a indagação filosófica - cchla

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Último draft do livro de metafilosofia publicado pela EDUFRN. C. F. Costa –
ppgfil/UFRN
A
INDAGAÇÃO
FILOSÓFICA
POR UMA TEORIA GLOBAL
________________________
CLAUDIO F. COSTA
EDUFRN
Natal, 2005
1

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Heráclito
Nun scheint mir, gibt es ausser der Arbeit des
Kunstlers noch eine andere, die Welt sub
specie aeterni einzufangen. Es ist – glaube ich,
der Weg des Gedankens, der gleichsam über
die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie ist
– sie von oben von Fluge betrachtend.**
Wittgenstein
Science is what we know; philosophy is what
we don’t know. (…) Science is what we can
prove to be true; philosophy is what we can’t
prove to be false.
Bertrand Russell
_____________
* A sibila com boca raivosa proferindo palavras sem riso, sem adorno e
sem incenso, alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita.
** Assim parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de
capturar o mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento
que, por assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de
cima, de seu vôo.
*** Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...)
Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não
podemos provar que é falso.
2
SUMÁRIO
PREFÁCIO, p. 6
I.
INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA, p. 8
1. Observações Metodológicas
II.
FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL: UM CASO DE
DEFINIÇÃO REDUTORA, p. 15
1. Os atalhos da crítica da linguagem
2. Filosofia como análise da linguagem
3. A falácia objetual na filosofia analítica
4. Observações conclusórias: paralelo com o Organon aristotélico
III.
FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA
CIÊNCIA, 45
1. O caráter inevitavelmente conjectural da indagação filosófica
2. A idéia da filosofia como protociência
3. Origens e divisões da ciência
4. Alguns exemplos de insights filosóficos protocientíficos
5. Fissão
6. O núcleo resistente de problemas filosóficos residuais: duas
hipóteses
7. Nossa idéia geral da ciência
8. Por uma concepção não-restritiva de ciência
9. Por que conceber a filosofia como um empreendimento
protocientífico?
10.Conseqüências da concepção proposta
IV.
RELIGIÃO E OS REMANESCENTES
FILOSOFIA, p. 87
1. Filosofia e religião: a abordagem genética
2. A lei comtiana dos três estágios
3. Uma breve avaliação da lei de Comte
MÍSTICOS
DA
3
4. Filosofia como uma indagação transitória entre religião e
ciência
5. Conclusões
V.
VI.
A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE, p. 117
1. O sabor artístico de alguns escritos filosóficos: similaridades
externas
2. Similaridades internas entre filosofia e arte
PARA UMA EXPLICAÇÃO GLOBAL: INTEGRANDO AS
CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS, p. 126
1. Filosofia como uma atividade cultural derivada
2. Uma explicação integradora da atividade filosófica
VII. COROLÁRIOS E PROSPECTOS, p. 137
1. Formas da Filosofia
2. Três fases históricas na evolução da filosofia
3. A filosofia lingüístico-analítica nas rodas da história
4. O futuro da filosofia
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
4
PREFÁCIO
O presente texto é uma versão em português e ampliada do livro The
Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA: Langham, 2002),
que escrevi enquanto pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em
Berkeley, em 1999.
Meu objetivo nesse livro é esboçar uma teoria global da natureza da
filosofia, mais sistemática e complexa e talvez mais concludente do que
eventuais concorrentes. Essa teoria é global no sentido de envolver qualquer
espécie de indagação filosófica, o que só se torna possível por ela ter sido
desenvolvida a partir de uma ampla perspectiva histórico-cultural. Essa
perspectiva mais ampla nasce de uma investigação das conexões da filosofia
com as atividades culturais mais fundamentais, que são a ciência, a religião e
a arte. Em sua relação com as últimas a filosofia é identificada com uma
atividade cultural derivada, cuja identidade resulta dela ser uma espécie de
amálgama de elementos provenientes do pensamento científico, da religião e
da arte.
Semelhanças e diferenças são investigadas. Em sua proximidade com a
arte a filosofia pode ser concebida à maneira de uma “arte da razão”,
unificando e integrando elementos conceituais com uma liberdade e
flexibilidade próximas daquela com a qual a arte unifica e integra os
elementos sensíveis (uma semelhança que vemos confirmada pela idéia
freudiana de processo primário de pensamento, posto que tanto a filosofia
quanto a arte seriam produto do processo primário, definido como aquele
cujas cargas afetivas são móveis, por não se associarem rigidamente a
5
representações correspondentes). Em sua proximidade com a religião, a
filosofia tende à maior amplitude em suas sínteses, as quais inevitavelmente
contém elementos especulativos e não-cognitivos, que necessariamente vão
além daquilo que pode ser consensualmente obtido como resultado concreto
da investigação.
Por fim, em sua proximidade com a ciência, a filosofia é um esforço
cognitivo direcionado à aproximação da verdade e a resultados efetivos,
mesmo que nunca chegue a alcançá-los. As relações entre filosofia, arte e
religião são dinâmicas, alterando-se no curso da história: pode ser notado
que com o gradual, mas constante, desenvolvimento da ciência, a filosofia
tende a afastar-se da religião e da arte para aproximar-se aos poucos da
ciência.
Essa característica dinâmica da relação entre filosofia e ciência nos leva a
supor que a primeira possa ser pensada como um esforço conjectural ou
especulativo antecipador da ciência – como uma protociência. Tal suposição
– que é central ao texto – foi muitas vezes considerada como limitadora e
empobrecedora de nossa compreensão da atividade filosófica. Essa objeção
certamente procede quando se tem em vista uma concepção positivista ou
reducionista da investigação científica. Contudo, o conceito de ciência por
mim adotado é muito mais liberal e flexível, sendo a idéia básica de há
muito conhecida por filósofos que investigam o modo de funcionamento da
comunidade científica, como é o caso de John Ziman, que definiu a ciência
em termos de conhecimento público consensualizável. Seguindo as mesmas
linhas de Ziman, defendo que a concepção mais intuitiva e plausível da
natureza da ciência é a de que esta é toda e qualquer investigação que tem
por fim a verdade, conquanto esta seja gerada por uma comunidade crítica
de idéias (capaz de satisfazer exigências de objetividade, racionalidade,
6
liberdade etc.), de tal modo que esta última seja capaz de obter um acordo
consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade de seus resultados. Frente a
uma concepção tão liberal de ciência, a filosofia evidencia-se naturalmente
como o seu pendant protocientífico. Pois ela se torna simplesmente aquela
indagação objetivadora da verdade, que embora gerada em uma comunidade
crítica de idéias, ainda não se tornou remotamente capaz de alcançar um
acordo consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade dos seus resultados.
