto Pascoal parece fornecê-la: “Todas as
minhas composições começam com uma ideia e terminam
com mudanças de estilo. Por quê? Respondo eu: é porque
a música é universal e o onipotente não tem fronteiras,
nem preconceito algum.” (PASCOAL, 2000, p.294). As duas
explicações, combinadas, permitem-nos formular a hipótese de que a construção musical desenvolvida por Hermeto
Pascoal encadeia contrastes sucessivos para simular uma
“dança” improvisada, através da qual o músico e “o onipotente” se aproximam gradativamente. De fato, muitas vezes a forma musical das composições de Hermeto Pascoal
parece resultar deste ritual religioso.11
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
As mudanças entre os trechos falados e tocados, escritos ou improvisados das seções atonais e modais da peça
Velório ocorrem sem costuras apa­rentes, com as seções
se imbricando umas nas outras num fluxo ininterrupto.
Este continuum interliga num gesto único: o som das 36
garrafas e as vozes “rezando no Velório” (primeira seção);
os instrumentos solistas safo, a flauta transversal em Dó
e o piano (segunda seção); os instrumentos convencionais da big band e da orquestra de cordas (terceira seção); e, finalmente, o piano e a flauta transversal baixo
(quarta seção). Desta maneira, a atonalidade e o ruidismo
foram sucedidos pelo modalismo nordestino e ambos foram amalgamados com os timbres característicos do jazz
norte-americano e da orquestra clássica europeia numa
fusão prenunciada, sinestesicamente, pelo título de outra
composição deste mesmo disco: Coa­lhada.12
Explorando a faringe como a porção da anatomia humana que, ao conectar o nariz e a boca à laringe e ao
esôfago, inter-relaciona o cantar e o comer, é interessante observar que, além de Coalhada, outros títulos de músicas compostas por Hermeto Pascoal mencionam ou fazem alusão a alimentos ou utensílios de
cozinha, como, por exemplo, em ordem cronológica: O
Ovo, (1967),Tacho e Geléia de Cereja (1977); Pimenteira (1979b); De bandeja e tudo, A Taça (1982); Ilza na
feijoada, O tocador quer beber (1985); Quiabo (1987) e
Vai um chimarrão (1999). Além destes títulos, nos rodapés das partituras do Calendário do Som (2000) Hermeto mencionou uma quantidade grande de alimentos:
“carne, peixe, piabinha, bacalhau, camarão, vinho tinto,
verduras, maxixe, mandioca, feijão, imbuzada, batatadoce, milho, quentão, banana, laranjas e puxa-puxa.”13
Os títulos e referências aos alimentos na obra de Hermeto Pascoal podem significar que em sua música ocorrem
misturas de “substâncias” (isto é, gêneros e estilos musicais), que, após serem fundidas, sofrem transformações
em sua “aparência” e “sabor” iniciais, tornando-se originais, ao fim do pro­cesso. Mais do que isso, os alimentos
estão associados à “cozinha”, isto é, um termo utilizado
na música popular para designar a formação instrumental constituída pelo contrabaixo, pela bateria e a percussão, instrumentos que, na música de Hermeto Pascoal,
são alçados à condição de solistas, saindo da “cozinha”
para assumir o local mais nobre da “casa”. À cozinha estão
associadas as classes populares – que tradicionalmente
arrumam a mesa e servem a comida para as classes favorecidas economicamente –, contudo, através do “som-comida”, Hermeto Pascoal “vira a mesa” e reverte os papéis
sociais convencionais, enquanto reafirma sua identidade
cultural e valoriza sua condição de imigrante nordestino.
Mais há ainda outras interpretações possíveis relacionando música e comida na obra de Hermeto Pascoal.
Apesar deste nunca ter feito, ao que tudo indica, referências a metáfora da antropofagia cultural (ANDRADE,
1976 [1928]), acredito que a antropofagia como conceito etnomusicológico poderia ser utilizada na análise da
Música Universal. O conceito se origina do canibalismo
religioso praticado pelos índios Tupinambá no século XVI.
Na prática antropofágica, o canibal, ao comer ritualmente o inimigo, acredita absorver suas qualidades, “com a
morte significando o nascimento de um outro ser no canibal” (ULHÔA, 1997, p.92). Segundo Oswald de Andrade
a antropofagia teve como seu marco inicial a morte do
primeiro bispo católico do Brasil, Dom Pero Fernandes
Sardinha, devorado ritualmente pelos índios Caetés, em
16 de julho de 1556, na costa do estado de Alagoas, o
estado natal de Hermeto.
Neste sentido, será útil verificarmos a relação – pouco
explorada academicamente, até então –, entre Hermeto
Pascoal e os “nativos”, isto é, os índios alagoanos. O músico cresceu numa região ainda hoje habitada pelos índios
Xucuru-Kariri, os quais perderam sua língua nativa e a
maioria dos indicadores mais visíveis de sua condição indígena. Apesar dos revezes advindos da colonização brutal, os remanescentes dos Xucuru-Kariri estão tentando
redescobrir e reinventar suas tradições e parecem estar
presentes na Música Universal de Hermeto Pascoal – não
está ele também, (re)inventando tradições? O alagoano
compôs várias músicas que aludem à cultura indígena
(Tupizando, Mata verde, Magimani Sagei, Dança da Selva na cidade grande) e nos shows de Hermeto & Grupo,
nos quais estive presente no período 1985-1992, muitas
vezes o compositor e os músicos da banda entravam em
cena imitando gritos de índios. A imitação, um pouco irônica, sem dúvida, não era, entretanto, apenas uma piada.
O próprio Hermeto (PASCOAL, entrevista com Mário Adnet, 1998) definiu a si mesmo como um “índio diferente”,
ao mencionar a sua infância, quando vivia em contato
com a natureza e construía flautas artesanalmente. Observo inclusive que, para Hermeto, a flauta parece ser
um instrumento com caráter quase sagrado, de maneira
semelhante às flautas utilizadas pelos Xucuru-Kariri em
seus Toré rituais. Toré (também chamado tolê, torém) é
um misto de dança, ritual, canto e música instrumental
utilizando principalmente flautas, “gaitas” e outros instrumentos de sopro, além de instrumentos percussivos.
Constitui uma espécie de língua franca dos índios do
Nordeste, sendo utilizado como um meio de as etnias espalhadas pelos estados da região afirmar sua identidade
cultural. Através do Toré os índios festejam e acreditam
contatar os encantados, seres espirituais, aos quais recorrem para obter orientação, cura, proteção, etc.14
Um ritual semelhante ao Toré ocorre na composição de
Hermeto Pascoal para flauta transversal solo, vozes e
sons pré-gravados, intitulada Cannon (1977). Nesta música ocorre uma “sessão espírita”, na qual Hermeto invoca, através da flauta e da voz, o espírito do saxofonista de
jazz, Cannonball Adderley, falecido em 1975 (ver o artigo
excelente de BORÉM e FREIRE, neste número). Além de
exemplificar como os planos material e espiritual estão
interligados na obra do “índio” Hermeto Pascoal, Cannon
demonstra que o compositor alagoano “incorpora” alguns aspectos musicais do jazz norte-americano. Entretanto – utilizarei novamente a metáfora antropofágica
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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
–, o jazz é apenas um dos “temperos” de um “banquete
universal” no qual o “prato principal” é definitivamente
outro: a “panelada” misturada de sonoridades, formas,
texturas, modos escalares, timbres, gêneros e estilos
musicais, especialmente do Nordeste do Brasil. Observo ainda que, na música Velório, Hermeto Pascoal utiliza
instrumentos que não são norte-americanos, europeus –
e nem brasileiros –, como o safo, por exemplo, de origem
oriental.15 Por estar aberto a influências sonoras de todo
o mundo e, simultaneamente, se recusar a negar as raízes brasileiras, Hermeto Pascoal define sua música como
Universal. Essa identidade cultural parece constituir a
sua verdadeira “cidadania”. Assim, acredito que a denominação Música Universal pode ser considerada como a
expressão consciente de uma tendência antropofágica
inconsciente, por parte do “índio” Hermeto Pascoal. Sua
Música Universal exemplificaria como “a cultura nativa, que aparentemente foi comida pelas [culturas] mais
‘complexas’, na realidade as incorporou em seu ritual de
re­novação” (ULHÔA, 1997, p.99).
No LP lançado em 1973 (PolyGram Brasil), intitulado
A música livre de Hermeto Paschoal (sic)16 seu primeiro
disco autoral lançado no Brasil, três das seis faixas são,
originalmente, canções (Asa Branca, Carinhoso e Gaio da
Ro­seira), a partir das quais Hermeto Pascoal fez arranjos instrumentais para orquestra. Escolhi como objeto de
análise, entretanto, uma outra música deste mesmo disco, o baião instrumental, em Lá menor, intitulado Bebê,
uma das composições mais famosas de Hermeto Pascoal.
Esta peça foi composta no violão e teve como inspiração
as primeiras tentativas de fala de seu filho caçula, Flávio, que “lalava”,17 repetida­mente, duas notas separadas
por um intervalo de semitom (Mi - Fá), justamente as
duas primeiras notas da melodia de Bebê,, que integram
o mo­tivo que estruturará toda a peça. Desta maneira,
a voz forneceu a matéria-prima para a composição de
uma peça na qual a presença vocal está como que oculta nos sons dos instrumentos. Bebê, é, por este motivo, uma canção sem palavras, assim como várias outras
composições instrumentais de Hermeto Pascoal. Em seu
processo criativo, o compositor alagoano geralmente
escreve primeiro a melodia, solfejando-a mentalmente
(muitas vezes sem o auxílio de instrumentos), enquanto
utiliza o ouvido absoluto para imaginar a harmonia que a
acompanharia.18 Assim, Hermeto Pascoal confere a suas
peças uma qualidade cantabile, como se o próprio músico estivesse cantando através dos instrumentos. Compo­
sições como, por exemplo, Montreux (1979a), São Jorge
(1979b), Santa Catarina (1984), Mente Clara (1987),
Rainha da Pedra Azul, O Farol que nos guia (1992), dentre
outras, parecem exemplificar o cantabile característico
do estilo de Hermeto Pascoal.
No LP lançado em 1977, nos EUA, (gravadora Warner),
intitulado Slaves Mass (Missa dos Escravos), a voz é bastante utilizada, em nada menos que seis das sete faixas
do disco: solando simultaneamente com o piano (Escuta meu piano); com teclados eletrônicos (no longo solo
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de Hermeto Pascoal em Tacho); multifonicamente, com
a flauta transversal (em Cannon – dedicado a Canonball
Adderley); além de ser utilizada percussivamente (Aquela
valsa e Geléia de Cereja).
Na música que empresta o título ao disco, Missa dos Escravos, Hermeto imaginou
um grupo de escravos que havia fugido de uma fazenda, e depois
de dias correndo pela floresta, encontrou um outro grupo também
fugido. Eles se reuniram e celebraram a liberdade com uma missa
no mato, com os animais (SANTOS NETO, 2008).
Na parte central da composição as vozes masculinas cantam, em ostinato vocal, a frase que cresce hipnoticamente: “Chama Zabelê pra poder te conhecer”. Zabelê, neste
caso, “é uma espécie de inhambu ou ave silvestre, que
canta um pio melodioso” (SANTOS NETO, 2008). Acompanhada pelo batuque dos tambores da bateria e pelo
naipe dissonante de flautas transversas a frase hipnótica
parece simular um (en)canto indígena ou, ainda, um recto
tono de uma missa medieval. Na parte final da música, há
um solo vocal de Flora Purim no qual ela integra um trio
inusitado com dois porcos cantando, isto é, grunhindo.
Missa dos Escravos é a primeira composição gravada de
Hermeto Pascoal na qual o músico utiliza sons de animais, procedimento que, mais tarde, seria uma de suas
marcas registradas e que lhe renderia fama, enquanto
que, por outro lado, o tornaria alvo de críticas por parte
de músicos eruditos e populares puristas. Como mostrarei
na segunda parte deste artigo, a ecologia e os sons dos
animais desempenham um papel importantíssimo na vida
e na obra de Hermeto Pascoal e não são fruto da “excentricidade” do compositor ou um artifício de marketing
pessoal visando à autopromoção – como parecem sugerir
alguns de seus críticos –, ainda que possam, em alguma
medida, tê-lo auxiliado na construção da imagem pública
de experimentador autodidata.
Continuando a análise da música Missa dos Escravos, o
solo vocal não-convencional improvisado por Flora Purim
utiliza choros e gargalhadas aleatórias ao invés de notas,
es­calas e ritmos previamente definidos. Os sons vocais
incomuns produzidos por Flora se revestem de certa teatralidade e parecem remeter à personagem conhecida
na Umbanda como Pomba-gira, entidade geralmente associada à ma­gia e à sexualidade. Hermeto Pascoal contou-me em entrevista (1999) que, no início da década de
1970, quando esteve nos EUA com o casal Airto Moreira
e Flora Purim, a cantora pediu seu conselho a respeito do
repertório constituído de canções da bossa-nova e standards do jazz com o qual pretendia se lançar no mercado norte-americano. O compositor alagoano disse-me
que desaconselhou Flora a trabalhar com tal repertório,
pois este seria demasiadamente convencional e já bem
conhecido pelos “gringos”. Em alternativa, Hermeto Pascoal sugeriu à cantora que fizesse algo diferente, como,
por exemplo, que utilizasse a voz à maneira de um instrumento e/ou que empregasse recursos e sonoridades
vocais não convencionais (“grite, mie, faça os sons mais
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
malucos”19), combinando-os às músicas regionais, indígenas e afro-bra­sileiras, características estas que, mais
tarde, se tornariam de fato a marca registrada do es­tilo
vocal popular-experimental de Flora Purim.
Uma parceria, ou melhor, uma jam session improvisada
entre Hermeto Pascoal e outra grande cantora, não poderia passar aqui despercebida. Refiro-me ao encontro
breve, mas antológico, de Her­meto Pascoal com Elis Regina na noite brasileira do Festival Internacional de Jazz
em Montreux, na Suíça, em 1979, quando Hermeto e
Elis interpretaram as músicas Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes), Corcovado (Antonio Car­los Jobim) e Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto
Teixeira). Segundo SANTOS NETO (2008) Hermeto Pascoal & Grupo20 foram convidados a participar do Festival
de Montreux após o diretor do Festival, Claude Nobs,
tê-los assistido no Festival de Jazz de São Paulo, em
1978. Devido a grande procura por entradas, foram programadas duas apresentações em Montreux, a primeira, à tarde e, a outra, à noite. Claude Nobs queria que
Hermeto & Grupo tivessem uma noite inteira somente
para eles, contudo, como Hermeto era contratado pela
gravadora Warner, a gravadora assumiu a produção do
show e escalou, em cima da hora, a cantora Elis Regina
para abrir os shows do alagoano.
A apresentação noturna de Hermeto Pascoal & Grupo
durou mais de quatro horas e provocou “uma comoção
enorme, apoteótica” (MIDANI, 2008, p.184). Segundo
SANTOS NETO (2008), então pianista do grupo de Hermeto, mesmo após o 3º. bis o público estava eufórico e não
parava de aplaudir, em pé, os músicos. O produtor executivo André Midani (da gravadora Warner) aproveitou
para “empurrar” Hermeto de volta ao palco, junto com
Elis. Surpreendidos, ambos tiveram que estabelecer
quais canções seriam interpretadas, bem como definir,
ao vivo, as tonalidades de cada uma delas. Contudo,
apesar do desafio imprevisto, o que se viu a seguir foi,
a meu ver, um encontro memorável. Os dois músicos
acompanharam-se mutuamente combinando melodias
afinadíssimas e re-harmonizações dissonantes, além de
mudanças inesperadas de compasso, ritmo e andamento, recriando as três canções no calor da improvisação.
É interessante observar que o relato de André Midani sobre o dueto de Elis e Hermeto é bem diferente do de Jovino Santos Neto. Midani parece tentar favorecer a cantora
ao afirmar que a jam session com Hermeto teria ocorrido
após o show de Elis, que, ainda segundo o produtor, teria sido um grande sucesso, “com onze pedidos de bis!”
(MIDANI, 2008, p.185). A gravação em vídeo feita durante o Festival, entretanto, parece desmentir o relato do
mega-executivo da Warner demonstrando exatamente o
contrário, i.e., que a jam session entre a cantora e o alagoano ocorreu após os bis do show de Hermeto & Grupo
(e não o contrário) e, além disso, que o show de Elis não
foi o sucesso esperado. Por achar que não tinha cantado
bem, a própria Elis exigiu que Midani jurasse que nunca
lançaria o show em disco. A promessa foi descumprida
pelo produtor logo após a morte inesperada da cantora,
em 1982 (MIDANI, 2008, p.187-188).21
Controvérsias à parte, o dueto bem sucedido com Elis
Regina demonstrou como Hermeto Pascoal aprendera
algumas lições importantes com as cantoras e os cantores durante sua carreira como intérprete contratado,
antes de lançar-se como compositor. De fato, nos grupos regionais das rádios de Recife (1950), Caruaru (1952)
e Rio de Janeiro (1958) e nos conjuntos de baile das boates de São Paulo (1961-1967), onde Hermeto Pascoal
tocou piano, flauta, contrabaixo (!) – ou qualquer outro
instrumento que lhe rendesse eventualmente um cachê –,
os instrumentistas eram solicitados pelos(as) vocalistas a
transpor, ao vivo, as tonalidades das canções, bem como
a “tocar de ouvido” novas canções, além de fazer arranjos rapidamente. Confirmando a importância do aprendizado nas escolas práticas dos regionais das rádios e dos
conjuntos de baile das boates noturnas, Hermeto Pascoal afirma que: “para solar bem, antes é necessário saber
acompanhar” (Itiberê Zwarg citado por PRADO, 2008).
Dentre as músicas do disco gravado por Hermeto Pascoal & Grupo no Festival de Jazz de Montreux (1979a,
WEA), escolhi como objeto de análise a peça intitulada
Que­brando tudo!, que, na verdade, é a segunda parte de
um solo com mais de 10 minutos de duração criado improvisadamente pelo virtuose.22 Segundo SANTOS NETO
(2008), este solo surgiu no meio de uma outra composição, intitulada Suíte Paulistana (1979b). O compositor,
que estava na coxia escutando o Grupo executar sua
música, irrompeu repentinamente no palco e começou a
improvisar o solo de Que­brando tudo!, acompanhado somente pelo contrabaixista Itiberê Zwarg e pelo baterista
Nenê, enquanto que os demais músicos do Grupo permaneciam no palco porque não sabiam se a Suíte Paulistana,
interrompida no meio, seria retomada. Não foi.
Inicialmente escutamos o acompanhamento executado
por Itiberê Zwarg, combinado à levada suave da bateria de Nenê, em ritmo de baião e andamento moderado. Enquanto Itiberê e Nenê tocam ao fundo, Hermeto
Pascoal inicia o solo, ao mesmo tempo em que ajusta os
teclados – explorando a regulagem do vibrato do clavinete –, e assovia no microfone, testando o equipamento
(05:17). A escolha da escala utilizada por Hermeto Pascoal recaiu inicialmente no modo Mixolídio, mas este
seria rapidamente abandonado e, com o abaixamento
do 3º grau, o modo utilizado tornou-se Dórico, no qual a
música permaneceu até o final.
Passada a fase de teste dos teclados e do microfone e já
definida a gama escalar principal, Hermeto Pascoal, começou então a fazer efeitos de eco, tocando notas cromáticas
descendentes no clavinete, em contratempos e síncopes,
respondidas, em uníssono, pela sua própria voz, utilizando
vogais isoladas e a sílaba “tá” (05:30) numa estranha mistura de embolada, coco e scat singing.
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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
A seguir, farei alguns comentários explicativos ou digressões com o objetivo de contextualizar minha análise, antes de voltar ao solo improvisado de Que­brando
tudo! Scat singing é um tipo de improvisação vocal do
jazz, que emprega vogais e sílabas nonsense (“da”, “ba”,
“du”, “dé”, “bu”, etc.) e possibilita aos cantores e cantoras
inventarem ritmos e melodias utilizando a voz à maneira
de um instrumento de sopro. O scat singing foi inventado
casualmente pelo trompetista e cantor Louis Armstrong,
quando, durante uma sessão de estúdio, a partitura com
a letra da canção interpretada por Armstrong caiu no
chão e o trompetista teve que seguir cantando improvisadamente. Depois, o scat foi utilizado no bebop, estilo
moderno de jazz que, misturado ao samba, aos ritmos
afro-cubanos e às harmonias da bossa-nova, era tocado por Hermeto Pascoal no Som Quatro e no Sambrasa
Trio (1966), antes que o músico ingressasse no Quarteto Novo (1967). Este grupo pioneiro, por sua vez, tentou eliminar as tendências do fraseado cromático rápido
do bebop ao basear suas improvisações exclusivamente
nas escalas modais e nos ritmos nordestinos. O alagoano
Hermeto Pascoal sentia-se à vontade no Quarteto Novo,
mas, ao mesmo tempo, era policiado pelo nacionalismo
musical xenófobo que norteava as ideias de Geraldo Vandré, cantor a quem o grupo acompanhava, um pouco a
contragosto. Observo que, curiosamente, o “nacionalista”
Vandré conhecia a música nordestina muito menos que
o “jazzista” Hermeto. Na realidade, como o alagoano me
contou em entrevista (1998), algumas canções de Vandré,
como, por exemplo, Pra não dizer que não falei das flores, pareciam mais influenciadas pela guarânia paraguaia
(compasso ternário ou binário composto, tom menor) do
que pela música popular brasileira. Assim, após a dissolução do Quarteto Novo, em 1969, o compositor alagoano viajou com Airto Moreira e Flora Purim aos EUA para
lançar-se em carreira solo e misturar, livremente, todas
as influências musicais e sonoridades que lhe viessem à
cabeça. Nos EUA, na década de 1970, o free jazz23 e a
música experimental erudita estavam no auge e o espaço
era propício para que Hermeto Pascoal ousasse, além das
fronteiras estéticas do Brasil e dos EUA.
Como expus em trabalho anterior (COSTA-LIMA NETO,
1999, p.28; 46-47; 50; 54), muito antes de ter tido contato com o free jazz norte-americano ou com a música erudita experimental Hermeto Pascoal já tinha desenvolvido,
autodidaticamente, uma concepção experimental inovadora, a partir do modelo fornecido pelas melodias da fala,
do som dos animais e dos objetos sonoros inarmônicos
de sua infância no Nordeste. Por isso, paradoxalmente, a
liberdade estética que Hermeto encontrou na década de
1970, nos EUA, representou para ele a possibilidade de se
reencontrar com as suas próprias raízes (experimentais)
nordestinas – e expandi-las.
De fato, a paisagem sonora polifônica das rezas-dedefunto do Nordeste brasileiro e os timbres exóticos e
a atonalidade da orquestra de garrafas tocadas na peça
Velório (1972) apresentavam semelhanças surpreenden-
50
tes com o aleatorismo e o ruidismo praticados no jazz
de vanguarda e na música erudita experimental norteamericana, enquanto que a embolada e o coco nordestinos presentes, de maneira modificada, em Quebrando
Tudo!, partilhavam, por sua vez, algumas características
em comum com o scat singing do jazz tradicional e com
o bebop. Estas características incluíam, por exemplo, a
utilização puramente sonora da voz sem a preocupação
com o sentido gramatical, além da ironia e da comicidade presentes tanto nos vocais de Louis Armstrong ou
de Ella Fitzgerald, a mestra do scat, como nos malabarismos vocais de Jackson do Pandeiro, o mestre dos
cocos.24 A meu ver, o coco, o scat, o jazz, a embolada, o
bebop e o baião cantados ou tocados pelos artistas do
Brasil e dos EUA demonstravam como a diáspora africana nas Américas produzira uma arte popular de altíssima qualidade, cuja importância musical ultrapassa(va)
as fronteiras raciais, geopolíticas e os nacionalismos
tacanhos. Hermeto Pascoal percebeu isso.
A capacidade do alagoano se expressar utilizando um idioma
musical brasileiro, mas compreensível internacionalmente,
parece ter possibilitado sua comunicação com o famoso
jazzista Miles Davis – já que ambos falavam línguas mutuamente ininteligíveis. Suponho que esta característica,
por assim dizer, “poliglota”, da Música Universal de Hermeto
tenha influenciando o trompetista norte-americano a convidar o brasileiro para ingressar em sua banda fusion e participar, como compositor e intérprete, no disco Live-Evil (1972,
Sony). Observo, contudo, que as duas peças compostas, cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal (Little Church, Nem
um talvez) nada tinham a ver com a fusão eletrificada de
jazz, blues, rock e funk do disco de Miles.
A primeira composição, intitulada Little Church (ou Igrejinha), é uma canção tonal modulante e lenta, harmonizada dissonantemente. A música parece estar relacionada
à infância do músico brasileiro em Lagoa da Canoa. Segundo informação de Villaça (2006, p.9), após terem se
mudado do Olho D’água da Canoa para a cidade de Lagoa
da Canoa, o garoto e seus parentes moraram próximos à
igreja, na mesma casa onde Pascoal José da Costa, pai de
Hermeto, tinha uma mercearia pequena (visitada eventualmente por índios Xucuru-Kariri, em busca de alimento).
Todo o dia, às seis da tarde, a família Pascoal ouvia o tocar
do sino, anunciando a hora de rezar a ave-maria. A partir
desta informação de Villaça, por mim confirmada junto
aos parentes de Hermeto Pascoal em Lagoa da Canoa, é
possível supor que Igrejinha fosse uma reminiscência de
hinos religiosos cantados pelos fiéis na igreja próxima
à casa dos Pascoal ou, ainda, que estivesse relacionada,
de maneira mais ampla, à paisagem sonora guardada na
lembrança de Hermeto. Evidentemente, estou aqui apenas arriscando uma hipótese, mas parece confirmá-la o
fato de a melodia de Igrejinha ser tonal, como muitos hinos católicos. A intensidade suave da canção, por sua vez,
é semelhante ao volume sonoro (fraco) com que os fiéis
fazem suas orações na igreja. Além disso, o timbre da
melodia de Igrejinha é resultado do assobio de Hermeto,
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
produzindo uma sonoridade semelhante ao silvo agudo
de uma cigarra, inseto que parece gostar de “cantar” ao
cair da tarde – no mesmo horário da ave-maria.
Seja como for, as duas canções do alagoano assemelhavam-se, no contexto jazzístico norte-americano, às
baladas cool, de uma fase anterior da carreira de Miles
Davis. Talvez essas semelhanças musicais tenham contribuído para que o trompetista negro se identificasse com
o “crazy albino”, como ele chamava Hermeto. O fato é
que Miles Davis intitulou a primeira faixa do Lado B de
Live-Evil como Selim – o nome de Miles, lido ao contrário.
Selim, contudo, não havia sido composta por Miles Davis.
Tratava-se, na verdade, da canção Nem um talvez, de autoria de Hermeto Pascoal...
Volto à análise de Quebrando Tudo!. O improviso vocal
começou a “esquentar” quando Hermeto Pas­coal passou
a intercalar duas notas do teclado em uníssono com a voz,
utili­zando, percussivamente, as sílabas “dá”, “bá” e “pá”,
seguidas de “ru” e “ri” (05:50). O jogo vocal incluiu, então, risos e gargalhadas (06:11), acompanhados de notas
e clusters tocados com a mão direita na região aguda do
clavinete. Na se­quência, Hermeto Pascoal alterna os dedos
polegar e indicador da mão direita para articular rapidamente uma nota pedal no clavinete – a fundamental do
modo –, enquanto a voz percorre, descendentemente, os
semitons da escala cromática (06:24). A seguir, como uma
citação do coco famoso de Jackson do Pandeiro, Sebastiana, ouvimos as vogais do alfabeto, entoadas inicialmente
fora de ordem: “ó”, “i”, “u”, “a”, “o”, “é” (06:40). O autodidata Hermeto Pascoal parece se dar conta da “bagunça” e
ar­ruma a ordem das vogais, cantando-as em intervalos de
terça com as notas do te­clado, incluindo, ainda, as letras
“ipssilone” (ípsilon) e “z” (07:00). Prosseguindo, o músico
abandona as vogais e retorna às sílabas iniciadas com consoantes explosivas – “dá”, “bá” e “pá” –, enquanto subdivide o ritmo, utilizando figuras de duração cada vez mais
curta. Itiberê e Nenê, por sua vez, respondem ao tensionamento rítmico do solo de Hermeto e aumentam o volume do baixo e da bateria (07:20). O andamento acelera e,
num crescendo progressivo, o solo passa a incluir arpejos,
escalas rapidíssimas e frases em quartas paralelas, além
de tapas percussivos no teclado (07:56) – desferidos com
certa violência –, até Hermeto Pascoal solicitar, com um
sinal com a mão esquerda, que os mú­sicos Itiberê e Nenê o
deixassem improvisando sozinho (08:10).
Após o breque do baixo e da bateria, Hermeto Pascoal
continua seu improviso, agora tocando e cantando solo,
como numa cadenza experimental de um concerto pop,
mas não demora a chamar os músicos de volta, dizendo
ao microfone: “sim, não, olha, vem, porque eu vou quebrar, não tenha medo!” (08:40). Nenê e Itiberê respondem
ao chamado e voltam a tocar, ainda mais rápido e forte que antes. O público aplaude, eletrizado. Os músicos
chegam então ao clímax, caótico e free, com Hermeto
Pascoal fazendo glissandi em clusters ao deslizar as duas
mãos no teclado, eventualmente gritando ou dando mais
gargalhadas (09:40), em transe aparente, acompanhado
por Itiberê e pelos rulos frenéticos da bateria de Nenê,
até explodirem, juntos, no cluster final. Quebrando tudo!
terminou com os aplausos, gritos e assovios da plateia e
com os três músicos ensopados de suor.
O baião-jazz-experimental Quebrando Tudo! é, a meu ver,
uma metáfora antropofágica da desterritorialização promovida pela Música Universal de Hermeto Pascoal. É seu
“grito de guerra” contra aqueles que querem nacionalizálo ou, ao contrário, internacionalizá-lo, impondo fronteiras
arbitrárias ao seu som brasileiro-universal.
As composições de Hermeto Pascoal estão relacionadas
à história pessoal do músico e para analisá-las satisfatoriamente não basta descrever os sons que delas fazem
parte. A pesquisa de campo por mim desenvolvida em Lagoa da Canoa, no Olho D’água da Canoa e cercanias, em
novembro de 2008, ampliará a análise etnomusicológica
desenvolvida neste artigo.
3 - Os instrumentos da voz
Para mim, compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte,
uma nascente. E uma nascente quer que alguém venha buscar a
água, que vai sendo substituída. Eu tenho sempre que compor porque minha cabeça se enche de ideias. (Pascoal IN ZAGO)
Lagoa da Canoa é uma cidade pequena, com cerca de
20.000 habitantes (IBGE, 2004), próxima a Arapiraca,
centro comercial do Agreste e segunda maior cidade do
estado de Alagoas, suplantada apenas pela capital, Maceió. A aproximadamente 150 km. de Maceió e a apenas 20 minutos de carro a partir de Arapiraca, Lagoa da
Canoa está situada no limite que separa, de um lado, a
zona litorânea, de clima ameno e, de outro, a entrada
do quentíssimo sertão alagoano, onde a atividade econômica principal é a agricultura de subsistência, voltada
principalmente para o plantio da mandioca, feijão, arroz
e mi­lho. A região de Arapiraca foi, durante muito tempo,
dominada pela cultura do tabaco, o que fez a cidade ostentar o título de Capital Brasileira do Fumo. Contudo,
depois de sucessivas campanhas do Ministério da Saúde,
o plantio do tabaco vem sendo substituído gradativamente pela monocultura da cana-de-açúcar, estampando
a cor verde desta planta nos dois lados da estrada que
liga Maceió a Arapiraca.
A força dos coronéis, dos grandes latifúndios e dos engenhos dos tempos coloniais ainda se faz sentir no estado
de Alagoas, ecoando um passado nem tão distante de revoltas e insubmissões populares de escravos, cangaceiros
e peregrinos. No meio caminho entre o sertão e o litoral,
Lagoa da Canoa parece ser habitada não apenas pelos
moradores da cidade, mas também por personagens do
imaginário popular do Nordeste, como Zumbi dos Palmares, Lampião, Santo Antônio e Antônio Conselheiro.
A casa onde Hermeto Pascoal nasceu e viveu com seus
pais e irmãos até, aproximadamente, os dez anos de idade
51
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
(1946), antes de a família se mudar para a residência próxima à igrejinha na praça central de Lagoa da Canoa, era
um pouco afastada desta cidade. Por estar próxima a uma
nascente de água natural, o local recebeu a denominação
de Olho D’água da Canoa. Da nascente jorrava a água de
que os moradores de Lagoa da Canoa dependiam para sobreviver. Assim, diariamente, os vizinhos da família Pascoal
iam ao Olho D’água, de carroça, a cavalo, nos jegues, ou
mesmo a pé, voltando com seus tonéis, jarros, vasilhames,
panelas ou botijas cheios com o líquido precioso.
Curiosamente, todos os parentes de Hermeto Pascoal que
tive a oportunidade de conhecer e entrevistar em Lagoa
da Canoa, no Olho D’água da Canoa ou em vilas pequenas
e municípios próximos, como, por exemplo, em Girau do
Ponciano, parecem possuir uma veia artística forte. Uns
divertem-se rimando enquanto falam, outros cantam ou
tocam instrumentos percussivos, dançam festivamente,
enquanto outros, ainda, improvisam versos e melodias
utilizando o coco e a embolada. A música está presente
no cotidiano da família Pascoal como um todo. Ela faz
parte de seu dia-a-dia e parece ser uma atividade quase
tão natural quanto beber água.
No alto de um morro próximo ao local onde ficava a casa
dos pais de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa,
há um Cruzeiro, em direção ao qual as procissões seguiam nos Dias Santos. Os laços de solidariedade e de
reciprocidade presentes nos núcleos familiares de pequenos agricultores e comerciantes de Lagoa da Canoa, bem
como a paisagem sonora vocal das procissões ao Cruzeiro
estão bem ilustrados na música Santo Antônio, gravada
no LP Zabumbê-bum-á (1979b). Esta composição sinaliza
a presença do que denominarei neste trabalho de ética
musical comunitária, presente tanto na personalidade
como na obra de Hermeto Pascoal e sobre a qual me deterei mais à frente.
Cito, abaixo, dois trechos da “narração polifônica” ocorrida nesta composição (00:55 – 01:21; 03:31 – 04:00):
- É esmola pros festejos de Santo Antônio, quero feijão, farinha,
arroz, ovos, pinto, macaxeira, batata-doce, gerimum, tudo serve.
- Ó de casa, ó de casa, vem dá uma esmolinha pra Santo Antônio,
pra Santo Antônio ajudar você.
- Pra fazer um leilão no dia 13 de junho.
- É esmola pra Santo Antônio casamenteiro.
- Com todo prazer e alegria, com a ajuda de nós todos, pra Santo
Antônio nos dar sorte, saúde e felicidades. [Canta] Glorioso Santo
Antônio com seu menino nos braços, fa­zei com que Ele nos [incompreensível] com seu amor.
(Vozes de Zabelê, Pernambuco e de Dona Vergelina Eulália de Oliveira, mãe de Hermeto Pascoal).
No início da gravação, Dona Vergelina Eulália de Oliveira é entrevistada pelo filho, Hermeto Pascoal, investido
na função temporária de “etnógrafo”, e podemos ouví-la
descrevendo os preparativos e a procissão do dia de Santo Antônio, padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro”
(00:00 – 00:49). Na continuação – como num flash back
da entrevista que Dona Vergelina acabara de conceder
52
–, escutamos sua voz falada, além das vozes de Zabelê e
Pernambuco, simulando os fiéis pedindo, de casa em casa,
alimentos e outros donativos (00:50 – 01:21). A banda
principia a tocar na parte central, um baião modal em
compasso binário e andamento animado (ut. 100). A melodia sincopada e modal (modos Eólio, Mixolídio com 11a.
aumentada, Dórico e Lídio) é executada em terças por
duas flautas transversas, acompanhadas pelo piano, contrabaixo, bateria e percussão (01:22 – 03:11), e é entremeada por frases esporádicas ditas pelos “fiéis” pedintes.
Na parte final, os instrumentos saem, restando somente
as duas flautas em uníssono, tocando uma melodia nova,
em Fá Lídio. As vozes da mãe de Hermeto, de Zabelê e de
Pernambuco retornam, gradativamente (03:12 – 04:07).
Ao mesmo tempo, noutro canal de gravação, ouvimos
Dona Vergelina cantando uma melodia modal, com divisão rítmica composta, em Ré Dórico: “Glorioso Santo
Antônio, com seu menino nos braços...” (03:28). Instrumentos metálicos de percussão completam a textura polifônica, polimodal e polimétrica.
A sobreposição das vozes faladas por Dona Vergelina,
Zabelê e Pernambuco produz uma textura semelhante àquela do primeiro exemplo analisado neste artigo,
a composição Velório (1972), na qual Hermeto Pascoal,
Airto Moreira e Flora Purim simulavam rezas-de-defunto.
A polifonia de vozes faladas, nas duas músicas, não é,
contudo, apenas um procedimento composicional interessante ou, ainda, um exemplo inusitado de como a
percepção ampliada de Hermeto sobrepõe sonoridades
contrastantes. Mais do que isso, ela revela que “no imaginário social há um leque de representações a partir do
desdobramento de um mesmo símbolo” (Silva citado por
SÁ, 2000). Esta duplicidade ou multiplicidade polifônica
de representações a partir do mesmo símbolo, religioso,
em ambas as músicas, pode significar que um mesmo objeto ou pessoa se apresenta de maneira complexa, paradoxal ou mesmo, contraditória.
Acredito que este é o caso de Virgulino Ferreira da Silva (1897 – 1938), alcunhado Lampião, “Rei do Cangaço”,
presença viva no imaginário da família Pascoal, dos moradores de Lagoa da Canoa e dos alagoanos e nordestinos
em geral. Mas, talvez o leitor esteja se perguntando, qual
a relação que poderia ser estabelecida entre personagens
aparentemente tão contrastantes como Santo Antônio e
Lampião e o que ambos teriam a ver com Hermeto Pascoal? O nome do cangaceiro surgiu nas entrevistas por mim
realizadas com os parentes de Hermeto Pascoal no Olho
D’água da Canoa, próximo ao Cruzeiro para onde se dirigiam procissões como a descrita na música Santo Antônio. Além disso, o próprio Hermeto Pascoal relatou25 que,
certa feita, sua mãe teria se escondido na mata próxima
ao Olho D’água da Canoa, junto com ele e seus outros
irmãos pequenos, durante três dias consecutivos, com
medo de que Ma­ria Bonita quisesse sequestrá-los. Assim,
ao local onde o músico havia passado os primeiros dez
anos de sua vida estavam associados, polifonicamente, a
figura de um santo e a de um cangaceiro.
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
O Cangaço sempre evocou representações sociais díspares. Lampião (no Nordeste, a palavra “lampião” se refere
a uma lanterna ou candeeiro) foi assim alcunhado devido
“a luz que emanava de sua arma quando ele atirava” ou,
de acordo com outras fontes, por causa do “brilho irradiado por sua pessoa” (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p.90).
Era devoto fervoroso de Padre Cícero e tido como um
herói miraculoso, supostamente dotado de poderes sobrenaturais de “clarividência e do dom da invisibilidade”
(idem, p.227-243). Por dividir com os pobres o produto
de seus roubos Lampião era considerado por uns como
um bandido social, mas, ao mesmo tempo, seus crimes e
crueldades frequentes o tornavam, aos olhos de outros,
um justiceiro cruel temido principalmente pelos comerciantes, pelos coronéis, latifundiários e pela polícia.
Confirmando a multiplicidade polifônica de representações sociais relacionadas a Lampião, a narrativa mítica
acima mencionada o aproxima de Santo Antônio, pois o
último, além de padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro”, também é invocado popularmente para se achar
objetos perdidos. Neste sentido, Ro­berto DaMatta faz
uma aproximação interessante entre, de um lado, os bandidos sociais e cangaceiros e, de outro lado, os peregrinos,
pois “ambos teriam sido capazes de produzir uma outra
realidade, ou seja, um projeto alternativo de um mundo
novo”. Assim, “tanto o peregrino quanto os bandidos sociais rezam e caminham em busca da terra da promissão,
onde os homens e mulheres finalmente encontrarão um
lugar para realizar seus sonhos de justiça social” (DaMatta citado por SÁ, 2008).
O “banditismo social” é um conceito formulado pelo historiador Eric J. Hobsbawn (1969), referindo-se a uma forma de re­sistência pré-capitalista praticada nas sociedades
rurais. Os bandidos sociais eram camponeses fora-da-lei
vistos por seus patrões e pelo Estado como criminosos,
mas que, sob a ótica da sociedade camponesa, eram considerados heróis ou ícones da resistência popular. O herói
mítico inglês, Robin Hood, seria um exemplo de bandido social. Posteriormente, outros estudiosos ampliaram
o conceito de Hobsbawn, afirmando que o “banditismo
social” também era praticado em outros contextos, como
no alto mar, pelos piratas ou, ainda, no sertão (a palavra
significa “deserto grande” ou “desertão”) brasileiro, pelos
cangaceiros.
Estes “sonhos de justiça social” daqueles que erram “em
busca da terra da promissão” integram o que antes denominei de ética musical comunitária, presente na personalidade e na Música Universal de Hermeto Pascoal. O termo
‘ética’ deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma
pessoa). Compreende um conjunto de valores e princípios
que norteiam a conduta humana e o bem comum.26 “Comunidade”, por sua vez, diz respeito aos núcleos populacionais organizados a partir de laços de parentesco, vizinhança ou classe social, nos quais “a orientação da ação
social (...) baseia-se em um sentido de solidariedade: o
resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes” (Weber 1987, p.77). Na modernidade, o conceito sofreu modificações passando a incluir as redes de
comunidades virtuais da internet, formadas por indivíduos
de cidades, regiões, países e classes sociais distintas.27 As
referências constantes aos alimentos na música de Hermeto Pascoal – por exemplo, nos títulos das composições,
bem como na narração polifônica da música Santo Antônio –, demonstram como, para o compositor alagoano,
os sons e as músicas são semelhantes aos alimentos e a
água da nascente próxima à casa de seus pais, no Olho
D’água da Canoa. Devem ser socializados e repartidos, da
mesma maneira que os donativos solicitados pelos fiéis na
procissão descrita na narração da música Santo Antônio.
Sons e alimentos integram, assim, uma mesma “natureza
encantada e abundante, de fartura hiperbólica” (Travassos
citada por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.43), expressa, na
música citada, pela variedade exuberante de escalas modais. Neste sentido, o conflito permanente entre Hermeto
Pascoal e a indústria fonográfica parece ocorrer porque
as políticas opressivas e os altos padrões de lucro impostos na América Latina pelas cinco maiores gravadoras do
mundo, Warner, BMG, Sony, Universal, EMI, são diametralmente contrários à ética musical comunitária e aos
“sonhos de justiça social” nutridos por Hermeto Pascoal.
Neste sentido, BISHOP (2004, p.2, 7) afirma que:
“O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar”, reza a
profecia apocalíptica atribuída a Padre Cícero, taumaturgo e santo popular de Juazeiro, no Ceará. A profecia
parecia antever significados inusitados que o conceito
de “banditismo social” adquiriria na contemporaneidade, como exemplifica a declaração polêmica de Hermeto
Pascoal, a seguir:
[As grandes gravadoras] é que estão me pirateando, prendem o
meu trabalho lá somente para exibirem meu nome no selo e não
pagam meus direitos autorais corretamente. A música depois de
gravada pertence ao mundo, não tem essa de gravadora. Por isso
podem colocar minha obra na internet. Quero ser pirateado! (PASCOAL, entrevista com Garcia, p.28).
Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros em
suas andanças errantes percorreram o sertão dos estados
de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do
Norte, Bahia e Sergipe. Não se sabe ao certo se o caminho
trilhado pelo bando de Lampião teria cruzado com o Olho
D’água da Canoa. Contudo, quando estive em frente ao
local onde, um dia, estivera localizada a casa dos pais de
Hermeto, a sobrinha do músico contou-me uma sugestiva narrativa mítica sobre supostos tesouros roubados que
Lampião teria escondido em buracos cavados na terra.
Acredita-se popularmente que a pessoa que encontrasse
estes tesouros, ao retirá-los da terra, não deveria, em hipótese alguma, olhar para trás, pois o tesouro desapareceria instantaneamente, como que por encanto.
Na América Latina, onde a música ocupa um papel tão definido de
expressão cultural, comprar um CD ao preço sugerido pelas gravadoras é simplesmente impossível para a maioria (...). Nas sociedades
de “baixa-renda” pelo mundo, os piratas de CD não são vistos como
bandidos (...). Em muitos casos são como Robin Hood, libertando
a música dos sequestradores econômicos e devolvendo-a ao povo.
53
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
Hermeto Pascoal parece, de fato, estar relacionado a certas figuras do imaginário popular do Nordeste. A interrelação entre o músico e os peregrinos, por sua vez, é
sugerida pela música Monte Santo, gravada no LP Lagoa
da Canoa, Município de Arapiraca (1984), o mesmo disco
no qual Hermeto gravou, pela primeira vez, as melodias
da fala que o acompanhavam desde a sua infância, como
mencionei na introdução.
Segundo SANTOS NETO (2008) o processo de criação de
Monte Santo ocorreu em duas etapas. A peça, cujo título
inicial era Nave-Mãe, seria incluída no LP lançado em
1982, intitulado Hermeto Pascoal & Grupo28 e consistia,
originalmente, apenas de acordes tocados por Hermeto Pascoal no harmônio, além do solo improvisado na
sanfona, cujo som foi processado através de efeitos eletrônicos (harmonizer). Entretanto, Nave-Mãe terminou
por ser deixada de fora do LP mencionado. Em 1984,
Hermeto Pascoal e os músicos do grupo conheceram casualmente o poeta baiano João Bá, que declamou o seu
poema Monte Santo sobre a gravação feita dois anos
antes e, por isso, o título inicial da composição foi alterado. Desta maneira, a voz acompanhou a música, e não
o contrário, como uma primeira audição desta composição poderia sugerir.
Incluo, a seguir, um trecho da narração do poema, a guisa
de ilustração (02:11 – 03:54):
Do céu desceu uma luz, que Jesus Cristo mandou. Santo Antônio
Aparecido, dos castigos nos livrou. Quem ouvir e não aprender,
quem souber e não ensinar, lá no dia de Juízo, sua alma penará.
Penitentes e contritos, na sagrada procissão, na bandeira de Pilatos, anunciar, anunciar Ressurreição. (...) Era Antônio Conselheiro
(...) e os rebeldes de Canudos.” (Voz de João Bá).
O início da narração de João Bá (“Do céu desceu uma luz...
sua alma penará”) consiste, na verdade, de duas quadras
sertanejas supostamente de autoria dos rebeldes da
Guerra de Canudos.29 “Santo Antônio Aparecido” é, neste
caso, Antônio Conselheiro, misto de profeta religioso e
líder político de milhares de caboclos sertanejos pobres,
além de ex-escravos sem emprego, que a ele se reuniram
para viver em comunidade no arraial de Canudos. Antônio
Conselheiro era contra a República recém-instaurada, por
ele considerada anti-cristã e defendia a volta da monarquia, assim como a manutenção do poder da igreja católica, ameaçada pelos ideais republicanos. O fanatismo
religioso do sertão, região supostamente “incivilizada” e
“inculta”, se contrapunha, assim, aos “ideais elevados” da
ciência e da razão que caracterizariam o litoral do país.
Mas o rumo que os fatos tomaram no combate em Canudos inverteria este enunciado falso.
O município de Monte Santo está localizado no sertão
da Bahia, próximo à Terra Indígena de Massacará. Deve
seu nome ao Frei Capuchinho Apolônio de Toddi, que,
em 1775, chegando a um olho d’Água (!) na subida da
serra ficou impressionado com a semelhança da mesma
com o calvário de Jerusalém. O Monte Santo teve importância estratégica na guerra que se instaurou entre
54
as tropas militares enviadas pela República e os cerca de
20 mil seguidores de Antônio Conselheiro. Após meses
de combates árduos, os militares chegaram, por fim, à
vitória, depois que tombaram os últimos defensores do
Arraial – dois homens, um velho e uma criança. Os cadáveres de ‘Santo Antônio Aparecido’ e de seus fiéis foram
decapitados, assim como Zumbi, durante o período colonial, e Lampião, durante o Estado Novo. Suas cabeças
cortadas, à maneira de troféus macabros, foram exibidas
para a população, como tática de intimidação.
Tendo testemunhado a resistência tenaz dos seguidores de Conselheiro e a crueldade da degola, o até então defensor da causa republicana, Euclides da Cunha,
confidenciaria depois a um amigo, referindo-se ao livro
(Os sertões) que acabara de escrever sobre a Guerra de
Canudos: “Serei um vingador e terei desempenhado um
grande papel na vida – o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde
e sanguinária” (Cunha IN GALVÃO, 1902, p.133). Assim
a República, proclamada alguns anos antes, preservava
intactas as desigualdades entre o sertão e o litoral, verificadas desde o período colonial.
“O que é [considerado] ruído numa velha ordem, é harmonia numa nova” (ATTALI, 1996 [1977], p.35). Segundo
este autor, a música é, simultaneamente, um espelho e
uma profecia e, mais do que um objeto em si mesma, é
um meio de perceber o mundo, um instrumento de conhecimento. Como espelho, ela reflete a relação entre o
ser humano e a sociedade de uma determinada época,
enquanto que, como profecia, ela apresenta certo potencial subversivo, porque sendo concebida como ordenação
do ruído – em outras palavras, como controle da desordem –, possui em si mesma o germe da revolta. Confirmando o papel profético que Jacques Attali reserva à
música, o “peregrino-cangaceiro” Hermeto Pascoal escala
um monte santo metafórico em sua vida e obra. O ruído
de sua ética musical comunitária adquire desdobramentos político-econômicos claros, apesar de o compositor
não seguir partidos ou ideologias políticas. Ao investir
contra o monopólio das gravadoras transnacionais incentivando os downloads gratuitos e o compartilhamento
de sua obra pelos fãs na internet (veja a quantidade impressionante de vídeos de Hermeto Pascoal no Youtube)
o compositor alagoano subverte a lógica do sistema capitalista baseada no valor de compra e venda da música-mercadoria. A subversão levada a cabo por Hermeto
parece confirmar a afirmação de ATTALI (1977, p.133) de
que novas maneiras (não-comerciais) de fazer música indicam a emergência de uma nova sociedade, profetizando
o futuro pós-capitalista. Nesta nova sociedade, a música seria partilhada por uma comunidade planetária, sem
fronteiras rígidas entre os intérpretes e os compositores e
entre a produção e o consumo. De fato, como demonstrado por BISHOP (2004, p.2-3), pela primeira vez na história
da indústria da música os consumidores se tornaram eles
mesmos, produtores de música através dos duplicadores
de CD que, a partir dos anos de 1990, passaram a cons-
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
tituir um acessório padrão nos computadores pessoais. O
título inicial da composição Monte Santo, isto é, NaveMãe, exemplifica como a ética musical comunitária de
Hermeto Pascoal apresenta uma interface mística, como
exemplifica a declaração algo messiânica a seguir: “Logo
senti que estava diante de uma grande missão (...), fazer
com que, através da música, as pessoas se amem cada
vez mais, sem nenhum tipo de preconceito” (PASCOAL,
2000, p.17-18). Os sonhos de justiça social – nos quais
há fartura simbólica de alimentos, música e amor –, são
complementados, ainda, pela ecologia, como exemplifica
a música Rede (1979b).
A letra desta música é um poema criado por Hermeto Pascoal (bem antes de a ecologia ter se tornado moda), que é
declamado e, depois, cantado pela intérprete Zabelê:
Me dê a rede, quero dormir, o ar é puro, não vou sair.
Balance com força, mais um pouquinho,
pro sono vir devagarinho.
Quero sonhar bem diferente, talvez igual a um passarinho,
quando acordar de manhãzinha, vou ver o sol nascer sozinho.
E logo o dia vem clareando,
os donos das matas vão se encontrando, andando e voando, nos
ares cantando,
nas matas, cuidando de tudo que é belo.
Canto a natureza, que é linda, ainda, que é linda, ainda, que é
linda assim.
As notas e ritmos tocados inicialmente de maneira suave
pelo piano elétrico simulam uma rede rangendo e balançando, repetidamente, em andamento moderado e compasso quaternário. Num tensionamento progressivo, o
andamento é acelerado, pouco a pouco, junto com o crescendo de intensidade. A harmonia acompanha o aumento de tensão, sendo inicialmente constituída de acordes
em quartas com 2as. ajuntadas (00:01 – 00:29), passando, em seguida, a incluir estruturas poliacordais (00:30),
atingindo, finalmente, o clímax, com acordes dissonantes
formados por 2as. 7as. e 9as. maiores ou menores (00:49
– 01:17). Como demonstrei em estudos anteriores (COSTALIMA NETO, 1999, p.90-98, 174-178; 2000, p.125-137),
Hermeto Pascoal constrói estes e outros acordes dissonantes tendo como inspiração as sonoridades inarmônicas dos objetos sonoros não convencionais, além dos sons
produzidos pelos animais (mesclas de sons com espectro
harmônico e de ruídos), como, por exemplo, o granulado
do silvo destemperado da cigarra, o cricrilar dos grilos, o
coaxar dos sapos, o pio dos pássaros, etc. Utilizando sua
percepção ampliada, na música Rede Hermeto Pascoal
adapta e transpõe estas sonoridades naturais inarmônicas
e ruidosas para os instrumentos convencionais, como, por
exemplo, o piano. A “transposição inarmônica” ocorre, ainda, com relação à voz. Músicas como, por exemplo, Quebrando Tudo! (1979a) e Mestre Mará (1979b) demonstram
os procedimentos vocais não convencionais utilizados por
Hermeto: tosse, grunhidos, ataques glotais e consonantais,
chiados, gritos, gargalhadas, sons guturais, etc.30
Zabelê declama o poema de Rede (00:11) tendo ao fundo o som do piano, além de sons percussivos sutis e de
apitos imitando os pios dos pássaros (00:43). Os mo-
mentos de maior tensão harmônica coincidem com o
trecho do poema no qual Zabelê declama: “E logo o dia
vem clareando, os donos das matas vão se encontrando, andando e voando, nos ares cantando, nas matas,
cuidando de tudo que é belo” (00:49 – 01:17; 05:01 –
05:24). De maneira semelhante ao que ocorrera no final
da música Missa dos Escravos – no qual o choro, os risos,
as gargalhadas e os gritos de Flora Purim se fundiram
aos grunhidos ruidosos de dois porcos “cantores” –, na
peça Rede, por sua vez, há uma associação musical entre, de um lado, a natureza, os animais e, de outro lado,
as dissonâncias e tensões harmônicas (como na afirmação de Hermeto antes citada na introdução: “O atonal é
a coisa mais natural que existe”). Observo ainda uma inversão curiosa de papéis: enquanto que a letra cantada
de Missa dos Escravos mencionava a ave “Zabelê”, de pio
melodioso, na música Rede, por sua vez, Zabelê é uma
pessoa de carne e osso, isto é, a cantora que declama e
canta um poema sobre os pássaros e a natureza.
Assim, as composições Rede e Missa dos Escravos estabelecem um continuum entre a natureza, os animais, a
civilização e os seres humanos. Como assinalei em outro
artigo (COSTA-LIMA NETO 2010b), há, na Música Universal de Hermeto Pascoal, uma fusão de pólos aparentemente opostos: fala/canto; animais/seres humanos;
ruídos/notas; natureza/cidade; sonho inconsciente/vigília consciente; criador/criatura; modernidade/tradição.
Por isso, confirmando a fusão de opostos presente em
sua música, o “índio diferente” Hermeto Pascoal afirmou na citação que serviu como epígrafe neste artigo:
“nós somos pássaros também”. Na obra do compositor
alagoano os ruídos da natureza e dos animais compartilham, “democraticamente”, o mesmo espaço sonoro
com as vozes e os demais instrumentos musicais. Sua
concepção estética é, ao mesmo tempo, ecológica, religiosa, social e político-econômica.
Analogias entre Hermeto Pascoal, Antônio Conselheiro
e Lampião ocorrem, finalmente, através de certas se­
melhanças físicas. A barba e a longa cabeleira, em se
tratando dos dois primeiros e, no que diz respeito ao
músico e ao cangaceiro, a deficiência visual. Em suma,
estes indivíduos possuem, de fato, perso­nalidades multifacetadas nas quais os terrenos do sagrado e do profano
se inter­penetram como as vozes de uma trama polifônica sócio-musical. Parecendo confirmar a minha comparação, Hermeto Pascoal é visto publicamente no Brasil
ora como um “mago”, ora como um “bruxo dos sons”.
O “lado mago do bruxo” compõe o Calendário do Som
(2000), através do qual constitui uma comunidade planetária e homenageia a todos os seres humanos através
de 366 composições. O “lado bruxo do mago”, por sua
vez, à maneira de um Lampião contemporâneo, declara guerra permanente contra as grandes gravadoras e a
indústria cultural. O “mago” tocou com Elis Regina no
Festival Internacional de Jazz em Montreux, fez parcerias com Jane Duboc e arranjos para estrelas da MPB,
como, por exemplo, Maria Bethânia,31 enquanto que, o
55
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
“bruxo”, critica acidamente o choro, a música regional e
a MPB (“Esse pessoal que toca chorinho, músicas regionais, MPB, começa a tocar que nem velho, com cara de
velho”32), e é menosprezado pelas grandes gravadoras
e pelos produtores musicais (como demonstrou a controvérsia com o produtor André Midani, por ocasião da
jam session de Hermeto e Elis Regina). O primeiro pretende erigir um “Templo do Som da Música Universal”33
e compõe músicas como Santo Antônio, Monte Santo,
Igrejinha e Bebê,, enquanto que, o segundo, improvisa
Quebrando Tudo! e “invoca” espíritos em Velório, Cannon, Missa dos Escravos.
Contudo, como os dois lados da mesma moeda, o “mago”
e o “bruxo” são um só indivíduo. Integram a ética musical
comunitária de Hermeto Pascoal, nascido no Olho D’água
da Canoa, zona Agreste do estado de Alagoas.
4- Conclusão: o lençol de águas subterrâneas
O público, os jornalistas, os intérpretes e os pesquisadores relacionam Hermeto Pascoal às tradições da música
popular e, mais especificamente, à música instrumental
presente em gêneros como o choro, o frevo ou o jazz.
Entretanto, apesar da denominação “músico popular
instrumental”, as composições contempladas neste artigo e muitas outras músicas criadas por Hermeto Pascoal (totalizando quase 60% das composições gravadas
nos seus discos) demonstram que, frequentemente, este
“músico instrumentista” também canta (O Galho da roseira, Quebrando Tudo! Nem um talvez, Mestre Mará) e
utiliza a sua voz e a de outros intérpretes de maneira
não convencional (Velório, Missa dos Escravos, Cannon,
Igrejinha). As palavras são muitas vezes desmembradas
em sílabas e letras sem conteúdo semântico, com valor
apenas sonoro. Através da voz, Hermeto Pascoal compõe músicas que serão tocadas por outros instrumentos (Bebê, Montreux, as peças do Calendário do Som).
Exemplos adicionais revelaram que o compositor cria ou
utiliza falas, letras, poemas, imagens e narrativas que
acabarão sendo transformadas em música (Rede, Santo
Antônio, Monte Santo, as músicas da aura).
As fronteiras que separam a palavra falada, a palavra
cantada e a palavra tocada no processo de criação musical de Hermeto Pascoal são bastante tênues. Mais do
que isso, a relação entre o falar, o cantar e o tocar parece estar inserida numa dimensão mais ampla, sinestésica ou multi-sensorial. De fato, os sentidos físicos estão
inter-relacionados na poiética do compositor alagoano,
como exemplificaram os títulos e letras de suas músicas
relacionadas aos alimentos. Além do paladar, a visão e
o tato também estão amalgamados em sua obra, como
demonstrou a citação utilizada como epígrafe neste artigo: “Eu me inspiro mais na pintura para compor, no
timbre de uma voz” (meu grifo). A multi-sensorialidade
está relacionada, de maneira ainda mais ampla, a meu
ver, à religiosidade de Hermeto Pascoal. Esta constitui um
aspecto fundamental da ética musical comunitária do
músico alagoano e ocupa um lugar central em sua vida
56
e obra. Hermeto Pascoal acredita que existem sentidos
extra-físicos: a visão verdadeira, segundo ele, estaria na
testa, num ponto equidistante entre os dois olhos, enquanto a escuta, por sua vez, ocorreria na região da nuca
e não apenas nos ouvidos (JARDIM e CARVALHO, 2001).
Assim, o som e a imagem resultam de um processo físico
e extra-físico. Confluem, ambos, na voz, que passa então
a interligar o mundo material ao espiritual, a aura verbovoco-visual, “terra da promissão”. Na verdade, em se tratando de Hermeto Pascoal, as classificações se tornam sempre problemáticas. A denominação a ele atribuída de “músico popular instrumental”, por
exemplo, parece ser apenas um rótulo, isto é, uma simplificação criada com o objetivo de classificar um artista
inovador, etiquetando-o, envolvendo-o numa embalagem e transformando-o num produto capaz de ser identificado, comercializado e consumido. Entretanto, a versatilidade de Hermeto Pascoal dificulta conceitualmente
esta classificação, pois, além de tocar instrumentos de
cordas, sopros e percussão, ele também canta e, muitas
vezes, toca e canta ao mesmo tempo. O fato de o músico
alagoano não ser reconhecido publicamente como cantor
parece ocorrer porque suas experimentações vocais ultrapassam aquilo que o senso comum espera convencionalmente de um cantor. Neste sentido, o “problema” é que
Hermeto Pascoal é um cantor original, que subverte parcialmente o primado da palavra e da imagem sobre o som
vocal, ao dirigir a atenção para a matéria puramente sonora produzida pela voz-instrumento. Suas composições
questionam não apenas o rótulo de “música instrumental”, mas também a própria noção de “música popular”
– muito embora, por outro lado, não sejam reconhecidas
como “música erudita”. O problema quanto à denominação “músico popular instrumental” é aumentado ainda
mais porque algumas das composições de Hermeto Pascoal estão no limiar da não-música e do não-humano,
como exemplificam, respectivamente, as músicas da aura
(baseadas nas melodias da fala) e as músicas utilizando
sons de aves, insetos, porcos, etc.
Avesso às tradições cristalizadas, populares ou eruditas, Hermeto Pascoal é um experimentador iconoclasta, um Macunaíma da música brasileira, um artista
que desestabiliza as hierarquias pré-estabelecidas. Ao
“Quebrar Tudo!” e questionar as categorias estéticas
e os rótulos comerciais, Hermeto Pascoal cria novos
paradigmas, desafiando a si mesmo e o público, os intérpretes, os jornalistas, a crítica e os pesquisadores
(incluo-me na lista). O seu ruído não se restringe somente a música e alcança a sociedade, a economia e
a política. De forma só aparentemente despretensiosa,
ao sabotar as grandes gravadoras transnacionais, o
“peregrino-cangaceiro” contraria interesses poderosos, enquanto profetiza o surgimento de uma comunidade planetária unida pelo som. E pela internet, que
Hermeto Pascoal parece alçar a uma condição semidivina, por possibilitar o compartilhamento gratuito de
músicas, numa espécie de “pirataria transcendental”.
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
A opinião de que Hermeto Pascoal é não mais que um
“músico instrumental” (excelente, sem dúvida nenhuma)
pode ter adquirido, sem que nós percebêssemos, uma
conotação um pouco conservadora, ao privá-lo de sua
voz e de tudo aquilo que ela diz, incluindo as críticas e
atitudes dissonantes. O problema por ele levantado com
relação à pirataria digital, por exemplo, sinaliza para a
existência de uma crise generalizada na produção e na
difusão musicais no Brasil. Esta crise parece ter como
causa principal a falta de políticas culturais realmente
eficazes por parte do Governo Federal, cujo orçamento
anual destina atualmente à cultura apenas uma percentagem pífia (0,7%), ainda abaixo do valor mínimo
(1,0%) definido pela UNESCO. Os artistas são abandonados à própria sorte e se vêem à mercê da ditadura do
mercado e dos interesses exclusivamente comerciais da
indústria musical transnacional – isto num país que tem
na música um símbolo de nacionalidade (!).
Como Treece bem assinalou, a tradição de pensamento
nacionalista no Brasil vem utilizando conceitos (“democracia racial”, “luso-tropicalismo”) e ideologias neocolonialistas (“Marcha para o Oeste”, “integralismo fascista”)
para construir uma narrativa mítica como uma “pedra de
toque para uma história pacífica de integração política,
social e econômica” (TREECE, 2008, p.11). Entretanto, a
realidade dos fatos contrasta fortemente com este discurso conciliatório, conforme demonstrado pelos exemplos
de Zumbi dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro,
abordados neste artigo. No que diz respeito aos índios,
continua Treece, a mitologia integracionista invocou continuamente sua assimilação pela sociedade dominante,
apesar de a população indígena ter sofrido, desde 1500,
um verdadeiro genocídio, caindo de cerca de 5 milhões
para apenas 100.000 no início do século XX. É exemplo
deste discurso de “assimilação” o pronunciamento (absurdo) feito em 1969 pelo coronel Costa Cavalcanti, então presidente da FUNAI, em plena ditadura militar: “Nós
não queremos um índio marginalizado, o que queremos é
um índio produtor, um índio que seja integrado no processo do desenvolvimento nacional” (Cavalcanti citado
por TREECE, 2008, p.12). Após ter migrado de Lagoa da
Canoa para as grandes cidades brasileiras em 1950 – e se
ver cercado pelos nacionalismos de direita e de esquerda na década de 1960 –, o nordestino Hermeto Pascoal
teve que descobrir uma maneira de exercer sua arte e, ao
mesmo tempo, escapar ao controle político-ideológico e
estético. A saída encontrada pelo músico significou para
ele, de um lado, o exílio e, de outro, a libertação: viajou em 1970 para lançar-se em carreira solo nos EUA,
enquanto, ao mesmo tempo, “emigrava para dentro do
som universal”, assim continuando as experiências iniciadas em sua infância, no Olho D’água da Canoa, com os
sons da fala, dos animais e dos objetos cotidianos. Desta
maneira, como um índio pós-moderno, Hermeto Pascoal ultrapassa(va) permanentemente os limites impostos
pelas fronteiras geopolíticas e estéticas nacionais e in-
ternacionais, pois: “ninguém consegue ensacar o som!”
(PASCOAL, entrevista ao autor, 1999). Assim ele criava
sua maneira - “universal” - de ser brasileiro.
Ao incluir, desde a década de 1970, a ecologia sonora
em sua música, Hermeto Pascoal dava voz aos animais
e reafirmava sua identidade cultural nordestina, rural e
“indígena”. Não se tratava de mera “excentricidade” ou
de “exotismo”, dois termos utilizados contra ele de maneira depreciativa. Uma observação: enquanto este tipo
de crítica rasteira ainda ecoa por aqui, paralelamente a
música de Hermeto Pascoal vem sendo estudada cada
vez mais nas universidades brasileiras e no exterior, por
exemplo, nos EUA, na Inglaterra ou no IRCAM, criado
por Pierre Boulez, na França.34 Ocorre que, para muitos
brasileiros, a natureza ainda é um Inferno verde, título
do livro de Alberto Rangel, prefaciado por Euclides da
Cunha com palavras ainda atuais: “Faltam-lhe em geral
[aos cartógrafos] a intimidade da Terra. Nunca sentiram
em torno, entre as vicissitudes das explorações longínquas, o império formidável do desconhecido” (CUNHA,
1909). Entretanto, para o imigrante Hermeto Pascoal os
gêneros, estilos e sonoridades da cidade e do campo não
estão separados, pois “a natureza é o cotidiano.” (PASCOAL, 1998, p.48). Neste sentido, sua obra é como uma
viagem acústica. E um ato de resistência. Em tempos de
aquecimento global, desmatamento e extinção de espécies animais e vegetais o que parece ser mais vital
do que recriar musicalmente os sons dos seres vivos, da
natureza e do planeta como um todo, incluindo a selva
de pedra das cidades grandes?
Voltamos, por fim, à musicalidade universal da fala. Através das músicas da aura descobrimos que ao falarmos,
estamos cantando e, por isso, todos somos cantores. Todos, sem exceção: o ex-presidente Fernando Collor de
Mello, o poeta e militante comunista Mário Lago, o bacurau, o marreco e o Papa João Paulo II...35 Existiria algo
mais democrático, anárquico ou apolítico? Tendo como
inspiração inicial o sotaque “cantado”, típico da região
Nordeste, através das músicas da aura Hermeto Pascoal
amplia os limites da aldeia e da vila rural para abranger
todo o globo terrestre, assim aplicando a ética musical
comunitária numa escala planetária.
“Minha cabeça é uma fonte, uma nascente” (Pascoal,
citado por ZAGO). As músicas executadas por Hermeto
e pelos intérpretes que o acompanharam nos discos
e shows surgem desta fonte que fala, grita, reclama,
sussurra, come, reza, canta e toca. A quem interessa dividir arbitrariamente a música em duas metades,
“vocal”, de um lado, e “instrumental”, de outro? Folclórica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional?
Modal, tonal ou atonal?
Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Hermeto Pascoal, a música é uma só.
57
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
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Agradecimentos
Agradeço a Neílson Ávila e a Janete Pascoal pela hospitalidade com que fui recebido em Lagoa da Canoa, Alagoas, em
novembro de 2008, bem como a todos os membros da Família Pascoal em Lagoa da Canoa, Olho D’água da Canoa, Girau
do Ponciano e cercanias. Ao pesquisador José Roberto de Barros Torres pelas informações discográficas gentilmente
enviadas por email, em 17/02/1999, ao compositor, arranjador e instrumentista Jovino Santos Neto pelas informações
valiosas e, finalmente, a Denise Nagem, pelas revisões, comentários e críticas atentas.
60
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
Notas
1 De um total de 152 músicas gravadas nos 13 discos autorais lançados em 1972, 1973, 1977, 1979a, 1979b, 1980, 1982, 1984, 1985, 1987, 1992,
1999, e 2002, a voz é utilizada em cerca de 90 composições. Incluam-se na lista mais duas composições de Hermeto Pascoal – as baladas Little
Church e Nem um talvez –, cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal no disco Live-Evil, de Miles Davis (disco gravado em 1970 e lançado em
1972, Sony). Finalmente, O Galho da roseira, de autoria dos pais de Hermeto, cantada e sussurrada pelo músico no disco Seeds on the ground (Buddha Records, 1971), de Airto e Flora Purim, no qual Hermeto Pascoal participou como compositor, arranjador e intérprete.
2 Conferir as músicas da aura intituladas Tiruliruli e Vai mais garotinho (1984), compostas a partir de narrações futebolísticas feitas pelos radialistas desportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo. Escutar Hermeto Pascoal fazendo a música da aura do ator francês Yves Montand em: http://
br.youtube.com/watch?v=SrgveUpwCnM&feature=related, acesso em 25/01/2010. Conferir, finalmente, as faixas Pensamento positivo, Três Coisas e
Quando as aves se encontram, nasce o som, (1992). Nestas três faixas Hermeto Pascoal faz a música da aura, do ex-presidente do Brasil, Fernando
Collor de Mello e do poeta Mário Lago, além de “auralizar” os cantos das aves: Uirapuru, Sabiá, Corvo, Fogo-apagou, Galo, Bacurau e Marreco.
3 Para uma abordagem mais completa sobre a Música Universal, ver COSTA-LIMA NETO, 2008, p.1-33; e 2010a (no prelo). Sobre a música da aura,
ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.174-9; 188-194. Sobre a dicotomia entre o “natural” e o “convencional”, ver COSTA-LIMA NETO, 2000, p.119-42.
4 Segundo SANTOS NETO, 2001, p.9, este primeiro disco autoral foi, em 1988, relançado por outra gravadora (Muse Records), sob o título Hermeto
Pascoal, Brazilian Adventure. As músicas de Hermeto Pascoal referidas neste artigo podem ser escutadas, online, no Youtube.
5 Conjunto de orações rezadas em voz alta ou cantadas diante do morto. Ver CASCUDO, 1972, II, p.761.
6 A informação a respeito do apelido do avô de Hermeto Pascoal é de VILLAÇA, 2006, p.20.
7 Em: http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010.
8 Para maiores informações ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6-11; 75-98; 127-143.
9 “Cozinha” é um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumental básica constituída de contrabaixo, bateria e percussão.
Para Hermeto Pascoal, a “cozinha” é tão importante quanto os demais instrumentos.
10 Sobre a inter-relação da música de Hermeto Pascoal com as feiras, bailes populares e rodas de choro ver CAMPOS, 2006; sobre as rapsódias das
“melodias infinitas” nordestinas ver ANDRADE, Mário de, 2006 [1928], p. 48–57, e TRAVASSOS, 1997, p.171. Observo que na cidade de Palmeira dos
Índios, reside, ainda hoje, a professora que alfabetizou a Hermeto Pascoal, Dona Zélia Gaia, a qual, na infância do músico, convidava o garoto, seu
irmão e seu pai para tocar nas festas da cidade, ver VILLAÇA (prefácio escrito por Zélia Gaia), 2006.
11 Para uma inter-relação entre os elementos musicais (forma, harmonia, ritmo, estilo, etc.) e a religiosidade de Hermeto ver a noção por mim formulada de Continuum separação-fusão paradoxal, em COSTA-LIMA NETO, 2010b.
12 Segundo informação de José Roberto de Barros Torres (email ao autor, 17/02/2009), que está escrevendo uma biografia de Hermeto Pascoal, Coalhada foi gravada originalmente em 1965, pelo Sambrasa Trio e, no mesmo ano, pelo organista Renato Mendes, no disco Órgão de Vanguarda. Ainda
em 1965, Hermeto Pascoal teve gravada sua composição Sete contos pelo grupo Cinco-pados e pelo pianista Ely Arcoverde, além da música Balanço
n° 1, pelo Jongo Trio. Nove anos antes, isto é, em 1956, Hermeto fazia a sua primeira gravação como instrumentista, no disco Ritmos Alucinantes,
do compositor de frevos, maestro e arranjador Clóvis Pereira, em Recife.
13 Para uma discussão a respeito da sinestesia sob o ponto de vista etnomusicológico ver MERRIAN, 1964, p.85-102; para uma inter-relação entre os
compositores clássico-românticos e a culinária (por exemplo, a “doçura” da música de Wolfgang Amadeus Mozart e as sobremesas batizadas com
o nome deste compositor) ver NETTL, 1995, p.24-25.
14 Sobre o Toré, ver NEVES In Grunewald (org.), 2005, p.129-154.
15 Observo que, a partir da década de 1950, Hermeto Pascoal tocou canções francesas e italianas nas boates, além de música cigana no conjunto de Fafá
Lemos, em 1959, no Rio de Janeiro. Ver SANTOS NETO, 2001, p.6 e COSTA-LIMA NETO, 1999, p.36-55.
16 Neste disco de 1973 talvez tenha sido iniciada a confusão com o sobrenome de Hermeto, cuja grafia correta é “Pascoal”, sem “h”, segundo informação do biógrafo de Hermeto, José Roberto de Barros Torres e da família do músico, em Lagoa da Canoa.
17 Segundo informação em SANTOS NETO, 2001, p.10.
18 Ver as cenas de Hermeto Pascoal compondo e solfejando as melodias do Calendário do Som, (em BILLON, 1997). Conferir a entrevista com o pianista
e compositor Jovino Santos Neto, na qual este descreve o processo composicional de Hermeto Pascoal e a maneira cantada pela qual o músico
alagoano compõe suas melodias instrumentais, (em HINRICHSEN, 2004). Escutar a balada Montreux (1979a), em Sol menor, composta por Hermeto
sem o auxílio de instrumentos, apenas algumas horas antes do show realizado no Festival de Jazz realizado na cidade de mesmo nome.
19 Hermeto, reproduzindo as dicas que ele transmitiu para Flora Purim. Em entrevista com Ezequiel Neves, 1975.
20 O Grupo que acompanhou Hermeto Pascoal no Festival de Jazz de Montreux era constituído pelos músicos Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Luis
Santana/Pernambuco, Zabelê, Nenê, Nivaldo Ornellas e Cacau.
21 Ver o vídeo das três músicas em: <http://www.youtube.com/watch?v=XOgHxIXyTKc&feature=PlayList&p=11E7EE48CA15EC8F&playnext=1&pla
ynext_from=PL&index=54>; <http://www.youtube.com/watch?v=X7Kv1TpZkTQ>; <http://www.youtube.com/watch?v=zGnqyIfyXOI&feature=Pla
yList&p=EC7003ABE3BF4C61&playnext=1&playnext_from=PL&index=8>. Ver Elis Regina falando sobre a jam session com Hermeto Pascoal em
http://br.youtube.com/watch?v=B_jEaktTVSQ, acesso em 29/01/2010. Segundo informação de SANTOS NETO (2008) após o Festival de Jazz de
Montreux, Hermeto Pascoal, Elis Regina e seus respectivos grupos viajaram para Tóquio, onde se apresentaram novamente, todos dividindo, desta
vez, o mesmo palco.
22 No LP com a gravação do show ao vivo de Hermeto & Grupo no Festival de Montreux (1979a) este solo está subdividido em duas faixas: a primeira
recebeu o título de Maturi, enquanto que, a segunda, foi denominada Quebrando Tudo!. No vídeo postado no YouTube, o solo é apresentado como
foi tocado ao vivo, isto é, sem interrupções, Quebrando tudo! começa aos 04:44. Ver http://br.youtube.com/watch?v=W821bgUU_mY, acesso em
29/01/2010. Observo que a expressão “Quebra tudo!”, criada por Hermeto Pascoal, se tornou parte do dicionário da música popular no Brasil, e significa: 1) Tocar com “paixão”, “com amor”, “dando tudo de si” (PASCOAL, Hermeto); 2) “Tocar como se cada show fosse a final de um campeonato”
(PASCOAL, Fábio) e; 3) “Pelo contrário, ‘Quebrar tudo!’, significa construir musicalmente tudo.” (GUINGA). Ver HINRICHSEN, 2004.
23 Termo cunhado em 1967, pelo saxofonista norte-americano Ornette Coleman, para designar um tipo novo de jazz que se utilizava de improvisações
atonais e assimétricas, e que fazia uso musical dos ruídos. Ver BERENDT, 1987; COSTA-LIMA NETO, 1999, p.45-50.
24 Hermeto Pascoal conheceu Jackson do Pandeiro na Rádio Jornal do Commercio, em Recife. Conferir o solo vocal embolado de Hermeto Pascoal na
faixa musical Remelexo, no mesmo disco gravado no Festival de Jazz de Montreux (1979a).
25 Ver o depoimento irônico de Hermeto Pascoal em PRADO, 2008. Sobre Lampião e o Cangaço ver FACÓ, 1963; MELLO, 1993; GRUNSPAN-JASMIN 2006.
26 Ver http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro082.pdf, acesso em 29/01/2010.
27 Ver http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf, acesso em 26/12/2008.
28 O Grupo que o acompanhava nesta época (entre 1981 e 1993) era constituído pelos músicos Antônio Luis Santana (Pernambuco – percussão), Itiberê
Zwarg (contrabaixo, bombardino, tuba), Jovino Santos Neto (piano, teclados, flautas), Márcio Bahia (bateria, percussão) e Carlos Malta (sopros).
29 As duas quadras foram citadas por Euclides da Cunha, 2001 [1902], p.305.
61
NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.
30 Para maiores noções sobre bio-acústica, ver CAESAR. http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010.
31 Conferir a composição de Hermeto intitulada Peixinho, interpretada por Jane Duboc, gravada no CD lançado em 1985, em: http://br.youtube.com/
watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related, acesso em 10/12/2008. Conferir a música Tomara (Rubinho Valença/Alceu Valença), do CD Maria Bethânia, 25 anos (1990) em: http://br.youtube.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related, acesso em 10/12/2008.
32 PASCOAL, entrevista com Yoda.
33 Ver http://www.hermetopascoal.com.br, acesso em 29/01/2010.
34 Ver CHOUVEL. Em: http://www.musimediane.com/article.php3?id_article=21. MATHIEU. Em: http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/Rapports/
mathieu2002/outils-analyse-BM-2002.pdf, p.24-38. Acesso em 02/02/2010.
35 Ver CD lançado em 1992. Além das músicas da aura de Collor, Mário Lago e dos pássaros Hermeto Pascoal fez a música da aura do papa João Paulo II,
mas esta não foi incluída porque o Vaticano não concedeu a autorização.
Luiz Costa-Lima Neto é Bacharel em Composição musical pela Universidade Estácio de Sá, Licenciado em Educação
artística com habilitação plena em mú­sica pelo Conservatório Brasileiro de Música, mestre em Musicologia brasileira
pela UNIRIO, doutorando na mesma Universidade. É compositor, intérprete e arranjador, integrou a banda Tao e Qual na
década de 1980, participou como compositor em Bienais e Panoramas de Música Brasileira Contemporânea. Professor de
música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e no Curso de Pós-graduação em Arteterapia da Clínica Pomar/
ISEPE, Rio de Janeiro. Escreveu artigos publicados no Brasil e no exterior sobre a música de Hermeto Pascoal, sobre educação mu­sical, e sobre teatro, música e raça na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. Desenvolve pesquisas sobre
os índios Xavante (Brasil Central), e sobre a música na obra teatral e crítica de Luiz Carlos Martins Pena (1815-1848).
62
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
Cannon de Hermeto Pascoal:
aspectos musicais e religiosos
em uma obra-prima para flauta
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte)
[email protected]
Maurício Freire Garcia (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte)
[email protected]
Resumo: Estudo de caso sobre Cannon de Hermeto Pascoal, obra para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados,
planejada como uma sessão espírita musical e gravada pelo compositor no disco Slaves Mass (PASCOAL, 1977). A partir
do desenho artístico de uma pauta espiralada na capa interna do mesmo LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) e de uma transcrição baseada na faixa gravada, a partitura da obra foi detalhadamente reconstituída e editada (PASCOAL e BORÉM,
2010; incluída neste volume de Per Musi às p.80-82). A combinação das análises formal, escalar e proporcional da
partitura e seu cruzamento com a análise espectral da gravação revelam grande unidade e uma íntima relação entre
os conteúdos musicais e extra-musicais da obra, na qual elementos opostos dialogam: a improvisação e as camadas de
superposição de sons pré-gravados, a sonoridade acústica e os sons manipulados, a performance individual e a coletiva, a
estabilidade e a instabilidade modal, as linguagens popular (embolada, jazz modal, free jazz) e erudita (música concreta,
atonalismo, cadenza, recitativo), os mundos terreno e espiritual. Apresenta também, em primeira mão, a abordagem
analítica do “continuum separação-fusão paradoxal” da obra, a partir de ferramenta etnomusicológica criada e realizada
por COSTA-LIMA NETO (2009). Inclui uma contextualização do papel da religião na música do “mago” multi-instrumentista, arranjador e compositor da música popular brasileira.
Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; modalismo; atonalismo; espiritismo e música; música
eletro-acústica, análise musical.
Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a flute masterpiece
Abstract: Case study on Cannon by Brazilian composer, arranger and multi-instrumentalist Hermeto Pascoal, a work for
flute, flute humming and pre-recorded sounds, designed as a musical spiritism session and included in the LP Slaves Mass
(PASCOAL, 1977). Departing from an artistic drawing of a music staff spiral included in the internal covers of the same
LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) and a transcription based on the listening of the track in the same disc, the score of the
work was reconstituted and edited in detail (PASCOAL e BORÉM, 2010; included in this issue of Per Musi, p.80-82). The
combination of formal, scalar, proportional analyses with the spectral analysis reveal an intimate relation between the
musical and extra-musical contents of the work, in which opposing elements dialog: improvisation and the layers of prerecorded sounds, acoustical sounds and manipulated sonorities, individual and the collective performances, stable and
unstable modalities, the popular (the Brazilian embolada, modal jazz, free jazz) and the classical (musique concrète, bimodalism, atonalism, cadenza, recitative) languages, the earth and the spiritual worlds. It presents an original analytical
approach of the work based on the “paradoxal separation-fusion continuum”, devised and realized by ethnomusicologist
COSTA-LIMA NETO (2009). It also includes a context of the religion role in the music of the so-called “mago” (wizard) of
the Brazilian popular music.
Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; modalism; atonalism; spiritism and music; electro-acoustical
music, music analysis.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
Recebido em: 21/12/2009 - Aprovado em: 18/03/2010
63
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
“Minha religião é a música”I.
Hermeto Pascoal (GONTIJO, 2000, p.2)
“Eu rezo com a música, com o instrumento”.
Hermeto Pascoal (RODRIGUES, 2003)
“. . .tão único e diferente dos outros. . . sua coragem
de experimentar com todo e qualquer tipo de música
num nível muito avançado”.
Flora Purim sobre Hermeto Pascoal (PURIM, 1977)
1 – Hermeto Pascoal e Cannon: contextos
musical e religioso
A relação entre música e espiritualidade na vida de Hermeto Pascoal é muito imbricada e transparece tanto na
sua produção artística quanto na sua filosofia de vida. É
comum encontrar, salpicando sua numerosíssima obra,1
reflexos das diversas experiências religiosas que tem vivido. É muito comum ele escolher temas musicais, títulos
de música e, principalmente, criar atmosferas de rituais
derivados do catolicismo, espiritismo, umbanda, meditação e ritos indígenas. Assim, Hermeto sintetiza, ao mesmo
tempo, a vocação brasileira para o sincretismo religioso e
musical. Um relato detalhado de suas experiências religiosas relacionadas à música pode ser encontrado no artigo
Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua
linguagem harmônica, publicado no presente número de
Per Musi (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43).
São comuns os depoimentos de músicos que abdicaram
de seus estilos de vida, cidades de origem e trabalhos só
para fazerem parte de seus grupos ou de seu convívio,
especialmente na fase da Escola Jabour (BARBOSA, 2001;
COSTA-LIMA NETO,1999; John KRICH, 1993; ZWARG,
2009a). Foi esta dedicação e respeito religiosos pela qualidade musical que tornaram lendários os ensaios diários
na casa de Hermeto no Rio de Janeiro, “from 2 to 8 pm”,
segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009),
o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008, p.2 e
8): “. . . ensaiavam diariamente, das 14:00hs às 20:00hs,
durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”, sendo
que esse tempo de ensaio que era acrescido “. . . pela
prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os
trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .”
A devoção e envolvimento de Hermeto com a música
muitas vezes sugere um estado de transe. Em Pendotiba
(Niterói), Hermeto e seu grupo prolongaram o show de
inauguração de uma casa de jazz por mais de cinco horas
(COSTA-LIMA NETO, 2008, p.9). No 1º Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1978, ao lado de nomes
como John McLaughlin, Chick Correa e Stan Getz, o show
de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongou-se
até às 4 horas da madrugada. . .“ (MILLARCH, 1979). Para
Hermeto, esse transe parece fazer parte de um processo
que não pode ser interrompido como um evento meramente artístico com hora marcada para acabar. No seu
segundo concerto do festival Som da gente no Town Hall
64
em Nova Iorque, em 1989, revoltou-se contra esta limitação que tentaram lhe impor na duração do concerto e,
após iniciar uma música, parou e saiu do palco alegando
que o tempo dado a ele tinha se esgotado. Apesar dos
pedidos do público, em pé, Hermeto não retornou com
seu grupo (MILLARCH, 1989).
Na esteira do prestígio da bossa-nova nos Estados Unidos, aumentou muito o trânsito de músicos brasileiros
decididos a desenvolver sua carreira musical no exterior
na década de 1960, a exemplo do casal formado pela
cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira, que
se mudaram para os EUA em 1967. Depois das dificuldades iniciais, ficaram animados com a receptividade de seu
trabalho, especialmente após seu contato profissional
com Miles Davis. Em 1969, convenceram Hermeto a se
mudar temporariamente para Nova Iorque, para gravar o
disco chamado Hermeto (1971). Ao falar de sua empatia
com Miles Davis, apresentado por Airto Moreira, Hermeto
Pascoal revela um pouco do lado espiritual:
“o repórter [da Radio France disse] ‘. . . o Miles Davis esteve aqui
dando uma entrevista pra mim e eu perguntei pra ele se, quando
ele morresse, ele gostaria de ser músico? Aí ele falou que gostaria
de ser um Músico que nem o Hermeto Pascoal’. . . eu disse pro cara
também: ‘Se eu morresse eu gostaria de ser um músico como ele’
“ (BARROSO, 2009).
Menos de uma década mais tarde, Hermeto voltou aos
Estados Unidos para gravar Slaves Mass (1977), no qual
ficou ainda mais claro sua predileção pelo lado místico
da música, o que já é sugerido no próprio título do álbum, que faz uma alusão à cultura afro-brasileira: missa
dos escravos. Na faixa que dá nome ao disco, observa-se
uma ampla utilização ritualística da voz (choros, gritos,
gargalhadas, declamações, vocalizes), cuja sonoridade
parece nos “. . . remeter à personagem conhecida na Umbanda como Pomba-gira. . .” (COSTA-LIMA NETO, 2010b,
p.48). Hermeto consolida a atmosfera mística do disco
com a utilização não convencional da voz em seis das
sete faixas (COSTA-LIMA NETO, 2010b, p.48), e também
com um intenso experimentalismo instrumental (técnicas
expandidas da flauta, superposição de sons pré-gravados)
e sonoridades exóticas (porcos grunhindo). Concorrem
também para esta aura místico-religiosa as fotos na capa
(Ex.1) – uma foto de Tom Copi cuja luz, em forma de aura,
destaca os longos cabelos brancos de Hermeto que mostra, no lugar dos olhos, teclados refletidos em seus óculos
- e na contra-capa do LP – uma foto avermelhada de
Joel Sussman com Hermeto segurando um dos dois porquinhos texanos utilizados na gravação da faixa-título
Slaves mass (veja BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43, nesse
volume de Per Musi).
Deste disco, escolhemos a faixa Cannon, composta por
Hermeto em homenagem ao jazzista Julian “Cannonball”
Adderley (1928-1976)2, um dos pioneiros do hard-bop
(POLITOSKE, p.575), que atuou com Miles Davis até 1958
e se destacou também no free jazz na década de 1960
(KERNFELD, 1988, v.1, p.5-6), estilo da música popular
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
Ex.1 – Misticismo nas fotografias da capa e contra-capa do disco Slaves mass (1977) de Hermeto Pascoal
(Fotos de Tom Copi e Joel Sussman).
esteticamente afim à música erudita aleatória. A análise de Cannon demonstra como, em Hermeto Pascoal, os
aspectos musicais estão intrinsecamente ligados à sua
visão mística e religiosa do mundo; neste caso, segundo a
visão do espiritismo. Esta peça é centrada na performance de Hermeto na flauta transversal solo,3 à qual foram
mixadas diversas camadas de som gravadas e manipuladas previamente (o que nos remete ao campo erudito da
música concreta), como falas em português e em inglês,
vocalizações diversas (gritos, risos, canto) e percussão.