Uma conseqüência importante de aceitarmos uma concepção de filosofia
como conjectura antecipadora da ciência é relativizar – e não simplesmente
refutar – a idéia de que a filosofia consiste em uma atividade de análise
conceitual. O que chamamos de filosofia analítica – a filosofia como análise
conceitual – passa a ser apenas a filosofia como antecipação de uma ciência
da linguagem (Austin), ou então, como resultado de progressos semióticos
típicos do século XX (que incluem o uso da lógica dos predicados e a análise
dos usos ordinários das expressões), simplesmente a filosofia marcada pela
ênfase propedêutica no elemento lingüístico-conceitual, no acento semântico
(Quine), capaz de prevenir confusões lingüístico-conceituais, e, em adição a
isso, capaz de tomar em sua devida consideração a nossa presente imagem
científica do mundo.
Gostaria de expressar meus agradecimentos ao professor John R. Searle,
por ter me aceito em Berkeley, e à CAPES, pela concessão da bolsa de pósdoutorado sem a qual o presente livro não poderia ter sido escrito.
Natal, 2005
7
I
INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA
Entre os muitos problemas filosóficos, o problema da natureza da
filosofia não é certamente o mais importante ou excitante. Não obstante, ele
é um dos mais desconfortáveis para o filósofo. Pois como pode alguém
pretender fazer filosofia, ou fazê-la corretamente, se não é sequer capaz de
nos dizer o que está tentando fazer? Esse livro é um esforço no sentido de
fornecer uma explicação geral da natureza da indagação filosófica, não sob
uma perspectiva particular, mas com base em um exame abrangente da
filosofia em seu desenvolvimento histórico e em suas conexões com outras
atividades culturais.
Uma objeção feita freqüentemente à tentativa de prover uma explicação
unificada da natureza da filosofia é a de que se trata de uma matéria tão
multifacetada e mutável, que qualquer esforço para capturá-la em um
apropriado arcabouço teórico estará destinado ao fracasso. Não se pode
classificar núvens por suas formas, como uma vez notou Wittgenstein. No
entanto, não seria possível investigar a filosofia teoreticamente, se acaso
fossemos capazes de determiná-la com base em critérios originados de uma
perspectiva suficientemente genérica e flexível? Afinal, de um modo geral,
ao menos, há muito que a meteorologia classificou os tipos de núvens, ao
menos, por suas formas. Nos próximos capítulos mostrarei que uma
8
aproximação teorética geral da natureza da filosofia é possível. Neles, uma
sucessão de argumentos será reunida de modo a criar um arcabouço teórico
suficientemente abrangente e poderoso para nos prover dos meios capazes
de identificar e mapear o território filosófico. Antes de começarmos, porém,
algumas considerações metodológicas precisam ser feitas.
1. OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS
Há dois pontos metodológicos a serem considerados. O primeiro diz
respeito à distinção entre duas diferentes abordagens da natureza da
filosofia: a prescritivista e a descritivista.
A abordagem prescritivista ambiciona dizer o que a filosofia deveria ser;
ela é uma proposta para o que deveria ser chamado por esse nome. A
definição sugerida por Carnap, segundo a qual a filosofia é uma investigação
da sintaxe lógica da linguagem científica(1), a concepção de Heidegger da
filosofia como a ciência da seridade do Ser (do Ser em si)(2), a concepção
wittgensteiniana da filosofia como uma terapia contra o enfeitiçamento de
nosso entendimento pelos meios da linguagem(3)... tudo isso foram
prescrições, propostas concernentes àquilo que esses filósofos acreditavam
que a filosofia deveria ser. Uma abordagem prescritivista não pode ser dita
verdadeira ou falsa simplesmente ao ser comparada com a praxis histórica
real da filosofia, pois não é uma abordagem feita com a intenção de
representar essa praxis. Com relação a essa praxis, a abordagem
prescritivista somente pode ser bemsucedida, se adotada, ou malsucedida, se
não adotada. E de fato, algumas abordagens prescritivistas foram
bemsucedidas nesse aspecto. A virada epistemológica inadvertidamente
imprimida à filosofia moderna por Descartes foi uma prescrição
9
bemsucedida, pelo menos por algum tempo. E o mesmo pode ser dito sobre
a virada lingüística que Frege, Russell e Wittgenstein imprimiram à filosofia
do século vinte. Dizendo o que a filosofia deveria ser, a abordagem
prescritivista permanece desinteressada da prática passada da filosofia. Para
dizer figurativamente, ela “olha para o futuro”.
A abordagem descritivista, por sua vez, não pretende dizer o que a
filosofia deveria ser, mas o que a filosofia de fato tem sido. Ela “olha para o
passado”, tentando tornar explícitas as condições criteriais que a
comunidade filosófica implicitamente admitiu para a identificação da
filosofia, em seu sentido técnico ou acadêmico, durante toda a história dessa
disciplina, ou ao menos com relação a alguns de seus segmentos históricos
ou regionais. Abordagens descritivistas constituem o tipo de explicação mais
provavelmente encontrado em dicionários de filosofia e em livros-texto do
que nas doutrinas dos filósofos, pois os últimos costumam estar mais
comprometidos com o avanço de suas próprias perspectivas pessoais,
freqüentemente revisionárias. Entretanto, quando C. D. Broad definiu a
filosofia como a busca de uma concepção geral do mundo e do lugar do
homem nele(4), quando G. E. Moore sugeriu que a filosofia, entre outras
coisas, é uma tentativa de fornecer uma descrição geral das mais amplas
classes de coisas do universo e do modo como elas estão relacionadas umas
com as outras(5), quando Ernst Tugendhat escreveu que a filosofia é a
elucidação da rede formada pelos conceitos constitutivos de nosso
entendimento como um todo(6), o que esses filósofos estavam tentando fazer
era satisfazer um paradigma descritivista, na medida em que tentavam cobrir
tanto quanto possível a extensão do que sempre foi chamado de filosofia.
O tempo parece trabalhar a favor das abordagens descritivistas, pois é
possível que com o passar do tempo o espaço para as abordagens
10
prescritivistas se torne sempre menor, enquanto o espaço para as abordagens
descritivistas certamente se torna maior. Se um dia a filosofia chegar a um
fim, não restará mais espaço para propostas. Hoje, quando alguns sugerem o
declínio ou mesmo do fim da filosofia, a abordagem descritivista parece se
tornar mais a mais interessante. Dessa espécie será, com efeito, a abordagem
metafilosófica adotada nesse livro.
É importante tornar claro em que sentido falarei de ‘filosofia’ sob a
perspectiva descritivista. Não é no sentido vernacular da soma das crenças
não examinadas geralmente mantidas pelas pessoas de maneira a dirigir as
suas vidas, e também não é em nenhum sentido popular, como quando se
fala da filosofia como sabedoria condutora da existência humana. A
investigação ficará aqui restrita ao sentido próprio, técnico, culto, acadêmico
ou erudito da palavra, o sentido no qual a tradição filosófica ocidental tem
usado para referir-se a si mesma e que se encontra paradigmaticamente
exemplificado nas obras dos mais proeminentes filósofos dessa tradição. Ao
tornar esse sentido erudito explícito, espero poder fazê-lo com os critérios
pelos quais usamos a palavra “filosofia” referencialmente, de maneira a
identificar o que lhe pertence e o que não. Mais do que isso, quero realizar
um esforço de fundamentação, justificando a existência de tais critérios de
identificação ao evidenciar que eles podem ser derivados da “localização
epistêmica” da filosofia no território da cultura, ou seja, de sua relação com
três atividades culturais fundamentais, que são a ciência, a religião e a arte.
Mas o que nos intitula a esperar que seja possível oferecer uma
explicação unificada da natureza da filosofia? A tarefa parece prima facie
plausível porque não apenas temos (talvez enganosamente) o sentimento de
que o termo “filosofia” possui algum tipo de sentido erudito ou acadêmico
unificado, mas também porque pessoas adequadamente treinadas são
11
capazes de distinguir com alguma segurança o que conta ou não como
filosofia nesse sentido. Disso parece seguir-se que, por meio de um exame
suficientemente cuidadoso das aplicações do termo, nós seríamos em
princípio capazes de tornar explícitas as condições que têm guiado nossas
decisões de usá-lo ou não, explicando-as e organizando-as na forma de uma
caracterização ou teoria metafilosófica global. Embora não deixe de ser
possível que o termo “filosofia” não tenha qualquer sentido técnico unívoco,
adotarei a tese de que tal sentido exista como uma hipótese de trabalho para
ser avaliada através de seus resultados.
Também poderia ser objetado o seguinte. Somos admitidamente
inconscientes dos critérios que aplicamos para identificar os designata de
termos gerais centrais de nossa linguagem natural, como “conhecimento”,
“verdade”, “bem”. Eles estariam exprimindo categorias atemporais do
pensamento, incrustradas em nossa compreensão do mundo desde tempos
imemoriais. Mas o termo “filosofia” não pertence a essa classe, sendo de
surgimento muito mais recente, não havendo associada a ele uma gramática
criterial implícita a ser resgatada. Que essa objeção é insuficiente pode ser
mostrado quando consideramos que também somos inconscientes dos
critérios de aplicação de termos técnicos ainda mais recentes, como “teoria”,
“explicação”, e “observação”, tal como são usados nas ciências. Se
perguntamos ao cientista filosoficamente não-informado o que significa
“explicação científica”, ele terá grande dificuldade de dar uma resposta
articulada, sendo forçado a apelar para exemplos. É tarefa do filósofo da
ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos. Ora, por
que não poderia essa idéia aplicar-se também à filosofia em si mesma? De
fato, o conceito de filosofia foi introduzido em nossa cultura acadêmica há
longo tempo, sofrendo subseqüentemente um desenvolvimento próprio, um
12
desenvolvimento aparentemente sustentado pela natureza própria da
atividade filosófica e do que lhe pode ser dado como objeto de investigação.
Se pudéssemos tornar explícitos os critérios para a identificação do que
chamamos de filosofia de uma maneira que também esclareça por que
precisa ser assim, provendo um rationale para o uso da palavra, uma teoria
da natureza da filosofia, nós chegaríamos a uma análise filosoficamente
interessante desse conceito. Através dessa análise, nós não só estaríamos
entendendo melhor o que o filósofo está tentando fazer, mas também
prevenindo a prática enganosa de filosofia.
O segundo ponto que desejo endereçar diz respeito a dois perigos opostos
com os quais nos defrontamos em questionamentos metafilosóficos. O
primeiro pode ser chamado de pobreza. A definição de filosofia como uma
explicação do mundo como um todo e do lugar que o homem nele ocupa,
embora muito inclusiva, é por certo excessivamente vaga e pouco
informativa. Além do mais, se nós a considerarmos mais de perto, veremos
que ela não é bem sucedida em nos prover sequer de uma condição
necessária, posto que há muitas filosofias que não chegam a fazer isso, e
menos ainda de uma condição suficiente, posto que a religião também é
capaz de fazer o mesmo. A pobreza limita a maioria das explicações
descritivistas. Buscando escapar dessa vacuidade, freqüentemente chegamos
a obter sucesso em dizer algo mais definido à custa da generalidade. Esse
segundo tipo de inadequação pode ser chamado de redutivismo, sendo uma
limitação quase inevitável à abordagem prescritivista. A notória definição
carnapiana de filosofia como a investigação da sintaxe lógica da linguagem é
um exemplo de redutivismo, pagando pela vantagem da precisão, um
exorbitante preço em exclusão.
13
A teoria global descritivista da natureza da filosofia a ser desenvolvida
neste livro busca preservar a extensão do objeto de investigação sem cair nas
limitações de uma caracterização insuficientemente informativa. Quero
mostrar que isso é possível na medida em que a abordagem descritivista for
capaz de integrar o que parece ser descritivamente verdadeiro em certas bem
conhecidas concepções da natureza da filosofia, que resultam da
investigação de suas relações próximas com a ciência, a religião e a arte,
bem como com o próprio meio lingüístico através do qual ela opera.
14
II
FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL:
UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA
Tão logo finalidades científicas colocam grandes
exigências na fineza das distinções, o olho nu torna-se
insuficiente. O microscópio, contudo, é para tais
finalidades perfeitamente adequado, embora por isso
mesmo para todas as outras inútil.
Gottlob Frege
Nosso objetivo é trazer as palavras de volta de suas férias
metafísicas para a linguagem ordinária.
Wittgenstein
Uma núvem de filosofia se condensa em uma gota de
gramática.