Cannon ilustra a formação eclética de Hermeto, com
referenciais tanto populares quanto eruditos, apesar de
nunca ter frequentado escola de música alguma. Seu início pode lembrar tanto a liberdade harmônica e intervalar
da música erudita expressionista ou pós-1950, quanto o
experimentalismo do free jazz (veja Exs.5 e 6 à frente).
No primeiro trecho rítmico e alegre da música, a cantora
Flora Purim reage saudosa e instintivamente, no meio da
gravação, com um “Eh, Brasil!” (c.39, veja Ex.9 à frente). Mas a métrica ternária deste trecho permite também
outra leitura, pois poderia ter origem na experiência do
compositor com vidas passadas, vidas de formação mais
tradicional, erudita. Como se trata de uma “sessão espírita musical”, podemos especular sobre a métrica ternária
de Cannon e as influências que o próprio Hermeto diz ter
recebido do outro mundo. É ele mesmo quem diz que “. .
. acredita ter aprendido a tocar ‘em 3/4’. . .”, talvez como
fruto do que COSTA-LIMA NETO (2010a) considera ser
“. . . recordações que o alagoano supõe ter sido de sua
outra ‘encarnação’ em Viena, importante centro cultural
da música erudita européia. . .”.
Ainda do ponto de vista do timing de distribuição dos
eventos ao longo de Cannon, observa-se uma ocorrência
notável próxima a 2/3 de duração da peça, ou seja, numa
proporção equivalente à seção áurea. A linha melódica
principal (flauta + humming; Observação: hummings são
vocalizações no bocal da flauta) e o “coração batendo”,
antes assíncronos entre si, entram em fase (tornam-se
sincronizados) momentaneamente (c.87-90; [03:4703:52], veja Ex.5 e mais detalhes na próxima seção deste
artigo), para depois seguirem cada um seu próprio caminho, fora de fase, assíncronos. Do ponto de vista religioso,
poderíamos associar este evento ao momento em que de
fato se estabelece o contato entre o médium e o espírito
desencarnado. Do ponto de vista musical, para resistirmos
à tentação de associar este procedimento à prática histórica de polimetria de Charles Ives no começo do século
XX (e cair no erro da decantada ideia de que procedimentos musicais “cultos” ou “sofisticados” sempre vieram do
estrangeiro), basta lembrarmos das experiências da infância de Hermeto na praça de Lagoa da Canoa ouvindo
dois, três, quatro eventos superpostos e independentes ao
mesmo tempo (CAMPOS, 2006, p.134). Para Hermeto, a
aprendizagem de seu caminho pelo mundo, sua cultura e
religião acontece no encontro com o povo, em casa, nas
ruas, nos bares, nos teatros, pelo mundo.
Finalmente, Cannon pode ser considerada uma obraprima do repertório da flauta por diversas razões. Primeiro, parece tratar-se da primeira peça surgida no
cenário da música brasileira, até onde sabemos, para
flauta e fita magnética. Segundo, trata-se de uma obra
em que se vislumbra uma escrita altamente idiomática
da flauta, não só com a sua utilização instrumental
tradicional virtuosística dentro da linguagem modal
expandida e dentro do espírito da cadenza de concerto, mas também por explorar eficientemente, um grande leque de formas de ataque e técnicas expandidas,
65
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
como multifônicos e, especialmente, o humming. Outro
aspecto que torna Cannon revolucionária e que também transgride a barreira entre os mundos erudito e
popular, é a hibridação de práticas de performance que
fazem referência a gêneros populares (como o jazz, a
embolada ou o repente) e às práticas eruditas (como
o modalismo quase-atonal, a música eletro-acústica,
a cadenza de concerto), deixando irreconhecíveis os
limites entre a composição prévia e a improvisação.
Finalmente, em Cannon, todos os recursos composicionais, instrumentais e de técnicas de gravação em estúdio são utilizados de maneira integrada, funcional e
criando grande unidade musical. Nessa obra, Hermeto
Pascoal atingiu a expressão de um ritual religioso-musical que reflete não apenas a importância da experiência mística na sua vida, mas também a função social
da música de uma maneira mais ampla, que aproxima
diferentes povos, culturas e maneiras de tocar.
2 - Análise dos dados eletro-acústicos da
gravação de Cannon
Texturalmente, Cannon foi construída com base em um solo
de flauta ininterrupto sempre em primeiro plano, ao qual
gradualmente se sobrepõe sons pré-gravados (vozes e percussão) produzidos por seis pessoas - músicos ou pessoas
envolvidas no projeto de Slaves mass presentes no estúdio
Paramount em Los Angeles: Hermeto Pascoal, Airto Moreira,
Flora Purim, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oliveira. As vozes aparecem em dois planos distintos: falas em
primeiro plano, sem manipulação e falas e sons vocais em
segundo plano, com manipulação da velocidade de reprodução. Hermeto, sempre liderando o grupo, declama fragmentos em português em [00:38], [00:52], [01:46], [02:17],
[03:40], [04:10], [04:18], [04:35] e [04:37]). Esses fragmentos, quase sempre são seguidos de livres e esporádicas traduções para o inglês por outra voz masculina, possivelmente
a de Airto Moreira (pode-se observar que é um brasileiro
quem fala pela escorregadela na gramática da língua inglesa “everybody can express [sic] myself” em [02:12]). As falas
femininas são de Flora Purim, notadamente uma em inglês
e outra em português. Airto Moreira, junto com Flora Purim,
foi quem ciceronou e parece ter sido o porta-voz de Hermeto
na sua estadia nos Estados Unidos (Hermeto aparentemente
falava pouco inglês na época).
Repetidas e atentas audições de Cannon permitiram a
anotação dos seguintes trechos de fala sem manipulação
de alturas, ainda assim sujeita a erros, pois nem sempre
são audíveis e há uma grande superposição de sons manipulados e não manipulados, além de mudanças de canal
e seu efeito de espacialização:
(Voz masculina) “quem falou?”;
(Hermeto) “o que você fez aqui . . . todos os lugares”
(Voz masculina [Airto Moreira?]) “forever”
(Hermeto) “o que você fez aqui, continua fazendo
muito mais”
- em [01:00]: (Voz masculina) “forever”
- em [01:19]: (Voz masculina) “I think I´m going to see you. . .I am
sure I´ll see you”
- em [00:03]:
- em [00:38]:
- em [00:45]:
- em [00:52]:
66
- em [01:24]: (Voz masculina) “I don’t know. . . what to say”
- em [01:34]: (Voz masculina) “a friend”
- em [01:39]: (Flora Purim) “I think I´m going to try again, slow.”
- em [01:41]: (Voz masculina) “forever”.
- em [01:46]: (Hermeto) “vejo em você uma alegria imensa, sem
fim... (conosco?)”
- em [02:04]: (Voz masculina) “everybody can throw (?).”
- em [02:12]: (Voz masculina) “everybody can express [sic] myself”
- em [02:15]: (Hermeto) “você conforta todas as vidas neste
mundo”
- em [02:40]: (Flora Purim): “êh, Brasil! .. . (risada) ”
- em [02:43]: (Voz masculina) “forever”
- em [03:40]: (Hermeto) “como é linda, linda, a sua alma”
- em [03:42]: (Voz masculina) “som! (soul?)”
- em [03:57]: (Voz masculina) “how beautiful. . . beautiful... is
your soul”
- em [04:10]: (Hermeto) “mas é isso aí!”
- em [04:18]: (Hermeto) “agora você está bastante livre para
andar em todos os ares. . .
- em [04:21]: (Voz masculina) “toda a vida You ´ll be always here”
- em [04:24]: (Hermeto) “todos os cantos (?) “
- em [04:32]: (Voz masculina) “Now. . . you are free!”
- em [04:36]: (Hermeto) “estou gostando deste trabalho“
- em [04:37]: (Hermeto) “o negócio é que. . . (?) “
Em segundo plano, e utilizando o recurso de aumento de
velocidade de reprodução da fita magnética (o que resulta
na transposição de uma oitava ou mais acima das alturas
originais; trechos que, daqui para frente, serão chamados
simplificadamente de “oitavados”), surgem vozes faladas,
gritadas ou cantadas (Flora Purim faz vocalizes modais em
[01:48], [01:56], [02:02], [02:12], [04:20] e [04:48]). Surgem também fragmentos percussivos, como sons sibilados
com a boca em [02:08]; palmas em [03:14] e [03:24], percussão esparsa em metal entre [04:05] e [04:36], percussão mais rítmica em [04:42] e como um “rulo” em [04:47]
e [04:49]. Essas vozes e percussões “oitavadas”, estrategicamente distribuídas ao longo da forma musical, criam
uma atmosfera não-terrena crescente e apropriada para
a sugestão de um ritual místico: lembram vozes do além,
sons de aves, de crianças, risadas, gritos, vocalizes agudíssimos, glissandi etc. Devemos ter em mente que, na época
da gravação do disco (final da década de 1970), os recursos tecnológicos de manipulação sonora ainda estavam
mais próximos da herança da final da década de 1940,
deixada pelos pais da música concreta – os franceses Pierre Schaeffer e Pierre Henri (EMMERSON e SMALLEY, 2001,
p.60) - e ainda distantes do advento, em 1983, do protocolo MIDI no processamento de eventos e sinais sonoros
(EMMERSON e SMALLEY, 2001, p.61) e das facilidades
de manipulação sonora dos modernos softwares (como
a técnica de alterar o andamento sem alterar as alturas,
por exemplo). Assim, para muitos dos ouvidos de hoje, a
porção eletro-acústica de Cannon pode soar “datada”, e
lembrar antigas trilhas de filmes ou seriados de TV que,
psico-acusticamente, relacionamos com seres alienígenas
(ou, no contexto da obra, espíritos desencarnados).
Para tentar reconhecer o conteúdo das falas e outros
sons “oitavados”, reduzimos a velocidade de reprodução
em 25% e 50%, o que permitiu notar que a maioria dos
efeitos foi, de fato, feita com o aumento de 100% da
velocidade do sinal original, um recurso de realização
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
bastante simples e muito utilizado por compositores de
música concreta desde a década de 1950.
Abaixo, segue uma listagem de trechos de sons (falas e
percussão) manipulados e superpostos que puderam ser
compreendidos por meio da redução da velocidade de reprodução de Cannon:
- em [00:27]: (Hermeto “oitavado”) “o que você fez aqui. . . continua fazendo muito mais”
- em [00:45]: (Hermeto “oitavado”) “você chegou”
- em [00:47]: (Voz masculina “oitavada”) “meu dedo!”
- em [01:02]: (Voz masculina “oitavada”) “viagem, malandro, prá
São Francisco. . .(outra voz) de corpo presente”;
- em [01:11]: (Voz masculina “oitavada”, aboio) “Háh!”
- em [01:38]: (sons guturais), (Hermeto “oitavado”): ”vamos falar
mais coisas!”
- em [02:02]: (voz masculina “oitavada”) “saco de batata assada”
- em [03:15]: (vozes em risos, cânticos, sons de aboio “oitavados”) “Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!..”;
- em [03:38]: (voz masculina “oitavada”) “let’s go! (?)”
- em [03:57]: (voz masculina “oitavada”) “abre o livro” (repetida
3 vezes)
- em [04:20]: (aboio, cantos, percussão em metal, Hermeto “oitavado”) “Eita!”
- em [04:45]: (voz masculina“oitavada”) “pode acender” (repetida 3 vezes)
- em [05:07]: (voz masculina“oitavada”) “pode acabar”
- em [05:10]: (voz masculina“oitavada”) “deixa que eu mato”
Percebe-se claramente que algumas das falas não têm
relação direta com o tema da sessão espírita de Cannon.
São frases comuns do dia-a-dia dos estúdios, como possíveis falas sobre a necessidade de silêncio e concentração
no início dos takes de gravação (“quem falou?” [00:03]),
um teste de microfone (“som!” em [03:42]), a satisfação
musical na gravação (Hermeto: “estou gostando deste
trabalho“ em [04:36]), um comentário sobre detalhes da
gravação (Hermeto: “mas é isso aí!” em [04:10] “o negócio é que. . . “ em [04:37]), possível referência ao hábito
dos músicos de comerem ou fumarem dentro do próprio
estúdio (“saco de batata assada” [02:02] ou “deixa que eu
mato” em [05:10]), a necessidade de deslocamento entre
cidades da Califórnia (“viagem, malandro, a São Francisco...de corpo presente” em [01:45]; observamos que o disco estava sendo gravado na cidade de Los Angeles; note
que, ao dizer “corpo presente”, um dos presentes utiliza
um vocabulário religioso). Essa habilidade de Hermeto
de transformar qualquer som em música é característica
desde a sua infância (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-42,
nesse volume de Per Musi) e reflete a “. . . coragem de
experimentar com todo e qualquer tipo de música. . .” de
que fala Flora PURIM (1977).
Mas Hermeto utiliza, na maior parte de Cannon, os sons
da fala (e também vocalizes e percussão) manipulados, que
parecem guardar uma relação direta com o assunto da música, seja dando orientações de performance para o grupo
(“vamos falar mais coisas” em [01:38]), seja em detalhes
do possível ritual (“abre o livro”, repetido três vezes em
[04:57] e “pode ascender”, repetido três vezes em [04:45]).
Esta relação texto-música fica mais evidente na utilização de sons não manipulados, na voz Hermeto Pascoal,
em português, que lidera o grupo: “o que você fez até
aqui. . . todos os lugares” em [00:38], “o que você fez aqui,
continua fazendo muito mais” em [00:52], “vejo em você
uma alegria imensa, sem fim” em [01:46], “você conforta
todas as vidas deste mundo” em [02:17], “como é linda,
linda, a sua alma” em [03:40], “agora você está bastante
livre para andar por todos os lugares. . . pelos rios(?)“ em
[04:18], “estou gostando deste trabalho” em [04:35]. Ou,
então, nas interações quase imediatas e fragmentadas
em inglês, na voz de Flora Purim: “I think I’m going to try
again. . . slow” (“acho que vou tentar de novo. . . devagar”)
em [01:39]. Mas, principalmente (e possivelmente) na voz
de Airto Moreira: “forever” (para sempre) em [01:00], “I
think I´m going to see you. . .I am sure I´ll see you” (“acho
que vou ver você. . .tenho certeza que vou ver você”) em
[01:19], “I don’t know. . . what to say. . . to you” (“não sei
o que dizer a você”) em [01:24], “a friend” (“um amigo”)
em [01:34], “forever” (para sempre) em [02:43], “everybody can express [sic] myself” (“todo mundo pode se expressar”) em [02:12], “how beautiful. . . beautiful... is your
soul!” (“que linda, linda é a sua alma!”) em [03:57], “toda
a vida You ´ll be always here” (toda a vida você estará
sempre aqui) em [04:21], “Now. . . you are free!” (“agora
você está livre!”) em [04:32].
A repetição de frases completas (“o que você fez aqui”
aparece três vezes, sendo uma vez “oitavada”) e recorrência de algumas palavras (“alegria”, “alma”, “vida”,
“friend”, “forever”, “free” etc.) contribui não apenas para
criar a atmosfera mística, mas também para, composicionalmente, dar unidade à obra. Tanto a flauta quanto
os sons pré-gravados acontecem, boa parte do tempo, de
forma declamatória. Embora o clima seja de improvisação
(Flora afirmou que foi assim, como vimos acima), Hermeto exerce um grande controle sobre os materiais temáticos (harmônicos, melódicos, rítmicos, de articulação e
tímbricos) que utiliza, como veremos mais à frente. Por
isso, a repetição de materiais temáticos tanto na flauta
quanto no emprego dos sons pré-gravados parece remeter a uma complexa e estruturada improvisação motívica.
Além das vozes, Hermeto utiliza a manipulação de outros sons pré-gravados, adicionados ao canal principal da
flauta, como elemento unificador de Cannon. As “batidas
de coração”, por exemplo, que seriam um dos sinais da
vida depois da morte de Cannonbal e uma prova de sua
comunicação com Hermeto e seus músicos, recorrem cinco vezes (veja Ex.5 à frente), pontuando todas as seções
da forma musical (a forma A (ba) B A’ Codetta é explicada mais à frente no Ex.5 e no texto que o precede):
Seção A: nos c.7-15; em [00:35-01:15]; dur.40’
Ponte ba: nos c.45-55; em [02:47-03:07]; dur.22’
(continua na Seção B)
Seção B: nos c.56-68 (continuação da Ponte ba); em
[03:07-03:29]; dur.22’ e nos c.83-124; em [03:4304:26]; dur.43’
Seção A’: no c.140; em [04:45:-04:46]; dur.1’ (uma
batida só!)
67
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
Codetta: nos c.143; em [05:00-05:13]; dur.13’, as “batiads de coração” finalizam a música sozinhas
Outro elemento unificador em Cannon é a recorrência de
materiais cromáticos (algumas vezes causando instabilidade modal) em pontos de articulação importantes, no
início ou final das seções da forma:
Seção A: o início (c.1-9) e finais (c.30-33) quase-atonais
(veja Ex.6 e Ex.7, à frente);
Ponte ba: a escala cromática descendente completa,
próximo ao final (c.51-55; veja Ex.9, à frente);
Seção B: apojaturas cromáticas e terças cromáticas
descendentes próximas ao final (c.117-124; veja Ex.10,
à frente) e cromatismo Mi-Mib-Ré ao final (c.137-138);
Seção A’: modalismo instável em toda a seção (c.139142; veja Ex.11, à frente);
Codetta: bicorde de segunda menor Lá-Sib sustentado
por 10 segundos (c.143; veja Ex.12, à frente).
Do ponto de vista instrumental, Hermeto toca a
flauta em uma posição mais diagonal em relação
ao corpo (menos horizontal; mais confortável, segundo ele) com uma embocadura relaxada (que resulta em sonoridades com mais ar, conhecidas com
soffio ou sons eólios) e quase sempre sem vibrato,
seguindo uma tradição que se consolidou na música
popular brasileira a partir do modelo do canto liso
e declamado deixado por Mário Reis (GIRON, 2001,
p.240) na década de 1930 e reafirmado por João
Gilberto na década de 1960 (GIRON, 2001, p.17).
Hermeto prefere utilizar outros efeitos expressivos
(como diversos tipos de glissando, crescendi súbitos),
contrastes de articulação (como o staccato e o marcato), timbres (como a aproximação da fala humana)
e técnicas expandidas (como multifônicos e diversos
tipos de humming).
Uma importante referência que Hermeto Pascoal pode ter
encontrado na sua viagem aos EUA, ou antes dela, por
meio de gravações, é a música revolucionária do multiinstrumentista cego de jazz norte-americano Rahssan
Roland Kirk (1935-1977), na qual explorou técnicas instrumentais expandidas e técnicas de estúdio como uma
ferramenta composicional. Na flauta transversal (que
também tocava assoprando pelo nariz) se destacou como
um pioneiro do humming, se tornando o modelo para importantes seguidores como Jeremy Steig, Thijs van Leer
e Ian Anderson da banda Jethro Tull (RAHSSAN, 2010).
Rahssan também tinha um lado místico, como ilustra o
nome de seu disco I talk with the spirits (Limelight; Nola´s
Penthouse Sound, 1964). Na faixa de mesmo título, assim como Hermeto em Cannon, RAHSSAN (1964) começa
com uma quinta justa ascendente (Mi-Si), sem vibrato,
e utiliza a linguagem modal (pentatônica em Sol). Assim como Hermeto em Cannon, Rahssan também utiliza
o humming extensivamente, embora quase sempre com
a voz dobrando as mesmas notas da flauta. Fechando o
conjunto de similaridades e coincidências, Rahssan tam68
bém se destacou no hard bop e free jazz, foi pioneiro das
práticas de música concreta na música popular, colaborou com Cannonball Adderley e veio a falecer no ano de
lançamento do disco de Hermeto.
A sonoridade e técnica característica de Hermeto Pascoal na flauta pode ser apreciada no espectrograma mostrado no Ex.2: (1) uma composição de parciais muito
regular, em que pode ser observada uma frequencia fundamental mais forte que os harmônicos superiores, (2)
uma sonoridade non vibrato, caracterizada pela ausência de oscilação detectável de frequencia ou intensidade
no espectrograma) e (3) uma “nuvem” de frequências
agudas, que indicam ruídos de ar característicos do som
de flauta de Hermeto Pascoal. Ainda no Ex.2, pode-se
observar, no solo de flauta sem acompanhamento, a
maneira particular com que ele termina algumas notas
abruptamente (como a 1ª nota - em anacruse, a 3ª e a 6ª
notas, logo no início da peça).
Em relação às técnicas instrumentais expandidas da flauta, Hermeto utiliza glissandi (c.6, 10-11, 13-14, 16,22-26,
28, 34, 58, 69-72, 140-142) e multifônicos de oitava (c.5,
18, 79 e 89) e de terça maior (c.29), esporadicamente
inseridos na linha melódica. Utiliza também a técnica do
humming extensivamente, desde o c.31 (em [02:15], próximo ao final da Seção A) até o final da obra, ou seja, durante exaustivos 2’58”, o que é um dos grandes desafios
na performance desta obra. Pierre Yves-Artaud, uma das
mais destacadas autoridades da flauta contemporânea,
descreve os quatro tipos de humming na flauta: (1) pedal na flauta com melodia na voz; (2) pedal na voz com
melodia na flauta; (3) flauta e voz em uníssono ou em
oitavas e (4) o mais difícil, flauta e voz com melodia independentes o qual “. . .é extremamente complexo e requer
um controle perfeito” (ARTAUD, 1995, p.119). Hermeto
demonstra toda sua genialidade como compositor e intérprete realizando esses vários tipos de humming (dois
dos quais são mostrados no espectrograma do Ex.3). E vai
além, realizando o humming nasal e um longo humming
em terças paralelas. Abaixo, seguem as ocorrências e tipos de humming de Hermeto Pascoal em Cannon:
Seção A:
- humming com a flauta em movimentos contrários
(c.31-32);
- humming nasal sem o som da flauta (três primeiras notas do c.33);
- humming em uníssono com a flauta (c.33-35);
Ponte ba:
- humming em uníssono com a flauta (c.36-50);
- humming cromático descendente com pedal na flauta
(c.51-55);
Seção B:
- humming em uníssono com a flauta (c.55-91);
- humming em terças paralelas com a flauta (c.91-94);
- humming em uníssono com a flauta (c.95-103);
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
“Nuvem” de
frequências
agudas
Fundamentais fortes
e sem vibrato
Interrupções
entre notas
Ex.2- Espectrograma mostrando a sonoridade de Hermeto Pascoal na flauta no início de Cannon: composição de
harmônicos muito regular, ausência de vibrato e “nuvem de frequências agudas (medidas no eixo vertical em Hz).
- humming em terças paralelas com a flauta (c.104-116);
- humming em portato paralelo a com pedal da
flauta (c.117-118)
- humming em terças paralelas com a flauta
(c.119-124);
- humming em uníssono com a flauta (c.124-138);
Seção A’:
- humming em uníssono com a flauta (c.139-142);
Codetta: - humming em uníssono com a flauta e depois
descendente com
a flauta em pedal (c.143).
3 – Análise do contexto, partitura e performance de Cannon
Para a parte interna da capa do LP Slaves Mass, o artista plástico Ruy Pereira criou um desenho artístico que
inclui uma pauta em espiral com um coração no centro
(Ex.4), na qual está notado parcialmente o solo de flauta
de Hermeto Pascoal na música Cannon (PASCOAL e PE-
REIRA, 1977). No seu texto de apresentação desse disco,
a cantora Flora Purim fala sobre a “transcrição” que Ruy
Pereira realizou “nota por nota” (PURIM, 1977). A transcrição publicada em 1977 não é completa e, na verdade,
apesar de desenhada por Ruy Pereira (que não tinha formação musical), foi feita pelo próprio Hermeto, segundo
nos informou Jovino SANTOS NETO (2009).
Para comparar a versão da partitura publicada na capa
interna do disco com a gravação, foi necessário “desenrolar” os 124 compassos do desenho da partitura espiralada.
Depois, a partir da audição da gravação, foi possível verificar que faltavam 19 compassos na partitura do disco (os
c.47-55, referentes a um trecho lento em que a voz faz
um humming em uníssono com a flauta e, depois, faz um
humming cromático descendente, enquanto a flauta segura um pedal em Sol), o que deixa Cannon com 143 compassos, de fato. Além disso, a gravação permite perceber
que há muitas simplificações e discrepâncias na partitura
original. Por exemplo, não foi anotada nenhuma das vozes
(em uníssono, em movimento contrário ou em movimento contra um pedal sustentado) decorrentes da utilização
69
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
humming nasal
Flauta + humming
em uníssono
Flauta + humming em
movimento contrário
Ex.3 - Espectrograma com dois dos vários tipos de humming realizados por Hermeto Pascoal em Cannon: (1) humming
e voz em movimentos contrários (c.31); (2) humming em “uníssono” (c.33; na verdade, em oitavas paralelas, devido à
transposição da voz uma oitava abaixo).
Ex.4 – Partitura espiralada de Cannon desenhada por Ruy Pereira a partir da transcrição de Hermeto Pascoal
no LP Slaves Mass (PASCOAL e PEREIRA, 1977).
70
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
de humming por Hermeto. Finalmente, há muitas notas,
ritmos, métricas e sinais gráficos inconsistentes, equivocados ou difíceis de serem lidos. A partitura completa de
Cannon, reconstruída em detalhe com base na gravação de
Hermeto de 1977, está publicada no presente número de
Per Musi, às p.80-82 (PASCOAL e BORÉM, 2010).
Flora Purim ainda acrescenta que a transcrição de Cannon “. . .levou seis horas. . .” porque foi uma experiência
de total improvisação. A finalidade foi de se preparar uma
sessão espiritual e tentar comunicação com Cannonball.
Alguns de nós o fez [sic.] com muito sucesso” (PURIM,
1977). Comentando este episódio, o jornalista Aramis
MILLARCH (1977), amigo de Airto Moreira, confirma que
teria ocorrido
“. . . ‘uma verdadeira sessão de espiritismo realizada no estúdio’
segundo o relato que o próprio [Airto] Guimorvan [Moreira] nos
prestou na semana passada. Hermeto, Hugo Fattoruso, Raul de
Barros [sic; Na verdade, trata-se do trombonista Raul de Souza,
cujo nome de nascimento era João de Souza e foi mudado por
sugestão de Ary Barroso], Laudir de Oliveira, Airto e Flora Purim
- que participaram da faixa, sentiram algo de espiritual ocorrer,
como se a alma de Julian ‘Cannonball’ Adderley (1928-1976),
grande amigo de todos os músicos participantes da sessão e a
quem a faixa era dedicada, tivesse ‘baixado’ sobre eles. . .”
Uma análise formal de Cannon revela uma obra altamente estruturada e unificada. Embora a escrita um
tanto rapsódica de Cannon possa sugerir uma sucessão de eventos desconectados, especialmente com a
superposição de diversas camadas sonoras (com vozes
soli declamadas em português e inglês; vozes faladas
ou cantadas coletivas e manipuladas em segundo plano;
percussões manipuladas em segundo plano) sobre o solo
da flauta (e flauta com humming), sua forma pode ser
descrita como uma forma canção A (ponte ba) B A’ Codetta, sendo que a ponte ba é construída com materiais
temáticos contrastantes das Seções B e A. Esta forma
ternária em arco é apropriada para emular o caráter
progressivo e em arco de uma sessão espírita – (1) o
contato gradual e crescente, (2) o clímax, e (3) a despedida gradual e decrescente. As Seções A e B apresentam
muitos contrastes entre si em relação ao andamento,
métrica, articulações, materiais harmônicos e contorno melódico. Na gravação do disco Slaves mass, os 143
compassos de Cannon duram 5’13’’. O Ex.5 apresenta
uma esquema gráfico detalhado com as seções formais,
seção áurea e os principais eventos da obra, com indicações de número de compasso e timings.
± 2/3
0
1
Ι
Ι
2
± 1/3
3
Ι
4
Ι
5
Ι
Ι
-----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι----- ----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι----- ----Ι----Ι----- Ι -----Ι-----Ι---- ----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι---- ----Ι----Ι----- Ι -----Ι----Ι---- -----Ι-Linha do tempo (divisões de 10 em 10 seg.)
Seção A
Ponte ba
Seção B
Seção A’ Coddeta
c.1
[00:00]
c.36
[02:37]
c.56
[03:07]
c.139
[04:40]
Forma (materiais temáticos contrastantes
c.143
[04:57] [05:13]
Harmonia modal
c.1 ----------------------- c .10 ------------------------- c.27 ------ c.30 ---------c.36--------------- c.56----------------------- c .95 ------------- c .139------ c.143
Instáv el -------------------Sol Dóri co/ -----------------Sol E ó l i o / ---i nstáv el ------Sol Eólio -------- Sol Eólio ---------------- Sol Dórico------- i ns táv el --- ins tável
Eólio
Menor Harm.
An damento
c.1
Lento ad libitum
Rápido/Ad libitum/Lento
Rápi do, dançante
Lento ad libitum
Sons pré-gravados
c.1
c.7
c.15
c.40
c.56 c.58
c.83
c.124
c.140 c.143
v oz es -- -x - - - - x- xxxxx- - - - - - - - -xxxxxxxxxxxxx xxx x- - - - - - - - - xxx- - - xx - - - - - - - - - - - - - - - - - - - xxx - xxxx- -xxxxx - - - - - - - - - - - - - v oz es
mani pul adas- - - - - - - -- - - x- - - - - - - - -xxx- - - - -xx- -xx - -xx - xx- - - - - - - x - -xx - xxx- -xxxxxxx -xxxxxxxxxx -xxxxxxxxx x - - - - - - - - - -xxx- bati das de c oração - - xxxxxxxxxxxx- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -xxxxxxxxxxx xxx xx- - - - -xxxxxxxxxxxxxxxx xx - - - - - x- - - - xxxxxx
c.1
c.87
c.143
Ex.5 – Esquema gráfico analítico de Cannon de Hermeto Pascoal
(seções formais, seção áurea e principais eventos com timing e número de compassos aproximados)
71
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
A Seção A (c.1-35; [00:00-02:37]; dur. 2’37’’), dentro
do programa do obra (uma sessão espírita musical), poderia ser chamada de “Preparação para o contato com
o mundo espiritual”. É em andamento Lento ad libitum,
o que lhe confere um caráter de recitativo, com métrica
quaternária na maior parte do tempo (há dois compassos 5/4 e um 3/4). Harmonicamente, é caracterizada por
uma grande instabilidade modal inicial, em que os centros modais passageiros de Lá, Sol, Mib, Ré, Fá, Sib, Láb,
Fá, Dó e Sol se sucedem em um curto espaço de tempo
(c.1-12; Ex.6), gerando um ambiente quase-atonal. As
frases, que sugerem um legato cantabile, exibem contornos melódicos com saltos e intervalos incomuns para
a música popular.
Em seguida, no trecho central da Seção A, observa-se
maior estabilidade harmônica, embora não ocorra uma
definição de um centro modal, mas sim uma polarização,
que primeiro oscila entre Sol Dórico e Sol Eólio (c.10-26)
e, depois, entre Sol Eólio e Sol menor harmônico (c.27-29).
Digno de nota neste trecho é o crescendo finalizado com
ataque brusco e respiração na nota Dó do c.44, criando
um efeito que tanto pode lembrar as performances programáticas dos pífanos nordestinos, quanto as primeiras
técnicas da música eletro-acústica (afinal, além do solo
de flauta, tudo o mais em Cannon foi construído com técnicas de estúdio), como tocar a fita gravada de trás para
frente em um decrescendo. A Seção A termina instável
harmonicamente (Ex.7), mais ainda do que no início, devido à sucessão de quartas justas descendentes Láb-MIb,
Si-Fá#, Lá-Mi, Dó#-Sol#, que “resolvem” em dois trítonos: Sol#-Ré e Fá#-Dó (c.30). O trecho final da Seção A
(c.31-35; [02:15-02:37]) contém um dos momentos mais
delicados de Cannon e pode ser descrito como uma ”reza”
íntima de Hermeto Pascoal. Apenas ele participa, ainda
que realizando três vozes diferentes (c.31-32): (1) uma
declamação suave e sincronizada com (2) uma melodia
ascendente na flauta e (3) um baixo cromático descendente em humming na flauta (veja Ex.3 acima).
Nos trechos modalmente mais instáveis da Seção A, a
articulação é em legato cantabile com muitos saltos melódicos, com frases típicas da música erudita atonal. Nos
trechos de polarização modal, a articulação também é em
Ex.6 - Início da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e portamenti, articulação
emulando swing e instabilidade modal.
Ex.7 – Final da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e instabilidade modal.
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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
legato, mas há grande recorrência de graus conjuntos que
se organizam em gestos virtuosísticos mais prováveis de
serem encontrados em cadenzas da música erudita tonal
(Ex.8), como as volates em arco que saem do grave para
o agudo e retornam ao grave (c.13-16, 20-21, 27, 28-29).
A tessitura da Seção A é mais ampla de todas, compreendendo duas oitavas e uma quinta justa (Dó3 a Sol5). Ainda
dignas de nota, e ocorrendo no primeiro compasso da música, são a nota inicial Lá, que também será a última nota
da música (superposta a um Sib!, como veremos à frente)
e a articulação tipicamente hermetiana em staccato (nas
1ª, 3ª e 6ª notas, veja Ex.2 acima), já simulando a articulação do swing do jazz (em que as notas de apoio são um
pouco mais longas) e, assim, antecipando a comunicação e
homenagem ao jazzista e amigo Cannonball Adderley (saxofonista, mas também flautista, como Hermeto), falecido
um ano antes da gravação do disco. Outra referência a esta
comunicação que vai se estabelecer é o surgimento da primeira de uma série de cinco batidas de coração, que ocorre
em [00:35]. As vozes superpostas (“oitavadas” ou não; em
primeiro ou segundo planos), tornam-se mais presentes no
meio da Seção A e regridem ao final da mesma.
A Ponte ba (c.36-55; [02:37-03:07]; dur. 0’30’’), que tem
a notação Alegre de Hermeto na partitura original (a única
indicação de andamento, por sinal), poderia ser chamada
de “Contato inicial entre o mundo terreno e o mundo
espiritual”. É uma combinação de materiais temáticos das
Seções B e A (Ex.9) e se divide em três pequenas partes. A
primeira (c.36-44; [02:37-02:45]; dur. 0’08’’) é uma antecipação da Seção B (que se inicia no c.56), tonalmente estável em Sol Eólio, com seu andamento rápido, sem swing,
ritmo repetitivo e dançante, tessitura restrita e articulação
em marcato. O crescendo finalizado com ataque brusco
e respiração que havia ocorrido antes no c.17 da Seção
A, volta a se repetir no c.44. A segunda parte (c.44-46;
[02:45-02:55]; dur. 0’10’’) é um amálgama de características da Seção A (a cadenza com volates ascendente e
descendente) e da Seção B (o andamento rápido e a articulação em marcato). A terceira parte, (c.47-55; [02:5503:07]; dur. 0’12’’) é uma recordação da Seção B, com seu
andamento Lento e frases em legato cantabile de contorno
melódico com saltos. O cromatismo ao final é um elemento
articulador da forma que Hermeto lança mão nesta e nas
outras seções de Cannon. As vozes superpostas retornam,
continuam e se intensificam na Seção B.
A Seção B (c.56-138; [03:07:04:40]; dur. 1’33’’), que tem o
mesmo caráter Alegre (embora não marcado por Hermeto
na partitura original) do início da Ponte ba, poderia ser chamada de “Comunhão entre o mundo terreno e o mundo
espiritual”. Ela epitomiza o encontro das culturas musicais
Ex.8 - Parte central da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: escrita virtuosística erudita sugerindo cadenza.
Ex.9 – Materiais temáticos nas três partes da Ponte ba em Cannon de Hermeto Pascoal, derivados das Seções A e B.
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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
do nordeste (a embolada e o repente de Hermeto Pascoal) e
dos Estados Unidos (o jazz de Cannonball Adderley), como
mostra o trecho no Ex.10. É em andamento Dançante, rítmico, com um light swing, com articulação em marcato
e métrica ternária na maior parte do tempo (apesar de se
iniciar com um provocante 7/4 + 3/4). Harmônica e melodicamente, é caracterizada por uma grande estabilidade
modal em Sol Eólio (c.56-94) e Sol Dórico (c.95-138), o
que pode nos remeter tanto ao modalismo nordestino (SIQUEIRA, 1981) ou, no jazz, à herança modal dos históricos
discos Milestones (1958) e Kind of blues (1959) de Miles
Davis (KERNFELD, 1988, v.1, p.273; v.2, p.116-117). Esta estabilidade modal é enfatizada pelo humming da voz e flauta simultâneas de Hermeto em terças paralelas (c.91-94 e
c.104-124). Além do swing, as blue notes Réb e Fá natural
(c.107-108) são outro elemento jazzístico nesta seção em
que a alma do norte-americano faz contato com os brasileiros. A tessitura é mais estreita, o que é típico nas danças
populares: uma oitava e uma quinta justa (Dó3 a Sol4), com
suas frases gravitando na maior parte do tempo em torno
da tônica Sol3 e das dominantes Ré3 e Ré4. A insistência na
repetição de notas, associadas à imitação da voz do repentista nordestino no humming em terças paralelas com a
voz, faz referência aos gêneros da embolada e do repente.
As vozes superpostas e percussões se intensificam ao longo
de toda a Seção B e continuam na Seção A’. Mas talvez o
evento mais importante na Seção B seja a sincronização
temporária (como são os contatos entre médiuns e almas
desencarnadas) entre a flauta de Hermeto e as “batidas
de coração” de Cannonball (c.87-90, [03:47, 03:52]). Esta
sincronização ocorre, proporcionalmente, a cerca de 2/3 da
duração da obra e coincide com a seção de maior atividade
rítmica. Assim, percebe-se que a construção do clímax da
obra segue a proporção áurea (veja Ex.5 acima).
A Seção A’ (c.139-142; [04:40-04:57]; dur. 0’17’’), que
chamaríamos de “Volta ao mundo terreno”, poderia
ser entendida como uma coda, mas seu contraste com
os materiais temáticos que a antecedem (Seção B) e o
significativo retorno ao clima inicial da obra confirmam
Ex.10 – Trecho da Seção B em Cannon de Hermeto Pascoal: encontro dos gêneros repente/embolada (ritmo dançante com notas repetidas, modalismo com tessitura estreita, imitação da voz do repentista nordestino no humming em
terças com a flauta) e jazz (light swing, blue notes, modalismo pós-Miles Davis).
Ex.11 – Seção A’ em Cannon de Hermeto Pascoal: recapitulação de materiais temáticos da Seção A.
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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
o fechamento em arco da forma (e da sessão espírita
musical) de maneira sintética. Como ocorre na Seção A
inicial e em apenas quatro compassos, temos aí o mesmo andamento Lento ad libitum, a mesma instabilidade
modal, a métrica quaternária, o cantabile das frases em
legato e os contornos melódicos com saltos (Ex.11). As
vozes superpostas e percussões continuam em toda a
Seção A’ e adentram na Codetta.
O último compasso pode, pela sua natureza complexa e concentração de eventos e significados musicais,
ser considerada uma Codetta (c.143; [04:57-05:13];
dur.00’16’’). Observa-se aí a recapitulação não apenas
da forma em arco de Cannon, mas também de eventos
importantes que ocorreram ao longo da obra (Ex.12).
Está presente a mesma nota Lá3 do início da música
(humming + flauta) que, em seguida, sobe para o Síb3,
lembrando o cromatismo que permeou todas as seções.
Depois, o ambiente modalmente instável se instala com
o movimento oblíquo entre a flauta (que permanece no
Síb3) e o humming da voz (que retorna para o Lá3). Este
bicorde de segunda menor é sustentado como pedal por
cerca de 10 segundos. Sobre este pedal, cresce a profusão de vozes “oitavadas”. Também retornam as “batidas
de coração”. Este adensamento de texturas se dá por volta de 2/3 da duração da Codetta, espelhando também a
proporção áurea da obra como um todo, que ocorreu na
Seção B (veja Ex.5 acima). Após crescerem, as vozes manipuladas desaparecem com glissandi em fading. Depois,
no exato final de Cannon, restam apenas umas poucas
“batidas de coração”, o mesmo coração (de Cannonball
Adderley?) que Ruy Pereira colocou no centro da espiral
de sua partitura artística (veja. Ex.4 acima).
Do ponto de vista da orquestração da flauta e da voz
utilizada no humming na flauta, Cannon utiliza tessituras
amplas, mais comuns na música erudita. A flauta vai desde sua nota mais grave, o Dó3 (c.17, 26, 28, 46, 76, 100,
123, e142) até um Sol5 (c.14), ou seja, uma extensão de
duas oitavas e uma quinta justa, o que é pouco comum
na música popular. A voz cantada de Hermeto Pascoal,
que na partitura publicada neste número de Per Musi
(p.80-82), foi anotada na clave de Sol, mas soa sempre
uma oitava abaixo, vai, em som real, desde o Sol1 (c.55)
até o Sol3 (c.33), ou seja, uma extensão de duas oitavas,
pouco comum tanto no canto da música popular quanto
no humming erudito prescrito por ARTAUD (1995, p.119).
4- Análise do continuum separação-fusão paradoxal de Cannon por Luiz Costa-Lima Neto
Como toda obra complexa, Cannon permite múltiplas
leituras analíticas. Luiz Costa-Lima Neto, um dos mais
importantes pesquisadores sobre a música de Hermeto
Pascoal (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz
como instrumento neste número de Per Musi às p.4462; COSTA-LIMA NETO, 2010a), já havia se interessado
em investigar Cannon pelos seus lados exótico, no qual
identificou “sons de pássaros” - e místico, no qual identificou a “voz do próprio Hermeto, como se estivesse rezando” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.11). Consultado so-
Ex.12 – Codetta em Cannon de Hermeto Pascoal: um único compasso com recapitulação da forma em arco da obra, de
sua seção áurea e de materiais temáticos das Seções A e B.
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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
bre nossa reconstrução e edição da partitura de Cannon,
e sobre a pertinência de possíveis dados extra-musicais
na sua gravação, Luiz Costa-Lima Neto nos propõe uma
análise etnomusicológica com base no que chama de
“continuum separação-fusão paradoxal” (COSTA-LIMA
NETO, 2009), a qual apresentamos aqui em primeira
mão. Ele desenvolveu esta ferramenta metodológica a
partir da observação da fala de Hermeto Pascoal e sua
percepção poiética do imaginário, da maneira como “sobrepõe pólos opostos. . . até fundi-los. . .”, gerando um
conjunto integrado de quatro fases inter-relacionadas,
que pode ser constatado “. . . tanto nas peças improvisadas como nas composições escritas.”
Para ele, Cannon pode ser compreendida como uma forma
binária AB, precedida de introdução e finalizada por uma
coda. Do ponto de vista ritualístico, o ouvinte passaria
por uma preparação da sessão espírita (introdução; c.16), que levaria à busca e estabelecimento de contato com
o espírito desencarnado (A; c.7-55), que levaria ao transe
da incorporação (B; c.56-138) e que, finalmente, levaria
a um retorno da consciência (coda; c.139-143). Na primeira fase de Cannon, que chama de Separação, COSTALIMA NETO (2009) identifica a abertura da sessão espírita
(c.1-6; [00:00-00:35]), com uma “prece sem palavras”,
realizada apenas pela flauta solo. Na segunda fase, que
chama de Melodia ou embolada de opostos [numa alusão ao gênero nordestino], o contexto ritualístico sugere
uma invocação espiritual (c.7-55; [00:35-03:07]) coletiva
do “doutrinador” (Hermeto Pascoal) com a ajuda dos outros “médiuns” (demais músicos presentes na gravação,
citados anteriormente) que criam uma “Atmosfera lúdica. . . positiva. . . adequada ritualmente à sessão espírita
musical”, em que “os opostos estão se aproximando...”. A
terceira fase, que chama de Harmonia de opostos, (c.56138; [03:07-04:40]) equivaleria ritualmente ao clímax e
transe do contato e incorporação espiritual: em meio à
multitude de efeitos instrumentais e vocais, convivem o
sonhar e o estar acordado, a consciência e a inconsciência, os espíritos encarnados e os desencarnados; as blue
notes indicariam “. . .que o espírito do jazzista Cannonball Adderley ‘baixou’...” e que se liberta (“Agora você está
bastante livre para andar em todos os ares, em todos os
mundos, now you’re free!...”). Na quarta fase, que chama
de Fusão paradoxal, (c.139-143; [04:40-05:13]) equivaleria ao fechamento da sessão espírita, há um retorno à
atmosfera inicial, mas diferente pelas reminiscências do
transe atingido na terceira fase:
“. . .movimento de relaxamento (parcial) e, simultaneamente, retenção do tensionamento. . .. . . o estado de vigília é parcialmente
restabelecido, mas a consciência e a inconsciência não estão separadas como na fase inicial, pois foram unidas e englobadas por uma
instância supraconsciente, espiritual, o ‘Outro-eu transcendente’
(conceito cunhado pelo etnomusicólogo inglês John Blacking).”
5- Considerações finais
Cannon é uma obra pioneira na música popular brasileira,
até onde sabemos, por ser a primeira utilizar a manipulação e utilização de sons pré-gravados em estúdio junto a
um solo instrumental. Mais do que isso, é um retrato da
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genialidade e dom de Hermeto Pascoal para transformar
qualquer som em música, como falas e ruídos, mesmo
aqueles gerados no cotidiano, às vezes sem nenhuma relação com o programa ou materiais temáticos da obra.
Podemos caracterizar Cannon como uma música funcional, cujo objetivo foi prover uma sessão espírita para
Hermeto Pascoal e seus companheiros brasileiros nos
Estados Unidos se comunicarem com o recém falecido
músico norte-americano Cannonball durante a gravação do disco Slaves mass em 1977. Por outro lado, Cannon apresenta uma construção complexa, mais comum
na música erudita, cujas proporções apresentam uma
estrutura em arco cujo clímax e principal sincronicidade
(quando os duplos Hermeto/flauta e Cannonball/“batidas
de coração” entram em fase) coincidem com a seção áurea da obra. Mais do que isso, a complexidade de Cannon é aparente em níveis mais locais em toda a obra,
com a exploração de melodias de grande tessitura, saltos e volates, a utilização de uma linguagem modal instável que beira o atonalismo e a bi-modadidade, de técnicas instrumentais avançadas (harmônicos, glissandi,
timbres ruidosos) e expandidas (multifônicos de oitava
e terça, vários tipos de humming).
O gradual acréscimo dos sons pré-gravados, manipulados ou não, sobre a improvisação na flauta, é de tal
ordem organizado que estimula o ouvinte, ao longo da
forma, à sensação de presenciarem um ritual espírita completo, em que o doutrinador e demais médiuns
primeiro rezam, depois entram em transe, no clímax
encontram com a alma que procuram (Cannonball Adderley), a tranquilizam e, finalmente, se despedem para
retornarem ao mundo terreno. Do ponto de vista da
instrumentação, podemos ainda associar os sons não
manipulados (flauta, hummings, vozes declamando em
português e inglês) ao mundo terreno e os sons manipulados (falas, risadas, gritos, vocalizes e percussão “oitavados” pelo dobramento da velocidade de reprodução
da fita gravada) ao mundo espiritual.
Cannon é bem ilustrativa da linguagem eclética e híbrida de Hermeto Pascoal. Podemos observar, nesta obra,
sua abertura para uma música sem fronteiras entre o
popular e o erudito, sem fronteiras entre os estilos tipicamente nacionais (embolada, repente) e estrangeiros
(jazz, a cadenza do concerto clássico, música concreta).
A sofisticação da escrita composicional e idiomática de
Hermeto Pascoal para a flauta, juntamente com sua criativa integração dos recursos expressivos eletro-acústicos
ao seu conteúdo programático, criam um grande sentido
de unidade em Cannon que, por si só, deveria resgatá-la
do ostracismo para fazer parte, ao lado de outras obras
primas afins do repertório solístico da flauta – como
Syrinx (1913) para flauta solo de C. Debussy, Density 21,5
(1936) para flauta solo de E. Varèse e Synchronisms N.1
(1962) para flauta solo e tape com sons sintetizados de
Mario Davidovsky -, seja esse repertório erudito, popular
ou, como nos ensina a natureza universal de Cannon e
Hermeto Pascoal, popular-erudito.
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
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Referências de partitura
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pré-gravados. Partitura transcrita e editada por Fausto Borém a partir da gravação do compositor no disco Slave Mass
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e clavineta), Flora Purim (voz), Airto Moreira (percussão, voz e porcos), Raul de Souza (trombone e voz), David Amaro
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Chester Thompson (percussão), Hugo Fattoruso (voz), Laudir de Oliveira (voz). WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)
Referências de gravação
PASCOAL, Hermeto. Cannon. In: Slaves Mass. Hermeto pascoal (flauta e voz) com participações vocais de Flora Purim,
Airto Moreira, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oliveira. WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)
RAHSAAN, Roland Kirk. I talk with the spirits. Limelight, Nola´s Penthouse Sound, 1964 (LP re-masterizado como CD de
áudio; fragmento sonoro disponível em www.amazon.com/Talk-Spirits-Rahsaan-Roland-Kirk)
Notas
1 Segundo VILLAÇA (2007, p.59) e PRADINES (2006), Hermeto Pascoal teria escrito mais de 4.000 músicas até 2007.
2 O nome “Cannonball” é uma corruptela do apelido “cannibal”, uma referência ao grande apetite do músico Julian Adderley na infância (KERNFELD,
1988, p.5).
3 Hermeto Pascoal é um dos mais reconhecidos multi-instrumentistas da história da música popular. É mais conhecido como virtuoso da sanfona, fole
de oito baixos, piano, flautas e saxofones. Entretanto, tem demonstrado sua versatilidade e virtuosismo em muitos outros instrumentos convencionais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmônio, cravo, órgão, escaleta, flauta de bambu, bombardino, fluguel, trumpete, violão, cavaquinho,
viola caipira, bandola, craviola, clavinete, bateria, surdo caixa, surdo, zabumba, pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos, objetos e
animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas, berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira, máquina de costura, baldes, bacias, panelas,
garfos, facas, balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e coelhos (PASCOAL,
2009a, 2009b).
4 Seção áurea é a divisão de uma linha em duas partes de maneira que a proporção do segmento menor para o segmento maior é igual à proporção
do segmento maior para a somatória dos dois segmentos. Os segmentos equivalem a 0.618 e 0.382 do todo, o que é aproximadamente 2/3 e 1/3.
Esta proporção é também encontrada com bastante aproximação na Série Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13 etc.). Para outros exemplos do uso da seção
áurea em música veja o livro Bela Bartók: An Analysis of His Music (Lendvai, 1971) e o artigo Bartók, Lendvai and the Principles of Proportional
Analysis (Howat, 1983).
5 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi,
n.15 (2007, p.7-25).
6 Há muitas discrepâncias entre a transcrição de Cannon por Hermeto publicada na capa interna de Slaves mass (1977) e a gravação da música no
mesmo disco. Algumas das diferenças relevantes são: dúvidas na notação de notas (Lá3 ou Dó4 no c.13; acidentes nos Lás do c.27; Si natural, Fá#
e Lá natural no c.30; Fás no c.85; falta um bequadro no c.111; seria um bemol no Si do c.124?), notação simplificada de vozes, efeitos e dinâmicas
(nenhuma voz realizada em humming é anotada; efeitos como glissandi e multifônicos não são anotados; observa-se apenas um crescendo no
c.6), diferenças na notação de notas, ritmos e métrica (mínima no c.32; colcheias no c.83; quaternário nos c.119 ou 120; fusas do c.15 anotadas
com quiálteras; fusas dos c.20-21 anotadas como semicolcheias; sextinas do c.29 simplificadas como colcheias; omissão de várias notas no c.30;
omissão de um grande trecho lento - c.47-55 - em que há um humming cromático descendente com o pedal da flauta em Sol; o c.69 é anotado
como um compasso quaternário, quando o correto é um ternário; semicolcheias do c.133 simplificadas como uma colcheia), inconsistência na
notação da forma (repetição no c.88).
78
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.
Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro,
três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia,
etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e
no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen
Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto
Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho
Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass, o CD e DVD O
Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com
Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos)
e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).
Mauricio Freire Garcia é Professor Adjunto da UFMG, onde já atuou como Diretor da Escola de Música e Diretor Adjunto
de Relações Internacionais. Graduado pela mesma instituição em 1987, é o único flautista a receber o título de Doutorado, com honras, no New England Conservatory, EUA. Desde 2003, tem atuado como 1º. Flautista Solista convidado da
OSESP. Trabalhou com importantes compositores como Thea Musgrave, Ezra Sims, H. J. Koellreuter e Eduardo Bértola
atuando no Boston MusicaViva, um dos principais grupos de música contemporânea dos EUA, e no Grupo de Música
Contemporânea da UFMG. Já se apresentou nas principais salas do país além dos EUA, Europa e América do Sul. Em
Boston se destacou como solista junto à Boston Chamber Music Society, o New England Conservatory Bach Ensemble e
Contemporary Ensemble. Em 2005, apresentou-se ao lado do pianista Nelson Freire no Festival Piano aux Jacobins em
Toulouse, França. Mantém, desde 1998, duo com o pianista Miguel Rosselini, com quem realizou uma série de recitais na
Alemanha em 2008 e gravou um CD, lançado em 2009. Suas gravações incluem a Suíte em Si menor de Bach, Suite for
Flute and Jazz Piano de Claude Bolling, Choros de Abel Ferreira e diversos CDs com a OSESP.
79
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.
Cannon
(dedicada a Cannonball Adderley)
Hermeto Pascoal
para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados
Transc. e Ed. Fausto Borém
[00:00]
Flauta
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[Hermeto oitavado: ". . . continua
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3
[00:29]
6
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[00:45] [voz oitavada:
"você chegou"]
9
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[vozes oitavadas]
[voz oitavada: "viagem prá
São Francisco, malandro. . ."]
[01:02]
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13
[01:04]
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16
[00:27]
[Hermeto oitavado:
"O que você fez aqui. . ."]
[Lento, ad libitum]
[voz: "Quem falou?" + vozes no fundo]
[00:01]
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-œ bœ œ œ œ
[01:19] [Voz masculina: "I think I´m going
to see you. . .I am sure I´ll see you"]
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[00:38]
[Hermeto: "o que você fez
aqui. . . todos os lugares"]
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[00:52]
[Hermeto: "O que você fez aqui...
continua fazendo muito mais"]
[00:47]
[voz oitavada:
"meu dedo!(?)"]
[voz oitavada:
". . .de corpo presente"]
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œ
[00:35]
["coração batendo" inicia,
assíncrono com a música]
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bœ
u[00:42]
[01:00] [voz masculina
(Airto Moreira?): "Forever!"]
bœ œ œ ˙
bœ œ œ œ œ
[voz oitavada:
(aboio) "Hah!"]
["coração batendo" cessa]
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bœ œ
˙.
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.
œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ
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[01:11]
[01:24] [voz masculina:
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"I don´t know...
what to say. . . " ]
r
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œ.
[01:30]
œ
[01:38]
[01:39]
[01:34] [voz masculina:
[01:46][Hermeto: "Vejo em
,
[Hermeto oitavado:
,
[Flora Purim: "I think
"a friend"]
.
você uma alegria . . ."]
"vamos
falar
mais
coisas."]
.
.
.
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I´m
going
to
try
again.
.
.
slow"]
20
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[voz masculina:
". . .to you"]
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[01:48] r
[Hermeto: ". . imensa
. . . sem fim!]
24
[Flora Purim:
vocalize oitavado]
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J
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[voz masculina: "Forever"]
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[Flora Purim: vocalize oitavado]
[01:56]
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[percussão]
Rall.
etc.
vocalize oitavado]
sibilados]
[02:12] √
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acelerando
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[Flora Purim:
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vocalize oitavado]b œ . œ œ œ
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[02:02]
[voz oitavada: "saco
de batata assada"]
28
[Flora Purim:
[02:08] [percussão: sons
[voz masculina: "everybody
can express [sic] myself"]
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
80
Recebido em: 10/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
etc.
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.
[02:17] [Declamação sincronizada com flauta + humming]
[Hermeto: vo - cê con-for -ta
to - das as
vi - das
[02:29]
Humming
nasal
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Humming + flauta em uníssono
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J
Humming * (voz descendente) + flauta (voz ascendente)
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31
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3
Alegre
[02:37]
[Rápido, rítmico, sem swing]
des - te mun do
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sempre
Humming + flauta em uníssono
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[marcato sempre]
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[02:40]
[Flora Purim: "Êh, Brasil..."]
˙.
[02:43]
[voz masculina: "forever"]
[vozes oitavadas (aboio)]
[02:47]
["coração batendo" inicia,
assíncrono com a música]
[02:45]
[Ad libitum]
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[vozes oitavadas
[vozes oitavadas
cada vez mais presentes]
u
(aboio) "Eh!"]
[02:55]
[Lento]
[risadas oitavadas]
[03:15]
Humming (voz descendente ) com pedal (flauta)
.
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[Dançante, rítmico, light swing]
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[03:15]
[na 2a vez: percussão esparsa (palmas );
aboio oitavado: "Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!.."]
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[sempre dançante]
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["coração batendo" cessa] [vozes oitavadas cada vez mais intensas]
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[03:38]
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[voz oitavada: "(?) "Let's go!" (?)]
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["coração batendo" inicia,
[Hermeto: "Como é linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a sua alma"
[03:40]
[voz masculina: "som!"]
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> [marcato sempre]
Humming + flauta em uníssono
sempre
[03:07] ["coração batendo" continua]
56
3
4
* Humming: vocalizar notas dentro do bocal da flauta;
assíncrono com a música]
a voz de Hermeto Pascoal soa sempre uma oitava abaixo.
81
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para flauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.
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[03:52]
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Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz)
[03:47]
["batidas de coração" sincronizadas com a flauta]
85
[vozes oitavadas:
em terças paralelas
["batidas do coração" tornam-se assíncronas]
[03:57] "Abre o livro!" (3x)]
[voz masculina: "How beautiful. . . . ."
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Humming + flauta em uníssono
91
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[". . .beautiful. . . . ."]
98
[04:04] Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz)
em terças paralelas
[". . . is your soul . . . ."]
[vozes oitavadas soam
como risadas de bebês]
[04:10]
[Hermeto:". . . mas é isso aí"]
[percussão em metal oitavada]
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106
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112
[04:18]
[Hermeto: "Agora você está bastante livre para andar. . ."]
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b œœ œœ œœ œœ b œ œ
.
[Flora Purim:
[voz masculina: "toda a vida
vocalize oitavado] you´ll be always here"]
["coração
[04:19]
[Hermeto: " . . .por todos [voz
oitavada:
os lugares. . . . .pelos rios (?)"] "Eita!"]
119
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[Legato]
[04:20]
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127
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[04:21]
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> > [som de metal >j
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oitavado]
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J
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> ["coração batendo",
u
3
uma pulsação só]
Rall.
Cannon foi gravada e transcrita por Hermeto Pascoal no disco
Slaves Mass (1977). Esta edição completa foi revisada e editada
por Fausto Borém (2010), a partir da gravação e da partitura
espiralada desenhada por Ruy Pereira na capa interna do disco.
82
[04:16] [Humming portato +
flauta legato em terças]
batendo" cessa]
[Rítmico] [marcato sempre]
j
j
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[04:45] [voz oitavada:"pode ascender (3x). . . vai"]
[04:42] [percussão oitavada]
Flora Purim: [vocalise oitavado]
3
[04:47]
[04:40] [Lento]
[Ad libitum , cantabile]
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R .
Humming + flauta em uníssono
[04:32] [voz masculina:
[04:35] [Hermeto:"estou gostando deste trabalho"]
"Now. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . your are . . free ..."]
132
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3
[04:37]
[Hermeto:"o negócio é que..."]
U
œ œ œ œ œ bœ œ ˙.
,
c
[04:57]
[humming + flauta:
de uníssono para 2a. menor]
œ bœ
U
˙˙ ..
[05:13]
[falas e gritos oitavados]
[cresc. - - - - fading + gliss.]
[05:03] ["coração batendo" inicia. . . cessa sozinho]
[05:07] [voz oitavada:"pode acabar"]
[05:10] [voz oitavada:"deixa que eu mato!"]
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
Canção do Amor Demais: marco da música
popular brasileira contemporânea
Liliana Harb Bollos (Faculdade de Música Carlos Gomes, EMESP Tom Jobim, São Paulo, SP)
[email protected]
Resumo: Discussão sobre a importância do LP Canção do Amor Demais dentro do panorama da cultura brasileira, mais
do que do âmbito da música popular em si, a partir do texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco e da crítica de
José da Veiga Oliveira. A fronteira existente entre o popular e erudito fica menos evidente neste disco, por conta do alto
grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim, tendo em vista que ali se deu a apresentação de
João Gilberto em disco e da batida do violão que iria simbolizar a Bossa Nova.
Palavras-chave: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Música Popular Brasileira; Jornalismo Cultural; Cultura Brasileira.
Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: a milestone in contemporary Brazilian popular music
Abstract: This article discusses the importance of the LP Canção do Amor Demais (Song of Too Much Love) within the
panorama of Brazilian culture, much more than simply within the area of popular music itself. As the a starting point,
this discussion uses the LP’s liner notes by Vinícius de Moraes and the critique by José da Veiga Oliveira to demonstrate
that the existing border between popular classical music become less evident with this album. This is due to the high
compositional quality of the songs and arrangements by Tom Jobim, the introduction of João Gilberto and the guitar
rhythms that would come to symbolize bossa nova.
Keywords: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Brazilian Popular Music;
Cultural Journalism; Brazilian Culture.
1. Introdução
É sabido que a Bossa Nova surgiu no cenário musical brasileiro em meados de 1958 com a canção Chega de Saudade (Antônio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes), interpretada pelo cantor e violonista João Gilberto e foi alvo
da primeira grande manifestação de crítica de música
popular nos jornais brasileiros. Muitos autores também
mencionam a importância do LP Canção do amor demais
(Festa, FT1801) da cantora Elizete Cardoso, por causa da
participação de João Gilberto ao violão nesse disco. Mas
esse disco nos trouxe algumas outras características imprescindíveis para que entendamos o fenômeno Bossa
Nova dentro do panorama da cultura brasileira, mais do
que do âmbito da música popular em si.
A cantora Elizete Cardoso fora convidada por Vinícius de
Moraes e Tom Jobim para participar do projeto idealizado
pelo proprietário do selo Festa, Irineu Garcia, de unir a
música e a poesia de ambos em disco. João Gilberto já
se apresentava na noite carioca em 1957 e Jobim, que
ficara impressionado com o som inovador do cantor baiano, convidou Gilberto para participar do disco da cantora, acompanhando-a ao violão em duas faixas do disco:
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
“Chega de Saudade” (Jobim/Moraes) e “Outra vez” (Jobim). Pela primeira vez a batida que simbolizaria a bossa nova estava sendo gravada, porém a forma de cantar
de Elizete Cardoso era ainda convencional, a acentuação
rítmica das sílabas tônicas sempre se dava nos tempos
fortes e o uso do vibrato ainda persistia. Essa característica vocal da geração do samba-canção que João Gilberto
passou a abolir a partir de sua volta ao Rio de Janeiro
em 1957, seria utilizada por ele no início de sua carreira,
quando chegou à capital federal para integrar o grupovocal Garotos da Lua como o novo crooner em 1950.
A forma com que o violão foi tocado, simplificando
o samba e ao mesmo tempo fazendo uso de harmonia
mais sofisticada e densa, provocou uma reação imediata
de músicos, críticos, e também da gravadora Odeon, que
instantaneamente convidou Gilberto a gravar o seu primeiro single, com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim
Bom” (João Gilberto) do outro, poucos meses depois do
disco da cantora. Em sua coluna para o Diário Carioca,
em 29/01/1965, Vinícius de Moraes relata o nascimento
da canção “Chega de saudade”:
Recebido em: 07/07/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
83
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
Um samba todo em voltas, onde cada compasso era uma queixa de
amor, cada nota uma saudade de alguém longe. Mas a letra não vinha. Fiz 10, 20 tentativas. Uma manhã, depois da praia, subitamente a
resolução chegou. Queria, depois dos sambas do Orfeu, apresentar ao
meu parceiro uma letra digna de sua nova música: pois eu realmente
a sentia nova, caminhando numa direção a que não saberia dar nome
ainda, mas cujo nome já estava implícito na criação. Era realmente a
bossa nova que nascia, a pedir apenas, na sua interpretação, a divisão
que João Gilberto descobriria logo depois (MORAES, 29/01/1965).
Não por acaso o LP Canção do Amor Demais teve uma
importância fundamental para a música brasileira. Além
do violão de Gilberto nas duas faixas, todos os arranjos
do disco levam a assinatura de Tom Jobim, ainda desconhecido da grande mídia, apesar de ter musicado a peça
de teatro Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes em
1956, alcançando prestígio e reputação. O que causou
espanto, afinal, neste disco? Alguns músicos comentavam sobre a “batida” diferente do violão de Gilberto,
porém, a recepção do disco foi bastante tímida, com a
exceção do texto de José da Veiga Oliveira, estampado
no “Suplemento literário” do jornal O Estado de S.Paulo,
razão pela qual acreditamos que os músicos eram os mais
interessados naquele disco, e não a crítica.
Quando o cantor e violonista João Gilberto lançou o seu
primeiro single com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”,
ainda em 1958, poucos meses depois de ter participado
do LP de Elizete Cardoso, o público imediatamente notou a originalidade, ou pelo menos, a estranheza daquela
música, quando as rádios começaram a tocar. O impacto
que essa música provocou foi enorme, considerada um
verdadeiro divisor de águas, gerando as primeiras críticas jornalísticas, mas também influenciando o estilo de
compor de vários músicos. Em pouco tempo o cantor
baiano impôs um novo padrão estético à música popular
brasileira, inventando um diálogo entre a voz e o violão, transformando o violão em instrumento participante
do processo criativo e não somente um “acompanhante”
da voz, tão comum na época. A batida que ele imprimiu,
desde a sua primeira gravação com Elizete Cardoso no
LP Canção do amor demais, foi decisiva para que muitos
jovens se interessassem em tocar esse instrumento.
O próprio poeta Manuel BANDEIRA disse que “para nós
brasileiros, o violão tinha que ser o instrumento nacional,
racial” (1955, p. 8). Ao contrário do piano, introduzido
nas casas da alta classe média no século dezenove, o violão foi escolhido pela classe menos favorecida, evidentemente por ser mais barato e portátil, transformandose no instrumento mais significativo da música popular
brasileira, percorrendo o choro, o samba, a bossa nova,
com desenvoltura, durante todo o século XX. João Gilberto, por sua vez, conseguiu com que o violão migrasse
também para a classe média, impondo ao violão um lugar
não somente nas rodas de samba, mas também nas casas
de concerto. Vimos, a partir de Gilberto, que o violão começou a ser utilizado na música norte-americana, muitas
vezes substituindo o piano como instrumento harmônico
predileto, criando uma contraposição clara entre os grupos de jazz, que têm o piano como instrumento central
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(acompanhado de contrabaixo e bateria) e a nova sonoridade adquirida pelo violão. Com isso, o violão toma o
lugar do piano, criando uma sonoridade “nacional”, brasileira, marca de um estilo inconfundível que João Gilberto,
a partir de “Chega de Saudade”, consagrou.
No entanto, ainda hoje ouvimos que a batida do violão é
que chamou a atenção no disco Canção do Amor Demais,
e não as composições ou tampouco os arranjos do disco.
Na verdade, nesses arranjos tão pouco comentados é que
estão a chave da renovação. Jobim preferiu conferir um
caráter quase camerístico ao disco de Elizete Cardoso,
simplificando sua instrumentação, fazendo uso de poucos instrumentos, abrindo, assim, espaço para o violão em
algumas músicas. Notemos que as treze canções do disco
possuem orquestrações muito diferentes uma das outras,
sendo que algumas canções foram interpretadas quase a
capela, acompanhadas somente de piano e contrabaixo.
Nessa época, os pesados arranjos orquestrais eram baseados em uma voz condutora acompanhada por uma orquestra que lhe servia de base, ou seja, não havia um jogo
contrapontístico de vozes e instrumentos que pudessem
participar do arranjo, como foi o caso desse disco.
Assim, a transição do samba tradicional para a bossa
nova fazia-se presente não somente na batida do violão
de Gilberto, mas sobretudo na voz ritmicamente convencional da cantora contrastando com os arranjos econômicos de Jobim, sintetizados nesse disco com uma harmonia
densa, rica, difícil, considerada pelos opositores como influência direta do jazz americano. Infelizmente, poucos
críticos perceberam que a influência benéfica desses arranjos veio também de grandes músicos brasileiros, como
Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Léo Perachi, Radamés Gnatalli e também do professor de Jobim, H. J. Koellreutter e
de outros grandes compositores universais como Chopin,
Debussy e Ravel, para citar somente três.
Muito embora consideremos que a música erudita, de
modo geral, foi uma influência mais significativa em Tom
Jobim do que em outros músicos da bossa nova, a relação
desses dois ambientes musicais – erudito e popular - se
propagou por toda a obra jobiniana. Portanto, não há como
reduzir o trabalho composicional ou pianístico de Jobim
somente dentro dos parâmetros da música popular, se é
que realmente podemos fazer algum julgamento neste
sentido, mas é sabido que Jobim foi aluno de piano de Lúcia Branco e Tomás Terán, além de ter estudado harmonia
com Hans Joachin Koellreuter. Este último afirmou que ele
teria passado a Jobim noções de harmonia e contraponto
clássicos e “rudimentos de execução pianística”, pois o que
interessava ao professor era dar ao aluno uma instrução
“globalizante” (Koellreutter apud Cabral, p.45).
2. O disco Canção do amor demais revisitado
por Vinícius de Moraes
O repertório do disco, como já dissemos, é todo composto
de músicas da parceria Jobim-Vinícius, porém, das treze
canções do disco, nove (“Chega de saudade”, “Caminho de
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
pedra”, “Luciana”, “Janelas abertas”, “Eu não existo sem
você”, “Estrada branca”, “Vida bela”, “Modinha”, “Canção
do amor demais”) são parcerias de Jobim e Vinícius de
Moraes, duas (“Serenata do adeus”, “Medo de amar”) são
composições somente de Vinícius e duas (“As praias desertas”, “Outra vez”) pertencem somente a Jobim, o que
reforça que o projeto estava focado na obra de Vinícius
e Jobim e não na cantora Elizete Cardoso, convidada por
eles para integrar o projeto. A contracapa do disco também merece destaque, pois há um texto de Vinícius de
MORAES que elucida bem o projeto da parceira, transcrito parcialmente abaixo:
Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom, se
preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha
peça “Orfeu da Conceição”, de que restou um grande sucesso popular, “Se Todos Fossem Iguais a Você” e, sobretudo, uma grande
amizade. (...)
Este LP, que se deve ao ânimo de Irineu Garcia, é a maior prova que
podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. (...)
Nem com este LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa
do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor
de fazer sambas e canções, que são brasileiros mas sem nacionalismos exaltados, e dar alimento aos que gostam de cantar, que é
coisa que ajuda a viver.
A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não
constituem mais novidade, para que eu volte a falar delas aqui.
Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e
organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas
da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O
que mostra a inteligência de sua sensibilidade, atenta aos dilemas
do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os
valores permanentes na relação humana (MORAES, 1958).
Vinícius reitera o motivo pelo qual Elizete Cardoso foi escolhida para fazer esse trabalho, muito embora tenha sido Dolores Duran convidada primeiramente, mas acabou pedindo
um cachê alto demais para o humilde selo Festa (CASTRO,
2002, p. 176). Nesse sentido, a escolha por Elizete veio ao
encontro do gosto dos compositores, uma vez que Dolores
era a escolha de Irineu Garcia, dono do selo. Em seu texto,
Vinícius expõe com cuidado que o tipo de voz dela “respira
acima do popular”, assim como a música do disco:
Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida
para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos
acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três
grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que
pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente,
sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas
a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo
respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e
natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela
pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para
uma noite de serenata (MORAES, 1958).
Uma tradição que se formou a partir dessa época da Bossa Nova é que os encartes dos long-playng eram verdadeiras obras de arte, contendo fotos e gravuras de artistas plásticos, herança do Modernismo, época em que Di
Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre outros, desenharam
várias capas de livros. Em 2005 foi publicado o livro Bossa
Nova e Outras Bossas - A Arte e o Design das Capas dos
LPs de Caetano RODRIGUES e Charles GAVIN (Viva Rio/
Petrobrás), justamente sobre este assunto. No caso dos
LPs, além do trabalho gráfico interessante, apareceram os
textos de apresentação nas contracapas dos discos. É o
caso de Vinícius de Moraes que apresenta o disco de Elizete Cardoso, expondo de forma carinhosa o projeto, assim como Tom Jobim faz a apresentação no disco Chega
de Saudade de João Gilberto. Aliás, nesse disco apareceu
palavra bossa nova duas vezes, numa época em que ainda
não se sabia como chamar aquela nova música. Na letra
de “Desafinado” (“isto é bossa nova, isto é muito natural”)
e no texto de Jobim em que ele afirma que “João Gilberto
é um baiano “bossa-nova” de vinte e seis anos. Em pouquíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores” (JOBIM, 1959).
Chamamos a atenção ainda para as palavras de Vinícius
de Moraes, quando este se refere às composições de Canção do amor demais como sambas e canções, afinal, no
decorrer de sua evolução, o samba tem recebido características próprias da evolução de seu tempo, de sua gente,
de seus intérpretes, de seus músicos, então, nada mais
natural que ele se refira a sambas, quando o andamento
da composição for mais rápido e a canções para músicas
mais lentas. O importante, para Vinícius, é “mostrar uma
etapa do caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros,
mas sem nacionalismos exaltados” (MORAES, 1958), essa
dimensão menos historicista e mais estética que ele anteviu, o que realmente iria acontecer com o lançamento
do disco Chega de saudade de João Gilberto.
Certamente Canção do amor demais foi um marco da
música popular brasileira contemporânea, tanto pela
concepção moderna e inventiva dos arranjos e composições, quanto pela participação de Jobim, Vinícius e João
Gilberto na concepção e confecção do disco. No entanto, não nos esqueçamos de que não foi por acaso que
esses três artistas foram considerados os mentores de
uma nova proposta musical que estava surgindo, uma vez
que a obra (o disco) que eles realizaram era uma busca
de renovação. E, talvez, por conta da repercussão desse
disco, que se tornou o disco de apresentação da bossa
nova, João Gilberto gravaria o single “Chega de Saudade”
e “Bim bom”, alguns meses mais tarde.
Assunto que tem inspirado muitas polêmicas e discussões,
tanto por parte de entusiastas quanto de opositores, a bossa nova surgiu de uma série de acontecimentos e influências, como qualquer outra obra artística nova, impregnada
de novas características renovadoras advindas de várias
fontes. Como não dizer que o jazz, sobretudo o cool jazz,
influenciou e muito os músicos brasileiros que deram origem a esse movimento? Mas alguns músicos brasileiros
da chamada Época de Ouro, como Custódio Mesquita ou
Ary Barroso, também tomaram conhecimento da música
americana e tampouco foram questionados quanto às suas
influências americanas dentro de suas canções.
85
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
De fato, a influência que a música popular americana exerceu em todo o mundo é grande. Em meados de
1950, época em que os programadores de rádio, juntamente com as grandes gravadoras de discos, detinham
poder e impunham o gosto musical, alguns artistas
brasileiros que buscavam uma saída para aquela música abolerada, imposta pelos meios de comunicação,
aproximaram-se do novo estilo que estava se formando nos Estados Unidos, o cool jazz. Com características
quase camerísticas como suavidade, pausas, contraponto e harmonização sutil, esse estilo de jazz se impôs, nos
anos 1950, procurando se distanciar do modo nervoso
do estilo bebop. Entre os principais representantes do
cool jazz destacam-se os saxofonistas Gerry Mulligan,
Paul Desmond, Lee Konitz e Stan Getz, o trompetista
Chet Baker e o pianista Lennie Tristano, mas foram o arranjador Gil Evans e o trompetista Miles Davis, ao lançar
o LP The Birth of the Cool (Capitol, M-11026) em 1949
que estabeleceram esse novo estilo de jazz.
Em certa medida, a Bossa Nova realmente sofreu influência
do estilo cool jazz em vários aspectos, como por exemplo,
pela redução de instrumentos acompanhantes, gerando
uma diminuição do volume do arranjo, sobressaindo, assim, o arranjo musical e, por conseguinte, a voz condutora.
O cantor passa a se exprimir sem força, sem vibrato, mais
suavemente, exercitando na voz a possibilidade de um instrumento de sopro. Alguns artistas norte-americanos foram muito apreciados por músicos bossanovistas, como o
trompetista e cantor Chet Baker, sobretudo o disco The best
of Chet Baker sings (Pacific-EUA 792932, 1953) e a cantora
Julie London com o disco Julie is her name (EMI-Br 799804,
1955), com o guitarrista Barney Kessel.
Entretanto, além da influência do jazz, consideramos vários
outros fatores que foram imprescindíveis para o surgimento da bossa nova, tais como o trabalho que estava sendo
desenvolvido por diversos artistas na época que traziam
características inovadoras como os cantores Dick Farney
e Lúcio Alves, o conjunto-vocal Os Cariocas, os violonistas
Garoto e Luis Bonfá, o arranjador Radamés Gnatalli, o pianista e compositor Johnny Alf, os compositores da Geração
de Ouro Dorival Caymmi e Ary Barroso (para ficar somente
nesses nomes) e, como não poderia deixar de mencionar,
a grande contribuição da música erudita brasileira, entre
outros, Villa-Lobos, Hans-Joachin Koellreutter e Cláudio
Santoro, todos presentes na música de Jobim.
Este último já se aliara em parceria com Vinícius de Moraes em 1955, cujo trabalho resultou na obra Canções
de Amor (para canto e piano), uma seleção de canções
musicadas por Santoro sobre poemas de Vinícius, que
mostrou a Jobim quando se conheceram. Há, dentro do
ambiente musical, muitas ressalvas quanto à influência de Santoro sobre a obra de Jobim, inclusive os que
defendem a possibilidade de plágio por parte de Jobim.
Não podemos nos esquecer de que, à medida que se estuda, analisa e aprende uma obra, a assimilação ocorre
inevitavelmente. Acreditamos que a música de Jobim é
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tão fenomenal porque teve muitas assimilações que a
enriqueceram excepcionalmente.
De fato, essas primeiras manifestações de renovação só
demonstram o quanto significativa aquela música em
formação viria a se tornar. Se a bossa nova se impõe ao
deslocar alguns códigos de convenções musicais vigentes
até então, como por exemplo, a dissonância moderna de
“Desafinado”, quando sua letra reitera que “isto é bossa
nova, isto é muito natural”, o disco Canção do amor demais de Elizete Cardoso apresenta, de uma só vez, as três
figuras mais proeminentes da música popular moderna:
João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
3. Música e crítica por Veiga Oliveira: análise
e compreensão à altura do disco
A recepção do LP Canção do amor demais, lançado em abril
de 1958, foi tímida, com exceção de uma resenha que merece especial atenção, pois propõe, sem ressentimentos,
uma leitura construtiva acerca do novo disco. Publicada
no lendário “Suplemento literário” do jornal O Estado de S.
Paulo em 28/02/1959, muitos meses depois do lançamento
musical, a crítica “Canções de modinhas nossas” do crítico,
musicólogo e professor José da Veiga Oliveira comenta dois
discos recém-publicados, Canção do amor demais e Modinhas fora de moda da soprano Lenita Bruno.
O Suplemento Literário era uma das publicações jornalísticas mais prestigiosas da época e tornou-se uma
espécie de ponte importante entre a universidade e
imprensa, tendo como colaboradores críticos do Grupo
Clima como Antônio Candido, Décio de Almeida Prado,
Ruy Coelho, Antonio Branco Lefèvre, Álvaro Bittencourt
e Alberto Soares de Almeida, entre outros. Esses intelectuais, primeiros formandos e depois professores da Faculdade de Filosofia da USP, foram os responsáveis pela
publicação da revista Clima na década de 1940, que
reuniu ensaios acadêmicos em diversas áreas. Esta publicação praticamente definiu o destino intelectual do
grupo e representou a entrada de cena de uma geração
importante de críticos que iria convergir contato entre
universidade e público, cultura e comunicação.
Tivemos a oportunidade de pesquisar no Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB-USP) cerca de 344 resenhas de
música do Suplemento Literário do jornal O Estado de
S. Paulo, desde o primeiro número do suplemento, de
06/10/1956 até 29/06/1963, sete meses depois do famoso concerto no Carnegie Hall, tempo suficiente, portanto, para que houvesse alguma outra publicação sobre a
bossa nova nesse caderno. Não houve. O único texto que
emite comentário sobre algum integrante do movimento
é o de José da Veiga Oliveira. Pela relevância da crítica e
importância da publicação em jornal de grande projeção,
detenhamo-nos à análise e transcrição parcial da crítica
sobre o lançamento do novo disco de Elizete Cardoso:
A “Canção do Amor Demais” (Festa, LDV 6002) obteve grande aceitação por quatro motivos: a música admiravelmente comunicativa
de Antonio Carlos Jobim, a poesia de Vinícius de Morais, a voz
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais
perfeitos já produzidos no país.
Primeira indagação: será música popular ou erudita? Daquela
possui todos os elementos de ritmo, imagens, motivos, colorido,
menos o primarismo do conteúdo poético, a harmonia grosseira,
defectiva e rudimentar. Música erudita ainda não é, muito embora
algumas das melodias estejam próximas aos melhores “Lieder”. A
singularidade dessas partituras reside na ambivalência, situadas
na mui imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros. Poderse-ia considerar a “Canção do Amor Demais” como um ciclo de
melodias (“Liederkreis”) à maneira dos de Schumann sobre textos
de Heine ou Eichendorff. Sem nenhum tema poético que sirva de
motivo-condutor (“Leitmotiv”) recorrente ou unitário, observa-se,
todavia, uma unidade de escrita musical (“durchkomponiert”) que
permite ouvir todo o microssulco qual uma única melodia distribuída entre várias partes, sem que o plano artístico se veja afetado
(OLIVEIRA, O Estado de S. Paulo, 28/02/1959).
Ao lançar um olhar à obra, o crítico expõe sua dúvida
diante da música que encontra no disco, ao mesmo tempo que propõe uma leitura construtiva sobre a suposta
fronteira entre o erudito e popular. Oliveira questiona o
pertencimento do disco (“Primeira indagação: será música popular ou erudita?”) ao propor uma questão, e não
afirmar, como a maioria faz, com pontualidade e agudez,
em qual tipo de música esse disco estaria inserido, se na
música popular ou na erudita. O que ainda não sabíamos
na época era que aquela música iria desencadear algo
novo no cenário da música popular no Brasil, uma espécie de erupção de criatividade no campo de uma música
que não era erudita mais, era popular, mas um popular
mais sofisticado, cerebral, sutil, inovador. Acreditamos
que essa música popular nada mais é do que uma nova
tradição da música popular brasileira com características
eruditas, dentro de um âmbito particularmente envolvido
com questões de mercado e cultura de massa, cujo principal representante é Tom Jobim.
Na primeira frase de sua crítica, Veiga Oliveira delineia os
motivos pelos quais o disco tinha sido aceito: “a música
admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim, a
poesia de Vinícius de Morais (grafado com ‘i’ pelo crítico),
a voz cálida e flexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais perfeitos já produzidos no país”. Tínhamos
evidências, portanto, de que o crítico realmente tentou
compreender a obra. Depois de afirmar que, embora tenha
elementos da música popular (ritmo, imagens, motivos,
colorido), seu conteúdo poético e harmonia estão mais
para o outro gênero musical (erudito), situando a obra na
“imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros”. Não
podemos deixar de mencionar que Jobim estudou com
professores da chamada música de vanguarda, erudita,
como Koellreutter e popular, como Léo Perachi e sobretudo Radamés Gnatalli. Este último foi um dos primeiros
músicos a transitar com fluência pelos dois mundos da
música, por isso essa capacidade dele em situar-se no
popular, apropriando-se ao mesmo tempo de elementos
mais sofisticados, próprios do mundo erudito, do qual o
crítico muito bem conhece. Oliveira segue seu texto comparando o lied alemão com as canções do disco:
O que mais me impressionou foi a fusão indestrutível de poesia e
música, funcionando uma como complemento da outra.
Desnecessário seria ressaltar tal circunstância em nossa canção de
câmara. Daí a citação dos dois grandes poetas românticos alemães
do século XIX, cujos textos encontraram compositores à altura
(Goethe e Moericke; Schubert e Wolf poderíamos trazer, também,
à colação).
Longe de mim a audácia de estabelecer apressadas equiparações
entre obras definitivamente incorporadas ao patrimônio artístico
universal e o ciclo de Jobim-Vinícius, sobre o qual só o tempo dirá
de sua permanência no repertório.
Disse Marcel Beaurfils a propósito do binômio verbo-música no
“Lied”: “O Lied acha-se ligado a seu texto. O menor desvio da palavra torna-se sua ferida, seu impudor, sua tolice. Tudo se passa
numa concentração de espaço e dos sentidos, onde a atenção
nada dissocia, onde nenhuma ficção desvia nem anestesia. Texto
e som: tudo é gravado. Quando o Lied se alarga para o grande
painel, a margem de liberdade reaparece. Quando ele se comprime
num medalhão, aí nenhum artifício é mais possível, nenhuma falta
contra o pensamento e o bom gosto” (OLIVEIRA, 1959).
Ao estabelecer comparações entre a letra-música de
Vinícius-Jobim e o Lied alemão de Schumann-Heine, o
crítico consegue perceber “a fusão indestrutível de poesia e música, funcionando uma como complemento da
outra”, estabelecendo, desse modo, um elo entre a alta
poesia de Vinícius de Moraes e Goethe, assim como a
música sofisticada de Jobim e Schubert. Em seguida, o
crítico faz um comentário de cada faixa do disco, iniciando sua análise por “Chega de saudade” (Jobim/Moraes), a canção que abre o disco:
“Chega de saudade”, um samba, abre a primeira faixa, introduzindo o ouvinte à “Serenata do Adeus”, uma das melodias mais apreciadas da série. “Pizzicatti” dos contrabaixos, saxofone em plangentes escalas descendentes, além de trombone em “staccato”. A
linha melódica converte-se, por vezes, num recitativo modulatório,
que só uma artista como Elizete Cardoso poderia interpretar com
verdadeira dignidade artística (OLIVEIRA, 1959).
Curiosamente, apesar de ter sido “Chega de saudade” a
canção que mais chamou a atenção do disco, lançada há
quase um ano antes desta crítica, seja pela riqueza e originalidade da composição ou pelo acompanhamento de
João Gilberto ao violão, ela não recebe qualquer análise
do crítico, que segue sua análise com a próxima música,
“Serenata do adeus” (Moraes). Nesta música o crítico destaca a melodia do saxofone, mas na verdade o instrumento que é tocado na gravação e tem destaque é o clarone,
seja na introdução, quando abre a faixa, acompanhado
em seguida de cordas ou fazendo contracanto com a voz.
Também têm evidência, em momentos distintos da música, os trombones (com surdina), as madeiras (que preparam o canto), a harpa e o violoncello (em pizzacato), em
arranjo primoroso de Jobim. No arranjo, cada instrumento
tem uma intenção, por vezes mínima, onde sobressai a
voz da cantora Elizete Cardoso, formando, assim, um trio
perfeito de composição-arranjo-interpretação. Veiga Oliveira segue sua análise com “As praias desertas” (Jobim)
e “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes):
“As praias desertas”: imagens poéticas de imensos horizontes marinhos. A harmonia, como não poderia deixar de ser, é de feitio improvisatório, impressionista. Piano, discreta percussão. Flauta, figuras
rítmicas das cordas no registro médio imitam o ranger do carro de
bois: “Caminho de pedra”. Nessa melodia encontramos a “Wande-
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BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
rung” dos românticos alemães, a caminhada infinda. A música como
que move-se, anda suavemente, ao ponto das palavras expirarem
em melismas imponderáveis, à distância (OLIVEIRA, 1959).
Enquanto “Serenata do adeus”, uma balada grave e
emocional, não recebe acompanhamento de seção rítmica, mas um arranjo farto de instrumentos orquestrais,
a terceira faixa, “As praias desertas”, tem uma introdução com flautas, com acompanhamento de bateria,
contrabaixo e piano, este último faz contracantos com
a voz durante toda a música. Aliás, como o próprio Vinícius de Moraes escreve que o disco é composto por
sambas e canções, esta faixa é um samba-canção, por
assim dizer, moderno, com acompanhamento leve, sutil.
O que o crítico escreve como “discreta percussão” são
vários acordes arpejados que o piano faz interpondose à voz de Elizete Cardoso. Para ele, esses arpejos são
colocados como sussurros. Já em “Caminho de pedra”
(Jobim/Moraes), o violão é presente durante toda a música desde a introdução com a flauta, enquanto que a
trompa é o instrumento que imita o ranger do carro de
bois, de caráter impressionista. Novamente o crítico faz
analogia ao Romantismo alemão, trazendo o disco para
o universo clássico, seguindo com sua análise:
“Luciana” apresenta um tempo de valsa, o clássico ¾. Canção
embaladora, valsa brasileira. “Janelas abertas” realiza-se através
de belíssima poesia, repleta de luz e sombra, cativeiro e libertação
da alma. Jobim traduziu perfeitamente o texto de Vinícius. Mui
apreciado tornou-se “Eu não existo sem você”. No instrumental,
predomina o violão. Rica harmonia das cordas, com apoio de “pizzicatti” dos contrabaixos. “Outra vez” é um samba-canção com
violinos em contracanto, violão e percussão. Canção nostálgica,
dolente, reticente é “Medo de amar”: “Vire esta folha do livro e se
esqueça de mim...” (OLIVEIRA, 1959).
Em “Janelas abertas” (Jobim/Moraes), temos novamente um samba-canção de caráter pré-bossanovista, em
que a voz de Elizete Cardoso compõe o arranjo de forma primorosa e envolvente. Apesar de ser um sambacanção, o arranjo leve e inovador de Jobim destoa dos
arranjos pesados da época. Aqui, depois da exposição
do tema, vários instrumentos se interpõem e tocam a
mesma melodia da voz, porém um de cada vez, proporcionando diferentes timbres ao arranjo. Em “Outra
vez” (Jobim) João Gilberto conduz o acompanhamento
da música ao violão, já em “Medo de amar” (Moraes)
o arranjo torna-se mais denso, compondo bem a interpretação da cantora com a poesia e, finalmente em
“Estrada branca” (Jobim/Moraes) Jobim acompanha a
cantora ao piano. Nas palavras de Veiga Oliveira: “retornamos à natureza, aos espaços infindos e solitários:
“Vou caminhando com vontade de morrer...” Ecos da
“Winterreise” schubertiana numa paisagem tropical
brasileira?” (OLIVEIRA, 1959).