Wittgenstein
Quando, como metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre a
história da filosofia, há algumas explicações de sua natureza que somos
tentados a rejeitar sem maiores considerações. Esse é o caso de qualquer
explicação baseada no objeto próprio ou no método próprio da filosofia.
Pois há uma variedade quase tão grande de objetos e métodos quanto de
filosofias ou, pelo menos, de movimentos filosóficos. Além disso, as muitas
áreas da filosofia teórica e prática parecem ter uma correspondente
variedade de objetos específicos, variando também a metodologia para
corresponder ao objeto. Somente o metafilósofo prescritivista pode ainda ter
15
a esperança (ou fantasia) de divisar o objeto de investigação próprio da
filosofia. Já o descritivista tenderá a ver tais formas de explicação como
inerentemente redutivas, estreitando desnecessariamente as fronteiras da
filosofia.
Como a minha intenção é construtiva mais do que crítica, irei examinar
somente uma concepção da natureza da filosofia que a identifica com um
método próprio e, freqüentemente, com um objeto de investigação próprio.
Trata-se de uma concepção subjacente a desenvolvimentos extremamente
importantes da filosofia do século XX, ou seja, da concepção extremamente
influente e ainda amplamente aceita de que o método próprio da filosofia é o
de análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia é o que pode ser
chamado de a estrutura lógico-gramatical de nossos conceitos mais
centrais. Essa concepção foi sustentada por filósofos como Ludwig
Wittgenstein, Friedrich Waismann, A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michal
Dummett, Ernst Tugendhat, R. E. Brandom e muitos outros.
A concepção da filosofia como análise conceitual foi seriamente
desafiada pela assim chamada “virada naturalista”, promovida especialmente
por W. V. O. Quine(7). Para ele, a filosofia é mais do que uma mera questão
de investigação lingüístico-conceitual, posto que ela não é algo
essencialmente distinto da ciência empírica. Não há efetivamente nenhuma
distinção real a ser traçada aqui: a filosofia forma um continuum com a
ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais,
algo como as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país(8).
Embora esse ponto de vista tenha algumas vantagens, o problema é que
nenhum advogado da virada naturalista seria capaz de explicar porque nós
todos permanecemos tão pouco dispostos a ver as fronteiras entre a ciência e
a filosofia como o resultado de acordos convencionais arbitrários. A tese
16
quineana de que a distinção entre filosofia e ciência resulta de uma decisão
artificial não explica por que sentimos uma resistência tão grande à idéia de
alterar as fronteiras presentes, chamando de ciência o que tem sido chamado
de filosofia e vice-versa. Mais além – e isso me parece decisivo – a tese não
explica porque não precisamos apelar para nenhum novo acordo
convencional, quando identificamos uma nova teoria como sendo filosófica
ao invés de científica, ou vice-versa. A concepção da filosofia como análise
conceitual tem ao menos o mérito de tentar responder a essas questões por
meio de uma explicitação do que seriam as características distintivas da
filosofia.
Embora existam muitas versões da concepção de filosofia como análise
lingüístico-conceitual, quero reduzi-las de modo um tanto artificial a duas
formas gerais, de maneira a mostrar melhor as limitações intrínsecas dessa
concepção. Chamarei essas duas formas de filosofia como análise
lingüístico-conceitual de a) crítica da linguagem e de b) análise da
linguagem. Ao fazermos crítica da linguagem buscamos analisar ou elucidar
conceitos de modo a dissolver confusões filosóficas. Ao fazermos análise da
linguagem, procuramos analisar conceitos em busca de um melhor
entendimento de nossa arquitetura conceitual, ou então na tentativa de
transformá-la e aperfeiçoá-la. No que se segue irei explicar o que entendo
por cada uma dessas formas de filosofia, mostrando que, a despeito de seus
próprios méritos, elas falham em nos oferecer uma adequada explicação da
natureza da filosofia.
17
1. OS ATALHOS DA CRÍTICA
DA LINGUAGEM
A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos
filosóficos, muitos deles pertencentes à filosofia tradicional. Isso tem sido
historicamente realizado de duas maneiras. A primeira como uma análise da
estrutura lógica das sentenças – o que chamarei de forma de análise
sintaticamente orientada. A segunda espécie de análise constitui-se de um
exame cuidadoso dos significados ou usos das expressões de nossa
linguagem ordinária em seus contextos interpessoais – o que chamo de
forma pragmaticamente orientada de análise. Uso as expressões “forma de
análise
sintaticamente
orientada”
e
“pragmaticamente
orientada”
respectivamente em substituição a uma distinção de conotação algo mais
restritiva, a velha e enganosa distinção entre filosofia da linguagem ideal
(guiada pela lógica) e filosofia da linguagem ordinária (guiada pela
linguagem do cotidiano). Essa distinção é enganosa porque a história da
filosofia analítica mostrou que nada impede que uma investigação da
linguagem ordinária seja conduzida sob um ponto de vista lógico, como de
fato aconteceu em casos como o tratamento formalizado da teoria dos atos
de fala através de uma lógica ilocucionária por J. R. Searle, ou como a
explicação veritativo-funcional apresentada por P. F. Strawson para o
conceito de pressuposição em On Referring; por outro lado, também nada
nos impede de conduzir investigações da linguagem ideal sob a perspectiva
de sua realização na linguagem ordinária, como é evidenciado, por exemplo,
pelo estudo dos usos de partículas lógicas na linguagem ordinária.
A forma sintaticamente orientada de crítica da linguagem pode ser
exemplificada pela observação de filósofos analíticos, como Russell e
principalmente Ryle(9), de que uma razão subjacente à criação da doutrina
18
das idéias por Platão pode ter sido uma confusão gerada pela similaridade
superficial entre a gramática lingüística de sentenças como “A beleza é
agradável” e “Sócrates é calvo”. Conduzido por tais similaridades, Platão
teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um
nome próprio se referindo a um particular, o sujeito de sentenças como a
primeira também precisa ser um nome próprio e referir-se a um particular.
Contudo, como não existe “a beleza” no mundo visível, “a beleza” deve
habitar um mundo que é somente inteligível, o mundo das idéias, situado na
“região supraceleste”. Contra essa conclusão, a crítica da linguagem,
baseada na moderna lógica dos predicados, mostra que as estruturas lógicas
de ambos os tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas, posto
que a primeira sentença tem uma estrutura lógica que é muito diversa de sua
estrutura lingüística superficial. Enquanto “Sócrates ( = s) é calvo ( = C)”
tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é
logicamente analisável como uma abreviação da sentença “Para todo x, se x
é belo (= B), então x é agradável (= A)”, ou “(x) (Bx -> Ax)”, onde “belo” é
evidenciado como não sendo realmente um nome próprio, mas uma
expressão predicativa. A sugestão de críticos da linguagem como Ryle era a
de que a identidade superficial na forma sujeito-predicado de ambos os tipos
de sentença confundiu Platão, fornecendo-lhe uma razão ilusória para a
construção de um castelo de cartas metafísico.