“Vida bela”, para o crítico, “soa quase folclórico em seu
modalismo, numa rítmica persistente e sincopada, percussão em destaque. Canção praiana, de matizes africanos” (OLIVEIRA, 1959). De certa forma, esta canção
destoa das outras composições do disco, de sambas e
canções, imprimindo um ritmo cadenciado, quase nor-
88
destino, precedendo em alguns anos à temática samba/
morro da bossa nova do começo dos anos 1960, com
canções da parceria Baden Powel/Vinícius de Moraes ou
mesmo Tom Jobim (“O morro não tem vez”), entre outros. Os acordes menores que se repetem dão essa ideia
de modalismo que o crítico escreve. Já a interpretação
de “Modinha” (Jobim/Moraes) de Elizete Cardoso só é
comparável à de Elis Regina em Elis & Tom (1974), seja
pela interpretação grave e intencional de ambas. Para
o crítico:
Chegamos à “Modinha”. Que a ninguém iluda o titulo despretensioso. Breve concisa na forma, o conteúdo poético é antes trágico,
de um supremo desconsolo. “Não! Não pode mais meu coração
viver assim dilacerado, crucificado a uma ilusão que é só desilusão...” Qual segunda voz, paralela e subjacente ao canto, o violoncelo funciona magnificamente como apoio da linha melódica,
de uma intensidade expressiva que desafia qualquer descrição
(OLIVEIRA, 1959).
Não temos dúvida de que o crítico tem conhecimentos
musicais, e que não são poucos. E para conseguir fazer
uma análise do disco cercou-se de seus conhecimentos teórico-musicais para conseguir propor uma compreensão acerca da obra. Pensamos, aliás, que é essa
qualidade que deve ser valorizada em um profissional
do jornalismo musical e é tema de pesquisa desta autora (Bollos, 2007). Como dar conta de uma obra sem o
conhecimento específico de música? Vimos, acima, que
Oliveira se cercou de conhecimentos sobre a canção alemã Lied para fazer um paralelo com o disco de Elizete
Cardoso, visto que o próprio crítico se indaga de onde
provém aquele disco, do ambiente erudito da música ou
do popular. O que nos surpreende é que ele, ao comentar cada música, consegue compor o instrumentário de
cada faixa magistralmente, propondo uma escuta atenta, construtiva, impensável para os padrões atuais de
crítica musical. Aliás, será que não poderíamos afirmar
que também para os padrões de crítica musical da época
(1959), sua análise era bastante diferenciada? Acreditamos que para escrever críticas jornalísticas na imprensa,
não basta somente escrever bem, mas acima de tudo,
ter conhecimentos musicais que o ajudem a entender
a mensagem da obra. E, para finalizar seu texto, Veiga
Oliveira assertivamente afirma:
Por fim, a “Canção do amor demais”, que dá o título à coletânea,
não destoa do caráter conciso, sentido e dolorido da precedente
composição. Sobre fundo musical reticente, o violoncelo revela a
infinita riqueza de suas possibilidades, ao sustentar todo um edifício harmônico. Palavra e música dão-se idealmente as mãos. A
obra de Vinícius-Jobim é um marco da música brasileira contemporânea (Oliveira, 28/02/1959).
Apesar de tentar evitar equiparações entre obras definitivamente incorporadas ao patrimônio artístico universal, Oliveira profetiza sobre a dupla Jobim-Vinícius,
“sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no
repertório”. E parece que o tempo acabou mostrando
que o crítico tinha razão, pois a parceria Jobim/Vinícius
tornou-se uma das mais importantes obras da música
popular brasileira
.
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.
4. Considerações Finais
Tanto o texto de Vinícius de Moraes na contracapa do
disco quanto a crítica de José da Veiga Oliveira para
o jornal O Estado de S. Paulo reforçam a importância
desse disco de Elizete Cardoso para o desenvolvimento
da música popular brasileira. Ambos demonstram que a
fronteira existente entre o popular e erudito fica menos evidente por conta do alto grau composicional das
canções e pelos arranjos assinados por Jobim. Não por
acaso esses dois textos de Vinícius de Moraes e Veiga
Oliveira são colocados lado a lado neste trabalho a fim
de que vários aspectos, sobretudo musicais, possam ser
avaliados em Canção do amor demais.
O primeiro por ser um dos mentores do disco, autor de
letras e de várias músicas, mas também pela representatividade que tem diante da cultura brasileira, de modo
geral. Na capa do disco aparece ao lado do nome de
Vinícius de Moraes o termo poesia ao invés de letra,
da mesma forma no seu texto da contracapa do disco.
Já Oliveira impõe à crítica musical um olhar respeitoso
diante do disco, o que colabora para a boa compreensão
deste dentro do campo jornalístico, despertando interesse em conhecer esta nova obra. Mas, principalmente,
por Veiga Oliveira ser um musicólogo e por atuar na imprensa escrita como crítico de um dos mais importantes jornais brasileiros na época, o jornal O Estado de S.
Paulo. Ambos perceberam a relevância do disco, tanto
do ponto de vista histórico quanto estético, por emergir
justamente no momento anterior que o fenômeno bossa
nova, propondo um olhar atento às invenções e inovações que estavam surgindo.
Mais do que o disco de apresentação da bossa nova,
porque, afinal, três grandes mentores do movimento musical em constituição estavam juntos no mesmo
projeto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto (como músico), Canção do amor demais é o marco
que colaborou para renovar a música popular brasileira.
Poucos anos depois o movimento bossanovista viria a
se tornar um sucesso internacional sem precedentes na
história da nossa música, demonstrando que sambas e
canções podem ser levados a sério, com rigor e leveza,
onde palavra e música dão-se idealmente as mãos.
Referências
BANDEIRA, Manuel. Literatura de Violão. Revista da Música Popular, Rio de Janeiro, n. 10, out. 1955.
BOLLOS, Liliana Harb. Um exame da bossa nova pela crítica jornalística: renovação na música sob o olhar da crítica. Tese
de Doutorado. PUC-SP, São Paulo, 2007.
CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.
CARDOSO, Elizete. Canção do amor demais. Festa. FT 1801. 1958. 1 CD.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GILBERTO, João. Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959. 1CD.
JOBIM, Antônio Carlos. Texto da contracapa do disco Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959.
MORAES, Vinicius. Certidão de nascimento III. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29 jan. 1965.
________. “Canção do amor demais”. Texto na contracapa do disco. Festa. FT 1801. 1958.
OLIVEIRA, José da Veiga. Canções e modinhas nossas. Suplemento Literário. O Estado de S. Paulo, 28 fev. 1959.
RODRIGUES, Caetano; GAVIN, Charles. Bossa Nova e Outras Bossas: A Arte e o Design das Capas dos LPs. São Paulo: Viva
Rio/Petrobrás, 2005.
Liliana Harb Bollos é Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP, 2007), Mestre e diplomada em Performance / Piano
Jazz pela Kunst Universität Graz, Áustria (1996) e Bacharel e Licenciada em Letras (USP, 1987). Desde 1999 é professora da Faculdade de Música Carlos Gomes onde leciona piano popular, língua portuguesa, harmonia popular e prática
instrumental pedagógica. É professora de harmonia popular e percepção no Conservatório de Tatuí e é professora de
história da música popular e pianista correpetidora da EMESP Tom Jobim. Como pianista já se apresentou com Al aíde
Costa, Mark Murphy, Orquestra Sinfônica de Santo André e Duo Fel, Fernando Corrêa Quarteto, Coralusp e Ruy CastroSabá Quinteto, entre outros. Foi professora de piano popular do Festival de Música de Ourinhos (2005) e do Curso de
Férias de Tatuí (2007). Com o Quarteto Imago (com Renato Correa, Watson Clis e Fernando Corrêa) já atuou no Festival
de Inverno de Ouro Preto (2007), no Projeto SESI Música (Araraquara, Franca e Rio Claro, 2007) e em várias unidades
do Sesc. É integrante do Quarteto Sonoro (com Daniel Allain, Fernando Corrêa e Sérgio Schreiber) com o qual foi um
dos grupos premiados pelo ProAc da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Tem publicado diversos artigos em
revistas (Opus, Contemporânea, Música Hodie, Revista Comunicação & Sociedade, entre outras) e livros (Ensino, música
e interdisciplinaridade e Faculdade de Música Carlos Gomes).
89
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
Letra, melodia, arranjo: componentes
em tensão em O morro não tem vez de
Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes
Silvio Augusto Merhy (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)
[email protected]
Resumo: O registro fonográfico tornou mais fácil pensar uma produção musical como documento, não apenas como
objeto de apreciação estética. A gravação de canções populares permite prontamente decompor, recompor, analisar,
destacar partes e pensá-las como objeto pertencente a uma rede social de amplitudes quase infinitas. Ocasionalmente,
o modo como se combinam letra, melodia e arranjo faz brotar questões sobre a classificação dos gêneros. O arranjo musical, suporte sonoro da canção, pode colocar em tensão a combinação letra e música e até mesmo deslocar o sentido
do conjunto. Algumas das gravações de O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes revelam contrastes e
tensões que tornam uma questão permanente o que se classificou como Bossa Nova.
Palavras-chave: canção popular brasileira; samba; favelas cariocas; Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Moraes.
Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and
Vinícius de Moraes
Abstract: Records have made easier to think over a musical issue as a document, not exclusively as an aesthetic object.
Through song recordings it is possible to decompose, recompose, analyze, extract components, etc., and most of all
consider them as belonging to a vast social net. Putting together lyrics, melody and arrangement poses the question of
classifying genres. Musical arrangements, as a kind of song frame, can break apart the former sense of the combination
lyrics/melody. Some recordings of O morro não tem vez by Tom Jobim and Vinicius de Moraes disclose contradictions
and tensions in what is called Bossa Nova and make it a permanent question.
Keywords: Brazilian popular song; samba; slums in Rio de Janeiro; Bossa Nova; Tom Jobim;Vinícius de Moraes.
1 - A fruição e a análise das canções populares
Produzir música tem como principal finalidade proporcionar fruição e prazer aos ouvintes. Transformar música em
objeto de análise caracteriza-se por ser atividade restrita
a um grupo qualificado de pessoas. A audição crítica é
deixada de lado quando a fruição e o prazer prevalecem,
pois implicam em uma atitude distraída que une música e
ouvinte pelas sensações. Contudo, a análise e a crítica podem ser estimuladas pelo simples prazer de ouvir música.
A determinação de isolá-lo da audição crítica nem sempre
é necessária, como ocorre na apreciação musical, em que
o gosto está sempre presente, enquanto que na análise
isso nem sempre é possível. A análise musical aprofunda a
apreciação e transforma todo o processo em objeto, envolvendo ao mesmo tempo produção, obra e fruição.
No caso específico do analista, ele pode escolher se ouve
pelo prazer puro e simples ou se o deixa de lado para
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
90
empreender processo de exame, interpretação, reflexão,
explicação, etc. A análise pretende isolar o objeto e, de
certa forma, distanciar o ouvinte, ele próprio transformado em um dos elementos da análise, junto com a fruição.
Quando submetidas ao exame dos estudiosos, surgem nas
canções populares, logo ao primeiro olhar, tensões que não
são percebidas na simples fruição e que agora, diante do
analista, revelam desarmonias intensas entre seus componentes. Antes ocultas ao prazer distraído, as tensões agora
surpreendem pela evidência. Os ouvintes muitas vezes nem
se dão conta de que a produção de sentido sofre interferências com as desarmonias e desequilíbrios que ocorrem
na produção ou nas performances das canções, tanto nas
gravações quanto nas apresentações em público.
O conjunto letra – melodia é absorvido pelos consumidores com naturalidade, uma espécie de unidade orgâRecebido em: 27/05/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
nica resultante da união perfeita entre a palavra e os
intervalos musicais.
A análise, no entanto, é compelida a considerar que a
unidade orgânica de tal conjunto – a canção – não passa na verdade de ideia naturalizada que não se sustenta frente às suas condições de produção. No nível mais
imediato constata-se que letras de músicas podem ser
criadas antes, durante ou depois da composição das melodias, podem ser agregadas, montadas, modificadas ou
simplesmente encomendadas, mudando o sentido da
música. Em âmbito mais amplo as canções se colocam
numa rede de produção que ata o processo de criação às
canções anteriores compostas pelo artista, ao sistema de
reprodução das artes em que ele está inserido, aos seus
compromissos profissionais, à manutenção da sua imagem junto aos pares, à critica, ao público, etc.
Revelar por completo a rede social de relações em que
as canções populares estão inseridas não é, por certo,
uma aspiração deste estudo, embora tal desejo assombre constantemente muitos dos pesquisadores que têm a
Música como objeto. Mas há evidências de que a realidade das relações sociais ou da vida em grupo não pode ser
simplesmente omitida ou ignorada, sem que se corram
riscos de resultados insatisfatórios. Por isso consulta-se
o modo de pensar e de pesquisar dos profissionais de Ciências Humanas e Sociais, na esperança de buscar auxílio
para as explicações e análises.
A caracterização das práticas musicais, por exemplo,
pode se tornar incompleta se, na descrição, o ambiente
em que ocorre é desprezado.
É necessário que se descrevam os elementos característicos que estruturam o produto artístico considerando-se o
seu impacto no mundo social. As funções dos elementos
que estruturam a forma artística estão, de algum modo,
conectados ao tipo de prática e ao perfil do grupo onde
ela ocorre. A análise pode revelar como se dão estas conexões e que tensões elas podem criar.
2 - Divisão geográfica e social da cidade
A cidade do Rio de Janeiro, capital federal brasileira até
1959, tem sido vista, muitas vezes, como uma cidade partida, sendo o asfalto e a favela uma das metáforas mais
eloquentes dessa divisão. A favela, modelo de urbanização caracterizado pela precariedade, é o ambiente urbano predominante no recorte montanhoso. A uma partilha
que se apresenta visível entre asfalto e favela (o morro
constituiu-se como sinônimo de favela) correspondem
outras divisões: em classes sociais, em qualidade de vida,
em regiões geográficas (a cidade também é dividida em
norte-sul), em universos culturais, nas estatísticas policiais. A gênese social e o impacto cultural dessa partilha
se perpetuam como marca da geografia, de modo que a
luta contra e em defesa das favelas já se consolidou numa
história de décadas. E os valores, fruto da partilha, têm
sido igualmente combatidos e defendidos.
Em alguns aspectos o ambiente do Rio expõe o marco da
divisão urbana, revelando forte tensão entre grupos humanos. A divisão e a tensão são visíveis na arquitetura –
favela/bairro, no comportamento – violência/cortesia, na
produção artística – música de concerto/música do morro. No caso da música a divisão mais óbvia se exemplifica
no contraste entre o ambiente da música de concerto,
centralizada na programação do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro, e o ambiente do samba, fenômeno tributário dos morros e das comunidades cariocas, onde se
localizam as Escolas de Samba. Em alguns momentos, o
contraste entre música de concerto e samba carnavalesco
é percebido como realidade indisfarçável. Durante o período de carnaval, os ensaios do Bloco Cordão da Bola Preta
podem ser ouvidos alegremente durante os intervalos dos
concertos no Theatro Municipal, localizado exatamente
em frente à sede do clube Bola Preta. Outro embate: a
Sala Cecília Meireles, importante casa de concertos, está
localizada no bairro da Lapa, tradicional reduto do samba
e da boemia carioca. Hoje revitalizada, a Lapa concentra
agenda significativa de shows de música popular, com sucesso de público garantido. O samba e o choro podem ser
ouvidos até nas calçadas em frente à Sala.
As temporadas de ópera, concertos e ballets com grandes
nomes internacionais e estrelas nacionais sempre fizeram
parte da programação da música clássica no Rio. O público se interessa pelas assinaturas de temporadas onde os
grandes nomes internacionais se somam às estrelas locais.1
A cultura do Samba tem sido noticiada desde o princípio
do século com relatos sobre as rodas de samba, os desfiles carnavalescos e a formação das primeiras Escolas
de Samba. O panteão de nomes do samba tem sido sistematicamente cultivado e reverenciado.2
Na cidade do Rio de Janeiro, a música de concerto e o
samba não se limitam a constituir apenas opções de programa cultural, marcam comportamentos, modos de vida
e até oposições sociais. A menção à temporada de ópera
e às escolas de samba aponta para situações extremas,
contudo outras situações revelam oposições mais dissimuladas e contrastes menos intensos entre os gêneros
musicais. Alguns deles não carregam marcas tão óbvias
de sua origem social. O samba O morro não tem vez de
Tom Jobim e Vinícius de Moraes de 1963 (MARCONDES,
1977), em suas muitas versões, expressa os contrastes da
cidade partida de forma menos explícita.
3 - Modalidade de ocupação habitacional
A ocupação dos morros é um dos problemas que se
eternizaram e que se tornaram característicos do Rio
de Janeiro. O descaso perdura no poder público e os
moradores tiveram que se adaptar, criando condições
de sobrevivência que se naturalizaram através da geografia da cidade, brindada por recorte montanhoso
privilegiado. Morro e favela são usados como sinônimos, embora favelas tenham sido plantadas também
em regiões planas.
91
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
A gênese das favelas é explicada por diversas hipóteses.
Uma das mais aceitas é a da expulsão dos moradores pobres, ocasionada pela execução do plano de saneamento
e urbanização do Governo Rodrigues Alves (1902-1906).
A construção das avenidas Central e Presidente Vargas
levou a demolições e impediu que os moradores pobres
permanecessem na região saneada.3
Julio César Pino, professor associado do Departamento
de História da Kent State University, examinou, no artigo
Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro, fontes documentais que lhe permitiram balizar a ocupação
ilegal de áreas no Rio de Janeiro desde 1898. O autor se
queixa (PINO, 1997, p.112) de que o maior número de estudos foi conduzido por sociólogos estrangeiros, cientistas políticos e criminologistas, ressentindo-se da falta de
estudos de história social que descrevam como as favelas
foram construídas e quem são seus moradores.
PINO (1997, p.111) data 1940 como o marco de uma era explosiva no crescimento das favelas na capital federal. No estudo observa-se que a maioria das fontes citadas é da década
de 60 do séc. XX, talvez porque, neste período, a preocupação
da sociedade e das autoridades tenha se tornado mais aguda.
Contudo, a situação das moradias ilegais se mantém até os
dias de hoje. O artigo registra levantamento de 1991, produzido pelo Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro (IPLANRio), mostrando a cidade ocupada por 661 favelas.
As comunidades que habitam as favelas e os bairros pobres dos subúrbios cariocas são estigmatizadas. As condições de urbanização dos morros atestam a ausência
do poder público, que pode ser absoluta durante certos
mandatos. Em alguns deles prevalece a ideia de transformar as favelas em bairros; em outros, a de transferir os
moradores para condomínios especialmente projetados.
O interventor Henrique Dodsworth (1937-1945), nomeado
prefeito por Getúlio Vargas, pretendia construir Parques Proletários Provisórios, projeto político do governo federal. Talvez tenha sido o primeiro prefeito a planejar a transferência
dos moradores das favelas para condomínios ou bairros.
A Praia do Pinto4 era uma favela à beira da Lagoa Rodrigo
de Freitas, plantada ao nível do mar, em uma das regiões
mais nobres da cidade, conhecida hoje pelo mais alto índice
de desenvolvimento humano. Em 1955 Dom Hélder Câmara,
bispo de Recife e bispo auxiliar do Rio de Janeiro, lançou
a Cruzada São Sebastião, condomínio construído no bairro
vizinho do Leblon, para abrigar os moradores da favela Praia
do Pinto. O condomínio existe até hoje encravado no bairro.
O prefeito Carlos Lacerda (1961-1964) desenvolveu projeto semelhante de transferência compulsória dos moradores de todas as favelas da cidade. No projeto, objeto de
grande polêmica, foram criados vários bairros nos subúrbios do Rio. Talvez tenha sido o momento em que mais
moradores foram transferidos em toda história da cidade.
A deputada Sandra Cavalcanti, encarregada da Secretaria
92
de Serviços Sociais da Prefeitura, tem sido até hoje acusada de causar o despejo truculento dos moradores.
O deslocamento gradual das favelas dos morros para os
subúrbios ainda está na ordem do dia. Os estudos das
demandas dirigidas pelos moradores das favelas ao poder público mostram deficiência na oferta de serviços
como escolas, luz elétrica, redes de água e esgoto, gás
encanado, telefone, correio, etc.
As soluções para os problemas de moradia no Rio de
Janeiro têm sido encaminhadas por visões antagônicas:
retirada (quase sempre truculenta) de moradores para
condomínios especialmente destinados a esta população
ou urbanização dos locais de ocupação.
Nos bairros pobres a presença da autoridade do Estado
pode ser sentida, mesmo que de forma incipiente. Entretanto, nas favelas ela sempre se caracterizou pela ausência. A ideia de transformar as favelas em bairros se
assumiu como projeto governamental a partir de 1994.5
A ideia de favela-bairro resulta da discussão de legalizar
as favelas e tratar este modo de ocupação como modalidade não totalmente condenável.
4 - A favela como tema
A ideia de “resgatar a cidadania” através de projetos
culturais tem sido muito difundida nas duas últimas décadas. Variados projetos com variadas feições culturais
surgem em todos as localidades brasileiras, inclusive por
iniciativas governamentais. Nas favelas do Rio, alguns
deles ficaram bem famosos, como o Grupo Cultural Afro
reggae, ONG localizada no bairro de Vigário Geral.6
Outra ideia de promover a cidadania utiliza a defesa
da cultura local, dos valores dos próprios moradores
das “comunidades”. Não só os intelectuais e o governo
como os próprios moradores fazem essa defesa, usando
o discurso da autenticidade para valorizar sua cultura.
“Comunidades”, termo que atualmente designa os grupos sociais que habitam favelas, têm surgido em muitas
outras cidades brasileiras, não só no Rio. Mas é a marca
simbólica das favelas e morros cariocas que mais fortemente tem repercutido na sociedade e ganhado visibilidade nos meios de comunicação.
O samba, há tempos elevado por consenso a traço de identidade nacional, é historicamente associado à gente que
vive nas favelas e nos morros cariocas. É um gênero musical exaltado como produto de prestígio para as “comunidades” e incensado como criação “autêntica” destes grupos.
“Morro”, “favela”, ”barracão” aparecem em muitas letras
de sambas e de outros gêneros de canções brasileiras. Em
muitas situações a presença dessas palavras é percebida
como proselitismo ou como retórica em defesa de determinados grupos sociais. Em certas canções elas têm
o fito de propagar os valores éticos das “comunidades” e
concorrer para elevar o mérito artístico das músicas.
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
Canções populares com esses temas foram produzidas
já nas primeiras décadas do século XX, algumas os expuseram até nos títulos, como os sambas: Favela, de
Roberto Martins e Valdemar Silva (lançado em 1936);
Ave Maria no morro, de Herivelto Martins (lançado em
1942); Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães,
(samba carnavalesco lançado em 1953).7 Alguns deles
são tocados ainda hoje, outros já estão esquecidos. É
possível compor lista numerosa, com canções de gêneros variados sobre o mesmo tema.
No início dos anos 60, nos ambientes onde as canções
populares eram produzidas, o tema da ocupação ilegal
para moradia transbordou das letras de canções e ganhou
tons de radicalização e de conflito público de ideias entre
os compositores e cantores.
5 - O samba O morro não tem vez e a escolha
das gravações
O samba O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim
e Vinícius de Moraes se destaca na numerosa lista sobre
o tema por características que variam de gravação para
gravação. Selecionamos algumas das que podem evidenciar as diferentes concepções e as contradições que colocam em questão a coesão da própria criação. O samba
tem sido gravado e regravado em diferentes épocas e em
diferentes situações. Ao ser examinada de perto, a história de suas gravações mostra que o seu sentido sofre
mudanças e se transforma sensivelmente.
O jornalista Sérgio CABRAL (1997, p.497) listou trinta
e oito (38) lançamentos diferentes de O morro não tem
vez. Examinamos aqui apenas seis deles, entre 1963 e
2004. A escolha recaiu sobre gravações que apresentam
fortes contrastes. Há contrastes no perfil dos artistas de
capa, na concepção e estilo dos arranjos, nas condições
de gravação, no lançamento e consumo da canção. Duas
das gravações examinadas, as dos Cds do BR6 (2003) e
do Garrafieira (2004), não aparecem na lista de Sérgio
porque foram feitas após a edição do seu livro. Garrafieira e BR6 são grupos musicais formados por músicos
cariocas jovens, mas experientes. O Garrafieira nasceu
com a marca de ser predominantemente instrumental e
o BR6 exclusivamente vocal. Os integrantes do BR6 contam que o grupo nasceu sob a inspiração do conjunto
vocal americano Take 6.
O cantor Jair Rodrigues incluiu O morro não tem vez como
faixa do Lp O samba como ele é; Elis Regina incluiu-a no
pot-pourri final do Lp No fino da bossa – ao vivo – vol.1
(Agostinho dos Santos canta O morro de Tom Jobim e Billy
Blanco de 1955 [MARCONDES, 1977] na mesma faixa);
Antonio Carlos Jobim estreou como cantor na faixa Favela incluída no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos
Jobim, com Nelson Riddle e sua orquestra; o próprio compositor criou para Favela belo solo de piano no Lp Antonio
Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays, gravado e
distribuído nos Estados Unidos e reeditado no Brasil pela
Elenco com o título de Antonio Carlos Jobim; no Cd BR6
o samba aparece como um dos vocais do grupo; no Cd
Garrafieira ele surge na voz de Mariana Bernardes.
A letra do samba é um dos aspetos importantes da análise:
O morro não tem vez
e o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar
Morro pede passagem
Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
É um é dois é três é cem é mil a batucar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar
6 - O poeta autor da letra
A letra do samba é o elemento que, através da voz dos
artistas, permanece inalterado em todos os registros. O
autor da letra de O morro não tem vez, o poeta Vinícius de
Moraes, não se envolveu com a canção popular brasileira
da mesma maneira que Tom Jobim. Envolveu-se também
intensamente, mas atuou de forma diferente. A peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinícius, manifesta de forma
explícita a defesa cultural dos valores das comunidades
do Rio de Janeiro. A associação da etnia às favelas e ao
samba permanece ainda hoje no nosso imaginário de
modo muito semelhante ao que ele concebeu.
A criação e a produção de Orfeu da Conceição, encenada
por atores negros, marcaram um episódio notável na biografia de Vinicius. O próprio poeta descreveu como nasceu
a ideia da peça, quando se sentiu “particularmente impregnado pelo espírito da raça”,8 quando guiava um amigo, o
escritor americano Waldo Frank, em visita à favela da Praia
do Pinto.9 Os ritos de macumbas nas favelas, assistidos por
ele, tinham algo a ver com a Grécia clássica. Sua intenção
foi então prestar uma “homenagem ao negro brasileiro”. O
texto foi entendido como uma elevação dos dramas da população negra do Rio de Janeiro à condição de “universalidade”. Além de uma carreira teatral de sucesso, tornou-se
argumento da produção cinematográfica francesa L´Orfée
nègre, filme premiadíssimo de Marcel Camus lançado no
Brasil com o título de Orfeu do Carnaval.10 A montagem
da peça reuniu os nomes dos artistas mais importantes
na época, como Oscar Niemeyer para a cenografia e Tom
Jobim para a música. A universalidade do drama foi enfatizada pelo teatrólogo Guilherme Figueiredo no programa
da peça, que associa Orfeu, o músico grego, ao carioca da
Conceição, o músico do morro.
7 - A canção transfigurada
O morro não tem vez não faz parte do Lp Músicas
do Orfeu da Conceição,11 mas tem a mesma fonte
de inspiração, apesar de ter surgido bem depois.
A primeira gravação foi feita em 1963, na voz de Jair Rodrigues, paulista do interior que chegou a São Paulo durante
a década de 1950. O cantor ganhou fama nos anos 60, no
93
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
apogeu da Bossa Nova e seu maior sucesso, Deixa isto pra
lá, lançado em 1964, é considerado o primeiro rap brasileiro. O morro não tem vez é faixa do Lp O samba como ele
é,12 ao lado de O que se leva desta vida de Pedro Caetano,
Meu fraco é mulher de Heitor de Barros e Conde e Feio não
é bonito de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Lyra. O morro
não tem vez de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é a oitava
faixa. O arranjo desta gravação é, dentre os comentados, o
único que não chama a atenção para a harmonia. Lembra
os arranjos estilizados dos programas de auditório das Rádios, com vocal feminino e naipe de metais. A introdução
com cavaquinho pretende mostrar que a origem do samba
está nos morros cariocas e continua na Zona Norte da cidade. Não há cavaquinho na Bossa Nova.
No registro de Jairo SEVERIANO e Zuza HOMEM DE
MELLO (1998, v.2, p.70) o sucesso de Jair Rodrigues está
listado no mesmo capítulo em que estão resenhados os
mais famosos títulos criados por Tom Jobim e Vinicius de
Moraes: Garota de Ipanema, Samba do avião, Só danço
samba. O título do Lp O samba como ele é reivindica autenticidade (o samba como ele realmente é), e contém repertório constituído basicamente de canções compostas
por compositores não originários da Zona Sul do Rio de
Janeiro, sem nenhuma semelhança com os sambas lentos e intimistas. A maioria dos compositores que criaram
os sambas lentos da Bossa Nova morava na Zona Sul da
cidade ou circulava por ela. Tom Jobim, o compositor de
maior prestígio, sempre habitou a Zona Sul. Jair Rodrigues e os compositores listados no seu Lp certamente não
faziam parte deste grupo.
A sua participação no programa O fino da bossa, proporcionou-lhe um público mais amplo. A dupla Jair/Elis gravou inicialmente o Lp Dois na Bossa, cujo sucesso resultou
na criação do programa, estreado em maio de 1965 com
grande e duradouro sucesso. Do programa surgiram três
Lps intitulados No fino da bossa e comercializados até
hoje. Em 2000, Jair voltou a reviver o clima extrovertido
das gravações de 1965 e apresentou O morro não tem vez
em show para reverenciar o Lp Dois na bossa.
O pot-pourri 13 final de No fino da bossa - ao vivo – vol.1,
cantado por Elis Regina, Elza Soares, Lucio Alves e Agostinho dos Santos, foi gravado em 30/11/1965 e tem o “morro” como tema. A faixa reúne, além de O morro não tem
vez, Despedida da Mangueira de Benedito Lacerda e Aldo
Cabral, Zelão de Sérgio Ricardo e O morro de Tom Jobim e
Billy Blanco. O samba-canção O morro, gêmeo musical de
O morro não tem vez, é anterior e foi criado por Tom Jobim
para a Sinfonia do Rio de Janeiro.14 É menos conhecido,
mas faz também a defesa dos “valores do morro” não reconhecidos pelo “asfalto”. Está presente no pot-pourri pela
voz de Agostinho dos Santos, que se apresentou, junto com
os demais, como convidado do programa O fino da bossa,
da TV Record, liderado por Elis Regina e Jair Rodrigues, em
parceria. O ambiente da gravação é de festa e alegria eufórica e não de protesto. A expressão vocal de Elis é cheia
de bossa (o mote do programa), com trêmulos e outros
recursos vocais, que por vezes soam exagerados ou inade-
94
quados. Contudo o conjunto oficial do programa, o Zimbo
Trio,15 saiu de cena substituído por um acompanhamento
ao violão, o qual lembra o clima intimista da Bossa Nova,
criando contrastes quando a euforia toma conta do grupo,
mantendo o caráter suave, melancólico e, com a voz de
Agostinho dos Santos, bastante lento em O morro.
Elis Regina (1945-1982) mantém-se ainda hoje como o
modelo mais almejado de cantora brasileira. Sua carreira
artística é muito conhecida e muito difundida. Durante
o período em que atuou no Fino da Bossa na TV Record
predominou, na sua interpretação, o estilo extrovertido
de cantar, com energia em excesso e muita movimentação de palco. O Zimbo Trio, que a acompanhou durante
vários programas, também não se caracterizava por um
estilo intimista ou jazzístico e se expressava no palco
com muita intensidade, sem preocupação com sutilezas
de dinâmica. Dez anos mais tarde, em Los Angeles, Elis
gravou com Tom Jobim um dos discos mais famosos e
reverenciados da MPB: o Elis e Tom (1974), tornado um
ícone da Bossa Nova, por sua sonoridade contida, sutil
e delicada em todas as faixas. O cuidado da produção,
que transparece em todas as músicas, marca ainda mais
o contraste entre o clima expansivo do programa ao vivo
da TV Record e o disco de 1974.
No pot-pourri do Fino da Bossa, o tema do morro não parece ter sido escolhido como expressão de luta em defesa
dos grupos sociais, dos moradores de favelas submetidos
a condições de vida desfavoráveis. No entanto, reafirma o
gosto pelo samba e mostra a sua força de comunicação na
televisão, para um público mais diversificado e numeroso,
não restrito à classe média moradora da Zona Sul do Rio.
O samba de Elis, extrovertido, alegre e com muita bossa,
não se assemelha ao ambiente das escolas de samba e dos
compositores tradicionais dos morros do Rio. Sua atuação
no auditório da Record não nos faz nem de longe pensar
com indignação na situação dos favelados do morro.
O Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, com a
voz de Tom Jobim e arranjos de Nelson Riddle,16 foi gravado
e lançado nos Estados Unidos pela companhia Warner, tendo como artista de capa o compositor brasileiro. Tom assinou contrato com a gravadora e Nelson Riddle foi indicado
para escrever os arranjos. Foi uma escolha ambiciosa, pois
Riddle era um dos mais conhecidos arranjadores americanos, responsável pelos discos dos cantores e cantoras mais
famosos dos Estados Unidos e do mundo. O arranjador
era também conhecido no Brasil, em parte pelos fãs que
compravam discos de Sinatra e de Nat King Cole. O morro
não tem vez, cujo título foi traduzido para Favela, fez parte
do repertório selecionado para o disco. A tradução literal
para o inglês – Somewhere in the hills – está registrada
na Ipanema Music Co, sociedade pertencente ao produtor
americano Ray Gilbert e é mencionada por Sérgio CABRAL
(1997, p.245). Mas o título escolhido para os dois discos
produzidos nos Estados Unidos, Antonio Carlos Jobim, the
composer of Desafinado plays e The Wonderful World of
Antonio Carlos Jobim, foi mesmo Favela, abandonando-se
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
Somewhere in the hills. É fácil entender que uma tradução
literal poderia se afastar muito da ideia inicial de morro
como sinônimo de favela e não como uma colina genérica,
que em certas regiões é local de moradias de privilegiados
e não de necessitados. O trabalho de Riddle foi recebido
com restrições, mas se houve falhas não foi por desmerecer
o “samba de morro”, que jamais surgiria ali, mas por desentendimentos quanto à estética bossanovista que deveria
predominar. Tom Jobim teria se queixado, mas concordou
em cantar, deixando notar um certo constrangimento.
Talvez a canção brasileira, imaginada por Riddle, tivesse
semelhança com os modelos americanos de gravação dos
grandes astros ou das canções românticas feitas para dançar. O que se ouve em Favela, no Lp The Wonderful World
of Antonio Carlos Jobim, é um samba acompanhado por big
band, escapando tanto da Bossa Nova quanto do “samba
de morro”. Só que escapar do “samba de morro” não parece
ter contrariado ninguém.
O Lp Antonio Carlos Jobim da Elenco, instrumental, com
solo de piano de Tom Jobim e arranjos de Claus Ogerman,17 foi lançado em reedição no Brasil em 1964, um
ano depois do elogiado lançamento da matriz americana
com o título de Antonio Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays. Um dos objetivos da reedição foi sem dúvida a sofisticação e a qualidade da produção, apreciada
pelo próprio compositor. A sua insatisfação com Nelson
Riddle18 e a sua satisfação com o trabalho de Claus Ogerman revelam a face mais sofisticada da música brasileira,
a face que, para muitos, a aproxima do jazz.
Tanto que, o resultado do Lp, também distante do “samba
de morro”, deixou a todos entusiasmados com o trabalho do arranjador e com o estilo instrumental jazzístico
que predomina no álbum. O próprio produtor, Aloysio de
Oliveria, assinou a contracapa brasileira e Claus Ogerman
tornou-se arranjador muito prestigiado por aqui, requisitado tanto por Tom Jobim como por João Gilberto.19
A letra brasileira de O morro não tem vez desapareceu na
gravação e com ela sumiram as reivindicações. O estilo instrumental desautoriza pensar em qualquer conexão possível com os versos do samba. O título Favela permanece nos
créditos, mas soa exótico e distante.Talvez o compromisso
político de Tom Jobim com a luta contra as partilhas sociais injustas não fosse tão intensa quanto o do parceiro
Vinícius, embora as relações profissionais e de amizade
entre os dois o fossem. Considerando-se este dado, não
teria sido dramático o abandono da letra na concepção do
arranjo e da gravação americana de Claus Ogerman.
8 - Os elementos de tensão não evidentes
A ideia da “influência do jazz” surge quase sempre associada
a um estilo harmônico determinado. Nas duas gravações de
Favela, apresentadas com arranjos de Claus Ogerman e de
Nelson Riddle, a harmonização mais simples é a de Claus
Ogerman, que por ser instrumental, parece ao contrário bem
mais jazzística do que a de Nelson Riddle, mais orquestral e
harmonicamente mais elaborada. Nela se fundem o estilo
jazzístico e a qualidade musical. A crítica muito elogiosa na
review de Pete Welding, o autor do texto disponível na contracapa de Antonio Carlos Jobim da Elenco, fala em “bossa
nova movement”. Pete WELDING (1963) afirma que
Este é o álbum mais ‘curiosamente refrescante’. Curioso porque,
durante todo o disco, Tom Jobim se apresenta como solista no estilo de one-finger piano. Refrescante porque é um dos álbuns mais
cheios de lirismo, mais encantadores e deliciosos que resultaram
da onda da bossa nova, a qual nos tem inundado no último ano.20
O texto elogia apenas o Tom Jobim melodista e instrumentista. O songwriter Tom Jobim e o letrista Vinícius foram
deixados de lado. One-finger piano é um elogio porque se
refere ao despojamento da execução, cuja qualidade está no
puro “feeling”. Aloysio de Oliveira escreveu, na contracapa,
um breve texto de apresentação para dar espaço à crítica da
revista Downbeat,21 inserida no original e na íntegra.
A harmonização que se ouve nas gravações é um dos elementos que geram tensão, principalmente considerandose o proselitismo da letra. Esta afirmação não se aplica à
gravação de Jair Rodrigues em que o elemento principal
é a letra. Não há nenhuma menção ao jazz ou à Bossa
Nova. O morro é o foco.
A harmonia utilizada nos discos Antonio Carlos Jobim da
Elenco e No fino da bossa com Elis Regina ainda mantém
a relação diatônica com a melodia como predominante,
enquanto que nas outras gravações predominam a reelaboração e a rearmonização. A progressão harmônica
Am7 Em7 em modo menor natural, que harmoniza o início do samba no Lp Antonio Carlos Jobim, não é comum
nas canções brasileiras gravadas na mesma época ou em
épocas anteriores, mas tampouco contém as dissonâncias
acrescentadas nas rearmonizações. Se examinarmos Favela, de Roberto Martins e Valdemar Silva, Ave Maria no
morro de Herivelto Martins e Barracão de Luis Antonio
e Oldemar Magalhães veremos que o estilo harmônico é
outro. A utilização do modo menor natural, que proporciona à melodia um sabor modal através do uso do V grau
menor Em7, não fazia parte do vocabulário de acordes da
maioria dos sambas. A harmonia inicial do pot-pourri de
No fino da bossa acrescenta o acorde E7 produzindo dissonância de nona aumentada com a nota Sol da melodia.
A harmonização, aparentemente despretensiosa já proporciona, entretanto, um ambiente jazzístico na progressão do
final da segunda parte F7(#9) E7(#9) D7(#9), com a cadência em D7(#9), IV grau do modo menor melódico com nota
estranha ao acorde. A progressão final descrita aparece em
todas as gravações, completamente incorporada à melodia.
Os arranjos posteriores seguiram alterando a harmonia. No
disco The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim a faixa
Favela foi rearmonizada e sofisticou-se ainda mais. A harmonia inicial abandonou o modo menor natural, preferindo
A7 Bb7 A7 Bb7, a mesma progressão escolhida pelo conjunto BR6. O grupo Garrafieira preferiu utilizar a harmonização A7 G7 A7 G7 A7 G7 A7(#9) Dm7 G7(13) C#m7 C7 F6
E7 Am7 Em7 Am7. É esta a harmonização escolhida para
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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
a transcrição apresentada na coleção de Almir Chediak
Tom Jobim (JOBIM, [1990], v.1, p.89). Em todos os padrões
descritos, a dominante E7 é pouco efetiva, porque a sensível Sol # não é usada na melodia. O estilo predominante
nas harmonizações tende a causar a impressão de que a
harmonização “esqueceu” a retórica da letra, que profetiza
que ”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”.
O contraste entre o estilo harmônico e a letra é evidente.
O arranjo ao vivo para Elis Regina No fino da bossa parece
ainda acreditar que o canto do morro vai descer para o
asfalto. Já no arranjo de Nelson Riddle para The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim não há nenhum tamborim e a percussão e os metais soam pesadamente sem nenhuma conexão com a letra. As cordas não lembram nem
o samba nem o balanço da bossa. Teria a linha melódica
predominado sobre a letra e absorvido toda a atenção
do arranjador americano? Parece ser um divórcio que se
acentua ainda mais na gravação do Lp Antonio Carlos Jobim ao piano. O solo de piano se ambienta em um espaço
no qual a “comunidade” do morro, acompanhada por mil
tamborins, jamais se sentiria em casa. O feeling é, sem
dúvida, mais adequado aos clubes dançantes do que à
paisagem das favelas. Há certamente quem possa pensar
que a favela ganha “universalidade” quando inspira música capaz de sensibilizar pessoas tão distantes quanto um
crítico exigente da revista Downbeat.
O morro cantado pelo Garrafieira e pelo BR6 não causa
espanto nem é desconcertante. Seguem o modelo de valorização da harmonia e das notas estranhas aos acordes.
Embora haja semelhança quanto à valorização da harmonia e quanto ao gosto por acordes alterados, são gravações que reproduzem climas bastante distintos,
BR6 cultiva o gosto pelas alterações de maneira semelhante
à que o grupo Os Cariocas o fez nos anos 50 e 60. A tradição
dos grupos vocais na canção popular brasileira é tributária
dos grupos americanos e de Os Cariocas. São as duas principais referências na elaboração dos arranjos vocais, mesmo
quando se percebe o balanço da bossa aflorando na voz
do solista Eduardo Braga e a batucada ilustrando no início
da faixa a origem do samba. O arranjo de André Protásio
mantém a tendência de valorização da harmonização com
acordes alterados, desenvolvida pelos Cariocas e retomada
pelo Garganta Profunda, grupo de grande prestígio nas últimas décadas, criado pelo regente Marcos Leite.
Os arranjos vocais têm destinação prévia específica. São
direcionados desde a concepção para o grupo que vai cantá-los, de modo que o tipo de conjunto funciona como um
dado previamente conhecido. Talvez por essa razão sejam
menos autorais e mais instáveis ainda que os orquestrais.
Garrafieira se caracteriza por cultivar o samba urbano, sobretudo na forma instrumental, porém, apesar disso, convocou a cavaquinista e vocalista Mariana Bernardes para
o solo vocal de O morro não tem vez. O Cd, que valoriza
os instrumentistas, não dispensou a presença da letra de
Vinícius de Moraes na faixa gravada. De todas as gravações
já mencionadas, esta é a mais movimentada e animada,
96
sendo tocada em andamento mais rápido que as demais
e tendo o swing como elemento importante. O balanço
apreciado na época em que se gravou No fino da bossa fez
um longo percurso até o swing proposto pelo Garrafieira.
Nas duas gravações, não só os arranjos são bem distintos,
como a maneira de tocá-los também. A harmonia, bastante valorizada pelo Garrafieira, e o andamento mais rápido,
imprimido pelos instrumentistas do grupo, garantem para
o samba a possibilidade de ser ouvido de outra maneira.
Do ponto de vista dos ouvintes parece aceitável que
uma harmonia bastante sofisticada possa sustentar poesia tão cheia de proselitismo. O gosto pela harmonia
sofisticada está bastante difundido e permite, sem sobressaltos ou contrariedades, o seu casamento com a
defesa dos ideais sociais.
9 - Considerações sobre uma prática
naturalizada
A naturalização das categorias musicais ocorre como um
processo constante. Algumas são construídas durante
anos, outras durante décadas, sancionadas pelas estruturas políticas, culturais ou educacionais.
A letra é o elemento mais estável da canção. Sob este
ponto de vista, é o componente mais importante, porque
a identifica e restringe as possibilidades de adaptação ou
modificação dos versos.
No entanto, é preciso assinalar que a sua conexão plena com a melodia e a harmonia pode ser questionada.
Sabemos que o choro Carinhoso de Pixinguinha, criado
em 1917 como peça instrumental, recebeu apenas em
1936 a letra de João de Barro que conhecemos.22 Muitos
compositores oferecem suas músicas para poetas colocarem letras ou, em movimento oposto, compõem melodias para letras já existentes. Podemos fazer uma longa
lista de situações semelhantes ou contrastantes com
esta. Algumas canções estrangeiras tornam-se grandes
sucessos e, depois de receberem a versão em português,
são apropriadas pelo público como brasileiras. As versões em português são às vezes as únicas gravações
conhecidas pelo público. A cantora Marisa Monte ficou famosa com o pop Bem que se quis do italiano Pino
Daniele com versão de Nelson Motta, tocado na trilha
sonora da novela da Rede Globo O salvador da pátria de
1989. O original italiano E po che fà pouco se conhece.
O que chama a atenção não são as situações eventuais,
mas o fato de que, mesmo dispondo desta informação,
mantemos como real a ideia de que a canção possui uma
unidade orgânica de pertencimento recíproco: aquela letra pertence àquela canção e aquela canção àquela letra.
Na prática ocorre que a canção é criada entre percalços
reais, que apagamos da memória em favor da ideia de
uma unidade orgânica natural. Acionada, a ideia de organicidade ganha existência e age sobre a canção dando
vida a um produto “pronto”.
MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
A canção – unidade de melodia e letra – é resultado de
naturalização tanto quanto o é o arranjo musical, cujas
definições disponíveis ainda são insuficientes para dar
conta de suas especificidades e para caracterizá-lo como
prática distinta da criação musical e da composição.
Os arranjos musicais são de fato composições porque
são criações, que, escritas ou não, corporificam o momento da produção musical. O ponto de vista que considera que o arranjador é um técnico coloca em risco
a figura do artista criador, personagem social muito
valorizado. Os produtos dos arranjadores ainda não se
definiram como obras autorais porque só interessam
aos instrumentistas que os executam, sendo sua função
restrita a esse momento. São tratados como trabalho
derivado e não como obras autorais autônomas, pois a
dimensão autoral se esvai após a performance.
No momento da produção de um disco, o artista que se
anuncia é o cantor e não o arranjador. É o cantor que dá
nome ao disco, associado ao compositor das canções, a
eles se atribui função autoral. Eles são os artistas e não o
arranjador, transformado num colaborador a soldo.
O arranjo interfere na produção da canção como obra de
criação e tem força de significação para produzir sentido
e modificar a própria canção. No entanto, se aceita com
tranquilidade a sua condição de categoria técnica e de
trabalho derivado, naturalização que afasta a possibilidade de inconformismo ou de luta efetiva pela condição de
obra artística e por um lugar no âmbito da arte musical.
Nas gravações de O morro não tem vez os arranjos foram
determinantes e interferem significativamente no sentido
que se produz. A ênfase reiterada dos arranjos nas notas
estranhas à harmonia diatônica não fez com que se deixasse a canção de lado, mas antes parece ter estimulado
as regravações, que se renovam desde 1970. É a melhor
comprovação de que a existência de contrastes e tensões
entre elementos de uma mesma peça pode não causar
estranheza nem se transformar em fator de rejeição. É
possível a aceitação de grandes contrastes no perfil dos
artistas de capa e na concepção e no estilo dos arranjos.
Também são bem absorvidas as estratégias de gravação,
divulgação e consumo, elementos que certamente determinam o tipo de produto que se quer distribuir.
Não há do que se queixar. O samba continua sendo
gravado com sucesso e continua seduzindo músicos e
ouvintes que desprezam todas as contradições e incongruências. Ele permite que os arranjadores ajam como
compositores de fato.
Nem o próprio compositor, Tom Jobim, parece ter reclamado das transformações. Ao contrário, deve ter
apreciado as harmonizações, pois a revisão dos songbooks, que contém rearmonizações da canção, passou,
é claro, pelas suas mãos. A preocupação com a “preservação de valores autenticamente brasileiros”, com a
“música de raiz” e com a “identidade do samba” ainda
não abalou o gosto por O morro não tem vez, nem sentenciou sua rejeição.
Se for escrita uma história da recepção das suas gravações talvez se revele mais claramente como estas lutas
de representação se mantêm apaziguadas, pelo menos o
suficiente para não perturbarem o prazer dos ouvintes.
Referências
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CALDEIRA, Jorge (org). A história contada por quem viu. São Paulo: Mameluco, 2008.
CASTELLO, José. O poeta da paixão. Rio: Companhia das Letras, 1999.
JOBIM, Tom. Song book Tom Jobim. Org. Almir Chediak. S. Paulo: Lumiar, [1990]. 3 v.
MARCONDES, M.(org). Enciclopédia de Música Brasileira. S.Paulo: Arteditora, 1977. 2v.
PINO, Julio C. Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro. Latin American Research Review, Vol. 32, No. 3 pp. 111-122.
Pittsburgh: The Latin American Studies Association, 1997.
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. 2. ed. S. Paulo: Editora 34, 1998, 2 v.
WELDING, Pete. Antonio Carlos Jobim. Texto na contracapa do disco. Elenco ME-9, 1963.
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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.
Discografia
BR6. BR6. Biscoito Fino, 2003.
GARRAFIEIRA. Garrafieira. Biscoito Fino, 2004.
JOBIM, Antonio Carlos. Antonio Carlos Jobim. Elenco ME-9, 1963.
_____. Antonio Carlos Jobim, the composer of Desafinado plays. Verve, 1963.
_____. The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Warner WS 1611, [1965].
_____. Antonio Carlos Jobim com Nelson Riddle e sua orquestra. Elenco MEV06, 1965.
REGINA, Elis. No fino da bossa - ao vivo – vol.1. Cd- Velas BR - 11-V030.V1, 1994.
RODRIGUES, Jair. O samba como ele é. Lp Philips (P 632.162 L), 1963.
_____. 500 anos de folia – vol.2. Trama T500/196-2. Cd, 2000.
Notas
1 O Theatro Municipal do Rio de Janeiro informa no seu site que, no seu concerto de estreia, a Orquestra Sinfônica do Theatro teve como solista o
tenor italiano Tito Schipa, sob a regência de Francisco Braga. O compromisso de temporadas de óperas, concertos e ballets que incluem artistas
internacionais se formou desde o momento da inauguração do Theatro.
2 Paulo da Portela é personagem principal nas histórias do samba. Ele compõe verbete da Enciclopédia de Música Brasileira onde se descreve com
muitas cores a sua participação nos desfiles carnavalescos e nas rodas de samba do subúrbio de Osvaldo Cruz.
3 Interessante a introdução e a reportagem sobre a revolta da vacina no livro organizado por Jorge CALDEIRA (2008, p.447).
4 A favela da Praia do Pinto teria inspirado Vinícius de Moraes a criar a peça Orfeu da Conceição. (c.f. nota 8)
5 Informações completas no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que idealizou e executa o projeto favela-bairro. (www.rio.rj.gov.br/
habitat/favela_bairro.htm)
6 No site do Grupo Cultural aparecem os dísticos “Música para combater a violência” e “Arte para transformar a realidade”.
7 As datas estão todas indicadas no livro de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello.
8 A declaração aparece no programa da montagem de estreia da peça.
9 José CASTELLO (1999, p.125), seu biógrafo, descreve também a visita à favela.
10 O cineasta francês Marcel Camus transpôs Orfeu da Conceição para o cinema com o título de L’Orphé Nègre e teve uma premiação triunfante
em 1959, a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro, representando a França. Foi uma excelente divulgação para a
música de Tom e Vinícius e para a canção popular brasileira.
11 Long Play 10”, Odeon MODB 3056, lançado em 1956.
12 LP Philips P 632.162 L.
13 Pot-pourri é sinônimo de medley, termo mais usado hoje.
14 1954 é a data indicada por Sérgio Cabral para o disco Sinfonia do Rio de Janeiro, produzido pela gravadora Continental. (1997, p.514)
15 O Zimbo Trio é um conjunto instrumental brasileiro surgido em 1964 e formado originalmente por Amilton Godoy ao piano, Luís Chaves no
contrabaixo e Rubinho Barsotti na bateria.
16 Nelson Smock Riddle, Jr. (1921 – 1985) foi um conhecido bandleader americano, arranjador e orquestrador cuja carreira se expandiu a partir
do final dos anos 40. Ele produziu arranjos para vários cantores como Frank Sinatra, Dean Martin, Nat King Cole, Judy Garland, Peggy Lee, Ella
Fitzgerald, entre outros.
17 Claus Ogerman (1930 - ) é um músico de origem alemã, nascido na Prússia (hoje parte da Polônia). Arranjador, regente e compositor, trabalhou
na Alemanha, depois se fixou nos Estados Unidos. Tornou-se muito conhecido no meio musical brasileiro ao compor arranjos para discos de Tom
Jobim e de João Gilberto.
18 Sérgio Cabral conta que a expectativa de Tom Jobim foi frustrada. Ele não se entendeu musicalmente com o arranjador americano. (1997, p.242)
19 Ele fez os arranjos do LP Amoroso de João Gilberto.
20 “As the Schwepps man woud say, this is a most “curiosly refreshing” album. Curious, for during the entire length of the disc, Jobim, who is the
featured soloist, plays what amounts to one-finger piano. Refreshing, because it is one of the loveliest and most deliciously lyrical albums to
result from the bossa nova wave with which we’ve been inundated last year.”
21 “O texto habitual de contracapa que aqui deixa de figurar, é substituído neste caso pela transcrição da crítica de “DOWN BEAT”, “a mais
conceituada revista musical dos Estados Unidos, que considerou este disco um dos melhores da temporada, e que nós temos o privilégio de
oferecer a você.”
22 Severiano (1998, v.1, p.153-154) conta que o próprio Pixinguinha informou a data de 1917 como sendo o ano da composição. A peça instrumental
teve muitas gravações, contudo após receber a letra em 1936 o número de gravações cresceu muito, sendo a primeira a de Orlando Silva em 1937.
Silvio Augusto Merhy é Bacharel em Direito pela UFRJ (1968), Bacharel em Piano pela UFRJ (1968), Mestre em
Música pela UFRJ (1995) e Doutor em História Social pela UFRJ (2001). Atualmente, é Professor Associado II na
UNIRIO. Atua no ensino de música principalmente com Harmonia de Teclado, Transcrição da Canção e História da
Música Popular. Possui proficiência em russo, alemão, francês, inglês, espanhol e noções de grego. Ainda na UNIRIO,
foi Diretor do Instituto Villa-Lobos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música.
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Chovendo na roseira de Tom Jobim:
uma abordagem schenkeriana
Carlos de Lemos Almada (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)
[email protected]
Resumo: O presente artigo examina a canção Chovendo na roseira, de Antônio Carlos Jobim, focando as relações estruturais aprofundadas existentes entre melodia, harmonia e forma. Isso é realizado através do método da análise schenkeriana, que recebe aqui algumas adaptações, de maneira a se ajustar apropriadamente às características dessa peça
específica. Como resultado do processo analítico observa-se uma integração consistente e hierarquizada entre diversos
fenômenos melódico-harmônicos presentes na superfície musical e em camadas estruturais internas, revelando relações
inusitadas para uma peça de música popular. É especificamente marcante a onipresença do intervalo de quarta justa,
infiltrado nos mais diversos aspectos da construção musical, em todos os níveis estruturais observados.
Palavras-chave: Chovendo na roseira; Tom Jobim; análise schenkeriana.
Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach
Abstract: The present article examines the song Chovendo na roseira by Brazilian composer Antônio Carlos Jobim with
focus on the deep structural relationships that exist among melody, harmony, and form. This was accomplished by using procedures of the Schenkerian analysis, here adapted for better adjustment to the characteristics of this specific
piece. From the analytical process, it is possible to observe a consistent and hierarchical integration among the several
melodic-harmonic phenomena present on the musical surface and some of the internal layers, which reveal relationships
that are unusual in a popular music piece. It is especially remarkable the ubiquity of the interval of the perfect fourth,
which is embedded in several of the aspects of musical construction, in all structural levels considered.
Keywords: Chovendo na roseira; Tom Jobim; Schenkerian analysis.
Introdução
A harmonia da bossa nova, em comparação com a de outros
gêneros da música popular brasileira (em especial, o samba),
é frequentemente qualificada como “sofisticada”, o que é
em geral atribuído a dois tipos de preferências construtivas:
pelo acréscimo de tensões nos acordes (nonas, décimas primeiras e décimas terceiras, por vezes também alteradas) e
pela escolha de relações remotas entre estes e o centro tonal
de referência (em especial, os acordes pertencentes à classe
dos chamados empréstimos modais).1
Inúmeras canções de Antônio Carlos Jobim, reconhecidamente o principal compositor do gênero, formam um
perfeito exemplo desse tipo de tratamento harmônico,
algo que não traz por si só qualquer novidade. O que
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
mais impressiona em algumas dessas peças, entretanto, é a existência de relações melódico-harmônicas
“subterrâneas”, ancoradas em camadas estruturais
mais profundas, o que recebe ainda pouca atenção no
âmbito acadêmico.2
O presente artigo pretende examinar uma das mais peculiares estruturas melódico-harmônicas dentro da música
popular brasileira: aquela que dá corpo à canção jobiniana Chovendo na roseira. Para tal, a análise schenkeriana
apresentou-se como o mais adequado método de abordagem, o qual, no entanto, exigiu certas adaptações, tendo
em vista algumas características da referida canção (tais
adaptações serão explicitadas no decorrer do estudo).
Recebido em: 27/11/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
cendente (Urlinie), seja ela 8ˆ - 7ˆ - 6ˆ - 5ˆ - 4ˆ - 3ˆ - 2ˆ - 1ˆ
(no caso da opção pela centricidade em Lá) ou
5ˆ - 4ˆ - 3ˆ - 2ˆ - 1ˆ (na alternativa Ré maior). Observa-se,
ao contrário, uma prolongação da nota estrutural
Lá por quase toda a seção, seguindo-se de um movimento ascendente em direção a Dó#, através da
nota de passagem Si. Deve-se atentar para o fato
de que o Dó# encontra-se associado não ao acorde
inicial (I grau em Lá mixolídio ou V em Ré maior),
o que implicaria uma simples prolongação harmônica da fundamental à terça, mas a um acorde de
qualidade de sétima dominante sobre a fundamental
Fá#, como sua quinta.8 Como se observa no Ex.1-b, a
tal progressão melódica de terça ascendente Lá-Dó#
corresponde um movimento espelhado na linha do
baixo, descrevendo também um intervalo de terça,
porém descendente (Lá-Fá#), em cujo âmbito a nota
Sol$, embora não presente na partitura, é nitidamente implícita. O Ex.2 resume sucintamente toda a seção A, revelando o interessante esquema de simetria
espelhada, cujo eixo é a própria Kopfnote Lá.
Cristóbal Gallardo, em um artigo online no qual examina o emprego da análise schenkeriana em peças do repertório de música popular (GALLARDO, 2000), comenta
sobre a necessidade de que o próprio objeto de estudo
forneça condições propícias que justifiquem tal opção
metodológica.3 Segundo o autor, essas condições devem
corresponder, em diferentes medidas, às assunções mais
fundamentais da teoria elaborada por Schenker, das quais
a mais importante e determinante para a justificação do
emprego do método é que a peça a ser analisada apresente uma linha melódica composta por notas que se subordinem a outras, e que isso possa se observar em relações
recursivas, em diferentes níveis estruturais.4
É precisamente tal aspecto que justifica a presente abordagem. Como será aqui demonstrado, a canção Chovendo
na roseira apresenta um notável planejamento arquitetônico em várias camadas de significação musical, mutuamente conectadas em nítidas relações de hierarquia, a
partir de sua própria superfície.
Chovendo na roseira possui algumas características inusitadas dentro do universo bossanovista, como é o caso da
métrica ternária5 e de sua grande extensão (62 compassos). É possível subdividí-la em três seções: A (c.1-22); B
(c.23-36); C (c.37-51), após a qual segue-se um da capo
(c.1-13) e uma coda (c.52-62). É também interessante a
organização harmônica da canção, que sugere (ao menos
no plano superficial) dois pólos modais (nas seções A e C)
intercalados por um trecho firmemente tonal (seção B).6
•
O Ex.1 apresenta a seção A da canção e três sucessivas
reduções analíticas.
Sobre a análise do trecho é possível fazer as seguintes observações, de acordo com as diferentes camadas
consideradas:
•
•
•
100
Uma evidente centricidade em Lá e a presença constante (na harmonia e na melodia) da altura Sol, a
despeito do Sol# expresso na armadura de clave da
partitura, sugerem uma organização harmônica modal (Lá mixolídio) para o trecho. Uma interpretação
alternativa seria considerar toda a seção A como
uma prolongação do acorde dominante de Ré maior.
Em vista dos desdobramentos futuros, opto por deixar temporariamente a questão em aberto.
Como se percebe no Ex.1-a, tensões (nonas) e outros acréscimos aos acordes (sextas e quartas, estas em substituição a terças), idiomáticos na bossa
nova (assim como na valsa-jazz), apresentam-se
aqui como elementos harmônicos estáveis (i.e., sem
necessidade de resolução), incorporadas às tríades
diatônicas tradicionais.7
A primeira redução (Ex.1-b) evidencia a importância do Lá inicial como nota principal (Kopfnote, na
terminologia schenkeriana). No entanto, ao contrário
do que se observa em uma análise schenkeriana tradicional, tal nota não inicia uma linha diatônica des-
É consideravelmente significativa para a estruturação global da canção a presença do intervalo de
quarta justa descendente – justamente o motivo melódico que inicia a peça – entre as notas Lá e Mi (c.12) e Mi e Si (c.5-6, repetido nos c.9-10). Tal aspecto
da melodia (saliente na própria superfície musical) é
suportado pelo plano harmônico, o que se constata através da proeminência de acordes de qualidade
dominante com quarta suspensa:9 A7(sus4) (alternando com A6 entre os c.1-18) e F#7 (sus4) (em alternância com F#7 entre os c.19-22). No exame das
demais seções a ubiquidade do intervalo de quarta
será ainda mais enfatizada, tanto nos aspectos melódico quanto rítmico.
A análise da seção B (c.23-36) é apresentada no Ex.3,
compondo-se do nível superficial e de duas reduções.
Observações:
•
É fácil perceber no Ex.3-a uma segmentação simétrica dos 14 compassos da seção B em duas metades
(c.23-29 e c.30-36), em um nítido esquema de sequenciação estrita de modelo por intervalo de segunda maior descendente.
•
Chama também a atenção no superfície musical a
onipresença da relação intervalar de quarta justa
ascendente entre as fundamentais dos acordes em
cada metade da seção.
•
Como se observa no Ex.3-b, o motivo melódico principal da canção, o salto de quarta justa descendente
(ver Ex.1-b), é aqui ampliado para quinta (inversão
intervalar da quarta), propagando-se em sequência.
Fica evidente na redução a existência de uma melodia composta, formada por duas linhas escalares
descendentes que, como se constata no Ex.3-c, têm
como objetivo prolongar os acordes principais em
cada uma das duas metades da seção, respectivamente, D7M9 e C7M9.
ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Ex.1 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): a) superfície; b) c) d) três níveis intermediários.
101
ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
•
Sob uma perspectiva estrutural mais ampla, podemos considerar a primeira metade (centrada em Ré)
como hierarquicamente superior à segunda (em Dó).
Isto se deve basicamente a dois fatos: (1) a Kopfnote
Ré consititui-se um objetivo esperado, a partir dos
acontecimentos desenrolados na seção A, tanto no
plano harmônico – a prolongação de A7 – quanto no
melódico – a ascenção Lá-Si-Dó# (ver Ex.2); (2) Dó,
na metade da seção B, funciona, assim, como uma
passagem não-diatônica entre as notas estruturais
Ré e Si, esta como cabeça da seção C (ver Ex.4).
Observações referentes à seção C (Ex.4):
•
A forte semelhança desta linha melódica com aquela
da seção A (comparar especialmente a atuação do
motivo principal, Exs. 1-b e 4-b), bem como a manutenção de um pedal sobre o centro de referência
(neste caso, Si) sugerem para o trecho a função de
reexposição da parte principal, ainda que variada e
transposta por intervalo de segunda maior ascendente. Contudo, tal paralelismo é atenuado por um
fator ao mesmo tempo distintivo e decisivo: uma
linha cromática descendente, de Mi3 a Mi2 (em destaque no Ex.4-b), extraída como voz interna no encadeamento dos acordes.10 De acordo com a presente
análise, é justamente tal linha, associada ao pedal
em Si, que orienta a estrutura harmônica da seção
e, consequentemente, a própria escolha dos acordes.
•
A linha cromática transforma-se, assim, de um
elemento subordinado e relativamente oculto na
superfície musical em fator determinantemente estrutural em níveis mais profundos, desmontando o
paralelismo mais evidente entre os fenômenos musicais das duas seções. A prolongação do Mi (através da escala cromática) rivaliza-se em importância
àquela do Si da linha melódica principal, o que leva
à conclusão de que, ao contrário do que acontece
na seção A, a harmonia prolongada não é a que
inicia o trecho (B7), mas sim a que o finaliza (E7),
como evidencia o Ex.4-c.
•
O Ex.5 resume e agrupa as análises das três seções
(Exs.1, 3 e 4), com o acréscimo da recapitulação da
seção A e o subsequente pulo para a coda (que nada
mais é do que uma prolongação das sonoridades iniciais), apresentando uma estrutura análoga à habitual Ursatz da análise schenkeriana.
Desse esquema podem ser extraídas algumas observações interessantes:
•
A centralidade em Lá é incontestável, o que inviabiliza a alternativa de Ré maior como tonalidade principal da canção.
•
No lugar de uma Urlinie convencional, percebe-se
uma estrutura melódica básica descrevendo um arco
de quarta justa ascendente (em percurso diatônico),
e que retorna ao ponto de partida de maneira quase
cromática, com um apoio intermediário no segundo
grau da escala (na seção C);
•
O intervalo de quarta justa é também evidenciado
como relação proeminente entre os baixos estruturais. O esquema permite considerar o até aqui “enigmático” Fá# da seção A como a dominante secundária do Si que encabeça a seção C (ver a ligadura
prolongacional entre as duas notas no Ex.5), com a
seção B (centrada em Ré) intermediando a resolução.
Um reordenamento dos baixos principais explicita
ainda mais a importância do movimento de quartas
como elemento estrutural na canção (Ex.6);
Conclusões
Este estudo buscou examinar as complexas relações
estruturais presentes na canção Chovendo na roseira.
Para isso tornou-se necessário o emprego dos recursos
da análise schenkeriana que, a despeito das adaptações
efetuadas, em virtude das características específicas da
peça, mostrou-se como a ferramenta ideal para tal investigação no grau de profundidade adequado. É especialmente marcante na análise da canção a presença do
intervalo de quarta justa, nos mais variados aspectos e
níveis estruturais, desde o principal motivo melódico (na
superfície musical) à arquitetura harmônica básica (apresentada pelas relações de baixos primordiais), passando
pela organização formal das seções, pela constituição
de vários acordes (aqueles com quarta substituta e com
nonas acrescentadas) e pelo próprio contorno da – por
analogia – “Urlinie” resultante. É também interessante
constatar que o modalismo (mixolídio) presente nas seções A e C é um fenômeno meramente superficial, sendo,
por assim dizer, neutralizado sob uma perspectiva mais
básica, o que se observa nas relações harmônicas da “Ursatz” da canção (ver Ex.5). Julgo que os resultados obtidos estimulam a aplicação de novas adaptações do método schenkeriano em outras análises futuras de peças de
Antônio Carlos Jobim, principalmente visando investigar
se a extraordinária capacidade de organização musical
em camadas estruturais constatada neste trabalho está
também presente em outras obras do rico e variado repertório desse formidável compositor.
Ex.2 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): plano geral
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Ex.3 – Chovendo na roseira, seção B (c.23-36): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários.
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Ex.4 – Chovendo na roseira, seção C (c.37-51): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Ex.5 – Chovendo na roseira, estrutura primordial
Ex.6 – Chovendo na roseira, reordenamento da sequência dos baixos estruturais
Referências
ALMADA, Carlos de L. Samba de uma nota só: elementos musicais a serviço da expressão poética. In: XIX ENCONTRO
ANUAL DA ANPPOM, 2009. Curitiba. Anais ... Curitiba: UFPR, 2009. 1 CD-ROM (3 p.).
FORTE, Allen. The American popular ballad of golden era., 1924-50. Princeton: Princeton University Press, 1995.
GALLARDO, Cristóbal L. Garcia . Schenkerian analysis and popular music. Transcultural Music Review, nº 5, 2000.
Disponível em: http://www.sibetrans.com/trans/trans5/garcia.htm. Acesso em: 30/10/2009.
GAVA, José E. A linguagem harmônica da bossa nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
GILBERT, Steven E. Gershwin´s art of counterpoint. Musical Quaterly, Nº 70/4, p. 423-56, 1984.
INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM. Disponível em: http://www.jobim.org/jspui/acervo/acervodigital.jsp. Acesso em:
15/5/2009.
JOBIM, Antônio C. Chovendo na roseira. In: Songbook Tom Jobim (vol. 3). Partitura. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p. 32-34.
MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 2002.
PY, Bruno de Oliveira. Estrutura tonal na obra de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana da canção “Sabiá”. 2004.
Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.
Notas
1 Para análises harmônicas de peças bossanovistas ver, por exemplo, GAVA (2002).
2 Para uma análise estrutural de uma canção de Jobim (em parceria com Newton Mendonça) – Samba de Uma Nota Só –, com enfoque especial na
relação entre texto e música, ver ALMADA (2009). Ver também PY (2004), que realiza uma abordagem de Sabiá, outra famosa composição de Jobim,
a partir dos métodos da análise schenkeriana.
3 É também pertinente conhecer o pensamento de Richard Middleton sobre o assunto: “não há razões para que a análise schenkeriana não possa ser
aplicada em canções populares regidas pelo processo funcional tonal” (MIDDLETON, apud PY, 2004, p.21).
4 Outros pré-requisitos seriam: idioma tonal, estrutura harmônica calcada em tríades diatônicas (em especial, os graus I e V) e que a melodia da peça
possa ser reduzida a uma linha descendente diatônica e em graus conjuntos (Urlinie), iniciando-se em III ( 3̂ ), V ( 5̂ ) ou I ( 8̂ ). Contudo, o próprio
autor admite que tais “exigências” podem ser atenuadas ou até mesmo suprimidas de acordo com as particularidades de cada situação. É o caso, por
exemplo, do característico emprego de tensões harmônicas não resolvidas em certos gêneros da música popular – entre os quais, a bossa nova –, o
que concede a tétrades e pêntades estabilidade análoga à das tríades tradicionais. De acordo com Schenker, as dissonâncias presentes na superfície
de uma peça musical nascem dos movimentos contrapontísticos das vozes, a partir de consonâncias, hierarquicamente superiores. Segundo Gallardo, a discordância em relação a esse preceito schenkeriano não necessariamente desqualificaria uma análise. Como será mencionado, a utilização
de tensões não resolvidas em acordes estruturalmente estáveis também acontece em Chovendo na Roseira
5 Em nome de uma maior precisão, talvez fosse mais apropriado classificar Chovendo na Roseira como representante do gênero “valsa-jazz” (e não
como uma típica canção bossanovista), considerando não apenas os contornos rítmicos de sua linha melódica, calcados essencialmente em grupos
de colcheias, mas principalmente a execução destas, efetuada dentro do assim chamado jazz feeling (i.e., dividindo os tempos na proporção 2/3-1/3,
no lugar da notada 1/2-1/2). Contudo, seja qual for a opção escolhida para a classificação do gênero da canção, trata-se de um fator de pouca ou
nenhuma relevância para os objetivos deste trabalho.
6 Como será demonstrado, o caráter modal das seções A e C representam fenômenos relativamente superficiais: estratos mais profundos revelam
novos papéis para essas seções no esquema global da estrutura harmônica.
7 Este aspecto é enfatizado por Gallardo como uma das adaptações necessárias em análise schenkerianas de peças de música popular. O autor cita
especialmente trabalhos de Steven Gilbert (1984), a partir de análises de obras de George Gershwin, e de Allen Forte (1995), sobre a balada popular
norteamericana, em cujo texto foi cunhada a expressão “dissonâncias estáveis” [stable dissonances] (FORTE, 1997, p. 43).
8 A presença desse acorde tem um caráter um tanto enigmático, já que não é resolvido da maneira convencional. A razão de sua existência, como
será visto, só se revela sob uma perspectiva mais global da estrutura da peça.
9 Ou seja, acordes de sétima dominante nos quais a terça maior é substituída pela quarta justa. Por exemplo, as notas que compõem A7(sus4) são:
Lá, Ré (substituindo Dó#), Mi e Sol. As mesmas notas dispostas como Mi-Lá-Ré-Sol constituem uma sucessão de três quartas justas ascendentes
(a inclusão da nona do acorde – Si – no grupo amplia ainda mais a sequência quartal).
10 O encadeamento de acordes baseado na escala cromática descendente é uma das características mais marcantes da construção harmônica de
Jobim. A condução cromática, no entanto, apresenta-se em geral na linha do baixo (por exemplo, em Samba de Uma Nota Só, Corcovado, Inútil
Paisagem, Brigas Nunca Mais, etc.). Para maiores detalhes, ver ALMADA (2009, p. 704-6).
Carlos de Lemos Almada é flautista, compositor, arranjador, professor e autor de livros sobre teoria musical e análise
(“Arranjo”, Editora da Unicamp, 2000, “A estrutura do choro”, Editora Da Fonseca, 2006 e “Harmonia funcional”, Editora
da Unicamp, 2009). É doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, cuja pesquisa visa
a análise da estrutura harmônica da Primeira Sinfonia de Câmara, op.9, de Arnold Schoenberg, dando continuidade a
estudo realizado sobre a estrutura formal da mesma obra, durante o mestrado. Atualmente é professor de Harmonia e
Análise na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
As características pós-modernas na obra
Rimsky de Gilberto Mendes
Vera Lúcia Rocha Pedron Peres (USP, São Paulo, SP)
[email protected]
Resumo: O pós-modernismo na música ainda busca critérios que permitam sua compreensão, entre eles traços como
fragmentação, descontinuidade, citação, justaposição de estilos e pluralismo. O presente estudo visa demonstrar as características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes por meio da análise de suas referências existentes, tendo
em vista os procedimentos que norteiam as composições e os pressupostos pós-modernos. Além da identificação dos
elementos paradigmáticos, e para ir além de uma abordagem indutiva (limitante, porque sincrônica), busca-se a identificação da obra em relação ao modernismo (de crítica e de extensão), enfatizando suas diferenças constatadas na sintaxe,
na epistemologia e na ideologia. São abordados os limites conceituais que se aproximam e se distanciam do modernismo
buscando contribuir na reflexão da arte na atualidade.
Palavras-chave: Gilberto Mendes; Rimsky; quinteto; pós-modernismo; sintaxe musical; descontinuidade musical; pluralismo musical; fragmentação musical; citação musical.
Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes
Abstract: Postmodernism in music still needs criteria to facilitate its understanding, such as traits like fragmentation,
discontinuity, quotation, juxtaposition of styles and pluralism. This study aims at demonstrating the postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes by means of analysing its existing references and
having in mind the procedures that organize postmodern assumptions and musical compositions. Besides the identification of paradigmatic elements, and in order to surpass a simply inductive approach (restrictive because of its synchronic
nature), it tries to connect the work to modernism (in both criticism and extended fields), emphasizing its differences in
syntax, epistemology and ideology. The conceptual limits that make it closer and apart from modernism are discussed as
an attempt to contribute to the reflection about the art today.
Keywords: Gilberto Mendes; quintet; Rimsky; postmodernism; musical syntax; musical discontinuity; musical pluralism;
musical fragmentation; musical quotation.
1. Introdução
Originalmente criado na década de 1930 por Federico de
Onís1 a ideia de um estilo pós-moderno não tem atualmente nada da precisão que este lhe atribuía. Em nossa
contemporaneidade pós-moderno é uma palavra composta que incorre em equívocos. Aplicado em várias áreas diferentes, este termo ressurgiu nos anos 80 sem sua
exata definição. O que é pós-moderno? Como defini-lo?
É importante retermos que o prefixo “pós” não significa
apenas depois no tempo. ”Pós” admite aspectos estéticos de ruptura e de extensão do modernismo. A discussão sobre a imprecisão da palavra pós-moderno como um
termo composto cujo significado depende do significado
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
variável que se adote em relação ao modernismo gerou
controvérsias entre os teóricos. Das discussões travadas
depreendeu-se a conclusão de que pós-moderno não é
uma categoria que possa caracterizar nosso zeitgeist em
todos os seus aspectos e com claros critérios definidos.
O termo “pós-moderno” cujo “moderno” está implícito
foi defendido a partir de vários posicionamentos sem
nenhum consenso. “Pós-modernismo”, portanto, deve
ser considerado como uma extensão do modernismo, do
contrário, toda a música não-moderna desde o fim do
século XIX poderia ser classificada como pós-moderna.
Em termos estéticos, se fragmentação, justaposição, citação, pluralismo, não são categorias estritamente pósmodernas onde devemos situar sua diferença?
Recebido em: 27/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
O percurso adotado neste trabalho efetua a análise da
obra Rimsky (2003) de Gilberto Mendes a partir da afirmação dos autores Boudewijn BUCKINX2 e Rodolfo COELHO DE SOUZA3 que o apontam como um compositor
pós-moderno para verificar as principais características que possam pontuar essa hipótese e que permitam
exemplificar, esclarecer, corroborar uma apuração objetiva dessa tendência estética, como tentativa de detectar
uma mudança estrutural.
2. Apresentação da obra Rimsky de Gilberto
Mendes
A obra Rimsky (composta em 2003, na 3ª. fase de Mendes) inicia-se com a introdução de uma série atípica (isto
é, não dodecafônica ortodoxa) que cria uma circunspecção na escuta. De desenvoltura rizomática4, descontínua,
implica na possibilidade de mudança que se transforma
numa ordem diversa, delineiam-se fragmentos de citações, estilemas5 que se sucedem através de acordes/
obstáculos, sem conexões. Aludindo períodos e estilos
diferentes e apesar da fragmentação e choques de significados, resulta num só fio condutor onde o clima imperante (salvo o trecho atonal, mais abstrato e mais denso)
é de alegria (pertencentes ao repertório popular como:
ritmos de dança, música de cinema, bossa-nova), ou seja,
que promove o envolvimento direto do ouvinte através do
reconhecimento de uso de referências que primam pela
exclusão da intelectualidade e da seriedade.
Evidenciamos em sua fatura a preferência do autor pelo
uso de acordes de 9a., que evocam o universo harmônico
do impressionismo e do jazz.
A associação livre delineia-se incitando a imaginação e a
memória, permitindo ao ouvinte a possibilidade de efetuar reconhecimentos. O fluir dos acontecimentos novos
se sucede até decorrer um terço da obra quando passa a
ser realimentado pelos fragmentos passados em sobreposição constituindo um ritornello sem final conclusivo.
Apresenta diferentes andamentos relacionados em uma
única estrutura. A notação é tradicional. O aspecto temporal é métrico, os parâmetros são tradicionais (melodia,
uso da barra de compasso). O aspecto harmônico é ora
tonal, ora atonal, ora modal, às vezes ambíguo (quando
verificado na utilização da série e seus desdobramentos).
A formação instrumental é tradicional. Vale observar:
nesta, como em outras obras, o autor não dá nomes tradicionais de formas às suas músicas, mas nome literário.
No entanto, Rimsky é um quinteto para piano e cordas.
Examinemos com exemplos musicais esses procedimentos que serão utilizados nas análises subsequentes.
3. Listagem das referências existentes:6
Os exemplos Ex.1 a Ex.16 trazem as referências em Rimsky de Gilberto Mendes discutidas nesse artigo.
Ex.1 – Citação de Sheherazade (recitativo) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)
Ex.2 – Elementos inspirados em Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)
Ex.3 – Elementos de Sheherazade transformada em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.4 – Elementos livres com fragmentos de citação de Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.20-22)
Ex.5 – Minimalismo em Rimsky de Gilberto Mendes (c.23-24)
Ex.6 – Música para cinema em Rimsky de Gilberto Mendes (c.40-47)
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.7 – Trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.80 – 94, p.18)
Ex.8 – Cadenza para piano em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.95 – 102)
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.9 – Fox trot em Rimsky de Gilberto Mendes (c.90-94)
Ex.10 – Ritmo (Nordestino Brasileiro) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.13-14)
Ex.11 – Rock lento em Rimsky de Gilberto Mendes (c.38-40)
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.12 – Bossa Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.56-57)
Ex.13 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em
Rimsky de Gilberto Mendes (c.48-50)
Ex.14 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.61-62)
Ex.15 – Tango em Rimsky de Gilberto Mendes (c.69-72)
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Original (violino I, c.1-2)
Inversão (violino I, c.12-13)
Retrogradação (violino II, c.28-29)
Inversão Retrógrada (viola, c.36-37)
Ex.16 – A série e suas inversões em Rimsky de Gilberto Mendes
4. Percurso da escuta em Rimsky de Gilberto Mendes
O percurso de escuta de Rimsky de Gilberto Mendes é detalhado abaixo, com a listagem dos traços existentes encontrados, sua localização por compasso e timing em cada uma das sete seções e recapitulação da obra:
SEÇÃO I:
Part./compasso
CD/counter
Apresentação da série original
1-2
00:01 – 00:07
Transição
3
00:10 – 00:24
Acorde de sexta
4
00:25
Motivo inspirado em Rimsky Korsakov
4-5
00:26 – 00:33
Citação de Sheherazade
6
00:34 – 00:40
Oscilação (acorde de la m com 7a, 9a, 11a)
8-10
00:40 – 00:58
Inversão da série
12-13
01:02 – 01:08
Evocação de ritmo brasileiro (piano e cordas)
13-17
01:09 – 01:49
Citação de Sheherazade (piano)
17-18
01:52 – 01:57
Citação de Sheherazade (violinoI)
19
01:59 – 2:05
Passagem livre com menção de Sheherazade
20-22
02:06 – 02:19
Minimalismo
23-27
02:20 – 03:30
SEÇÃO II:
113
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
SEÇÃO III:
Retrogradação da série
28-29
03:33 – 03:42
Passagem livre no piano
30-31
03:42 - 03:49
Ritmo (cordas)
32-34
03:51 – 04:07
Inversão retrógrada da série
35-37
04:08 – 04:18
Ritmo de rock lento
38-40
04:19 – 04:28
Música de cinema (apoiada em acorde de 4a. e 7a.)
40-47
04:30 – 05:00
Citação do Quinteto para piano e sopros
48-50
05:01 – 05:25
Melodia no piano
51-54
05:26 -05:53
Início de bossa nova no piano
55-57
05:54 – 06:09
Elementos inspirados em R. Korsakov + bossa nova
58-59
06:10 – 06:26
Finalização de bossa nova no piano
60
06:27 – 06:34
Melodia derivada da série + rock lento (piano)
61-68
06:35 – 07:35
Tango (melodia derivada da série + ritmo/tango)
69-72
07:35 – 08:24
Bossa nova + Sheherazade transformada
73-76
08:24 – 08:52
Acorde menor c/ figura de improviso como clichê
77-79
08:53 – 09:03
80-94
09:04 - 11:03
95-103
11:04 – 11:46
Tango (harmonia e ritmo)
102-104
11:47 – 11:52
Ritmo (cordas)
105-106
11:53 – 12:02
Bossa nova
107-108
12:03 – 12:13
Melodia derivada da série + rock lento (piano)
109-116
12:14 – 12:49
Lirismo
117-120
12:50 – 13:09
Final sem conclusão (acomp. de rock lento/piano)
121-123
13:10 – 13:28
SEÇÃO IV:
SEÇÃO V:
Trecho atonal + rock lento (piano)
SEÇÃO VI:
Cadenza p/piano (com fragmento de bossa nova)
RECAPITULAÇÃO:
114
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
5. Análise da obra: detalhamento da análise
pormenorizada dos procedimentos
5.1. A citação e a sintaxe
Rimsky foi escrita por encomenda de Philip Rathé, diretor do Spectra Ensemble, da Bélgica, para ser estreada em 2000 em um Festival da Rússia. Tem, portanto,
um projeto extramusical de homenagem ao compositor
russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). As citações de temas em Rimsky têm um intuito evocativo e
referem-se às obras de Rimsky-Korsakov: Sheherazade
e Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros. Para
a verificação do original, recorremos à sua redução para
piano a duas mãos. Observemos a melodia que Korsakov
introduz no recitativo de Sheherazade, apresentado
pelo solo de violino (Ex.17).
Em seguida, observemos a 1ª. citação de Korsakov em
Mendes (c.6). Veremos que a utilização desta como
uma singularidade exige uma solução de percurso (na
medida em que pode elaborar saídas feitas por inferências locais). Inserida dentro de um sistema atonal/tonal (cuja série o corrobora) sai dessa ambiência
ambígua e converge para a tonalidade usada por Korsakov (Ex.18).
Portanto, é importante notar que a melodia da “Sheherazade de Mendes” é finalizada pela nota ré e não mi como
em Korsakov. Em Korsakov encontramos uma continuidade.
Em Mendes há uma descontinuidade e uma interrupção.
Outro exemplo neste sentido é a citação do Quinteto em
Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov (Ex.19).
Este trecho de Korsakov acima demonstrado aparece citado
em Mendes e com repetição idêntica (diferentemente do
trecho de Korsakov). Encontramo-lo entre o trecho onírico
(que o autor denomina de música para cinema (c.40-47))
e um tema lírico feito pelo piano (c.51-55). Podemos notar
Ex.17 – Recitativo em Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.14-15)
Ex.18 – Citação de parte do tema de Sheherazade de Rimky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)
115
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.19 – Solo de trompa no II Movimento do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov (c.5-8)
Ex.20 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.49-51)
que estas são diferentes concepções que agora se tornam
equalizadas, convivendo pacificamente (p.8-11) (Ex.20).
O que resulta diferente então, são as sintaxes como concepções absolutamente opostas: a de Korsakov é teleológica, enquanto que a de Mendes é casual7.
Outro ponto importante a frisar é que se a composição de Mendes visa realizar uma homenagem, a citação
não pode ser irônica. A finalidade da citação é evocar
Sheherazade, o Quinteto em Si bemol Maior para piano
e sopros de Korsakov e não desfigurá-la, isto é, Mendes
pretende torná-la audível, propiciar o reconhecimento
de maneira lúdica, como evocação, fazendo um apelo à
memória, para produzir efeitos de verdade. Já a erudição
enciclopédica referente ao Quinteto em Si bemol Maior
não configura a certeza de ser efetivada com a mesma
eficiência.
Outros trechos evidenciam o aparecimento do mesmo
tema de Sheherazade transformados pela exigência casual da sintaxe em Rimsky de Gilberto Mendes (c.17-22).
Aqui há também modificações efetuadas nos confins
da citação (início e fim) e inserção de elementos livres
que confluirão em novas descontinuidades, cuja linha de
fronteira em seu final é estendida.
É assim que através da utilização de materiais fragmentados constituiu-se essa sintaxe tipificada como pluralista e inclusiva. A sintaxe é desconstruída em prol da
figuralidade onde as imagens preponderam dando lugar à
busca de novas sensações. Inverte-se a primazia da forma
sobre o conteúdo: agora é o conteúdo que determina o
processo composicional, possibilitando várias associações
116
a diferentes estados afetivos. A fragmentação efetuada
na obra se realiza através de um procedimento duplo:
promove o declínio da inteireza e da continuidade e ao
mesmo tempo propicia a unificação na medida em que
torna as frases musicais equalizadas onde as possíveis conexões não revelam seus pontos de ligação, tornando-os
imperceptíveis. O uso do fragmento não exige desenvolvimento, não se submete a nenhuma forma, prevalecendo
o prazer do perder-se. Não há mais estruturação por regras sistemáticas. O tempo torna-se simultânea e paradoxalmente não-linear, sem se opor à continuidade, sem
adotar a causalidade. Esta impressão é possibilitada pela
admissão de fragmentos diferenciados que promovem a
perda da totalidade e tornam-se indiferenciados em sua
coexistência, desafiando a noção de centro.
Segundo Calabrese (1988), a citação pós-moderna tornase um elemento de imprecisão. Nega a precisão e a ordem,
valorizando o conceito de “vago” (p.178). Como vimos,
com esse tipo de citação, passado e presente tornam-se
sincrônicos, improváveis. O passado necessitará sempre
ser modificado pelo presente, reatualizado, uma vez que
precisa ser inserido em um novo contexto. Torna-se um
desafio à arte aurática�, na medida em que se traduz num
ready-made, num simulacro e numa contestação do estatuto da arte enquanto originalidade e subjetividade. Não
existe preocupação com a precisão e sim com a evocação
da memória afetiva transposta imprecisamente e adaptada dentro da linha sonora em curso. A citação em Mendes
não é perspícua, não se importando com a autenticidade
da fonte. Esta é uma característica importante que joga
com a relação entre o verdadeiro e o falso. Apesar de imprecisa, necessita apenas da existência do saber enciclopédico do ouvinte, como mostrado nos pares de exemplos
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.21a-Ex.21b e Ex.22a-Ex.22b.
O recurso do corte verificado através da mudança brusca
(contraste) de andamento e dinâmica (mp/f; transmutação de semínima 60 para 120) corrobora a existência da
subtração das conexões decorrente da opção pelo procedimento inclusivo (o que permite contribuir para obscu-
recer a natureza do “discurso”) (Ex.23).
Verificamos que Mendes se apropria do gesto de Korsakov dentro de uma concepção de improvisação idiomática� introduzindo elementos (ritmico-melódicos)
rapsódicos transformados, que se apresentam como
figuras de clichê características da improvisação (c.78,
Ex.21a - Motivo apresentado pelo fagote no II movimento de Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.5-9)
Ex.21b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)
Ex.22a – Motivo melódico-ritmico de Korsakov (IV Movimento de Sheherazade, c.54-69)
Ex.22b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)
117
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
p.17). A utilização do recurso do fragmento revela o retorno à espontaneidade (ao eximir-se dos antigos códigos de coerência da linguagem), configurando-se como
um jogo que ao mesmo tempo contém e se livra das
regras, desempenhando na obra uma desenvoltura que
afirma o acaso�. A sintaxe submete-se às imposições do
desejo, da sensação, do sentimento.