O
segundo
exemplo
–
agora da uma crítica da linguagem
pragmaticamente orientada – concerne à exposição das distorções
lingüísticas que estariam subjacentes ao argumento da ilusão, um argumento
colocado por epistemologias representacionalistas (e fenomenalistas)
opostas ao realismo. Nesse argumento, casos são considerados em que
objetos parecem diferentes do que eles realmente são, como a colher que,
19
parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A consideração
desses casos leva-nos à conclusão de que percebemos as coisas
indiretamente: aquilo que diretamente percebemos não são os objetos
materiais, mas somente nossas representações (ou impressões sensíveis)
deles. Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem como J. L. Austin
argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos,
mas apenas as suas representações; o que realmente dizemos é que nós
vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não
como eles realmente são. Assim, quando olho (com ambos os olhos) para o
meu nariz, eu não digo que realmente vejo dois narizes, mas antes que vejo o
meu próprio nariz duplicado; e quando vejo uma moeda como sendo elíptica,
não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas que estou vendo um objeto
redondo que parece elíptico(10).
Exemplos como esses servem para mostrar não somente as qualidades,
mas também os limites da crítica da linguagem. Pois é evidente que a
doutrina platônica das idéias, como uma tentativa de explicar nossa
compreensão da função dos termos gerais (da generalidade e predicação), e
as objeções representacionalistas ao realismo direto (tanto na forma
fenomenal como científica do argumento da ilusão) permanecem além do
alcance de uma crítica puramente lingüística. Uma razão para pensar assim é
que os argumentos para a admissão de idéias como o fundamento explicativo
da generalidade e predicação, assim como os argumentos para a admissão de
representações (perceptos, sensações, fenômenos, sense data, qualia...)
como os mais imediatos objetos da experiência, mediando inevitavelmente
nosso acesso ao mundo externo, têm ambos um conteúdo substantivo que só
parece capaz de ser definitivamente refutado através de considerações
extralingüísticas. Isso se torna mais evidente quando consideramos que com
20
base no resultado substantivo desses argumentos alguém poderia defender a
necessidade de correção de nossos hábitos lingüísticos ordinários irrefletidos
por meio da introdução de convenções mais adequadas, que tornassem
correto falar de idéias não-psicológicas, não mentais, ou dizer que aquilo que
imediatamente percebemos são de fato nossas sensações, perceptos, sensedata etc.
Geralmente, a crítica da linguagem não é vista como uma concepção da
natureza da filosofia, mas somente como uma maneira crítica de fazê-la. Não
obstante, a crítica da linguagem tornou-se uma concepção da natureza da
filosofia nos escritos de Wittgenstein, que teria concebido a filosofia como
uma espécie de terapia lingüística sem qualquer conteúdo positivo
próprio(11). Mesmo sendo questionável em que extensão Wittgenstein teria
endossado tal modo de ver, dado que ele também fez observações que se
afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) facilmente
retirada de seus textos, e irei expô-la aqui por aquilo que ela é capaz de nos
ensinar(12).
A concepção terapêutica da filosofia afirma que muito dela
(especialmente da filosofia tradicional) é resultado de confusão lingüística.
Filósofos são indivíduos possuídos por um irresistível anseio por
generalidade (craving for generality)(13), que os predispõem a serem
enganados pelas estruturas superficiais de nossa linguagem, levando-os à
construção de “castelos de cartas” teoréticos, ou, quando isso causa
contradição, acabando por reduzi-los a desesperançados prisioneiros de “nós
do pensamento”. Em face disso, a boa filosofia deve ser terapêutica: o
objetivo do filósofo terapêutico é desmontar os castelos de carta teoréticos
do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais
pensadores mais austeros enlearam-se a si mesmos. E o modo de fazer isso
21
não é por meio da construção de teorias, nem pela explicação de coisa
alguma, mas através de uma descrição dos modos pelos quais efetivamente
usamos nossas palavras – por trazer essas palavras, como Wittgenstein diria,
de volta de suas férias metafísicas para o seu trabalho lingüístico cotidiano.
Sendo assim, a filosofia deve tornar-se um empreendimento puramente
destrutivo, somente bemsucedido quando o filósofo, liberto de suas
preocupações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico liberto de suas
fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a filosofia.
O problema com a concepção terapêutica da filosofia é que ela corta os
galhos curto demais. Nenhuma crítica da linguagem tem sido bemsucedida
em ser inteiramente não-teorética e não-explicativa. O próprio trabalho de
Wittgenstein é um bom exemplo desse fracasso, embora esse fato seja
geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos(14).
Considerem-se, por exemplo, suas observações sobre nomes próprios nas
Investigações Filosóficas(15). Elas são concebidas como uma crítica à
“teoria do rótulo” dos nomes próprios, pela qual o significado de um nome
próprio é o objeto apresentado por ele de modo similar ao rótulo de uma
garrafa apresentando o seu conteúdo. No entanto, ao refutar essa teoria
Wittgenstein está, intencionalmente ou não, ideando uma versão mais
sofisticada da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios, a qual
explica o significado de nomes como “Moisés” pelas diferentes descrições a
ele associadas, como “o homem que conduziu os israelenses através do
deserto”, “o homem que viveu naquele tempo e lugar e que foi chamado
“Moisés”, ou “o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela filha
do faraó”. (Usando o vocabulário próprio de Wittgenstein poderíamos
adicionar que essas descrições são expressões de regras para a identificação
do objeto nomeado, regras que devem constituir conjuntamente aquilo que
22
queremos dizer com o nome próprio, mais precisamente, o seu sentido
referencial.) Assim, as sugestões de Wittgenstein são teoréticas, posto que a
sua eficácia terapêutica depende de uma sugerida generalização para todos
os nomes próprios; e suas observações são também explicativas, posto que
elas objetivam explicar como podemos identificar pessoas usando nomes
próprios. Mais além, essas mesmas idéias foram independentemente
retomadas mais tarde, na sugestão explicitamente teorética e explicativa de
uma teoria do feixe para nomes próprios por J. R. Searle(16). Exemplos
como esse mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a
doença e não somente minorar esse ou aquele sintoma ocasional, deve ser
baseada
em
generalizações
dotadas
de
poder
explicativo.