Em resumo, a heterogeneidade empregada desfaz a diferença entre os materiais. Em Rimsky, o uso da citação e das referências como fragmentos autônomos produz uma sintaxe
nômade, evitando as conexões, o centro e a ordem, resultando num perder de vista dos grandes quadros de referência.
5.2. A série de Mendes como paródia pósmoderna
Sabemos que a série básica criada por Schoenberg, portadora de 12 sons distintos e irrepetíveis constituiu uma regra
rigorosa de controle da composição musical dodecafônica.
Em Rimsky, a série introduzida por Gilberto Mendes subverte essa intenção. Mendes inicia sua obra sem indicação
de tonalidade sugerindo uma audição atonal, tornando-a,
entretanto, ambígua através da utilização predominante
de intervalos consonantes. Constatamos, portanto, logo de
início, uma intervenção do compositor que descarta a representação rígida da série convencional para nos apontar
uma nova singularidade em relação àquela.
Ao não se constituir como série estritamente dodecafônica, revela sua relação paródica com a arte do passado,
sendo esta uma forte característica de sua linguagem.
Sob este ponto de vista, sua postura implica a crítica
ao Modernismo tardio através da inclusão deste em sua
linguagem, mas com a série modificada, reapropriada.
A série de Mendes destitui-se de parte de seus pressupostos teóricos intransigentes (daquela de Schoenberg),
possibilitando a contaminação de sua pureza, mesclando o tonal com o atonal. Examinemos de perto suas características no Ex.24.
Ex.23 - Recurso de corte através de mudança brusca de andamento e de dinâmica em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.30-32)
Ex.24 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes
118
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Verificamos a ocorrência de:
• 4 intervalos de 3a. m;
• 3 intervalos de 4a. J;
• 2 intervalos de 3a.M;
• 1 intervalo de 2a. M.
concomitantemente o percurso de Schoenberg, reinterpretando-o. Utiliza-se dos procedimentos da vanguarda
para criticá-la, mostrando-se avesso à teoria.
A série de Mendes despreza, portanto, o potencial intervalar que (em Schoenberg) preconizava a emancipação da
dissonância e o afastamento da tonalidade. Não há trítonos, nem intervalos de 7a., 9a., 2a.m. Não é anti-tonal,
possui duas terças menores em seguida (propiciadoras de
enunciação de arpejos). Enfim, a série de Mendes é distorcida, ambígua, ambivalente e percorre o caminho contrário
ao de Schoenberg. A série usada por Mendes preserva as
características formais da série dodecafônica (doze notas
irrepetíveis e suas inversões) subvertendo ao mesmo tempo
seu conteúdo (predominância de intervalos consonantes
portadores de possibilidades tonais). Ao mudar o conteúdo desta, verificamos que a intenção de Mendes não é de
se ater à pureza do pensamento original de Schoenberg.
Ao contrário, Mendes mantém as formas reflexas da série
(Ex.25), com vistas à criação de uma ilusão perceptiva, que
a torna híbrida, provocando sua desestabilização.
Se Schoenberg objetivou a busca pelo singular, eliminando a noção de graus, de funcionalidade e hierarquia
promovendo a escuta da nota individualizada, Mendes
procura ativar o reaparecimento de configurações reconhecíveis. O conteúdo de Mendes apóia-se no significado,
na aceitação e no resgate da consonância, de mais fácil
assimilação. Desta forma, a série de Mendes se ressemantiza, ironicamente, deslocando-se da abstração para introduzir posteriormente, a possibilidade de configurações
melódicas (Ex.26). O autor utiliza a série, desconstruindo
Vimos que a série de Mendes não sendo antitonal possibilita uma configuração melódica que se generaliza, na
medida em que é reutilizada ao se somar com a referência introduzida pela rítmica do tango, propiciando seu
reconhecimento pela escuta. Incorpora, desta forma, a
utilização de códigos populares: (Ex.27).
A série de Mendes contesta a originalidade, recontextualizando-a. Como no dizer de HUTCHEON (1991), é
reverente e irreverente ao mesmo tempo, fazendo coabitar a noção de sacralização e dessacralização, autoridade e transgressão, continuidade e mudança. A nosso
ver, habilita, contudo, o retorno daquilo que foi recalcado pelo modernismo (a compreensibilidade através do
que é cantável, a impressão de tonalidade, a memorização). Ela comporta, contudo, uma novidade que, como
tal, exige a familiaridade com antigas convenções para
que se possa averiguar sua discordância dos cânones
prevalecentes e consequentemente invocar as considerações de intenção do autor, condição que o receptor
pós-moderno não possui, por viver numa época em que
o consumo imediato e o hedonismo não priorizam o conhecimento e a teoria. A compreensão da ironia pressupõe uma grande cultura por parte do ouvinte12.
A série de Mendes questiona o ideal totalizante modernista, a tirania teórica, a racionalidade, o purismo, onde
o autor procura propor uma abertura do texto cujo novo
sentido evita prescrições, mas resgata fórmulas usadas.
Ex.25 – Retrogradação da série em Rimsky de Gilberto Mendes
Ex.26 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.28-29 e c.61-62)
119
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex. 27 – Tango derivado da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.65-68)
Ex.28 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes. (c.12)
A série de Mendes é o elemento de diferença que distingue o modernismo do pós-modernismo, por desestabilizar
a intenção (dodecafônica) de sons isolados e da não repetição, fazendo o percurso inverso do de Schoenberg. Ela é
introduzida sempre depois de uma fermata ou de um rallentando, desconectada, portanto, do episódio anterior,
incrementando a descontinuidade da sintaxe (Ex.28). 13.
5.3. Pós-Moderno e a atenuação das distinções –
música popular/música erudita:
Rimsky apresenta a inserção de ritmos e harmonias características da música popular brasileira procurando
viabilizar o cruzamento de linguagens tradicionalmente
opostas, impossível em períodos históricos precedentes.
Intenta contrapor-se ao purismo, procurando não as in120
compatibilizar, não imprimir uma visão dualista entre o
erudito e o popular. Pretende realizar para isto conexões
consideradas antes impossíveis, recusando a hierarquia e
a hegemonia entre alta e baixa cultura.
Em sua autobiografia (1994) Mendes registra sua natureza despreconceituosa que o acompanha desde a infância,
reconhecendo o alto nível alcançado pela música popular
urbana da canção norte-americana e europeia dos anos
30 e 40 e seu entrosamento com a música culta, que
ele denomina ser um verdadeiro lied moderno. Pensando desta forma é que o autor utiliza-se amplamente do
elemento popular em suas composições. Baseando-se em
suas memórias perceptuais, permite “contaminações” que
abolem todas as proibições.
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Em Rimsky verificamos o uso de superposições e “fusões” entre o popular e o clássico verificadas nos elementos inspirados em Rimsky-Korsakov + bossa nova
(c.58-60; Ex.29). Outras fusões são encontradas na série
transformada em melodia + rock lento no piano (c.6168); melodia de Sheherazade transformada + bossa
nova (c.74-79); trecho atonal + rock lento (c.80-94);
melodia da série + rock lento em recapitulação (c.109112); melodia em progressão + rock lento (c.117-120).
25. Caráter lúdico;
26. Proposta de inclusão da música culta e da música
popular;
27. Tendência predominante de exclusão da seriedade16,
hedonismo;
28. Anarquia, procedimento assistemático;
29. Repetições não variadas.
7. Conclusão
6. Características pós-modernas em Rimsky
de Gilberto Mendes
Utilizamos as evidências do exame feito por Omar Calabrese em seu livro “A Idade Neobarroca” (CALABRESE,1988) sobre estética e teorias contemporâneas para o
esclarecimento das implicações do gosto e do pensamento dito pós-moderno que incidem na forma e na adoção
de uma epistemologia anárquica. É importante realçar a
advertência de Calabrese sobre a citação como um modo
tradicional de construir um texto que existe em todas as
épocas e estilos que, no caso pós-moderno, ele desconsidera a computação da quantidade de citações como um
critério relevante para sua caracterização. Para Calabrese, nem a quantidade das citações nem o ecletismo são
características estritamente pós-modernas. Em meio às
divergências teóricas existentes, o ecletismo� (ou pluralismo) tem sido apontado como a principal característica
pós-moderna. Mas que tipo de ecletismo?
1. Série defectiva;
2. Fragmentação, heterogeneidade, descontinuidade,
justaposição de estilos;
3. Impureza; hibridismo; contaminações;
4. Ironia;
5. Ênfase nos processos primários, inconscientes (evocação, desejo, imagem);
6. Paródia;
7. Ambiguidade (questionamento e conciliação); (reverência e dessacralização);
8. Apropriação, citação distorcida; imprecisão;
9. Ausência de unidade; ausência de conexões;
10. Estesia (ênfase nas sensações);
11. Retorno à melodia; caráter melífluo (que impressiona
agradavelmente);
12. Inexistência de desenvolvimentos musicais puros;
13. Volta ao conteúdo; busca de significados;
14. Atemporalidade;
15. Consciência histórica vista como pluralismo, como
presente sincrônico;
16. Simplicidade;
17. Uso de estilemas e estereótipos;
18. Processo composicional determinado pelo material;
19. Ênfase na superfície;
20. Incerteza entre o verdadeiro e falso;
21. Antiacademismo; contra o rigor e a exatidão; contra
proibições;
22. “Moderno” deixa de ser um substantivo para tornarse um estilo (trecho atonal);
23. Sintaxe casual, antinarrativa;
24. Imersão (ao invés de distanciamento);
Em feição pós-moderna, esse ecletismo não só institui
uma objeção da pureza e do elitismo, mas conjuga-os à
ideia de desconstrução (derrideana) do significado que
abole a noção de origem e de verdade e deságua na
ideia de que só existem significantes, decorrendo daí a
possibilidade de interpretações incessantes, onde todas
se afirmam válidas. Se como já foi dito, a maioria das
características atribuídas ao pós-moderno já foram anteriormente encontradas em períodos anteriores, o que
o distingue de outras épocas é uma aposta na proscrição
da unidade estrutural e da teleologia em favor da descontinuidade e da atemporalidade possibilitados pela
anomia da sintaxe. Não há mais uma direcionalidade
visando pontos focais, oposições, pontos culminantes,
não há mais a imposição do cânone modernista de proibições, nem a elaboração de um “discurso” sistemático, mas uma errância, uma ausência de fundamento,
de abandono da epistemologia e da teoria. Verificamos,
portanto, a suspensão do juízo em prol da casualidade,
da arbitrariedade, e da liberdade ilimitada. Colagem e
citação subtraem as conexões e a citação que remete
à concepção de autoria (ou seja, que tem como parâmetros a originalidade, a autenticidade e a autoridade) é que é criticada. Dessa forma a citação, através do
procedimento da apropriação, por realizar uma alteração, necessita subverter o contorno melódico dirimindo
a diferença das estruturas contraditórias. Não há mais
sucessão temporal, porém, um contínuo de justaposições de materiais e estilos de diferentes épocas que
através de sua apropriação resultam presentificados,
indiferenciados, homogeneizados. Como decorrência, a
fragmentação resulta numa compilação de descontinuidades cuja autonomia dos momentos se traduz, segundo
Mendes não só incita ao reconhecimento. A urdidura do
trecho atonal (Ex.30) em meio à sua textura abstrata14 juntamente com a inclusão de elementos de referência (verificadas nos ritmos feitos pelo acompanhamento no piano de
rock lento) ao mesmo tempo as obnubila (c. 80-94).
O tipo de linguagem utilizada em Rimsky, portanto, utiliza-se da junção de elementos de origens diferentes15,
cujo procedimento pode ser caracterizado como inclusivo e democrático. Tal medida pressupõe a intenção de
um caráter de tolerância e diversidade como tentativa de
questionamento das distinções.
Sumariando a ocorrência dos traços pós-modernos em
Rimsky, constatamos as seguintes propriedades:
121
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Ex.29 – Sheherazade transformada+ Bossa-Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74)
Ex.30 – Excerto do trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes (c.80)
122
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
ADORNO (1999), no fetichismo dos materiais, levando a
audição ao gozo meramente metonímico. Em outras palavras, promove a reabilitação do prazer e a diminuição
da crítica, escamoteando a transparência do modo de
produção das obras.
Devemos considerar que um dos fatos significativos no
pós-modernismo é que, através do desterro da linguagem (já iniciado no modernismo) na verdade o que ocorre
(contrariamente a este) e contraditoriamente, é uma procura da significação (da comunicação perdida decorrente
do vazio e da abstração deixados pelo formalismo), restando como única saída, a reabilitação dos materiais do
passado. Daí porque a descontinuidade tornar-se sistemática (o que, por outro lado, incorre na cilada de incidir
num outro tipo de normatividade).
Em Rimsky, constatamos a não utilização de uma sintaxe tradicional teleológica. Os materiais utilizados
possibilitam a formação de presentes sincrônicos, onde
as “oposições” não mais se contradizem, somente se
chocam. A multiplicidade abole o ponto de vista único
para afirmar a ausência de centro e de convergência. A
justaposição nega a dialética, afirmando o caos. Não há
desenvolvimento�. No entanto, o uso de repetições de
notas inseridas na série, como também as repetições dos
fragmentos apresentados em descontinuidade, parece
uma tentativa de facilitar a assimilação que requisita a
necessidade de ouvi-los de novo. Seria essa uma forma
de possibilitar (contraditoriamente) a fixação e a memorização perdida na descontinuidade?
Constatamos que a arte para Mendes demanda espiritualidade e transcendência em relação aos assuntos cotidianos
(MENDES,1994, p.62-63), despojamento ascético, liberdade, ética, contemplação. Porém, podemos também afirmar
que a utilização das contaminações que introduzem elementos populares acaba favorecendo a eliminação da aura
da arte por privilegiar a sensação e a imersão, negando a
contemplação almejada por Mendes, embora este não veja
aí uma irreconciliabilidade. Ao contrário, Mendes não pretende eliminar a aura da arte, mas defendê-la.
Em Rimsky, a “Sheherazade de Mendes”, cuja apropriação
descaracteriza o ritmo original para sua transformação
numa versão ainda mais popularizada porque impregnada
do balanço da bossa-nova (MENDES, 1994, c.74), acaba
por enfatizar mais o pólo popular do que o erudito, do
qual mantém somente a melodia em excerto. Já o trecho atonal, como referente modernista (MENDES, 1994,
c.80), superposto ao acompanhamento do piano como
rock lento, contém uma densidade e complexidade que
acaba enfatizando melhor, como decorrência, o aspecto
abstrato do que permitindo desvelar o conteúdo referencial do ritmo do rock, cuja escuta quase não o reconhece,
diluindo-o na urdidura. Dito de outra forma: no trecho
atonal a opção pelo procedimento inclusivo acaba obliterando as referências populares, recaindo mais para o
efeito hermético, conformando-se em contraposição à figuração como elemento portador de compreensibilidade.
Podemos sintetizar esta questão numa pergunta: qual é a
eficácia do excesso, se o que prevalece é a indistinção e a
textura? Ou, contrariamente, a proposta desse hibridismo
seria mitigar a tensão? O trecho atonal, representando
os parâmetros modernistas (mesmo com a inclusão do
elemento popular) não pode favorecer a aproximação do
público desacostumado à apreciação desse código. Reitera apenas o procedimento (excessivo) de inclusão defendido no pós-modernismo, de reafirmar seu pretenso
caráter democrático para realizar o afastamento de uma
compartimentação maniqueísta.
Concluímos que as contaminações ou hibridações podem
contribuir para diminuir ou amenizar as fronteiras entre
o popular e o erudito, mas não conseguem sua supressão.
Para os sabedores de que devemos evitar o maniqueísmo
há também a necessidade de reconhecimento das contradições como impossibilidades de uma verdadeira fusão de
categorias distintas. Os adeptos da atitude pós-moderna,
no entanto, admitem as contradições sem questioná-las.
Dentro desta lógica, no entanto, estes podem recair em
um só lado da antítese, fato que tanto negam, como observa Terry EAGLETON (1998). Admitir a contradição significa supor que na medida em que não há mais restrições, não há mais conflito.
A tentativa de desfazimento das oposições entre arte
culta e arte inferior instaura a questão do uso de elementos característicos da cultura de massa que viabilizem o consumo da obra. Desta forma a arte pode correr o risco de ser facilitada. Como conciliar sofisticação
com o que é popular? Como dissemos, Mendes tenta
solucionar essa dualidade resgatando a música popular
norte-americana dos anos 30 e 40 naquilo em que esta
é comparável à arte de elite, rejeitando a conjunção entre arte e mercadoria. Sua concepção de arte vincula-se
aos pressupostos modernistas de autonomia, de elitismo,
endereçada a seus pares, contrário à indústria cultural�.
Renega os pressupostos do grupo Música Nova (atrelado
aos temas de atraso e progresso) e volta-se para o antigo
desprezo vanguardista pela indústria cultural. Enfatizando o aspecto semântico (referências, evocações) de suas
composições da 3ª. fase, ele pretende não ser acessível,
nem comunicativo (MENDES,1994, p.113) mas defende
ao mesmo tempo a possibilidade de compreensão de sua
música pela classe operária (MENDES,1994, p.113). Tenta
escapar da polarização entre arte de elite e arte popular,
derrubar as barreiras do preconceito, procurando solucionar as contradições na verdade insolúveis entre as classes
sociais. Mendes procura evitar e rigidez e concebe a construção do sentido deslocada mais para o subjetivo, o passional, o intuitivo do que para o racional (MENDES,1994,
p.169-170). O cerne do problema está em desfazer a rigidez e ao mesmo tempo não cair na vulgarização, na
mediocridade corrente da arte de massa cuja finalidade é
entretenimento e comunicação. É assim que para evitar a
mediocridade Mendes volta-se para uma aristocracia do
espírito elevando o popular para a transcendência (MENDES,1994, p.171). Mas a fusão das esferas alta e baixa,
123
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
como dissemos, é utópica�. Se afirmarmos a inexistência
de fronteiras entre o erudito e o popular alegando que só
o que existe na verdade é a música (classificada como boa
ou ruim), estaremos caindo em polarizações que remetem
a categorias de valor que rejeitam as demais atribuições
concorrentes: reincidimos num dualismo e numa posição
igualmente absolutista. Bom ou ruim demonstra, portanto, a função social de suas respectivas legitimações. Não
reconhecer isso é uma forma de imprimir e sobrepor os
conceitos das classes dominantes para as massas. Caberia
a pergunta: qual a verdade do oprimido?
Devemos lembrar que a estética popular implica na subordinação da forma à função e que a estética erudita
propugna critérios de julgamento sobre o modo de produção das obras a despeito da função. O gosto sofisticado
pressupõe a aversão ao gosto vulgar, por supor sujeitos
sociais diferentes que traduzem suas posições de acordo
com as distinções que os exprimem. Música popular e
música erudita são separadas por conceitos sociológicos
que consideram diferentes performances, convenções e
instituições (a bossa-nova, por exemplo, é um fenômeno
burguês). Portanto, a arte, se pensada em termos de produção necessita que reconheçamos o binômio “produção/
consumo” ligado a processos formais que se constituem
em músicas de diferentes tipos e separadas sociologicamente. Mesmo com a introdução da banalidade, das referências populares, dos estilemas, essa música (possuidora
dessa sintaxe onde o procedimento inclusivo admite o
erudito) não é consumida e assimilável pelas classes populares�. Como já frisamos, o hibridismo tem seus limites
verificados no modo de produção, no consumo, na circulação e na recepção das obras como forma de distinção
(conforme BOURDIEU (1979) e BRACKETT (2002)).
Se, por um lado Mendes faz positivamente a crítica à mediocridade (do popular?) hoje existente na nossa sociedade
de massa, denunciando sua estrita dependência da lógica
comercial onde ele nos confessa a dificuldade de sobrevivência a uma modernidade filisteia, por outro lado, na
sua tentativa de resistência às tendências de dissolução do
belo e daquilo que ele chama de verdadeira arte, evitando
a perda de sua qualidade, faz um esforço para garantir a
perenidade do artista na procura de uma essência que se
perdeu. Porém, em nossa contemporaneidade não há mais
espaço para a realização de uma arte inteiramente autônoma. O mercado é uma instância intrínseca à produção
que vê a arte como produto legítimo da sociedade capitalista, o que faz com que a estética retorne à sua origem
mundana. Neste aspecto, paradoxalmente, Mendes defende a reintrodução do belo na arte contemporânea aproximando-se de Adorno no sentido de uma estética que pode
ser considerada contrária ao embrutecimento do homem e
de certa forma, saudosista. Ao defender o belo, contrapõese à mudança da noção de obra de arte feita pela modernidade que já realizara sua dessacralização.
Sabemos que o belo clássico salientou a preocupação
com a qualidade da obra, com a contemplação, com a
124
transcendência, com o valor de culto, com a aura. A modernidade, através da aceleração das forças produtivas
e da consequente mutação das condições de produção,
afluiu na ideia de artista como trabalhador, matando a
originalidade da obra para possibilitar a fruição (em contraposição à contemplação). Ao negar a produção e o
consumo, Mendes posiciona-se contra a mutação da arte
e do artista. A reintrodução da contemplação corresponde ao retorno da aura numa época secularizada a qual
mantém como consequência, a preservação das categorias ideais. Esta constatação abala a crítica da metafísica
iniciada na modernidade. Neste período a arte atacou a
materialidade da obra para atacar a aura, transformando
o sagrado em profano. Concernente ao pós-modernismo,
verificamos por um lado, a quebra da seriedade (propiciada pelas contaminações) e do rigor que favorecem e
imersão e consequentemente diminuem a distância imposta pela obra imbuída de aura. Por outro, a constatação
concomitante da existência de compositores críticos do
capitalismo, defensores da noção de criação, genialidade
e arte contrária à instrumentalização. Perguntamos: fazse música para que o ouvinte realize a semiose que quiser,
ou ainda existe a intenção do autor?
Compreendemos que em suas contradições, Mendes reflete as da sociedade em que vive. As afirmações de Mendes
nos revelam as aporias em que se encontra o compositor
contemporâneo na necessidade de reescrever sua vida.
Ao rejeitar a ideia de progresso o pós-modernismo elide
a vanguarda, encerrando a dissidência e o “make it new”.�
Este, como transgressão, não poderia ser infinito. Não há
mais rebeldia, nem revolução, nem recusa, nem negação.
O que pode haver é a novidade que não mais tem mais
impacto, não é mais intempestiva. O novo não tem mais
poder de transformação porque o que outrora foi contundente, torna-se repetição. O que está aí não muda o que
já foi conquistado pela modernidade porque não contém
mais o choque da estranheza, apenas a simples diferenciação. À medida que não há mais proibições, a utilização da
profusão de materiais torna-se equalizada, não havendo
mais necessidade de ruptura. Do lado da recepção da obra
o que constatamos é uma indiferenciação que não remete
mais à perplexidade. De onde se conclui que os ready mades de hoje não mais produzem impacto. Concluímos que
o procedimento de reabilitação dos materiais do passado e
a preocupação da transcendência podem levar ao distanciamento da realidade objetiva. A utilização da prática das
citações deve, portanto ser amplamente considerada. A citação, ao tornar-se maneira de fazer, moda, pode tornar-se
um perigo, como no consumo de mercadorias, onde o retro
não causa nenhum impacto, mas acatamento, estabilidade, perda de contundência. O procedimento inclusivo de
materiais do passado pode apenas reintroduzir o antigo de
forma fetichizada, lúdica e ornamental. Faz-se mister, portanto, refletir sobre como não negar o consumo e ao mesmo tempo não ser consumido pelas imposições do capital.
Como dissemos, as concepções estético-ideológicas pósmodernas estão atreladas ao moderno sem superá-lo. O
PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
pós-modernismo não é uma ruptura, uma vez que não há
mais normas a quebrar. Nega a história, não tem compromisso com a verdade, não comporta mais nenhuma tensão entre presente e passado. A intenção pós-moderna é
abater a austeridade, o hermetismo, o que assegura maior
facilidade de assimilação (requisitos encontrados nas tendências da Nova Consonância e da Nova Simplicidade). Em
outras palavras, o pós-modernismo para evitar ser prescritivo pretende, neste sentido, não propor nada. Recusa
a negatividade, sendo essa sua política apolítica. Vimos
que “pós-moderno” não é um termo que possa caracterizar nossa contemporaneidade como critério claramente
definido. Peter BURGER (1988) reconhece no pós-moderno
a atenuação de uma rígida dicotomia entre arte superior e
arte inferior onde não existem materiais avançados, uma
vez que todos os repertórios históricos de materiais estão
igualmente disponíveis ao artista. Ele alerta, no entanto,
para que o fascínio dos materiais não seja transformado
em critério de apreciação estética, devendo se desfazer de
um manuseio arbitrário para realizar uma reflexão sobre a
autonomia da arte e das condutas artísticas. Neste sentido,
quanto à constatação de uma crise da arte ele adverte que,
tanto a exigência de abolição da separação entre e vida
quanto a aceitação destas, poderão incorrer no fim da arte.
Referências
ADORNO, Theodor W. – “O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Coleção Os pensadores -Textos Escolhidos.
São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.65-198.
BENJAMIN, Walter – “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. In: Obras Escolhidas - Magia, Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Editora Brasiliense,1996, v. 1.
BOURDIEU, Pierre – La distinction - critique sociale du jugement. Paris: Les Éditions de Minuit,1979.
BRACKETT, David – “Where´s It Art”: Postmodern Theory and the Contemporary Musical Field. In: LOCHHEAD, Judy and
AUNER, Joseph – Postmodern Music/Postmodern Thought. New York: Routledge, 2002, p.207-231.
COELHO DE SOUZA, Rodolfo – Encarte do CD Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.
BURGER, Peter – “O declínio da Era Moderna”. In: Novos Estudos CEBRAP no. 20,, março de 1988, p.81-95
CALABRESE, Omar – A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1988.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix – O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2004.
________ - Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2004, vol. 1, 3 e 4.
EAGLETON, Terry – As ilusões do pós-modernismo. RJ: Jorge Zahar Ed., 1998.
HUTCHEON, Linda – Poética do Pós-Modernismo – História. Teoria. Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MENDES, Gilberto – Uma odisséia musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco. São Paulo: EDUSP, 1994.
TEIXEIRA COELHO – Moderno pós Moderno - modos e versões. São Paulo: Iluminuras,2001.
Partituras:
MENDES, Gilberto – Rimsky, 27 p.(partitura com escrita de próprio punho do autor).
RIMSKY-KORSAKOV, Nikolai – Sheherazade – Suite Sinfonica op.35 (redução para piano) de Teodor Fuchs. Buenos Aires:
Ricordi Americana, 59 p.
________ - Quinteto em Si bemol Maior (op.post.) – para piano, flauta, clarineta, trompa, fagote. New York: International
Music Company, 64 p.
Documento eletrônico:
www.remue.net/cont/Blanchot_Hoppenot.pd Acesso em: 21/06/2006.
Reprodução sonora (CD):
Gilberto Mendes – Piano solo – Rimsky (edição do Programa Petrobrás de Música 2002, realizado pelo Laboratório de Acústica Musical e Informática da ECA/USP, Março-Setembro de 2003). Quarteto de cordas da Cidade de São Paulo: Betina
Stegman (1o.violino), Nelson Rios (2o.violino), Marcelo Jaffé (viola), Robert Suetholz (violoncelo), Lídia Bazarian (piano).
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.
Notas:
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Escritor e crítico literário espanhol (1885-1966).
BUCKINX, Boudewijn – O Pequeno Pomo – ou a história do pós-modernismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
Referência verificada na apresentação do encarte (assinada por este autor) do CD “Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.”
Empregamos a concepção de rizoma postulada por Deleuze por acreditarmos que esta traduz melhor a ideia de uma linha (justaposta, segmentada),
cujo “motor” é o desejo (CALABRESE,1988) que nega o princípio da unidade em defesa da multiplicidade de materiais. Deleuze prescreveu: “Faça o
rizoma e não a raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno, nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e não o ponto (...).” (Cf.
DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.36). Nosso interesse é o de demonstrar que essa acepção de rizoma personaliza o imperativo de uma heterogeneidade
instaurada numa grande linha contínua que por sua lógica nômade simultaneamente a contém e a oblitera.
Estilemas: constantes estilísticas, traços de estilo, de códigos em desuso (TEIXEIRA COELHO, 2001, p.67).
Obs.: A citação do Quinteto para piano e sopros de Rimsky Korsakov, o “minimalismo”, “rock lento” e “música para cinema” foram existentes indicados pelo próprio compositor. A presença de “fox trot” também por ele afirmada, porém sem sua devida localização, nos levou a detectá-la, por
inferência, nos compassos 90-94 devido à similitude de seu componente rítmico.
Apesar de o autor incorporar uma recapitulação dos elementos apresentados.
Refiro-me à inaplicabilidade do critério de autenticidade da produção artística que deixa de ter valor de culto como objeto único (a questão da
originalidade anteriormente comentada) e se torna dessacralizado, explicitado por Walter BENJAMIN (1996).
Idioma: usado aqui no sentido de conter uma gramática (escalas, padrões, estruturas rítmicas e intervalos). Possui uma dupla função: simultaneamente alude e desfaz o reconhecimento.
Como no pensar de Deleuze, agora a riqueza em termos sintáticos não trata mais de impor uma forma à matéria, mas de manter juntos os heterogêneos, sem deixar de ser heterogêneos (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 141).
Aqui é necessário reportarmo-nos às observações de Linda Hutcheon sobre a duplicidade paradoxal do pós-moderno. Este está atrelado ao modernismo não rejeitando-o por completo mas, inserindo e subvertendo seus códigos: evidenciamos na paródia simultaneamente deferência e
transgressão (HUTCHEON,1991).
Esse é um requisito também necessário quanto à citação apropriada por requerer do ouvinte a erudição das obras em seus contextos para poder
avaliar a transgressão efetuada, pois do contrário esta não pode ser percebida.
Podemos fazer outra leitura da utilização da série feita por Mendes. Esta pode também significar uma alusão à rigidez (como medida irônica, uma
vez que a série de Mendes não a contém e cujo detalhe só se percebe através de sua análise) do modernismo (no caso a série como elemento de
ordem) ao prenunciar os demais elementos (livres, heterogêneos e casuais) que lhe seguem. Este procedimento pode ser visto como uma medida
conciliatória onde a oposição de precisão e imprecisão nos sugeriria a associação de dois gostos como a única maneira possível de tentar “organizar” a sintaxe. Também a existência de uma recapitulação verificada depois da cadenza no piano (a partir do compasso 102 até o fim da peça
promovendo o retorno do tango, do ritmo nas cordas, da bossa nova, da melodia derivada da série acompanhada pelo rock lento no piano) sugere a
intenção de recuperar uma retórica cujos princípios formais embora já estejam perdidos são reintroduzidos por Mendes. Devemos considerar que a
destruição da forma e dos nexos se traduz na descontinuidade, impedindo a capacidade de recordar pra frente, sendo a recapitulação a única maneira de favorecer a rememoração do ouvinte (em contraposição ao modernismo) através da repetição dos elementos anteriormente apresentados.
Quanto mais a representação se desvincula de seu referente, mais o som representa a si mesmo, isto é, mais ele é concreto. Neste sentido, a possibilidade de abstração em música faz-se através do corte dos vínculos com as figuras tradicionais de reconhecimento.
Devemos lembrar que já no séc. XV, num outro contexto e com diferentes motivações, a melodia pagã “chanson de l´homme armé” foi amplamente
utilizada pelos compositores como cantus firmus e pretexto para o emprego da forma canônica na produção da polifonia (como referência pagã
nas missas religiosas, porém de difícil identificação para os leigos em sua urdidura). Contudo, vemos nesse processo o intuito de exprimir o que era
conhecido como a ciência musical da época.
Devemos frisar que neste sentido encontramos exceções no pós-modernismo como no caso de Schnittke, compositor que melhor expressou sua
resistência intelectual e simbólica ao Comunismo através de sua atração pelo irracional e pelo seu extremo pessimismo. Desta forma, Schnittke
destoa do hedonismo pós-moderno ao optar pela expressão dramática.
O ecletismo inclui a citação, a mistura estilística, e o pastiche como formas que através de sua coexistência se tornam indiferenciados.
De acordo com HOPPENOT (cf. documento eletrônico na bibliografia) a fragmentação pós-moderna produz a desorganização do estado perceptivo
temporal que paradoxalmente não se opõe à continuidade causando, ao mesmo tempo, sua destruição. Ele afirma: “cada fragmento é uma totalidade que nega a totalidade” (...) “onde a ausência de tempo leva à superabundância de tempo”.
Não nos esqueçamos, no entanto, que aquilo que Mendes considera como a boa música orquestral norte-americana desses anos foi um produto
historicamente situado, não afastado do cotidiano e que também respondia às manifestações de uma cultura de mercado.
David BRACKETT (2002) defende essa ideia ao constatar as diferenças de procedimentos existentes nessas esferas.
Observamos que John Zorn (1953), compositor norte-americano e saxofonista, que se utiliza de um verdadeiro caleidoscópio de materiais como
que acionados por controle remoto faz música que não pode ser considerada popular, sendo consumida no máximo por jovens intelectuais. Suas
composições receberam as etiquetas de vanguarda, jazz, experimental, free jazz, ruído.
“make it new” – termo proposto por Ezra Pound: significa “tornar algo novo”, achar alguma ideia nova no sentido de não ter sido ainda pensada.
Vera Lúcia Rocha Pedron Peres é graduada em História pela FFLCH (USP) e mestre em Artes (programa de Música
em Processos de Criação Musical pela ECA - USP) sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa. Estudou
harmonia e estética com o Prof. Hans-Joachim Koellreutter e piano com os professores: Sebastina Benda, Caio Pagano,
Amílcar Zani e Nahim Marun.
126
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
A memória e o valor da síncope:
da diferença do que ensinam os antigos e
os modernos1
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (UNICAMP, Campinas, SP)
[email protected]
Resumo: A síncope é um tema privilegiado nos estudos da música popular que reaparece aqui em um conjunto de considerações que, marcado pelo viés dos saberes das velhas disciplinas de Contraponto e Harmonia, sublinham a interação
e, principalmente, a inseparabilidade entre métrica (divisão, ritmo, acentuação, prosódia, etc.) e altura (notas, intervalos, relação dissonância-consonância, acordes, notas auxiliares, etc.) na apreciação crítica das figurações sincopadas.
Na primeira parte percorre-se uma mínima memória da arte e da teoria da síncope na tradição ocidental culta para, na
segunda parte, observar-se que, em medida tácita e sutil, resíduos dessa tradição afetam juízos de valor em alguns dos
sincopados cenários da música popular atual.
Palavras-chave: síncope; análise musical; teoria e crítica da música popular.
Memory and value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teach
Abstract: Syncopation is a privileged issue in popular music studies that reappears here in a number of considerations
that, marked by the bias of knowledge of the old disciplines of Counterpoint and Harmony, underline the interaction and,
especially, the inseparability between metric (division, rhythm, accentuation, prosody, etc.) and pitches (notes, intervals,
dissonance-consonance relationship, chords, auxiliary notes, etc.) in a critical analysis of the figures of syncopation. The
first part covers up a minimum memory of the art and theory of syncopation in the Western erudite tradition, so that, in
the second part, it can be noted that, in tacit and subtle manner, residues of this tradition can affect the value judgment
in some of the syncopated worlds of popular music today.
Keywords: syncopation; musical analysis; theory and criticism of popular music.
“Mas, porque omitiste a ligadura? Já disse que não devemos perder
qualquer ocasião para usar uma síncope .
Johann Joseph Fux, 1725 (FUX, 1971, p. 60).
1 - Introdução: da síncope letrada e sua
coexistência em cenários conflituosos
A síncope é assunto que se destaca nos “múltiplos discursos” que, como mapeou Travassos (2005), confirmam a
condição da “música popular como tema privilegiado da
cultura brasileira”.2 Procurando conversa com tais discursos o presente texto argumenta: a síncope é uma questão
de rítmica, mas é também, inseparavelmente, uma questão de alturas. Tal “ponto de escuta”, característico dos
antigos, especializados e consideravelmente privilegiados
textos e cursos formais do Contraponto e da Harmonia,
será reouvido aqui num percurso que delineia marcos da
síncope letrada desde os finais do século XV até os inícios do XIX. Sem deixar de valorizar a sempre lembrada
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
presença da síncope na música urbana da viragem para
o século XX até nossos dias, a intenção de uma re-escuta
assim é sublinhar que tais artesanalidades cultas, instituídas em cenários embaralhados, conflituosos, plenos de
interações negociadas e imprevisíveis, também se misturam nesse “um bocadinho de cada coisa” que compõem
a sincopada música popular que podemos escutar hoje.3
Nos centros musicais cultos da velha Europa, um lugar
capital de onde partiu ainda jovem (em formação) para
conquistar novos mundos, a síncope veio se consolidando como uma figuração de alto valor artístico na música
contrapontística culta da renascença. Quando madura,
essa será a síncope canônica, a síncope de catequização
Recebido em: 02/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
(cristã, ocidentalizante): a síncope de escola que no geral
se aprende, desde o iluminismo, através da codificação
fuxiana inspirada no modelo quinhentista observado na
música de Palestrina. Por conta de sua primeira datação
(séculos XIV ao XVI), a síncope já possui vasta cultura artística e teórica quando a incipiente tonalidade harmônica ensaia seus primeiros passos. Assim, se sabe, a síncope
do stile antico antecede a sistematização moderno-contemporânea dos compassos. Sem as barras do compasso,
mas não sem métrica, o deslocamento rítmico – que faz
a fama das figuras de síncope – se observa nessa música
pré-tonal, basicamente, nos deslocamentos dos acentos
do texto cantado (prosódia) e nos desvios da pulsação
pendular (cujo padrão se constitui da alternância periódica da consonância no tempo forte contra a dissonância
no tempo fraco), respeitando-se as convenções do andamento e das subdivisões rítmicas impostas pelos estilos
eruditos da polifonia vocal europeia.4
Se, no nível da artesanalidade, a noção pré-tonal de
síncope pertence a uma concepção de música que não
pôde imaginar o divórcio das alturas (notas e intervalos)
de seus desenhos rítmicos, em outro nível, tal música
também não pôde existir fora de um cenário ele próprio
sincopado. O mundo onde essa síncope modal, vocal e
contrapontística convive, interage e abre espaço para a
síncope tonal, instrumental e harmônica é o mundo onde
a Europa de um Tinctoris, passando por um Palestrina, se
transforma na Europa de um Rameau, de um J. S. Bach
e de um Beethoven. É também o mundo onde se descobre que é possível forjar o Novo Mundo (Novi Orbis). Um
cenário vivo, amplo, intenso, que sofre ligaduras de toda
ordem: musicais, sociais, culturais, linguísticas, econômicas, científicas, mitológicas, filosóficas, etc.
Parte desse mundo que assiste o florescimento da síncope pós-modal na Europa cosmopolita assiste também “a
revolução mais radical da história da música ocidental”
(HARNONCOURT, 1993, p.27): a conversão da música
determinada pelos cânones do Stylus gravis (primeira
prática ou stile ântico) para a música do Stilus luxurians (segunda prática ou stile moderno). Re-sinalizar
as célebres tensões entre as duas práticas é necessário
numa revisão que deseje destacar a presença da síncope
colonizadora que se fez ouvir nas circunvizinhanças das
missões cristãs interferindo massivamente na primeira idade da música popular que veio se inventando em
paragens do Caribe, Cuba, México, EUA, Jamaica, Haiti,
Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Chile,
Argentina, Brasil, etc. Territórios protetorados que se fazem reconhecer hoje por sua típica (enraizada, nativa,
natural, pura, peculiar, característica, exótica ou estereotipada) maneira sincopada de fazer música.5
Em tais “regiões periféricas à Europa ocidental – ideal de
civilização e fonte de modelos culturais para as sociedades em sua órbita” (TRAVASSOS, 2000, p.24), a exuberante síncope popular contemporânea (pós-segunda prática,
pós-barroca, pós-clássica, pós-romântica, pós-colonial,
128
etc.) possui qualidades que superam em muito tanto a
gravidade das síncopes do contraponto quanto os preceitos modernos da bela ciência da harmonia (dita hoje
tradicional). Com isso, mesmo desconsiderando fatores
históricos e sócio-culturais, tal exuberância “puramente
musical” já é capaz de invisibilizar o fato de que a síncope
pré-século XIX também compõe aquilo que somos hoje.
A tal ponto que, para um “ponto de escuta” musicológico mais incisivo: a síncope é “uma das mais importantes
fórmulas rítmicas surgidas nas Américas no século dezenove” e “pode-se afirmar que a síncope característica desenvolvida nas Américas não tem relação nenhuma com a
antiga sincope europeia” (CANÇADO, 2000, p.6).
Tal invisibilidade pode tornar-se um vício de método,
cercear consideravelmente nosso alcance crítico e comprometer nossas estimativas da profundidade, duração
e repercussão dos processos de sincretismo que o nosso velho Novo Mundo atravessa nas diferentes fases da
sua interminável descoberta. Não valorizar a presença
do stile di Palestrina – considerando que “a música de
Palestrina, devido ao seu caráter estritamente religioso
e seu conservadorismo, tornou-se o modelo ideal para a
Contra-Reforma” (CARVALHO, 2000, p.49-50) – pode nos
levar a não ouvir a presença da música da Igreja, essa superestrutura distribuidora de síncopes que, naqueles anos
da idade moderna (antecedendo e depois convivendo com
as menos lembradas músicas da ópera e das corporações
militares e com a, sempre citada, sincopada “música das
danças europeias de salão”) foi uma personagem institucional com grande poder de barganha na mixagem negociada que veio formando o ouvido musical destes lugares
ditos novos e populares.6
Nas disputas do moderno contra o antigo, a síncope é
um dispositivo caro aos antigos que os modernos vão
desapropriar e os contemporâneos vão transformar.
São muitos os registros para a apreciação desses apreços, apropriações e reinvenções e, considerando que
síncope “designa um conceito criado pelos teóricos
da música erudita ocidental [...], talvez não seja inútil
examinar como tal conceito foi formulado por estes”
(SANDRONI, 2001, p.20).
Mesmo que, no presente artigo, o entendimento de quem
são esses “teóricos da música erudita ocidental” difira
do elenco já referenciado por Sandroni, e mesmo que a
diacronia da síncope, com saltos e lacunas, seja re-delineada a seguir de maneira muito geral, defende-se aqui
a divulgação de um patrimônio conceitual e artístico (da
humanidade) que, grosso modo, ainda se encontra formalmente alienado dos limites precondicionados (usualmente sincrônicos e paramétricos) que vamos impondo
ao campo da música popular no âmbito acadêmico.
Algum apossamento desse legado histórico, teórico, técnico e culto (e por isso supostamente “desinteressante” para
alguns dos “múltiplos discursos” que cuidam do “nosso popular”) oportuniza também observar uma espécie de tra-
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
jetória por inflação (aumento excessivo, superabundância
com desvalorização, banalização, etc.). Notar tal inflação
– ou “diluição” no sentido de Pound (1986, p.42-43), ou
ainda “falsificação” no sentido de Adorno (2004, p.36-38)
– em dispositivos musicais como a síncope é tarefa meandrosa e imprecisa, mas pode ser útil nos estudos que abordam as interações contínuas e prolongadas que, praticadas por muita gente e em vários lugares ao mesmo tempo,
contribuíram com a formação e consolidação dessa música
que aprendemos a chamar de popular.
2 - Sobre a síncope do estilo antigo: quando
o muito longe se mostra muito perto7
Em seu Kontrapunkt, lA Motte prefere eleger Josquin
des Prés (c.1440-1521) como o “capítulo fundamental do
contraponto” (e não Palestrina como, desde Fux, se tornou o mais usual). Considerando os méritos musicais de
Josquin (e de outros compositores nascidos no século XV,
tais como Ockeghem e Isaak) e as diversas motivações de
La Motte, esta re-datação da disciplina permite observar
algo da arte e normalização da síncope europeia em fases
ainda anteriores aos anos de 1500. Anteriores assim aos
tantos efeitos das misturas e contra-misturas cada vez
mais inevitáveis e densas resultantes das tensões provocadas por ocorrências coexistentes e incisivas como a Reforma Protestante, o Atlântico Negro e as conquistas do
Novo Mundo que – em enredos traumáticos, difíceis de
descrever ou mesmo de imaginar – vão desterritorializar
e re-significar a síncope para sempre.
Ratificando a convicção de que na teoria culta europeia,
desde a mais elementar definição, na síncope as alturas não
se separam da métrica, La Motte (1998, p.76-89) argumenta: “a síncope (ou retardo) é uma dissonância que conquista
o tempo forte”. Assim, acompanhar a trajetória da síncope é
também “contemplar a emancipação da dissonância”:
Em Perotin [c.1160-1236] eram as consonâncias perfeitas [uníssono, 8ª, 5ª e 4ªs] as que regiam os tempos fortes. Com os neerlandeses, foram as consonâncias imperfeitas [3ªs e 6ªs], as tríades
maior e menor e o acorde de sexta [primeira inversão], as que conquistaram para si esta posição. A dissonância também vai abrindo
caminho em direção aos tempos acentuados e, nesta posição, a
dissonância é percebida como um acontecimento sonoro, da mesma maneira que a dissonância de passagem [colocada no tempo
fraco] que se utiliza como uma via para ir de uma consonância a
outra. Contudo, a dissonância se adentra nos tempos fortes com
extremada precaução. Em Josquim, as regras para o tratamento
das dissonâncias do tempo forte são extremamente rígidas [...].
Salvando-se umas poucas exceções, só existem três formas [Ex.1],
cada uma delas com duas variantes (LA MOTTE, 1998, p.76).
Observa-se ainda que na música de Josquin e seus contemporâneos a síncope não se emprega em qualquer lugar
nem o tempo todo. Essa estimada “dissonância acentuada” tinha um uso mais reservado, uma função específica
de “figura construtora de forma”.
Se quisermos nos aproximar da música de Josquin temos que estudar o papel de construtoras de forma que desempenham as dissonâncias acentuadas. A saber: essa forma de dissonância aparece
em meio do contexto musical de modo manifestadamente singular. Na maior parte dos casos se assinala com ela o final de uma
frase ou de uma passagem (LA MOTTE, 1998, p.78).
Culto e comedido esse uso da dissonância sincopada
como figura cadencial já está normalizado em 1477 no
Líber de arte contrapuncti de Johannes Tinctoris (c.14351511): essa é “a suspensão sincopada”, “a sincopação
descendente para uma cadência que é usualmente encontrada na polifonia da metade e final do século XV”
(TOMLINSON, 1998, p.403).8 La Motte (1998, p.78) ilustra
essa função de “fixação quase tonal”, esse papel de “conferir estabilidade momentânea”, com uma bela seleção
de fragmentos onde as figuras de síncope ornamentam
finalizações sobre diferentes graus dos modos. O Ex.2 reproduz algumas dessas pontuações.
Ex.1 - Tipificação das formas básicas das figuras de síncope em Josquin.9
129
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Ex.2 - A síncope como figura de dissonância em cláusulas escolhidas nas obras de Josquin.10
A partir desse marco renascentista – que nos ensina que
“a força expressiva e a beleza da dissonância acentuada
[retardo ou suspensão] se baseiam em parte em sua qualidade de síncope” (FORNER e WILBRANDT, 1993, p.128)
– essa conjunção melos-rythmos vai conhecer um vasto percurso artístico e teórico. Mas no essencial estará
sempre distendendo (inflacionando) o limite mecânicoexpressivo que podemos apreender aqui. O Ex.3 traz uma
síntese da fortuna crítico-teórica da síncope. Um concentrado de termos, conceitos e entendimentos considerados
importantes nas definições que, salvo diferenças pontuais, encontramos em diversos tratados e manuais. Grosso
modo, esta normalização serve como referência preliminar para a observação geral das síncopes na música culta
europeia dos séculos XVI ao XIX e também das síncopes
das músicas populares do século XX.
Entre a geração de Tinctoris (†1511) e Josquin (†1521) e
a de Palestrina (†1594), surge um dos grandes referenciais do antigo: o Istitutioni harmoniche (1558 e 1573)
do teórico, compositor e clérigo franciscano Gioseffe
Zarlino (1517-1590). Zarlino cuida da síncope em várias
passagens do Istitutioni... mostrando que o dispositivo
possui notável papel na música de seu tempo. O Ex.4,
extraído da terceira parte do Istitutioni..., discute três
diferentes casos de síncope. No primeiro temos a sincopação ¯9–8, i.e., a modernizadora resolução da dis130
sonância acentuada em consonância justa. No segundo
a ligadura ¯9–8 vem seguida da tradicional ¯7–6,
uma espécie de síncope de compensação que atenua
o grau de perfeição da oitava. E o terceiro apresenta
uma sequência de síncopes onde a sonoridade ¯9–8
se encadeia por elisão (inflação por justaposição) com
a síncope ¯7–6.
Dando um passo na história o Ex.5 traz uma mínima
amostragem da síncope na engenharia contrapontística
de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594). Conforme os estudos sobre o uso da dissonância em Palestrina publicados por Jeppesen em 1946, a síncope (a
dissonância acentuada) ocupa importância evidente no
tecido palestriniano. Jeppesen demonstra tal qualidade
quantitativamente: em 1489, 5 compassos examinados
nos Cruxifixus de 15 Missarum liber (livros de Missas) de
Palestrina, são encontrados 1163 síncopes dissonantes,
1006 notas de passagem e 315 bordaduras, perfazendo um total de 20,85% de dissonâncias. Examinando o
mesma quantidade de compassos nos Benedictus desses
15 livros, Jeppesen encontrou 955 síncopes dissonantes,
1469 notas de passagem e 445 bordaduras, num total
de 24,08% de dissonâncias (JEPPESEN, 1992, p.284-285).
O Ex.5b mostra uma resolução ornamentada, indício de
que, por inflação, os embelezamentos da desculpa (re-
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Ex.3 - Uma síntese da normalização tradicional da figura de síncope.11
solução) vão se tornar cada vez mais sofisticados. Para
comentar essa intensificação da ornamentação na parte
final da síncope Owen prepara dois grupos de figurações hipotéticas. No primeiro (Ex.6 a, b, c, d, e) aparecem
ornamentações da resolução típicas da suspensão préséculo XVII (OWEN, 1992, p.47). E o segundo (Ex.6 f, g, h,
i) adianta ornamentações que se consolidaram a partir do
século XVIII (OWEN, 1992, p.178).
Contudo, antes de adentrarmos de vez no período da síncope tonal, importa notar que estes poucos fragmentos
da síncope renascentista já são suficientes para que a
lição da “potência dos contrários” (ARISTÓTELES, 1998,
p.144) – lição de fundo da música (e da cultura) ocidental
– se reafirme: “A beleza é multíplice” escreveu Giordano
Bruno (1548-1600), o famoso teólogo, filósofo, escritor,
frade italiano e contemporâneo de Palestrina:
Entre coisas completamente similares, não existe beleza. [...] A
beleza se revela no engate das partes distintas: a beleza de tudo
consiste na própria variedade. [...] O princípio, o meio e o fim, o
nascimento, o aumento e a perfeição de tudo o quanto vemos
resulta de contrários, por contrários, em contrários e para os contrários (BRUNO apud TATARKIEWICZ, 1991, p.374 e 377).
131
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Ex.4 - Figuras de síncope da p.198 do Istitutioni harmoniche de Zarlino: Sincope ottimamente risolte.
a) Tu nobis dona fontem lacrymarum
b) Sicut cervus
Ex.5 - Amostragem de figuras de síncope em dois fragmentos de obras de Palestrina.12
132
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Ex.6 - Ornamentação da resolução (desculpa) da suspensão segundo Owen.
Na teoria de Zarlino – comenta ABDOUNUR (1999, p.43) –
a música, como a pintura, torna-se mais arrebatadora “se
for pintada com várias cores”. A arte dos sons “proporcionará maior prazer aos sentidos se proceder como a própria
natureza, que gera seres semelhantes de uma mesma espécie, mas contrapõe essa semelhança introduzindo diferenças e traços variantes infinitos”. Mestre do Stylus gravis,
Zarlino defende que a perfeição resulta do confronto de
elementos distintos, discordantes e contrários, possuindo
em suas partes, proporções, movimentos e tessituras variadas. Entende que a consonância precisa ser contraposta,
valorizada pela oposição da dissonância: a harmonia não
se dá entre coisas completamente semelhantes, “isso precisa até ser evitado” (i.e., proibido por regras) “em nome
de poupar o ouvido da insistência dessa perfeição”. Mais
tarde vamos ouvir SCHOENBERG (2001b, p.58) redizer: “as
expressões consonância e dissonância, usadas como antíteses, são falsas”. E DAHLHAUS (1990, p.21) reiterar: “o
pré-requisito de uma harmonia é a varietà ou a diversità”
Assim – artisticamente, tradicionalmente, eurocentricamente –, é um equivoco supor que “dissonâncias sincopadas” são aquilo “que não se pode fazer”. Sincopar não é
algo “do outro”, não é um “não-belo” ou uma “discordância” ingenuamente entendida como uma escolha que, jogando contra o patrimônio, seria “indesejável”, “proibida”
ou mesmo uma “contravenção ao ocidental”. O conceito é
bem mais nuançado e dinâmico. “Dissonâncias sincopadas” são forças de movimento e contraste, são estímulos
contrários, medidas de equilíbrio, dinamismo e risco que
dotam o discurso de expressividade, agudeza, engenho e
interesse.� O fato do acento dissonante ser fruto de uma
relação (e não algo em si) não se confunde com “cacofonia” ou “anormalidade”. Dissonância e consonância,
metro e contra-metro, se pertencem: um não se realiza
plenamente sem o outro. Entre o dito e o não dito, os “gênios” da música culta europeia são justamente aqueles
que dominam a arte da “conjunção dos opostos” (TOMÁS,
2002, p.97). Arte que se realiza no manejo das síncopes
e de tantos outros truques de deslocamento, distorção,
desencaixamento e contra-norma. A norma (o Canon, a
Lei), como afirmava Tinctoris em 1477 em sua famosa oitava (e última) “regra de uma condução de vozes ideal” é:
“que em todas as vozes contrapontísticas reine a diversidade melódica, rítmica e de qualquer tipo”, “a variedade é
exigência urgentíssima em todo contraponto”(TINCTORIS
apud FORNER e WILBRANDT, 1993, p.25).
3 - Normalização da síncope no estilo
moderno
Um belo registro dos inícios da era tonal, mostrando que
150 anos depois de Tinctoris a síncope era tema de conversas cultas (e não um pormenor de técnica restrito aos
especializados), se lê no Compendium musicae de 1618
escrito ainda em Latim por um jovem, educado entre
jesuítas, que se tornou conhecido como o filósofo René
Descartes (1596-1650).
A síncope se produz quando, em uma voz, o final de uma nota se
ouve ao mesmo tempo em que o começo de uma outra nota da
parte contrária [outra voz]. Como se pode ver no exemplo exposto
[Ex.7], onde o último tempo da nota B está em dissonância com
o início da nota C; contudo, isto se tolera porque a lembrança da
nota A se conserva nos ouvidos. E, assim, a B com respeito à C, é
só uma voz relativa na qual se suportam as dissonâncias. Mais
ainda, a variedade destas faz que as consonâncias, entre as quais
estão situadas, se ouçam melhor e inclusive provoquem a atenção,
pois, quando se ouve a dissonância BC, aumenta a expectativa e,
em certa medida, se suspende o juízo sobre a doçura da sinfonia
até que se chegue à nota D, na qual se satisfaz mais ao ouvido
e, todavia se lhe dá maior satisfação na nota E. Com esta, depois
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
de que o final da nota D manteve a atenção, a nota F, que vem
imediatamente após, forma uma perfeita consonância, pois é uma
oitava. Estas síncopes são utilizadas nas cadências, porque agrada mais o que finalmente chega após ter sido esperado durante
muito tempo; e por isso, depois de ter ouvido uma dissonância,
o ouvido descansa melhor em uma consonância perfeita ou no
uníssono (DESCARTES, 1992, p.108-109).
O Ex.8 ilustra a sincopação idealizada por Johann Joseph Fux (1660-1741) cento e poucos anos depois do
Compendium de Descartes. Nesta espécie de escritura
– que passou a ser a norma escolar do que é a síncope
no contraponto modal renascentista – o tal processo de
inflação se evidencia. A função cadencial da síncope se
diluiu e, seja por razões de eficiência didática ou pelo
distanciamento histórico e geográfico, o aprendiz, afastando-se da arte dos antigos mestres da síncope, deve
se preocupar menos com as funções construtoras de
forma e se esforçar ao máximo para encontrar o maior
número possível de ligaduras.14
Em 1725, nos diálogos do Gradus ad Parnassum, Fux
cuida da síncope na “Lectio quarta”: “a quarta espécie
do contraponto”
é chamada ligadura ou síncope, e pode ser consonante ou dissonante. A ligadura consonante resulta quando as duas mínimas, a
no arsis [tempo fraco] e a no thesis [tempo forte] são consonantes. [...] A ligadura dissonante resulta quando a mínima no arsis
é consonante (que deve sempre ser o caso), a mínima no thesis,
contudo, é dissonante (FUX, 1971, p.55).
Pouco antes, em 1722, Jean-Philippe Rameau (16821764) também destacou a síncope em seu Traité de
I’harmonie. No Livro 3 (“princípios de composição”), a
síncope dá título ao Artigo 7, para o qual RAMEAU (1986,
p.296-299) escreve um hipotético trecho musical (Ex.9)
ilustrando várias situações de síncope.15 Esse trecho
tem interesse teórico, pois, mesmo se mantendo fiel aos
números do contraponto e do baixo cifrado, concentra
potencialidades bastante avançadas (inflacionadas) em
relação ao que foi a antiga síncope de linhagem francoflamenga. Pelos números podemos ver que algumas ligaduras são efeitos rítmicos (cifradas com 3, 6, 5 e 8,
ou seja, são consonâncias) enquanto que outras mostram
tensões notáveis: a ligadura já parte de intervalo dissonante (o trítono, 4# ocupando posição de preparação!);
a resolução do intervalo dissonante (4#) se dá na outra
voz (baixo); o intervalo dissonante (2) se intromete na
posição métrica de resolução; a voz que provocou a dissonância se movimenta por grau ascendente (4#6) ou
mesmo salta (26); o último 7, ao se resolver em um 5,
ilustra também a ousada possibilidade de uma desculpa
(resolução) cair sobre uma consonância perfeita, o que
seria proibido no estilo polifônico rigoroso (CARVALHO,
2000, p.90; LA MOTTE, 1998, p.76-77). Definitivamente o
moderno Rameau não é mais um professor de contraponto modal do século XVI, e muitas das licenças sugeridas
nesse trecho só se tornaram arte na música dos finais do
século XVIII e ao longo do século XIX.
Ex.7 - A síncope segundo Descartes no Compendium musicae de 1618.
Ex.8 - Síncopes no Gradus ad Parnassum de Johann Fux (1971, p.61).
134
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Implicado com Rameau (e com a “Harmonia”, emblemas de um estado social causador dos males da condição humana) o philosophe-musicien Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) não deixou faltar um verbete
para a “Syncope” no Dictionnaire de musique que publicou em 1768:
Síncope é a prolongação sobre o tempo forte de um som começado
em tempo fraco; assim toda nota sincopada está em contratempo,
e toda sucessão de notas sincopadas é uma marcha em contratempo. [...] A síncope tem seus usos na melodia para a expressão e
o goût du chant; contudo sua principal utilidade está na harmonia
para a prática das dissonâncias. A primeira parte da síncope serve como preparação: a dissonância se ataca na segunda; e numa
sucessão de dissonâncias, a primeira parte da sincopa seguinte
serve, ao mesmo tempo, para salvar a dissonância que precede
e para preparar a que segue. [...] O senhor Rameau pretende que
esta palavra derive do conflito dos sons que se entrechocam de
alguma maneira na dissonância; porém as sincopas são anteriores
à nossa harmonia, e muitos casos existem de síncopes sem dissonância (ROUSSEAU, 2007, p.368-369).16
Outro letrado que marcou a teoria musical na segunda
metade do século XVIII foi Johann Philipp Kirnberger
(1721-1783). Como uma espécie de prenúncio da era
clássica seu trabalho é considerado uma síntese que reúne e reavalia a antiga tradição contrapontística, a arte
do baixo contínuo de viés bachiano e as modernas ideias
do baixo fundamental de Rameau (KIRNBERGER, 1979;
LESTER, 2006, p.773; WASON, 2006, p.57). Em 1773,
ocupado com os verdadeiros princípios para a prática
da harmonia, Kirnberger enfrentou sistematicamente as
suspensões dissonantes deixando um registro detalhado
(minimamente referenciado no Ex.10) de como músicos
de então poderiam entender, explicar e cifrar (numa dis-
pendiosa inflação de números) o fenômeno inflacionado
das ligaduras em uma, duas, três ou mesmo quatro vozes.
Nesse mesmo período (séculos XVII e XVIII), no vasto campo das figuras retóricas da música barroca alemã – a cultura musical matizada pelo viés reformista luterano –, a
síncope tem lugar assegurado no conjunto das “figuras de
dissonância e deslocamento” (Bartel,1997, p.446), ou “figuras de dissonância que afetam a harmonia e a condução
de vozes” (López-Cano, 2000, p.167-168). Vale notar que
Josquin também é referência para o mundo luterano, pois,
por sua mestria, controle e ordenação dos recursos musicais “esse primeiro músico de expressão moderna” (LA
MOTTE, 1998, p.xi) personifica uma aspiração nascida já
nos primórdios da época burguesa, de “compreender” com critério
de ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e de resolver
a essência mágica da música na racionalidade humana. Lutero
chama Josquin [...] “o mestre das notas que devem ter feito o que
ele queria, enquanto os outros mestres da música devem fazer o
que as notas queriam”. Dispor conscientemente de um material
natural significa a emancipação do homem com respeito à coação
natural da música e a submissão da natureza aos fins humanos
(ADORNO, 2004, p.57).
Segundo Bartel (1997, p.396-405), a síncope (syncopatio ou ligatura), uma suspensão com ou sem uma dissonância resultante, é um dos mais antigos dispositivos
descritos pelos teóricos como um dos principais meios de
formar e embelezar uma composição.19 Esse “ponto de
escuta” da síncope foi registrado por diversos tratadistas
e professores, dentre os quais Bartel compila as passagens onde Susenbrotus,20 Burmeister, Nucius, Thuringus,
Kircher, Bernhard, Janovka, Walter e Sheibe definem e
exemplificam a figura da síncope.21
Ex.9 - Demonstrações de síncopes modernas conforme Rameau em 1722.17
135
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Esse percurso de mais de três séculos – que separa (e
une) as cláusulas sincopadas de Tinctoris, as cadeias de
suspensões de Fux e as sincopações normalizadas por teóricos da harmonia moderna e pelos cultores da retórica
musical – dá pistas das transformações que a síncope sofre no âmbito da própria música e teoria culta europeia.
Esse tipo de processo de re-funcionalização, diluição ou
deslocamento (onde um dispositivo anteriormente reservado para um determinado papel se vê expandido para
papéis diferentes), ora desqualificando e ora qualificando,
também se faz notar na formação disso que agora chamamos de música popular urbana. Música onde a transformação modernizadora, afirmadora, re-significadora ou
trans-cultural surge em meio a percursos assim, de inflação, e não propriamente, ou exclusivamente, da invenção
de algo que jamais se fez antes.22
Tal processo de adesão excessiva a um determinado dispositivo pode carregar o valor negativo de maneirismo
(afetação, excesso, banalização, etc.). Estigma que contribui na desvalorização de uma artesanalidade que pode,
por isso, ser vista como um stilus luxurians demais, um
estilo imoderado, misturado, popularesco, de mau gosto, desinteligente, indiscreto, pobre e inculto justamente
porque deseja imitar o culto (o rico, o inteligente, o original, etc.), e tal imitação se mostra, ou é percebida como,
ilegítima, exagerada e indecorosa.23
4 - Retransformação: da síncope moderna
para a síncope do estilo livre
Toda essa polifonia – as músicas e teorias que perpassam
os séculos XV ao XVIII – assiste o surgimento de uma síncope sincrética, um dispositivo novo (moderno) que se consolidou no estoque das dissonância da tonalidade harmônica
(notas de passagem, bordaduras, cambiatas, escapadas,
apojaturas, antecipações, etc.). Uma síncope expandida
que, em boa parte da narrativa contemporânea (séculos
XIX e XX) da história da música universal (i.e., da música
culta da Europa na Europa e nas suas colônias), vai se fazer
representar por aquilo que a síncope (ligadura, retardo ou
suspensão) se tornou na emblemática música de J. S. Bach.
O que deu cunho específico à música do Barroco foi a experiência
conjunta de toda a Europa que teve [...] na obra de Bach seu ponto
culminante. ‘E como toda a música alemã posterior remonta a Bach,
o gênio musical alemão, dominaria de futuro no mundo ocidental’
[...]. A obra de Bach é simultaneamente ponto de confluência e ponto de partida. Ponto de confluência da música europeia e ponto de
partida da música futura das nações. (NEUNZIG, 1985, p.9).24
Barroca, clássica e romântica, a síncope dessa universal
“música futura das nações” se faz representar minimamente nos fragmentos reunidos nos Ex.11 e 12. Nesses
fragmentos as três etapas da antiga síncope – preparação, ligadura e resolução – vão sofrendo inflações de
todo tipo: mutações, implantes, variações, ornamentações e combinações com outras diferentes espécies de
dissonâncias. A rítmica da síncope é usada em texturas
homorítmicas sugerindo o caminho para a sincopação
das figuras de acompanhamento (Ex.11a). Entre a dissonância e sua resolução surgem permeios bastante sofisticados (Ex.11b). Cadeias de síncopes agora já ocupam
papéis motívicos temáticos (Ex.11c). E certos mestres nos
surpreendem com resoluções ascendentes (Ex.11d).
No correr dos séculos XVIII e XIX a teoria se vê obrigada a distinguir coisas que estão se tornando independentes na síncope: de um lado o deslocamento métrico
e de outro as espécies de dissonâncias. A dissonância
ocupa a preparação (Ex.12a). O desenho rítmico agora pode estar carregando dissonância de antecipação
(Ex.12b) e não mais exclusivamente de suspensão ou
retardo. Surgem novos usos para a síncope da antiga
prática (Ex.12c). As suspensões não são explicitamente
resolvidas (Ex.12d). Agora, rompendo a sisudez do estilo estrito, já estamos ouvindo o galante estilo livre. E,
como dizia o teórico musical alemão Heinrich Christoph
Koch (1749-1816) em 1782: “no estilo livre, dissonância
não precisa ser preparada” (KOCH apud RATNER, 1980,
p.23). Agora, contando com esse “poderoso recurso para
a produção de tensão expressiva, personificando em si
o princípio estético essencial da tensão e relaxamento”
(BENJAMIN, 1986, p.69), a musica burguesa europeia,
caucasóide e culta, alcança a textura legítima e recorrente da sincopação plena (Ex.12e).
Ex.10 - O acorde perfeito maior e suas suspensões dissonantes segundo Kirnberger em 1773. 18
136
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
a) Johann Gottfried Walter (1684-1748), Musicalisches Lexicon, 1732.
b) Johann Sebastian Bach (1685-1750), Concerto Italiano
c) Johann Sebastian Bach, Inventio 6 (BWV 777)
d) Johann Sebastian Bach, um caso de resolução ascendente
Ex.11 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderna. 25
137
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
Com esses poucos fragmentos vamos percebendo que,
com acentos vários, a figura de síncope é uma filha natural dessa “música das nações”, dessa babel pós-bachiana,
desta hegemônica tonalidade harmônica que nos cerca.
Vamos apreendendo que o “conflito com a métrica prevalecente” (SALZER e SHACHTER, 1999, p.67) e o atrito com
a consonância predominante que se dão numa síncope
não são defeitos (arritmia, deformidade, imperfeição, fraqueza moral, funcionamento irregular ou falho, carência
de linhagem, ou coisas do tipo). E que, embora seja uma
tarefa um tanto dispendiosa, é possível notar que os traços de síncope estão mesmo certificados em tanta arte e
registrados em tanta teoria.
5 - Valoração: algumas síncopes são mais do
que outras
Um registro da síncope feito pelas elites letradas no Brasil nos inícios do século XIX foi deixado pelo mestre capela da Sé de São Paulo, o tenente coronel André da Silva
Gomes (1752-1844). No seu tratado A arte explicada de
contraponto, Silva Gomes cuida da Ligadura nas lições
9ª a 13ª (LANDI, 2006, p.184-200). O zeloso espaço reservado ao assunto evidencia que, mesmo aqui – num
Brasil dos idos anos de 1800 quando uma música popular
vem se formando ao redor das igrejas, das corporações
militares e das aglomerações urbanas – o efeito retórico
expressivo da síncope é algo de grande valor a ser aprendido com cuidado e diligência pelo músico que está sofrendo a sua devida catequese ocidentalizante.
Conhecedor dos segredos da arte que explica, Silva Gomes
sabe dos efeitos da síncope. Sabe que se trata de um contrário ao que é o regular, sabe do seu real deslocamento.
Mas sabe também que esses efeitos não são impróprios,
antes são valores artísticos altamente positivos na arte
católica, conservadora e ocidental. Como todo músico minimamente treinado nos cânones da arte europeia, sabe
que não se trata de tomar um único partido: tempo e contra-tempo, acordo e tensão, não são valores excludentes,
são forças constituintes da música que interagem numa
negociada síntese de opostos. “Essa ação e reação que da
luta recíproca de forças discordantes extrai a harmonia do
universo” (BURKE apud TOCH, 2001, p.146).
Ao final da 9ª lição, Silva Gomes faz um precioso comentário, “Preceitos concernentes aos Usos e Modos
de Formar a Ligadura”, que antecede as lições específicas sobre a Ligadura:
Tendo estabelecido os Sábios a variedade de Espécies com que se
propuseram a organizar o corpo da Composição, admitidas e ordenadas as Agradáveis Consonâncias e aspirando a tornar aprazível
o som das mesmas Dissonantes fazendo que elas fossem índices
sensíveis da bela Harmonia, querendo, parece de propósito, chocar
primeiro o ouvido com a Dissonância, para que depois ficasse mais
susceptível e recebesse com maior recreio a Consonância que se
seguisse; nestes termos, proporcionando os Meios para que isso
se conseguisse, eles estabeleceram experimentados preceitos entre os quais um deles muito especial e capaz de modificar a dura
aspereza da Dissonância foi o uso e modo de unir estas Espécies
com Ligaduras, chegando por esta descoberta a ponto de introduzir felizmente e com estimável apreço, as Falsas e Dissonantes
138
nas Composições, prescrevendo as partes que a Ligadura se deve
dividir, não menos do que muitas inerentes circunstâncias, todas
importantes e precisas para o feliz êxito de uma bem ajustada
Composição (SILVA GOMES in LANDI, 2006, p.184).
Assim, Silva Gomes re-ensina a grande regra: tratar da
síncope é tratar da variedade como valor estético, pois
“In omni contrapuncto varietas accuratissime exquienda est” – “a variedade é exigência urgentíssima em todo
contraponto” (TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT,
1993, p.25). Conforme o musicólogo alemão Heinrich
Besseler (1900-1960), no século XV
entendia-se por varietas uma modificação da técnica musical de
qualquer tipo que se pudesse pensar, tendo essa modificação o valor de preceito principal. Quer dizer que a repetição de grupos ou
desenhos de notas, a repetição do mesmo e de coisas similares ou a
reaparição de um determinado ritmo no compasso seguinte era mal
vista. A ideia melódica deve apresentar a cada momento algo novo,
inesperado, surpreendente. Não se busca a regularidade, mas sim a
irregularidade (BESSELER apud LA MOTTE, 1998, p.18).
Como os demais tratadistas, Silva Gomes distingue
duas qualidades principais de ligadura: A ligadura precisa (a síncope necessária, i.e., a dissonante) “refere-se
ao tratamento da suspensão, onde a nota ligada deve
ser preparada e seguida de sua resolução, ordinariamente, por grau conjunto descendente” (LANDI, 2006,
p.41). A ligadura voluntária “refere-se ao tratamento
da síncope, pela qual ocorre apenas um jogo alternante de consonâncias podendo a nota ligada ser tratada
livremente, isto é, alcançada e/ou deixada por grau
conjunto ou salto” (idem).
Como o Ex.3 já pré-anunciou, tal distinção específica é técnica, mas é também uma distinção de valor: agrega capital
artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar. Consolidada no ambiente sacro erudito pré-moderno, tal distinção técnico-valorativa sofreu seus sincretismos e numa
espécie de repercussão impremeditada se fez qualidade de
grande apreço nos mundos contemporâneos das músicas
populares sincopadas. A distinção se fundamenta na concepção artística de que, embora não seja possível nem desejável desenvolver tramas musicais só com a ligadura precisa
(a síncope dissonante), seu uso implica habilidade, beleza,
esmero e maestria, implica em agudeza e engenho.�
Não se trata, é claro, de excluir totalmente o uso da ligadura voluntária (a síncope consonante). Trata-se de
colocá-la em seu devido lugar e proporção. Entre as duas
se estabelece uma relação intencionalmente assimétrica: uma variedade equilibrada por uma desigualdade. O
conhecedor do ofício, o “gênio”, se faz reconhecer pelo
uso da síncope mais difícil, expressiva, complexa, variada, inteligente e criativa, ou seja: a síncope de tipo dissonante e/ou ornamentada. De maneira relativa, geral, e
combinada com uma série de fatores diversos (musicais e
extra-musicais), vamos notar que estilos, gêneros, músicas
e músicos que invertem tal assimetria – i.e., usam mais
ou usam demais as síncopes consonantes – são julgados
como algo de qualidade menos artística, mais pobre, inferior, monótona, vulgar ou menor.
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
a) Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), fragmento do Quarteto, K. 387, Molto Allegro, 1782.
b) Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), Kurze und leichte Klavierstucke, n. 12.
c) Franz Joseph Haydn (1732-1809), Sonata n. 12.
Ex. 12 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 26
139
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
d) Ludwig van Beethoven (1770-1827), Sonata, op.1, (Pathétique), Rondo, 1798-99.
e) Robert Schumann (1810-1856), Kinderscenen, op. 15, n. 10 (Fast zu ernst), 1838.
(Cont.) Ex. 12 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 26
6 - Síncopes características: os garfinhos na
música popular brasileira
Não raro tal distinção – que, vale insistir, não é autosuficiente, pois é apenas uma das tantas especificidades
que atuam nos domínios de um campo – realça matizes
xenofóbicas e nacionalistas: a “melhor sincope” (a “boa”,
a “característica”) é a “mais brasileira” (ou, para outras
pessoas, em outros lugares, será a “melhor” ou a “mais”
caribenha, cubana, negra, portenha, jazzista, etc.). O critério está sutilmente presente na distinção entre o que é
música sincopada mais ou menos “comercial” (síncopes
difíceis vendem menos, são menos dançáveis, e são percebidas como tristes, problemáticas, etc.) e entre o que
é mais ou menos “tradicional” (síncopes difíceis são mais
legítimas, antigas, originais, verdadeiras, de raiz, etc.).�
Não formalmente expressa – e sempre entre aspas, pois
140
tudo isso tem validade delimitada –, tal distinção atua
no nível do conhecimento tácito, subentendida, é uma
espécie de segredo recôndito que contribui para alimentar a crença estereotipada de que “algumas síncopes são
superiores” e por isso devem ser “separadas e conservadas” como cultura autêntica e pura. Com isso, dentro
deste campo da música popular, algumas músicas, seus
músicos e simpatizantes, podem perfeitamente não reconhecer ou validar esse tipo de critério, enquanto que
outros vão se identificar totalmente com ele.�
O Ex.13 reúne algumas síncopes brasileiras intencionalmente escolhidas em obras emblemáticas produzidas por
mestres da “nossa” artesanalidade sincopada recente.
Antes, uma observação deve ser feita. Esses fragmentos
são grafados aqui de maneira simplificada, sugestiva e
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
provisória e visam ilustrar o argumento (de que as combinações das qualidades das alturas nos desenhos rítmicos
das síncopes influem numa distinção valorativa). Como se
sabe, nas músicas populares uma composição não se fixa
com demasiada rigidez, já que na escrita, leitura, interpretação, arranjo ou improvisação que se pratica nesse
campo tudo isso (notas, tessituras, divisões rítmicas, articulações, quantidades e qualidades dos acordes, tonalidades, instrumentação, andamentos, etc.) vai mesmo se
modificando a cada singular recriação. Certamente tais
impermanências implicam em medidas analíticas objetivas (quais intervalos são consonantes ou dissonantes,
quais figurações são sincopes ou não, etc.) que vão diferir
substancialmente das medidas aferidas aqui.
A intenção do Ex.13 é estimular associações entre, por
um lado, o que conhecemos destas obras e autores, o lugar e o valor que estes “nomes” – o “feitiço do nome do
mestre” como dizia Walter Benjamin (apud BOURDIEU,
2007, p.287) –, ocupam na música, na cultura, na economia, no mundo social em que vivemos.� E, por outro
lado, a ocorrência objetiva de letras “d” (dissonâncias)
contrapostas às letras “c” (consonâncias). Importa notar a relação de proporção/desproporção entre “d” e c”,
a variedade (riqueza, complexidade, originalidade) das
combinações sequenciadas e a qualidade das posições
ocupadas. Por ex., “d” em preparações ou resoluções pode
ser sinal de engenho, criatividade, modernização, virtuosismo, impureza, etc.; “c” em lugar de suspensão pode
ser sinal de imperícia, menor qualidade artística, humor,
ironia, etc. Importa notar que o valor tradicional (tonal,
ocidental) não está na opção por “d” ou por “c”, e sim no
equilíbrio ou desequilíbrio conseguido entre elas. Combinações “d” e “c” também dão indícios do desenvolvimento
causa-efeito da trama. Por ex., estereotipadamente, “c”
pode indicar repouso ou distensão, enquanto que “d” implica em tensão e movimento, etc.
Contudo, é preciso frisar com clareza que tais associações
ou referências não são suficientemente alimentadas exclusivamente pelo puro isolamento técnico-objetivo das
combinações entre “d” e “c”. Como se sabe, o valor em
música popular é uma grandeza relacional, depende de
efeitos combinados onde aspectos incontáveis e diversos
interagem. Assim, os parâmetros de ritmo e altura jamais
estão sozinhos na tarefa de julgar qual é ou não a boa
síncope. O ritual leva em conta quem está fazendo música
para quem, aonde e por que, o texto das canções, as qualidades da harmonia, o timbre, a tessitura, o vibrato, o andamento, a instrumentação, o volume, os processamentos de mixagem, a mise-en-scène, a expressão corporal,
a iluminação, os olhares, todo o ambiente que um fato
musical evoca incluindo o tamanho, o comportamento
e a adesão de algum público aficionado, etc. Enviesadamente os fragmentos amostrados no Ex. 13 realçam tão
somente os aspectos do controle das alturas que compõem a melodia (intervalos consonantes ou dissonantes,
notas do acorde ou notas auxiliares, tensões disponíveis,
preparação, suspensão, resolução, etc.), mas o horizonte
de compreensão da questão das síncopes características
(brasileiras ou outras) é, como se sabe, bem mais amplo e miscigenado. A síncope é também (ou muito mais)
uma questão de elocução, um modo de expressar, assim,
não é propriamente uma questão exclusiva da composição (notação, etc.), é um componente de interpretação e
performance, um tipo de pronúncia ou sotaque que atua
também (ou muito mais) no tecido rítmico dos “acompanhamentos” destas melodias.
7- Em conclusão
A visita a esta memória da síncope oportuniza notar
que, na arte e na teoria, a síncope não é uma noção
unívoca que se acha homogeneamente pré-estabelecida
e paralisada em algum lugar. Como tantos dispositivos
musicais que vão atravessando o processo da colonização ocidental, a síncope da tradição erudita não é um
patrimônio privativo e anistórico que, puro, ileso e autônomo, vai percorrendo épocas e lugares sem sofrer redefinições e experimentar novos usos e pronunciações.
Arguta, prestigiosa, institucional, dominadora e milenar,
essa síncope letrada toma parte das “mestiçagens que
nos constituem” (BARBERO, 2008, p.262), é uma das
muitas “falas” – das muitas maneiras de pensar, de ver,
ouvir, fazer e julgar – que discursam nas longas e tortuosas conversas que estão na linha do telefone-sem-fio
das transformações do mundo.
Mesmo correndo o risco de reelaborar o que já está
dito em alguns dos “múltiplos discursos sobre música
popular”, vale concluir notando que observações desta
natureza – a busca de uma historicidade formativa do
que seria a síncope brasileira, a busca do que e em
que medida compõe uma espécie de DNA, ou de “alma”
da musicalidade brasileira, etc. – dependem do cruzamento de um espesso caldo de considerações. E nesta
densa trama de “impossível pureza” (BARBERO, 2008,
p.263), de inúmeras e inacabadas interações transformativas, as qualidades e posicionamentos das alturas
no interior do desenho rítmico da síncope são apenas
mais alguns dos mínimos detalhes, frações pequeninas
de artesanalidade sutil e subliminar, que se misturam
nos nossos julgamentos de valor.
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
a) Ernesto Nazareth (1863-1934), Brejeiro, maxixe.
b) Pixinguinha (1897-1973), Carinhoso, choro-canção.
c) Pixinguinha, Lamentos, choro.
Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB. 31
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
d) Tom Jobim (1927-1993), Chega de Saudade.
e) Hermeto Pascoal (1936-), Surpresa.
(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.
143
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
f) Edu Lobo (1943-) e Vinícius de Moraes (1913-1980), Só me fez bem.
g) Gilberto Gil (1942-) e Capinam (1941-), Soy loco por ti América.
(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.
144
FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
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Notas
1 A expressão “da diferença do que ensinam os antigos e os modernos” foi tomada de LANDI (2006, p.122).
2 Considerando que “a música popular atrai os eruditos” e “pesquisadores vinculados às universidades”, Travassos (2005) mapeia a produção acadêmica que trata da música popular nos campos da etnomusicologia, antropologia, estudos literários, semiótica da canção, sociologia e historiografias.
Para Sandroni, que tratando da “síncope brasileira” relê diversos estudiosos (tais como Edison Carneiro, Mario de Andrade, Andrade Muricy, Oneyda
Alvarenga, Nogueira França, etc.), “de fato, alguns musicólogos viram na síncope uma característica definidora não apenas do samba, mas da música
popular brasileira em geral” (SANDRONI, 2001, p.19). Sobre a síncope como um tema privilegiado nos estudos da música brasileira ver Andrade
(1989; 2006), CANÇADO (2000), Machado (2007), Napolitano (2007), Sandroni (2001), Sodré (1979) e Wisnik (2003).
3 A expressão “um bocadinho de cada coisa” foi tomada de BESSA (2005).
4 Sobre as normas de adequação música e texto (Latim) na polifonia ver Benjamin (1979, p.9-10),
Carvalho (2000, p.105-107), Forner e Wilbrandt (1993, p.103-105), Jeppesen (2005, p.38-47) e La
Motte (1998, p.174-181).Tratando da “inclusão do ritmo” no estilo palestriano Forner e Wilbrandt
(1993, p.96-103) sugerem a unidade de tempo de 70 pulsações por minuto, nesse andamento a
figura de síncope ocupa duas unidades de tempo. O andamento é um fator a ser considerado na
re-significação da síncope. Para uma comparação acentuada com um caso atual de “síncope brasileira” onde a figura de síncope ocupa uma unidade de tempo, temos que, “enquanto no Rio [de
Janeiro] a pulsação média dos sambas[-de-enredo], nos desfiles [de carnaval], tem sido de 132 a
138 [pulsações por minuto], ela é de 138 a 144 em São Paulo, pela marcação de 1989” (IKEDA,
1990). Assim, no andamento, é vertiginosa a diferença que se observa entre uma suposta síncope
palestriniana e uma estereotipada síncope de samba-de-enredo.
5 O uso do termo massivo em contexto anterior aos meios de comunicação de massa foi sugerido por GarcÍa Canclini (2003, p.255-256): “A rigor
o processo de homogeneização das culturas autóctones da América começou muito antes do rádio e da televisão, nas operações etnocidas da
conquista e da colonização, na cristianização violenta de grupos com religiões diversas, – durante a formação dos estados nacionais – na escolarização monolíngue e na organização colonial ou moderna do espaço urbano. [...] A noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam
massificadas”.
6 Uma alusão ao título de NEVES (1985). O próprio termo “católico” – do Latim catholice (universalmente), catholicus (universal, geral, regular),
catholicum (regra geral), catholica (propriedades gerais, o universo), (Torrinha, 1942, p.130) – é útil para pensarmos a memória da síncope. No
cadinho que nos coube nesse Novo Mundo, aprendemos a falar da “síncope brasileira” (ou, conforme o narrador, da “síncope cubana”, da “sincope
jamaicana”, da “síncope do Ragtime norte-americano”, etc.) da mesma maneira que aprendemos a falar de um catolicismo “brasileiro”. Um sutil
contra-senso, já que o termo “católico” pretendeu dizer justamente aquilo “que é universal”. Mas esse contra-senso (esse universal vertido em
particular) deslocou-se frente ao fato de que, apesar das origens (já sincréticas) do termo e da própria religião, o Brasil, como outras paragens do
Novo Mundo, acabou negociando seu jeito particular de ser “católico”. E esse “jeito de ser”, esse “modo próprio de perceber e narrar, contar e dar
conta” (BARBERO, 2008, p.261) acaba sendo reconhecido como tal.
7 A expressão “muito longe, muito perto” foi tomada de SAFATLE (2007).
8 Datado de 1477 o Líber de arte... de Johannes Tinctoris (c.1435-1511) é um marco renascentista do registro teórico da síncope. Tal registro foi precedido – informa RIEMANN (1962, p.249-250) – por normalizações da síncope encontradas em tratados franceses cem anos mais antigos. Tratados
como o célebre Ars nova (c.1322), o Ars perfecta in musica e o Liber musicalium atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361), e também em trabalhos
atribuídos a Johannes de Muris (c.1290-c.1351) como o Libellus cantus mensurabilis (c.1340). No repertório as dissonâncias sincopadas também
estão presentes nessa música do século XIV, p.ex., em obras de Philippe de Vitry, Guillaume de Machaut (c.1300-1377) e Francesco Landini (c.13271397). Cf. Grout e Palisca (1994) e Palisca (1996). Observa-se com essas tão antigas figuras novas que, desde cedo, no “canto polifônico racional”, a síncope é um pormenor sui generis dentre os “meios técnicos de expressão” que, “com a finalidade de moldar a paixão”, decorrem daquilo que
o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) chamou de “notação racional” (cf. LIMA REZENDE, 2009). Por volta de 1911, em seu “fundamentos racionais e sociológicos da música”, WEBER (1995) destacou correlações entre a “notação” e o “papel fundamental que a Igreja desempenhou em todo
o processo de racionalização” que culminou na moderna música ocidental – a música “condicionada” pela “Akkordhamonik” (harmonia de acordes).
E que isto tenha sido possível teve seu fundamento [...] nas soluções precedentes de problemas tecnicamente racionais. Assim particularmente na
criação da notação racional (sem a qual nenhuma composição moderna seria sequer concebível) e, já antes, na criação de instrumentos determinados que impeliam à interpretação harmônica dos intervalos musicais, e sobretudo na criação do canto polifônico racional. Teve papel nessas
realizações na Alta idade Média o monacato dos territórios missionários do Norte-Ocidente, que sem suspeitar o alcance posterior de seus atos
racionalizou para seus fins a polifonia popular [...]. Foram particularidades absolutamente concretas – condicionadas sociologicamente e pela
história da religião – da situação externa e interna da igreja cristã no Ocidente que originaram ali, a partir de um racionalismo próprio apenas ao
monacato do Ocidente, esta problemática musical, que na sua essência era de tipo “técnico” (WEBER, 1995, p.50-51).
9 Adaptado de La Motte (1998, p.76). No exemplo a letra “c” corresponde a um intervalo consonante e a letra “d” a um dissonante. Por conseguinte,
suspensões como ¯9-8, ¯2-1,¯4-5, ¯7-8, bem como as eventuais resoluções ascendentes (que aparecem mais tarde na música culta europeia), não
estariam ainda em uso na época de Josquin (LA MOTTE, 1998, p.77). Note-se ainda que o desenho de síncope não é puramente melódico, já que
depende de no mínimo duas vozes.
10 Conforme La Motte (1998, p.78-81). Para estimular comparação com uma grafia da síncope que aparece na música popular atual, as cláusulas
dos Ex. 2a e 2b foram reescritas (no destaque) em compasso dois por quatro.
11 O Ex.3 procura resumir diversas referências. Em um primeiro grupo – reunindo autores que seguem a normalização proposta por Fux, onde a
síncope ocupa a destacada posição de quarta espécie de contraponto – estão: Carvalho (2000), Forner e Wilbrandt (1993), Forte e Gilbert
(2003), Fux (1971), Jeppesen (1992; 2005), Kennan (1987), Owen (1992), Salzer e Shachter (1999), Schenker (1987) e Schoenberg
(2001a). Dentre os que não seguem as espécies fuxianas estão: Benjamin (1979), La Motte (1998) e Piston (1998). Os termos usados em tratados
brasileiros e portugueses nos séculos XVIII e XIX foram recolhidos em Fagerlande (2002) e Landi (2006). Para estudos que abordam as relações
entre métrica e altura na tonalidade harmônica ver Berry (1985), Cooper e Meyer (2000), Komar (1971), Kramer (1985) e La Rue (1989).
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.
12 Conforme Benjamin (1979, p.150 e 173). Esses fragmentos não trazem todas as informações que constam na partitura e os comentários analíticos
são parciais.
13 O uso da dissonância é assim um critério de valor altamente positivo no julgamento artístico ocidental. Seu emprego denota risco, virtuosismo, habilidade e maestria composicional. Com isso, Palestrina pôde ser considerado um dos grandes do seu tempo porque, entre outras coisas, conseguia usar
mais dissonâncias do que outros maestros da época. No ranking demonstrando estatisticamente a capacidade de uso de diversas dissonâncias (notas
de passagem, suspensões, bordaduras e antecipações) compilado por Huang e Chew (2005) com o auxílio de um software para análise musical,
vemos que Palestrina aparece em primeiro lugar com 18,37% de dissonâncias, em segundo vem Tomás Luis de Victoria (1548-1611) com 14,8%,
depois William Byrd (1540-1623) com 10,57% e por fim Orlando di Lasso (c.1530-1594), com 7,84%.
14 Não se trata, é claro, de uma não percepção do ideal de diversidade defendido pelos grandes teóricos do renascimento como Tinctoris e Zarlino. Fux
conhece a importância artística da variedade, basta ir até à sua 5ª espécie, por isso mesmo chamada de “contraponto florido” (FUX, 1971, p.64-67).
Mas é que o diligente Fux é um personagem do Iluminismo exercendo o poder de abstração e o melhor da concepção pedagógica de seu tempo: “a
maneira do Iluminismo conhecer [e logo ensinar] uma coisa era: identificar, separar e classificá-la” (GAINES, 2007, p.190). Fux trata do uso da síncope
em cláusulas (cadências) em diversas passagens ao longo do Gradus... , p.ex., no “Exercitii V. Lectio III. De trium partium Fugis”.
15 Ver ainda Livro 2 (da natureza e propriedade dos acordes) Artigo 1 e Artigo 4 (RAMEAU, 1986). Para Rameau o efeito de síncope é algo comparável a
uma colisão, daí a origem do termo. Síncope seria composta por duas palavras gregas: syn e copto (RAMEAU, 1971, p.78; ROUSSEAU, 2007, p.368).
Syn é um prepositivo que implica em juntamente (ao mesmo tempo, associação, etc.) que aparece em palavras como sincronia, sinergia, sinfonia,
sinônimo, síntese, simetria, simbiose, símbolo, etc. Já copto (-cope) significa bater, colidir ou cortar e é usado como pospositivo no eruditismo latino
do renascimento em palavras como apócope (mudança fonética que consiste na supressão de um ou vários fonemas no final de uma palavra, por
exemplo: cine, por cinema, bel por belo), perícope (trecho da Bíblia ou de um livro) e síncope (HOUAISS).
16 O texto “Syncope, en Musique” de Rousseau foi publicado primeiramente em 1765, no XV volume (p.747) da célebre Encyclopédie... editada por
Diderot e D’Alembert entre 1751 e 1772.
17 A partir de Rameau (1986, p.298; 1971, p.316).
18 A partir de Kirnberger (1979, p.172).
19 Adotando o termo “suspensão”, BARTEL (1997, p.396) não deixa de avisar que, em inglês, suspention é normalmente usado como tradução de
syncopatio ou syncopa. No entanto, suspention tem conotação de harmonic syncopation e, em inglês, este termo ficou mais reservado para os
aspectos da síncope que implicam no controle das questões de altura. Por outro lado, o termo inglês syncopation é normalmente entendido como
uma alteração de ordem rítmica (não necessariamente implicando em dissonâncias no campo das alturas). Tal separação se mostrou necessária na
contemporaneidade, pois desde a síncope do estilo livre (ver itens 4 e 5), nem todas as dissonâncias acomodadas no desenho rítmico da síncope são
suspensões (ou retardos). A advertência de Bartel – igualmente lembrada nas notas do tradutor in Forte e Gilbert (2003, p.60) – é determinante
para os estudos da síncope no Brasil referenciados em publicações de língua inglesa. Nos dicionários, enciclopédias ou outros textos em inglês,
possivelmente, as informações sobre a síncope estarão compartimentadas. Em parte as informações estarão no verbete síncope, onde, no geral, a
ênfase recairá nos aspectos de deslocamento métrico, pulso, rítmica, prosódia, etc. Mas serão os verbetes “suspensão” (Francês e inglês: suspension;
Alemão: vorhalt; Italiano: sospensione; Espanhol: suspensión) e “retardation” (retardo) que, provavelmente, trarão informações sobre a questão das
alturas da síncope tradicional (aquela que antecede o estilo livre). Na cultura viva das síncopes, parece inadequado, para dizer assim, especializar
ou compartimentar de maneira muito rígida as diferentes propriedades que compõem o denso entendimento das dissonâncias acentuadas. Mas,
dependendo de tendências e intenções, teóricos, críticos, professores, e artistas podem mesmo escolher o caminho da compartimentação paramétrica. E isso pode ser positivo ou não dependendo de inúmeras outras variáveis. Em qualquer caso o alerta de Bartel continua válido. Como leitores
e/ou pesquisadores vamos exercer nossas escolhas informados e informando sobre os riscos e benefícios desta compartimentação específica que
carrega sequelas das estereotipadas compartimentações de fundo e mais gerais da nossa cultura atual (i.e. da musicologia de viés eurocêntrico ou
anglo-americano) que prefere realmente distinguir suspensão de síncope. Suspensão implica no reino das alturas, termo mais reservado à síncope
apolínea, a síncope caucasiana, pensante, letrada, europeia, ocidental, tradicional, histórica e de formação cristã, é a erudita síncope do Velho
Mundo, etc. Síncope implica no reino das rítmicas (a sincopada, a sincopação), termo mais reservado à síncope dionisíaca, a síncope rebolada,
negra, afro-miscigenada ou afro-latina, ocidentalizada, sincrética, oral, corporal e sem história – é a síncope de transe que encanta os corpos e as
palmas das mãos que se confundem nesse nosso Novo Mundo, todo ele tão quente e sincopado, etc. E assim vamos reafirmando nossas crenças e
preconceitos inabaláveis: a música que pensa não é sincopada e a música sincopada não pode pensar.
20 Em torno de 1540 o professor e humanista alemão Joannes Susenbrot (c.1484-1543) dizia que “a syncope ocorre quando uma letra ou sílaba é
removida do meio de uma palavra” (BARTEL, 1997, p.396). Acepção idêntica se encontra no Vocabulário Portuguez & Latino de Raphael BLUTEAU,
publicado entre 1712 e 1728 e tido como “o mais antigo dicionário da língua portuguesa”. Segundo Bluteau a “Syncopa” é termo gramatical e ocorre
“quando se tira uma letra, ou sílaba do meio de uma palavra, dizendo duum em lugar de duorum, composius em lugar de compositus”. Já “Syncope”
é termo médico, “deriva-se do grego Syncoptein, cortar, porque corta o coração, e todas as faculdades vitais [...]” (BLUTEAU, 1712-1728, p.818).
Assim, instituída pelos eruditos da história literária, poética e linguística, essa noção de síncope interatua com a noção de síncope instituída para a
observação da música. A síncope da gramática é um recurso culto aceito na avaliação dos desvios, transformações e reinvenções que ocorrem com
as palavras em situações coloquiais e nas variações mais populares da cultura oral, como, por ex., nas célebres variações sincopadas que transformaram “vossa mercê” em “vossemecê” em “vosmecê” e chegaram até o “você”, que por aférese (supressão de fonema no princípio da palavra) já
se reinventou como “ocê” ou “cê” e, que por apócope (supressão no final da palavra), já tornou possível até o uso escrito do solitário “c” como um
pronome de tratamento. Tal maneira de entender o percurso das palavras em direção aos usos de caráter mais atual e popular (que notamos nos
estudos dos colegas que se ocupam da síncope fonética), em alguma medida, parece influir naquelas soluções do campo acadêmico musical que,
numa espécie de simplificação metodológica conveniente, pondo em plano bem mais secundário o aspecto das alturas, escolhe focar o aspecto
rítmico da síncope como um parâmetro essencial na apreciação das músicas de registro híbrido, oral e popular. Músicas historicamente recentes
(dos finais do século XIX para cá) que se desenvolveram no entorno dos centros urbanos do Novo Mundo passando por transformações análogas
aos desvios que, por síncope, se dão na língua falada.
21 Conforme BARTEL (1997, p.402), alguns desses autores preocupam-se com a etimologia da palavra. Para o musico poeticus tcheco Tomáš Baltazar
Janovka (1669-1741), syncopatio ou syncopsis, vem do grego Syncopo. Para o teórico e compositor alemão Johann Gottfried Walther (1684-1748) a
palavra grega é synkopto. E, para ambos, o termo grego foi traduzido para o Latim como ferio (ferir, golpear, lograr, enganar) ou verbero (atacar, fustigar, deitar por terra, esmagar com palavras em um discurso). No Latim, conforme TORRINHA (1942, p.852), a palavra syncopa (ou syncope) significa
desmaio; syncopo implica em cair com uma síncope; syncopatus: que tem uma síncope. A palavra suspensus pode significar algo preso em cima, algo
que se sustém nos ares, que está na expectativa, na incerteza, incerto, que depende, submisso, parado, retido, etc. (TORRINHA, 1942, p.850).
22 Em certa medida, esse fenômeno de inflação acompanha componentes diversos da tonalidade harmônica. Outros dispositivos moderno-contemporâneos que poderiam, rapidamente, ilustrar o argumento seriam, por ex.: A propagação da dominante (o V7 principal) para a ideia de dominante
secundária que inflaciona a tonalidade com diversos outros V7. O acorde diminuto que se transfere do locus específico do VII grau do modo menor
(escala harmônica) para diversos outros locais do sistema (inclusive da tonalidade maior). O acorde de sexta aumentada (SubV7), a princípio reservado para a função dominante da dominante no modo menor que se expande, generalizando o recurso para incontáveis pontos de preparação.
O acorde de sexta napolitana (bII), original de uma mutação da tonalidade menor que empresta seu efeito diferenciado à tonalidade maior (como
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bII7M ou como bVII7M). As vizinhanças de terceira (mediantes, submediantes) raras e especiais (i.e. inexplicáveis) nos séculos XVII e XVIII que se
tornaram estereótipos até banais ao longo dos séculos XIX e XX. Dispositivos da época da “saturação da tonalidade” ou “pós-tonais” (tais como
o “acorde de Tristão”, o “acorde de Scriabin”, o “modo de Liszt”, a “escala de tons inteiros”, a “escala octatônica”, os acordes por superposição de
quartas, etc.), também passam por esse tipo de processo e crítica quando ganham uso na música popular urbana.
Sobre a noção de decoro como um princípio básico não só da música, mas de toda a conduta humana no século XVIII ver o estudo de LUCAS (2003).
A arguta tese de que a música alemã solidifica a “experiência conjunta de toda a Europa” foi enunciada pelo compositor e flautista alemão
Johann Joaquim Quantz (1697-1773) em 1752: “Num estilo que, como o da Alemanha atual, consiste numa mistura dos estilos dos diferentes
povos, cada nação encontra alguma coisa com que tem afinidades”. Para Quantz, a música da Alemanha é “mais universal e mais agradável”, pois
conjuga e mistura os bons elementos da “pura música italiana”, que já não se assenta “sobre fundamentos tão sólidos como outrora”, e do “puro
estilo francês” que “permaneceu excessivamente simples” (QUANTZ apud Grout e Palisca, 1994, p.477). O bordão que apregoa J. S. Bach como
uma espécie de “ponto de partida” da música moderno-contemporânea, possui inúmeros registros. Conforme BENÉVOLO (2004, p.61-62), para o
teórico e historiador Johann Nikolaus Forkel (1741-1818), primeiro biógrafo de Bach e o primeiro a lutar pelo reconhecimento da sua genialidade
postumamente, Bach é o “príncipe dos clássicos passados e futuros”. Em um contexto de soerguimento nacionalista, Forkel declara a arte de Bach
como um “tesouro inigualável exclusivamente alemão” e dedica a sua biografia aos “admiradores patrióticos da verdadeira arte musical”. Conforme
Kater, Beethoven teria dito: “Bach não é um riacho, é um oceano!” Um jogo com a palavra “bach” que em alemão significa riacho (In: WEBERN,
1984, p.89). Para Debussy, Bach é o “ancestral de qualquer música” (DEBUSSY, 1989, p.194). Para Anton Webern (1883-1945) “tudo acontece em
Bach”, “tudo o que veio após Bach já estava em preparação [...]”. “Aliás, Bach compôs de todas as maneiras possíveis, ocupou-se de tudo que pode
ser pensado!” (WEBERN, 1984, p.82, 66 e 84). Sobre a invenção de J. S. Bach como um dos pilares supremos do reino do espírito alemão, uma
espécie de “essência hereditária de um grande passado”, ver o estudo de Dahlhaus (1999, p.116-125). No momento de nacionalização da música
brasileira, ecos desse culto ao nome de Bach (um mestre das sincopas) vão repercutir em nosso entorno. No seu Ensaio sobre a música brasileira, de
1928, Mário de Andrade (1893-1945) vê Bach (e também Haydn e Mozart) como um “espírito totalmente universal” (ANDRADE, 2006, p.14), e no
capítulo intitulado “Polifonia” declara: “a harmonização europeia é vaga e desraçada”. Nos anos de 1930 a 1945, nesse mesmo contexto de invenção
de um nacionalismo brasileiro e moderno, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compõe as célebres Bacchianas Brasileiras expondo artisticamente sua
percepção de possíveis afinidades entre a música popular (sincopada) que se fazia no Brasil e a música de Bach.
O Ex.11a é citado em Bartel (1997, p.404), o Ex.11b em Piston (1998, p.54) e o Ex.11d em La Motte (1988, p.58). Tais autores trazem uma vasta
coleção de exemplos minimamente referenciada aqui.
O Ex.12a é citado em PISTON (1998, p.85); o Ex.12b em Kennan (1978, p.71-72); o Ex.12c em Piston (1998, p.64); o Ex.12d em Kennan (1978,
p.66) e PISTON (1998, p.74).
Sobre o sentido dos termos “distinção” e “capital” (artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar, etc,) no vocabulário teórico colocado pelo
sociólogo Pierre Bourdieu, ver BOURDIEU (2007), SHUKER (1999) e Valle (2008). Sobre o sentido dos termos agudeza e engenho na crítica musical
setecentista, ver LUCAS (2007).
Leia-se, como documento datado, um trecho escolhido no verbete Síncope do Dicionário da Música do “musicólogo” francês Michel Brenet (pseudônimo de mademoiselle Marie Bobillier, 1858-1918):
Modernamente, graças à música chamada negra e o sucesso alcançado pelas pequenas orquestras de jazz, convertidas em veículos de transmissão
da música dançante procedente da América do Norte, a síncope é algo consubstancial dessa música. A origem das complicadas combinações de
ritmos onde a forma sincopada adquire extraordinária preponderância, se encontra nas formas primárias da música própria dos povos africanos
que há alguns séculos foram levados à América. Em todos os povos de civilização rudimentar, um dos valores substantivos da música é o ritmo. Os
cantos, como as danças populares, oferecem sucessões e combinações de ritmos diversos nos quais reside o grande interesse que aos indígenas naturais despertam suas músicas. Daí, pois, que os negros, hoje completamente aclimatados e naturalizados em terras americanas, e particularmente
na América do Norte, por lei inevitável de atavismo racial, cantem e produzam sua música conservando em sua lírica a modalidade das escalas
pentatônicas africanas e a tendência a fazer do ritmo um meio expressivo. Na música popular e nas danças americanas, as fórmulas sincopadas
adquiriram um grau insuspeitável de riqueza desde há pouco mais de meio século. A síncope se transformou em elemento essencial da música de
dança. Os cake-walks e os foxtrotes não são outra coisa que combinações de ritmos nas quais se faz todas as formas de síncope imagináveis que
por superposição ou por cruzamento umas com as outras, produzem aspectos dinâmicos de irresistível efeito (BRENET, 1962, p.478).
Com o termo “campo”, Bordieu se refere a espaços específicos de posições sociais nos quais um determinado bem é produzido, consumido e classificado.
O campo se particulariza [...] como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da
distribuição desigual de um quantum social [capital social] que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. [...] A estrutura do campo pode ser apreendida tomando-se por referência dois pólos opostos: o dos dominantes e os dos dominados. Os agentes que
ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles que possuem um máximo de capital social; em contrapartida, aqueles que se situam no pólo
dominado se definem pela ausência ou pela raridade do capital social específico que determina o espaço em questão (ORTIZ, 1983, p.21).
No “campo”, os agentes (indivíduos ou instituições) que ocupam a posição dominante tendem a adotar estratégias conservadoras ou ortodoxas que
visam manter (canonizar) os valores que lhes são favoráveis. Os agentes que ocupam posições inferiores no interior do campo (i.e., aceitam a hierarquia do campo) tendem a adotar estratégias que objetivam alcançar os padrões de excelência dominantes ou a adotar estratégias heterodoxas
ou heréticas que visam a contestação e a subversão das estruturas hierárquicas vigentes. “A estratégia dos agentes se orienta, portanto, em função
da posição [atual e potencial] que eles detêm no interior do campo, a ação se realizando sempre no sentido da ‘maximização’” dos capitais (ORTIZ,
1983, p.22). Basicamente, o que está em jogo nesse “campo” da música popular são relações de poder entre o que é a “boa” e a “má” música, “quem
é” o “grande músico” e “quem não é”, e “quem são” os “autorizados” a julgar (classificar, hierarquizar) os bens da música popular. Cf. BOURDIEU
(2007), CAVALCANTI (2007, p.19) e VALLE (2008, p.105).
Sobre esta temática ver o estudo de CAVALCANTI (2007).
As harmonias do Ex. 13b e 13c baseiam-se nas cifras de Edmilson Capelupi. O fragmento 13e foi retirado das transcrições de Prandini (1996, p.72).
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (Florianópolis) atuando nas áreas de teoria da música, harmonia tonal, contraponto e análise musical. Atualmente é aluno do Doutorado em
Música da Unicamp onde desenvolve pesquisa na área de Fundamentos Teóricos da Música Popular.
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
Música e infância no rádio: o programa
Serelepe na Rádio UFMG - Educativa1
Eugênio Tadeu Pereira (UFMG, Belo Horizonte. MG)
[email protected]; [email protected]
Cristiane da Silveira Lima (UFMG, Belo Horizonte. MG)
[email protected]
Gabriel Murilo Resende (UFMG, Belo Horizonte. MG)
[email protected]
Reginaldo Santos (UFMG, Belo Horizonte. MG)
[email protected]
Resumo: Este artigo tem como eixo temático a música infantil no rádio e faz uma reflexão a partir das experiências
do programa Serelepe: uma pitada de música infantil, na Rádio UFMG Educativa, 104,5 FM, apresentado desde agosto
de 2005 em Belo Horizonte. Seu caráter experimental é derivado da tentativa em integrar as áreas de teatro, música e
comunicação, juntamente à proposta de difusão musical.
Palavras-chave: rádio, música infantil, criança, educação musical.
Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG - Educativa station
Abstract: The main theme of this article is childhood music on the radio. It reflects about the experiences of Serelepe:
uma pitada de música infantil (Serelepe: a pinch of kid’s music), a program broadcasted at 104.5 FM of the UFMG Educativa Radio Station, since august 2005, in Belo Horizonte, Brazil. Its experimental outline is derived from an attempt
to integrate the areas of Drama, Music and Communication, within the music broadcast proposal.
Keywords: radio, music for children, child, musical education.
1. Apresentação
O Serelepe: uma pitada de música infantil é um programa de rádio para crianças, oriundo do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG, que
vai ao ar todos os finais de semana2 pela Rádio UFMG
Educativa 104,5 FM, na região metropolitana de Belo
Horizonte, Minas Gerais. Ele pode ser ouvido também
pela Internet, de qualquer lugar do mundo, no link www.
ufmg.br/online/radio. Contatos com o programa podem
ser feitos pelo e-mail [email protected] e também
pelo blog http://programaserelepe.blogspot.com.
O programa é divido em quatro blocos: o Mão na Cumbuca – músicas daqui e acolá (dedicado exclusivamente
a músicas brasileiras); o De Cabo a Rabo – quem conta
um canto canta um conto (com histórias cantadas); o
De Mala e Cuia – um passeio musical (com músicas de
diferentes países) e, por fim, o Balaio de Gato – de tudo
um pouco (no qual tentamos misturar músicas, histórias,
brincadeiras, dicas culturais, dentre outros).
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
150
Por estar inserido na programação de uma rádio educativa, o projeto tem se caracterizado por um processo
contínuo de experimentação de diferentes linguagens,
buscando integrar, principalmente, as áreas de Teatro,
Música e Comunicação. Em 2007, ele se tornou também
uma disciplina optativa no curso de Graduação em Teatro
na EBA/UFMG, configurando um espaço de pesquisa para
os alunos do curso que possibilita o improviso, a brincadeira, a atitude lúdica e, concomitantemente, uma visão
crítica em relação à música, às formas de comunicação e
às artes produzidas para crianças.
Ainda em 2007, os idealizadores do programa – e outros artistas – representaram o Brasil no 8º Encontro da
Canção Infantil Latino-americana e Caribenha, realizado
na cidade de Valparaíso, no Chile3. Nesta ocasião, vários
contatos foram estabelecidos com realizadores de programas radiofônicos para crianças em diferentes países
da América Latina4.
Recebido em: 02/09/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
Sem a pretensão de tentar mudar o gosto dos ouvintes,
nem de transformar a produção musical e cultural voltada para as crianças, o Serelepe tem buscado abordar
o universo infantil sob um ponto de vista que tem a intenção de criar diferentes possibilidades de escuta e de
tornar acessível uma produção musical que julgamos de
interesse para qualquer ouvinte, mas que não se encontra
disponível em outros canais de comunicação. Dessa forma, o Serelepe não se constitui em um programa alternativo, mas uma proposta alternativa de difusão musical.
Objetivamos criar um espaço aberto para a divulgação de
trabalhos feitos por, para e com crianças, buscando manter um determinado padrão de qualidade, valorizando a
inventividade dos artistas e dos ouvintes. Nosso interesse
está voltado para aguçar a sensibilidade auditiva e para
incentivar a curiosidade musical, isto é, criar possibilidades e estímulos para uma escuta mais variada, rica e criativa, em que a imaginação do ouvinte possa “criar asas”.
A programação do Serelepe privilegia artistas de todo o
mundo com pouca inserção na grande mídia, mas também promovemos novas escutas de artistas já conhecidos.
Determinadas músicas feitas para adultos, por exemplo,
adotam uma linguagem que poderia ser igualmente apropriada por crianças, por causa de seu jogo de palavras,
pelo modo como brincam e fazem humor. Um exemplo
disso é a letra de As mariposa, de Adoniran Barbosa, cuja
letra diz o seguinte:
As mariposa, quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida, pra se esquentar/ Elas roda,
roda, roda e dispois se senta/ Em cima do prato da
lâmpida pra discansar/ Eu sou a lâmpida e as muié é
as mariposa/ Que fica dando vorta em vorta de mim/
Toda as noite só pra me beijar.
Essa letra tem uma atmosfera que – a nosso ver – se relaciona com o universo infantil. O eu-lírico desses versos,
com seu português “ruim”, descreve como as mariposas
ficam à sua volta, querendo lhe beijar. Mas não seria esta
uma metáfora para falar do universo da sedução, da paquera? Também. Isso, entretanto, não exclui a apropriação lúdica que a imagem da lâmpada rodeada de mariposas permite.
Já o grupo Secos e Molhados, para citar outro exemplo,
tem uma música bastante conhecida chamada O Vira, de
João Ricardo e Luli, baseada nas histórias de lobisomem.
Eis a letra:
O gato preto cruzou a estrada/ Passou por debaixo da escada/ E lá no fundo azul/ Da noite da floresta/ A lua iluminou/ A dança, a roda, a festa/ Vira, vira, vira, homem/ Vira,
vira lobisomem.
Essa é uma releitura de uma lenda, associada muitas vezes ao universo infantil. Mas quem canta é Ney Matogrosso, ainda no grupo Secos e Molhados, com seu rosto
pintado e suas coreografias ousadas. Tanto O Vira quanto
As Mariposa são músicas que têm sido recebidas, com entusiasmo, pelas crianças. Mas por quê?
Revela-se a questão da especificidade do nosso público:
o que e quem determina o que é música para criança?
Criança gosta do quê? Como fazer uma programação musical dedicada ao público infantil que respeite a sua sensibilidade e a sua inteligência? É sobre essas indagações
que este artigo reflete.
2. “Pré-conceitos” e “pós-conceitos”
sobre a relação música, infância e rádio:
a ação do Serelepe
Antes de pertencer a uma faixa etária, as crianças são
seres humanos. A infância é uma fase da vida em que
não apenas se assimilam informações e conteúdos, mas
em que se aprendem hábitos e valores que podem ser
levados por toda a vida. Erik Erikson (1976) nos instiga a
pensar que a identidade do sujeito e de uma nação tem
início nos rituais de infância. É durante a infância que
os sujeitos mais desenvolvem suas habilidades básicas
cognitivas e motoras necessárias à vida. É nesse período
também que estruturamos a linguagem e compreendemos as “regras” que permitem a vida em comum. Por isso
é tão importante o acesso à cultura, à educação e à saúde
de qualidade, sobretudo nos primeiros anos. A formação
que se tem na infância tem impactos diretos no futuro
jovem/adulto.
Sendo assim, uma programação musical voltada para o
público infantil deve estar atenta a este caráter de formação mais amplo – e não deve se voltar exclusivamente
para “ensinar conteúdos ou boas maneiras” às crianças,
tais como contar até dez, tomar banho ou escovar os
dentes. Existem espaços mais apropriados e eficazes do
que o rádio ou a música para esse tipo de orientação.
Observa-se que as crianças tendem a gostar das músicas
às quais têm acesso pela sua família, pelos meios de comunicação (sobretudo a televisão) ou pelas influências de
amigos. Muitas crianças só escutam aquilo que seus pais
ou irmãos ouvem: uma música feita por e para adultos;
na maioria das vezes, de fácil consumo.
No senso comum, o que define se uma música é ou não para
crianças é um critério temático/ pedagógico. Acredita-se
que música para crianças deve ser instrutiva (ensinando,
por exemplo, a soletrar ou contar), deve ensinar hábitos
de higiene pessoal e da boa educação (como escovar os
dentes, tomar banho, dizer “por favor” e “obrigado”, etc.),
deve ensinar valores morais (como respeitar o próximo e
cuidar da natureza). Outra característica encontrada nas
letras das músicas para crianças é a frequência assombrosa
de animais (e quase sempre mencionados no diminutivo),
ou ainda, que versam sobre seres fantásticos, tais como
monstros, bruxas ou bicho papão. Luis Maria Pescetti (in
BRUM, 2005, p.31), discutindo a sua experiência em programas de rádio e com música para crianças, faz uma crítica irônica e bem-humorada, afirmando:
Nas canções infantis há mais animais do que na Arca de Noé.
Estão cheias de bichos. Arainhas, galinhazinhas, cachorrinhos,
mariposinhas, tartaruguinhas, gatinhos, lagartinhas, verminhos,
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
vaquinhas, abelhinhas, pombinhos... Até vampiros. Basta! Por que
ninguém fez uma canção infantil sobre um pocinho de petróleo,
por exemplo?5.
Em seu texto, o autor apresenta também uma lista enorme de temas possíveis de serem abordados, que vão desde o liquidificador, o telefone, os pés das girafas, uma
briga entre os pais, à perda de um avô, etc. O problema é
menos o tema em si do que o modo como eles se tornaram exaustivos, padronizados e repetitivos, contribuindo
muitas vezes para o estabelecimento de estereótipos e
preconceitos. O universo infantil é frequentemente abordado de modo ingênuo e edulcorado, como se toda criança fosse alegre e feliz por natureza e em tempo integral,
como se não vivesse também seus dilemas e conflitos... É
uma espécie de infância idílica e inventada pelo adulto
que não a viveu, pois ela nunca existiu e talvez, nunca
existirá. Essa infância é cantada em verso e prosa como
um mundo feliz idealizado. Mas quem de nós teve uma
infância somente feliz?
Outras vezes, as crianças aparecem como seres barulhentos, inquietos e incapazes de ficarem em silêncio, que
só sabem correr e fazer bagunça por todos os lados. São
sempre ingênuos, pois vivem fazendo perguntas desconcertantes aos adultos, às quais só terão respostas quando
atingirem uma suposta maturidade. No entanto, temas
considerados sérios ou densos, tais como a perda, a morte,
a dor, por exemplo, seriam mais apropriados para adultos.
Se, por um lado, esses temas mais comuns são um modus operandi no imaginário dos compositores de músicas
para crianças; por outro lado há um leque de produções
musicais que têm como mote temas diversos e que dizem
claramente, e com poesia, sobre temas gerais da vida.
Walter BENJAMIN (1924, p.237), já em 1924, ao falar sobre livros infantis, dizia que
a criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas
não explicações infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias,
mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas
e espontâneas.
Portanto, é de grande importância uma atitude sincera ao
refletir acerca da ideia de infância que orienta as escolhas em um programa infantil, seja do ponto de vista dos
diálogos nas locuções, seja nas seleções musicais. Essa
honestidade é decorrente de um respeito às crianças e
aos demais ouvintes que procuramos ter.
Observa-se, também, uma falta de preocupação geral
com a qualidade timbrística e com o nível de elaboração
das produções musicais, quiçá artísticas de modo geral,
voltadas para as crianças. A maior parte delas oferece
pouca ou nenhuma inventividade e curiosidade que instiguem a imaginação do ouvinte: são frequentemente pouco elaboradas, baseadas em padrões rítmicos, melódicos
e harmônicos bastante simplórios, com repetição exagerada de palavras no diminutivo, rimas fáceis e previsíveis,
com uma instrumentação pobre e reduzida (normalmen-
152
te composta por uma bateria eletrônica e um teclado),
acompanhadas quase sempre por coreografias, como se
criança não conseguisse ouvir música sem se mexer. Enfim, faltam variedade e riqueza nos arranjos sonoros e nos
textos dessas músicas. O que se vê difundido nos grandes
centros comerciais são coletâneas de canções de domínio
público, reunindo pela enésima vez Ciranda cirandinha,
Sapo Cururu e O Cravo brigou com a rosa. Não é o caso de
desmerecer essas músicas, patrimônio cultural nacional,
mas de convidar a trazer algo renovado ao rearranjá-las
e regravá-las. A novidade objetivada não está meramente
no aparato eletrônico ou na orquestra sinfônica. Acreditamos que essa novidade está em revelar, na própria música, aquilo que quase ninguém ouviu. Na própria música
deve haver algo de novo, de frescor.
Os argumentos e justificativas que são dados para a recorrência desses padrões, normalmente, são a afirmação
de que a mídia dá às crianças exatamente aquilo que elas
querem. Ora, a relação dos meios de comunicação com a
sociedade não pode ser vista de modo tão mecânico, reducionista e linear: os meios de comunicação não fornecem
simplesmente os produtos desejados pelo público, nem
lhes impõem com facilidade, os seus produtos (como se
o público não soubesse discernir e não tivesse autonomia
alguma para refletir e escolher, entre os produtos oferecidos, aqueles que lhe mais interessam, como se consumisse tudo indiscriminadamente6). Afinal, o que constitui
a comunicação é mais do que produzir e receber discursos. O que estabelece o vínculo comunicativo é “a ação de
afetar e ser afetado pelo outro através de materiais significantes. É produzir/ consumir discursos, representações,
sentidos para e em decorrência do outro – e sofrer, junto
com ele (embora não necessariamente igual a ele), as consequências” (FRANÇA, 2006, p. 86). Entendemos os meios
de comunicação como instrumentos sociais que dialogam
permanentemente com os valores e com os sentidos compartilhados, reproduzindo-os e também os modificando.
No entanto, também não podemos negligenciar o fato de
que as pressões de natureza econômica influenciam sobremaneira no tipo de programação oferecido e que isso não
implica necessariamente em uma preocupação com a qualidade ou com a riqueza dos produtos oferecidos. É notório
que a mídia exerce uma grande influência no sentimento
de massa, formando opinião, e operando no que GREEN
(1988; 1997) chama de significado musical delineado7.
No que diz respeito à produção dedicada às crianças, temos conhecimento de um conjunto substancial de artistas produzindo à margem dos grandes meios de comunicação e que, por isso, não alcançam um grande público.
As músicas apresentadas por nós vêm de diversas partes
do mundo. Muitos são os grupos espalhados pela América Latina. Citando alguns deles como: Los Musiqueros,
Pro-Música do Rosário Niños, Mariana Baggio, Judith
Akoschky e Luiz Pescetti, na Argentina; El Taller de los
Juglares, na Venezuela; Julio Brum con los Pájaros Pintados, no Uruguai; Cantoalegre, Fundación Nueva Cultura
e Coro Acuña, na Colômbia; Cântaro, Son de la Ciudad e
PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
Brenda Cervantes, no México. Em menor proporção, apresentamos algo do que é produzido na América do Norte
(como Pete Seeger, dos Estados Unidos), na Europa (Les
Petits Loups du Jazz, Bruno Coulais), na Ásia e na África
(com músicas tradicionais encontradas nas pesquisas do
canadense Francis Corpataux, etc).
No Brasil há uma variada produção musical contemporânea: Adriana Partimpim, Cecília Cavalieri França,
Cuidado que Mancha, Curupaco, Duo Rodapião, Hélio
Ziskind, Lydia Hortélio, Márcio Coelho e Ana Favaretto,
Palavra Cantada, Teca de Brito, Viviane Beineke, dentre
outros (sem mencionar os clássicos Arca de Noé, Saltimbancos, Adivinha o que é).
Ora, como as crianças poderiam gostar de tais artistas e de
suas músicas se elas sequer os conhecem? É preciso haver
espaços de visibilidade para outros tipos de produção musical para que as crianças possam escolher do que gostar,
um espaço para ampliar as possibilidades que fazem parte
da sua formação. De um modo geral, o universo radiofônico é fundado em uma música de consumo rápido, dirigido
para uma comercialização imediata e de fácil substituição.
Pouco ou nada é produzido no rádio para crianças em Belo
Horizonte8. Já que o Serelepe não é regido por uma lógica
mercadológica, ele não está preso a padrões dessa natureza.
É claro que o objetivo é também o de agradar – mas o gosto
pode ser cultivado, criado, antecipado, descoberto, revisto. E ninguém gosta de uma coisa só: é possível gostar de
coisas muito diferentes, sem que uma exclua a outra. Luis
PESCETTI (2005, p.29), escritor e músico, afirma ter sido várias vezes questionado sobre o fato de divulgar em seu programa músicas que não são originariamente voltadas para
um público infantil, o que poderia aborrecer as crianças. Ele
afirma, retrucando: “qual o perigo do aborrecimento? O zapping?”9 Se toda vez que a gente se aborrecesse com algo, a
gente logo a abandonasse, não sairíamos do lugar. Ninguém
abandona a leitura de um livro por não ter gostado de uma
única página. Ele afirma, ainda, que essa pergunta sobre o
aborrecimento é sempre feita por jornalistas, nunca pelos
pais que escutam o programa com seus filhos (2005, p.30).
E, pelo que parece, nem pelas próprias crianças.
Nossa opinião está implícita naquilo que elegemos e inserimos em nossos programas para que os ouvintes possam ouvir, apreciar e escolher estar em sintonia com o
programa ou buscar outra proposta. Portanto, o Serelepe
almeja oferecer aos seus ouvintes o variado leque de possibilidades temáticas dedicadas à infância.
3. A apreciação como pilar necessário ao
desenvolvimento
A música é uma linguagem de todos. Ela é um sistema
simbólico que atravessa limites culturais. Somos responsáveis pela reprodução do que já foi e pela produção do
que virá. Como construir uma cultura musical de amplo
acesso, que não privilegie somente certos segmentos às
vezes pueris dessa arte? SWANWICK (1979) acredita que
a formação musical do ser humano desenvolve-se sobre
três principais pilares: composição, apreciação e performance; e dois secundários: literatura e habilidades. Segundo FRANÇA (1998, p.68-69):
A apreciação, espera-se, permeia toda experiência musical, sendo um mediador básico para o desenvolvimento musical [...] A
escuta sensível e atenta é determinante no fazer musical [...]
Nestas circunstâncias, a apreciação estará monitorando a produção musical [...] 10
A apreciação musical bem orientada desenvolve um senso crítico no ouvinte, permitindo-o julgar melhor o que
ouve e o que se produz musicalmente. A programação do
Serelepe busca oferecer oportunidades aos ouvintes de
construírem referências de expressão musical de modo
que, no futuro e no presente, possam fazer escolhas mais
conscientes sobre o que ouvir. O problema não é uma escolha certa ou errada e sim a falta de opção ou a incapacidade de escolher com critérios mais amplos e relevantes. Reimer, citado por FRANÇA (1998, p.71), acredita que
“escutar uma grande variedade de música funciona como
um alicerce para decisões criativas”11 e, segundo FRANÇA
(1998, p.71), a apreciação musical “nutre o repertório de
opções sobre o qual os estudantes agem criativamente,
transformando, reconstruindo e reintegrando ideias em
novas formas e significados.”12
A música é muito utilizada como plano de fundo para situações variadas. A proposta de escuta do Serelepe é trazê-la
para o foco da atenção, instigando o ouvinte ao desafio de
discernir as propostas composicionais: um instrumento diferente, o encadeamento dos sons, um tema de um personagem, sons estranhos, estórias “sem pé nem cabeça”, etc.
Paynter, de acordo com FRANÇA (1998, p.70), argumenta que “a música não pode ser apreendida por contemplação passiva: é necessário comprometimento, escolha, preferência e decisão.”13 E, para McAdams, segundo
FRANÇA (1998, p.70), “a apreciação musical (bem como
apreciar artes visuais ou ler um poema) é e deve ser
considerada seriamente por um artista como um ato
criativo por parte do participante”.14
4. Considerações sobre os nossos objetivos e
a nossa experiência
O objetivo do Serelepe é fazer desse espaço aberto no
rádio um lugar de escuta e de invenção. Temos o objetivo de experimentar outras linguagens, outros jeitos de
fazer locução e de explorar as sonoridades, os textos e
os BGs15, bem como divulgar trabalhos considerados pelos próprios integrantes coerentes e bem feitos, mas que
não circulam na grande mídia – ou que até circulam,
mas em outro contexto.
Além disso, o Serelepe tem sido um espaço de experimentação de diferentes propostas por parte de seus integrantes. O programa, na verdade, não conta com locutores profissionais e nem está dentro de convenções
radiofônicas, como os das grandes rádios comerciais. É
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
buscada, a cada programa, uma maneira diferente de nos
comunicarmos com o ouvinte. Desde sua estreia até hoje,
foram experimentadas diferentes formas de dizer o texto
e quase foram criados personagens recorrentes (como o
distraído que adora cantar e sempre perde o seu momento de falar ou a mal-humorada que às vezes é brava, outras vezes, romântica...). Os textos, escritos previamente,
são elaborados de acordo com as músicas programadas,
mas podem também não se referir exatamente a elas. Geralmente as locuções têm a função de ilustrar, comentar
e inserir informações extras sobre as músicas e também
de incluir comentários que vão além do que a música
apresenta. Em outras palavras: não há um roteiro rígido,
o que nos permite, a cada vez, reinventá-lo.
Quando a letra da música está em uma língua estrangeira,
é de praxe descrever, em poucas palavras, o que ela diz.
O repertório é escolhido a partir das discotecas dos próprios integrantes do projeto (que desenvolvem um intenso
trabalho de pesquisa), das doações que o Serelepe recebe
por intermédio da Rádio UFMG Educativa, pelo acervo da
própria Rádio e de um acervo de mais de 200 CDs, disponibilizado pelo Duo Rodapião16, de Belo Horizonte - MG, que
integra o Movimento da Canção Infantil Latino-Americana
e do Caribe. Também informamos os dados sobre o intérprete, o compositor e o CD de onde a música foi retirada.
Outra característica do programa é a de tocar as músicas
do princípio ao fim, ao contrário das práticas mais usuais
do rádio que as cortam antes de seu término.
Algumas vezes, os locutores chamam a atenção para a
letra, outras vezes para os instrumentos. Em nossas gravações, a brincadeira com texto está sempre presente,
pois, como o brincar faz parte do universo da criança, os
locutores usam esse meio como uma chave para entrar
em contato com o universo infantil. Criamos diálogos
fantasiosos entre nós mesmos, inventamos rimas sem pé
nem cabeça, até arriscamos cantar de vez em quando,
porém sempre valorizando uma escuta atenta às nuances
de sentido, de ritmo, de sonoridades, respeitando a capacidade das crianças de compreenderem as brincadeiras
propostas e fazerem, elas mesmas, as suas próprias associações. Queremos oferecer a elas alternativas, mas estabelecendo uma conversa, uma tentativa de aproximação.
Tal como escreve o músico e professor uruguaio Julio
Brum, o nosso trabalho (assim como o dele) é o de “viajar pela imaginação, de agitar a sensibilidade, de “fazer
cosquinhas” nas ideias e valores que o sistema nos mostra como imutáveis e permanentes; trata-se de convidar
a nossa infância a construir e explorar outros mundos”
(BRUM 2005, p.67)17. Esse é o convite que o Serelepe faz
aos ouvintes, ao temperar as suas manhãs de sábado com
pitadas de música infantil, tentando “fazer cosquinhas”
nas ideias mais usuais de música e de infância.
Referências
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(orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60.
BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos (1924). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.235-243.
BRUM, Julio (Org). Panorama del Movimiento de la Canción Infantil Latinoamericana y Caribeña: Estúdios, reflexiones y
propuestas acerca de las canciones para la infancia. Montividéo: Papagayo Azul, 2005.
ERIKSON, Erik. Identidade – juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composing, performing and audience-listening as symmetrical indicators of musical understanding. University of London, 1998 297f. enc. Tese (doutorado).
FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na
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GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia da Educação Musical. Revista da ABEM, Salvador, ano 4, n. 4, p. 25-35, set. 1997.
Trad. Oscar Dourado.
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário – o desafio das poéticas tecnológicas. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2001.
SWANICK, Keith A Basis for Music Education, London: Routledge, 1979.
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
Leitura recomendada:
BENJAMIN, Walter. História cultural do brinquedo (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.244-248.
______ . Brinquedo e brincadeira – observações sobre uma obra monumental (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.249-253.
GREEN, Lucy. Music on Deaf Ears: Musical meaning, ideology and education. Manchester and New York: Manchester
University Press, 1988.
___________. Music, Gender, Education. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
McADAMS, Stephen ‘The auditory image: a metaphor for musical and psychological research on auditory organization’.
In: CROZIER, W. R. and CHAPMAN, A. J. (eds) Cognitive Processes in the perception of Art, Amsterdam: Elsevier, 1984.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993.
PAYNTER, John. Music in the Secondary School Curriculum. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
PEREIRA, Eugenio Tadeu. A difusão da canção infantil. In: Anais do 4º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e
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________. Brincar, brinquedo, brincadeira, jogos, lúdico: convergências e divergências. Revista Presença Pedagógica. v.7,
n.38. Mar.-Abr./2001.
________. Brinquedos e infância. Revista Presença Pedagógica. v.8, n.44, Mar.-Abr./2002. Ed. Dimensão. Publicado também em: Revista Criança. n.37. Nov./2002. Ministério da Educação.
REIMER, Bennett. A Philosophy of Music Education, New Jersey: Prentice Hall, 1970/1989.
SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. São Paulo: Unesp, 1991.
Notas
1 Uma versão preliminar deste texto foi publicada na Presente! Revista de Educação, ano 17 n. 65, Salvador, Ago/Nov/ 2009. Para a Revista PerMusi
vários pontos foram acrescidos e revisados.
2 A partir de 08 de marco de 2008, o programa passou a ser apresentado aos sábados as 9h da manhã, tendo uma hora de duração. Os programas
“pilulas”, que duravam de 5 a 8 minutos e que eram apresentados diariamente às 9h45min, desde 07 de setembro de 2005. Atualmente o programa
está sendo exibido em partes aos domingos às 9 horas da manhã, conjuntamente a outros programas para crianças. O Serelepe começou suas atividades a partir de um convite do coordenador da rádio, prof. Elias Santos e por Rosaly Senra, no mesmo ano de inauguração da UFMG Educativa.
3 O 9º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha ocorreu entre 19 e 25 de outubro de 2009, no México. Outras informações no site:
http://9cancioninfantil.cnart.mx/. Último acesso em: 22/10/2009. Em 2011 o Brasil sediará o 10º Encontro, sob a coordenação de Márcio Coelho e
Ana Favaretto.
4 São eles: ARGENTINA: programa Taracatá, coordenado por Julio Calvo (www.radiodelaciudad.gov.ar), que, lamentavelmente, não está mais no ar;
Me extraña araña, na AM 750 - Radio Nacional Córdoba, sob coordenação de Coqui Dutto; Radio Mafalda, produzida por Alejo e Julio Villarroel
(http://radiomafalda.dynalias.net:86); Vampiro Negro, da Radio Nacional Argentina 870 AM, produzido por Luís Pescetti. URUGUAI: Para Escucharte mejor, da Emisora del sur, sob coordenação de Suzana Bosch (www.sodre.gub.uy). MÉXICO: ¡Ay escuintles! (www.radioeducacion.edu.gob.mx),
programa de curta duração produzido por Gabriel Sanvincente; Hola Luis, da Radio Universidad Nacional Autónoma de México 96.1 FM, também
produzido por Luis Pescetti. PORTO RICO: Ambos a Dos, cuentos y canciones produzido por Nelie Lebrón (www.radiouniversidad.pr).
5 Tradução nossa, a partir do original: “en las canciones infantiles hay más animales que en el Arca de Noé. Están llenas de bichos. Añaritas, gallinitas,
perritos, maripositas, tortuguitas, gatitos, gusanitos, vaquitas, abejitas, palomitas... hasta vampiros. !Basta! ¿Por qué nadie hizo una canción infantil
a un pocito de petróleo, por ejemplo?”
6 Na tradição dos estudos em comunicação, existem diferentes abordagens da relação entre a mídia e a sociedade. Algumas dessas tradições de
pesquisa hoje são muito criticadas pelo seu mecanicismo e linearidade como, por exemplo, a Escola Funcionalista Americana, também conhecida
pela rubrica da Mass Communication Research, que pautava seus estudos a partir da ótica dos efeitos dos meios de comunicação sobre o público, e
a Escola de Frankfurt, ou “Teoria Crítica”, que desenvolveu toda uma abordagem acerca da Indústria Cultural, mas enfatizando o caráter ideológico
dos meios de comunicação. Ambas se sustentam no paradigma informacional, que aborda as instâncias de produção de mensagens e de recepção
como pólos isolados e separados, cabendo à produção um papel ativo e de controle sobre as mensagens, ao passo que o receptor é relegado ao
lugar de um consumidor passivo. Esse paradigma já não é consensual e uma nova perspectiva vem sendo desenvolvida, apoiando-se no chamado
paradigma relacional ou praxiológico. Para um breve panorama dessas teorias, cf. FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.61-88. Para uma
reflexão acerca da mídia, compreendida não apenas em sua dimensão de aparato técnico, mas também em seu caráter relacional, que permite uma
modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento de signos, cf. ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo Vaz. Mídia: um aro, um
halo, um elo. In: In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60.
7 Lucy Green considera como significado musical inerente as relações dos materiais sonoros entre si em uma peça musical, ou entre as demais estruturas musicais de uma cultura; e significado musical delineado como a relação inseparável, consciente ou não, dos significados inerentes com seu
contexto social de produção, distribuição e recepção (GREEN, 1997b, p.27-29).
8 Uma das poucas referências que conhecemos foi o programa Carretel de Invenções, idealizado pro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos e produzido pela AMEPPE - Associação Movimento de Educação Popular Integral Paulo Englert e pela Fundação Fé e Alegria, que foi ao ar durante alguns
anos pela Rádio Favela e outras rádios comunitárias, no início da década de 1990. Esse programa ainda é ouvido em algumas rádios brasileiras. Mas
vale lembrar: a concessão da Rádio Favela também é de rádio educativa. Entre as rádios comerciais, desconhecemos outros programas.
9 Zapping: estratégia de mudar de canal possibilitada, sobretudo, pelo advento do controle remoto e que instaura uma nova modalidade de recepção,
no qual o espectador/ ouvinte não se fixa em um único programa, mas ao contrário, se desloca de um a outro livremente. “O zapping é mania que
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.
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tem o espectador de mudar de canal a qualquer pretexto, na menor queda de ritmo ou de interesse do programa e, sobretudo, quando entram os
comerciais”. (MACHADO, 2001, p. 143).
Tradução nossa, a partir do original: Listening is expected to pervade any active musical experience, being a basic medium for musical growth. […]
Sensitive and discerning listening is determinant in musical making. […] In these circumstances, listening will be monitoring the musical output […].
Tradução nossa, a partir do original: Reimer believes that ‘listening to a great variety of music’ works as “fodder for creative decisions”
Tradução nossa, a partir do original: It nourishes student’s repertoire of options upon which to act creatively, transforming, reconstructing and
reintegrating ideas into new shapes and meanings.
Tradução nossa, a partir do original: Paynter argues, music cannot “be apprehended by passive contemplation: it calls for commitment; for choice,
preference, and decision.”
Tradução nossa, a partir do original: Musical listening (as well as viewing visual arts or reading a poem) is and must be considered seriously by an
artist as a creative act on the part of the participant.
BG é a abreviação do termo técnico background, usado para designar os sons ou músicas que estão de fundo, em segundo plano, acompanhando
a locução.
Duo formado por Miguel Queiroz e Eugênio Tadeu que, desde 1994, produz espetáculos e CDs dedicados ao público infantil.
Viajar por la imaginación, de agitar la sensibilidad, de “hacerle cosquillas” a las ideas y valores que el sistema nos muestra como inmutables y permanente, se trata de invitar a nuestra infancia a construir y explorar otros mundos.
Eugênio Tadeu Pereira é Professor do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG. Mestre em
Educação - FaE/UFMG, Doutorando em Artes Cênicas - ECA/USP; integrante do Duo Rodapião; idealizador e coordenador
do projeto Pandalelê - Laboratório de Brincadeiras – CP/UFMG (1993 a 2003) e integrante do Movimento da Canção
Infantil Latino-Americana e do Caribe.
Cristiane Lima é Mestre em Comunicação Social - FAFICH/UFMG, bacharel em Radialismo pela UFMG, professora de
Música no Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG e na Fundação de Educação Artística.
Gabriel Murilo Resende é Licenciado em Música pela UFMG, professor de música na Pró-Music e no Centro de Musicalização Infantil da Escola de Música da UFMG, compositor, arranjador e produtor musical.
Reginaldo Santos é Licenciado em Teatro pelo curso de Graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor de Teatro
do Galpão Cine Horto, onde também atua no projeto Conexão Galpão. Coordenador Artístico do Centro de Referência de
Cultura e Desenvolvimento Social de Matozinhos.
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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
“Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e
pais em canções populares brasileiras *
Maura Penna (DEM/UFPB, João Pessoa, PB)
[email protected]
Resumo: As relações entre pais e filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre gerações, na medida em
que ocorrem no seio da família, instituição social marcada por vínculos de dependência e responsabilidade e por laços
emocionais. Diversas canções que têm essas relações como tema são reunidas no CD Como nossos pais (2008), que exemplifica a tendência, também presente na indústria fonográfica, de preservação da produção musical, na medida em
que apresenta diversas gravações com datas entre 1966 e 1988. Deste CD, selecionamos três canções que claramente
configuram uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor: Papai me empresta o carro (de Roberto de Carvalho e Rita
Lee); Já fui (de Marina Lima e Antônio Cícero); Pai (de Fábio Jr.). Numa análise que articula contribuições da sociologia
e da psicologia, mostramos como essas canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da maturidade
e da autonomia pelos jovens, com suas contradições, refletindo também as transformações sociais na configuração da
família e no comportamento sexual. Discutimos, ainda, com base na tipologia proposta por TATIT, como essas canções
tratam diferentemente a relação entre letra e melodia.
Palavras-chave: canção; família; relações entre pais e filhos(as); indústria fonográfica.
“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music
Abstract: The relationships between parents and their children configure a specific part of the relationship between generations, as they occur on the nucleus of the family, which is a social institution linked together by dependency, responsibility and emotional bounds. Several songs which have these relationships as a theme are grouped on the album Como
nossos pais (2008) (Like our parents). This album exemplifies a tendency, also present in the phonographic industry, of
the preservation of musical production, as it presents several recordings from dates varying between 1966 to 1988. From
this album, we have selected three songs that clearly fits the scenario of a son/daughter speaking to his/her father: Papai
me empresta o carro (Dad lend me the car) (by Roberto de Carvalho and Rita Lee); Já fui (I’m gone) (by Marina Lima and
Antônio Cícero); Pai (Father) (by Fábio Jr.). In an analysis that articulates contributions from sociology and psychology,
we reveal how these songs show different moments of the process, with their contradictions, through which the youth
conquers maturity and autonomy. We also show how these songs reflect the social transformations on the configuration
of the family and sexual behavior. We also discuss, based on the typology proposed by TATIT, how these songs deal differently with the relationship between lyrics and melody.
Keywords: song; family; relationship between father and children; phonographic industry.
1. A canção popular
Luiz TATIT (2004) discute, em seu livro O século da canção, como no Brasil, durante o século XX, a canção popular se consolidou e se disseminou como uma prática artística capaz de “traduzir os conteúdos humanos relevantes
em pequenas peças formadas de melodia e letra” (TATIT,
2004, p.11). A seu ver, nesse período a canção se libertou
dos gêneros rítmicos predefinidos, na medida em que o
maior compromisso passou a ser entre o modo de dizer
melódico e a própria letra (TATIT, 2004, p.229):
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
[...] em qualquer época, precisamos celebrar os encontros, lamentar as separações, anunciar e denunciar situações, retratar
o lirismo e a estética do cotidiano. Já há história suficiente na
canção popular para se depreender um certo revezamento dos
modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra – que serve justamente para contemplar esses conteúdos psicoculturais.
(TATIT, 2004, p.232).
Por sua vez, Monclar VALVERDE (2008, p.270-271) critica essa concepção – tanto de Luiz Tatit quanto de José
Ramos Tinhorão, outro estudioso da música popular brasileira – da canção como “um formato musical que, bem
Recebido em: 20/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
ou mal, simplesmente espelha a dinâmica e a estrutura
da palavra falada”, encontrando sua força, portanto, na
“sua condição de veículo da mensagem”. Contrapondo-se
a este posicionamento, VALVERDE (2008) interpreta a importância adquirida pela canção como um acontecimento
da história da música, enfatizando os seus aspectos propriamente musicais. Para este autor, a canção é uma forma musical típica da cultura popular urbana que se tornou “o último reduto da tonalidade”. Por estar centrada na
melodia, o percurso narrativo da canção é mais simples e
concentrado. Além disso, a simplificação instrumental da
música pop e o seu padrão de “acompanhamento” harmônico estabelecem uma relação solo-acompanhamento
em que a melodia é a figura, o que “acentua ainda mais a
unidade desta Gestalt temporal que é a canção e reforça
o seu poder expressivo” (VALVERDE, 2008, p.271-272). O
autor considera a canção, portanto, uma “microestrutura
tonal exemplar” (VALVERDE, 2008, p.275).
Indo além, VALVERDE (2008) enfatiza diversos aspectos
que são colocados em jogo através da mediação da performance do cantor:
[...] enquanto forma musical e formato midiático, a canção não se
reduz ao feliz casamento entre palavra e música: a voz, pela singularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho
de alguém real; a melodia, a seu modo e sem dizer nada, conta
uma história envolvente, quando não arrebatadora; o arranjo e a
instrumentação datam e localizam o acontecimento que se canta,
conferindo concretude e familiaridade à ficção; as palavras, enfim,
formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são
anônimos e se desconhecem, mas se reconhecem, enquanto falantes. (VALVERDE, 2008, p.272-273 – grifos do original)
Assim, para VALVERDE (2008, p.275-276), a gestualidade vocal que se realiza através da canção pode ser mais
importante para a adesão do ouvinte do que o conteúdo
veiculado por sua letra, o que permite o envolvimento
com a canção, mesmo que suas palavras estejam em uma
língua que não dominamos.
Desta forma, VALVERDE (2008) não aborda apenas a canção como uma composição que articula melodia e letra,
mas considera especificamente a sua realização concreta, particular, ou seja, uma determinada ocorrência
da composição, aproximando-se assim da concepção de
performance de ZUMTHOR (2007), que também a vincula à voz e ao corpo: “A performance dá ao conhecimento do ouvinte-espectador uma situação de enunciação”
(ZUMTHOR, 2007, p.70). Entretanto, em se tratando de
um registro fonográfico (como no material por nós analisado), é abolida “a presença de quem traz a voz”, além
de ser possível ultrapassar o “puro presente cronológico”, pois a voz gravada “é reiterável, indefinidamente, de
modo idêntico” (ZUMTHOR, 2007, p.14). Na gravação não
há, portanto, uma visão global da situação de enunciação, pois falta um elemento de mediação – no caso, o
elemento visual (ZUMTHOR, 2007, p.69).
Mas é preciso salientar, comparativamente, que embora TATIT (1986, p.3) caracterize a canção e analise sua
eficácia a partir da relação entre “o seu componente
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melódico e seu componente linguístico”, centrandose então na composição1, ele também reconhece que:
“A harmonia, o arranjo instrumental e a gravação [...]
são trocados a cada versão apresentada”, de modo que
os “arranjos e as gravações podem produzir de novo a
canção, dando-lhe um perfil nem sonhado pelo autor”
(TATIT, 1986, p.1). Deste modo,
A canção, como a música, transcorre e só tem sentido no tempo.
Ela precisa de tempo para se constituir. No entanto, mais que tudo,
desafia a inexorabilidade do tempo, materializando-o em substância fônica vocal. [...] O núcleo entoativo da voz engata a canção
na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém cantando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora.
(TATIT, 2002, p.20)
Como consequência, TATIT (2002, p.20), ao considerar que
o embrião entoativo “reproduz a circunstância de enunciação a cada execução”, aproxima-se em certa medida da
noção de performance de ZUMTHOR (2007) acima discutida e, através dela, da abordagem de VALVERDE (2008),
cuja concepção valoriza mais o caráter musical da canção.
No âmbito deste trabalho, enfatizamos, como TATIT
(2004), a relação entre melodia e letra, mas tomando as
canções selecionadas na especificidade das gravações
apresentadas no CD Como nossos pais (FAOUR, 2008),
cujas características diferenciais abordamos adiante. Por
conseguinte, num primeiro momento, considerando os
textos verbais – as letras – como narrativas, analisamos
como retratam as relações entre pais e filhos(as), que
configuram um tipo particular de relação entre gerações.
Num segundo momento, discutimos como essas canções
tratam diferentemente a relação entre letra e melodia,
com base nos processos de tematização, figurativização e
passionalização (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004).
2. Gerações e famílias
Dentre os vários significados do termo “geração”, apresentados pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa, encontramos: “ação ou efeito de gerar(-se)”
e “função pela qual um ser organizado produz outro
semelhante; procriação, germinação”. Por extensão de
sentido, temos ainda “grau de filiação em linha direta”;
“tronco familiar, grupo racial; ascendência, estirpe, genealogia” – dentre outras acepções.
Com base nesses sentidos de “geração”, podemos pensar
a família como uma instituição social que organiza e legitima a procriação. “A família é sempre um resultado das
relações sexuais passadas ou correntes: sem sexo não há
família” – como indica THERBORN (2006, p.12). Ao mesmo
tempo, ela regula as relações sexuais, “determinando quem
pode e quem deve ou não ter relações sexuais com quem”.
No entanto, não existe um modelo único e universal de família, embora ela seja correntemente vista como uma instituição que contribui para a perpetuação da ordem social.
Diante da existência de sociedades com práticas sexuais
e matrimoniais bastante diferenciadas, o antropólogo
LÉVI-STRAUSS (1980, p.14) considera a família como
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
“uma das questões mais escorregadias dentro do estudo
da organização social”, de modo que não deve ser tratada de forma dogmática. Para o autor, a família pode
ser definida como um grupo social que apresenta as seguintes características:
1) Tem sua origem no casamento. 2) É formado pelo marido, pela
esposa e pelos filhos(as) nascidos do casamento, ainda que seja
concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do
grupo nuclear. 3) Os membros da família estão reunidos por a)
laços legais, b) direitos e obrigações econômicas, religiosas e de
outro tipo, c) uma rede precisa de direitos e proibições sexuais,
além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos
psicológicos tais como amor, afeto, respeito, temor, etc. (LÉVISTRAUSS, 1980, p.16)
Nesta definição, a instituição do casamento – que pode
ter diferentes formas, a depender da cultura – é um
componente essencial. Já GIDDENS (2005, p.151) define a família como “um grupo de pessoas diretamente
unidas por conexões parentais, cujos membros adultos
assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças”,
procurando, assim, contemplar as transformações que
ocorrem nas sociedades ocidentais contemporâneas –
onde é grande a diversidade de formas de famílias e
de núcleos domésticos, inclusive no tocante a divórcios,
recasamentos, coabitação, assim como a núcleos familiares monoparentais ou construídos a partir de parcerias homossexuais. Desta forma, não se prendendo mais
à instituição do casamento, a conceituação de família
enfatiza a importância da relação intergeracional, o que
salienta o papel da mesma na reprodução, na educação
infantojuvenil e na socialização.
Por outro lado, o Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa traz ainda, como significados da palavra “geração”, por extensão de sentido: “conjunto de pessoas
que têm aproximadamente a mesma idade” e “espaço de
tempo correspondente ao intervalo que separa cada um
dos graus de uma filiação e que é avaliado em cerca de
25 anos”. Isto indica que, apesar dos vínculos de apoio à
geração mais jovem, dentro da família, há uma distância
e/ou uma oposição entre gerações, na medida em que
existe potencialmente a referência ao grupo com a mesma idade fora do núcleo familiar.
Nesse trânsito entre a família – a primeira unidade social em que vivemos, nosso primeiro campo de socialização – e o “mundo lá fora” – a começar pela escola – que nos traz novas referências, crescemos e nos
tornamos autônomos, adultos responsáveis, capazes de,
por nossa vez, assumir a responsabilidade pelo cuidado
das crianças em novas famílias. Pois desta forma as sociedades humanas se renovam e se preservam, passando
suas tarefas de geração a geração.
Como diz LÉVI-STRAUSS (1980, p.16) na citação anteriormente apresentada, os membros da família estão reunidos tanto por “direitos e obrigações econômicas, religiosas” ou de outra ordem, quanto por uma “quantidade
variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais
como amor, afeto, respeito, temor, etc”. Assim, do ponto de vista psicológico e da formação da personalidade,
esse processo de tornar-se adulto e ser capaz de construir
novas famílias depende das próprias relações familiares
que contextualizaram – melhor dizendo, constituíram – a
nossa formação.
Aos vinte, ou trinta e poucos anos, somos amantes, trabalhamos,
somos amigos. Somos parceiros num casamento, pais dos nossos
filhos. Mas continuamos também a ser, sob ângulos que talvez não
nos convenham mais, filhos dos nossos pais.
Pois nossa família, nossa primeira família, foi o cenário onde nos
tornamos indivíduos à parte. Foi também a primeira unidade social
na qual vivemos. E, quando a deixamos, levamos conosco muitas
das suas tendências formativas. Ficamos ligados a ela interiormente, por mais que tentemos nos libertar. E a maioria das pessoas – mesmo que de modo distante, obrigatório e rotineiro – fica
ligada a ela também externamente.
Porém, mesmo mantendo a conexão – a conexão interna, a conexão externa –, continuamos a lutar para nos libertar dessa primeira família. Aprendemos a ver o mundo com nossos olhos, e não
com os dos nossos pais. (VIORST, 1999, p.229)
Num processo marcado por contradições, na oscilação entre vínculos e rupturas, os jovens – os filhos(as) – conquistam sua autonomia e, por sua vez, podem se tornar pais/
mães. Por tudo isso, fica claro que as relações entre pais e
filhos(as) configuram um tipo particular de relação entre
gerações, na medida em que ocorrem no seio da família,
instituição social marcada tanto por vínculos de dependência e responsabilidade, quanto por laços emocionais.
3. O CD temático Como nossos pais e o
mercado fonográfico
Argumentando que a atuação do mercado fonográfico
não é tão simples e homogênea como pode parecer, TATIT
(2004, p.231-232) discute como, ao lado do investimento
em “lançamentos explosivos” – e efêmeros –, há também
uma preocupação com a diversidade e com a preservação
de gêneros, estilos, atuações e mesmo artistas:
Tudo ocorre como se o mundo financeiro, em interação com o
mundo artístico, captasse e ao mesmo tempo influenciasse um
ritmo de alternância cultural que serve para manter vivas e atuantes todas as dicções (modos de compor e de cantar) que formam
o universo musical da nossa sociedade. Em outras palavras: não
se pode cultivar um só gênero ou uma só dicção por muito tempo
pois a sociedade é complexa e precisa dos gêneros e dicções abandonados para se reconhecer integralmente. (TATIT, 2004, p.232)
Como uma das estratégias que exploram essa permanência, TATIT (2004, p.246) aponta, nos anos de 1990, as
regravações de antigos sucessos: desde “relançamentos
de antigos LPs em formato de CD até as compilações dos
melhores momentos da carreira, passando pelos Songbooks e pelas reinterpretações de clássicos do cancioneiro nacional e internacional”.
Também agrupando repertório já consagrado, o CD
Como nossos pais (FAOUR, 2008), de caráter temático,
produzido pela Som Livre em 2008, foi idealizado pelo
jornalista, crítico e pesquisador musical – que também
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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
atua como escritor e produtor musical – Rodrigo Faour,
também responsável pela seleção de repertório e pelos
textos do encarte. Como informa a biografia disponível
em seu site pessoal, Faour tem trabalhado “no processo de revitalização do acervo das principais gravadoras
brasileiras (Universal, SonyBMG, EMI, Warner e Som Livre), produzindo compilações e reedições de álbuns importantes da música brasileira, sempre acompanhados
de textos explicativos assinados por ele”2. Sem dúvida, a
coletânea Como nossos pais (FAOUR, 2008) relaciona-se
com este trabalho: ela reúne gravações de vários intérpretes, com datas entre 1966 e 1988, a partir de fonogramas cedidos pela SonyBMG, EMI, RGE e Universal
– como informa o encarte do CD.
Neste ponto, vale ressaltar que tomamos o CD como um
objeto cultural não estritamente musical ou sonoro, pois
imagens e textos verbais escritos, presentes no encarte,
também o integram e são por nós considerados. E o encarte traz, em sua contracapa, um texto de apresentação
assinado por seu idealizador, que assim se inicia:
As delicadas relações entre a figura do pai e seus filhos foram
muito bem descritas através dos tempos por nossos compositores,
sempre argutos cronistas do cotidiano. Neste disco, selecionamos
faixas dos anos [19]60 para cá em que embates, admirações e
reflexões de várias ordens são postas à prova em forma de samba,
rock, balada, forró e outras levadas. (FAOUR, 2008 – encarte)
Dedicado por FAOUR (2008 - encarte) ao próprio pai,
a caracterização deste CD como uma manifestação
da preservação ou permanência da produção musical,
acima discutida por TATIT (2004), evidencia-se por um
certo olhar para trás na história, que também se revela
nas ilustrações da capa do disco, com base em fotos
de diversas épocas – pertencentes a acervos pessoais,
conforme agradecimento no encarte – que retratam
pais e filhos(as) em diversas faixas etárias. Tais fotos
são evidentemente antigas, como também as gravações
reapresentadas no CD em questão, pois a mais recente data de vinte anos antes da produção da coletânea.
Isso também reforça a colocação de TATIT (2004, p.232)
quanto à preservação de diversos modos de compor e
de cantar (que chama de “dicções”) que fazem parte do
universo musical de nossa sociedade.
Pela importância de evidenciar tais questões, especificamos as 14 canções reunidas no CD, com as referências de
autoria e intérprete, além dos dados da gravação original:
1. Coisinha do pai (de Jorge Aragão/ Almir Guineto/
Luiz Carlos) – intérprete Beth Carvalho – gravação
original do LP “No pagode” (RCA Victor, 1979)
2. Papai vadiou (Rody do Jacarezinho/ Gaspar do Jacarezinho) – Leci Brandão – do LP “Leci Brandão”
(Copacabana, 1985)
3. O mundo é um moinho (Cartola) – Cazuza – do LP
“Cartola bate outra vez” (Som Livre, 1988)
4. Como nossos pais (Belchior) – Elis Regina – do LP
“Falso brilhante” (Philips, 1976)
5. Avôhai (Avô e pai) (Zé Ramalho) – Zé Ramalho – do
LP “Zé Ramalho” (Epic/CBS, 1978)
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6. Papai me empresta o carro (Roberto de Carvalho/
Rita Lee) – Rita Lee – do LP “Rita Lee” (Som Livre,
1979)
7. Já fui (Marina Lima/ Antônio Cícero) – Marina Lima
– do LP “Todas” (PolyGram, 1985)
8. Pai (Fábio Jr.) – Fábio Jr.– do LP “Fábio Jr.” (Som Livre, 1979)
9. Naquela mesa (Sérgio Bittencourt) – Nelson Gonçalves – do LP “Passado e presente” (RCA Victor, 1974)
10. 14 anos (Paulinho da Viola) – Paulinho da Viola – do
LP Élton Medeiros e Paulinho da Viola “Samba na
madrugada” (RGE, 1966)
11. Espelho (João Nogueira/ Paulo César Pinheiro) –
João Nogueira – do LP “Espelho” (EMI-Odeon, 1977)
12. De pai pra filha (Martinho da Vila) – Martinho da
Vila – do LP “Verso… Reverso” (RCA Victor, 1982)
13. Herança de meu pai (Benício Guimarães) – Jackson
do Pandeiro – do LP “Isso é que é forró” (Polyfar/
Philips, 1981)
14. Papai sabe-tudo (Leo Jaime/ Leandro) – Erasmo Carlos – do LP do especial infantil “Plunct, Plact, Zuuum
2” (Som Livre, 1984)3
Como o próprio texto do encarte esclarece, apesar do título Como nossos pais (FAOUR, 2008) – que permite remeter também à figura materna –, a intenção é homenagear os pais – figuras paternas, masculinas. Mas é preciso
contextualizar essa homenagem e essa centralidade da
figura masculina na relação com os filhos, nas canções do
CD, diante das transformações sociais da família no mundo atual. Como discutem CAVALCANTI e MELO (2008), na
organização da sociedade brasileira, com as suas especificidades, há uma “grande variedade de ‘famílias alternativas’, de relacionamentos com outras configurações,
diversidades de classes, de etnias, etc”. Neste sentido,
o número de famílias chefiadas por mulheres em nosso
país cresceu 30% na última década, atingindo a marca
de 14,6 milhões de lares, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na imensa maioria
desses lares, a mulher é divorciada ou o pai abandonou a
família (VALADARES, 2005, p.61).
Um texto sobre a coletânea, disponível no site de Rodrigo
Faour e também assinado por ele, assim apresenta o disco:
Este CD mostra as relações de pai & filho/filha vistas pela lente
da MPB de várias fases e vertentes. Pelo viés do respeito ou do
humor, nas mais diversas situações – das mais corriqueiras às saias
mais justas (ou seriam calças?). Temos aqui os conselhos paternos,
a admiração por seus ensinamentos, a superproteção, as broncas
mútuas, a saudade do pai que se foi, o encanto do pai com os
filhos pequenos e o mesmo atrapalhado em cuidar deles sozinho…
Enfim, uma bela história contada em forma de disco4.
Muitas dessas músicas, no entanto, falam sobre os pais
ou sobre sua relação com seus filhos ou filhas, mas não
chegam a explicitar um caráter dialógico, como é o caso
da conhecida canção Naquela mesa (BITTENCOURT,
2008), composta pelo filho do músico e compositor Jacob
do Bandolim, que canta a saudade do pai: “Naquela mesa
tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim”.
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
Para nossa análise, selecionamos três canções que claramente configuram uma fala filial dirigida ao pai como
interlocutor, pois falam com o pai: Papai, me empresta
o carro, de Roberto de CARVALHO e Rita LEE (2008); Já
fui, de Marina LIMA e Antônio CÍCERO (2008); Pai, de
FÁBIO Jr.(2008). Mesmo que não tenhamos, aqui, a fala
do pai como resposta, suas letras pressupõem o diálogo
e, potencial e intencionalmente, esperam uma resposta.
Procuramos, então, discutir como essas três canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da
autonomia pelos jovens, com suas contradições: os vínculos afetivos, a dependência, a repressão, a rebeldia, o
desejo de assumir a própria vida e a própria sexualidade;
tornar-se adulto e, por sua vez, pai.
4. Três momentos/movimentos na relação
pai–filhos(as)
Os filhos que falam com seus pais nas três canções
escolhidas não são mais crianças, mas sim jovens (adolescentes ou adultos) em diferentes momentos do seu
processo de construção da individualidade – ou seja,
no processo de se tornar indivíduos à parte, nos termos
de VIORST (1999, p.19) –, de conquista da independência e da autonomia.
Em Papai, me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008), um
rapaz que ainda mora com a família – “aqui em casa é impossível namorar” – e é dependente dela, inclusive financeiramente, pede o apoio do pai para levar a sua “garota”
ao cinema e “tirar um sarro”. Apesar de cantada pela voz
feminina da roqueira Rita Lee, o enunciador é claramente
seu alter-ego masculino, pois, como mostra MAINGUENEAU (1996, p.85), nem sempre há coincidência entre o
“produtor físico do enunciado (o indivíduo que fala ou escreve)” – no caso, a cantora – e a categoria do “eu”, aquele
que se coloca como enunciador – seu alter-ego.
Papai, me empresta o carro
Papai, me empresta o carro
Tô precisando dele pra levar
Minha garota ao cinema
Papai, não crie um problema
Não tenho grana pra pagar um motel
Não sou do tipo que frequenta bordel
Você precisa me quebrar esse galho
Então, me empresta o carro
Papai, me empresta o carro
Pra poder tirar um sarro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)
Gravada originalmente no final da década de 1970, a
canção revela uma configuração tradicional de família –
nuclear e patriarcal –, onde o pai desempenha claramente
a função “instrumental” de provedor. Desta forma, é aqui
retomada a visão da família nuclear como a unidade mais
bem equipada para lidar com as demandas da sociedade
industrial, defendida pelo sociólogo funcionalista Talcott
Parsons. Nessa “família convencional”, a especialização
de funções determina que um adulto pode trabalhar fora
de casa enquanto o outro adulto cuida da casa e dos filhos: enquanto o marido/pai atua como provedor, a mulher/mãe cumpre a função “afetiva”, emocional, dentro
do ambiente doméstico. Por tratar tal divisão de tarefas
domésticas como natural e inquestionável, a concepção
de Parsons de família é atualmente considerada ultrapassada (GUIDDENS, 2005, p.152-153).
Por outro lado, no entanto, essa canção também reflete
a “revolução sexual” que ocorreu no mundo ocidental, no
último terço do século XX, impulsionada por inovações tecnológicas que permitiram dissociar sexo de procriação:
Em primeiro lugar, em termos culturais e legais, houve uma secularização da sexualidade, libertando-a de regras religiosas ou de
quaisquer outras normas apriorísticas que a considerassem “pecaminosa” ou condenável de algum modo, quando exercida fora
do casamento e por puro prazer, sem intenção de procriação. [...]
A revolução real foi, é claro, a prática em si mesma. Ela se manifestou claramente em mais iniciações sexuais pré-maritais, em
idades mais jovens. Ao passo que a idade do casamento aumentou,
a idade da primeira relação sexual diminuiu. A prática de sexo
pré-marital ampliou-se de forma significativa. (THERBORN, 2006,
p.306-307)
Apesar de a expressão “tirar um sarro” poder ser tomada
de forma mais branda, há outras indicações – como as referências ao motel e ao bordel – da aceitação do sexo prémarital. Por outro lado, pelo caráter patriarcal da família
representada e pela tradição machista de nossa sociedade,
é possível também considerar que tal aceitação poderia se
limitar aos filhos do sexo masculino: o pai teria orgulho de
incentivar as manifestações de masculinidade de seu filho
rapaz, que assim prova que “já é um homem”. A mesma
liberalidade talvez fosse questionada, portanto, em relação às filhas mulheres. Neste sentido, apesar de a canção
ter um enunciador masculino, a voz feminina de Rita Lee,
pela singularidade de seu timbre, torna presente o corpo
e o desempenho de uma mulher real, como indicam tanto VALVERDE (2008, p.272 – trecho acima citado) quanto
ZUMTHOR (2007, p.83-85), para quem a voz “possui plena
materialidade”, estabelecendo “uma relação de alteridade
que funda a palavra do sujeito”. Desta forma, a performance da cantora coloca em cena a dimensão feminina e, em
certa medida, a postura feminista: a mulher reivindicando
seus direitos e sua liberdade.
Na canção, a afirmação de masculinidade do filho é também compartilhada pelo pai, que com a mesma idade também “pintava o sete”, revelando-se assim uma tradição
familiar: tal pai, tal filho; ou filho de peixe, peixinho é.
Papai eu não fumo,
Papai eu não bebo,
Meu único defeito é não ter medo
De fazer o que gosto, u-hu!
Papai eu aposto
Na minha idade você pintava o sete
Mamãe tem ódio de uma tal Elizete
Aqui em casa é impossível namorar
Então qual é a sua?
Eu só quero um sarro
Meia hora no seu carro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)
Se vinculado à família e de certa forma reproduzindo
seus valores, inclusive provando ser um bom filho – que
não fuma e não bebe –, o jovem rapaz reafirma sua in161
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
dividualidade – pois não tem medo de fazer o que gosta, o que pode ser visto como um “defeito”, pelo pai –,
fortalecendo-se no processo de conquista de autonomia,
preparando-se para o momento de deixar o lar.
Esse momento de despedida e, em certa medida, de ruptura é retratado na canção Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008),
gravada originalmente por Marina Lima em LP de 1985:
Tchau, coroa!
Tchau, tchau, cara!
Sim, o tempo voa
Sou mulher já!
Tem alguém à espera
Que vai ficar uma fera
Se eu demorar demais
Tem essa fissura
Tem minha loucura
Tem a de vocês
Vocês sabem que eu os amo
E muito
Mas, com licença, eu vou à luta
Sem limite
Pois se a Terra é mesmo fruta
Eu tenho apetite (LIMA; CÍCERO, 2008)
A interjeição (tchau) com que a letra se inicia, sendo
logo repetida – e que irá também encerrar a canção –
marca claramente a despedida, o momento em que a
filha deixa o lar. No entanto, é interessante notar que
seu sentido dicionarizado não é de adeus, mas sim de
até logo, até a vista5, o que indica que, embora assumindo suas escolhas e sua própria vida, a filha reconhece e
pretende manter os vínculos com os pais: “vocês sabem
que eu os amo”. O jogo com as palavras cara e coroa –
os dois lados de uma moeda, mas também tratamento
informal dado a pessoas próximas – permite inferir que
a filha se dirige ao casal: ao pai (cara) e à mãe (coroa).
Mais uma vez, a configuração familiar é nuclear.
Reafirmando a sua individualidade e o direito às suas
escolhas, a filha declara: “com licença, eu vou à luta”.
Aqui, há uma clara relação intertextual com o título do
livro autobiográfico de Eliane Maciel, publicado no final da década de 1970 com bastante repercussão, sendo
uma referência corrente, portanto, na época em que o
LP de Marina foi lançado, e pouco depois, em 1986, a
obra foi adaptada para o cinema6. Assim, a filha – que
podemos supor que conquistou alguma independência financeira, inclusive – sai de casa e vai à luta para
buscar suas verdades, para atender a seus anseios, seus
desejos – sua “fissura”, sua “loucura” –, num processo
que é também uma luta para se libertar da família e
aprender a ver o mundo com seus próprios olhos. “Pois o
ato de sair de casa só se torna uma realidade emocional
quando deixamos de ver o mundo com os olhos de nossos pais”, como discute VIORST (1999, p.233).
“Sou mulher já!”, diz a filha. E isto não tem apenas o sentido de “não sou mais criança”, mas também de maturidade sexual, pois “tem alguém” que a está esperando e
ela vai embora “com seu amor”, como a segunda parte
da letra explicita. Encontramos aqui também, portanto,
162
um reflexo da “revolução sexual” das últimas décadas do
século XX, com indicações de mudanças comportamentais também para as mulheres. “Mais do que qualquer
coisa, a revolução sexual tornou o longo período de sexo
pré-marital e a pluralidade de parceiros sexuais durante a
vida um fenômeno ‘normal’, tanto no sentido estatístico
quanto no moral” (THERBORN, 2006, p.310).
Tchau, coroa!
Tchau, tchau, cara!
Sim, o tempo voa
Sou mulher já!
A gente se liga
Tarde demais pra briga
Pra que ficar rancor?
Eu quero viver
Sim, quero viver
Vou com meu amor
Mas vocês sabem que eu os amo
E muito
Mas, com licença, eu vou à luta
Já disse
E nem tem essa de culpa
E nem tem palpite
Tchau! (LIMA; CÍCERO, 2008)
Retomando questões já apresentadas na primeira parte
da canção, a segunda parte traz elementos que revelam
as tensões e dificuldades de todo esse processo, através
das referências a brigas, rancor, culpa... Como diz GIDDENS
(2005, p.166), “a vida familiar circunscreve praticamente
todo o campo de experiência emocional”. Pois a família
tanto apóia a criança em seu processo de vida, quanto a
reprime; e os filhos podem se acomodar e também se rebelar. Convém lembrar que não é fácil se tornar “indivíduo à
parte”, adulto autônomo, capaz de se autogovernar. Neste
processo de amadurecimento pessoal e social, intelectual e
emocional, neste processo de conquista da liberdade individual, nossas escolhas não precisam ser ou de desafio ou
então de obediência em relação aos nossos pais: “A separação não exige que os repudiemos. Exige escolhas livres”
(VIORST, 1999, p.234-235).
Já em Pai (FÁBIO Jr., 2008), um filho independente e mais
velho – por sua vez já pai – reavalia a sua relação com
seu pai e busca meios de reconstruir os vínculos afetivos,
depois de ambos terem se distanciado, física e/ou emocionalmente.
Pai
Pode ser que daqui a algum tempo
Haja tempo pra gente ser mais
Muito mais que dois grandes amigos
Pai e filho talvez
Pai
Pode ser que daí você sinta
Qualquer coisa entre esses 20 ou 30
Longos anos em busca de paz (FÁBIO Jr., 2008)
Não é clara a razão do distanciamento entre os dois: se
é o caso de um “pai ausente”, pelo papel de provedor ou
por alguma forma de abandono do lar, por separação ou
divórcio (cf. GIDDENS, 2005, p.161). Até mesmo a possibilidade de o pai ter falecido se insinua na sequência, no
pedido para que renasça, ao mesmo tempo em que ele
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
é convidado a partilhar de atividades cotidianas – como
jantar ou brincar –, o que fortalece a ideia de que esse
renascimento seja simbólico.
Pai
Pode crer, eu tô bem eu vou indo
Tô tentando, vivendo e pedindo
Com loucura pra você renascer
Pai
Eu não faço questão de ser tudo
Só não quero e não vou ficar mudo
Pra falar de amor pra você
Pai
Senta aqui que o jantar tá na mesa
Fala um pouco, tua voz tá tão presa
Nos ensina esse jogo da vida
Onde a vida só paga pra ver (FÁBIO Jr., 2008)
O filho, que tenta resgatar os laços afetivos com o pai,
não quer mais reprimir nem esconder seus sentimentos,
e ao mesmo tempo reconhece a experiência do pai e
a sua capacidade de aconselhar e ajudar. No entanto,
também reafirma sua própria autonomia, na medida que
não é mais a criança cujos medos eram superados no
colo do pai. Porém, mesmo assim, quer o contato, quer o
afeto de “recostar no peito”.
Pai
Me perdoa essa insegurança
É que eu não sou mais aquela criança
Que um dia morrendo de medo
Nos teus braços você fez segredo
Nos teus passos você foi mais eu
Pai
Eu cresci e não houve outro jeito
Quero só recostar no teu peito
Pra pedir pra você ir lá em casa
E brincar de vovô com meu filho
No tapete da sala de estar (FÁBIO Jr., 2008)
E se ele não é mais criança, pois cresceu – como é inevitável na vida –, o seu filho ainda é criança, e desse modo o
afeto buscado pode ser encontrado na relação avô e neto.
[..] o fato de nos tornarmos pais ou mães pode atuar como uma
reconciliação, destinando aos nossos pais melhores papéis, libertando-os para que sejam – como avô e avó – mais amorosos,
pacientes e generosos do que foram como mãe e pai. Não mais
preocupados em instilar valores morais, não mais encarregados
da disciplina e das regras, não mais responsáveis pela formação
do caráter, assumem o que há de melhor neles, e nós – felizes
com tudo o que podem oferecer aos nossos filhos – começamos
a perdoar os pecados deles, reais ou imaginários. (VIORST, 1999,
p.235-236 – grifos nossos)
Então, esse filho que se tornou pai pode, a partir desse
novo papel, dimensionar melhor a sua própria relação com
seu pai – seu herói e seu bandido –, marcada pela ambivalência, pelos sentimentos conflitantes de amor e ódio.
Pai
Você foi meu herói, meu bandido
Hoje é mais, muito mais que um amigo
Nem você nem ninguém tá sozinho
Você faz parte desse caminho
Que hoje eu sigo em paz
Pai, paz (FÁBIO Jr., 2008)
Como mostra VIORST (1999, p.235), alterando antigas
perspectivas da infância do indivíduo, tornar-se pai pode
ser uma fase construtiva do desenvolvimento, contribuindo para uma visão mais compreensiva das relações
familiares e para a cicatrização de velhas feridas. Deste
modo, o pai pode tornar-se “mais que um amigo”, sendo
possível, então, seguir em paz o próprio caminho.
5. Distintos tratamentos da relação entre
letra e melodia
Entendendo que a canção tem profundo vínculo com
a fala – tendo nela até mesmo a sua origem –, TATIT (2002, p.11-12) enfoca “a canção como produto de
uma dicção” e passa a estudar a “fala camuflada em
tensões melódicas”. A fala cotidiana, o discurso oral, as
coisas ditas de um indivíduo a outro são sonoridades
com caráter puramente utilitário, destinadas a desaparecer. Ao se tornarem canções, no entanto, entram em
outra dimensão.
A instabilidade e imprecisão das entoações de nossa fala cotidiana indicam, entre outras coisas, que elas não foram criadas para
resistir ao tempo, a menos que sejam transformadas em algum
projeto melódico digno de preservação. Trata-se justamente do
que ocorre com as canções: suas melodias são inspiradas nos contornos da fala, mas acabam adquirindo um “sentido musical” – ou
seja, uma direção estabilizada por leis de condução – que, este
sim, merece ser perenizado. (TATIT, 2004, p.123)
Assim, em diversas obras (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004)
trata dos “tipos de compatibilidade entre melodia e letra”
(TATIT, 2004, p.76), destacando os processos de figurativização, tematização e passionalização.
Interessante notar que as três canções aqui estudadas
exemplificam esses processos. Já analisamos como cada
uma expressa uma relação distinta com o pai, um modo
de se dirigir a ele, na medida em que refletem diferentes momentos no processo de amadurecimento pessoal
do jovem, implicando em mudanças na sua relação com
a família e, especificamente, com o pai. Mas cada uma
dessas canções também trata diferentemente a relação
entre letra e melodia.
O processo de figurativização é o que mais explicita a relação básica da canção com a fala coloquial, fazendo uso
de recursos que visam mostrar que “a situação locutiva,
criada por uma determinada canção, é viável e poderia
estar acontecendo durante o tempo e o espaço de sua
execução” (TATIT, 1986, p.25).
Na medida em que configuram uma fala filial dirigida ao
pai, as três canções analisadas fazem uso do processo de
figurativização, que sugere “ao ouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas”. Todas elas fazem uso, por
exemplo, de vocativos – papai; cara, coroa; pai – que contribuem para presentificar o tempo e o espaço da voz que
canta (TATIT, 2002, p.21).
Pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz
que canta. Pela figurativização, ainda, o cancionista projeta-se na
163
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de
sua execução. Aqui, imperam as leis de articulação linguística, de
modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos
utilizados no colóquio. (TATIT, 2002, p.21)
muito mais as variações – e mesmo os contrastes – de
dinâmica. Desta forma, portanto, busca-se que o ouvinte
se emocione com a canção.
No entanto, em Papai me empresta o carro (CARVALHO;
LEE, 2008) e Pai (FÁBIO Jr., 2008), que são musicalmente
contrastantes, esse processo de figurativização se articula a outros recursos musicais de estabilidade melódica7.
Na primeira, predomina a tematização e, em Pai, o processo de passionalização.
Por sua vez, é em Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008) que se
encontram menos presentes os recursos de concentração temática ou de expansão passional dos contornos:
há pouca reiteração ou sustentação vocálica. É apresentada “a voz do enunciador dizendo algo considerado
oportuno” (TATIT, 2004, p.77), no caso a filha falando
diretamente com os pais em tom de despedida e, em
certa medida, de desafio. O canto é lento e pausado, e
embora em alguns momentos se mostre mais expressivo, não chega a construir uma continuidade melódica
que progressivamente leve a um crescendo de expressão
emotiva, como acontece em Pai. O acompanhamento
instrumental comedido, que não chega a criar uma base
rítmica capaz de estimular corporalmente, deixa a voz
constantemente em primeiro plano para apresentar o
que tem a dizer. É apenas na ausência da fala que os
encadeamentos rítmicos e harmônicos dos instrumentos
ganham importância e se expandem – entre as partes
da letra e especialmente ao final, quando se combinam
com a voz (já sem texto) que explora, inclusive expressivamente, vocalizes e a interjeição tchau (cuja função
entoativa veremos a seguir).
O instrumental característico do rock, o caráter rítmico da canção e a interpretação animada e enérgica
de Rita Lee evidenciam a prevalência da tematização
em Papai me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008),
processo que sustenta as “canções aceleradas, centralizadas no refrão e repletas de recorrências melódicas”,
que estimulam o movimento corporal e a dança (TATIT,
2004, p.62-63).
A forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos
e, portanto, as vogais salientes e breves, entre as quais percutem
intensamente as consoantes. Essas características favorecem a
constituição de células rítmicas bem definidas que vão se agrupando num processo denominado tematização. (TATIT, 2004, p.43
– grifo do original)
Já a passionalização se caracteriza como a forma desacelerada de estabilização, que valoriza o percurso melódico
em seus desdobramentos progressivos.
A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível
psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua.
A tensão de emissão mais aguda e prolongada das notas convida
o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já
vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização
melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas
pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto
de desejo. (TATIT, 2002, p.23)
Embora não se refira ao amor sensual, a canção Pai (FÁBIO Jr., 2008) é marcada pelo alto envolvimento emocional na relação com o pai. Como analisamos na seção
anterior, com base na letra, o enunciador é um filho já
adulto que, depois de ter se distanciado física e/ou emocionalmente de seu pai – um estado disjuntivo, portanto,
nos termos de TATIT (1986, p.26-27) –, busca os meios de
reconstruir os vínculos afetivos, ou seja, busca um novo
“estado de conjunção”, que permita recobrar o equilíbrio.
O processo de passionalização também se evidencia pela
emotividade da interpretação vocal de Fábio Jr.– própria
de um “cantor romântico” –, articulada a um acompanhamento instrumental que progressivamente se enriquece
e se torna mais denso, mas sempre deixando a voz em
primeiro plano. Desta forma, constrói-se gradativamente
um clímax sonoro, através do crescendo em intensidade,
densidade e expressividade emotiva. Ressalte-se, inclusive, que a intensidade constitui “um parâmetro de dosagem do afeto investido”, como diz TATIT (2002, p.15). Em
comparação com o rock de Rita Lee, esta canção explora
164
Nesta canção (LIMA; CÍCERO, 2008), portanto, a figurativização é o processo predominante, atuando na criação
de uma cena enunciativa que se apresenta, aqui e agora,
como viável. Neste processo, além da função dos vocativos “cara” e “coroa” (acima mencionada), cabe destacar
o papel da interjeição “tchau” – cuja importância para
marcar o momento em que a filha deixa o lar já foi discutida na seção anterior. Aqui, convém ressaltar que a interjeição constitui um verdadeiro nó “de entrelaçamento
do texto com a melodia”, pois esse som vocal “não é nem
bem um texto nem bem uma melodia. É uma unidade
entoativa por excelência, com valor, ao mesmo tempo,
musical e linguístico” (TATIT, 1986, p.23).