Essas
generalizações, quando desenvolvidas, forçam-nos a abandonar o terreno da
descrição da linguagem ordinária em direção a construções teóricas cada vez
mais elaboradas. Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente
separadas uma da outra; elas são os lados opostos da mesma moeda
filosófica, parecendo ser matéria meramente circunstancial quando um
filósofo prefere enfatizar um ou outro lado.
2. FILOSOFIA COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM
O fracasso da concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos a
considerar aquela da filosofia como análise da linguagem. Esse é o lado
construtivo, teorético, da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à
crítica da linguagem e possivelmente mesmo de torná-la uma extensão de si
mesma. A análise da linguagem também pode ser feita de um modo
sintaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”) ou de um
modo pragmaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”).
23
Como exemplo da forma sintaticamente orientada está o esboço de uma
estrutura geral requerida pela sintaxe de qualquer língua encontrado na
distinção introduzida por Carnap entre regras de formação (especificando
símbolos e sentenças bem formadas) e regras de transformação
(determinando as possíveis relações entre as sentenças)(17). Por sua vez, um
exemplo de análise da linguagem em sua forma pragmaticamente orientada é
a teoria dos atos de fala de Searle, a qual sustenta que a estrutura de nossas
ações comunicativas é geralmente redutível à forma F(p), em que p é o
conteúdo proposicional e F é a força ilocucionária, esta última definindo o
tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe que seja associado ao
seu conteúdo(18).
Construções analíticas como essas são teorias muito gerais, possuidoras
de interesse intrínseco, posto que elas são empreendimentos investigativos
capazes de conduzir-nos à proximidade dos horizontes científicos. De fato,
a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de
transformação já foi há muito incorporada em diferentes domínios da lógica
simbólica (que se desenvolve hoje como uma ciência formal), e a teoria dos
atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática lingüística, mais do que
à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser usadas
como instrumentos críticos, essa não é a principal razão para o seu
desenvolvimento, que é a de ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.
No que se segue, irei expor uma versão full-blooded da concepção da
filosofia como análise da linguagem. Essa versão pertence à forma
pragmaticamente orientada, estendendo-se aos limites de tolerância e
defensabilidade, incorporando, quando necessário, até mesmo formas
sintáticas de análise. Algo próximo dessa versão pode ser encontrado, com
diferenças individuais, nas concepções de praticantes tardios e melhor
24
aconselhados dos métodos analíticos, como Peter Strawson e Ernst
Tugendhat.
Uma assunção básica da concepção full-blooded da filosofia como
análise da linguagem é a idéia de que não temos consciência da estrutura
extraordinariamente complexa dos conceitos mais centrais de nossa
linguagem natural, os quais costumam ser intrinsecamente relacionados uns
aos outros, como os conceitos de verdade, conhecimento, crença, percepção,
causa, tempo, bem, justiça, beleza etc. Essa falta de consciência tem uma
explicação: não aprendemos esses conceitos por meio de definições
explícitas, mas, desde a infância, através de uma praxis não-cognitiva de
exemplificações positivas e negativas, na qual nosso aprendizado é
repetidamente submetido à correção interpessoal. Conseqüentemente,
embora pareça claro que nós conhecemos os significados de palavras como
“verdade”, “tempo” e “beleza”, posto que nós sabemos usá-las corretamente,
nós permanecemos incapazes de descrever como usamos essas palavras, ou
seja, de tornar as regras constitutivas de seus significados (conceitos)
explícitas. Essa é a razão pela qual, embora sejamos plenamente capazes de
usar essas palavras corretamente, nós nos embaraçamos seriamente quando
nos é pedido que expliquemos o que queremos dizer com elas. Devido a essa
falta de consciência das regras que governam o uso das palavras, confusões
filosóficas podem facilmente surgir: filósofos, particularmente aqueles que
se ocupam com metafísica especulativa, têm confundido sistematicamente os
usos de nossas expressões; e já vimos como a crítica da linguagem funciona,
analisando as estruturas lógico-sintáticas dos conceitos relevantes ou
fazendo uma análise ou “descrição” dos usos das palavras que as expressam
em situações concretas, de maneira a demonstrar a implausibilidade dessas
tentativas. Em si mesma, a filosofia analítica da linguagem não é um
25
empreendimento crítico; seu interesse principal é o de construir teorias
objetivando explicitar e aprofundar as nossas estruturas conceituais mais
centrais. Contendo generalizações, essas teorias também têm valor
explicativo. E o seu objetivo mais distintivo é fornecer o que nós, junto com
Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação sinóptica
(übersichtliche Darstellung): uma sinopse da estrutura gramatical dos
conceitos mais fundamentais de nossa linguagem(19). Desde que esses
conceitos se encontram geralmente inter-relacionados, uma representação
sinóptica também pode tornar explícita a relação sistemática entre eles,
objetivando elucidar o que Tugendhat chamou de a malha conceitual
(begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um
todo(20).
Para completar nosso quadro, é importante dizer algo sobre o traço mais
penetrante da filosofia analítica. É o que Quine chamou de acento semântico
(21) e que eu – sem medo da intencionalidade – prefiro chamar de ênfase
lingüístico-conceitual. Trata-se de uma espécie de ênfase discursiva nos
elementos lingüísticos e conceituais. Por meio do acento semântico, aspectos
lingüístico-conceituais de nossas expressões são focalizados de maneira a
tornar explícitas distinções lingüístico-conceituais mais sutis e prevenir
confusão. Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi
parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo
palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos,
não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual
‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos
fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de acento semântico é
reminiscente do conceito carnapiano de modo de dizer formal, que para ele é
o modo de dizer adequado aos assuntos filosóficos, ou seja, às questões
26
lingüístico-conceituais. Contudo, como foi notado com muita perspicácia
por Quine, a distinção carnapiana é falsa na medida em que ele quer torná-la
caracterizadora da filosofia enquanto tal. A noção de acento semântico difere
do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não somente às
sentenças filosóficas, mas a toda sentença concebível: “Acento semântico”,
escreveu ele, “aplica-se em todo lugar. ‘Há masurpiais na Tasmânia” pode
ser parafraseado como ‘’Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na
Tasmânia’, se há qualquer ponto nisso. Apenas acontece de ser o acento
semântico mais útil em conexões filosóficas”(22).