Retomando, agora, a citação de TATIT (2004, p.232) apresentada no início do texto, podemos constatar que as três
canções analisadas exemplificam o revezamento, presente na história da canção popular, de modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra e os diferentes modos de
tratar a relação entre elas – que serve justamente para
contemplar os conteúdos psicoculturais relativos às relações afetivas e familiares.
Se as diferentes dicções que formam o universo musical da nossa sociedade dizem respeito aos modos de
compor e de cantar, é interessante notar que as gravações das canções selecionadas são realizadas por seus
compositores (pelo menos um deles). TATIT (2002, p.13)
apresenta o fato de os compositores se tornarem naturalmente cantores – “Afinal, a voz que fala é a voz que
canta” – como um elemento que reforça sua concepção
de que a canção popular tem sua origem na fala. No
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
caso em estudo, isto permite pressupor que as realizações específicas analisadas – o arranjo e a gravação –
são suficientemente fiéis à composição.
“Arranjos e gravações trabalhadas podem não só intensificar a compatibilidade entre os componentes [letra e melodia] como também
podem criar outros graus de adequação e outros espaços de compatibilidade”. [...] Cabe apenas a constatação de que os trabalhos
de arranjo e gravação mais bem sucedidos, em nível de eficácia da
comunicação, têm sido aqueles que aproveitam a compatibilidade já
existente [na composição] entre o texto e a melodia e a valorizam,
aumentando a cumplicidade com o ouvinte. (TATIT, 1986, p.63)
6. Considerações finais
As três canções analisadas, que trazem uma fala filial dirigida ao pai como interlocutor, integrantes de um CD
temático datado de 2008 – que exemplifica a estratégia mercadológica de investir também na permanência
–, tiveram gravações originais há mais de 20 anos. No
entanto, mostram-se ainda representativas das relações
entre filhos(as) e pais, relações inter-geracionais que se
desenvolvem no interior da família, com grande peso
emocional. Como aponta GIDDENS (2005, p.170), apesar
da enorme variação de relacionamentos sociais e sexuais nas sociedades ocidentais contemporâneas, a família
continua sendo uma instituição firmemente estabelecida,
ainda que submetida a grandes tensões. Pois as crianças
das gerações mais novas sempre precisarão ser cuidadas,
e, do ponto de vista psicológico, os pais homens têm um
papel específico e importante a desempenhar no desenvolvimento da criança – e, por extensão, da pessoa:
Como destruidores construtivos da unidade mãe-filho. Como fomentadores da autonomia e da individuação. Como modelos de
masculinidade para os filhos. Como confirmação da feminilidade
para as filhas. E como a figura outra-que-não-a-mãe que fornece
uma segunda fonte de amor constante. [...] E quando não temos
pai, sentimos sua falta. (VIORST, 1999, p.77)
Contemplando conteúdos psicoculturais ainda presentes
– por serem, até certo ponto, questões existenciais – tais
canções podem permanecer, sendo retomadas e mantendo-se significativas. Deixam, assim, o seu recado.
Entretanto, “utilizar cada composição para deixar um
recado de ordem existencial, conceitual, comportamental, enfim, essencial, representa um outro modo de encarar a melodia e, consequentemente, de se relacionar
com a letra” (TATIT, 2004, p.230). Nesse outro modo,
sem estar mais preso aos gêneros rítmicos predefinidos,
“em vez de produzir um samba, um blues, um baião ou
um rock, o compositor propunha diretamente um modo
de dizer melódico que só mantinha compromisso com a
própria letra” (TATIT, 2004, p.229).
Assim, ao mesmo tempo em que, nas cenas que constroem, as três canções analisadas dão recados aos pais (dos
enunciadores), para nós elas deixam recados que refletem as mudanças nas relações familiares e nos comportamentos em nossa sociedade. Por outro lado, também
exemplificam distintos modos de cantar, de compor e de
tratar a relação entre melodia e letra – ou seja, expressam
diferentes dicções presentes na canção popular brasileira.
Referências
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da polícia da família. João Pessoa: Conferência Internacional Educação, Globalização e Cidadania, 2008. Digitado.
(Trabalho apresentado em mesa redonda)
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A família. In: LÉVI-STRAUSS, Claude; GOUGH, Kathleen; SPIRO, Melford. A família: origem e evolução. Porto Alegre: Vila Martha, 1980. p.7-45.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PENNA, Maura. Diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. In: COLÓQUIO CIDADANIA CULTURAL,
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THERBORN, Göran. Sexo e poder: a família no mundo. São Paulo: Contexto, 2006.
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VIORST, Judith. Perdas necessárias. 19. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1999.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
165
PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre filhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.
Referências sonoras
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Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 9.
CARVALHO, Roberto de; LEE, Rita. Papai me empresta o carro (intérprete: Rita Lee). In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como
nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 6.
FÁBIO Jr. Pai. (intérprete: Fábio Jr.) In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD.
faixa 8.
FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD.
LIMA, Marina; CÍCERO, Antônio. Já fui (intérprete: Marina Lima) In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de
Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 7.
Notas
Este texto apresenta uma versão revista e ampliada de PENNA (2009). Agradecemos à Profa. Eurides Santos e aos Profs. Carlos Sandroni e Luis
Ricardo Silva Queiroz pela sua leitura crítica e valiosas contribuições para o processo de reelaboração.
1 “O próprio registro autoral de uma composição incide sobre os versos e o contorno melódico emitidos pela voz do cantor.” (TATIT, 1986, p.1)
2 Conforme biografia de Rodrigo Faour, disponível em: http://rodrigofaour.com.br/quem-e-rodrigo-faour. Acesso em: 13 set. 2009.
3 Conforme informações disponíveis em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.
4 Disponível em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.
5 De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
6 Conforme informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Com_Licença,_Eu_Vou_à_Luta Acesso em: 13 set. 2009.
7 Como mostra TATIT (1986, p.60), há os protótipos de canções que exploram predominantemente cada um dos processos: figurativização, tematização e passionalização (ver tb. TATIT, 2002, p.26 – sobre a arquicanção como canção-modelo). No entanto, usualmente, cada canção faz uso dos
três processos, sendo por vezes difícil identificar qual deles é predominante.
∗
Maura Penna é Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, Graduada em Música (licenciatura e bacharelado) e Educação Artística pela Universidade
de Brasília. Atualmente é Professora Adjunto I do Departamento de Educação Musical da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Música, Arte e Educação, Estudos Culturais, com ênfase em Educação Musical, atuando
principalmente nos seguintes temas: educação musical, política educacional para arte e música, prática pedagógica em
música, pesquisa em educação, além de manifestações culturais e artísticas na contemporaneidade – especialmente música popular e midiática. É autora de Música(s) e seu ensino (Sulina, 2008), entre outras obras já esgotadas, e de inúmeros
artigos publicados em coletâneas, periódicos científicos e anais de congressos.
166
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
Corporalidade musical na música popular:
uma visão da performance violonística de
Baden Powell e Egberto Gismonti
Jorge Luiz Schroeder (Unicamp, Campinas)
[email protected]
Resumo: Recorte da tese de doutorado (SCHROEDER, 2006) em que proponho o conceito de corporalidade musical para
poder explicar as performances de cinco músicos populares. Através da investigação das relações que dois deles (Baden
Powell e Egberto Gismonti) constroem com seus instrumentos (violão popular) e linguagens (música popular instrumental), pretende-se enfatizar a performance como um jogo de tensões entre as possibilidades particulares dos músicos
(tanto de realização quanto de entendimento musical) e as linguagens, gêneros e instrumentos musicais escolhidos por
eles para expressão. Estes instrumentos são marcados por regras oriundas de um processo histórico e coletivo que não se
realiza num só indivíduo, e os músicos, marcados por possibilidades e dificuldades que não permitem a realização plena
de uma exigência coletiva. Deste jogo complexo nasce a música.
Palavras-chave: corporalidade musical; performance musical; música popular; Baden Powell; Egberto Gismonti.
Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances
on the guitar
Abstract: Study based on the doctoral dissertation (SCHROEDER, 2006) in which I propose the concept of musical
corporality to be able to explain the performances of five Brazilian popular musicians. Through the investigation of the
relations that two of these musicians (Baden Powell e Egberto Gismonti) construct with their instruments (the popular
acoustic guitar) and languages (instrumental popular music), we intend to emphasize the performance as a game of tensions between the particular possibilities of the musicians (for the realization as well as for the musical understanding)
and the languages, genres and musical instruments chosen by them for expression. These instruments are marked by
rules derived from a historical and collective process that does not happen in one single individual. On the other hand,
the musicians are marked by possibilities and difficulties that do not allow the full realization of collective requirements.
Music is born from this complex game.
Keywords: musical corporality; music performance; popular music; Baden Powell; Egberto Gismonti.
1 - Palavras iniciais
Este artigo é um recorte da minha tese de doutorado
(SCHROEDER, 2006), onde tentei esboçar um conceito, o
de corporalidade musical, tendo como base a análise da
obra fonográfica de cinco violonistas populares (Baden
Powell, Egberto Gismonti, Ulisses Rocha, André Geraissati
e Michael Hedges). Hoje considero mais prudente denominar a corporalidade musical de noção. Ainda que aos
poucos uma trilha para o status de conceito possa ir se
formando, conforme eu puder deixar mais precisos seus
contornos com artigos e pesquisas posteriores, talvez a
noção de corporalidade musical seja por enquanto apenas
o resultado de um esforço de adequação de outras várias
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
noções e conceitos, importantes com referência ao corpo
e à oralidade surgidos em outras áreas do conhecimento,
para o mundo da música. Uma espécie de tradução.
Tentando, portanto, tornar minhas considerações mais
aprofundadas, poderia começar dizendo que a corporalidade musical é fruto de um trabalho interdisciplinar.
Por muitos anos minha atividade musical se deu na área
da dança. Tocando em aulas de técnicas de dança diversas, compondo peças para coreografias, ministrando
aulas de música para bailarinos, foi inevitável que a preocupação com o corpo e com as formas de concebê-lo
Recebido em: 06/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
167
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
contagiasse minhas inquietações como músico. Na área
da dança se fala muito sobre o corpo, e por vários vieses, como os da anatomofisiologia, das terapias corporais,
da educação somática, das teorias sobre o movimento, e
das próprias técnicas de dança (balé clássico, dança contemporânea, dança moderna, danças do Brasil, danças do
oriente etc.). Mergulhado nesse universo seria difícil ficar
imune à influência de destacar o corpo como produtor de
danças e, mais difícil para mim, mergulhado nesse ambiente, não acabar por considerar o corpo como produtor
efetivo e fundamental de músicas.
Dito dessa maneira parece óbvio que o corpo possa assumir a responsabilidade da realização de músicas, criando
ou executando. Mas as consequências dessa aparentemente simples mudança de eixo podem ser avassaladoras,
do ponto de vista das concepções tradicionais da música.
Trazer o corpo, na sua totalidade, para dentro das discussões musicais, ou mais, para o centro dessas questões,
requer um esforço de reflexão considerável, já que em
grande parte dos casos, o corpo do músico é tomado apenas como meio necessário para a concretização de ideias
musicais. Aliás, atualmente com o desenvolvimento dos
recursos digitais, outros meios para essa concretização
vão sendo instituídos a partir da diluição da interferência
mais direta do corpo. Já é possível, por exemplo, compor
e executar músicas digitalmente sem que se saiba tocar
algum instrumento. Portanto, considero a discussão sobre
o lugar que o corpo ocupa nos campos de reflexão da música não apenas necessária mas, acima de tudo, urgente.
Contudo, algo me incomodava no modo como os bailarinos
se referiam ao corpo. Como se fosse um instrumento. As
comparações entre a manutenção dos instrumentos musicais (afinação, regulagem, limpeza etc.) e a manutenção
do instrumento-corpo para a dança eram fácil e frequentemente evocadas. O incômodo começou cedo. Isto porque
eu compreendia a distinção entre meu corpo, por exemplo,
e a materialidade de meu instrumento (o violão), mas não
entendia como era possível fazer uma dissociação semelhante entre a pessoa que dança e seu corpo. “Mas é ela
mesmo quem dança!”, pensava, “então como é que a pessoa consegue pensar-se de fora, como que manipulando
um mecanismo que é o seu próprio corpo?”
Ao tentar transferir o que ouvia sobre o corpo na dança
para a música, com vontade de desenlear os nós que
surgiam entre as duas artes no meu trabalho diário,
confrontava a conveniência de poder-se distinguir o
corpo “dançante” ou “tocante” da própria pessoa que
dança ou toca. Desse modo, pessoa de um lado e corpo
do outro, parece mais fácil enaltecer o trabalho técnico, e por isso abstrato e padronizado, da preparação do
corpo. A metáfora da máquina se encaixa perfeitamente
nesse modo técnico de pensamento e preparação dos
artistas (“você ainda não está pronto”). Mas nutria dúvidas fortes quanto à qualidade “maquínica” que, deste
modo, devia se exigir dos bailarinos e, por consequência
direta, também dos músicos.
168
O fato de “descobrir” o corpo, ou melhor ainda, as preocupações com o corpo por influência direta do trabalho
com a dança, contudo não me deixava à vontade. Por
um lado, sentia o entusiasmo da novidade de poder falar do corpo como algo de fundamental importância na
realização musical, em todos os sentidos. Por outro lado,
percebia o distanciamento da pessoa que dança ou toca
que essa visão de corpo-instrumento parecia trazer. Se
para a música o corpo era considerado apenas no seu
aspecto funcional, então emprestar a visão mais aprofundada do corpo provinda da dança, mas que a meu ver
pertencia a um mesmo ideário “maquinal”, talvez não
ajudasse muito a mudança de cenário. Suspeitava do
perigo de estar deslocando um equívoco surgido numa
área para um outro local.
Este conflito se tornou crônico no processo de investigação da tese, fazendo-me oscilar entre o total encantamento com relação à importância do corpo na música e a
enorme frustração de ter que tomar o corpo na sua acepção maquinal. Destituído de suas principais prerrogativas,
quais sejam, aquelas que o tornam único e reconhecível
na sua expressão, o corpo concebido como instrumento
aparece limpo daquele grupo de qualidades e características que o complexificam e o tornam ambíguo como texto
(e também na sua expressão). Se isto facilita o trabalho
de formação tradicional de dançarinos e músicos, reduzindo bastante a quantidade de estratégias (ou ferramentas) necessárias para a “construção” ou “moldagem” dos
alunos, conforme parâmetros previamente estabelecidos
e processos de formação rigidamente sistematizados; por
outro lado dificulta o diagnóstico e a solução dos impasses a que este processo abstrato chegou nos dias atuais.
Principalmente na formação de novos artistas.
Ainda que o corpo seja socialmente constituído, tanto
nas expressões quanto nas dissimulações ou contenções,
essa constituição coletiva permite e deseja que ele seja
também individualidade. Permite e deseja a atualização
do coletivo, que pode vir das opções pessoais. Permite
e deseja a distinção, sem as quais grande parte o jogo
social atual se dissolve. Portanto, como vim compreender
depois, meu incômodo apontava para a existência de um
processo de homogeneização na formação dos dançarinos e músicos que, paradoxalmente, se alinhava (à sua
maneira) à tão criticada “massificação” produzida pela
indústria da cultura. E essa homogeneização parecia provir, por mais absurdo que pareça, de uma facção da “alta
cultura” da dança, que eu identificava mais facilmente
talvez por não ser minha área de formação artística. Entretanto, fazia pensar nesse processo igualmente instalado na “alta cultura” musical, quando concebe o intérprete
instrumentista como um meio de transmissão das ideias
dos compositores para o público, e apenas isto.
Ao contrário da anulação da pessoa em favor do corpo,
pensava na possibilidade da inserção do corpo em favor
da pessoa, do músico neste caso. Por isso tentei inverter a
equação erigida pela dança (o corpo como instrumento)
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
e pensar o instrumento musical como parte do corpo. As
dificuldades foram grandes, mas considero os resultados,
ainda que incipientes, bastante promissores.
2 - Realinhamento teórico metodológico
Para que isto pudesse acontecer foi necessário um grande desvio teórico, no sentido da alteração radical da
fundamentação epistemológica e do procedimento metodológico da pesquisa; processo que se tornou difícil,
confuso e complexo. Tive que deixar de lado tudo aquilo
que estava mais à mão no que diz respeito à bibliografia, por exemplo. Textos sedutores como os processos de
associação entre o desenvolvimento de técnicas instrumentais e programas de conscientização corporal (como
o caso do método do professor de violão Enrique PINTO,
2001; ou o de piano de José Alberto KAPLAN, 1987); ou
as associações entre ensino de instrumento e abordagens psicosomáticas (como o caso dos textos de Violeta
GAINZA, 1988; ou mesmo as reflexões psicofisiológicas
musicais de Edgar WILLEMS,1969) visando a reorganização postural, o redirecionamento nos caminhos do
movimento, a reestruturação do pensamento técnico com base na consciência articular, na economia de
energia ou no domínio do peso, todos eles tiveram que
ser evitados. Não por falta de valor ou utilidade naquilo
a que se propõem, mas pelo fato de se enfraquecerem
quando utilizados numa dimensão investigativa para as
quais não foram construídos.
Aos poucos me desestimulei a buscar nos métodos de
ensino de instrumento as chaves para uma concepção
menos mecanicista e psicossomática do corpo. Embora a
Educação Musical tenha se debruçado com mais demora
nas questões sobre o corpo, temia que os empréstimos
teóricos das ciências biológicas ou médicas, que constatava realizarem-se nesta área, acabassem por trazer a
reboque as preocupações e objetivos taxionômicos, explicativos e terapêuticos das suas áreas de origem, renegando a um segundo plano (por vezes até abandonando)
questões de maior interesse especificamente musicais
(como, por exemplo, os processos criativos ou a dimensão
discursiva da música).
Para esta investigação interessava menos observar quais
processos corporais os músicos utilizavam para solucionar
seus problemas de postura, condicionamento, resistência,
longevidade técnica, evitando ou até mesmo curando lesões mais sérias. Importava saber quais os fatores que os
levavam a fazer certas escolhas musicais e não outras; os
motivos pelos quais certas opções, dentre as muitas possíveis, eram usadas enquanto outras eram descartadas.
Desconfiava que as escolhas de linguagens musicais a serem utilizadas, de propostas estéticas a serem oferecidas,
de sonoridades a serem desenvolvidas, até mesmo de soluções técnicas a serem implementadas, não provinham
apenas das vontades pessoais ou das ideias musicais de
cada músico. Alguns outros fatores, condicionantes das
realizações musicais, permaneciam ocultos, não explicados. Contudo davam indícios de existirem. E penso que
foram essas pequenas pistas que acabei por perseguir durante o trabalho de pesquisa.
Em primeiro lugar, estabeleci uma ênfase maior na metodologia empírica, na observação mais cuidadosa e
extensiva dos músicos em ação, na pronúncia de seus
respectivos discursos. Os dados obtidos através dessas
observações empíricas e analisados a partir de outras
fontes teóricas permitiram comparações com outras análises feitas sobre as mesmas peças ou músicos por analistas de outras vertentes teóricas.
Em segundo, deixei de lado as teorias do corpo, mais propícias às influências biológicas, e passei para as teorias da
ação centradas na cultura, no que diz respeito aos músicos, e para as teorias do discurso e da enunciação, no
que diz respeito às músicas. Nessa dimensão foi possível
estabelecer um local de observação que permitiu o livre
trânsito entre níveis distintos de análise musical e contextual. Foi possível, por exemplo, criar um elo entre as
informações harmônicas e melódicas das peças analisadas e os modos particulares dos músicos pronunciarem os
discursos (sotaques, dicções). Foi possível também estabelecer paralelos entre escolhas sonoras e rítmicas, e certas atitudes de renovação, atualização, desconstrução ou
manutenção de certos padrões de discurso (que podemos
também chamar de gêneros de discurso), ajudando a situar mais claramente a posição de cada músico analisado
dentro de um cenário musical maior. No caso particular
da minha análise, este cenário maior foi o campo da música popular instrumental.
Em terceiro, foi possível superar algumas falsas dicotomias presentes no ideário musical, que aloja convenientemente em pólos opostos e conflitantes o individual e
o coletivo, o singular e o plural, o inteligível e o sensível,
a vontade e a possibilidade, a ideia e a realização. Por
meio da mudança epistemológica foi plenamente possível considerar esses elementos todos como constituintes igualmente fundamentais das realizações musicais.
Em outras palavras, foi possível enxergar que o indivíduo não se constitui fora de uma coletividade, e que o
coletivo não anula o indivíduo; que a obra musical é
singular e ao mesmo tempo faz parte de um gênero de
discurso determinado, que possui padrões de procedimento, valores e desenvolve percepções e sensibilidades
específicas, compartilhadas; que tanto a razão quanto
a sensibilidade são resultado de construções culturais;
que a vontade de tocar se ajusta às possibilidades de tocar, incorpora as dificuldades e através delas é desenvolvida; e, finalmente, que a ideia musical se dá no mesmo
movimento, ou impulso, com a qual vai sendo realizada
em sua concretude, e não há primazia ou hierarquia fixa
entre essas duas dimensões da realização musical (entre
o pensar e o fazer).
Com este material teórico-metodológico nas mãos foi possível, então, partir para a análise do material fonográfico
dos cinco músicos, violonistas populares, que escolhi, ten169
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
do como principal motivo o modo explícito como, dentro de
um mesmo gênero de discurso musical, cada um deles se
portava de modo único, pessoal, idiossincrático, frente a um
mesmo grupo de exigências musicais, presentes numa mesma linguagem musical que todos igualmente partilhavam.
falsa dicotomia entre individualidade (o gênio) e coletividade (o gênero), reformulando a ideia de genialidade
em função de um controle de uma linguagem musical
específica, dentro da qual, e somente ali, a genialidade
faz sentido e é reconhecida como tal.
Por questão de espaço, resolvi, para este artigo, concentrar-me apenas em dois dos cinco músicos analisados:
Baden Powell e Egberto Gismonti. Existem algumas razões
para esta escolha. Deixando de lado o fato dos dois músicos terem carreiras consolidadas no mundo da música
popular brasileira (tanto instrumental quanto cancionista,
visto que ambos compuseram indiscriminadamente peças instrumentais e canções) e serem reconhecidos como
marcos importantes na consolidação da legitimidade da
música brasileira internacionalmente, acho muito importante o fato de que ambos se conheciam pessoalmente
e conheciam um a obra do outro. Egberto não esconde a
grande admiração que tem por Baden e tampouco a influência que dele recebeu como músico, compositor e violonista. Essa identificação musical e afetiva entre os dois
músicos propicia uma análise comparada entre suas obras,
de modo a favorecer um esclarecedor cotejamento ponto
a ponto que, para a dimensão deste artigo, permite a inclusão de maior quantidade de informações ao se comentar de uma só vez os aspectos concernentes às duas obras.
Outra razão é o fato da obra fonográfica dos dois músicos
ser de mais fácil acesso do que dos outros três analisados.
Isto permite a complementação que o leitor pode fazer
das minhas análises, ouvindo as peças sugeridas.
A partir desses conceitos foi possível erigir um alicerce sobre o qual as especificidades musicais puderam ser devidamente colocadas. Entretanto, atualmente alguns outros
autores puderam se juntar a esses três primeiros, oferecendo a oportunidade de lapidar um pouco melhor a noção da
corporalidade. Um deles foi Paul Zumthor, quando discute
a oralidade; mais especificamente a vocalidade. Este tema
já havia sido abordado na tese por meio de Michel De Certeau, contudo de modo não convenientemente aprofundado. Encontrei uma identificação quase imediata entre a
vocalidade e a corporalidade no que diz respeito à forma
única, viva e circunstanciada (ou contextualizada) da pronúncia (da fala ou do canto, no caso de Zumthor e da performance instrumental, no meu caso). Esse momento concreto da realização é igualmente enfatizado por Zumthor
pela presença imprescindível do corpo. Ao localizar a voz
“entre o corpo e a palavra” (2007, p.85), abre o precedente
para que eu possa localizar a corporalidade entre o corpo
e a música. Então a corporalidade, de uma certa maneira,
deixa de coincidir com o corpo e passa a ser manifestação
do corpo concretizada em som, em música. Dessa forma,
muito embora o instrumento tocado não seja a voz propriamente dita (emanação direta do corpo, como afirma
ZUMTHOR, 2007, p.27), ele adquire propriedades “corporais”, se integra de tal forma ao corpo (torna-se parte dele,
altera suas dimensões MERLEAU-PONTY, 1999, p.198-199)
que torna perfeitamente utilizável no contexto instrumental a afirmação do autor: “dizendo qualquer coisa, a voz se
diz” (ZUMTHOR, 2007, p.86). Para nós, se torna: “tocando
qualquer música a corporalidade se diz”. Ou seja, o músico
se mostra ao mostrar sua música.
3 - Sobre as contribuições teóricas
Antes de entrar nas análises dos músicos, gostaria de fazer um pequeno parêntese apenas para situar algumas
contribuições que considero fundamentais para a elaboração da ideia de corporalidade musical.
Durante o processo de investigação da tese foram três
os autores que se sobressaíram como fornecedores de
pistas para a construção da corporalidade. Maurice
Merleau-Ponty, com sua ideia de corpo próprio, me ajudou na inversão dos termos da equação (instrumento
como parte do corpo ao invés de corpo como instrumento). Neste caso específico a ordem dos fatores altera
radicalmente o produto. Pierre Bourdieu cujas noções
de habitus e campo de atividade social foram cruciais
para entender os limites dentro dos quais os músicos
escolhidos se movimentavam (no caso, a música popular instrumental) e a importância de suas respectivas
contribuições para a instituição, ampliação e renovação
desse campo musical. Mikhail Bakhtin, que inicialmente contribuiu com o conceito de carnavalização, permitindo perceber certa nuance nos comportamentos
musicais, principalmente desses dois músicos que irei
apresentar em seguida, que atestam, de um (Baden), sua
reverência irreverente e, do outro (Egberto), sua rebeldia disciplinada, em relação à uma tradição consagrada.
Mas também com as ideias de gênero de discurso e estilo, que confirmaram, por um outro viés, a dissolução da
170
A transubstanciação dessa exposição própria do músico
em linguagem musical permite a apreensão, porque fornece indícios fortes da sua presença, dessa corporalidade.
Mesmo na forma de gravação, em fonogramas, sem a presença visual do corpo. É fato que, tanto quanto na leitura
de um texto escrito, a escuta de um fonograma exige complementação de seu ouvinte. Tanto quanto a revitalização
da entonação necessária para a leitura de um texto, para
a compreensão de uma fala congelada no papel, uma revitalização da imagem gestual do músico tocando talvez
seja necessária para a “leitura” da corporalidade. E é aí que
entra, tanto num caso quanto no outro, o conhecimento
da língua e a familiaridade com o gênero de discurso utilizado, para que essa complementação (a aproximação da
performance viva que originou o texto) possa acontecer.
Então eu beneficiei-me do fato de tocar violão, ao investigar violonistas. Violão popular, em primeiro lugar; em
segundo, o fato de já ter visto esses violonistas tocando
(Egberto ao vivo, Baden por meio de imagens de vídeo). Em
terceiro, através do esforço de tentar executar algumas de
suas músicas. Estas foram as estratégias que utilizei para
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
tentar recompor, o mais fielmente possível, alguns traços
marcantes das suas respectivas corporalidades. Traços,
evidentemente, eleitos (certamente construídos), mas que
não invalidam minhas análises.
Outro autor, podemos dizer tardio, que veio a contribuir
com minha investigação foi Davi Le Breton. Com sua sociologia do corpo (2006) e antropologia das emoções (2009),
forneceu argumentos poderosos no que diz respeito à ambiguidade e complexidade das expressões (e porque não
dizer também das emanações) através do corpo.
A sociologia, cujas pesquisas têm no corpo seu fio condutor, não
deve nunca esquecer da ambiguidade e da efemeridade de seu objeto, a qualidade que possui de incentivar questionamentos muito
mais que de constituir fontes de certezas (BRETON, 2006, p.33).
Concebendo as expressões do corpo como construções socioculturais, apreendidas através de modos específicos de
mediação comportamental; exercidas através de modelos
gestuais limiares entre “mostrar” e “esconder”; essas expressões constituem um sistema simbólico complexo, instável, por onde circulam mais ou menos livremente inúmeros componentes tanto condicionantes quanto libertários,
contudo significantes para quem as exercita, utiliza, reconhece, vive. Nesta dimensão procurei localizar a corporalidade musical. Daí a dificuldade em delineá-la claramente,
de constituí-la em conceito, de abstrair ou generalizar seu
alcance. Contudo ela se mostrou válida neste cenário desenhado para sua elaboração: a performance violonística
de músicos populares, dentro do gênero da música popular instrumental. Neste pequeno âmbito, a contribuição da
corporalidade parece permitir algumas inferências difíceis
de conseguir através das análises exclusivamente musicais, ou eminentemente corporais (no sentido biológico do
termo). Espero que o próprio leitor possa corroborar essa
afirmação com as análises que farei a seguir.
4 - Carnavalização
Como já mencionei acima, a perspectiva da corporalidade
musical, do modo como a concebo, cria algumas oportunidades não só de descrição e explicitação de características discursivas presentes nas performances mas, também, de comparação entre performances, que considero
proveitoso para o caso dos nossos dois músicos. Aspectos
e atitudes peculiares numa certa dimensão podem se
mostrar interligadas numa outra. Estilos e características
apresentados como idiossincráticos podem ocultar processos ou ideários com alto grau de proximidade. E este
é o caso da carnavalização nos dois músicos. Ela aparece
em ambos, contudo de modo particular em cada um deles. Comecemos com Baden.
4.1 - Carnavalização em Baden
Baden Powell de Aquino nasceu em Varre-Sai, pequeno
município próximo à cidade do Rio de Janeiro, no dia 6
de agosto de 1937. Terceiro filho de pai violinista amador, cedo se interessou pela música. Tendo inicialmente
aprendido alguns rudimentos do violão com o próprio
pai, logo, porém, passou a ter aulas com um “verdadeiro professor de violão” (segundo a expressão usada por
Baden no DVD Velho amigo), James Florence, conhecido
como Meira, amigo e companheiro de grupo musical do
pai de Baden. Completou seus estudos na Escola Nacional
de Música do Rio de Janeiro, estudando arranjo, harmonia, contraponto, orquestração e composição. Tendo um
desenvolvimento e envolvimento bastante rápido com a
música e com o violão, logo se tornou profissional, a partir
dos 15 anos. Como violonista profissional, acompanhou
várias cantoras e cantores famosos na Rádio Nacional,
em excursões pelo país, e em casas noturnas e boates,
constituindo gradualmente uma carreira promissora que
se solidificou principalmente na década de 1950, quando
iniciou parcerias com grandes nomes da música popular,
como Billy Blanco, Vinícius de Morais, Paulo César Pinheiro, entre outros. A partir daí, formou-se como um dos
grandes nomes do violão no Brasil, tendo extrapolado sua
fama até a Europa, principalmente França e Alemanha,
países onde viveu por muitos anos. Morreu em setembro
de 2000 deixando vasta obra fonográfica atualmente disponível em discos LP e CDs.
Baden se orgulhava de dizer que estudou todo o método de violão de Tárrega (Francisco de Asís Tarrega
Eixea, 1852-1909, violonista e compositor espanhol)
ainda menino, como consta em seu depoimento no
DVD Velho amigo. Por ser menino humilde de cidade
pequena, o fato de dominar rapidamente as habilidades necessárias ao bom desempenho do violonista
clássico certamente despertou seu interesse em face a
aprovação quase unânime de todos que o ouviam tocar
(DREYFUS, 1999). Acompanhando o pai nas “noitadas”
de festas e serestas, manteve contato com músicos
importantes e já amplamente considerados dentro da
música popular, como Pixinguinha, Jacó do Bandolin,
Dino 7 Cordas, entre outros.
Ainda que não seja minha intenção detalhar sua biografia aqui, podemos inferir, em outras palavras, que Baden se formou como músico a partir de um mergulho no
encontro das águas de duas tradições fortes do violão:
a erudita e a popular brasileira. Influências de Tárrega,
Fernando Sor e Andrés Sergovia, por um lado, Dilermano
Reis e Garoto, por outro, foram sempre afirmadas por
ele (DREYFUS, 1999, p.21). Portanto, é possível afirmar
que Baden se projetava a partir da apropriação de parâmetros de qualidade (sonoridade, agilidade, inventividade) e valores artísticos provindos dessas duas vertentes
principais que, aliás, mantinham canais firmes e dinâmicos de trocas simbólicas.
A partir dessa situação específica, deste cenário musical
por onde Baden circulava, é possível detectar em suas
performances um traço pessoal, bastante sutil mas muito
presente, a qual dei o nome de carnavalização. O termo,
emprestado de BAKHTIN (2002) veio a calhar por conta
de uma característica a ele atribuída pelo autor, a partir
de sua interpretação das festas populares da idade média.
171
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
Essa visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda
pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestarse através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância
e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades
e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela
lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações,
profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda
vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa
forma como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés”
(BAKHTIN, 2002, p.9-10).
Bakhtin se refere a um momento específico, o das festas
populares, onde a ordem do poder se altera, pelo menos temporariamente. O grotesco se sobrepõe ao belo, o
provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto
supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo
aparecem; a alma desce ao submundo do material e os
tronchos tornam-se reis.
Na obra de Baden esse momento não é instituído clara e
abertamente como nas festas as quais Bakhtin se refere.
Baden defende a ordem, se alinha com a tradição, enaltece-a. Mas deixa que nas fissuras do seu “bem tocar” se
infiltrem pequenos jorros do grotesco, do incontido. O incontrolado aparece em sua obra não como erro ou equívoco, mas como uma presença rarefeita, um murmúrio de
resistência daquilo que é o avesso da perfeição, daquilo
que instiga a ordem, daquilo que balança o equilíbrio,
sem chegar a desfazê-lo, mas usurpando-o de sua segurança absoluta. Baden talvez seja aquele mal necessário
que ao desestabilizar uma lei, renova-a, atualiza-a, e amplia seu significado, invertendo sua direção ideológica a
favor daqueles que ela supostamente prejudica.
Como isto acontece? Quais seriam os prováveis indicadores dessa atitude carnavalesca? Um bom exemplo, para
começar, é a interpretação que Baden faz da música Berimbau, uma de suas composições mais conhecidas, no
CD Ao vivo no teatro Santa Rosa (faixa 5). Embora tenha recebido letra de Vinícius de Morais, nesta versão
ela aparece em seu estado instrumental. Baden inicia a
performance da peça com uma introdução solística (sozinho), os outros instrumentistas (piano, baixo acústico
e bateria) vão entrando gradativamente até que a seção
introdutória se torna uma espécie de improvisação rítmica coletiva sobre o tema principal da música (que na versão cantada recebe a palavra “berimbau”). Depois disso
inicia-se a melodia principal (por volta dos 46 segundos
na gravação) seguida do refrão (capoeira me mandou, dizer que já chegou, chegou para lutar/Berimbau me confirmou, vai ter briga de amor, tristeza camará...), essas partes
apresentadas numa ordem mais comumente conhecida
pelo público1. Volta o tema principal seguido novamente
do refrão; depois disso aparece uma seção de improvisação solística (por volta dos 2min02s) que termina numa
ponte para um novo aparecimento do refrão. Volta o tema
principal numa última aparição e tem-se então o final,
numa coda curta que retoma o tema do “berimbau”.
172
Um dos traços mais aparentes onde é possível inferir
esta carnavalização anunciada é o andamento acelerado que Baden imprime à peça. É possível comparar essa
diferença de andamento com uma outra interpretação
da mesma música no CD Baden Powell, uma coletânea
da gravadora Movieplay (faixa 4), em que é mantido
um andamento mais próximo das versões cantadas,
mais lento e cadenciado. A aceleração proporciona uma
forte instabilidade rítmica, perceptível tanto na difícil
sincronia entre os instrumentistas quanto nas imprecisões que acontecem nas transições entre as seções
da música. Pode parecer, numa primeira audição, que
Baden decide bruscamente mudar de trecho e que seus
acompanhantes, atentos e acostumados a esse tipo de
rompante do violonista, o seguem prontamente como
que num impulso de reação imediata. Não parece haver, nesta versão, uma preocupação muito grande com a
obediência rígida da quadratura de frases da peça. Com
exceção da seção da melodia principal e do refrão, as
outras passagens intermediárias (pontes e improvisos)
parecem acontecer de uma forma mais livre, em que a
regularidade de ciclo harmônico e frasal dá lugar à intensidade e a efervescência do clima a ser atingido em
cada momento. Isto dificulta, por mais bem ensaiados
que possam estar os músicos, a execução mais precisa das transições entre as partes, criando um provável
clima de relativa insegurança (vencido pela atenção dobrada dos músicos acompanhantes), o que pode enfatizar ainda mais a sensação de urgência já estabelecida
pelo andamento rápido.
Baden procede dessa maneira em muitas outras ocasiões2,
acelerando os andamentos, desestabilizando a métrica,
borrando a plasticidade das massas sonoras, as transições
entre seções das músicas, tudo isto parecendo desafiar os
músicos que o acompanham e a sua própria habilidade no
instrumento. Esse excesso, a meu ver, faz eco com as considerações de Bakhtin. Baden, ainda que numa situação
diferente daquela desenhada por Bakhtin sobre a Idade
Média, utiliza desse processo de deformação da regularidade das músicas para “sujar” a limpeza exigida pelas
regras oficiais de execução, às quais ele, apesar de tudo,
parece querer continuar atrelado. A sonoridade de seu
violão, na aceleração desmedida do andamento, fica distorcida pela inclusão inevitável dos ruídos de raspagem
das unhas nas cordas e na madeira do violão, indo muito além do limite de sonoridade consensualmente aceita
para o instrumento (esses ruídos de excesso os violonistas
chamam de trastejamento). Limite a partir do qual os vários sons que o violão emite, voluntária e involuntariamente, se avolumam e quase se igualam numa espécie
indistinta de percussão violonística, em que o ataque das
notas passa a valer mais do que a ressonância; o barulho
se equipara ao som.
Assim temos uma inversão da regra, o contrário da limpidez, o ruído; o contrário da linha melódica, a percussão rítmica; o contrário da previsão, o inusitado. O tema
do berimbau, que não deixa de ser um instrumento meio
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
melódico e meio percussivo, vem bem a calhar como
pretexto que justifica o excesso, que permite a “grosseria” (que, no entanto, ganha um toque de virtuosismo
com Baden) e a inversão tolerável da hierarquia tradicional da música popular. Baden troca o alto (o som
musical) pelo baixo (o barulho).
O que impressiona é o jorro de vitalidade que Baden consegue impor nesse controle descontrolado que infiltra nas
fissuras das regras do “bem tocar”. Ele, sem dúvida, demonstra técnica, habilidade e vigor, ou seja, alguns dos
elementos mais preciosos na avaliação dos músicos, pelo
menos no meio musical no qual Baden se tornou apreciado. Entretanto esses mesmos elementos são transfigurados, estimulados até seu estado limítrofe, sem que o medo
de perverter a ordem impeça sua exacerbação. Contudo,
Baden paradoxalmente distorce a música, mas não a quebra. Não chega a descaracterizar sua configuração, mas
borra. Usando uma força avassaladora da carnavalização
da interpretação (a abundância de vigor, sonoridade e
velocidade, o exagero da técnica que vai além das propriedades obedientes do instrumento) Baden oferece uma
alternativa grotesca, mas aceitável (e até admirável), aos
modos valorizados e se exprimir no violão. Melhor ainda,
ele insere o grotesco cuidadosamente em suas performances de tal modo a se misturar e se confundir com os
sinais de virtuosismo, ou neles se fundir, a ponto de, por
um lado, ser aceito e admirado graças a esses mesmos
sinais (e que inclusive o identificam, o individualizam, o
instituem como músico consagrado e único) e, por outro,
manter um rastro de rebeldia e ousadia, marcas reconhecidas e reconhecíveis nos considerados grandes artistas.
Mas a carnavalização não aparece apenas na aceleração
e na sonoridade peculiar de Baden. Ela se manifesta também na dimensão harmônica e melódica. Isto é possível
notar pela opção que ele faz por um tipo de sonoridade
violonística melhor conseguida quando se estimulam
as cordas soltas. Esta sonoridade possui algumas características que a diferencia da sonoridade das cordas
presas. Uma das prováveis razões para essa escolha de
Baden é o fato de que as cordas soltas, por vibrarem na
sua máxima extensão, mantêm suas ressonâncias mais
intensas e por mais tempo do que quando são “encurtadas” pela digitação da mão esquerda (ou seja, quando as
cordas estão presas). Uma outra característica é que, ao
contrário das cordas presas, o timbre das cordas soltas
é mais aberto, mais metálico, mais exuberante, então
permite maior intensidade de toque porque responde
com mais intensidade ao toque. Há uma última característica nas cordas soltas: elas dificultam o controle.
As cordas presas são mais facilmente abafadas em suas
vibrações, já que um pequeno alívio na pressão de sua
digitação a faz cessar de vibrar. As cordas soltas, por sua
vez, precisam da ação de abafá-las para que silenciem.
Essa dificuldade geralmente causa um efeito sonoro na
execução que são espécies de “sobras” de sons vibrando.
Quando se muda de acorde, no violão, este fenômeno
pode acontecer se estão presentes as cordas soltas, tor-
nando os encadeamentos de acordes menos nítidos em
suas transições (é quase como tocar piano com o pedal
de sustentação apertado).
Mas para que esta sonoridade aberta das cordas soltas
se efetive e se torne predominante no resultado final da
performance é preciso escolher cuidadosamente os acordes (e, por consequência as tonalidades) mais propícios,
ou seja, a escala e seu grupo de notas que permita maior
utilização das cordas soltas; aquela em que um número
maior de acordes, ou de possibilidades de construção de
acordes, permita a inclusão de cordas soltas. Esta não é
uma escolha simples. Mesmo quando a tonalidade adequada já está determinada para a execução de certa peça
musical, isto não garante que toda a peça possa ser tocada com a ajuda das cordas soltas; alguns trechos podem oferecer dificuldades para se manter uma igualdade
sonora (é bom sempre lembrar que estamos falando do
gênero instrumental popular!). Nesse caso, ainda existe o
recurso das rearmonizações (troca de acordes).
Podemos dizer, rapidamente, que são pelo menos dois os
motivos principais para a troca de acordes numa peça
de música popular: (1) para incluir uma marca específica, pessoal, na interpretação da peça (descobrir um novo
caminho harmônico, inusitado ou característico que, por
sua vez, não desfigure a melodia e não descaracterize o
gênero musical, mas identifique seu executante); e (2)
para adaptar alguma passagem específica às possibilidades mecânicas de execução do instrumento. Baden soma
a esses dois motivos básicos um terceiro: a conquista de
uma sonoridade particular. Ele parece procurar muitas
vezes aquelas soluções harmônicas em que prevalecem
as sonoridades mais abertas e intensas das cordas soltas,
alterando frequentemente suas interpretações. Mesmo
quando executa suas próprias músicas, Baden procura
constantemente soluções que parecem caminhar nesse
sentido, alterações perceptíveis quando comparamos as
várias versões que gravou das mesmas peças (Berimbau
é um bom exemplo dessa busca, mas também Garota de
Ipanema e Samba de uma nota só são bons exemplos desse procedimento em Baden).
No campo melódico, por sua vez, a rebeldia carnavalesca
de Baden se mostra numa mistura às vezes insólita de
velocidade e ecletismo. Explico melhor. A ideia comum,
e equivocada, de que a música se constituiria numa “linguagem universal” é um argumento que, mesmo quando
tenta elevar a música a um patamar diferenciado dentre
os inúmeros sistemas simbólicos existentes, concebe o
músico, em contrapartida, como um verdadeiro “poliglota” musical. Coisa que, na prática, raramente acontece; e
sempre com limitações. Baden parece aceitar essa crença
no ecletismo quando escolhe (ou concorda) em gravar
uma grande diversidade de gêneros musicais, como mostra seu legado fonográfico. Baden gravou desde samba
tradicional (Na baixa do sapateiro e Inquietação, de Ary
Barroso), marchinhas de carnaval (Pastorinhas, de Noel
Rosa e João de Barro), chorinho (Lamento e Carinhoso de
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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
Pixinguinha), bossa nova (Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes; Samba de uma nota só, de Tom
Jobim e Newton Mendonça), standards do jazz tradicional (Stella by starlight, de Ned Washinton e Victor Young;
My funny valentine, de Richard Rogers e Lorenz Hart), bee
bop (Round midnight, de Thelonious Monk, Cootie Williams e Bernie Hanighen), canções populares (Chão de estrelas de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; Dora, de Dorival
Caymmi) e música erudita (Prelúdio em ré menor, Double
e Jesus, alegria dos homens de Bach; Adágio de Albinoni),
entre outras. Também nas suas improvisações ele misturou desde linhas mais jazzísticas, padrões de blues, melodias de chorinho, até passagens eminentemente bachianas e improvisos rítmicos com acordes nos sambas. Aqui
também é possível interpretar essa enorme liberdade que
Baden parecia sentir em transitar por uma diversidade
grande de gêneros musicais, muitos deles contraditórios entre si (no sentido da incompatibilidade de soluções melódico-harmônicas ou rítmicas características de
cada gênero abordado), como um traço de rebeldia, de
perversão às regras (neste caso particular, das regras de
“purismo”, visto que o ecletismo tornou-se, na época em
que Baden iniciou sua carreira, meta a ser almejada pelos
intérpretes; e que continua ainda hoje).
Embora participasse de perto do movimento da bossa
nova, na década de 1950, ele não se filiou definitivamente em nenhuma corrente musical das épocas em
que atuou.
Baden Powell nunca pertenceu a nenhum movimento, a nenhuma
congregação. Ele nunca se ajustou a nenhum molde, nunca seguiu
nenhuma orientação e, sobretudo, nunca se limitou a um gênero.
Quando a marca registrada da bossa nova era aquela famosa batida [do violão de João Gilberto], à qual todos os músicos da década de 60 se amarraram, Baden continuava percorrendo todos os
ritmos, inclusive o da bossa nova, com um sotaque infinitamente
pessoal e original (DREYFUS, 1999, p.67).
Ainda que exagerada, a citação acima não deixa de
constatar esse ecletismo cultivado, ou pelo menos incentivado, pelas atitudes e escolhas musicais de Baden.
Em todo caso, ao nos aprofundarmos um pouco mais
sobre sua obra fonográfica, é possível inferir que esse
ecletismo mantém um centro ao redor do qual todas
essas outras linguagens abordadas por Baden circulam,
num movimento centrípeto. Este centro de atração é o
samba. Podem advir certas dúvidas em considerar Baden
como jazzista, quando toca jazz, ou violonista erudito,
quando toca Bach. Contudo certamente não aparecem
muitas dúvidas quando o consideramos sambista. Muito
da sua produção criativa se manifestou nesse gênero.
Inclusive um grupo fundamental de músicas que compôs com Vinícius de Moraes, conhecidos como Afrosambas (que podem ser ouvidos nos CDs Os afro-sambas
de Baden e Vinícius; Os afro-sambas – Baden Powell; e
uma versão de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso Afrosambas – Baden Powell e Vinícius de Moraes). Conjunto
de canções que atualizou o gênero quando fundiu, num
mesmo cadinho, o samba tradicional com elementos característicos da música dos candomblés.
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Desse modo, é possível incluir na lista de rebeldias carnavalescas de Baden, contra um padrão de atitudes já
previamente determinado e valorizado, a inclusão de citações de vários outros gêneros musicais dentro do samba, e também do samba dentro desses outros gêneros
que pronunciava. Penso nessa atitude como uma espécie
de “paródia a favor”. Isto porque, além de remeter a um
conhecimento considerado “autêntico” e “legítimo” pela
inteligência musical de sua época (como o da música erudita, para os tradicionais, e do jazz, para os progressistas),
e que Baden mostrava dominar e reconhecer sua legitimidade citando-o, trabalhava a seu favor na medida em que
delegava a ele, por força das circunstâncias, essa mesma autenticidade e legitimidade que ia aos poucos conquistando como músico. É bom salientar que Baden não
desdenhava a música “legítima” ou mesmo seus padrões
do “bem tocar”, visto que era através deles que sua consagração era aos poucos alcançada. Mas não unicamente através deles. Ao contrário disto, ele parecia querer
confirmar essa legitimidade mostrando respeito e até um
certo grau de reverência aos gêneros mais consagrados
na sua época (a música erudita e o jazz).
Todos esses fatores, embebidos nas suas possibilidades
(facilidades e dificuldades) e entendimento (apropriações
e recusas) criam, a meu ver, uma proposta discursiva e estética que caracteriza sua produção artística, tanto quando interpreta músicas alheias quanto nas suas próprias
composições. Passemos agora ao outro músico.
4.2 - Carnavalização em Egberto
Egberto Gismonti nasceu no Carmo, pequena cidade no
interior do estado do Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 1947. Filho de pai libanês e mãe italiana fez o
percurso tradicional de estudos musicais em conservatórios, estudando piano e violão. Depois de ter passado
por 15 anos de estudos tradicionais, teve a oportunidade de estudar, em Paris, com Nadia Boulanger (professora de vários músicos consagrados em vários gêneros
e linguagens musicais, tais como Almeida Prado, Quincy
Jones, Raul do Vale, Frank Zappa entre muitos outros)
e Jean Barranqué (discípulo de Schoenberg e Webern).
Retornando ao Brasil, inicia sua carreira pública participando do Festival da Canção de 1968, com a canção
Sonho 70, interpretada na ocasião pelos Três Moraes, já
aqui demonstrando certa dose de transgressão e vanguarda assimilada provavelmente em seus estudos parisienses. Grava seu primeiro LP com a mistura da música erudita da vanguarda do século 20 com a música
brasileira, utilizando ritmos tradicionais do frevo, choro,
maracatu, batuque, samba, dentre outros. Possui, atualmente, a gravadora Carmo, que se dedica ao lançamento
de novos talentos da música instrumental brasileira.
A dimensão carnavalesca, sutil e insistente em Baden,
com Egberto assume proporções bem maiores. Aqui o
grotesco bakhtiniano também aparece principalmente
como a exacerbação, o excesso de atuação, que atinge um estado limítrofe tanto da obra que se propõe a
executar (ou criar) quanto do gênero musical na qual se
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
instala, ou do qual irradia suas intervenções artísticas. Diferentemente de Baden, Egberto não tem a preocupação
de instalar seus excessos nas fissuras da ordem “oficial”
musical. Ao contrário, ele explode essa mesma ordem
estabelecida através da instauração de uma outra, que
constrói a partir de suas misturas e experiências entre
linguagens e gêneros, que acabam por constituir uma
proposta estética (podemos dizer também, um universo
sonoro discursivo, ou um dialeto) particular.
Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza
com frequência no violão, não estremece uma organização musical preestabelecida, não borra seus limites
bem delineados, mas habita um mundo já praticamente beneficiado pela existência dos borrões, pelas hachuras e pelas linhas fragmentadas e indefinidas. Em
outra palavras, Egberto toma a liberdade de construir
um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso (na verdade, exige). Vários exemplos poderiam
ser citados, entretanto considero a peça Dança das cabeças (faixa 2 do LP Dança das cabeças) suficiente para
ilustrar minhas afirmações.
Numa arquitetura complexa (são oito minutos de música
ininterrupta), na qual apresentações dos dois temas principais são intercaladas com seções novas e com trechos
de improvisações e desenvolvimentos, Egberto costura
uma sequência na qual alterna diversos climas sonoros.
Imagens sonoras múltiplas surgem em correspondência
direta com as várias articulações que elabora com aquilo que podemos chamar de elementos principais eleitos
para a confecção da peça. Com um material estrutural
reduzido, ele consegue apresentar uma gradação ampla
de matizes sonoros (timbrísticos, de intensidades, de articulações, de texturas e tonais), elaborando verdadeiras
paisagens sonoras em constante transformação, em que
ora um, ora outro elemento toma a frente do discurso,
estabelecendo uma dinâmica intensa num jogo de trocas
entre figura e fundo durante toda a peça.
Um desses elementos, por exemplo, é o que chamamos
de “notas rebatidas”. É um recurso que, muito usado por
violonistas, consiste de notas repetidas continuamente,
formando uma espécie de ressonância reiterativa cuja
função principal, na peça analisada, é a de preencher os
vazios deixados pela costura dos temas melódicos apresentados, adensando sua textura sonora. São repiques de
notas que se interpõem às notas da linha melódica, como
acontece num outro exemplo conhecido desse procedimento que são os ponteados da viola caipira, que podem
ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da
corda presa com notas da corda solta, intercaladas geralmente uma a uma. Na Dança das cabeças a nota rebatida
é elemento constituidor e fundamental na sua estrutura.
Ela aparece quase sempre provinda de uma corda solta; a
depender do trecho da peça ora é corda aguda, ora é corda grave. Mesmo nas seções de improvisação e desenvolvimento mais livres, o mote da nota rebatida se mantém
presente, algumas vezes transfigurado em arpejo repetitivo (como na seção que inicia por volta dos 2min08s, que
chamei na análise de “ponte estendida”, ou na segunda
seção de improviso, por volta dos 4min33s).
O desenvolvimento dessa peça permite que ampliemos
um pouco mais a ideia das notas rebatidas, generalizando-as como bordão. A ideia do bordão, nesta peça em
particular, é sempre apresentada de maneiras diferentes. Na introdução, por exemplo (até por volta dos 42s),
aparece logo de início como função da primeira nota
grave que, a partir do momento da entrada de uma série
de acordes repetidos (uma melodia de acordes), se acomoda com intensidade diminuída por detrás da melodia
de acordes. Passa de figura a fundo até a entrada do
tema principal (aos 42s). Já na entrada do tema secundário (por volta dos 58s), o bordão é transferido para a
tumbadora (instrumento de percussão tocado por Naná
Vasconcelos, acompanhante de Egberto nesta versão),
que transforma o bordão melódico/harmônico do violão
em bordão rítmico da tumbadora. Os acordes iniciais,
transformados em arpejos na seção que inicia por volta
dos 2min08s, passam de protagonistas a acompanhantes durante todo o trecho, e assim as alterações vão se
sucedendo por toda peça.
As notas rebatidas, contudo, não são exatamente o traço rebelde na execução da peça, mas sim um elemento
estrutural na sua arquitetura. Entretanto, a insistência,
a repetição praticamente ininterrupta, a obstinação
por esse fundo reiterativo, enfatizado pela sensação de
urgência suscitada pelo andamento ágil e pela rítmica pontilhada que praticamente a percorre do início ao
fim, este sim poderia exemplificar um traço grotesco
(bakhtiniano) de Egberto. Só que, diferente de Baden,
essa agitação toda consubstancia um terreno já “carnavalizado”, com o qual os elementos de rebeldia que ele
apresenta na execução não se mostram em conflito, mas
sim em relação de cumplicidade.
Embora Egberto, assim como Baden, extrapole o andamento com o qual executa a peça (há várias frases extremamente rápidas, principalmente no tema secundário,
que aparece por volta dos 58s, 1min32s e 6min11s, e em
algumas seções de improvisação, por volta dos 4min33s e
6min43s, onde é possível perceber auditivamente traços
desse exagero temporal, quando não ouvimos nitidamente todas as notas que ele toca, mas captamos seu gesto
espasmódico), exagere os contrastes abruptos de intensidades (variando em instantes de um pianíssimo quase
inaudível para um fortíssimo trastejado) e abuse do uso
das cordas soltas (em busca de uma sonoridade também
aberta, ressonante e intensa), ele faz tudo isso dentro de
um terreno previamente arquitetado que sustenta e dá
corpo e sentido estrutural a esses excessos. Em Egberto
os exageros não são traços de rebeldia dissimulada, mas
elementos próprios da sua linguagem. Enquanto Baden
parece querer se apossar de um discurso oficial de um
modo não-oficial, se é que se pode dizer isso, Egberto
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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
parece já estar de posse de um discurso não-oficial em
que suas “grosserias” musicais só ajudam a reafirmar esse
universo especial que cria.
Na dimensão melódico-harmônica, Egberto mantém a preferência pelas cordas soltas, já assinalada na sonoridade de
Baden Powell. Mas também nesse quesito Egberto desfruta
de uma relação diferenciada, já que teve contato prolongado com a vanguarda contemporânea erudita em seus
estudos na Europa e pôde, com certeza, reorganizar suas
expectativas harmônicas para dissonâncias mais ousadas,
de certo ponto de vista não tão próximas das sonoridades
populares cultivadas no Brasil3. Egberto utiliza abundantemente não só dos ostinatos e bordões em cordas soltas,
acrescentados de acordes que vão se movimentando e alterando as relações dissonantes com esses bordões utilizados, mas também das mudanças de acordes em paralelo,
onde se fixa uma fôrma de mão e faz com que ela passeie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza
acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se
acrescentados de cordas soltas, causam efeitos inusitados
de dissonâncias). Os exemplos de utilização dessa estratégia são vários, como na peça Em família (faixa 3 do CD Em
família, tocada muitas vezes na forma de solo de violão
nas apresentações ao vivo4), ou nas versões que elabora
de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso (faixa 1 do LP Duas
vozes) e de Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos (faixa 9 do CD Dança das cabeças).
Um outro sinal que parece comprovar essa afirmação é
a constituição de seus violões. Dentre vários que possui,
alguns dos que mais usa possuem mais do que as seis
cordas do violão padrão. Um deles é um violão com dez
cordas de nylon e o outro possui quatorze cordas de aço,
mas não na disposição dos violões de doze cordas que
encontramos no mercado. Esses últimos possuem seis
cordas duplas que são estimuladas par a par, já que o
par funciona como se fosse uma única corda (a afinação
é feita em uníssono ou oitavada, a cada par, seguindo
geralmente a afinação tradicional EADGBE). Então, retomando, o violão de dez cordas de Egberto funciona
como um violão tradicional, de seis cordas, onde foram
acrescentadas outras quatro acima da corda mais grave, primeira e terceira mais finas e a segunda e quarta
mais graves. A afinação desse violão obedece a afinação
tradicional, variando apenas as afinações das cordas
acrescentadas (no caso da peça Em família a afinação
é FAAG-EADGBE). O violão de quatorze cordas de aço
obedece o mesmo padrão do anterior, com a diferença
de que as quatro primeiras cordas (as mais agudas) são
duplas, enquanto as demais permanecem únicas. O sistema de afinação desse violão é igual ao anterior e varia
conforme a peça a ser tocada.
Nesse quesito em especial, Egberto demonstra uma
relação mais individualizada com seu instrumento, na
medida em que o altera de forma mais contundente.
Baden altera mais frequentemente a afinação da sexta
corda (tradicionalmente afinada na nota mi) e menos
frequentemente a afinação da terceira corda (tradicio176
nalmente afinada na nota sol). Um outro indício importante da relação especial que Egberto mantém com o
violão pode ser constatado no fato de que ele raramente
toca músicas que não as suas próprias no instrumento.
Ainda que alguns exemplos contrários possam ser garimpados na sua discografia, é significativo como esta
preferência por suas próprias criações se mantém desde
os primeiros discos por ele gravados. O mais curioso é
constatar que esta mesma atitude não acontece quando
Egberto se dedica ao piano. São bem conhecidas suas
interpretações de vários outros autores ao piano. Uma
interpretação possível para esta atitude aparentemente
reservada, dedicada ao violão, origina do fato de que
pode haver uma diferença significativa no tipo de vínculo que ele estabeleceu com o violão em comparação
com o piano. No programa Ensaio, produzido pela TV
Cultura em 1992, Egberto esclarece que seu violão possui esse número avantajado de cordas para que ele, “um
pianista, possa tocar violão. Só isso”5. Ou seja, Egberto
se considera um pianista que toca violão e isto o obriga a tomar certas providências, por exemplo o aumento
do número de cordas, para que ele possa se expressar
“como um pianista” ao violão.
Essa declaração do próprio Egberto oferece uma pista importante sobre sua corporalidade ao violão. Ao
contrário de Baden, que era violonista, Egberto utiliza
o violão (e alguns outros instrumentos como flautas,
percussão, violoncelo) como fonte de expressão, quase
como um complemento necessário à concretização de
suas ideias musicais. A meu ver isto indica uma consciência bastante nítida das limitações que Egberto percebe em si mesmo como violonista. Esta afirmação pode
parecer equivocada à primeira vista, mas se refletirmos
um pouco mais sobre o assunto podemos constatar que
(1) isto não diminui em nada a qualidade musical de
Egberto ao violão, ao contrário, esclarece a sua inteligência em saber aproveitar de modo artístico suas
limitações no instrumento (digo limitação porque os
recursos que ele se utiliza no violão não são típicos de
um violonista tradicional, como a independência total
das mãos na produção de sons, técnica apenas recentemente desenvolvida principalmente pelos guitarristas,
e aqueles recursos dos violonistas tradicionais não são
explorados por Egberto); e (2) esta atitude deixa manifesta aquilo que chamei de corporalidade musical, que
é a elaboração discursiva feita a partir dos recursos adquiridos, das possibilidades articulares tornadas possibilidades expressivas, e da consciência dos limites dentro
de um plano de ação expressiva que, embora Egberto
não enfoque o instrumento (já que ele não se considera
violonista), direciona toda a energia expressiva para a
construção de peças que extravasam vigor e refletem
uma relação tranquila e consciente com um instrumento secundário (entretanto bastante usado, e com propriedade, pelo músico).
A corporalidade musical é a chave para a compreensão
desse uso, podemos dizer engenhoso e astuto, dos recursos
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
mecânicos, possibilidades articulares, agilidade digital etc.,
como componentes fundamentais da realização musical.
A música não parte apenas de uma ideia. Ela está mergulhada nas possibilidades de realização, a ponto da ideia
inicial poder ser totalmente modificada (ou até abandonada) se sua realização esbarra numa dificuldade insuperável.
O próprio Egberto afirma, na mesma entrevista já citada,
que as inversões dos acordes com que está acostumado
no piano, ao serem transferidas para o violão demandam
“muito malabarismo” que ele não apreciaria fazer. Por isso
a inclusão de mais algumas cordas em seu violão. Nesse
sentido, as músicas poderiam ser pensadas como fruto de
uma tentativa de equilíbrio entre possibilidades, desejos e
imposições do instrumento e a vontade de conduzi-lo para
a concretização de um discurso significativo e expressivo.
Novamente aparecem os três pontos do triângulo dinâmico de forças que atuam sobre as realizações musicais:
as exigências corporais contidas nas linguagens musicais,
nos instrumentos e as possibilidades e características dos
músicos. Digo triângulo dinâmico porque ele se equilibra a
cada vez de uma forma diferente, para cada músico específico, para cada peça realizada e para cada versão de cada
peça. E é justamente disso que iremos falar a seguir.
5 - Oralidade e escrita
Como um último ponto abordado em relação à corporalidade tomaremos a relação intrínseca que ela mantém
com o que alguns pensadores definem como oralidade
e com sua contrapartida, a escrita. A oralidade comumente é colocada em oposição à escrita. A partir, então,
dessa falsa oposição, várias associações equivocadas
vão sendo construídas entre, por exemplo, oralidade e
analfabetismo, ou oralidade e primitivismo. Como nos
alerta Paul Zumthor:
É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os
traços que contrastam com a escritura. Oralidade não significa
analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de
qualquer função social positiva, é percebido como uma lacuna.
Como é impossível conceber realmente, intimamente, o que pode
ser uma sociedade de pura oralidade (supondo-se que tenha existido algum dia!) [...] Daí ser frequente, nos autores que estudam as
formas orais da poesia, a ideia subjacente – mas gratuita – de que
elas veiculam estereótipos “primitivos” (ZUMTHOR, 1997, p.27).
Não é minha intenção aprofundar essa discussão neste
espaço, isto exigiria um artigo específico, mas apenas
lembrar rapidamente os perigos de opor a oralidade à escritura. Tomando as palavras de Michel de Certeau:
Referir-se à escritura e à oralidade, quero precisar logo de saída,
não postula dois termos opostos, cuja contrariedade poderia ser
superada por um terceiro, cuja hierarquização se pudesse inverter. [...] A oralidade se insinua sobretudo como um desses fios de
que se faz, na trama – interminável tapeçaria – de uma economia escriturística (CERTEAU, 1994, p.233, a ordem das frases foi
invertida por mim).
No que concerne aos nossos estudos da música popular,
a oralidade é algo que se estabelece em relação à escrita musical, ou seja, existe como um pensamento musical
híbrido, mas que não é homogêneo, no sentido de perfeitamente misturado em doses proporcionais. É manchado,
esfumaçado, borrado, visto que muito do que se desenvolveu em matéria de concepções musicais favorecidas
pela possibilidade da escrita musical ou já estava contaminado pelas práticas orais, ou acabou por contaminálas. Isto ocorrendo em graus diferenciados de dosagem
para cada linguagem ou gênero musical específico (em
alguns casos, para cada músico ou peça musical). O fato
de um gênero sobreviver através de sua transmissão oral
não implica necessariamente que ele não incorpore procedimentos desenvolvidos graças à escrita. E, por sua
vez, o fato de um gênero adotar a escrita como forma
de propagação e conservação não implica isolamento
total de procedimentos de caráter oral. Em todo caso,
talvez evitemos o equívoco de estagnar a oralidade no
analfabetismo musical (que, no entanto, existe em parte
considerável dos músicos populares) ou no primitivismo
(considerando a música conservada e desenvolvida sem
registro escriturístico menor do que a música escrita).
Baden e Egberto estudaram em escolas tradicionais de
música e, portanto, ambos dominam a escrita, a leitura
e a teoria musical. Pretendo dar apenas um exemplo de
procedimento que, se envolve concepções escriturísticas,
também envolve vestígios de oralidade. E isto será feito a
partir de algumas versões gravadas de uma mesma peça.
No caso de Baden, utilizaremos a já citada Berimbau, e no
caso de Egberto, Salvador.
Refiro-me às versões de Berimbau gravadas nos CDs (1)
Ao vivo no Teatro Santa Rosa – faixa 5; (2) Baden Powell à vontade – faixa 2; (3) Baden, Márcia, Originais
do Samba Show/Recital – faixa 5; (4) Os afro-sambas
de Baden e Vinicius – faixa 9; (5) Baden live à Bruxelles
– faixa 11. As versões de Salvador estão nos seguintes
CDs e Lp (1) 1969 – faixa 1; (2) Violões – faixa 9; (3)
Solo – faixa 2, lado B.
Sem querer estender demais as análises, é possível perceber numa primeira audição, mesmo que não aprofundada, as diferenças que cada uma dessas versões
sustenta em relação às outras. A primeira versão de
Berimbau, já comentada anteriormente, se destaca pela
velocidade e pela quantidade de intervenções de seções
de improviso, estabelecendo um clima de urgência e, ao
mesmo tempo, de liberdade na costura dos temas principais da peça. A segunda versão, mais cadenciada (andamento médio) e tocada apenas com violão e pandeiro,
parece oferecer um desenho mais nítido de suas ideias
principais (introdução, melodia principal e refrão, que
nesta versão é cantado). Baden não deixa de aproveitar
a oportunidade para improvisar, entretanto, diferente da
primeira versão, seus improvisos são executados sobre
os temas principais, obedecendo de modo mais contido, o ciclo regular das quadraturas de cada seção. Na
terceira versão, tocada ao vivo como a primeira, inicia
também com um andamento mais cadenciado, próximo da segunda versão. A introdução é executada com
o violão e um berimbau e lá já se ouve uma improvisação rítmica sobre a célula principal de berimbau. Uma
ladainha tradicional é iniciada e terminada enquanto
177
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
o improviso rítmico continua como fundo (ou acompanhamento). Começa um jogo de pergunta e resposta
entre melodias improvisadas ao violão e frases entoadas
pelo cantor. Logo depois desse momento o andamento
acelera, começam a tocar os atabaques, mas os improvisos do violão continuam, desta vez alternando frases
rítmicas com frases melódicas. Nesta versão a melodia
principal só inicia depois de mais de cinco minutos de
improvisação, é repetida e logo seguida por nova seção
de improvisação melódica. Não aparecem aqui nem o
tema secundário e nem o refrão, substituídos por improvisações melódicas e rítmicas. Na quarta versão até
mesmo o nome da peça foi alterado para Variações sobre Berimbau. Inicia-se a peça com um toque de berimbau, logo seguido pelo violão. O andamento é também
cadenciado (de médio para lento). Inicia a percussão e o
violão faz um pequeno improviso que se transforma em
acompanhamento para uma ladainha tradicional, cantada desta vez pelo próprio Baden. O andamento é levemente acelerado, outros cantos tradicionais de roda de
capoeira são cantados. Nova aceleração do andamento
é feita, um improviso do violão marca levemente o ritmo
forte da percussão que permanece presente e constante
durante toda a peça. Aqui também as melodias principal, secundária e do refrão não são tocadas, sustentando a peça apenas os improvisos e referências aos cantos tradicionais das rodas de capoeira. A última versão,
também ao vivo, tocada apenas com o violão, aparece
num andamento um pouco mais lento. Uma introdução
forte, com acordes recheados de cordas soltas, é seguido
da mesma ladainha de capoeira (presente também nas
versões 3 e 4). O andamento acelera e um novo canto
é cantado, logo seguido pelo canto próprio da música,
com letra de Vinícius. Por essa razão as melodias todas
são apresentadas na forma cantada, acompanhada com
variações rítmicas e de registro do violão. Um improviso aparece depois de cantadas a estrofe, o refrão e a
repetição da estrofe. A partir daí o violão apresenta o
tema principal na forma instrumental, seguido de uma
improvisação que adia o refrão. Este último aparece novamente cantado e depois disso um retorno ao tema
principal instrumental termina a peça.
A primeira versão de Salvador, a primeira gravada por
Egberto no seu primeiro disco, aparece num andamento
médio, acompanhado apenas pela percussão, recurso bem
próximo de algumas gravações do próprio Baden, que
interpretou várias peças apenas com violão e percussão.
Aparecem, depois de uma introdução rítmica, os temas
principal, secundário e novamente o principal, seguidos por
uma mudança do instrumento percussivo acompanhante
(de bateria para atabaque), anunciando a seção de improvisação. Volta a seção do tema principal sem, entretanto
que ele apareça. Segue-se o tema secundário, novamente
o tema principal, dessa vez com sua respectiva melodia
presente, e uma coda parecida com a introdução. A segunda versão, tocada ao vivo, inicia com uma longa seção de
introdução (mais de dois minutos) onde o primeiro tema
é citado, seguido por um improviso. Segue a entrada do
178
tema principal num andamento vertiginoso (quase não se
escuta a melodia tal sua velocidade). O tema secundário é
apresentado no mesmo fluxo vertiginoso. Retorna o tema
principal seguido de uma seção de improviso. Retorna
novamente o tema principal seguido por nova seção de
improviso que rompe com a urgência rítmica dos temas
principais. Volta novamente o tema principal seguido do
secundário e da repetição do principal. Há um improviso
final onde a música Berimbau de Baden é citada e uma
coda final. A terceira versão contrasta com as anteriores
principalmente no andamento, bastante mais lento do que
as outras duas. O clima que se estabelece nesta versão é
contrastante com as outras porque transforma a urgência
presente nas primeiras versões em melancolia profunda.
Nesta versão não aparece o tema secundário, apenas o
principal entremeado de seções de improvisação. No final
Egberto chega a improvisar um canto, que anuncia o fim
da peça, seguido por uma pequena coda.
Ainda que estas descrições sucintas das várias versões de
cada peça possam ter sido enfadonhas para o leitor, elas
foram necessárias para tentar mostrar o nível de liberdade
de execução de que partilham esses dois músicos. Mesmo
sendo as duas peças bem conhecidas do público que acompanha a carreira e as apresentações dos dois violonistas,
eles frequentemente tomaram a liberdade de alterá-las a
ponto de desconstrui-las quase que totalmente. No caso
de Baden acontece uma versão em que nenhum dos temas
principais da peça são tocados (talvez por isso a mudança do nome de Berimbau para Variações sobre Berimbau
que atribuiu a essa versão), e uma outra onde apenas o
tema principal é citado. Em Egberto a versão mais lenta (a
terceira) perverte não apenas a sequência dos temas apresentados nas outras versões, mas também o clima total da
peça, transformando-a praticamente numa outra. Esta liberdade, que ambos demonstraram em várias outras oportunidades, executando outras peças, é algo que remete à
liberdade do orador, do contador de histórias, do narrador.
Os dois músicos conhecem profundamente o discurso musical que irão pronunciar, sabem de sua organização pois,
não por coincidência, são os compositores dessas peças.
Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso
de Egberto) inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das
audiências, entretanto, concedem a elas a possibilidade
de alterações radicais, a depender das situações especiais
onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou
publicado (no sentido de tornado público).
Essa situação de alterações constantes, que no entanto
não descaracterizam as músicas, faz pensar numa relação
com as peças que leva em conta o ato de sua pronúncia.
E esse “levar em conta a pronúncia” inclui possibilidades
de execução que podem estar fora do planejamento inicial que os dois fizeram para as execuções das músicas.
Esse traço é que remete a um trato que eu considero de
caráter oral das realizações. Ainda que a complexidade
dessas peças remeta à um tipo de concepção que condiz com uma visão teórico-escriturística da música. Que
fique claro que com isto não estou negando a existência
SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
de vestígios dessa oralidade naqueles músicos que tocam
lendo partitura, ou executam uma organização previamente determinada com maior rigor (que pode ou não
estar fixada numa partitura, entretanto soa com um grau
maior de organização e exige maior rigidez na execução).
Mesmo nesses casos são várias, embora mais sutis, as escolhas e alterações que acabam por serem feitas. No caso
de Baden e Egberto essas alterações soam mais claras,
suas escolhas são mais perceptíveis na comparação das
várias versões, as mudanças são mais abruptas e mais radicais, conforme a versão. Isto não deixa de ser, além de
um indício dessa presença híbrida de oralidade e escritura
(visto que as duas peças citadas se originam de um trabalho musical sofisticado, proporcionado pela tradição da
teoria escriturística musical, realizado por dois músicos
escolados), mais um sinal de carnavalização, no sentido
de que o texto é conhecido, os papéis estão distribuídos e
determinados, mas as performances são sempre novas, tal
qual o contador de histórias que conta sempre a mesma
história e ela sai sempre diferente.
Esta é uma característica da performance que, segundo Paul Zumthor, “implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro” (ZUMTHOR, 1997, p.203). Para ele, “o
intérprete, na performance, exibindo seu corpo e seu
cenário, não está apelando somente à visualidade. Ele
se oferece a um contato” (ZUMTHOR, 1997, p.204). E
esse contato com o público certamente modifica aquele plano inicial embutido no discurso a ser pronunciado, o que torna a audiência parte integrante desse
discurso no ato de sua publicação. Este envolvimento
parece estar presente, ou melhor, consciente, nos nossos dois músicos a partir dos indícios que eles nos fornecem das atitudes que tomam quanto à realização de
suas performances musicais. A corporalidade musical,
portanto, se soma a tentativa que outros conceitos e
noções vêm fazendo no sentido de religar opostos, tais
como oralidade e escrita, indivíduo e sociedade, músico e corpo, gênero de discurso e estilo pessoal, ação e
pensamento, música e significação.
6 - Algumas considerações
São ainda muitas as arestas a serem ajustadas, no que
diz respeito à ideia de corporalidade musical. Entretanto, ela já aponta um caminho na direção de se levar em
conta a inseparabilidade entre ideia ou ideal musical e
as possibilidades concretas corporais de realizá-las. Assim podemos observar com mais clareza o elo que une
as possibilidades corporais com as necessidades expressivas, ou seja, a busca da coincidência entre o que desejo dizer e o que consigo dizer, empreendida pelos músicos analisados. Mas outras situações de performance
musical precisariam ser investigadas com esse mesmo
instrumento analítico (o que já estou realizando na minha atual pesquisa sobre a corporalidade na canção popular). Entretanto, acredito que algo aponte para uma
percepção, embora ainda incipiente, da performance
musical como uma totalidade complexa e plural. Complexa no sentido da instabilidade da realização musical,
e plural porque cada nova versão, ou audição, de uma
mesma peça coloca em funcionamento sistemas de sentidos diversos, visto ser a performance e sua recepção
diretamente influenciadas pelo contexto real (tempo e
espaço) em que acontecem. O que implica em construtos conceituais e teóricos capazes de conduzir um processo de explicitação dessa complexidade e pluralidade
em termos de possibilidades de análise efetivas. Creio,
portanto, que a corporalidade musical pode ser considerada mais um passo na direção do estabelecimento de
um pensamento complexo musical.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 5ª ed. São Paulo:
Hucitec/Annablume, 2002.
BRETON, Davi Le. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2006.
______. As paixões ordinárias : antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
DREYFUS, Dominique. O violão vadio de Baden Powell. São Paulo: Ed. 34, 1999.
GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. São Paulo: Summus, 1988.
KAPLAN, José Alberto. Teoria da aprendizagem pianística. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Movimento, 1987.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PINTO, Henrique. Conceito de relaxamento. Violão Intercâmbio, São Paulo, nº45, ano VIII, jan/fev 2001.
SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade musical: as marcas do corpo na música, no músico e no instrumento. 2006. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas.
WILLEMS, Edger. Las bases psicológicas de la educación musical. Buenos Aires: Editora Universitaria de Buenos Aires, 1969.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. Performance, recepção e lectura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.
Referências discográficas
BELLINATI, Paulo e SALMASO, Mônica. Afro-sambas: Baden Powell e Vinícius de Moraes. São Paulo: Pau Brasil Music,
p1995. 1 CD.
GISMONTI, Egberto et. al. Violões. São Paulo: Projeto Memória Brasileira, p1992. 1 CD.
GISMONTI, Egberto e VASCONCELOS, Naná. Dança das cabeças. Muchen, GE: ECM, p1977. 1 disco analógico.
______. Duas vozes. Muchen, GE: ECM, p1985. 1 CD.
GISMONTI, Egberto. 1969. Rio de Janeiro: Universal Music, p1969. 1 CD.
______. Em família. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, p1981. 1 CD.
______. Solo. Muchen, GE: ECM, p1979. 1 disco analógico.
POWELL, Baden. Baden live à Bruxelles. São Paulo: Lua Music, p2005. 1 CD.
______. Baden Powell à vontade Rio de Janeiro: Universal Music, p1967. 1 CD.
______. Baden Powell ao vivo no Teatro Santa Rosa. Rio de Janeiro: Universal Music, p1966. 1 CD.
______. Baden Powell. Rio de Janeiro: Movie Play Music do Brasil, p2002. 1 CD.
______. Baden, Márcia, Originais do Samba Show/Recital. Rio de Janeiro: Universal Music, p1968. 1 CD.
______. Os afro-sambas de Baden e Vinícius. Rio de Janeiro: Universal Music, p.1966. 1 CD.
______. Os afro-sambas. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, p.1991. 1 CD.
Referências videográficas
POWELL, Baden. Velho amigo: o universo musical de Baden Powell. Rio de Janeiro: Universal Music, c2003. 1 DVD.
GISMONTI, Egberto. Ensaio. São Paulo: Radio e Televisão Cultura, c1992. Fragmento citado disponível em http://www.
youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E acessado em 18/12/2009.
Notas
1 Isto porque o próprio Baden alterou de várias maneiras, em outras interpretações da mesma peça, a ordem de suas partes principais, chegando ao
ponto de suprimir totalmente o refrão, como na versão de Berimbau no CD Baden, Márcia, Originais do Samba show/recital (faixa 5).
2 No mesmo CD Ao vivo no Teatro Santa Rosa podemos destacar outros exemplos, como no Prelúdio em Ré menor de Bach (faixa 4) e Consolação
(faixa 6) em que os andamento são exageradamente acelerados.
3 Lembremos que o movimento “ruidístico” da tropicália iniciaria na mesma época em que Egberto iniciava sua carreira.
4 Fragmento disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>. Acesso em: 20 dez. 2009.
5 É possível ver essa declaração no trecho do vídeo já citado anteriormente. <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>
Jorge Luiz Schroeder é Bacharel em Composição (1987), Mestre em Educação (2000) e Doutor em Educação (2006) pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente atua como profissional de Pesquisa do Instituto de Artes da
Unicamp. Coordena o grupo de pesquisa Música, Linguagem e Cultura (Musilinc) (www.cnpq.br). Atua como professor do
Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes (Unicamp). Suas publicações principais são: Música e conhecimento. Revista Digital Art&, v.09, p.09, 2008. Música e Ciências Humanas. Pro-Posições (Unicamp), Campinas, v.15, n.1,
p.209-216, 2004. Junto com Sílvia Nassif Schroeder; A construção do conhecimento em arte. In BITTENCOURT, Agueda
(org). Estudo, pensamento e criação. Campinas: Gráfica da Faculdade de Educação, 2005, v.1, p.75-82; O dentro e o fora
da música. Ensinarte: revista das artes em contexto educativo, Braga-Portugal, n.3, p.02-14, 2004.
180
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
O estudo cultural da música popular
brasileira: dois problemas e uma
contribuição
Álvaro Neder (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/IFRJ, RJ)
[email protected]
Resumo: No estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil, é crucial discutir a definição de
“música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise. Ambas as questões são tratadas aqui
por meio de uma articulação crítica que envolve estruturas musicais, sociedade e cultura. Propõe-se, portanto, uma
contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos. A partir
de uma discussão das principais classes de definições de música popular empregadas usualmente, defende-se uma concepção dinâmica e relacional de música popular, inserida em sociedades contemporâneas complexas e contraditórias.
Metodologicamente, discutem-se diferentes abordagens que vêm se propondo a estudar culturalmente as contribuições
singulares da música popular, irredutíveis aos métodos analíticos desenvolvidos para as músicas erudita e tradicional. O
ensaio conclui com a defesa de uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais,
para uma adequada investigação da música popular em sua especificidade.
Palavras-chave: música popular; estudos culturais; metodologia; definição; sociedade e cultura.
The cultural study of Brazilian popular music: two problems and a contribution
Abstract: At the current state of popular music studies in Brazil, it is crucial to discuss the definition of “popular
music”, and the theoretical approaches employed to ground its analysis. Both issues are examined here through a critical articulation involving musical structures, society and culture. Thus, what I propose is a theoretical contribution to
Brazilian popular music studies, not an analysis of the content of such studies. Starting with a discussion of the principal classes of definitions of popular music usually employed, a defense is made of a dynamic, relational conception
of popular music as currently practiced in complex, contemporary, contradictory societies. Methodologically, I discuss
different approaches for the cultural study of the singular contributions of popular music, which are irreducible to the
analytical methods developed for art and traditional music. The essay concludes with a defense of a musicology renovated by the debates held in cultural studies circles, for an adequate investigation of popular music in its specificity.
Key Words: popular music; cultural studies; methodology; definition; culture and society.
Introdução
Os estudos acadêmicos e institucionais de música popular
(a canção popular aí incluída com destaque), considerada
em sua especificidade e complexidade, são recentes no
mundo inteiro. O ano de 1981 poderia ser considerado um
marco, em razão da ocorrência da primeira Conferência
Internacional sobre Pesquisa em Música Popular, na Universidade de Amsterdã (JOSEPHS, 1982). No Brasil, a canção popular, em seus aspectos culturais, passou a chamar
a atenção de acadêmicos de diversos setores que não a
música a partir dos anos 1960, com o advento da chamada MPB (ver, por exemplo, GALVÃO, 1968; SANTIAGO,
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
1977; SCHWARZ, 1970). No terreno da musicologia, no
entanto, fora iniciativas isoladas, não houve um interesse
definido pelo desenvolvimento de ferramentas metodológicas que dessem conta da música popular enquanto tal,
e que objetivassem relacionar suas estruturas musicais a
questões sociais, históricas ou culturais.
Assim, no estágio em que se encontram os estudos de
música popular no Brasil, torna-se crucial discutir a definição de “música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise. Propõe-se, portanto,
Recebido em: 06/12/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
uma contribuição teórica aos estudos de música popular
brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos.
Como em qualquer disciplina ou campo de conhecimentos, os dois problemas – definição e teoria – estão interligados. Uma determinada concepção do objeto organiza
um feixe de ferramentas teóricas especificamente apropriadas para dar conta das características consideradas
por esta concepção, ignorando outras que não se incluam
aí. Os métodos analíticos – que não serão objeto deste
ensaio – são, por sua vez, decorrentes das escolhas definicionais e teóricas, sendo igualmente apropriados para
certas características e inadequados para outras. Fica,
assim, confirmada a necessidade de debater os dois problemas mencionados antes de se começar a empreender
a análise ou mesmo optar pelo método a ser empregado.
Neste sentido, por exemplo, entendendo-se “música popular” como aquela que vem “do povo” (categoria sempre
inventada e frequentemente idealizada), critérios como
“autenticidade” e “identidade nacional” ou “regional” são
priorizados, e o que não se encaixa aí é desprezado. Ou
seja, desconsidera-se a maior parte da produção das classes
populares contemporâneas, e que desenvolve experiências
sônicas não passíveis de apreensão segundo métodos ideados para músicas tradicionais. Além disso, essas músicas
são especialmente importantes por expressar suas condições
objetivas de existência ou o mundo em que desejariam viver.
Se, no entanto, entende-se que “música popular” – ou, pelo
menos, a “boa música popular”, ou a única música popular
que mereceria ser estudada – é uma elaboração erudita
de materiais “populares”, deixa-se de lado o que pareceria
ser “primitivo” ou “mal feito” segundo estes critérios eruditos – e vimos na frase anterior o que é desconsiderado.
Na medida em que os musicólogos voltados ao repertório
dito erudito entendem por “música popular” de interesse apenas aquelas músicas que apresentam “sofisticada”
organização – segundo os critérios eruditos, derivados de
matrizes europeias –, estes musicólogos tendem a acreditar que os métodos desenvolvidos para a música erudita
são pertinentes para a análise de toda a música popular.
Para referendar esta visão que reprime a especificidade
do popular, invoca-se a noção, frequentemente mencionada, de que “a música popular não é uma área, é um
objeto”. Os problemas decorrentes deste equívoco são
inúmeros: a perda da especificidade da música popular e
de suas contribuições (as experimentações sobre o timbre, a microtonalidade, as inflexões rítmicas mínimas, as
métricas não-europeias, e diferentes modelos de escuta,
por exemplo), a carência de ferramentas analíticas para
lidar com esta especificidade, a aplicação forçada de parâmetros estéticos da música de concerto de origem europeia ao popular, e o recalcamento e desvalorização de
um número enorme de gêneros, músicas e pessoas que
resistem a este leito procustiano.
Portanto, na situação brasileira atual, é sensível a necessidade de estabelecer um entendimento sólido com rela182
ção a este duplo problema definicional-teórico. A falta
deste entendimento prejudica a adequada compreensão
do objeto e estimula o diletantismo, consequentemente
impedindo o desenvolvimento e consolidação dos estudos
de música popular como campo legítimo e autônomo de
investigação, que necessita dedicação especial, especialização e formação específicas.
Em suma, o termo “música popular” é vago o bastante
para ser definido de maneira bastante discrepante, dependendo de quem o emprega. Isto tem levado pesquisadores a abandoná-lo quase por completo, adotando
denominações individuais que terminam por aumentar a
confusão, fragmentar ainda mais o campo e desunir os
especialistas nesta área. Respondendo a este problema,
a partir de uma compilação e discussão das principais
classes de definições de música popular empregadas usualmente, argumenta-se aqui que o termo música popular
é contraditório justamente por evidenciar as contradições
sociais a que está exposta a própria música popular. Seria impossível encontrar um termo livre de tais contradições, uma vez que tanto música como sociedade são
atravessadas por elas. Por conseguinte, muito embora o
termo “música popular” não carregue nenhum significado
essencial que obrigue seu uso, é uma denominação útil
justamente por designar um terreno de trocas, diálogos e
embates pela significação.
A música popular se constrói e se define pela sua pluralidade, justamente no contato e confronto com outras músicas, por meio de seu uso por sujeitos concretos, por sua
vez mediado por categorias históricas, sociais e culturais.
Em consequência, a compreensão de seu significado deverá, necessariamente, passar pela discussão de tais confrontos, sujeitos e categorias. Como todos estes elementos
estão sempre em movimento, dificilmente o termo “música popular” indicará um conjunto fechado de músicas e
suas características, que seja válido em todo tempo e lugar.
Portanto, não se pode definir música popular por meio das
características idealizadas pelos românticos do século XVIII
– origem rural, tradição oral, autoria coletiva, “espontaneidade”, “autenticidade”, e assim por diante. Também não se
pode fazê-lo atribuindo-se ao popular supostas qualidades inerentes de “resistência”. Nem tampouco por meio de
categorias como “manipulação”, “imposição” ou “colonialismo cultural”. O “popular”, segundo esta concepção, não
é uma coisa, um produto, um artefato, mas um terreno
onde múltiplos vetores de forças se encontram e colidem,
transformando-se continuamente. Segundo Stuart Hall,
[a] cultura popular não é nem, em um sentido “puro”, as tradições
populares de resistência . . . nem são as formas que são impostas
sobre e a elas. É o terreno no qual as transformações são operadas.
(HALL, 1981, p.228)
Assim, a busca da pureza de uma definição rigorosa equivaleria igualmente à purificação da própria música, retirando-a do cenário histórico específico onde ocorrem sua
elaboração e seus confrontos, sempre e a cada vez, o que
resultaria em seu empobrecimento e reificação.
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
O fato de que todos os sentidos são social e historicamente marcados (o que uma pessoa defende ser
popular pode ser contestado por outra pessoa ou outro
tempo) ressalta a constatação de que o uso do termo
“música popular” nunca será desinteressado, portanto
“objetivo”. Este nome será usado de maneira diferente
dependendo da pessoa que o proferiu, em cada momento, em cada local; e seu caráter e características
serão definidos e construídos com referência a seus
outros in absentia, notadamente a música erudita e a
música tradicional. Adota-se aqui, então, uma outra
maneira de compreender a música popular em seu dinamismo: através de suas relações.
Uma definição altamente influente do termo “música popular” como música rural, e que perdura de certo modo
até hoje, foi dada por Mário de Andrade. Estando muito
bem informado sobre as técnicas e a história da música
e da literatura eruditas, Mário interessou-se também, de
maneira especial, pela música tradicional rural. Isto fica
evidenciado na síntese de sua contribuição proposta pelo
etnomusicólogo Gérard Béhague.