A noção de acento semântico ou lingüístico-conceitual pode ser explicada
mais claramente quando consideramos que, por razões técnicas, ao fazermos
filosofia analítica, apresentamos os nossos argumentos – de maneira mais ou
menos explícita – em uma metalinguagem que nos permite centrar o
discurso em nossas palavras e nos conceitos por elas expressos. Contudo, é
importante sublinhar que isso é usualmente feito por meio de uma
metalinguagem semântica e não meramente por uma metalinguagem
sintática. Essa consideração torna possível responder à objeção de que a
filosofia analítica, sendo um empreendimento lingüístico, inevitavelmente
deixa de fora o mundo (ver nota 25). Para esclarecer esse ponto, compare as
duas sentenças seguintes:
(a) “’Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras”.
(b) “’Cracóvia’ é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do
equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”
Na sentença (a) usamos a metalinguagem sintática para falar de uma
palavra como sinal físico. Na sentença (b) usamos uma metalinguagem
27
semântica para falar não somente de uma palavra, mas também sobre o que
ela significa. Usando um vocabulário fregeano, podemos dizer que pela
utilização de uma metalinguagem semântica estamos tornando explícitos os
sentidos de nossas palavras, e que ao fazermos isso também estamos falando
sobre aquilo a que elas se referem, ou seja, sobre o mundo, ao menos na
medida em que essas referências, os objetos, eventos, propriedades... são
avaliáveis para nós por meios conceituais (Frege chamou de sentido de um
nome de Art des Gegebenseins eines Gegenstandes: o modo de se dar do
objeto). Em suma: por meio de uma metalinguagem sintática, falamos
somente dos signos em abstração de seus significados – esse é o caminho do
formalismo seco. Já por meio de uma metalinguagem semântica,
preservamos os sentidos e não só os signos, falando de ambos – esse é o
caminho filosófico, pelo qual a análise da linguagem pode ser estendida das
palavras ao que se quer dizer com elas e assim ao próprio mundo. A ênfase
conceitual é um modo de centrar nossa atenção na linguagem sem excluir
nada de valor que possa ser representado pela linguagem.
Embora a forma sintaticamente orientada de análise da linguagem
praticada por filósofos como Carnap, Quine, Donald Davidson e Samuel
Kripke também empregue o acento lingüístico-conceitual, ela difere de
maneira importante da concepção full-blooded de análise em suas atitudes
com relação às exigências do senso comum e da linguagem ordinária que o
representa. Filósofos sintaticamente orientados dão muito mais peso à
consistência interna de suas teorias formalmente orientadas do que ao
eventual acordo dessas teorias com o senso comum que as intuições da
linguagem ordinária exprimem, estando sempre preparados para sacrificar a
última pela primeira.
28
Com efeito, muitas das idéias da forma sintaticamente orientada de
análise da linguagem estão em flagrante contradição com essas intuições.
Qual é a razão disso? Penso que a resposta não seja difícil de ser encontrada.
Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem – as
regras para a combinação de seus signos – em um estado de ignorância, sem
conhecer as referências desses signos e suas combinações, sem conhecer os
seus significados, e como usá-los em situações concretas. Mas o oposto é
bem menos concebível: não podemos ter acesso adequado aos sentidos de
combinações de signos e aos modos como esses signos são usados sem
conhecer as suas funções sintáticas, ou seja, como eles podem ser
combinados na construção de sentenças bem formadas. Isso significa que
embora o entendimento da dimensão sintática da linguagem não
pressuponha o entendimento da dimensão pragmática, para esta última ser
adequadamente entendida, já é pressuposto o entendimento da dimensão
sintática (e semântica) (ver capítulo VII, seção 3). Isso também significa que
essa dimensão pragmática carrega consigo, ao menos como pressuposto,
todo o conjunto de regras de significado da linguagem, um conjunto
articulador de nossas intuições lingüístico-conceptuais, de nossas intuições
de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser
manifesto nos modos pelos quais as usamos. Isso quer dizer que a forma
sintaticamente orientada de análise, sendo independente da dimensão
pragmática, pode ser desenvolvida em abstração da dimensão pragmática e,
conseqüentemente, também em desacordo com ela, sem perda de
inteligibilidade. Uma conseqüência disso é que o analista conceitual
sintaticamente orientado sente-se mais livre para confrontar assunções
fundamentadoras da racionalidade da linguagem e de nossas visões comuns
do mundo, mesmo que de maneira ilusória, quando o seu procedimento for
29
redutivo e dependente de uma rejeição gratuita dessas assunções. (Isso
explica, por exemplo, por que os argumentos de Quine ou Kripke podem
facilmente se opor ao senso comum lingüístico, enquanto os argumentos de
Searle ou Strawson só são capazes disso a preço de visível inconsistência.)
Na próxima seção as conseqüências teóricas que filósofos tiraram das
concepções recém-descritas serão avaliadas criticamente, de maneira a
mostrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem (e,
conseqüentemente, também como crítica da linguagem), embora capaz de
mostrar-nos como a filosofia pode dever ser, é incapaz de mostrar-nos o que
a filosofia é.
3. A FALÁCIA OBJETUAL NA
FILOSOFIA ANALÍTICA
Muitos defensores da filosofia como análise conceitual pensam que suas
concepções conduzem à conclusão de que, como o filósofo está expondo a
estrutura conceitual de nossa linguagem, ele não está
(a) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese especulativa sobre o
mundo, como o filósofo especulativo tradicional havia feito,
e ele também não está
(b) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese empírica sobre o
mundo, como fazem os cientistas da natureza (mesmo que o
empreendimento de descrição do modo como a linguagem realmente
trabalha possa ser visto como empírico(23)).