Seu ensaio sobre música brasileira (ANDRADE, s.d.) foi o primeiro intento perceptivo de delinear e analisar os vários elementos
sonoro-estruturais da música folclórica brasileira. Sua concepção de música era dinâmica, em oposição às visões prevalentes em sua época. Em seus estudos de música luso-brasileira,
afro-brasileira e, em menor grau, música indígena brasileira, ele
concebia a dinâmica musical como multidirecional. Seus estudos
de danças dramáticas, que ele denominou bailados . . . e “música
de feitiçaria” . . . permanecem sendo os mais estimulantes da
literatura etnomusicológica brasileira porque, com seu estilo de
prosa único, conseguiu combinar questões socioculturais e musicais. Andrade considerou a base etnográfica e a justificativa de
contextos de performance musical, o que o tornou um verdadeiro
etnomusicólogo em conceito, senão em método, propriamente.
(BÉHAGUE, 1993, p.483-484)
Não seria possível fazer, aqui, justiça ao inestimável legado do polígrafo. Busca-se, apenas, indicar um dos mais
poderosos vetores que confluíram para a consolidação de
um dos sentidos preferenciais da ideia de música popular.
Com certeza uma tal concisão, em se tratando de figura
de tão vasta, complexa e multifacetada obra, é problemática – mas, aqui, inescapável.
Para Mário, como foi dito, o termo “música popular” se
referia às músicas das comunidades rurais tradicionais,
e ele o opunha à “música popularesca”, urbana e mediatizada, exatamente aquela que, hoje, é mais geralmente
compreendida como “música popular”. A maneira pela
qual Mário entendia a “música popular” (tradicional) estava imbricada em seu projeto político nacional e internacional. Ela teria responsabilidades no processo que, em
sua visão, levaria o país do atraso à equiparação com os
países “desenvolvidos”.
Esta preocupação com o campo folclórico – que detinha,
em sua visão, a identidade nacional – foi mobilizada por
força do ideal utópico de Mário: a condução progressiva
do “povo brasileiro” de um estado de atraso tecnológico
até a superação deste, e que seria presidida pela música
erudita (de origem europeia). Esta visão é claramente expressa no famoso Ensaio.
Uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição
erudita que faça da música popular, música artistica, isto é: imediatamente desinteressada. (ANDRADE, s.d., p.16)
Assim, a música folclórica é guindada à condição de detentora da essência nacional. No outro pólo da dicotomia, a música “popularesca” (como ele se referia à música
popular-comercial, como vimos), eivada de internacionalismos, não conduziria à efetivação de sua utopia, seu
projeto teleológico de superação do atraso tecnológico
brasileiro rumo ao progresso, mas sem perda da “essência”.
Só o que poderia realizar esta condução adequadamente, da “música interessada” dos festejos, rituais religiosos
e cantos de trabalho para a “música desinteressada” do
puro deleite estético seria a música erudita.
Temos assim, em Mário, uma clara hierarquia: a “música popular” (tradicional) detém o “caráter nacional”, mas
é, em si, insuficiente; é preciso conclamar as normas do
mundo desenvolvido – a música erudita – para poder
fazer dela música “artística”. Já a música “popularesca”
seria de escasso interesse, se algum. Vemos aí uma definição, como foi dito, altamente influente e duradoura
de música “popularesca”, que é – continua sendo – um
real obstáculo para o desenvolvimento da musicologia da
música popular no Brasil. As críticas, ubíquas ainda hoje,
contra as supostas “dominação cultural” estadunidense e
“manipulação” da indústria cultural são, em grande parte,
devedoras daquela definição (sendo que a noção de “manipulação” recebe, também, reforço considerável por parte do pensamento adorniano). Ambas as críticas são, já há
vários anos, problematizadas pelos popular music studies
por meio de aprofundadas reflexões teóricas e empíricas
(algumas das quais a ser mencionadas no decorrer deste
ensaio), razão pela qual tais discussões não podem prescindir deste aporte.
Como foi dito, a concisão inescapável desta referência a
Mário impede que se investigue a complexidade de seu
pensamento com relação à música popular. Pode-se, contudo, indicar esta complexidade por meio de alguns fragmentos, como o seguinte, em que Mário declara que se
podem encontrar núcleos de música popular mesmo nas
maiores cidades do país.
Nas regiões mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo sertão possui água encanada, esgotos, luz elétrica e rádio. Mas por
outro lado, nas maiores cidades do país, no Rio de Janeiro, no
Recife, em Belém, apesar de todo o progresso, internacionalismo
e cultura, encontram-se núcleos legítimos de música popular em
que a influência deletéria do urbanismo não penetra. A mais importante das razões dêsse fenômeno está na interpenetração do
rural e do urbano. . . . [Quase] todas as cidades brasileiras estão
em contato direto e imediato com a zona rural. . . . Por tudo isso,
não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações
há, e muito características, de música popular brasileira, que
são especificamente urbanas, como o Chôro e a Modinha. Será
preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que
é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o
183
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito
à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais.
(ANDRADE, s.d., p.166-167)
baseados em departamentos de História, Literatura ou Política), e
virtualmente não haja revistas científicas brasileiras especializadas em estudos de música popular. (STROUD, 2008, p.186)
Esta mesma linha é seguida em Música, Doce Música,
quando Mário explica que
Corroborando o que diz Stroud, em outros campos acadêmicos que não o da música, a música popular brasileira goza de apreciável prestígio, não sendo incomum que
destacados profissionais desses outros campos tenham
produzido importantes contribuições para a área em
questão. Podem-se citar historiadores (CONTIER,1985,
1986, 1991 e 1998; NAPOLITANO, 1999, 2001, 2003), críticos literários (BRITO, 1972; CAMPOS, 1993; FAVARETTO,
1979; GALVÃO, 1968; MATOS, 1982; PERRONE, 1988;
SANT’ANNA, 1986; SANTIAGO, 1977, 2000; SCHWARZ,
1970; VASCONCELLOS, 1977; WISNIK, s.d., 1982, 2004),
sociólogos (NAVES, 1998); linguistas (TATIT, 1986, 1994,
1996, 1997, 2001); antropólogos (VIANNA, 1988, 1995);
e semioticistas (SANTAELLA, 1984), entre outros.
[o] verdadeiro samba que desce dos morros cariocas, como o verdadeiro maracatu que ainda se conserva em certas nações do Recife, esses, mesmo quando não sejam propriamente lindíssimos,
guardam sempre, a meu ver, um valor folclórico incontestável.
Mesmo quando não sejam tradicionais e apesar de serem urbanos.
(ANDRADE, 1976, p.280)
No Macunaíma, Mário faz seu herói procurar, sem preconceitos, o terreiro de Tia Ciata – em cuja casa teria
nascido, segundo consta, aquele que é considerado o
primeiro samba urbano carioca gravado, Pelo telefone.
Sem ser, de fato, merecedor desse pioneirismo, Pelo telefone foi, entretanto, fundamental do ponto de vista
das transformações que operou no mercado (CABRAL,
1996, p.32-33). Além disso, os frequentadores assíduos da casa de Tia Ciata incluíam virtualmente todos os
sambistas cariocas dessa época comprometidos com o
mercado de massas. No Macunaíma há ainda referência a Pixinguinha, artista da maior importância para o
mercado discográfico e a nascente cultura de massas no
Brasil (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 1970). Sabe-se
também que Pixinguinha foi parceiro, colaborador, colega e/ou amigo de boa parte dos sambistas cariocas
daquele tempo, também intimamente envolvidos com
os mass media, como Donga, João da Baiana e muitos
outros. Finalmente, há o trecho final de “Macumba”, em
Macunaíma, que reunia no terreiro de Tia Ciata “advogados taifeiros curandeiros poetas o herói, gatunos,
portugas, senadores” (ANDRADE, 1978, p.56) – ou seja,
uma alegoria da sociedade brasileira como um todo.
Aqui o narrador faz uma defesa do samba urbano.
E para acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes
se alegraram com muitas pândegas liberdosas. (ANDRADE, 1978,
p.63, grifo meu)
Apesar dessas e de outras evidências, no entanto, nem
sempre a dialética do pensamento andradiano foi considerada por seus seguidores, resultando em uma visão da
“música popularesca”, no mínimo, pouco favorável.
Esta parece ser, talvez, uma das importantes razões para
o desprestígio da música popular (tal como a entendemos
hoje, com todas as suas contradições – não apenas a música “sofisticada” como a de um Tom Jobim, mas também
a música “brega” como a de um Lindomar Castilho, além
de muitas outras) no espaço institucional acadêmico brasileiro da música. Esta preocupação é explicitada pelo
musicólogo Sean Stroud, indicando, no estranhamento
de seu olhar estrangeiro, a visível contradição entre a sociedade e a academia neste país.
. . . [É] realmente paradoxal que, em uma nação que parece tanto
valorizar a música popular, não haja departamentos dedicados a
estudos de música popular em universidades brasileiras (os poucos
acadêmicos brasileiros que trabalham no campo estão, em geral,
184
Além disso, o trabalho desses pesquisadores tem a virtude de articular a música a contextos sociais, culturais
e históricos, produzindo interessantes comentários sobre diversos aspectos da sociedade e cultura brasileiras obtidos ao se fazer falar a música. Ao contrário, as
discussões sobre música popular no âmbito dos cursos
universitários de música estão voltadas, prioritariamente, à técnica musical, e nisto parecem não se diferenciar
do que ocorre no restante do mundo ocidental1. Nestes
cursos busca-se, preferencialmente, analisar a música
popular com vistas ao domínio técnico dos recursos,
sejam de execução vocal ou instrumental, sejam de
composição, harmonização, improvisação ou arranjo. É
incipiente ainda – com exceções dignas de menção (ver,
por exemplo, ARAÚJO, 1987, 1992, 1999, 2000; CARVALHO, 1991) – a produção musicológica que visa articular
elementos propriamente musicais a questões culturais e
sociais da música popular, preferencialmente de maneira crítica e problematizadora.
Mais uma vez, isso é decorrência de escolhas teóricometodológicas que são, por sua vez, decorrências de
definições: se entendermos música popular como puro
fato musical, deixamos de vê-la como possibilidade de
iluminar aspectos da vida social e cultural mais ampla,
de acordo, por exemplo, com conceitos como o de “fato
social total” e de “jogo absorvente”.2
Sem pretender questionar a validade de análises da música popular voltadas exclusivamente à pedagogia técnica,
nos cursos universitários de música, argumenta-se aqui
em favor de uma adição, um alargamento dos interesses
musicológicos institucionais com relação a essa música.
Esta ampliação da abrangência do enfoque investigativo
musicológico nos cursos universitários brasileiros, necessariamente inter- ou transdisciplinar, procuraria compreender os elementos musicais singulares da música popular
e correlacioná-los a questões culturais, sociais e históricas
mais amplas. A musicologia institucionalizada ocuparia,
assim, um espaço que é seu, um espaço que não foi coberto
consistentemente pelos acadêmicos de outras disciplinas
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
devido à complexidade e especificidade de manipulação
do instrumental musicológico. Além disso, a formação de
quadros competentes nesta área apenas poderia se dar no
âmbito do ensino universitário e de pós-graduação, com
sua demanda de rigor e integração multidisciplinar.
É sempre bom lembrar, também, que o estudo cultural da
música popular é eminentemente crítico, e, embora a contribuição que possa fornecer à compreensão da música, sociedade e cultura brasileiras seja potencialmente inestimável,
dificilmente poderá ser implementado se deixado na dependência do mercado e do leitor leigo. Os títulos não acadêmicos sobre música popular atestam uma preferência por
abordagens meramente descritivas, factuais, jornalísticas,
raramente analíticas e interpretativas. Isso é corroborado
pela etnomusicóloga Suzel Ann Reilly a propósito de uma
das séries editoriais mais ambiciosas dedicadas à música popular, Ouvido Musical/Todos os Cantos (Editora 34).
Se bem que em seu conjunto estas publicações sejam muito detalhadas, a maioria dos autores da série são jornalistas e seus interesses giram mais em torno da documentação meticulosa do que
em redor do debate teórico. (REILLY, 2003, p.20)
2. Definições: delimitando um campo de
estudos
Segundo BIRRER (1983, p.104), há quatro tipos de definições para música popular, e que podem ocorrer de maneira pura ou combinada:
1. Definições normativas: Presume-se, de maneira
apriorística, que a música popular seja uma expressão
cultural inferior;
2. Definições negativas: Música popular é a música que
não é de outro tipo (geralmente música “erudita” ou “folclórica”);
3. Definições sociológicas: Música popular é aquela associada com (produzida por ou para) um grupo ou classe
social particular;
4. Definições tecnológico-econômicas: Música popular é
aquela disseminada por meios de comunicação de massa
e/ou em um mercado massificado.3
Marcadamente ideológicas e essencialistas, nenhuma dessas definições poderia comunicar rigorosamente o sentido
do termo “música popular”. É visível a arbitrariedade da
primeira. Quanto à segunda, embora se possa concordar
que a música popular não seja o mesmo que música erudita ou folclórica, suas margens são fluidas, pois as três
músicas partilham seus elementos entre si. Para MIDDLETON (1997, p.4), há também arbitrariedade na definição
da natureza de cada tipo de música: em geral, parte-se do
princípio de que a música erudita seja exigente, complexa, difícil. Por oposição, a música popular seria entendida
como “acessível”, “simples”, “fácil”. No entanto, muitas
peças comumente compreendidas como eruditas (o coro
“Aleluia” de Handel, muitas canções de Schubert, muitas árias de Verdi) possuem qualidades de simplicidade.
Da mesma maneira, não parece que as gravações dos Sex
Pistols sejam “acessíveis”, que a obra de Frank Zappa seja
“simples” ou que a de Billie Holiday seja “fácil”.
A terceira definição é uma crença derivada do conceito
marxista de determinação da superestrutura pela infraestrutura, conceito superado entre os marxistas de linha
gramsciana, entre outros (para eles, haveria uma relativa
autonomia da cultura com relação à economia. Esta definição falharia por que o campo musical não poderia ser
reduzido à estrutura de classes, ou seja, os tipos de músicas e as práticas musicais nunca são propriedade privada
de um contexto social particular. A mobilidade social e a
fluidez interclasses, além do caráter cada vez mais indiferenciado da difusão midiática e dos mercados culturais,
tornariam isso óbvio hoje. No entanto, mesmo no século
19 as músicas burguesas eram apreciadas por trabalhadores, a música erudita sendo executada por bandas e em
desfiles. Ao mesmo tempo, a chamada “música folclórica”
era objeto de disputa entre “camponeses”, operários da
indústria, escritores e artesões da pequena burguesia e
colecionadores das classes altas (MIDDLETON, 1997, p.4).
Para ser válida, a quarta definição haveria que comprovar: 1) que os modos de difusão em massa (inicialmente
impressos, a seguir eletromecânicos e eletrônicos) teriam
afetado apenas a música popular, tornando-a mercadoria,
o que não se verifica (hoje as gravações de música erudita
e tradicional são vendidas em bancas de jornal e disseminadas pelo rádio e outros media, tornando a definição
ineficaz); e 2) que a música popular estaria excluída da
disseminação por métodos face a face (por exemplo, concertos, música de “barzinho”) e estaria indissoluvelmente
agrilhoada à sua condição de mercadoria, impossibilitada
de propagar-se gratuitamente e de ser fruto de produção
coletiva. Ao contrário, a música popular circula maciçamente em ambientes que celebram exclusivamente seu
valor de uso (em detrimento de seu valor de troca): grupos de amadores, festas particulares e cultos religiosos
podem ser citados, entre muitos outros.
Middleton comenta também algumas das combinações
destas definições, encontradas tanto no senso comum
como em abordagens acadêmicas. Não seria ocioso ressaltar, mais uma vez, a inter-relação entre definição, teoria e método, evidente no exame destas sínteses.
A primeira seria a positivista, que se concentra no aspecto quantitativo do “popular”. Como ilustração deste enfoque, Middleton oferece o exemplo do musicólogo Charles Hamm, que propõe “a lidar com as peças que sejam
demonstravelmente os itens mais populares da ‘música
popular’, com os itens mais largamente disseminados da
música disseminada nos mass media” (HAMM apud MIDDLETON, 1997, p.5). A síntese positivista, portanto, derivaria da categoria 4, mas também, em alguma medida,
das categorias 2 e 3.
A segunda síntese é denominada por Middleton de essencialismo sociológico. Aqui, a “essência” do popular
185
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
é tida como constante; no entanto, há marcada variação, de acordo com a ideologia do observador: ou esta
“essência” é proferida de cima ou engendrada de baixo.
Ou “o povo” é considerado um ingênuo manipulado, ou
um sujeito histórico progressista e ativo (ver TINHORÃO,
1972, 1974, 1999). Esta síntese derivaria da categoria
3 mas também, de certa maneira, das categorias 1 e 4
(MIDDLETON, 1997, p.5).
A “objetividade” prometida pelo enfoque positivista cedo
se revela uma ilusão, evidenciando que esta abordagem
não é menos livre da ideologia que qualquer outra. Voltando-se à mensuração do mercado, deixa escapar tudo
o que não se conforma a estes parâmetros e práticas –
ignorando a extremamente intensa atividade musical que
transita por outros circuitos. Citado por Middleton, o etnomusicólogo Charles Keil explicita estas outras práticas
silenciadas pelo método positivista na resenha em que
critica o livro de Hamm, descrevendo-o como
. . . um reportar contínuo de nomes, datas, títulos de canções,
exemplos musicais de uma procissão de canções em forma mercadoria que começaram . . . em 1789. O autor exclui excessivas tensões dialéticas do livro desde o início: nenhuma música de igreja
será considerada; também não é permitida nenhuma preocupação
com aqueles estadunidenses que não podiam adquirir partituras e
um piano; e não há lugar para música primariamente instrumental
como marchas, ragtime, jazz ou polca até 1950. Deixar de fora
cristãos estadunidenses brancos e negros é deixar muita coisa de
fora. Deixar de fora pessoas pobres e operários não parece correto.
(KEIL apud MIDDLETON, 1997, p.5)
Mesmo tomando a abordagem positivista em seus próprios termos de referência, não se encontra consistência.
A confiabilidade de números de vendagem de CDs e estatísticas de execução em rádio é notoriamente suspeita. A
metodologia de contagem não é divulgada pela indústria
e os números estão sujeitos a manipulação. A execução
nas rádios e TVs é, muitas vezes, dependente do pagamento de verbas extras às emissoras e/ou a seus funcionários
ou agenciadores pelas gravadoras (o chamado jabá; nos
EUA, payola; ver, por exemplo, SILVA, 2007, que analisa a
chamada Lei Anti-Jabá, e, nos EUA, COASE, 1979).
Além disso, pouca atenção é dada ao comportamento de
setores específicos que podem contradizer o que ocorre nos segmentos mais massificados. Um exemplo deste
caso foi a situação estudada pelo antropólogo Hermano VIANNA (1983) no universo do funk carioca. Segundo
Vianna, este gênero se desenvolveu a partir da iniciativa
de equipes de som que promoviam bailes de subúrbio no
Rio de Janeiro utilizando discos comprados pessoalmente, de um em um, nos EUA, e mantidos em segredo dos
concorrentes. Logo, trata-se de um fato social e cultural
da maior importância que, no entanto, seria insignificante, naquele momento, do ponto de vista mercadológico.
Misturadas às avassaladoras figuras do mercado mais comercial, experiências interessantes como essa, em mercados segmentados, se diluem e se perdem.
Middleton lembra também a tendência de se privilegiar
a categoria do “jovem” no âmbito da metodologia po186
sitivista. Isto seria problemático porque os jovens despendem uma quantidade desproporcionalmente grande
de sua receita em mercadorias para o lazer, como CDs.
Isso levaria a negligenciar grupos de faixas etárias mais
avançadas que podem usar músicas diferentes, e de
maneiras diferentes. O musicólogo aponta ainda como
falhas dessa síntese: o foco no “momento de troca”, em
oposição ao “momento de uso” (por exemplo, disseminação através da audição ao rádio, música de fundo,
performance ao vivo e circulação gratuita entre amigos de gravações feitas em casa); similarmente, práticas musicais não centradas na forma mercadoria são
ignoradas; e a tendência a padronizar diferentes escalas
temporais (um álbum pode vender um milhão de cópias
em uma semana, mas outro pode fazer o mesmo no decorrer de alguns anos). A consequência é a reificação da
música popular. Canções são tratadas meramente como
objetos, e seu papel na cultura é negligenciado. A definição positivista não poderia, então, informar o sentido
do termo “música popular”, pois tal sentido, repleto por
múltiplas camadas de ideologia, não é o foco da investigação, que são os dados em si próprios.
Por sua vez, os métodos e definições essencialistas partiriam de premissas qualitativas, não quantitativas. A essência seria formulada pela elite (“de cima”) e transmitida para as classes populares (“para baixo”) ou o inverso. O
primeiro caso empregaria conceitos como “manipulação”
e “padronização”, e o popular seria aproximadamente
equivalente a “massificado” ou “comercial”. Já no segundo caso, os conceitos operativos seriam “autenticidade” e
“espontaneidade”, e “popular” significaria “do povo”.
Em ambas as situações, a riqueza potencialmente oferecida pelo exame da cada caso específico é perdida em
função de esquemas generalizantes e apriorísticos. Os
exames de casos específicos evidenciam que não existe
esta abstração de um “popular” em estado puro – que
música folclórica brasileira, com exceção da música indígena tradicional, se assim considerada, poderia se dizer
totalmente independente da música europeia introduzida por portugueses e outros? Evidenciam também que a
presença de elementos da “alta cultura” ou de culturas
estrangeiras nas culturas populares dificilmente se coloca em termos de “manipulação” ou “massificação”, sendo
mais adequadamente investigada como produto de apropriação ativa, transformação e incorporação por parte
das classes populares de algo que passa a lhe pertencer
de fato e direito – a exemplo da harmonia no samba, no
cururu, na moda de viola e em muitas outras músicas
tradicionais. É um processo eminentemente contraditório, em que todas as faixas de cultura (inclusive as várias
culturas populares) se reorganizam continuamente, estabelecendo relações de poder entre si.
Neste sentido é fundamental e suficiente consultar o que
escreveram os mais destacados pesquisadores da cultura
popular na Idade Média, Renascimento e Idade Moderna
(ver, por exemplo, BAKHTIN, 1993 e BURKE, 1989). A cultu-
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
ra popular (desde pelo menos estes períodos), além de definir-se pela heterogeneidade, se caracterizou pela mistura e
permeabilidade com relação ao que seria hoje denominado
“estrangeiro” ou “das classes dominantes”, com o fluxo de
informações seguindo nos dois sentidos. É nesta direção
que Middleton conclui sua crítica aos esquemas essencialistas que vão “de cima para baixo” e “de baixo para cima”.
Em ambos os casos, o problema é que processos culturais concretos, localizados historicamente de maneira específica, são
reduzidos a esquemas abstratos. Ignoram-se contradições no interior do processo produtivo. Os consumidores são vistos como
receptores passivos, pelos teóricos da cultura de massas, ou como
uma classe inerentemente oposicional, por ultra-esquerdistas em
busca de um puro proletarianismo. Mas, na prática, nem a música
popular, de qualquer modo que seja compreendida, nem seus Outros – “canção folclórica”, “música tradicional”, “música erudita”,
“música burguesa”, ou o que quer que seja – caminham no palco
histórico nesta forma não-contaminada. (MIDDLETON, 1997, p.6)
O que isso importa, em termos de premissa, definição,
teoria e metodologia de estudo da música popular, é, de
acordo com MIDDLETON (1997, p.6), que a “música popular” (ou o nome que se desejar) apenas pode ser pensada
no contexto da totalidade do campo musical (estendendo-se para o passado, em diálogo com a “música erudita”
e com a “música folclórica”, e também para o futuro), e
este campo nunca permanece estático, está sempre em
movimento. Se os sentidos do termo “música popular” se
constroem continuamente em relação com seus outros
musicais, de acordo com cada sociedade em questão, o
termo é situado socialmente. Mas como os sentidos se
modificam numa mesma sociedade, em diferentes períodos históricos, o termo é também situado historicamente.
3. Teoria e metodologia: lidando com a
singularidade da música popular
Muito do estudo musicológico da música popular no
mundo anglo-saxônico, em seus primórdios, buscou seus
métodos na musicologia tradicional. Musicólogos eruditos provavelmente sentir-se-ão à vontade com a leitura
de trechos como o seguinte, escrito por William Mann na
aurora do fenômeno representado pelos Beatles.
. . . [A] canção lenta e triste sobre This Boy, que figura proeminentemente nas apresentações dos Beatles, é expressivamente incomum por sua música lúgubre, mas harmonicamente é uma de suas
mais intrigantes, com suas cadeias de clusteres pandiatônicos, e
o sentimento é aceitável porque vocalizado de maneira clara e
bem definida. Mas o interesse harmônico é típico de suas canções
mais rápidas, também, e fica-se com a impressão de que eles pensam simultaneamente a harmonia e a melodia, tão firmemente
são construídos em suas canções os acordes maiores de tônica
com sétimas e nonas, e as inclinações para o tom da submediante
bemol, tão natural é a cadência eólia ao final de Not A Second
Time (a progressão de acordes que finaliza a Canção da Terra, de
Mahler). . . . Pode também ser significativo que a canção de George
Harrison Don’t Bother Me seja um bocado mais primitiva, harmonicamente . . . (MANN, 1963, não paginado)
Os problemas da aplicação dos métodos de análise estrutural desenvolvidos para a música erudita, contudo, logo
se fizeram notar, e foram discutidos por vários musicólogos especializados em música popular (ver, por exem-
plo, TAGG, 1982; SHEPHERD, 1982; MIDDLETON, 1997 e
2000; MCCLARY e WALSER, 1990).
Entre estes problemas, pode-se mencionar o jargão técnico inapropriado ou ideológico. A referência, na citação
acima, a “clusteres pandiatônicos”, associa a música dos
Beatles à de Stravinsky, mas não se verifica, na verdade,
uma identidade de propósito, natureza ou função da técnica em uma e outra música. A qualificação de “primitiva”
é ideológica por assumir que a música popular seja regida
pelos critérios de inovação e complexidade harmônica da
música erudita, quando seus critérios são outros.
Uma dificuldade específica da musicologia tradicional
para lidar com a música popular diz respeito à valorização desigual de elementos básicos, decorrente do desenvolvimento histórico contrastante entre música popular
e erudita. A música popular favoreceu historicamente o
aspecto corporal (a dança, o movimento físico) e social (a
experiência coletiva, a conexão da música ao aqui e agora
dos acontecimentos e práticas sociais, como o trabalho e
as críticas a ele, o ritual religioso e a festa). Ao contrário,
a música erudita (na tradição que remonta ao domínio da
Igreja, no período medieval) tomou para seu modelo os
trabalhos de Pitágoras e Boécio, privilegiando o acesso à
música através da contemplação de relações numéricas,
com a abstração dos contextos corporal e sócio-histórico.
Mais tarde, com a ascensão da burguesia no século XIX,
de sua ideologia da satisfação postergada e do controle
dos apelos corporais em nome da racionalidade, sendo
informada pelo idealismo alemão, surge a musicologia
como disciplina orientada para uma música transcendente e autônoma, “desinteressada” como havia proposto
KANT (2000). Seu valor não seria o de meramente proporcionar prazer corporal ou interação social, mas acesso à
verdade por meio de sua sofisticação cognitiva. Pode-se
tomar como comprovação desta afirmação um dos importantes formuladores da estética musical erudita no
século XIX, Eduard Hanslick.
Para Hanslick, o conteúdo da música não deveria ser buscado na emoção (ele ataca especificamente a chamada
“estética da emoção”, então em voga), mas na própria
forma, concebida como espírito e essência.
A partir disso, a preeminência que o conteúdo ideal assume em
música com respeito às categorias de forma e conteúdo se torna aparente. Evidentemente, as pessoas costumavam considerar
que um sentimento a flutuar através de uma peça musical era
o sujeito, a Ideia, o conteúdo intelectual, e, por outro lado, as
sequências tonais bem definidas e artisticamente criadas eram
consideradas a mera forma, a imagem, a vestimenta sensual da
concepção supersensual. Entretanto, a parte “especificamente
musical” é precisamente a criação do espírito artístico, com o qual
o espírito contemplativo se une em completo entendimento. O
conteúdo ideal da composição está nestas estruturas tonais concretas, não na vaga impressão geral de um sentimento abstrato. A
forma (como estrutura tonal), em oposição ao sentimento (como
suposto conteúdo), é precisamente o conteúdo real da música, é
a música em si, enquanto o sentimento produzido não pode ser
nem conteúdo nem forma, mas efeito real. Da mesma maneira, o
suposto material, aquilo-que-representa, é precisamente o que é
187
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
estruturado pela mente, enquanto o que é supostamente aquiloque-é-representado, ou seja, a impressão do sentimento, é inerente ao substrato físico dos sons e em grande parte conformado a
leis fisiológicas. (HANSLICK, 1986, p.60)
contextos, contrastam com a visão expressa acima por
Hanslick. Em especial quando este busca reduzir o sentido
a efeitos da estutura musical ou a leis fisiológicas.
Esta longa citação é extremamente importante por condensar algumas premissas cruciais da musicologia erudita
tradicional, que entram em conflito inconciliável com a
análise da música popular.
Como consequência da preocupação primordial com a forma e a estrutura, surge, na musicologia tradicional, uma
ênfase na partitura que foi denominada por Philip Tagg
de “notaciocentrismo” (notational centricity, TAGG, 1979,
p.28-32). A tradição da notação musical na sociedade ocidental surgiu em conexão com as funções litúrgicas da
música nos primórdios da igreja cristã. Tal como a palavra
de Deus, a música dedicada a seu serviço deveria igualmente ser imutável. Para isso foi desenvolvido um sistema de armazenamento que fosse confiável, em oposição
às vicissitudes da tradição oral. Mesmo considerando os
diferentes graus de observação da partitura de música erudita (mais literal ou menos), dependendo do período histórico, é forçoso concordar que este foi o único meio de
armazenamento dessa música por mais de um milênio. Já
a música popular não foi concebida nem para ser armazenada, nem para ser comercializada sob esta forma (tanto
a representação de música popular por meio de notação
gráfica quanto a comercialização de partituras são pouco representativas quando comparadas à representação e
comercialização na forma de áudio em diversos suportes).
Primeiramente, se o conteúdo da música não está na
emoção, por implicação não se encontra também nos
âmbitos corporal e social4. Como se viu, para Hanslick, o
conteúdo da música estaria na própria forma, concebida
como espírito e essência. Esta compreensão é reforçada
por DAHLHAUS (1995, p.52), para quem Hanslick entende
que “forma” é um análogo da “ideia musical”, “um conceito
puramente e completamente presente em sua realidade”.
Como consequências imediatas da priorização da noção
de forma, a musicologia possui alto refinamento para lidar
com a própria forma, além de alturas e harmonias, pouco
refinamento para lidar com ritmos e é pouco eficiente para
lidar com timbres. Em contraste, a música popular coloca
ênfase no som concreto (timbre, tratamento eletroacústico, processamento tecnológico do som, ornamentação), no
ritmo e em variações microtonais, não devotando especial
interesse a arquiteturas sofisticadas da forma.
Em segundo lugar, explicita-se na citação acima, de Hanslick, uma estética abstracionista, o que vai de encontro à
fruição popular. Esta busca nos sons características que expressem seus estados emocionais, e que simultaneamente
sejam coadjuvantes na expressão corporal destes estados,
tudo isso variando segundo os diferentes contextos sociais. Se a escuta ideal da música erudita é distanciada,
corporalmente inerte, imersa no silêncio e contemplação
da sala de concerto ou do lar burguês, a música popular
é ouvida em uma multiplicidade de situações, indicando
diferentes modelos de escuta. Estas situações podem incluir uma festa em que se dança, se come e se conversa,
um jogo de futebol em que uma batucada contribui para a
empolgação, uma situação em que a introversão se mistura
ao desempenho de funções no mundo exterior tal como
possibilitadas pelo walkman dos anos 80 e, modernamente,
pelo Ipod/MP3, e muitas outras.
Cada um destes contextos de escuta propicia diferentes
sentidos para a mesma música. A mesma bateria de escola de samba produzirá diferentes associações, representações, sentimentos e ações se ouvida durante a competição anual no Sambódromo do Rio de Janeiro, num jogo
de futebol, no bar da quadra da escola durante um ensaio,
ou, gravada, no rádio do carro em meio ao trânsito, em
casa ou numa festa com amigos.
Esta importância da multiplicidade de contextos de escuta para a música popular, bem como a aceitação implícita da multiplicidade de sentidos e emoções que se
constroem a partir das diversas experiências corporais e
de interações com outros sujeitos permitidas por estes
188
Com isso surge o problema de que muitos parâmetros
expressivos importantes na música popular não podem
ser representados adequadamente usando partituras.
Como descrever aí múltiplas e dinâmicas regulagens de
captação de som (tipos de microfones, tipos de posicionamento deles, tipos de superfícies refletoras ou absorventes, etc.), processamento de som (reverb, flanger,
phaser, equalização, etc.), timbres (de sintetizadores, de
samplers, de guitarras e outros instrumentos eletroacústicos, de amplificadores, etc.)?
Evidentemente, esta centralidade da partitura na cultura
erudita evidencia a premissa de que há uma hierarquia
entre a obra, tida como essencial e detentora de valor de
culto, e a performance, colocada no plano das meras aparências (remetendo à metafísica). Ao contrário, a música
popular relativiza o papel fundacional do compositor e
da obra ao permitir modificações radicais desta (harmonia, melodia, ritmo, gênero, letra) em cada situação de
performance. Relacionada à questão do contexto aludida
acima, uma performance popular estará, em grande parte
das vezes, fincada em seu momento, seu tempo e espaço,
incorporando novos detalhes especificamente musicais e/
ou modificando a letra para comentar fatos da atualidade.
Como decorrência do notaciocentrismo, a escuta é monológica. A análise musical, tal como efetuada tradicionalmente na música erudita, se prende à partitura e não
à performance, como foi dito. Portanto, exclui de seus
interesses a maneira como a obra é efetivamente experimentada pelos diversos ouvintes, em suas diferentes
versões e contextos, e favorece a noção de “arte” em
oposição à de “prática”.
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
A leitura de uma partitura musical por um musicólogo
envolve muitos anos de treinamento, e este tradicionalmente coloca grande ênfase na percepção da harmonia
funcional. Logo, é lícito supor que, para a maior parte dos
musicólogos formados desta maneira, é extremamente
difícil ouvir música sem fazer o baixo assumir um papel
central na condução da harmonia, e sem um padrão de
expectativa harmônica tonal-funcional. Ambos podem
ser fundamentais para muita da música erudita considerada mais importante, mas o mesmo não ocorre necessariamente na música popular, especialmente em músicas
como dance, trance, house, soul, funk ou mesmo o rock.
A respeito desse último, o musicólogo Alf Björnberg declara: “Em geral, pode-se argumentar que a harmonia é
um parâmetro menos importante da expressão musical
no rock do que, por exemplo, ritmo, melodia e timbre”
(BJÖRNBERG, 1985, não paginado). Susan McClary vai
ainda mais longe, ao criticar a cadência como representação do poder patriarcal, valorizando, ao contrário, músicas que a evitam e produzem uma estrutura harmônica
simples ou mesmo inexistente (MCCLARY, [1991] 2002).
Na discussão dos problemas da análise da música popular, salienta-se a questão da pertinência. Por meio do
conceito de pertinência, ao invés de reificar “a música”
e dela abstrair critérios ideais de análise e valoração, o
analista vê-se obrigado a especificar de que música está
falando, e sob que ponto de vista. Afinal, cada música que
seja significante para uma dada comunidade o é segundo
os critérios específicos desta comunidade.
Com relação ao ponto de vista, como vimos, a aplicação da
musicologia tradicional à música popular tem se concentrado nos interesses de produção (ou seja, de compositores,
intérpretes, arranjadores, etc.). Diferentemente, no âmbito
dos estudos de música popular, a ênfase está na crítica cultural, e então o foco se desloca para o ouvinte. No entanto, esta oposição produtor versus ouvinte não é dicotômica
mas dialética, visto que os papéis dos ouvintes, executantes
e mediadores muitas vezes se superpõem. As tecnologias
atuais contribuíram muito para isso, ao possibilitar que o
leigo produza suas próprias versões – remixes – de músicas
lançadas comercialmente, através do uso de diferentes tipos
de software amigáveis. Estas músicas são amplamente disseminadas pela internet, abolindo a figura do intermediário
e as determinações econômicas impostas por este.
Abordando as diferenças entre música erudita e popular,
o etnomusicólogo Charles KEIL (1966) produziu uma diferenciação influente que pode ser entendida como relacionada ao que está se denominando aqui pertinência.
Discutindo o conceito de “sentido incorporado” (embodied
meaning), de Leonard MEYER (1956), Keil propôs a noção
de “sentimento engendrado” (engendered feeling). Segundo Meyer, os ouvintes criam o sentido de um fluxo sonoro
relacionando um som a outro, construindo sequências que
comunicam uma sensação de tensões e relaxamentos que
estariam “incorporados” nessas sequências. Este aspecto
“narrativo” está intimamente associado à música erudi-
ta ocidental e à maneira predominante de ouvi-la, sendo
adequadamente representado pela notação convencional.
Já a ideia de “sentimento engendrado”, de Keil, refere-se
ao impulso que faz a música tornar-se viva, levando o ouvinte ao movimento, e que não pode ser captado por uma
notação. Para Keil, não se trata de processos sintáticos,
mas do uso, por parte dos músicos, de microvariações rítmicas em nível subsintático.
Esta distinção em termos de pertinência seria confirmada,
mais tarde, como extremamente relevante para a história
da constituição dos estudos de música popular. Recolocando a questão em outra formulação influente, Andrew
CHESTER (1970, p.75-82) propôs diferenciar a forma de
construção da música erudita como extensional. Isto é,
como desenvolvimento sincrônico e diacrônico através
da combinação de partículas musicais básicas rumo a
uma complexidade crescente nos dois sentidos. Diferentemente, a construção da música popular seria intensional (termo em inglês relativo a intensividade, criado por
Chester): ao invés de combinar as unidades básicas rumo
a uma complexidade formal/estrutural, essa música atingiria a complexidade em seus próprios termos, através da
modulação intensiva das frequências e inflexões rítmicas
destas unidades. No entanto, tais dinstinçoes não devem
ser vistas como mutuamente excludentes, mas de maneira variavelmente complementar, definindo a diferença
entre o popular e o erudito por meio de um critério de
grau (de predominância de cada processo), e não de natureza. Nesse sentido, a noção de pertinência passou a ser
importante para os estudos de música popular, como forma de entender e analisar cada música em sua especificidade, através do levantamento dos aspectos relevantes
para os envolvidos na prática musical em questão.
Isto implica em um deslocamento da centralidade da
“obra” original e de sua representação gráfica (não mais
vistas como “a música”), e do “autor” como instância fundacional. O olhar se dirige à realidade complexa na qual
se insere uma música hoje: impossível falar dos sentidos de uma canção popular sem se remeter aos múltiplos
discursos que a representam; aos vários tipos de media
que a veiculam; às tecnologias que os tornam possíveis;
entrevistas, merchandising, fotografias, promoções; instituições; processos de produção; contextos de recepção;
organização social; relações de poder; transformações
culturais; e assim por diante. Os sentidos constroem-se
intertextualmente (KRISTEVA, 1974, p.340) pelo sujeito
confrontado por todas estas instâncias.
Mesmo assim, este sujeito continua atribuindo o seu prazer aos sons musicais, aos efeitos por eles provocados em
seu corpo (individual e social). Em consequência, parece
recomendável que os sons de cada canção, em sua especificidade, sejam valorizados pela análise, sob pena de se
recair em uma generalização abstrata.
Portanto, reconhece-se tanto a natureza radicalmente
interdisciplinar/ transdisciplinar dos estudos de música
189
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
popular quanto a necessidade de atentar para a descrição/ análise/ interpretação das estruturas musicais (de
superfície e profundas) em sua concretude, bem como
ao excesso que as transcende. Devido a isso, aqui serão
mencionados alguns exemplos que vêm demonstrando a
multiplicidade de direções teóricas (com consequências
metodológicas) que têm se mostrado capazes de efetivar
aproximações plausíveis em relação a este objeto fugidio.
Deve-se notar que algumas destas, como o feminismo,
já foram mencionadas, neste caso por meio do trabalho
de Susan MCCLARY ([1991] 2002). Entre as importantes
contribuições do feminismo para os estudos de música
popular figura a preocupação em desvelar as codificações do corpo culturalizado (a construção do gênero
sendo parte da cultura). Nisto se inclui a desmistificação
da ideia de que a música seria qualitativamente “feminina” (pertencente ao “corpo”). Mesmo que a música e o
discurso sejam dependentes de processos corporais para
seu estabelecimento (discutiremos isso adiante), este
corpo é sempre mediado por discursos social-históricos,
inclusive verbais e musicais.
Outra das abordagens que os estudos de música popular
têm experimentado é a etnografia. Procura-se aqui articular detalhes específicos da(s) prática(s) musical(is) em
questão à performance cultural estudada. Um exemplo
pode ser encontrado em NEDER (2007). Aqui, a multiplicidade de gêneros em uma mesma classificação da faixa de
recepção (a MPB), fato inédito na história da música popular brasileira, é entendida de maneira mais abrangente
do que simplesmente um fenômeno musical. O autor propõe que as modificações culturais específicas do momento histórico dos anos 60, no contexto brasileiro e global,
produziram um diálogo entre diversas faixas culturais e
sociais. Entre estas faixas figuram as várias minorias representadas no discurso da MPB (nordestinos, favelados,
“caipiras”, a mulher – discutida no trabalho de Nara Leão
e Maria Bethânia, entre outras), a música negra estadunidense (representada, já em 1963, pela música de Jorge
Ben), o rock, a poesia culta (Chico Buarque, Caetano Veloso, etc.), música paraguaia, boliviana, e assim por diante.
Por meio da análise da relação entre gênero musical e
subjetividade, é sugerido que, ao contrário da construção
de um sujeito monológico, tal como ocorreria na socialização realizada no âmbito de um gênero, a MPB, com sua
porosidade radical entre diversas faixas culturais, seria o
indício de (e predisporia para) subjetividades mais propensas ao diálogo com o outro.
Ainda outra dessas abordagens é a representada pelas teorias do discurso. Aqui, tanto os discursos “extramusicais”
quanto os discursos especificamente musicais são vistos
como interativos. Estas abordagens, ao invés de reduzir o
discurso musical ao linguístico, buscam entender a interdependência e a influência recíproca de ambas instâncias.
Trabalhos de linguistas e psicanalistas ressaltam a evidência de que voz (com todos os seus parâmetros de altura,
duração, intensidade e timbre) e gesto são anteriores à
190
simbolização, de maneira que nossa relação com a música
não pode ser inteiramente explicada por meio da convencionalização de estruturas musicais pelo discurso verbal.
Tampouco a música seria “inata” em nós. O que ocorre em
um bebê prestes a ser inserido no mundo da significação é
uma complexa dialética entre estruturas biológicas e sociais, que segmentam o contínuo dos sons experimentado por ele, associando-o a diferentes sensações oriundas
tanto do corpo como da cultura. Isto é explicado, entre
outros, pela psicanalista e linguista Julia Kristeva.
Obstruída pelas constrições das estruturas biológicas e sociais,
a carga pulsional sofre estases. A facilitação pulsional se fixa
provisoriamente e marca descontinuidades naquilo que se pode
chamar de os diferentes suportes materiais suscetíveis de semiotização – a voz, os gestos, as cores. As unidades e diferenças
fônicas (mais tarde, fonêmicas), cinésicas ou cromáticas, são as
marcas de tais estases da pulsão. Conexões ou funções estabelecem-se então entre estas marcas discretas, sustentadas pelas
pulsões, e se articulam segundo sua semelhança ou oposição,
seja por deslocamento ou condensação. Encontramos aqui os
princípios da metonímia e da metáfora, indissociáveis da economia pulsional que os sustentam. (KRISTEVA, 1974, p.28)
Ao relacionar dialeticamente corpo (desde sempre culturalizado) e sociedade por meio do simbólico, a psicanálise compreende uma experiência do corpo variável em
relação ao lugar, história e cultura, portanto nunca dada
de maneira essencial. O sentido musical situa-se na experiência corporal, mas essa experiência é mediada pelo
discurso verbal, pois tanto o corpo quanto o mundo físico
não podem ser experienciados ou concebidos fora da linguagem. Tanto o próprio funcionamento da linguagem se
baseia em processos corporais – metáfora e metonímia
originando-se, respectivamente, de condensação e deslocamento das pulsões, como expresso acima – quanto
o experimentar gestos musicais como gestos físicos ou
emocionais depende das operações discursivas que possam tornar tais gestos musicais significativos.
Assim, questões identitárias, políticas, estéticas, corporais, de etnicidade, nacionalidade, classe e outras estabelecem entre si uma relação complexa, no âmbito dos
discursos verbais. Esta relação servirá como um contexto para apreender, classificar e criticar os sons musicais,
quaisquer que sejam. Por outro lado, os discursos musicais (gênero, estilo, retórica, técnicas e tecnologias, intertextualidades entre idioletos, etc.) se conectam tanto
a processos corporais como culturais, tal como discutido
acima. Isso torna possível que WALSER (1993), BRACKETT
(1995) e NEDER (2007) proponham que os sentidos musicais não apenas sejam constituídos por discursos extramusicais, mas também sejam constitutivos deles.
Por sua vez, as teorias da mediação têm também representado uma corrente importante dentro dos estudos de
música popular. Elas representam o ceticismo dos pesquisadores deste campo com relação à ideia de que os
sentidos musicais encontram-se nas obras “em si” (pensamento substancialista proposto de maneira especialmente influente por Hanslick, como vimos, e extremamente disseminado no mundo da música erudita). Contra
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
esta noção, que remete todo o valor da música à suposta
autoridade fundacional do compositor individual (o gênio), as teorias da mediação, de caráter sociológico, procuram entender de que maneira as instituições, os canais
de disseminação, os meios de comunicação, os formadores de opinião, a aprovação/crítica do público, e, em
última análise, a estrutura social mais ampla, contribuem
para a construção do que se entende por “a música”.
Um primeiro proponente a se destacar com uma teoria
da mediação da música foi Theodor Wiesegrund Adorno, buscando, com isso, evitar o reducionismo primário
à noção de “classe”, recorrente nas análises marxistas
anteriores. Para Adorno, os efeitos da obra sobre o receptor são apenas um aspecto da totalidade social em
que ambos estão inseridos.
. . . [O]s efeitos das obras de arte, das formações espirituais de um
modo geral, não são algo absoluto e último, [e que supostamente]
seriam suficientemente determinados pela referência ao receptor.
Pelo contrário, os efeitos dependem de inúmeros mecanismos de
difusão, de controle social e de autoridade, e, por fim, da estrutura
da sociedade, dentro da qual podem ser examinados seus contextos de atuação. Dependem também dos estados de consciência e
inconsciência – que são socialmente determinados – daqueles sob
os quais o efeito se exerce. (ADORNO, 1986, p.108)
Portanto, de acordo com a teoria da mediação de Adorno,
não é possível acesso à obra “em si”, seja pela audição,
seja pela análise: ambas são experiências mediadas por
toda a vivência social. Esta teoria poderia servir para esclarecer muito das atitudes (des)valorativas com relação
à música popular, bem como proporcionar recursos para
entender suas transformações. Mas teve escasso aproveitamento nesta área, porque, para Adorno, quanto melhor
a história das formas de uma música e sua inserção em
uma grande tradição representarem a totalidade social,
em todas as suas contradições, tanto mais autônoma será
esta música. Este critério postula uma discutível totalidade para a música de tradição austro-germânica (por
definição, centralizada na tradição vienense, portanto
parcial). Este mesmo critério, ao definir a música popular
por seu caráter necessariamente parcial, não autônomo,
a excluiu de qualquer consideração por parte do filósofo
que pudesse ser útil para o campo.
Entre uma sociologia da música que, em seus aspectos
mais radicais, tende a reduzir a música às determinações
sociais impostas aos artistas e fruidores, e, de outro lado,
a estética, com seus postulados da obra de arte transcendental, não-mediatizada, subjetivizante, fundacional,
autônoma – escasso valor heurístico poderia ser produzido para a análise da música popular. É nesse contexto,
como alternativa e diferencial, que se insere o trabalho do
sociólogo Antoine HENNION (2002).
Hennion se propõe a estudar a música sem deixar de
identificar no especificamente musical parte do objeto
de pesquisa. Ao mesmo tempo, coloca grande esforço na
reflexão sobre a atividade do amador (o praticante e/ou
ouvinte dedicado, não profissional). Isto é essencial em
sua análise, e se diferencia da crítica sociológica proposta por BOURDIEU (1984), descrita por Hennion nos
seguintes termos:
[Segundo Bourdieu,] a cultura é uma fachada que disfarça mecanismos sociais de diferenciação, os objetos artísticos sendo “apenas” meios para a naturalização da natureza social dos gostos; os
julgamentos estéticos são apenas denegações deste trabalho de
naturalização, que só pode ser realizado se desconhecido enquanto tal. (HENNION, 2002, p.81-82)
Ao contrário, Hennion acredita tanto na produtividade do
amador quanto na da obra, declarando que
precisamos reconhecer o momento da obra em sua dimensão específica e irreversível; isto significa vê-la como uma transformação,
um trabalho produtivo, e permitir-se tomar em consideração as
(altamente diversificadas) maneiras pelas quais os atores descrevem e experimentam o prazer estético. (HENNION, 2002, p.81-82)
A consequência é a relativização do papel das determinações sociais, designando um papel significativo à agência
dos sujeitos envolvidos no processo. Assim, por exemplo, ao invés de entender o rap como produto da “falsa
consciência” burguesa ou das maquinações da indústria
– apesar dos altos lucros que o gênero, atualmente, a ela
proporciona –, Hennion o discute em função da crítica
que este dirige ao rock, às suas técnicas sofisticadas e à
sua dependência de idolização. Ao contrário do rock, o
rap (ao menos em sua fase inicial) teria encontrado na
performance de palco não a grandiosidade dos megaconcertos de rock, mas a celebração do imediato e da comunidade local, transformando
rivalidades e lutas em uma disputa improvisada sustentada por um
dado fundo musical, executados em um equipamento cuja qualidade não importa contanto que seja alto o bastante, para serem
ouvidos no calor do momento por colegas, companheiros, iguais.
(HENNION, 2002, p.88)
O levantamento das opções teórico-metodológicas praticadas no âmbito do campo inter e transdisciplinar aberto
recentemente pelos estudos de música popular poderia
se estender indefinidamente. Os exemplos selecionados
e comentados buscam apresentar as abordagens que parecem mais representativas e frutíferas, mas tal seleção
é evidentemente parcial e sempre sujeita a discussões e
complementações adicionais. No entanto, para os efeitos
deste ensaio, é necessário delimitar tal levantamento, e
é em consideração a esta delimitação que encerramos a
presente exposição.
4. Conclusões
Entende-se, portanto, o estudo da música popular como
empreitada complexa, entrecruzamento das palavras,
dos sons instrumentais, dos gestos, dos corpos, das
vozes, das condições de produção, comercialização e
transmissão, das mediações, das interferências produzidas pelos receptores que assim se inscrevem produtivamente no texto, e muitas outras variáveis, tudo se dando
dentro do terreno complexo da cultura.
191
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
À demarcação rígida de fronteiras nesta área corresponderia fatalmente o empobrecimento de sua compreensão. Para evitar este empobrecimento, foi empreendida uma revisão das diferentes definições de
música popular e suas limitações.
Tendo em vista o risco de reificação da ideia de música
popular por meio do problema definicional, a condução
da pesquisa nesta área precisa se defrontar com as dificuldades teórico-metodológicas enfrentadas por uma
tradição herdada da musicologia tradicional. Respondendo a este desafio, foram descritas algumas alternativas
que vêm sendo empregadas de maneira profícua no caso
específico da música popular. Buscou-se aqui não o fechamento do campo em torno destas alternativas, mas,
ao contrário, ressaltar exatamente a necessidade de se
explorarem múltiplas e diferentes abordagens teóricometodológicas à música popular, cuja inserção na pesquisa acadêmica é recente, como foi salientado.
A problematização das limitações da aplicação de uma
estética musical tradicional ao objeto música popular,
não obstante, não nos libera da necessidade de lidar com
a materialidade da música. Há um momento em que os
sons impactam o corpo (físico e cultural) – e o estudo
destes sons, em sua irredutível especificidade, em conexão com este impacto, é possibilitado por uma musicologia que leve em conta a especificidade da música popular,
uma musicologia renovada pelas discussões travadas no
âmbito dos estudos culturais.
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194
NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.
Notas
1
2
Para Simon FRITH (1996, p.267), “a musicologia produz música popular para pessoas que desejam compô-la ou executá-la”. Ver também COOK (1990).
Com a noção de “fato social total”, Mauss produziu enorme influência sobre a antropologia, sustentando que certos eventos sociais são a síntese
da sociedade e de suas instituições, o que tornaria a análise desses eventos especialmente estratégica para uma disciplina que visaria especialmente a totalidade social. Já Geertz, com o conceito de “jogo absorvente”, entende que tais jogos são eventos investidos com sentidos especialmente
importantes para a cultura dos envolvidos, que vão muito além da mera situação concreta presenciada, e que precisam ser adequadamente interpretados para evidenciarem-se em toda sua magnitude a um observador externo. A respeito desses dois conceitos, ver, respectivamente, MAUSS,
1974 e GEERTZ, 1973).
3 É necessário esclarecer as diferenças entre o normativo e o negativo. O normativo é compreendido como aquilo que não é nem mesmo colocado
em discussão, sendo imposto como verdade genérica antes do exame dos casos específicos. Se o normativo “tem qualidade ou força de norma”,
segundo o Dicionário Aurélio, norma é por ele definida como: “6. Filos. Tipo concreto ou fórmula abstrata do que deve ser, em tudo o que admite
um juízo de valor” (FERREIRA, 1999). Ao contrário, no caso das definições negativas, que propõem o que a música popular “não é”, pode-se discutir
se uma determinada música popular não é “música folclórica” (dentro desta, se não é “folclórica urbana” ou “folclórica rural”, como vimos em Mário de Andrade) ou não é “música erudita”, “música religiosa”, “música de propaganda”, “música burguesa” ou “música proletária” além de outras
possibilidades. Evidencia-se assim que o normativo não se confunde com o negativo e vice-versa.
4 Importantes correntes de pensamento compreendem a emoção como construto oriundo da dialética entre corpo, ou instância biológica, e sociedade, ou instância cultural (lembrando-se que, no humano, o biológico é culturalizado). Entre seus proponentes, destacam-se, na sociologia,
Norbert ELIAS (1993, 1994a, 1994b, 1995 e 1998); na psicologia, Lev Semenovich VIGOTSKI (1996, 1998 e 2000); e, na psicanálise, Sigmund FREUD
(1957). Conferir, a este respeito, os conceitos freudianos de pulsão, energias originadas no corpo, e de superego, instância constituída a partir da
interiorização das interdições sociais.
Álvaro Simões Corrêa Neder é musicólogo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
de Janeiro, onde é coordenador da Pós-Graduação em Produção Cultural. Possui Doutorado Multidisciplinar em Letras
(Literatura Brasileira, Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007) e finalizará em 2010 seu segundo doutorado,
na UNIRIO, em Música. Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento de
18 meses nesta universidade, ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. Publicou o livro Creativity in Education: Can Schools Learn with the Jazz Experience? (WCP, EUA, 2002). Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi
selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Nacional Capes de Teses de Doutorado 2008. Como crítico musical, publicou textos para vários livros de referência lançados
nos EUA e acima de 2.300 artigos na imprensa norte-americana. Desde 1980 atua como professor de música, músico e
produtor musical, tendo sido membro da Old Time String Band, coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon.
195
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
Circular cidade: poesia e groove na
expressão musical de quatro grupos da
região do mangue nordestino
Yukio Agerkop (Centro de La Diversidad Cultural, Caracas, Venezuela)
[email protected]
Resumo: Apresentação do fenômeno musical de três grupos de Aracajú - Sulanca, Naurêa, Maria Scombona - e um
de Recife - Chico Science e Nação Zumbi, que realizam uma hibridização musical de elementos locais e regionais com
elementos transnacionais. Os músicos e os apreciadores da música destes grupos desenvolvem um senso próprio de local, enfatizando as particularidades da sua região como as tradições musicais, a arte verbal, a linguagem do Português
regional e o aspecto lúdico na atuação. Desenvolve-se um olhar específico sobre uma região culturalmente similar, a
região do mangue de Aracaju e Recife, a partir da música e da poesia da geração contemporânea, inspirados na vida
urbana, nas expressões culturais da região e nas correntes musicais não-brasileiras ou transnacionais.
Palavras-chave: performance; discurso musical;arte verbal, poética; música popular brasileira; música do mangue.
Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue
(mangrove) of northeastern Brazil
Abstract: Introduction to the phenomenon consisting of three music groups from Aracaju (Brazil) - Sulanca, Naurêa,
Maria Scombona - and one group from Recife (Brazil) - Chico Science e Nação Zumbi, which developed a musical hybridization based on local and regional elements on one hand, and transnational elements on the other. The musicians
and their fans are constructing an own sense of locale, stressing the characteristics of the region where they live, with
its musical traditions, the current verbal arts, the regional Portuguese, and the playful character of the different musical expressions. This study aims at providing an alternative vision of a specific cultural space, the mangue (mangrove)
region of Aracaju and Recife, focusing on different kinds of artistic expressions, the discourse of the musicians who are
influenced by urban life, regional cultural expressions and non-brazilian - or transnational - musical trends.
Keywords: performance; musical discourse; verbal art; poetics; Brazilian popular music; mangue music.
1 - Introdução
­­ metade dos anos 1990, o nordeste brasileiro chama a
Na
atenção nacional por um fenômeno musical particular e
inovador, sendo depois o modelo ou a base para fenômenos musicais similares em outros grandes centros urbanos do Brasil. A performance1 forma uma parte essencial
dos grupos musicais deste movimento, onde os músicos
se reapropriam de expressões culturais de suas regiões,
combinando-as com gêneros musicais urbanos não brasileiros como o funk e o punkrock. Neste artigo, veremos o
fenômeno sócio-musical de três grupos musicais de Aracaju e um de Recife, respectivamente: Sulanca; Naurêa;
Maria Scombona; e Chico Science e Nação Zumbi.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
196
A performance, em especial o uso particular da arte
verbal, determina o senso de identidade de cada grupo
musical e interage com a intenção e a mensagem que
estes pretendem transmitir para o público. O aspecto
temporal e a repetição são expostos de uma maneira
peculiar na estrutura das músicas. Para abordar os aspectos musicais, entra-se no conceito do groove, que é
utilizado nos discursos verbais e musicais dos músicos
do mangue e dos grupos de Aracaju abordados neste artigo. Primeiramente, veremos o conceito de “identidade
mangue” e as fronteiras em que o fenômeno musical da
região do mangue se vê inserido.
Recebido em: 10/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
2 - Identidade mangue
Na minha visita ao Nordeste do Brasil nos anos de 2004
até 2007, realizei uma pesquisa de doutorado em etnomusicologia, e fiquei interessado nos fenômenos musicais de grandes centros urbanos, em conjuntos musicais
que misturam expressões musicais rurais com correntes
musicais transnacionais. O cenário é a região do mangue e esta denominação se origina dos manguezais, que
caracterizam o litoral de diversos estados do Nordeste como os Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e
Paraíba. Logo no interior destes estados do Nordeste,
no chamado agreste encontra-se uma variedade de expressões culturais de caráter rural; e, no litoral desta
região, encontramos as cidades de Aracaju e Recife, que
são cercadas por manguezais e se caracterizam por rica
biodiversidade. A região também se distingue pela diversidade de expressões culturais, razão pela qual músicos de Recife assinalam a similitude entre a riqueza
cultural da região e a riqueza natural dos manguezais.
Os textos cantados dos grupos abordados neste trabalho utilizam frequentemente referências à paisagem da
cidade e também da região rural.
Na área do Caribe, autores como Édouart GLISSANT
(1981, 1997) e Jean BERNABÉ (1993) teorizam sobre o
mangue (manguezais) como símbolo da nova comunidade humana pluricultural caribenha. Ao abordar o conceito da crioulização2, eles contrapõem enfoques monoculturais, entre outros, a negritude, e a pluriculturalidade.
Glissant substituiu o conceito monolinguísta da identidade de raiz pelo conceito do rizoma (rhizome-identity): o
“creole” é ao mesmo tempo absolutamente original, mas
cresce como um rizoma sem raízes fixas. Uma situação
semelhante se revela na região do mangue no fenômeno
de formação de grupos musicais por jovens que adotam
abordagens pluriculturais, tanto na sua criação musical
quanto na sua performance. Não existe uma identidade
do “creole”, mas os jovens músicos selecionam, através
dos meios de comunicação, as mais recentes tendências
musicais dos Estados Unidos, Caribe e Europa.
Os quatro grupos que receberam minha atenção nesta
pesquisa são: Sulanca; Naurêa; e Maria Scombona, de
Aracaju; e Chico Science e Nação Zumbi, de Recife. O primeiro grupo com o qual tive contato foi Sulanca, e este
grupo é formado por sete músicos. Eles utilizam instrumentos de percussão, uma guitarra e um baixo elétrico.
Às vezes, o cantor Jorge Ducci usa um megafone para
modificar a voz, e imitar os cantores da região campeira do nordeste. Misturam a música campeira sergipana
com elementos do rock. Naurêa, também de Aracaju, é
um grupo de sete músicos que interpretam baiões3, côcos,
sambas, misturando-os com elementos de correntes musicais transnacionais dos Estados Unidos e do Caribe, que
se destacam pelo uso de roupas diferenciadas. Maria
Scombona é um conjunto que interpreta principalmente blues e blues-rock norte-americano, abrindo exceções
para músicas nordestinas como a embolada. O líder e
cantor do grupo enfatiza as características linguísticas
regionais. O conjunto que serviu de modelo para os três
primeiros grupos mencionados anteriormente foi Chico
Science e Nação Zumbi, da cidade de Recife.
Depois da morte do líder Chico Science, em 1997, o grupo continuou com o nome simplificado Nação Zumbi. Este
grupo começou no início dos anos 1990 uma nova corrente musical chamado (movimento) mangue, um fenômeno
sócio-musical, caracterizando-se por jovens músicos que
começaram a misturar as mais diversas expressões musicais nordestinas, em especial as de Pernambuco, com uma
grande variedade de correntes musicais transnacionais. O
caráter de vanguarda do chamado mangue teve um papel
fundamental na formação de outros fenômenos musicais
como a moda nova do Estado de São Paulo, os três grupos
musicais de Aracaju abordados neste artigo, e o tecnobrega de Belém do Pará.
3 - Fronteiras culturais
Os grupos musicais abordados neste artigo estão situados numa esfera fronteiriça em diferentes níveis. O contexto sócio-geográfico no qual se situam é o Nordeste,
região em desenvolvimento, que se encontra entre a
modernidade e contemporaneidade dos grandes centros
urbanos e a vida rural e arcaica. Também se encontra
entre o rico Sul e Sudeste do País e a Europa, e os Estados Unidos, no hemisfério norte. No grande centro urbano, observe–se a fronteira entre o centro e a periferia,
ambos formando a temática nas mensagens emitidas
pelos músicos destes grupos abordados aqui.
As tradições musicais da região rural de Sergipe e Pernambuco representam o valor histórico, e são apropriadas pelas
novas gerações de músicos adaptadas às novas tendências
musicais de contextos urbanos. As cidades de Laranjeiras e
São Cristóvão, por exemplo, são cidades históricas, que se
opõem ou contrastam com Aracajú, cidade contemporânea de 150 anos de existência. O aspecto histórico destas
cidades se reflete nas tradições musicais que mantêm um
caráter arcaico e estático. De outra forma, os grupos musicais de Aracaju estão na fronteira entre a periferia da
cidade e o centro: como eles se posicionam na fronteira
entre o histórico e o contemporâneo? Talvez possam ser
considerados como mediadores, “cultural brokers” entre a
cultura da periferia e a cultura do centro da cidade.
4 - O groove e a arte verbal
...A gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão
querendo ser ouvido. Daí vem o drive dele, gritando aargh, no limite da voz... (DUCCI, Jorge, em entrevista concedida ao autor deste
artigo, junho 2005)
Esta frase do cantor Jorge Ducci do grupo Sulanca, revela uma
característica do fenômeno sócio-musical de grupos musicais
de Aracaju e dos grupos do mangue de Recife: o drive ou
groove - a percepção de um ciclo em movimento ou uma forma de organizar padrões que se revelam da música regional
do Nordeste que é reafirmada, ressaltada na criação musical
destes grupos do contexto urbano da região do mangue.
197
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
Parte da força musical dos grupos da região do mangue
está ligada a alguns conceitos, como a palavra groove e
a mistura de elementos de correntes musicais brasileiras e não brasileiras. Apresenta-se, a seguir, como estes
aspectos são trabalhados pelos grupos. A palavra groove
regularmente surge no discurso de músicos de Aracaju e
de Recife, como Jorge Ducci e os músicos do Chico Science e Nação Zumbi. Este último grupo mencionado gravou
uma música chamada Quilombo Groove.
Nos anos 1990, surgiram estudos com o objetivo de teorizar o conceito do groove, que está relacionado a elementos como a repetição e a redundância, bem como à experiência participativa por parte do músico e do receptor. O
termo se refere a um senso intuitivo de um estilo em processo, à percepção de um ciclo em movimento ou a uma
forma de organizar padrões que se revelam (FELD, 1994,
p.109). Existem vários termos para designar estilos com
seus processos, que incluem um senso sonoro, uma batida como o mangue, o afrobeat, o reggae-beat e outros.
Cada cultura musical possui um groove com seus próprios
significados musicais, e este groove tem a particularidade
de atrair, arrastar o ouvinte, ou seja, chamar a atenção:
[...]Todos os grooves e batidas se apropriam de maneiras de capturar a atenção do ouvinte; o sentido intuitivo do senso do groove
ou batida é o reconhecimento de estilo em movimento [...] termos
linguísticos como ‘groove’, som ou batida – significantemente codificam um senso não especificado, mas organizado como algo
suspenso numa maneira distintiva, regular e atrativa, atuando
para prender a atenção do ouvinte. (FELD 1994, p. 112)4.
Na arte verbal do Nordeste, refletida em gêneros como a
embolada5, côco6 ou no canto de Chico Science, os sons
das palavras são o que chama a atenção: o encadeamento
das palavras, em certos momentos, entra no contratempo
do padrão rítmico. Esta característica também pode ser
observada no funk norte-americano. As frases cantadas
por Chico Science, por exemplo, são emitidas em uma
respiração, colocando pressão nas cordas vocais. Desta
forma, consoantes como /s/, /t/, /b/ e /g/ são evidenciadas. Um bom exemplo desta técnica pode ser percebida
na música Maracatu de Tiro Certeiro (de Chico Science):
É de tiro certeiro, é de tiro certeiro,
Como bala que cheira a sangue
Quando o gatilho é tão frio
Como quem ta na mira, oh, morto!
Ehh, foi certeiro oh, se foi
O sol é de aço, a bala escaldante,
tem gente que é como barro ,
que ao toque de uma se quebra,
outros não,
ainda conseguem abrir os olhos e no outro dia assistir TV
Mas comigo é certeiro, meu irmão
Não encosta em mim, que hoje não estou pra conversa.
Seus olhos estão em brasa,
Fumaçando, fumaçando!, fumaça,
Não saca a arma não, arma não!
Já ouvi, calma!
As balas já não mais atendem ao gatilho
Já não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem… hêêê
Ex.1 - Maracatu de Tiro Certeiro (Chico Science e
Nação Zumbi, 1994)
198
A poesia criada por Chico Science é diferente da forma tradicional de se interpretar os côcos, maracatus7 e emboladas, por quebrar as regras de acentuação do português, ou
o encadeamento de palavras, como, por exemplo, o encadeamento das palavras ”já” e “não” no verso “[...] as balas
já não mais atendem ao gatilho”. Nas discussões ao redor
da arte verbal, desenvolve-se a noção de que a linguagem
poética desvia-se da linguagem normal: o uso inventivo da
linguagem poética em músicas atrai a atenção do ouvinte
e é percebido como não usual (BAUMANN, p.17). Na poesia
das músicas de Chico Science, percebe-se uma linguagem
não usual que atrai a atenção do ouvinte, por seus dispositivos e pelo seu ritmo próprio, criando uma tensão rítmica
entre o canto e o padrão rítmico - neste caso o do maracatu de baque virado - dos tambores alfaia e caixa. Uma das
formas pela qual a linguagem poética se revela é através
do paralelismo, que envolve a repetição com variações sistemáticas de estruturas fônicas, gramaticais, semânticas
ou prosódicas. O uso fluente da linguagem é um veículo
efetivo para a exposição de competência comunicativa
(BAUMANN, p.18-19).
Uma das características do Nordeste é uma fluência especial no uso da linguagem, que se reflete nas diversas
formas de arte verbal, na maneira criativa de construir
frases, e no uso de paralelismos. Na embolada e no côco,
com suas inflexões, a nasalidade e o timbre da voz do
falar português rural não devem ser subestimados. Ocorre um fenômeno especial, pois, para poder encaixar as
palavras, as sílabas, ao padrão “irregular” dos tambores
alfaias, desenvolve-se um ritmo cantado diferente, não
como o usual da tradição do maracatu de baque virado.
Os versos desta música foram criados por Chico Science,
que não vinha originariamente da tradição do maracatu.
O jogo de sílabas e palavras, em que a repetição de sílabas e sons das consoantes chama a atenção do ouvinte,
também é uma das características do funk norte-americano8. O funk norte-americano aqui referido é também
chamado p-funk, ou pure funk9, interpretado pelos músicos e grupos como James Brown, Funkadelic, Parliament, George Clinton e seu grupo e Bootsy Collins e o
seu próprio grupo. Estes grupos são praticamente formados por afro-americanos, e o funk também se inclui na
chamada Black Music, a música dos afro-descendentes
norte-americanos. Característica do funk ou p-funk é o
forte caráter lúdico, expresso com o uso de roupas extravagantes, como astronautas de naves espaciais, e óculos
escuros coloridos enormes, expressões faciais com risos,
além da dança funk, às vezes efetuada por quase todos os
músicos em um concerto, maneira particular de dançar
onde o corpo marca o timeline, o pulso básico do padrão
rítmico do funk. Em entrevistas, os músicos de funk fazem
diversas brincadeiras e a linguagem usada é o inglês afroamericano, com características e gírias próprias.
O aspecto lúdico de diversas tradições musicais campeiras do Nordeste - a exemplo do maracatu rural, cavalo
marinho, dança de São Gonçalo10 de Laranjeiras e a arte
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
de Chico Science - têm diversas semelhanças com a tradição do funk ou p-funk: a dança está presente em todas
elas, o uso de roupas diferenciadas, e expressões verbais
e brincadeiras corporais para provocar risos no público.
Um exemplo é a música do baixista estadunidense Bootsy
Collins, que inclui um forte espírito lúdico nas suas atuações no palco e nos seus textos, estabelecendo um jogo
verbal. Na música Shine-o-Myte (Rag Poping), observa-se
um mesmo fenômeno com um jogo de palavras e sílabas
que destacam consoantes como /i /z/, e /f /s.
Bootsy gonna shine like the light from shiny shoes
Shine o Myte
Hit me
Ootsy-be that-play unke-fe
Is Ootsy-bezay, is that plezay, is unke-fezay
Ootsy-be that-play unke-fe
Unky-fe
Is unky-fezay, ha ha ha
Ex.2 - Shine o Myte (Bootsy Collins, 1982)
Percebe-se, então, uma semelhança entre o jogo de palavras e a repetição de palavras, as palavras com sintática
semelhante, e consoantes similares entre as palavras desta música de Bootsy Collins com as cantadas por Chico
Science. A música Fé e Umbigada, do grupo Naurêa, apresenta um caso parecido na maneira silábica de cantar,
emitida numa respiração, à maneira de Chico Science. As
frases são emitidas de maneira staccato, de maneira bastante rápida, que é característica do côco ou embolada.
Os fonemas imprimem o caráter especial desta música, e
as consoantes /v/, /g/ e /z/ são pronunciadas precisamente, de maneira staccato, em frente da boca com os lábios
e ênfase na garganta. As palavras “volta” e “vai” são pronunciadas com ênfase. A letra é a seguinte:
Volta neguinha, o leite taiou
Volta neguinha, não sei não senhô
Volta neguinha, viver sem fulô
Volta neguinha, não sei não sinhô
Vai ter festa umbigada vai ter fé
Vai ter festa umbuzada vai ter fé
Tem novena e congada vai ter fé
Umbigada e umbuzada vai ter fé
Ex.3 - Fé e Umbigada (Naurêa, 2001)
Característica da letra é a repetição quase idêntica das
frases, com pequenas diferenças silábicas, por causa da
proximidade sintática das palavras, como umbigada, umbuzada e congada.
No caso das novas correntes musicais de Recife e de Aracaju, pode-se observar como um conjunto de maracatu
chama a atenção quando passa pela rua em um dia de
carnaval, com o som potente das suas alfaias, caixas e
gongues. Em Sergipe, os tambores de onça, zabumbas
e vozes dos cantores populares chamam a atenção nas
festas do calendário católico ou feiras populares. Estes
elementos instrumentais e vocais são explorados pelos
jovens músicos de centros urbanos como Recife e Ara-
caju. Aqui, ainda cabe a observação de que num encontro cultural ou feira, nos centros urbanos do Nordeste,
podem-se ouvir diferentes ritmos e timbres ao mesmo
tempo ou alternadamente, devido aos diferentes grupos
que desfilam concomitante nas ruas da cidade. A música dos grupos como Sulanca e Naurêa, com as camadas
rítmicas e sonoras alternadas, é em parte o reflexo deste
fenômeno nas feiras e encontros culturais.
5 - Discurso musical do groove e da vida urbana
Um elemento particular na música de Sulanca é a aproximação da guitarra e baixo aos timbres dos instrumentos
percussivos regionais. A intenção dos músicos é adotar os
ritmos de tradições musicais sergipanas para a guitarra e
baixo, mas com a distorção comum da música funk e hardrock. O grupo Sulanca é o único grupo em Sergipe, entre
os eleitos nesta pesquisa, que a executa desta maneira, e
a mistura de estéticas transnacionais com a música regional começa com o uso de um megafone para amplificar e distorcer a voz. Numa entrevista, Jorge, do grupo
Sulanca, explica sobre o uso da voz ligada à palavra drive,
outro conceito ligado às teorias sobre o groove:
Porque, aquela história, quando a gente está pesquisando o folclore,
a gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão e o
cantor querendo ser ouvido. Daí o drive dele, da voz que canta, gritando “aaaahhhrrg” no limite da voz, rasgando a voz, pra ser ouvido.
E respondido pelo coro. Aquele solo e resposta, que é característica
da música tradicional de Sergipe. Aí ele quer ser ouvido, no meio
de tanta gente. E aí ele vai ao limite. Na banda, quando boto um
drive na voz, colocando uma ‘postura’, é bebendo isto, esta coisa
do cantante no meio da manifestação [...] trago este registro, como
José de Jorge do ‘terreiro José do Jô’, porque é o limite dele. E nós
queremos fazer este registro dentro da banda. Além do megafone,
que registro muito bem isto, e o megafone já tem uma distorção
natural. Ele ajuda a trazer este grito do cantor no meio do povo. É
saber destas particularidades do povo, da música sergipana. (DUCCI,
Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)
A palavra groove, surgida no meio musical do funk americano, é conhecida por músicos como Jorge Ducci e usada
por ele no seu discurso sobre a sua própria música. No funk,
é o swing, a força rítmica que atrai o ouvinte para dançar.
A influência deste gênero pode ser observada na maneira
como a música é construída em camadas sonoras e rítmicas, às vezes alternadas, efetuadas pelos grupos musicais
Chico Science e Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Sulanca e
Naurêa. Estas camadas rítmicas são formadas por instrumentos percussivos como alfaias, tambores, tambores de
onça, triângulo, além do uso da guitarra e baixo elétrico
e sons eletrônicos produzidos com computador e sampler.
A estrutura da música do grupo Sulanca é basicamente
formada pelos ritmos das diferentes tradições musicais
rurais sergipanas com os seus instrumentos. A guitarra
e baixo elétrico tocam as fórmulas rítmicas e melódicas
curtas das tradições musicais rurais. Aqui, se mostram
elementos de gêneros transnacionais, o funk e pop norte-americanos combinados com ritmos campeiros. Os
padrões melódicos e rítmicos de um, dois ou três compassos são repetidos várias vezes como uma figura, o
chamado leitmotif, para o resto da música, característi199
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
ca do funk e pop. No funk estadunidense estas fórmulas
são executadas na guitarra ou baixo elétrico, acompanhado pela bateria.
Chico Science e Nação Zumbi trabalhavam com padrões rítmicos e melódicos diferentemente de Sulanca.
Padrões rítmicos e melódicos da guitarra ou baixo do
funk e pop estadunidense foram transferidos para os
instrumentos de percussão (alfaia ou conga). No caso de
Sulanca, padrões rítmicos de tradições musicais rurais
e de tradições afro-sergipanas são transferidos para a
guitarra e baixo elétrico. A semelhança entre os dois
grupos é o uso de uma base harmônica simples de dois a
quatro acordes, para desenvolver a força da percussão e
ressaltar os timbres produzidos através de distorções na
guitarra e sons eletrônicos, mas também por intermédio
do uso de instrumentos de percussão e pífanos alternando as partes da guitarra e baixo. Jorge explica isto
ao abordar o processo de misturar diferentes padrões
rítmicos das tradições afro de Sergipe:
Geralmente os ritmos estão em 4 por 4. A primeira coisa que eu faço
em compor, é pegar uma manifestação, por exemplo o samba de
parelha. Ou qualquer outra manifestação. A partir daquela batida
dele, começo a formatar a música, a partir da minha vivência, depois começo compor dentro daquela música, dentro daquela batida.
Depois aí começo fazer cruzamentos; que eu posso introduzir dentro dessa primeira batida; aí venho trazendo elementos de outras
tradições, por exemplo a caixa do bacamarteiro: ‘Tum tutum tutum’. Aí já tem um acento do cacumbi que combina com a caixa do
bacamarteiro:’cutúm cutúm tum’; isso já dá o caminho para botar o
baixo: ‘gujam gujam jam’; voltando para o caso do rock, não é rock,
é o acento do cacumbí; aí vou combinando, aí trago o pandeiro da
chegança. No final uso o violão, para ver os acordes. A música é
feito a partir desta formatação. Se você ouvir o disco, não ouve a
manifestação como ela é tocado no interior; por exemplo se pegar
o cacumbi ela tem caixa, ganzás, tambor de onça, tamborim. Cinco
instrumentos na tradição. Que é que eu faço: tenho cinco instrumentos; uso o tambor da batucada e fazemos combinações. A ideia
de Sulanca é fazer combinações de batidas folclóricas. E uma batida
que é de caixa, você bota o tambor ou a guitarra ou baixo fazer. E
Sulanca passa por essas vertentes aí. É esse universo aí. (DUCCI,
Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)
O uso de poucos acordes tem algumas razões: os textos
cantados têm influência da tradição do repente ou da
embolada. A característica do repente é o canto de improviso em cima de um acorde de sustentação, em um
modo nordestino.
Por outro lado, há a influência do rap, funk e punk, onde
os textos são cantados em cima de poucos acordes, e o
timbre da guitarra distorcida e dos tambores dão destaque. Os textos cantados pelos grupos aqui abordados
geralmente se referem à vida urbana com todas as suas
peculiaridades. As descrições de situações cotidianas são
logo bem recebidas pelos jovens dos grandes centros urbanos, podendo se identificar e espelhar nas diversas situações representadas nas músicas.
As composições do grupo Naurêa revelam um uso particular de frases que rimam, com um próprio ritmo de
palavras e o uso de temas ligados à cidade. Um exemplo
é a música Circular Cidade, um tema que faz uso do
200
modo medieval (ou nordestino). O modo é Dórico (Frígio – E) alterado, com a sexta menor. A música começa
com uma nota em Mi em forma de drone, uma nota
fundamental que serve de base para as outras notas que
a têm como referência. Observa-se que os finais das linhas melódicas terminam nesta nota fundamental. Esta
abordagem melódica pode ser encontrada em diversas
partes da Europa Sul-oriental e Sul da Europa, em ilhas
como Sardenha, Sicília, na Grécia, Albânia, Macedônia e
outras. Em Circular Cidade, a nota Mi do começo é distorcida e tocada com tecnologias do computador como
o sampler. O caráter destes modos nordestinos com o
uso do drone poderia ser interpretado como reflexo do
meio ambiente seco e quente do Nordeste, como as regiões secas ou semi-áridas do Sul da Europa. É uma das
representações musicais do sertão do Nordeste. Aqui se
encontra também outra semelhança com o mangue de
Recife dos anos 1990, ao abordar a vida urbana vivenciada por jovens das classes populares e um pouco marginalizados. A música Circular Cidade, do Naurêa:
Bateu carteira na feira
Aprontou estripulia
Tomou quatro pinga e meia
Por causa da brincadeira
Parou na delegacia
Tomou ônibus trocado
Por causa da correria
O carro foi assaltado
Ganhou buraco de bala
Sem saber da onde vinha
Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (2x)
Iê iê iê iêê na cidade
Tomou a última dose
Sozinho sem companhia
Morreu toxoplasmose
Na veia via virose
A cabeça que ardia
Viu a moça na janela
Tão bela que comovia
Paixonou-se de verdade
De manhã foi pra cidade
Cantar “lôa” de alegria
Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (4x)
Iê iê iê iêê na cidade
Ex.4 - Circular Cidade (Naurêa, 2001)
Ocorre a combinação da melodia em modo nordestino,
um padrão melódico da tonalidade em mi-maior com a
sétima abaixada. O acorde, o primeiro por efeitos eletrônicos, executado provavelmente pelo computador
ou sampler, cria um drone11, termo inglês para designar
o tom mais importante e geralmente o mais grave do
padrão melódico, que soa continuamente, como guia
para a melodia do instrumentista ou do cantor se desenvolver. O tom Mi é que é a base, na qual a melodia
instrumental e a voz terminam depois de cada frase ou
quatro frases.
AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
6 - Palavras finais
Neste artigo, observa-se o uso da poesia e o groove na
arte verbal na região do mangue com suas peculiaridades, tais como o jogo de palavras, a repetição, a rima,
uma característica, tanto nas tradições musicais das regiões rurais do Nordeste, quanto no contexto do mangue
e outros grupos urbanos. Além disto, percebe-se uma
semelhança desta arte verbal: a de correntes musicais
transnacionais como o funk e o rap norte-americano. Foi
também possível observar como o conceito do groove
adquire uma dimensão própria na música destes grupos,
com as particularidades rítmicas dos instrumentos de
tradições como o maracatu de baque virado12, o maracatu de brejão13, o côco e a embolada.
Percebe-se, no processo de misturar elementos musicais locais e nacionais com elementos transnacionais,
o desenvolvimento de novos significados na atuação e
na dimensão sonora. A interação do grupo que efetua a
performance com o público é uma maneira intrínseca de
ver as sutis maneiras de produzir significados que são
reconhecidos pelo público. Sobre este aspecto, Small
observou o seguinte:
Human beings are constantly devising new meanings for existing
gestures and new gestures for existing meanings, and it is this
element of indeterminacy, of choice, even of a degree of arbitrariness, that leaves room for creative development and elaboration. In fact, in neither verbal nor gestural languages is there a
complete one to one relationship between signifier and signified;
meanings are constantly slipping and sliding into new meaning,
mainly, as we shall see in a moment, through the power of metaphor (SMALL, 1998, p.60).14
Nas novas cenas musicais recifenses e aracajuanas,
novos significados são criados a partir de tendências
transnacionais e nacionais, e são elaborados na poesia
com jogos verbais e/ou metáforas.
Referências
AGERKOP, Yukio. Fronteiras e Movimento Cultural entre o Caribe e Salvador: o Samba-reggae, o Merengue e o Reggae.
Revista Brasileira do Caribe, Brasilia, Vol IX, No 18, jun 2009, p.389-400.
BAUMANN, Richard (1977) - Verbal Art as Performance. Illinois: Waveland Press.
BERNABÉ, J.; CHAMOISEAU P. and CONFIANT, R. 1993.Eloge de la Creolité. 2nd edition. Paris: Gallimard.
CLARKE, Richard W. (2005) - Root versus Rhizome: an Epistemological Break’ in (Francophone) Caribbean Thought. Disponível em: <http://www.rlwclarke.net>. Acesso em: jun. 2008.
DEPESTRE, René. Una Ejemplar Aventura de Cimarroneo Cultural. In: El Correo de la UNESCO, No 34, Diciembre 1981.
p 16 – 21.
FELD, Stefen and Charles Keil. (1994) - Music Grooves: Essays and Dialogs. Chicago: The University of Chicago Press.
GLISSANT, Edouard 1997. El Discurso Antillano. Caracas: Monte Ávila Editores Latinoamericana.
________Una Cultura Criolla. In: El Correo de la UNESCO, No 34, Diciembre 1981. p 32 – 38.
SMALL, Christopher (1998) - Musicking: the Meanings of Performing and Listening. Hanover: Wesleyan University Press.
SWIEGER, Andrea Hiepko. Creolization as a Poetics of Culture. Edouard Glissant´s “Archipelic” Thinking. In: A Pepper-Pot
of Cultures: Aspects of Creolisation in the Caribbean, ed. Gordon Collier & Ulrich Fleischmann (Matatu 27-28), Amsterdam: Editions Rodopi, 2003.
Referências de áudio
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Chico Science e Nação Zumbi. “Maracatu de Tiro Certeiro”, in Da Lama ao Caos.1994. Brasil.
Sulanca. Megafone. 2004. Brasil. www.sulanca.com.br
Naurea. “Fé e Umbigada”, e “Circular Cidade”, in Circular Cidade ou Estudando o Plagio. 2003. Brasil
Maria Scombona. Grão. 2001. Brasil www.mariascombona.com.br
Referências de entrevistas
DUCCI, Jorge. Aracajú, 21 de junho 2005, 2 fitas cassete (60 min). Entrevista concedida a Yukio Agerkop.
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AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.
Notas
1 A performance é um termo que aborda tópicos essenciais como o ato de fazer música, a práxis corporal, a temporalidade, conhecimentos discursivos e a repetição. Numa performance musical procuramos compreender o que o homem faz quando participa de uma ação musical, para entender
a sua natureza e a função que desempenha na vida humana.
2 O conceito de creolização primeiramente se estabeleceu depois da descoberta europeia das Américas, para descrever o processo pela qual formas de
vida do Antigo Mundo se tornaram autóctones no Novo Mundo. Hoje em dia, o termo “creolização” aparece em escritos sobre a globalização e pósmodernidade como sinônimo de hibridismo e sincretismo para ilustrar as misturas que acontecem em sociedades na era de migrações e telecomunicações. A designação histórica do termo, no entanto, se refere aos efeitos de adaptação de seres humanos quando vivem em um novo ambiente.
3 O baião é uma forma musical do nordeste que inclui dança e canto acompanhado por um acordeom (sanfona), uma zabumba, um triangulo e
eventualmente um baixo eletrônico e outros instrumentos. Forma uma parte integral da expressão musical forró, do nordeste do Brasil. O padrão
rítmico e melódico do baião é amplamente explorado por grupos musicais brasileiros.
4 All grooves and beats have ways of drawing a listener´s attention; one´s intuitive sense of a groove or beat is a recognition of style in motion […].
Linguistic shorthands-terms like groove, sound, or beat – significantly code an unspecifiable but ordered sense of something that is sustained in a
distinctive, regular, and attractive way, working to draw the listener in (FELD 1994, p.112). (Tradução nossa, grifos do autor)
5 A embolada é uma tradição musical, arte verbal do litoral do nordeste onde dois cantores alternam versos cantados de forma silábica, com acompanhamento de dois pandeiros.
6 O côco é uma tradição musical do nordeste, e inclui danças y cantos acompanhados por pandeiros y zabumbas e outros instrumentos. Em cada
região do litoral do nordeste, o coco é interpretado de forma diferente com uma instrumentação própria.
7 O maracatu é uma expressão musical do estado de Pernambuco (também no interior do estado de Sergipe), sendo tocado especialmente na época
de carnaval. Existem duas variedades, sendo o maracatu rural e o maracatu de baque virado da cidade de Recife, caracterizado por tambores alfaias,
os taróis e o gongue.
8 O funk norte-americano se origina do soul e rhythm and blues dos anos ´50 e ´60 nos Estados Unidos, onde as linhas do baixo e os padrões repetitivos da guitarra elétrica assumem um papel importante. É uma expressão musical por excelência para ser dançada.
9 Pure funk significa funk puro, a interpretação do gênero funk na sua essência, para se diferenciar dos gêneros ligados ao funk, o disco, o soul e o
rhythm and blues.
10 A dança de São Gonçalo de Laranjeiras é uma expressão musical rural do interior do Estado de Sergipe, com mais ou menos 7 cantos e danças
acompanhados por uma caixa, um violão, um cavaquinho e dois caraqajés ou puítas. Caracteriza-se por sua dança espetacular e lúdica, onde os
homens estão vestidos de saias e pintados como mulher.
11 O drone é um termo inglês para designar a nota mais importante de um sistema melódico, usualmente executada em um instrumento no caso da
música clássica indiana, ou em uma corda de um instrumento de cordas.
12 O maracatu de baque virado é uma tradição musical afro-brasileira da cidade Recife, organizado em uma corte com um rei, uma rainha, príncipes,
soldados e outros; inclui dança e é acompanhado pelos tambores alfaias e taróis, e o gongue.
13 O maracatu de brejão é uma tradição musical do interior de Sergipe, de Brejo Grande, onde existe uma comunidade quilombola Brejão dos Negros.
O maracatu de brejão é tocado com tambor zabumba, tambor de onça ou cuíca de porca, chocalho e apito.
14 SMALL, Christopher. Musicking: the Meanings of Performing and Listening, 1998. Os seres humanos constantemente inventam novos significados
para gestos existentes e novos gestos para significados existentes, e é este elemento de indeterminação, de escolha, até certo grau de arbitrariedade, que possibilita o desenvolvimento e elaboração criativa. De fato, tanto na linguagem verbal quanto na linguagem gestual, ocorre uma
relação mútua entre o significante e o significado; significados constantemente se convergem em novos significados, principalmente, como se
vê, através da força da metáfora.
Yukio Agerkop é Doutor em Etnomusicología pela Universidade Federal da Bahia, defendendo a tese com o título
“Poética de Uma Paisagem: Discurso e Atuação de Quatro Grupos Musicais da Região do Mangue” (junho, 2007).
Depois dos estudos de Musicologia na Universidade de Amsterdam (Holanda, 1996), trabalhou como pesquisador
musicológico na Fundação de Etnomusicologia e Folclore (FUNDEF, Caracas). Atualmente, trabalha como pesquisador no Centro de la Diversidad Cultural em Caracas, Venezuela. Está produzindo documentários sobre as
ilhas Dominica y St. Lucia do Caribe oriental. Realiza palestras sobre a música venezuelana e das ilhas Dominica
y St. Lucia. Desenvolveu um método para a aprendizagem da bandola cordillerana de Venezuela. Participou dos
Encontros Nacionais da ABET e do Encontro de Estudos Caribenhos em Salvador em 2007.
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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
Axé music: mitos, verdades e world music
Armando Alexandre Castro (UFBA, Salvador, BA)
[email protected]
Resumo: O artigo discute a Axé music, oferecendo elementos na tentativa de desconstrução de três mitos nela evidenciados: monocultura, baixa qualidade técnica e sua decadência. A metodologia utilizada privilegia a análise de conteúdo, tendo como meios de verificação e coleta de dados entrevistas semi-estruturadas com músicos, técnicos, produtores e empresários musicais de Salvador, além de pesquisa documental relacionada ao campo musical baiano atual.
Palavras-chave: Axé music; música popular brasileira; produção musical; world music.
Axé Music: myths, truths and world music
Abstract: The article discusses Axé music providing elements in an attempt to deconstruc three myths related to it:
monoculture, low technical quality and its decadence. The method used focuses on content analysis, departing from
verification of data collected through semi- structured interviews with musicians, technical staff, producers and music
business executives from Salvador (Brazil), along with documental research related to the musical scene of Bahia today.
Keywords: Axé music; Brazilian popular music; musical production; world music.
1. Introdução
Em El Milagro de Candeal (2004), o diretor espanhol Fernando Trueba, centrando sua argumentação em essencializações acerca da musicalidade, da cultura e religiosidade
da Bahia, apresenta o encontro entre o pianista cubano
Bebo Valdez e Carlinhos Brown. Ainda nas primeiras cenas,
Bebo Valdez confidencia ao músico, compositor e pesquisador baiano Mateus Aleluia – Grupo Tincoãs, Cachoeira,
Bahia -, o conselho ofertado a ele, em 1947, por uma Yalorixá - também cubana -, caso prosseguisse em sua investigação musical e antropológica motivada por questionamentos identitários: conhecer a cidade de Salvador, Bahia.
À beira mar, o diálogo entre os músicos é precedido de
inúmeras outras cenas que apontam indícios e entrelaces dos aspectos religiosos, culturais e musicais baianos inscritos ao longo do tempo e história, como que
atendendo às expectativas de parcela considerável de
estrangeiros e suas imagens/impressões de uma Bahia
mítica e paradisíaca plasmada nestes aspectos. A película segue. Do simpático taxista, ele recebe um sonoPER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
ro e entusiasmado “(...) Então seja bem vindo à Bahia.
Terra da Felicidade!”. Em seguida, surge a imagem da
estátua de Vinícius de Moraes instalada em Itapuã. Após
o desembarque no Pelourinho, a ida a uma das Igrejas
Católicas deste, onde presencia um ensaio musical de
Mateus Aleluia e integrantes do Grupo Musical Gêge
Nagô1. Na cena seguinte, eis que surge Carlinhos Brown
e o Grupo Zárabe, numa espécie de aquecimento pelas
ruas e becos do Candeal Pequeno, como num ensaio a
céu aberto do que aconteceria mais adiante na apresentação e aparição destes numa das festas mais tradicionais de Salvador: a festa de Yemanjá.
As imagens apresentam alguns elementos emblemáticos
da marca Bahia no mundo globalizado: música, performances, criatividade, diversidade, onde tradição e modernidade
dialogam, não raro, sem maiores incidentes. Por outro lado,
revela as estratégicas arquiteturas de veiculação e inscrição de elementos simbólicos a marcas territoriais distintivas, como no caso Bahia, a partir da seleção de elementos
Recebido em: 14/10/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
que atendem e redimensionam a imagem de uma Bahia
marcadamente étnica, exótica e espontânea, tal como
apontaram viajantes, brasilianistas e naturalistas que por
estas terras se aventuraram em outros tempos.
Das surpresas e entusiasmo dos primeiros viajantes estrangeiros, passando pelas cantigas de capoeira e requebros da portuguesa/brasileira/hollywodiana Carmem
Miranda, e chegando aos refrões pop´s da Axé music, a
Bahia (re)afirma sua inscrição e presença em parte considerável do cenário cultural internacional. Na MPB, sua
presença é central, podendo ser percebida enquanto temática e inscrição vultosa de artistas e autores que a ela
se reportaram. Numa perspectiva histórica, cantaram,
compuseram e corroboraram com tal participação, nomes
como Tia Ciata, Donga, Xisto Bahia, Dorival Caymmi, Assis Valente, Carmem Miranda, Ary Barroso, João Gilberto,
Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Raul Seixas, Moraes Moreira, Maria Betânia,
Roberto Mendes, entre outros2.
Desta fonte diversa e multicultural, o surgimento de uma
Bahia plural em sua produção musical contemporânea,
com trânsito entre o samba-chula do Recôncavo ao Rock
and Roll, de onde ainda se faz ouvir nas inúmeras cenas
musicais soteropolitanas o grito Viva Raul! Bahia do século XXI, naturalmente plural e plugada em links e wireless, consensos e conflitos, timbaus e guitarras.
Entretanto é aí que se percebe o maior desafio da produção
musical baiana contemporânea, onde poucos olhares midiáticos têm conseguido perceber tal diversidade. Não raro,
esta escassa visibilidade midiática destes diversos fazeres
musicais locais e suas complexas redes de pertencimento
e conectividade têm corroborado com o desconhecimento
ou a disseminação de discursos e textos que omitem – alguns casos – e/ou distorcem as cenas musicais soteropolitanas, reiterando a necessidade de que não basta somente produzir canções, grupos e elaborações estéticas, mas
executá-las e publicizá-las a um maior número possível de
pessoas, tal como afirma Nando Reis na obra Itaim para o
Candeal – faixa que encerra Timbalada - primeiro disco
desta banda, lançado em 1993: “(...) Gosto de tocar no rádio, o que parece óbvio, é fundamental”.
Neste sentido, se evidenciarão neste trabalho, outras
possibilidades de compreensão da Axé music, tendo como
prerrogativas centrais a díade estética e mercado. O gênero baiano massivo enquanto produção, fruição e apreciação estética, mas também sua relevante participação
e interação com as tramas mercadológicas e organizacionais. Mais uma vez, da Bahia para o mundo, música.
Desta vez, com articulação empresarial.
O objetivo deste artigo é apresentar a produção musical
baiana contemporânea denominada Axé music, ofertando elementos na tentativa de desconstrução de três mitos (monocultura, baixa qualidade técnica e sua suposta
decadência). A metodologia utilizada privilegia a análise
204
de conteúdo, tendo como meios de verificação e coleta
de dados, entrevistas semi-estruturadas com músicos,
técnicos, produtores e empresários musicais de Salvador,
pesquisa documental e de campo, além de inscrição em
boletins eletrônicos relacionados ao campo musical baiano e da indústria musical brasileira.
2. Breve História da Axé music
A breve história aqui apresentada se faz pela necessidade
de contextualização, não se configurando como objeto
central de análise3. Procura evidenciar a década de 1980,
enquanto temporalidade de legitimação dos chamados
blocos de trio4 no carnaval soteropolitano – ampliando
consideravelmente o alcance comercial e mercadológico
deste – fato que possibilitou o surgimento de novos grupos e bandas musicais.
Estimuladas e contratadas por empresários destes blocos
carnavalescos, e, seguindo parâmetros estético-musicais
apontados pelos Novos Baianos, Dodô e Osmar, Moraes
Moreira, Pepeu Gomes, Armandinho, e da religiosidade e
força percussiva apontada por blocos afro como Filhos de
Gandhi, Muzenza, Badauê, Ilê Aiyê e Olodum, iniciou-se
a formação de um relevante conjunto de novos artistas e
estrelas de trio em Salvador, tais como Luiz Caldas, Sarajane, Ademar e Banda Furtacor, Virgílio, Jota Morbeck,
Djalma Oliveira, Lui Muritiba, Daniela Mercury, Zé Paulo,
Marcionílio, Banda Pinel, entre outros.
A estética musical herdada pela Axé music é composta
por diversos estilos e gêneros musicais locais e globais,
como o frevo, o ijexá, o samba, o reggae, a salsa, o rock
e lambada, entre outros. Percussão e guitarras – baianas,
preferencialmente5 - temperavam o “caldeirão” de uma
cidade que reverbera música e etnicidade. MOURA (2001,
p.221) conceitua Axé music, a partir desta pluralidade em
sua gênese, como não sendo um gênero musical, mas “inteface de estilos e repertórios”.
Trataremos desta questão mais adiante, mas cabe salientar
que apesar desta diversidade, havia duas predominâncias
no carnaval soteropolitano até a primeira metade da década de 1980: Dodô e Osmar no quesito trio-elétrico; e o Frevo, enquanto gênero musical massivo. É Luiz Caldas quem
desloca consideravelmente estas referências, inscrevendo
não somente o trio-elétrico Tapajós, mas o ijexá nas rádios
comerciais da cidade. O Tapajós - propriedade de Orlando
Tapajós -, é palco, inclusive, da banda Acordes Verdes, que
tinha Luiz Caldas como seu cantor e idealizador6.
Em 1985, Luiz Caldas lança o LP Magia, magistral registro comercial de um artista que logo alcançaria as paradas de sucesso de boa parte do Brasil com a faixa Fricote
(Nêga do cabelo duro). Tendo como autores o próprio
Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, Fricote representava
uma musicalidade baiana de entretenimento. A ampla
receptividade da obra e deste artista com visual exótico
reforçava as dinâmicas musicais locais já existentes em
Salvador, tais como a musicalidade e a territorialidade
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
dos blocos-afro – relevantes enquanto referência estética para autores, artistas e sociedade.
A intensa presença midiática de Luiz Caldas no cenário
musical e sua associação, à época, com o jovem e promissor Bloco Camaleão; a ascensão dos blocos-afro espalhados pela cidade; o interesse e incursão das gravadoras no
campo artístico local; o apoio de empresários e radialistas
também locais, com relevante destaque para Wesley Rangel7 e Cristóvão Rodrigues8, respectivamente; o início de
uma aliança entre artistas e as forças políticas, são apenas alguns elementos e indícios que corroboram, à época,
com a situação privilegiada da Bahia no campo cultural e
artístico nacional.
O novo cenário musical baiano de meados da década
de 1980 necessitava de nome, paternidade e referências para registro. Convencionou-se, então, a partir de
inscrições e iniciativas jornalísticas: Luiz Caldas, o pai;
o LP Magia e a música Fricote, marcos iniciais. Vamos a
eles: a expressão Axé music é reforçada coletivamente
a partir de textos e críticas do jornalista baiano Hagamenon Brito que procuravam negativar tal produção
musical. Na relação inicial de seus primeiros artistas e
a Imprensa, a diminuta compreensão acerca do gênero
contemplava a dependência desta com o setor fonográfico nacional, e, quase sempre orientavam para a suposta ausência de criatividade e baixa qualidade técnica de
seus músicos e intérpretes.
A correlação de forças midiáticas e musicais, à época,
procurou, sem sucesso, ofuscar que na nomenclatura Axé
music, para além dos preconceitos e estereótipos, continha a possibilidade de fusão, do encontro entre estéticas
e instrumentos musicais distintos: Axé, representando o
afro, o tribal, o negro, o candomblé; Music contemplava
o pop, o world music, neste caso, estilizado pelo encontro
de guitarra e timbau, além da mediação pela voz em refrões fáceis e repetitivos.
Quanto à necessidade de instituir paternidade e referências, há controvérsias. Luiz Caldas, o álbum Magia e
a obra Fricote não podem ser considerados marcos iniciais, mas indícios relevantes na historiografia da Axé
music, enquanto suas primeiras e magistrais referências
mercadológicas. Deve-se considerar o caráter processual deste fenômeno, tal como Norbert Elias sugere: “(...)
nada mais inútil quando lidamos com processos sociais
de longa duração, do que a tentativa de determinar um
começo absoluto” (ELIAS, 2001, p.234). Artistas atuais,
à época, já se apresentavam e registravam lançamento
de discos antes mesmo de Luiz Caldas – Chiclete com
Banana, por exemplo, lançou em 1983 dois discos: Traz
os Montes e Estação das Cores.
O fato mais marcante é que em 1986, o álbum Magia
atinge a marca de 120 mil cópias vendidas, e a exposição
midiática e musical de Luiz Caldas, à época, representava novas possibilidades para a indústria fonográfica
nacional que, prontamente, se voltaria para a mais nova
produção musical soteropolitana. É neste contexto que
surge e se substancializa no cotidiano da cidade, mais
tarde Brasil, a música Faraó (autoria de Luciano Gomes),
elencando o Olodum e seus ensaios no Pelourinho, como
vitrine de músicas, artistas e compositores emergentes.
Nestes ensaios, artistas e autores, apresentavam e experimentavam suas músicas, em busca de legitimação popular. A ocorrência de tal aceitação representava alcançar
outras etapas da produção musical que desembocaria em
profissionais como Wesley Rangel e Cristóvão Rodrigues.
Neste breve relato, vale o registro de que o Olodum, mediante a pronta aceitação popular de suas obras, cantores
e de seu ensaio na famosa “Terça da Benção”, passou a
promover duas modalidades deste: aberto e fechado. O
“ensaio aberto” era realizado nas noites de domingo, no
Largo do Pelourinho; o “fechado”, nas noites de terça-feira, na quadra do Teatro Miguel Santana, sendo necessária
a aquisição comercial de ingressos.
Neguinho do Samba, percussionista experiente e responsável pelos arranjos percussivos da banda Olodum, apresentava boa parte de suas “experimentações” sonoras,
fundindo o samba-duro baiano e o reggae jamaicano,
chegando às células rítmicas do samba-reggae – base
rítmica predominante e característica da Axé music.
Neste sentido, GILROY (2001, p.92-98) reflete acerca da
modernidade a partir das culturas do Atlântico Negro,
caracterizada pelo seu aspecto híbrido, e não restrito
a etnicidade e nacionalismo. A Axé music pode ser incorporada às reflexões deste autor, assim como, alguns
elementos de sua gênese – por exemplo, o fenômeno
disseminador dos blocos afro-soteropolitanos -, como
mote, ou, sendo a estas pertencentes. Parte considerável
de artistas da Axé music procurou se desvencilhar desta
temática, enquanto outros a tomaram como temática
central de seu repertório.
LIMA (2002, p.77-96) corrobora com esta discussão, a
partir de três exemplos soteropolitanos emblemáticos Ilê Aiyê, Olodum e Timbalada -, afirmando existir entre
estes, trajetórias discursivas distintas envolvendo música e etnicidade. A ampla atuação nacional e internacional do Grupo Cultural Olodum realçou e impulsionou
sua dinamicidade e complexidade organizacional, dialogando tradição e modernidade a partir de ideais vinculados à etnicidade, e, em especial, aos dilemas e dramas
do afrodescendente baiano e brasileiro, como observou
DANTAS (1994, p.36).
Acerca da percussão enquanto elemento da Axé music,
ainda hoje se pode perceber a predominância desta nos
blocos afro, blocos de trio, artistas e bandas responsáveis
pela música dos blocos de corda - ainda que alguns blocos afro tenham se aventurado e solidificado experiências
percussivas a instrumentos harmônicos e melódicos. Um
dos principais precursores desta transformação, o bloco
205
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
Ara Ketu, chegou a ser acusado e criticado por se distanciar dos seus elementos e objetivos iniciais, como num
processo acentuado de descaracterização registrado por
GUERREIRO (2000, p.33-39).
As transformações não estavam restritas ao universo da
Axé music, mas à própria cidade... A década de 1980
não apresentou somente o início da aparição midiática
e estruturação empresarial do gênero em questão, mas
o início de um conjunto de transformações socioeconômicas e culturais no Estado, tais como os primeiros anos
de atividade do Complexo Petroquímico de Camaçari; da
implantação de Shoppings Centers; do maior complexo
de comunicação do Estado (Rede Bahia); da aparição
e fortalecimento de grandes organismos empresariais
carnavalescos, chamados blocos de trio (MIGUEZ, 2002,
p.252-304); do surgimento dos blocos afro e ampliação
de suas atividades, contando, inclusive, com registros
fonográficos; de encontros musicais inusitados até então, como o Concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia
com o Afoxé Filhos de Gandhi - fruto de provocações
e reivindicações de artistas e compositores baianos; de
Carlinhos Brown e seu Vai quem Vem, grupo que se desdobraria posteriormente, em sua perspectiva musical e
multi-étnica intitulada Timbalada.
MOURA (2001, p.120) sinaliza parte destas transformações enquanto modernização da cidade de Salvador,
sendo, inclusive, motivo e tema para outras formas de
visibilidade e inscrição no/do carnaval soteropolitano, assinalando a força relacional deste enquanto experiência
social comunitária que se estende aos novos modelos de
convivência urbana contemporânea. Para MIGUEZ (ibid.,
p.265), a década de 1980, então, se configura enquanto
consolidação do mercado de bens simbólico-culturais no
Brasil, iniciado nas duas décadas anteriores e, no caso
Bahia, duas dinâmicas se consolidam, prioritariamente,
na formatação e legitimação da Axé music: os blocos afro
(estética e temáticas) e os blocos de trio (mercado).
Na década de 1990, é este mercado que ativa seus mecanismos, personagens e teias midiáticas, e eleva a Axé
music, e seus principais interlocutores, ao topo das paradas musicais nacionais, reposicionando no tabuleiro
competitivo da indústria fonográfica o gênero sertanejo. Aliando a percussividade dos blocos afro aos acordes e harmonias de bandas e artistas como Luiz Caldas,
Sarajane, Reflexu’s, Daniela Mercury, Banda Eva, Banda
Beijo (Netinho), Chiclete com Banana, Asa de Águia,
entre outros, consolidou-se na agenda dos programas
televisivos, de rádio, do mercado fonográfico nacional,
sendo alvo dos interesses das gravadoras majors em
atividade no país.
O repentino sucesso comercial e midiático da Axé music
também oportunizou comportamentos isomórficos no
mercado, e inúmeros registros negativos. Um deles, a proliferação de considerável contingente de bandas, intérpretes e empresários que não privilegiaram o lado artístico
206
de suas produções, deixando na história fonográfica deste
gênero álbuns e gravações de questionável qualidade.
Numa outra perspectiva, sua extensão efetiva aos dias
atuais encontra-se diretamente relacionada ao próprio
desenvolvimento do carnaval soteropolitano, e suas múltiplas atividades inter-relacionadas. Dentre elas, destaque para os blocos de cordas, e o conjunto de organizações empresariais advindos das estrelas e artistas deste
segmento musical, motivando discussões e embates ideológicos acerca de elementos presentes e constituintes de
aspectos circunscritos a tradição e modernidade.
Entretanto, ainda hoje, não raro, a constante presença e
legitimação da Axé music no cenário musical local e nacional é marcado por dissensões e mitos – estes, compreendidos enquanto ideias não correspondentes com a verdade
do fato social. Dentre os mitos, neste trabalho, destaque
para o da monocultura, da suposta baixa qualidade técnica
e de sua tão propagada crise/decadência/desaparecimento.
3. Mito I – Monocultura da Axé Music
A compreensão de que a produção musical baiana atual
é restrita ao Axé music é equivocada (Ex.1), e, não raro,
amparada no desconhecimento da relevante diversidade
presente no campo musical baiano. Ora silenciosa, ora
invocando os meios de comunicação, parte considerável
da diversa produção musical baiana é exportada diariamente, seja na virtualidade, seja nas remanescentes lojas
tradicionais de CD´s e DVD´s, ou nos inúmeros shows e
participações de artistas baianos que se apresentam fora
e dentro da Bahia.
Composta por inúmeros artistas esteticamente vinculados ao mundo do Rock, Reggae, Forró, Samba, Samba
Junino (semelhanças rítmicas ao Samba Duro de bairros
como o Engenho Velho de Brotas), Pagode, Partido Alto,
MPB, Salsa/Merengue, Jazz, Erudito e Pop, a Bahia dialoga sua textualidade e inscrição no competitivo campo
das marcas, a partir da relação tradição e modernidade. É
bem verdade que, dentre inúmeros gêneros e estilos musicais, é a Axé music o maior exemplo de estruturação e
organização empresarial, mas não o único. Monocultura
pressupõe unidade e ausência de outros discursos e elementos estéticos – não sendo este, o caso da Bahia. A
Bahia, e em especial Salvador, congrega produção e fruição de inúmeros gêneros musicais (Ex.1).
Os elementos simbólicos podem conferir à Bahia sentidos
do Pop - de popular -, massiva e carismática, onde os
registros do percussionista do Olodum erguendo o instrumento de percussão com as cores da África já não mais
lhe pertencem... Configura-se enquanto arquivo sempre
disponível a downloads, evidenciando e disseminando a
marca de um Estado com produção musical diversificada
que, não raro, agrega e agrada, fixa e desloca constantemente sentidos identitários, (re)orientando olhares, sensações, experiências e as próprias (re)significações identitárias (HALL, 1999; CANCLINI, 2003).
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
Quadro I – Bares, Boites e Casas de Shows/Eventos em Salvador9
Bairro
Espaço/Casa de Show
Rio Vermelho
Boomerangue
Casa da Mãe
Tom do Sabor
Espaço Jequitibar/Varanda do SESI
Borracharia
All Music Bar
The Twist Pub
Paralela
Bahia Café Hall
Wet’n Wild
Parque de Exposições
Axé music, Pagode, Sertanejo, Salsa,
Forró, Pop, Rock, Reggae, Eletrônico,
Gospel, outros.
Comércio
Museu du Ritmo
Cais Dourado
Axé music, Pop Rock, MPB.
Orla
Mamagaya
Beach Beer
Pagode, Axé music, outros.
Avenida Contorno
Bahia Marina
Cais Dourado
Axé music, Pop Rock, MPB.
Ribeira
Marina da Penha
Pagode e Arrocha.
Barris
Beco de Rosália
MPB.
Pituba
What’s Up
Rock It
Pra Começar
Hit Music Bar
Pop Rock, Forró, Reggae.
Club Lotus
Bohemia
Eletrônico, Forró, Pop Rock, Axé music.
Madrre
Forró, Axé music, Pop, Funk, Pagode,
Eletrônico, MPB.
Empório
Forró, Pagode e Axé music.
Estação Ed Dez
Pagode, Forró, Axé music, Pop Rock e
Gospel.
Concha Acústica do TCA
MPB, Reggae, Axé music, Forró, Rock,
outros.
Barra
Jardim dos Namorados
Boca do Rio
Garibaldi
Campo Grande
Gêneros Musicais
MPB, Salsa, Forró, Pop, Rock, Reggae,
Eletrônico, outros.
Fonte: Pesquisa de campo do autor realizada entre os meses de março e setembro de 2009.
A Axé music, assim como os demais gêneros musicais
produzidos na Bahia contemporânea, constitui-se enquanto marca distintiva e agregadora de significantes,
relações físicas/metafísicas e potencialidades, tal como
qualquer outro gênero musical. Para NORBERTO SILVA
(2003, p.208), as significações sociais são estruturantes,
constituindo utilidade e tessituras identitárias diversas
que favorecem consumo e distinção. Não obstante, a autora aprofunda as discussões acerca da criação, utiliza-
ção e funcionalidade das marcas na contemporaneidade,
identificando, distinguindo, localizando, enquadrando e
incorporando sentidos diversos em seu processo de existência, sendo a marca, um campo simbólico que se alimenta do real (o histórico de seus produtos e obras) e
do imaginário (através da comunicação). Ou seja, as estratégias corporativas pertencentes à gestão de marcas
englobam bens tangíveis e intangíveis que se locupletam
e se (re)significam socialmente (ibid., p.188).
207
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
Esta relação - consumo e lógica social – também é analisada por BOURDIEU (1989, p.36) em considerações
acerca do fenômeno da distinção social e da sociedade
de consumo. SAHLINS (2003, p.128-161) amplia esta
discussão evocando conceitos estruturantes do capitalismo industrial e pós-industrial. Para SAHLINS (ibid., p.
209), objetos e pessoas estão “unidos em um sistema
de avaliações simbólicas, sendo o próprio capitalismo
um processo simbólico”. CASTORIADIS (2000, p.142), ao
descrever as ordens racionais existentes nos campos
simbólicos específicos, adota a expressão “universo significativo” para tal assunto.
Neste sentido, a lógica social do consumo enquanto elemento distintivo e possuidor de significações sociais e
sentidos, pode ser incorporada ao configurar a Axé music enquanto marca impulsionadora de novas lógicas e
atores sociais. ELIAS (1995, p.50) advoga que a condição
humana é desejosa de diferenciação e status, a partir de
regras socialmente instituídas e legitimadas de valores
e hierarquizações distintivas mediante o consumo. Para
ELIAS (ibid. p. 50-51), tais valores “são sempre determinados também pela nossa esperança de ver que os outros têm consciência do nosso mérito, ou pelo aumento
do nosso prestígio pessoal”. A produção cultural, neste
sentido, se constitui como elemento distintivo, tipificando sujeitos e suas representações sociais desejadas a
partir deste com o outro.
Compreendendo o campo simbólico como a territorialidade mediada pelos signos e símbolos, enquanto elementos “por excelência da integração social” que possibilitam
o consenso acerca do sentido do social (BOURDIEU, 1989,
p. 07-16), o próprio sentido de contemporâneo é constantemente ressignificado mediante as transformações
econômicas, tecnológicas e sociais também constantes.
Não obstante, a espetacularização (DEBORD, 1997, p.13)
é um dos sinais contemporâneos mais incisivos, e, sendo
assim, a produção musical baiana contemporânea aqui
apresentada se locupleta desta estrutura que mundializa
cultura(s), atribuindo novos sentidos à contemporaneidade, ao espetáculo.
Sendo assim, a Axé music, enquanto produção simbólica,
corrobora com a inscrição do produto Bahia mundo afora,
como é comum em outras territorialidades que articulam
elementos e feixes constitutivos de seu patrimônio cultural como estratégia de atratividade e mercantilização de
produtos turísticos formatados, dinâmicos e globalizados.
Para IANNI (1999, p. 124), a obtenção de renda mediante
negociação do seu espaço, das suas culturas e produções
simbólicas, além de provocar deslocamentos, integra-se
ao contemporâneo, onde:
Em todas as esferas da vida social, compreendendo as empresas
transnacionais e as organizações multilaterais, os meios de comunicação de massa e as igrejas, as bolsas de valores e os festivais de
música popular, as corridas automobilísticas, as guerras, tudo se
tecnifica, organiza-se eletronicamente, adquire as características
do espetáculo produzido com base nas redes eletrônicas, informáticas, automáticas, instantâneas e universais.
208
Eis, então, que a telemática e as convergências em redes
eletrônicas realçam o poder do simbólico contemporâneo,
contribuindo para configurar o âmbito das políticas neoliberais. Nesta lógica, no campo baiano, são inúmeras as iniciativas governamentais, não somente relacionadas à Axé
music, mas a outros gêneros. Da extinta Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia, até 2006,
projetos como o Emergentes da Madrugada, Bahia Singular e Plural, Sons da Bahia, permitiram o registro fonográfico de boa parte desta diversidade cultural do Estado.
A visibilidade, mais uma vez, no caso Bahia, ressalta
apoios do Estado aos seus artistas, uma vez que, não raro,
dada à força midiática e massiva de seus repertórios e
incursões, estrelam campanhas publicitárias estratégicas
que destacam as potencialidades culturais e naturais do
Estado para seus principais centros emissivos de turistas.
É a música e a etnicidade como elementos simbólico-culturais, e fatores motivacionais de deslocamento turístico.
O simbólico, neste caso, produzindo reconhecimento,
afetividade, representatividade – política, inclusive –
e ignora o arbitrário, o descrédito e o ilegítimo. Ainda
assim, compreendendo desta forma o campo simbólico,
não se pode excluir as outras forças e poderes nele inscritas, dentre estes, a produção artística e as relações
e conflitos daí advindos. Um deles é a competitividade
entre os próprios estados brasileiros, tendo como suporte, as suas produções artísticas e culturais de um
lado, e, do outro, a força dos meios de comunicação
aí instalados enquanto atores relevantes nas tramas da
Indústria Cultural. MOURA (1996, p.07), no caso Bahia,
observa que descartar ou não procurar evidenciar suas
potencialidades, seria equívoco:
O produtor, o mercador e a mercadoria são um mesmo todo, contraditório e desigual. Em descartando a participação desse todo
na sua diversidade, que significa inclusive potencialidades ainda
não cogitadas e exploradas, estaríamos arriscando um capital
humano fantástico, o que poderia adquirir cores sombrias em
tempos de vacas tão magras.
Em outras palavras, envolve outras possibilidades de benefícios não restritos ao Carnaval – enquanto dinâmica e
temporalidade. Enquanto dinâmica, a Axé music se substancializa em artistas/empresários locais consagrados
nacionalmente, suscitando novas atividades, necessidades, profissionais, consensos e conflitos... Enquanto temporalidade, a Axé music extrapola o circuito do carnaval
soteropolitano, numa extensa programação de shows e
micaretas que se inter-relacionam com o carnaval de
Salvador, numa espécie de retro-alimentação não restrita
às sonoridades, mas às corporações locais – produtoras,
agenciadores, editores musicais, etc.
É o mercado do entretenimento, da indústria cultural
centrada especialmente em Salvador e seu Recôncavo,
que corroboram com os alinhaves identitários, tanto no
sentido dos arcabouços sociológicos quanto naquele dos
temas econômicos. Em outras palavras, que Bahia é esta,
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
capaz de competir com transnacionais da indústria fonográfica, por exemplo, tensionando a partir de uma produção musical e fruição estética próprias? Novos e velhos
vetores de sentido (NORBERTO SILVA, 2003, p.203-223)
se inscrevem, e são estimulados, junto ao imaginário nacional e internacional acerca do lócus e ethos Bahia.
As origens embrionárias da Axé music são distintas, e,
quase numa rítmica antropofágica/tropicalista, consegue
unir, fundir céluas rítmicas e melodias, popularizando
e entretendo sem maiores reflexões ou preocupações –
fato que acentua seu caráter massivo e de entretenimento. Ainda segundo MOURA (ibid., p.221):
Por outro lado, houve críticas à participação estratégica
da Bahiatursa nos últimos anos, quando de seu apoio a
alguns artistas da Axé music em shows por outros países, tendo como contrapartida, a divulgação da marca
Bahia e de suas ferramentas publicitárias, tais como
portais eletrônicos de divulgação turística10. O fato é
que a mesma Bahiatursa também proporcionou a viagem internacional do grupo folclórico baiano Zambiapunga, entre outras iniciativas governamentais de apoio
e fomento às produções artísticas e culturais.
Vejo aí, também, o próprio ecletismo dos elementos que passam
a se encontrar nesse intrigante repertório que tantas páginas tem
merecido de jornalistas, críticos, comunicólogos e cientistas sociais. A axé music apresenta-se como texto identitário difuso e
aparentemente aproblemático e consensual, referindo-se à Bahia
como um todo, já desde o início contando com a participação de
músicos de várias origens e estilos.
O mito da monocultura pode estar atrelado à força política, econômica e empresarial dos principais artistas
deste gênero baiano. No aspecto político, se articularam relações, benefícios e interesses com governantes
e meios de comunicação. O carnaval soteropolitano, por
exemplo, vem passando por complexas modificações de
modo a atender interesses dos gestores culturais vinculados à iniciativa privada, no campo música. O tradicional e gratuito encontro de trios da Praça Castro Alves
não mais existe, e o tradicional circuito do Campo Grande apresenta sinais de decadência e de pouco interesse
dos principais artistas.
A concentração econômica dos principais artistas da Axé
music no carnaval soteropolitano é considerável. Bandas
e artistas como Ivete Sangalo, Asa de Águia e Chiclete
com Banana, individualmente, são representantes empresariais de inúmeros blocos e camarotes.
Passando ao campo simbólico, Axé music pressupõe diversidade e dela se (retro)alimenta, onde é comum seus artistas experimentarem em seus repertórios músicas inteiras,
fragmentos, ou combinações entre gêneros presentes na
produção musical baiana. Nada extraordinário, até então,
uma vez que a polissemia conceitual das experimentações
e encontros dos gêneros musicais é inerente ao próprio
conceito de gênero, numa perspectiva de que suas fronteiras estéticas do gênero musical enquanto apropriação e
categoria são tênues, distintivas e subjetivas.
Nesta direção, a confluência das formas rítmicas e melódicas de uma musicalidade das ruas de Salvador, Recôncavo
e demais regiões se interfacia com elementos da cultura
mundial pop, multiétnica, multicultural e world music11,
representando a própria “interface de estilos” sugerida por
MOURA (2001, p.220). Para GUERREIRO (2000, p.117), a
centralidade da produção musical baiana contemporânea
assentada na percussividade é que garante sua inscrição ao
universo da world music, onde funcionam mais facilmente
as fusões entre células rítmicas, entre timbres sonoros, performances, corporalidades e novos sentidos de pertença.
Passando ao campo organizacional, boa parte dos artistas
da Axé music se articulou, empreendendo suas próprias
empresas relacionadas à gestão cultural – administração
das carreiras artísticas e atividades a estas relacionadas,
tais como, selos fonográficos, editoras musicais, agências
de publicidade, estúdios de gravação, produtora de shows
e eventos, entre outras.
Pode-se perceber a preponderância dos artistas relacionados ao universo Axé music, onde boa parte dos seus
artistas é proprietária de editoras musicais, situando a
Bahia de forma representativa e relevante junto aos temas pertinentes ao direito autoral.
A Bahia vem se configurando como o terceiro estado
em número de Editoras Musicais no país (revista Sucesso CD/Show Business/ECAD/UBC–2008), sexto em
arrecadação pública, inscrevendo alguns de seus Autores na liderança de rankings nacionais e regionais no
quesito recebimento de Direitos Autorais – categoria
Execução Pública.
No campo da edição musical soteropolitana, boa parte
das Editoras Musicais é de propriedade dos artistas locais,
sejam cantores ou autores, aproximando-se do quadro do
Sudeste do País onde estas organizações - líderes deste
mercado - estão divididas entre as de propriedade das
majors12 e dos artistas locais. Em Salvador, esta atividade
é mais um dos desdobramentos evidenciados a partir da
profissionalização do Carnaval Baiano e da legitimação
da música denominada Axé music.
A monocultura do Axé music em Salvador não procede, mas apresenta indícios de que este gênero musical
apresenta evidências de profissionalização, tendo, ainda,
objetivos definidos e articulação social entre os atores,
fortalecendo o campo. DiMAGGIO e POWELL (2005, p.31)
afirmam que o campo organizacional só pode ser considerado se houver legitimação empírica e com definições
institucionais. Para tal, os autores afirmam que são necessários quatro elementos:
a) um aumento na amplitude da interação entre as organizações no campo;
b) o surgimento de estruturas de dominação e padrões de
coalizões interorganizacionais claramente definidos;
209
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
c) um aumento na carga de informação com a qual as
organizações dentro de um campo devem lidar;
d) o desenvolvimento de uma conscientização mútua entre os participantes de um grupo de organizações de
que estão envolvidos em um negócio comum.
Em 1999, visando ao maior grau de profissionalismo, solução de problemas coletivos do setor e ampliação dos
destinos e públicos da Axé music, surge a APABahia – Associação dos Produtores de Axé para o Desenvolvimento
da Música da Bahia -, comumente chamada de APA.
O surgimento e desenvolvimento da Axé music e de organismos coletivos como a APA Bahia, tanto nos aspectos estéticos quanto organizacionais, remete, em boa parte, à profissionalização e dinamismo da produção artística e musical
no Estado da Bahia. Dentre as atividades da APA, o monitoramento da execução de seus repertórios em localidades estratégicas, assim como a própria empresarização de horários
nas rádios comerciais de outros estados, visando à exposição
e execução musical dos seus associados. Não obstante, atua
no campo político, tendo representação no Cluster de Cultura e Entretenimento do Estado da Bahia.
J.R., produtor da banda Rapazzolla, sobre a diversidade
musical soteropolitana e organização empresarial da Axé
music, comenta13:
[...] o Axé é a grande referência musical atual da Bahia, mas sabemos que existem outros ritmos acontecendo na cidade. Viajamos
toda semana, mas, em Salvador, frequentamos eventos de outros
gêneros, e sempre divulgamos isso nas entrevistas. (...) A produção
de uma banda de Axé Music é muito organizada. Mais até que o
Pagode, por exemplo. Posso falar porque trabalhei como produtor
de pagode por dez anos.
Não obstante, Salvador, a partir de iniciativas de artistas
e da própria sociedade civil, vem apresentando inúmeros
eventos relacionados a outras musicalidades. Tanto quanto o Axé music, o Rock é merecedor de destaque frente a
sua estética e organização. Dedicação, profissionalismo
e amor ao Rock fizeram surgir na cena soteropolitana a
Associação Cultural Clube do Rock da Bahia – ACCRBA -,
em 1991. Exemplo emblemático no Brasil, esta associação sem fins lucrativos atua incisivamente na produção
e organização de eventos culturais, prestação de serviços
em forma de cooperativa, captação de convênios e assessoria junto às bandas de rock. Pioneira dentre as associações de Rock no Brasil, são de sua responsabilidade ações
que se solidificam na realização do Primeiro Festival de
Rock do Carnaval do Brasil (1994); Primeiro Dia Municipal do Rock do Brasil – 28 de junho, em homenagem a
Raul Seixas -, através da Lei 5404/98.
Caracteriza-se, ainda, pela articulação e intransigência
quando o assunto é desrespeito ao Rock no Estado, assim como, quando se trata de reivindicar maiores espaços
para este segmento. A ACCRBA possui site, rádio/podcast,
comunidade virtual de relacionamento, msn, fotolog, vídeos no youtube, grupos de discussão na rede, entre outros. Dentre suas realizações, destaque para o Palco do
210
Rock - realizado no Carnaval de Salvador, bairro de Piatã,
onde frequência superior a oito mil pessoas por ano14.
A receptividade do Reggae e do Forró na Bahia, por exemplo,
despertou o surgimento de eventos específicos e inúmeras
bandas destes gêneros com relevante diversidade, inclusive.
Bandas e artistas com repertórios que transitam entre o tradicional reggae - raiz, ou reggae roots -, aos mais híbridos,
com destaque para Edson Gomes, Sine Calmon, Diamba,
Adão Negro, Massai, Palmares, Mosiah, entre outros.
O Forró também soube consolidar seu cast de artistas e
agenda de contratantes. Dentre as bandas baianas, destaque para Estakazero, Colher de Pau, Adelmário Coelho,
Flor Serena, Virado no Mói de Coentro, A Volante do
Sargento Bezerra, Cangaia de Jegue, Sobe Poeira, Acarajé com Camarão, Tio Barnabé, são exemplos verossímeis
de que outros gêneros musicais se estruturaram, estética e mercadologicamente, em paralelo à Axé music, e se
fazem presentes na mídia.
4. Mito II – Baixa qualidade técnica
O segundo grande mito relacionado a Axé music é estabelecido a partir de sua suposta “baixa qualidade técnica”. Mas o que caracterizaria e fundamentaria esta
expressão? Arranjos mal elaborados? Canções repetitivas? Músicos tecnicamente pouco habilitados? Excesso
de unidade temática composicional? A participação no
campo permite afirmar que tais críticas estão alicerçadas a partir da disseminação do senso comum plugado
em desconhecimento e preconceito.
A sensibilidade e qualidade técnica dos músicos, arranjadores e diretores musicais em atividade nas bandas de
Axé music são relevantes no processo de legitimação desta, ainda que tais informações sejam restritas ao meio
musical. Assim, como em qualquer outro gênero musical
popular massivo, o virtuosismo não é regra fundante para
alcance do sucesso, necessitando, ainda, de elementos
outros - rede de relacionamentos, carisma, oportunismo,
sorte, inteligência, habilidade e senso estético.
Na Axé music, autodidatas e doutores atuam intensamente numa rotina nacional e internacional de
ensaios, shows, viagens, gravações, estúdios, etc. O
ecletismo na formação destes profissionais só corrobora com a requisitada diversidade constituinte da Axé
music, potencializando, inclusive, oportunidades, como
afirma MOURA (2001, p.197):
A princípio, o trio-elétrico tocava frevo, dobrado, marcha e passo
doble. Com a introdução de recursos do rock no instrumental e no
repertório, e em seguida do canto, ampliaram-se consideravelmente
as possibilidades de sucesso e a demanda de consumo da banda.
Músicos vinculados ao universo Axé, não raro, também
acumulam experiências profissionais em outros estilos e
gêneros musicais em Salvador, tais como o Choro, Jazz,
Samba, Rock, Funk, Forró, Eletrônico, entre outros.
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
O Rock, por exemplo, estabelece diálogo constante com a
Axé music, proporcionando informações relevantes a bandas
como Asa de Águia, Netinho, Ivete Sangalo e Jammil e uma
Noites. Estas influências são percebidas nos arranjos, nos
fraseados, timbres e agressividade de alguns efeitos, distorções e riffs de guitarra. Adail Scarpelini, natural de Aracajú/
SE, guitarrista e diretor musical da banda Voa Dois – banda
Revelação do Carnaval de Salvador 2008 -, informa que a
centralidade da produção musical para Sergipe era – para
muitos, segundo ele, ainda é - a Bahia. Visibilidade e retorno
financeiro, mas, acima de tudo, pela experiência de estar ao
lado de músicos que sempre respeitou e admirou.
Por muito tempo toquei e dirigi musicalmente bandas e cds de forró. Calcinha Preta (SE), Caviar com Rapadura (CE), Colher de Pau
(BA), mas sempre quis ter a experiência da Axé Music, da união
entre percussão/harmonia. Toquei com Netinho, e agora estou com
a Voa Dois, além de sempre estar produzindo e gravando com outros artistas. Quando as bandas de Axé iam a Aracajú, a gente ia
aos shows, procurava conversar com os músicos, lia os encartes. A
Bahia era nossa maior referência musical.
Em 2008, o Prêmio Multishow de Música Brasileira premiou
um destes renomados músicos, Radamés Venâncio, na categoria Melhor Instrumentista, enquanto Ivete, representante
de uma vertente acentuadamente pop da Axé music, foi
agraciada nas categorias de Melhor Cantora e Melhor DVD
(Multishow ao Vivo – Ivete Sangalo no Maracanã).
Detentor de inúmeros prêmios nacionais e internacionais,
Carlinhos Brown consegue aproveitar estas situações para
discursar sobre uma Bahia sempre planetária e referencial
na música nacional, exaltando a capacidade de diálogo estético da produção musical baiana contemporânea.
Sua ampla concepção musical não dispensa os ensinamentos e provocações herdadas de músicos contemporâneos - baianos ou radicados na Bahia -, como Ernest Widmer, Walter Smétak e Lindemberg Cardoso, assim como,
numa escala internacional, negocia espaços mediante
novos encontros musicais. De sua parceria com o DJ Dero,
em 2004, resulta o disco com forte influência eletrônica
Candyall Beat, que tem como principal hit a obra “Mariacaipirinha”. Lançados inicialmente na Espanha, disco
e obra alcançam sucesso, remetendo, neste mesmo ano,
Carlinhos Brown - naquelas plagas conhecido por Carlito Marron -, à condição de convidado musical do Fórum
Universal das Culturas, realizado em Barcelona.
Da parceria feita com Sérgio Mendes, em 1985,
conseguiu emplacar cinco composições no álbum
“Brasileiro” – ganhador do Grammy de melhor disco
de World Music. Em Salvador, neste mesmo ano,
recebe também o Troféu Caymmi. Inúmeros outros
prêmios vieram nos anos seguintes, coroando Brown como um dos maiores nomes da Axé music, ora
como músico, produtor ou compositor.
A preocupação com a qualidade profissional dos músicos
acompanhantes também se constitui verossímil no momento da formação das bandas. José Raimundo, tecladis-
ta, arranjador e diretor musical que acompanhou Netinho
de 1989 a 1998, declara15:
Jomar entrou no grupo em 1996... A decisão de termos dois tecladistas foi uma sugestão minha, pois usávamos muito sequencer
(programação), e sempre quis muito ter outro tecladista tocando
comigo, por conta dos muitos detalhes de teclados que minhas
duas únicas mãos não conseguiam executar. O primeiro tecladista
que tocou com a gente foi Glauton Campelo - um excelente pianista jazzista carioca que morou 8 anos nos EUA e que tocava com
Djavan ao lado de Paulo Calazans.
Arranjos, neste sentido, corroboram com a lógica de identificação e diferenciação do artista, e são inúmeros os exemplos de arranjos que se tornaram referências, remetendo,
diretamente, músico/arranjador a artista, e vice-versa.
A estética musical da Axé music encontra-se nos referenciais de timbragem e sonoridade contidos nos arranjos,
mas, também, a partir do entrosamento musical das bandas e artistas que souberam aliar a força da sonoridade
percussiva à variedade de timbres e recursos tecnológicos
contidas na organologia ocidental tradicional, como guitarra, bateria, contrabaixo, saxofone, etc. Em outras palavras, o encanto se dá pela magia e carisma do artista, seu
entrosamento com seus pares, repertórios selecionados e
previamente testados nas dezenas de shows e micaretas
realizadas durante o ano, dentro e fora do Brasil.
Entrosamento, carisma, virtuosismo e sensibilidade são
elementos referenciais nas justificativas de obtenção do
sucesso por parte dos artistas e bandas de Axé music. O
virtuosismo, na contemporaneidade, nem sempre é garantia de êxito – reconhecimento pessoal e comercial. As
musicalidades desta são frutos do encontro entre músicos formados nos conservatórios e academia, nas igrejas
e terreiros de candomblé, na generosidade presente nos
conselhos informais, e, principalmente, nas dinâmicas das
ruas da cidade que se pretende mundial a partir de seus
fazeres e saberes artísticos, em especial, a música.
5. Mito III – Fim da Axé music
A relação arte/espaço, nesta discussão, a partir da percepção imponente da produção musical baiana contemporânea no certame das condições geográficas nacionais,
evidencia uma territorialidade resoluta em suas convicções de afirmação artística perante o outro - nacional ou
estrangeiro; local ou global.
A especulação, neste sentido, acerca da decadência, ou fim
da Axé music é antiga e pode ser melhor percebida a partir
do início do século XXI, e os maiores argumentos encontram-se centrados no declínio de vendas dos produtos fonográficos, e na escassez e ausência de renovação de seus
quadros artísticos. Seus principais defensores parecem ignorar que a crise é do setor fonográfico mundial - mais
acentuadamente, do formato CD -, irrompendo-se em inúmeras fusões e desaparecimentos de gravadoras internacionais, além da migração dos artistas para as plataformas
de música online. Sendo a crise fonográfica mundial, evidente que haveria repercussão na produção musical baiana
211
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
contemporânea, promovendo quebras de contrato e desligamentos de artistas dos casts das gravadoras – fato que
impulsionou o surgimento e fortalecimento da produção
fonográfica local, com inúmeros selos, editoras, produtores
e distribuidores de menor porte.
As agendas de shows, as estratégias de diferenciação e
inscrição estética e mercadológica são elementos relevantes e não podem ser desconsiderados em tais reflexões. Não obstante, inúmeros artistas e bandas musicais
vêm sendo incorporadas ao texto da Axé music, o que
demonstra sua capacidade de renovação estética junto
às suas células matrizes advindas do samba-reggae, enquanto marca e território simbólico em processo afirmação, expansão e internacionalização.
A Axé music transcendeu, rompendo fronteiras e barreiras
mercadológicas e territoriais. Por outro lado, impulsionou o
surgimento de setores e atividades que corroboram com o
desenvolvimento da música no Estado, além de disseminar a
marca Bahia nos quatro cantos do mundo. Nos campos estéticos ou organizacionais, inovou, criando novos mercados
e possibilidades de experiências. Novas redes de profissionalidade foram, e continuam sendo implementadas na Bahia,
assim como a tessitura de uma ampla teia de relações a partir da legitimação deste gênero em outras localidades.
Por outro lado, a Axé music dinamizou o surgimento e desenvolvimento de carnavais extemporâneos pelo Brasil mais conhecidos como micaretas -, o mercado de trios elétricos e carros de apoio, a promoção de eventos, produção
fonográfica, tecnologia aplicada à musica, entre outros.
A Axé music está presente em eventos nacionais ou internacionais relevantes no showbusiness musical contemporâneo,
comprovando sua vertente pop repleta de influências e informações. Em eventos como o Axé Brasil (BH) – exclusivo
do gênero -, Brazilian Day, Festival de Montreux, Rock in Rio,
a Axé music conquista espaços. Nas edições 2008 do Rock in
Rio Lisboa e Madrid, artistas como Carlinhos Brown e Ivete
Sangalo foram recebidos por um público que, em sua maioria, conhecia e cantava seus principais sucessos.
Dentre as primeiras iniciativas de internacionalização do
gênero baiano, está a Copa do Mundo de 1990, na Itália,
como assinala o tecladista José Raimundo16:
Fomos para Copa do Mundo, na Itália, em 1990. Foi uma grande
estratégia comercial da Perdigão que levou o Trio-elétrico para
Torino. Foi o primeiro trio-elétrico que chegou na Europa de navio e montado. Na época em que estivemos na Itália, a lambada
estava no auge por lá com o grupo Kaoma. Música brasileira eles
só conheciam Caetano, Gil, Benjor, Djavan, etc. Enfim, MPB. O Axé
era conhecido por uma minoria de italianos que frequentavam o
carnaval da Bahia. Quando começamos a tocar ninguém dançava,
pois eles têm uma cultura de assistir ao espetáculo e nunca tinham visto um caminhão com um som daquele tamanho. Há um
ponto interessante nisso, pois tinha gente lá de todas as culturas,
pois era uma Copa do Mundo. Eles começaram a ficar fascinados
com o ritmo da música e, meio desajeitados, imitaram muitos brasileiros que estavam lá dançando, e começaram a entrar no clima
de festa que a Axé proporciona.
212
Desde a segunda metade da década de 1990, os responsáveis pelo Festival de Montreaux, Suíça, agendam apresentações de artistas baianos da Axé music, corroborando
com o processo de expansão e internacionalização da
carreira de seus artistas. Margareth Menezes, Olodum,
Araketu, Ilê Aiyê, entre outros.
Também o Brazilian Day – Rede Globo como uma de suas
maiores empresas articuladoras – reserva a participação
de artistas da Axé music como protagonistas. A atuação da
maior empresa de comunicação e entretenimento da América Latina junto à Axé music tem sido crescente nos últimos
anos, principalmente a partir da parceria com a Rede Bahia
– organização e registro de boa parte dos shows no Festival
de Verão, cabendo à Rede Globo a divulgação e distribuição
comercial através de sua gravadora, a Som Livre.
Outro vetor relevante na expansão dos mercados da Axé
music é o próprio Carnaval soteropolitano que - apesar
das recentes controvérsias acerca de seus custos e acentuação de seu viés comercial -, ao se profissionalizar e
internacionalizar, corrobora e termina por disseminar, a
reboque, as musicalidades e artistas presentes no evento. A lista internacional de convidados famosos é extensa, mas só para citar os anos de 2007 e 2008: a banda
irlandesa U2, o produtor musical Quincy Jones, Naomi
Campbell, Arto Lindsay, e tantos outros que ou não foram
captados pelas câmeras ou preferiram o anonimato, se é
que é possível, mas que representam a possibilidade de
maior publicização, nível internacional, de uma dinâmica
centrada, mas não exclusiva à Axé music.
Não obstante, a presença de celebridades nacionais também corrobora neste processo, pois revela a também extensa programação de shows, lavagens, festas populares,
feijoadas e ensaios, reforçando, em grande medida, a
ideia mítica de existencialidade exclusivamente festiva
do território baiano e sua gente. Nesta lógica de retroalimentação das marcas - Axé music e Carnaval -, como
que numa espécie de feedback, também é apontada por
DANTAS (2005, p.20), quando afirma a disposição da nova
geração de artistas da música baiana em “cruzar fronteiras”, corroborando no processo de legitimação e ampliação do receptivo turístico no carnaval:
O carnaval baiano dobrou de tamanho nos anos 90: de um para
dois milhões de foliões por dia participando da festa. Isso se deveu
a políticas públicas de atração de turistas? Não. Ainda que, efetivamente, as políticas públicas tenham sido fundamentais para
viabilizar infra-estrutura, equipamentos e capacitação de pessoal
para receber turistas, o que duplicou a presença desses turistas foi
a música baiana. Foi Daniela Mercury, que se tornou a maior vendedora de discos do Brasil no início da década de 1990, levando
todo o país a se apaixonar pelo samba reggae “O canto da Cidade”;
foi o Olodum, que levou a um patamar de prestígio internacional
essa sonoridade rítmica, que conquistou ícones do pop internacional, como Paul Simon e Michael Jackson; foi o Chiclete com
Banana, a Banda Cheiro de Amor, a Banda Eva, que ajudaram a
“nacionalizar” o carnaval baiano.
A etnicidade é elemento pujante neste processo, onde
não somente os blocos afro são seus representantes,
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
mas artistas como Daniela Mercury, Margareth Menezes, Timbalada, Motumbá, Ara Ketu, entre outros, se
apropriam mais incisivamente de seus discursos, símbolos e temáticas musicais.
Sobre a receptividade de turistas nacionais e internacionais com a Axé music, e demais artistas soteropolitanos
com relevante participação no carnaval soteropolitano,
o empresário Paulo Roberto, ex-proprietário da Aky Discos, que até o ano de 2001 se constituía a maior rede
de lojas de discos da Bahia, confirma o interesse dos
turistas pela Axé music 17:
Uma espécie de encanto... Os gringos e turistas nacionais chegavam na loja procurando por Olodum, Daniela Mercury, Chiclete com Banana, e quem mais da Axé Music a gente oferecesse
eles compravam. O fornecimento de CDs do Olodum para as lojas
do Centro Histórico, por exemplo, tinha de ser semanal. Era de
300/400 unidades para as maiores lojas, e volumes menores para
as lojas pequenas, toda semana.
Outro aspecto relevante na argumentação contrária ao
fim da Axé music, é a cobertura midiática internacional
do Carnaval de Salvador, que registra números ascendentes de profissionais cadastrados - fato incontestável de que boa parte do mundo já manifesta interesse
no maior evento de rua do mundo e sua musicalidade
maior. Não raro, seus artistas excursionam por diversos
países, configurando Espanha e Portugal como líderes
neste receptivo.
Sua inscrição no mercado de bens simbólicos também
contempla registros de não aceitação, aversão e restrição de sua execução pública, inclusive com leis, como
nos casos dos carnavais de Recife e Olinda, que proibiram artistas e repertórios vinculados ao gênero com
argumentos que contemplam o respeito e valorização
aos costumes locais. A medida visa salvaguardar laços
identitários com o frevo, e as danças deste, enquanto
dinâmicas culturais. Contudo, não se pode argumentar
que Pernambuco não contribua para a disseminação e
legitimação da Axé music pelo Brasil, ao contrário. O
Recifolia, carnaval fora de época, encontra nos artistas
baianos, seus trios elétricos, performances, refrões e repertórios, os moldes do carnaval soteropolitano.
Relevante exemplo de carisma na Axé music, e, naturalmente ambientada em apresentações nacionais e internacionais, a Chiclete com Banana recebeu o Prêmio Press
Award 2007, na categoria de Show Brasileiro, pelo seu
destaque nos EUA, e, em julho de 2008 apresentou-se nas
cidades de Roma, Milão, Porto e Lisboa, em eventos de
grande porte e com ingressos esgotados antecipadamente.
Artistas e empresários estrategistas, os responsáveis
pela banda Chiclete com Banana estão sabendo imprimir uma imagem e identidade musical com relevante
personalidade e apresentam um histórico de diálogo
com obras de novos e emergentes compositores. Dentre
eles, e em épocas distintas, destaque para Val Macambira, Carlinhos Brown, e, mais recentemente, a dupla Ale-
xandre Peixe e Beto Garrido, além de Paulo Prata, tem
fornecido à banda inúmeros sucessos que, após experimentações em micaretas e shows, logo caem no gosto
do público, integrando rapidamente o acervo de sites
e programas que distribuem arquivos peer to peer, vide
Youtube, e-mule, entre outros.
Ainda que não se constituam referências em técnica e
virtuosismo musical, a banda estruturou sua carreira calcada no entrosamento do grupo, no carisma de seu líder e
na escolha de um repertório sempre atualizado com o seu
público. A capacidade de performance, diálogo e construção de repertório, neste sentido, apresenta a Chiclete com
Banana como das mais relevantes bandas da Axé music,
em se tratando de discografia, inclusive (Ex.2).
Em contrapartida ao fato de, historicamente, não ter
apresentado altos índices de vendas no quesito fonográfico como Ivete Sangalo, Netinho e Banda Eva, por
exemplo, a banda mantém uma sequência regular de
registros (Ex.2) que atende seu público mais fiel, apelidado de Nação Chicleteira, Chicleteiro, Maluquetes
do Chiclete, etc. Chicleteiro convicto e apaixonado, o
promotor de eventos e produtor musical soteropolitano
Jader Santos, comenta esta relação18:
A empatia de Bell Marques sempre supera as expectativas. O cara
e a banda são demais. Sempre acompanho o Chiclete, e, além das
músicas, nunca vi Bell começar uma puxada de trio sem pedir paz
e agradecer a presença e carinho do público, do profissionalismo
que vai dos cordeiros aos empresários. Participo de dois fã-clubes
do Chiclete, um em Salvador e o outro, via internet, com alguns
amigos e amigas da Espanha. (...) Posso dizer que trabalho com
música hoje, graças a minha paixão pelo Chiclete com Banana.
Artista e defensora da Axé music em suas inúmeras
entrevistas, Ivete Sangalo pode ser considerada a protagonista de maior sucesso mercadológico do gênero.
Mesclando elementos da música pop internacional,
como efeitos de guitarra e teclados, à percussividade
local, a artista e empresária Ivete Sangalo coleciona
fama, poder, publicidade, prêmios, discos de ouro, platina, platina duplo, platina triplo, e sua presença na
mídia televisiva é certeza de audiência para uma artista que já supera a marca de oito milhões de unidades
fonográficas comercializadas19.
A sua inscrição e permanência no universo da Axé music
é intencional e motivo de orgulho, como se pode perceber
na resposta dada ao jornalista baiano Osmar Martins comumente chamado de Marrom -, publicada no Correio
da Bahia, em 24/05/2007:
Osmar Martins – Ultimamente até os críticos mais ferrenhos reconhecem e escrevem: “Ivete Sangalo, se quisesse, já teria migrado
para o pop ou até a MPB”. Mas você faz questão de afirmar que é
uma cantora de Axé. Por quê?
Ivete Sangalo – Porque sou. Nunca tentei me definir nem ser de
forma diferente, estou aí na estrada e feliz. Isso mostra o quanto
o seguimento da Bahia tem poderes especiais. Sou feliz fazendo o
que faço. A Bahia está em mim de forma inteira, e isso traz realizações e muita felicidade. Viva o Axééééééééé’!!!!!!
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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
Quadro II – Discografia Banda Chiclete com Banana
Ano
Disco/CD/DVD
Gravadora
1983
Traz os Montes
Continental
1983
Estação das Cores
Continental
1984
Energia
Continental
1985
Sementes
Continental
1986
Fissura
Continental
1987
Gritos de Guerra
Continental
1988
Fé Brasileira
Continental
1989
Tambores Urbanos
Continental
1990
Toda mistura será Permiida
Continental
1991
Jambo
BMG/Ariola
1992
Classificados
BMG/Ariola
1993
Chiclete com Banana
BMG/Ariola
1994
13
BMG/Ariola
1995
Banana Coral
BMG/Ariola
1996
Menina dos Olhos
BMG/Ariola
1997
Para Ti
BMG/Ariola
1997
É Festa
BMG/Ariola
1998
Bem me quer
BMG/Ariola
1999
Borboleta Azul
BMG/Ariola
2000
São João de Rua
BMG/Ariola
2000
Universo Paralelo
BMG/Ariola
2001
Santo Protetor
BMG/Ariola
2003
Chiclete na caixa, banana no cacho (CD)
BMG
2004
Chiclete na caixa, banana no cacho (DVD)
BMG
2005
Sou Chicleteiro
BMG
2007
Tabuleiro Musical
Sony/BMG
Fonte: Mazana/Chiclete com Banana, 2008.
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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
6. Considerações Finais
A mera e descontextualizada compreensão, neste sentido,
da suposta “crise” da Axé music, tendo como argumentação central os índices e estatísticas da indústria fonográfica é errônea, como já foi dito. Mas cabe reiterar, ainda,
que os shows se configuram a fonte maior de renda destes artistas, não a vendagem de produtos fonográficos.
A indústria fonográfica é relevante no mercado de bens
simbólicos, é bem verdade, mas sua participação não se
configura determinante e exclusivo fator ao sucesso. Seus
principais interlocutores parecem saber disso, e através
de ações individuais ou coletivas (APA, ABT, entre outros)
vêm se articulando junto a outras formas de promoção
dos seus artistas e repertórios.
O desempenho econômico do Estado - amplamente estruturado no setor de serviços -, reconhece a relevância
da Axé music e carnaval soteropolitano e, não raro, transforma seus principais artistas em estrelas de comerciais
turísticos, numa missão de disseminar a marca Bahia,
mas, também, de atender àqueles que, em níveis diferenciados, possuem percepção acerca desta territorialidade.
Por outro lado, pensar a Axé music com exclusividade
no âmbito das relações comerciais, via indústria fonográfica, de produtos individualizados e personalizados é
outro equívoco, uma vez que, anualmente, inúmeras coletâneas deste gênero musical são lançadas no mercado
nacional e internacional.
Entretanto, é inegável que o rápido sucesso deste gênero
musical baiano contemporâneo estimulou comportamentos isomórficos envolvendo mercado e estética, que terminaram por estimular o surgimento de inúmeras produções com baixa qualidade técnica, inclusive.
Pop e World Music, a Axé music é dinâmica articulada
e rizomática no mercado de bens simbólico-culturais,
satisfazendo parcela relevante de um mundo ávido por
dinâmicas musicais cotidianas do outro, do estranho, do
exótico, do efêmero e diverso.
Enquanto World Music, a musicalidade baiana denominada Axé music conjuga, exemplarmente, dois aspectos
fundamentais: referência rítmica original (percussão) e
fusão de gêneros, estilos e células musicais. O constante
diálogo entre tradição e modernidade, onde tambores e
guitarras encontram-se devidamente ensaiados e dispostos para embates, ora sonoros, ora silenciosos.
O estranhamento produz a interculturalidade necessária, que, fluída que é não se limita exclusivamente à
relevância religiosa e étnica presente nas canções dos
Filhos de Gandhi, Malê de Balê e do Olodum, numa interação constante Bahia/Mundo/Bahia; do Ilê Aiyê, pelo
pioneiro posicionamento étnico-estético; da influência
do funk no repertório da recém chegada banda Negra
Cor; do repertório e utilização de instrumentos relacionados a outros gêneros, como o violino, e sua adaptação à percussão - Vixe Mainha; de Daniela Mercury, seu
“balé mulato”, discursos, atitudes e sensibilidade artística e organizacional; de Ivete Sangalo, carisma ímpar,
repertórios e articulação empresarial.
A Axé music, em diversas unidades de análise, conseguiu
estabelecer e manter relação com os principais organismos de comunicação e entretenimento do país, para
muito além daquilo que se efetivava como seu período
de festa e auge fonográfico. O preconceito estético relacionado à Axé music não encontra lastro em seu campo
real de shows, ensaios e estratégias competitivas visando
sobrevivência no acirrado mundo dos negócios deste segmento da indústria cultural. Artistas e empresários deste
gênero musical souberam estruturar estéticas, mas também a profissionalização e autonomização de um campo.
Acima de tudo, de pessoas que cantam, dançam e atestam
a larga barra de uma Bahia notabilizada por suas próprias
canções, compositores, músicos e artistas. Artistas que se
tornaram empresários, e aprenderam a fazer e exportar a
música de um Estado com larga barra no assunto Brasil.
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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.
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Notas
1 Grupo Musical de Cachoeira, Bahia, liderado por Valmir Pereira. Com forte influência dos Tincoãs, o Gêge Nagô segue sua trilha musical fazendo a
ponte entre música, religião e os universos barroco católico e do candomblé afro-brasileiro presentes no Recôncavo Baiano.
2 Necessário reconhecer que não somente a música, mas outros agentes estéticos e artistas também inscreveram e colaboraram com a inscrição da
Bahia no cenário artístico local/global. Dentre eles, Hansen Bahia (xilogravura); Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro (literatura); Glauber Rocha
(cinema); Carybé (artes plásticas); Mário Cravo e Mário Cravo Neto (escultura);entre outras, que não se integram ao escopo deste artigo.
3 O historiador Milton Moura é a maior referência neste assunto, a partir de sua Tese de Doutoramento (2001).
4 Paulo Miguez (1996) sinaliza que os primeiros blocos de trio no Carnaval de Salvador surgem na primeira metade da década de 1970, a partir da
iniciativa de jovens de classe média-alta da cidade. A expressão remete à substituição das atrações musicais tradicionais, tipo charangas e orquestras carnavalescas, pelo trio-elétrico enquanto palco móvel para apresentação de bandas e artistas locais emergentes.
5 Na organologia, é uma variante eletrificada do bandolim, com uma estética que remete a uma miniatura de guitarra. Foi criada na década de 1940,
pelos amigos Dodô e Osmar, sendo inicialmente denominada de pau elétrico, e rebatizada como guitarra baiana no final dos anos 70. O performático músico baiano Armandinho é seu maior executante.
6 Fundada inicialmente em 1980, a banda Acordes Verdes teve duas formações. Inicialmente com Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Jota Morbeck (Voz), Toinho
Bipbop (Contrabaixo), Tan e Eduardo (Percussão). Posteriormente, a formação apresentava Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Carlinhos Brown e Tony Molla
(percussão), Cesinha (Bateria), Alfredo Moura (Teclados), Carlinhos Marques (Contrabaixo), Paulinho Caldas e Silvinha Torres (Backing Vocals).
7 Proprietário do maior estúdio de Salvador deste período (Estúdio WR), promove a partir da década de 1980, uma articulação de suas atividades de empresário e produtor musical, corroborando com inúmeros projetos musicais que integraram a Axé Music, impulsionando o
desenvolvimento desta música baiana.
8 Um dos primeiros radialistas locais que acreditou na Axé Music enquanto movimento estruturado e com perspectivas de profissionalização
(MOURA, 2001).
9 Quadro elaborado pelo autor, a partir de visita ao campo e entrevista com músicos e promotores de eventos. Para a compreensão deste quadro, é
necessário reiterar que se tratam de espaços com capacidade para pequenos, médios e grandes shows, além de: i) Os locais acima não evidenciam
a totalidade dos bares, boites e demais espaços com capacidade de realização de shows em Salvador; ii) A coluna referente aos gêneros musicais
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contempla os estilos mais preponderantes dos espaços agrupados em bairros, a partir da fala dos próprios administradores destes, e informações
eletrônicas disponibilizadas através de boletins por alguns sites de eventos. Neste quadro, não se considera a intensidade dos eventos musicais em
teatros em Salvador, ainda que, haja registros de shows nestes espaços.
O governo do Estado da Bahia é o mantenedor e gestor do site www.bahia.com.br, e disponibiliza faixas indicativas, banners e folders aos grupos
e produtores musicais que excursionam por outras cidades e países com apoio oficial.
A expressão world music compreende a fruição estética musical dos países, sendo o elemento étnico quase sempre preponderante neste processo
dialogal envolvendo gêneros e estilos musicais.
Corporações Fonográficas nacionais e transnacionais, vide Sony/BMG, Warner Chappell, Universal Music, Som Livre e EMI.
Entrevista concedida ao autor em 22/07/2008.
www.accrba.com.br
Entrevista concedida ao autor em 29/07/2008.
Ibid., 2008.
Entrevista concedida ao autor em 05/08/2008. Já tendo sido responsável por 75% do mercado da venda de discos e fitas na Bahia e alguns estados
do Nordeste. O avanço indiscriminado da pirataria virtual e física levou à redução desta rede em 2002 e encerramento das atividades no comércio
varejista em 2007. O empresário continua vinculado ao showbusiness musical, via Estação CD, atuando no setor de distribuição atacadista de cds e
dvds. Nos últimos anos, distribuiu as produções fonográficas de bandas como Timbalada, Olodum, Pimenta Nativa, Cheiro de Amor e Babado Novo.
Entrevista ao autor em 04/07/2008. O entrevistado se refere ao Maluquetes Chicleteiros Fan Club Sur Europa, sediado na cidade de San Sebastián, Espanha.
Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos – ABPD/2007. Unidade fonográfica entendida entre as mídias de suporte para os fonogramas,
podendo ser CD, DVD ou até mesmo o antigo vinil.
Armando Alexandre Castro é Doutorando pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da
Bahia (NPGA/UFBA), com objeto de tese sobre o desenvolvimento do mercado de administração e edição musical baiano.
É Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/UFBA), Especialista em História Social e
Educação e Licenciado em Música pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). É Professor Assistente do Instituto de
Música da UCSAL, e integrante do Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo (FFCH/UFBA). Autor do livro Irmãs de fé:
tradição e turismo no Recôncavo Baiano (E-papers, 2006) que trata do processo de turistificação da secular Irmandade
da Boa Morte, em Cachoeira, Bahia.
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FALBO, C. V. R. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas ... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.218-231.
A palavra em movimento: algumas
perspectivas teóricas para a análise de
canções no âmbito da música popular
Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE, Recife, PE)
[email protected]
Resumo: O presente artigo apresenta as linhas gerais de algumas perspectivas teóricas que podem ser úteis para a
análise de canções no âmbito da música popular. O eixo orientador das perspectivas teóricas aqui apresentadas é a
abordagem da canção a partir da performance da palavra cantada, ou seja, o conjunto de interações que se estabelece
entre o corpo do intérprete, notadamente sua voz, e o público no momento em que ocorre a performance da canção,
seja esta performance presencial ou mediatizada. Partimos das ideias de Paul ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) sobre performance e vocalidade procurando estabelecer um diálogo interdisciplinar com outros campos do pensamento estético,
sobretudo os estudos literários, as artes cênicas e os estudos da performance.
Palavras-chave: música popular, canção, performance.
The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the
framework of popular music
Abstract: The present paper outlines some theoretical perspectives that can be useful to the analytical practices that
focus on the song within the framework of popular music genres. The core of the theoretical perspectives presented here
is an approach of the song based on the performance of the sung word, that is, the ensemble of interactions that take
place between the performer’s body, especially his/her voice, and the audience at the moment of the performance, may
it be presential or mediatized. We began with Paul ZUMTHOR’s ideas (1993; 2005; 2007) on performance and vocality
to try to establish an interdisciplinary dialogue with other fields of knowledge, especially literary studies, theater and
performance studies.
Keywords: popular music, song, performance.
1. Introdução: a canção como objeto de estudo
Apesar dos recentes avanços no campo dos estudos voltados
para a música popular, ainda carecemos de um instrumental
teórico e analítico mais consistente no que diz respeito ao
exame dos procedimentos estéticos utilizados por compositores e intérpretes no processo criativo da canção, a forma
expressiva mais utilizada pelos artistas da música popular.
Como já alertava o pesquisador e compositor Luiz Tatit, uma
análise estritamente musical da canção não é capaz de revelar toda sua riqueza de significados, o mesmo podendo ser
dito de um exame que se restringe à letra da canção (TATIT,
2007). Outros trabalhos demonstram que, além da relação
dinâmica entre melodia e letra, a performance desempenha
um papel fundamental na construção dos significados, podendo chegar até a transformar completamente o sentido
original de uma canção (VALENTE, 2003).
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010
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A canção possui uma característica de versatilidade que
a permitiu passar por diversas mudanças ao longo do
tempo, assimilando novas tecnologias, novos padrões
estéticos e novas funções sociais, mas sempre mantendo
seu extraordinário poder comunicativo. Do universo tradicional dos acalantos, cantigas de roda e cantos de trabalho ao modismo descartável das paradas de sucesso,
a canção é uma forma expressiva de ampla inserção social, seja por meio de sua transmissão oral ou por meio
do rádio, da televisão, dos discos e dos shows. Na sociedade de consumo contemporânea, a canção continua
tendo um papel preponderante na chamada indústria do
entretenimento, ocupando lugar de destaque no debate
sobre novas possibilidades de utilização comercial da
internet, para citar apenas um exemplo.
Recebido em: 15/11/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
FALBO, C. V. R. A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas ... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.218-231.
Um importante movimento de valorização do estudo da
canção vem tomando forma em diferentes áreas do conhecimento e um dos resultados disto é o crescimento da
IASPM (International Association for the Study of Popular
Music), instituição fundada em 1981 e formada por pesquisadores de várias áreas do conhecimento, contando desde
o ano 2000 com uma seção latino-americana da qual fazem parte inúmeros pesquisadores brasileiros. Entretanto,
a diversidade das disciplinas envolvidas neste processo e
a falta de comunicação entre os inúmeros setores acadêmicos faz com que as pesquisas que vêm sendo realizadas
acabem por ter uma influência dispersa, não contribuindo
para um maior diálogo entre as distintas áreas acadêmicas nem para a construção da visão transdisciplinar que a
canção demanda enquanto objeto de estudo, por suscitar
questões relativas ao texto, à música, à performance e a
outros aspectos da expressão artística.
A canção é encarada no presente artigo como uma forma expressiva que produz significados de uma maneira
específica, na qual todos os seus elementos constitutivos
(letra, melodia, acompanhamento instrumental, performance etc.) guardam uma relação dinâmica. Deste modo,
o texto não pode ser dissociado da melodia (ou mesmo da
ausência desta), assim como ambos não podem ser considerados de maneira abstrata, mas em sua interação plena
no momento da performance, seja ela presencial (em uma
apresentação ao vivo) ou mediatizada (capturada e transmitida por meios tecnológicos).
Não pretendemos justificar o estudo da canção com a
afirmativa de que as letras de canções da música popular podem ser analisadas como obras literárias. O
principal motivo desta impossibilidade está no fato de
que, diferentemente do que ocorre com o texto literário, a letra de canção não é a canção, mas um de seus
vários elementos constitutivos, que alcançará plenitude
expressiva apenas quando percebido de forma conjunta com os demais elementos. O pesquisador americano
Charles Perrone, em estudo pioneiro sobre a poesia da
canção na música popular brasileira, afirma que “as letras de canção são destinadas à transmissão oral num
cenário musical. Se o texto é criado com a finalidade
de ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve
ser estudado na forma dentro da qual foi concebido”
(PERRONE, 2008, p.23-24). Além disso, ao justificar sua
adoção da perspectiva dos estudos literários na análise
da canção, Perrone chama atenção para as especificidades formais da canção ao mencionar o termo “literatura
de performance”, utilizado por Betsy BOWDEN (1982)1
para designar certas características das canções que
não aparecem na página impressa, como flexões vocais,
rima forçada de voz, onomatopeia, pronúncia, duração,
entoações estranhas, pausas etc. (PERRONE, 2008, p.26).
Ressaltamos que não há qualquer juízo de valor nas observações acima, mas apenas o reconhecimento de que
estamos tratando de uma forma expressiva (a canção) que
demanda um olhar analítico atento a estas diferenças. Não
ignoramos que são numerosas e significativas as relações
entre letras de canções e textos literários 2: ambos guardam entre si semelhanças essenciais, sobretudo devido à
manipulação artística de palavras e sons. Não é por acaso
que o presente artigo parte dos estudos literários tomando
como ponto de partida a performance da palavra cantada,
e muitas vezes adaptando à análise da canção perspectivas teóricas originalmente voltadas para o estudo de obras
literárias. Entretanto, ressaltamos que nosso escopo não é
comparar obras literárias e letras de canções, mas apontar
perspectivas teóricas que permitam a análise de canções
(consideradas em sua totalidade multimodal) de acordo
com parâmetros e critérios específicos ou devidamente
adaptados às suas peculiaridades formais.
A análise da canção realizada à luz dos estudos literários
costuma focar-se exclusivamente nas letras, ignorando
os aspectos musicais e performáticos que são igualmente
fundamentais na construção dos significados das canções. Estudos como o de Walter J. ONG (1999) e Paul
ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) representam importantes
marcos teóricos, pois redefinem antigos padrões vigentes na pesquisa com textos literários, ampliando alguns
conceitos de uso corrente e oferecendo um novo alcance
à própria compreensão do que entendemos contemporaneamente por literatura. Estas modificações não significam apenas uma mudança de enfoque no trabalho
com a análise de textos literários, mas também abrem
espaço para que manifestações artísticas como a canção
também possam ser analisadas sob o prisma dos estudos
literários, colocando todo um referencial teórico à disposição de uma visão ampla da palavra, que compreende
sua multiplicidade de expressão: não apenas a palavra
escrita, mas também a palavra vocalizada em diferentes
contextos, seja recitada, encenada ou cantada.
2. Voz: o corpo e o som da subjetividade
O corpo pode ser considerado a dimensão espacial da
identidade humana. Ocupamos um lugar no espaço, somos matéria, mas não apenas isso: também percebemos
o mundo de forma espacial, em sua rica multidimensionalidade, e interagimos com nosso ambiente através de
relações essencialmente espaciais. Para a artista plástica
e pesquisadora Fayga Ostrower, as vivências do espaço
são determinantes na construção do senso de identidade
e sociabilidade das pessoas:
As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de
nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultaneamente, forma das experiências vividas e imagem de seus conteúdos [...] E do mesmo modo, quaisquer conteúdos afetivos que
queremos expressar e comunicar aos outros são por nós traduzidos intuitivamente como imagens de espaço. Mesmo quando
essa comunicação se dá a nível verbal. Ao dizermos, por exemplo, que algo nos toca de modo profundo ou apenas superficial,
usamos intuitivamente imagens de espaço. Quando falamos das
qualidades de um indivíduo (um ser in-divisível), como sendo
aberto ao mundo ou fechado, como sendo expansivo ou introvertido, desligado, envolvente, atraente, repulsivo, distante, próximo, usamos sempre imagens de espaço. Não há outra maneira
possível de conscientizar, formular e comunicar nossa experiência (OSTROWER, 1999, p.86. Grifos da autora).
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A observação da artista nos permite vislumbrar uma experiência de espaço mais ampla e complexa, não restrita a
uma acepção puramente visual, como tendemos a pensar
no caso das artes plásticas, mas apontando para uma ação
conjunta e complementar de todos os sentidos na percepção dos múltiplos aspectos da realidade. Trata-se de uma
perspectiva orgânica do espaço, no sentido de sua vivência
plena pelo ser humano, sem divisões e separações.
existe outra coisa na voz, uma vez tratadas as dimensões fonológica
e idiossincrática da fala. A marca individual justaposta à marca do
significante não faz toda a voz. É este resto, nem locução nem locutor, nem língua nem indivíduo, que faz o ‘Homem’ e torna a instância da voz problemática. A instância da voz na fala, compreendida
no sentido em que Lacan fala da instância da letra no inconsciente.
Aproximação que outros já operaram, forjando o belo neologismo
‘inSOMsciente’, ‘um equivalente do inconsciente pelo som’. É esta
dimensão infralinguística e supra-individual que convém estudar
para revelar o que está em jogo na voz (BERTHIER, 1998, p.61)4.
Se, como diz Ostrower, o espaço é “tanto o meio como o
modo” de nossas experiências vivas, podemos dizer que o
corpo, enquanto dimensão espacial da condição humana,
é também nosso meio e nosso modo de ser e de estar no
mundo. O corpo nos fornece ferramentas de percepção e
interação com o ambiente e com outros indivíduos: ao
mesmo tempo em que nossos órgãos captam estímulos
externos, também os filtram e permitem que elaboremos
respostas e formulemos perguntas, em forma de novos
estímulos sensoriais num ciclo comunicativo que se estende até o fim da vida. Entre estes sinais produzidos pelo
corpo com finalidade de comunicação (os gestos, por
exemplo) nos interessa particularmente a voz.
O trecho acima deixa entrever a complexidade e mutabilidade dos fatores envolvidos nas relações entre voz e
identidade. Berthier ressalta que nossa voz não é herdada
geneticamente, sendo antes um “construto psico-histórico” em constante desenvolvimento.
Podemos entender a voz como uma extensão de nosso
corpo, revelando características próprias de cada indivíduo. Paul Zumthor, ao comentar as relações entre a língua escrita e falada, nos diz que:
Não se pode imaginar uma língua que fosse unicamente escrita.
A escrita se constitui numa língua segunda, os signos gráficos remetem, mais ou menos, indiretamente às palavras vivas. A língua
é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é
mais ampla do que ela, mais rica [...] Assim, a voz, utilizando a
linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca
como uma presença (ZUMTHOR, 2005, p.63).
Esta observação de Zumthor pode ser relacionada com
as ideias de Barthes sobre o que este último chamou de
“grão da voz”, como veremos mais adiante, no sentido
de que a “presença da voz” também significa a presença
de um indivíduo que faz uso de sua voz (seja falando,
cantando, gritando etc.). Na voz está inscrito o corpo de
quem a emite, pois a voz também está ligada ao aspecto material, concreto, corporal da identidade individual,
explicitando traços pessoais e culturais desta identidade.
A voz é um dos primeiros instrumentos de que dispomos como meio expressivo, o som vem antes do gesto
ou da escrita e configura-se como o primeiro traço de
nossa identidade. As crianças choram ao nascer: uma
primeira manifestação de vida, inegavelmente sonora.
Esta relação de identidade que estabelecemos com a
voz, entretanto, é mais complexa do que pode aparentar. O pesquisador Patrick BERTHIER, ao comentar as
inovações tecnológicas voltadas para atividades como
a decodificação acústico-fonética e reconhecimento do
locutor3, chama atenção para o fato de que existe uma
grande variedade de elementos que fogem ao alcance
da análise acústica e tornam estes processos extremamente complexos, quando não impossíveis do ponto de
vista técnico. Conforme Berthier:
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A voz é considerada um objeto de estudo “fugidio” no
dizer de Elizabeth Travassos, ao analisar algumas perspectivas teóricas ligadas ao estudo da voz nos campos
da musicologia e etnomusicologia. Ela constata a grande
carência de termos técnicos precisos que permitam uma
abordagem analítica satisfatória das várias modalidades
de expressão vocal, sobretudo do canto, chamando atenção para o fato de que
na literatura acadêmica e científica, encontram-se pelo menos
três grandes vertentes de abordagem da voz e do canto: descrições naturalizadoras do corpo e do som, que não se pode ignorar
nem incorporar irrefletidamente; tipologias vocais válidas para o
canto erudito, repletas de orientação para a prática e comprometidas com uma pedagogia vocal; estudos etnográficos da fala,
do canto ‘popular’ e ‘étnico’. Começam a desenvolver-se, também,
inventários e análises dos recursos vocais técnicos e estilísticos
dos cantores populares (TRAVASSOS, 2008, p.117).
A pesquisadora conclui pela necessidade de promoção de
um maior diálogo entre estas distintas áreas do conhecimento como forma de se alcançar uma compreensão
mais abrangente da voz e de suas manifestações.
Esta complexidade que cerca a voz também pode ser observada no que diz respeito à plurifuncionalidade dos órgãos que compõem o aparelho fonador humano. A boca,
como exemplifica Lucia Santaella, serve à satisfação de
necessidades fisiológicas (comer, beber, respirar), mas
também está envolvida com o prazer, sendo difícil separar
estes dois aspectos nas funções que desempenha, sobretudo no processo que origina a fala, já que esta
não se coloca apenas a serviço da comunicação e interação dos
seres humanos entre si e destes com o mundo. Ela também pode
produzir um excedente de prazer. Assim como da função de comer
se acresce o prazer da degustação, na fala está inscrita a possibilidade do canto. Encantamento do canto: fala transmutada em
prazer (SANTAELLA, 2002, p.37-38).
Além disso, sabemos que é impossível falar da voz como
fenômeno isolado, sobretudo quando percebemos a intensidade de sua conexão com a audição: não podemos
produzir sons vocais se não formos capazes de ouvi-los.
Desde antes de seu nascimento, o feto humano já é capaz
de ouvir sons, notadamente a voz de sua mãe, e a audição
desempenha um papel fundador nesta fase primária de
percepção do mundo. “De acordo com o musicólogo Iegor
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Reznikoff é o ouvido, quando percebe as diferentes frequências sonoras (alturas), que constrói a noção de espaço
no ser humano, e não o olho, ao contrário do que se tem
afirmado até agora” (VALENTE, 1999, p.102).
A voz desempenha funções determinantes em situações que envolvem o bebê desde muito cedo na vida
humana. O pesquisador Gil nuno Vaz cita o exemplo do acalanto, modalidade de canção que mistura
o canto, a fala e o movimento corporal em síntese
harmoniosa e eficaz:
A canção é realizada em sua plenitude apenas pela voz da mãe, produzindo sons com certo modo de emissão (canto) e intenção (fala) e
usando os braços (movimento) para imprimir um balanço ao corpo
da criança, embalando-a até adormecer. A contenção desses modos
em um campo expressivo mínimo, representado pela Canção, serve
à repetição contínua, e quase que hipnótica, de uma forma simples e
curta que induz ao estado de sonolência (VAZ, 2007, p.19).
Percebemos que, no exemplo do acalanto, a voz desempenha um papel central que conjuga elementos de naturezas diversas (música, linguagem verbal e movimento),
canalizando sua força expressiva para uma finalidade específica. Esta capacidade agregadora da voz é de extrema
importância para a análise da canção e de sua performance, como veremos mais adiante.
A cantora e psicanalista Marie-France Castarède, em
busca de uma abordagem psicanalítica da voz, associa
a forma do acalanto entoado pela voz materna ao “sentimento oceânico” considerado por Freud a base da religiosidade humana. Nesse sentido, o acalanto seria paradigmático como restituidor da sensação de plenitude do
bebê no ambiente do útero materno, perdida logo após o
nascimento. Assim escreve Freud:
Uma criança recém-nascida ainda não distingue seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela
deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de
excitação, que posteriormente identificará como sendo seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer
momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe
fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o
seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de
socorro (FREUD, 1976, p.84).
O grito do recém-nascido representa bem mais que um
sinal de descontentamento ou protesto, ele assinala a
descoberta de um novo meio de expressão que passará
a ser utilizado de maneira cada vez mais deliberada e
articulada pelo indivíduo. Um meio de expressão que ultrapassa o utilitarismo da comunicação para inscrever-se
também como ferramenta de tradução do indizível: a voz.
Do grito à fala articulada em linguagem, o longo e complexo percurso da voz acompanhará o desenvolvimento
do sujeito e sua transmutação em um ser capaz de manipular relações simbólicas por meio da linguagem.
A partir dos processos descritos por Freud, Marie-France
Castarède posiciona a voz como agente mediador entre o
corpo e a linguagem no processo de formação do sujeito:
Se o grito é a primeira expressão afetiva, a voz vai lhe suceder,
introduzindo fenômenos sonoros especificamente humanos, como
as vibrações harmônicas. Ela é mediadora entre o corpo e a linguagem [...] A voz é mediação, não apenas para o sujeito em si
mesmo, entre seu corpo e a língua, mas com a voz do outro. Ela se
encarna em um ‘discurso vivo’, para retomar a expressão de André
Green. A fala levada pela voz é diferente do pensamento, pois ela
é resultado de uma descarga motora. Falar de viva voz ao outro é
se descarregar (CASTARÈDE, 2004, p.134).
Por meio da voz (e da escuta, evidentemente) o ser humano vai construir seu estatuto de sujeito. A voz desempenha um papel essencial no desenvolvimento da noção
de Eu, que vai possibilitar sua interação com o Outro; ela
representa uma espécie de ponte entre corpo e linguagem, identidade e alteridade.
3. Música das palavras: som, significado e signo
Podemos pensar o caminho do som ao significado como
uma série de “estágios” que levariam o ser humano da vocalidade pura do bebê (a princípio, apenas sons sem qualquer vinculação necessária com significados linguísticos)
até o desenvolvimento destas potencialidades vocais em
linguagem verbal, codificada, convencional. Este trajeto
pode ser interpretado como uma passagem, ou evolução,
de um uso “natural” da voz, onde há uma clara prevalência do som, até seu uso “cultural”, determinado pela
dinâmica simbólica da linguagem. Entretanto, a prática
nos mostra que esta separação é reducionista e esconde
mecanismos mais complexos na utilização da voz pelo ser
humano. O músico e professor canadense Murray Schafer
propõe uma gradação entre dois pólos extremos: de um
lado os vocábulos isoladamente considerados e sons vocais manipulados eletronicamente (representando o máximo de som), de outro, a fala deliberada e articulada em
linguagem (o máximo do significado) (SCHAFER, 1992,
p.240). Esta gradação não implica um caminho sem volta
do som à linguagem, mas nos permite vislumbrar uma
série de formas de expressão intermediárias entre som
e significado que são usadas simultaneamente, de diferentes maneiras em diferentes contextos sociais, sem que
guardem entre si qualquer relação hierárquica.
Toda linguagem verbal tem uma musicalidade própria. A
articulação das palavras e seus significados na fala revela elementos essencialmente musicais como o ritmo e a
variação das frequências sonoras, ou alturas (melodia). A
característica melódica da fala é identificada pelos tonemas, definidos como “traços entoativos localizáveis em determinados pontos do discurso. A afirmação, a resignação
e a constatação implicam no movimento melódico descendente, enquanto contentamento, exclamação e surpresa
determinam o movimento melódico ascendente. É nessa
medida que um ouvinte, ignorante de uma dada língua, é
capaz de captar algo da mensagem comunicativa, pois é
sensível à expressividade da enunciação” (VALENTE, 1999,
p.110). Assim, não podemos falar de uma separação entre
som e significado, pelo contrário, ambos mantêm uma relação complementar na expressão vocal. Por mais elaborado
que seja, o discurso verbal não prescinde destes elementos
musicais para complementar ou reforçar expressivamente
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os conteúdos que quer veicular. Mesmo em uma sofisticada exposição oral, ainda podemos ouvir pulsar ritmos e
sons que remontam àqueles primeiros balbucios do bebê,
extremamente ricos em articulação sonora, mas ainda não
adaptados (ou reduzidos) ao sistema simbólico da linguagem. Podemos, então, aplicar a este caso a já mencionada
gradação proposta por Schafer para relacionar os pólos
ideais da entoação (voz falada) e do canto (utilização musical da voz), percebendo que existem igualmente várias
gradações de mistura entre eles e que uma separação completa seria impossível.
Alfredo BOSI chama atenção para o som no signo linguístico5 lembrando a célebre expressão de Ferdinand de
Saussure, quando este referiu-se à linguagem humana
como “pensamento-som”. Conforme Bosi, os signos da
linguagem escrita estão profundamente ligados à sua
origem sonora, mais especificamente vocal:
O signo vem marcado, em toda sua laboriosa gestação, pelo escavamento do corpo. O acento que os latinos chamavam anima
vocis, coração da palavra e matéria-prima do ritmo, é produzido
por um mecanismo pr
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