Meu objetivo nesta seção é mostrar que nem a asserção (a) nem a
asserção (b) pode ser satisfeita pela praxis efetiva da filosofia como análise
da linguagem, e que a pretensão de que elas possam ser preenchidas repousa
30
em uma insidiosa falácia objetual. Além disso, por mostrar que essas
asserções são falaciosas, pretendo também demonstrar ser errônea a
assunção de que do ponto de vista do objeto de investigação a filosofia
analítica distingue-se de outras atividades investigativas, uma vez que ela
tem como objetivo o esclarecimento de estruturas conceituais e, por
conseqüência, não teria como objetivo uma explicação do mundo enquanto
tal. O comprido argumento que usarei para evidenciar esse ponto não é um
modelo de linearidade e transparência, mas aqui vai:
Para mostrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar
que a análise conceitual possui um objeto de investigação diferente do objeto
da filosofia tradicional e da ciência em geral, precisamos começar
considerando a sua praxis efetiva. As teses (a) e (b) poderiam com efeito ser
consistentemente mantidas se o analista conceitual tivesse se limitado à
análise lógica da estrutura das sentenças, ou a uma tediosa, quasilexicográfica
descrição
dos
significados
das
palavras-conceituais
filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural. Mas isso não é o que
ele efetivamente faz. De maneira a alcançar qualquer espécie de relevância
filosófica, o analista conceitual deve dar um passo adiante: deve inquirir
nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, descobrindo nessa praxis
conceitos para os quais ainda não há qualquer palavra em nossa linguagem,
tais conceitos sendo escolhidos em virtude de fatores tais como coerência e
poder explicativo. Como esses conceitos recém-descobertos podem ser
expressos somente através de novas concatenações de palavras, o analista
conceitual é freqüentemente levado a substituir essas concatenações por
novos termos de arte, inventados por razões de economia discursiva. Alguns
exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações
comunicativas pode fazer uma análise de nossos “atos de fala” sob a
31
perspectiva de sua “força ilocucionária”; alguém engajado em filosofia do
conteúdo pode tentar analisar a função representacional de nosso
enunciados, o seu “significado factual”, em termos de “regras de
verificabilidade”; um epistemólogo pode sugerir uma análise do conceito de
“conhecimento proposicional” (knowing that) em termos de “crença
verdadeira justificada ultimadamente não-refutada”.
Quando refletimos sobre esses procedimentos, um primeiro ponto a ser
considerado é que o procedimento supostamente analítico contém um
momento de síntese hipotética. Estruturas conceituais profundas são
primeiramente descobertas para somente então serem analisadas (ver nota
57). Mas ao proceder assim o filósofo já está fazendo um trabalho de
generalização – ou, como podemos também dizer, ele está tentando trazer à
superfície um tipo de “unidade sintética” que (ao menos para o analista
pragmaticamente orientado) já estaria presente nos usos de nossa linguagem.
O problema é que a adequação dessas recém-descobertas unidades
conceituais é altamente hipotética. Isso é mostrado pelo fato de que os
significados dos termos gerais usados para explicar uma nova unidade
conceitual são eles próprios controversos; de fato, o filósofo está tentando
estabelecer conceitos recém-descobertos justificados por sua consistência
com
todo
o
tecido
conceitual
de
crenças
conscientemente
ou
inconscientemente assumidas por ele como o mais coerente e verdadeiro, o
que torna o seu empreendimento inevitavelmente conjectural. Na busca de
um equilíbrio reflexivo o filósofo sugere hipóteses eventualmente frutíferas.
Essas hipóteses são sobre a estrutura empírica da linguagem, no caso da
teoria dos atos de fala, sobre a função representacional de nossos
enunciados, no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, e
sobre a forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que”, no caso da
32
definição proposicional de conhecimento. O esforço todo pode ser
considerado em muitos casos e em certa medida análogo ao trabalho de
descoberta de uma lei da natureza nas ciências naturais, ou seja, a algo capaz
de explicar uma variedade de casos individuais e capaz de ser
posteriormente confirmado ou infirmado pela experiência, mesmo que ela
seja concernente a hábitos lingüísticos, no primeiro caso, ou à forma
possível de certos processos cognitivos, nos outros casos.
Penso que um analista conceitual liberal não terá grande dificuldade em
aceitar essas objeções. Mas ele usualmente insistirá que, mesmo sendo o seu
procedimento analítico concreto precedido de um momento hipotético de
síntese, ele está sempre tentando tornar explícito o que já pertence ao nosso
sistema conceitual e nunca, como o cientista empírico ou o filósofo
especulativo, indo além desse sistema ao elaborar hipóteses sobre o mundo
real. No entanto, quando nós examinamos os exemplos dados, vemos que
muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado
como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais e digam
geralmente respeito ao relacionamento de nossas representações com o
mundo, mais do que com o mundo em si mesmo. De fato, quando
examinamos outros exemplos de análise, como os que são advindos do
campo da metafísica analítica ou da filosofia da mente, vemos que esses
fatos podem muito bem fazer parte do próprio mundo empírico. Considere,
por exemplo, o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da
mente. Seguindo uma sugestão introduzida por D. M. Armstrong, tornou-se
hoje muito comum a distinção entre duas formas mais importantes de
consciência: a consciência perceptiva (o estar em vigília, percebendo o
mundo) e a consciência introspectiva (a submissão de estados mentais ditos
“conscientes” a introspecções ou cognições de segunda ordem acerca
33
deles)(24). Essa distinção pode ser dita conceitual, mas ela também diz
respeito a classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais
difusamente situados no espaço e no tempo.
Embora essa pareça ser uma conclusão claramente insatisfatória, o
analista conceitual ainda tem uma resposta para ela. Ele poderá dizer que ela
é aceitável pois, como o mundo é refletido na estrutura de nossos conceitos,
ao analisá-los nós também estamos dizendo algo sobre o mundo. Como A. J.
Ayer notou:
A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo
algum abrupta, pois o mundo é o mundo que nós descrevemos, o mundo
como ele figura em nosso sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema
conceitual você está, ao mesmo tempo, explorando o mundo(25).
Embora isso seja verdadeiro e confirmado por nossas considerações
anteriores acerca da ênfase conceitual, a resposta de Ayer aponta claramente
para o fato de que não podemos distinguir o objeto de investigação próprio
da filosofia por referência à análise de nossas estruturas conceituais. Pois em
um sentido similar podemos sugerir que o cientista empírico e o metafísico
especulativo estão fazendo um trabalho de “análise conceitual”, a única
diferença sendo a de que eles não são conscientes disso, posto que não têm a
preocupação em focalizar os aspectos lingüístico-conceituais de suas
investigações por meio de uma metalinguagem semântica. Tentarei tornar
este último ponto mais claro levantando objeções separadas contra as teses
(a) e (b).
Considere-se a tese (a): diversamente dos filósofos especulativos, os
filósofos analíticos não estão fazendo asserções conjecturais sobre o mundo.
34
Contra essa tese é importante ressaltar que a história recente da filosofia
tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional
podem ser identificados no trabalho de filósofos ditos analíticos (e por
alguns mesmo chamados de pós-analíticos). Sequer faz sentido defender que
a filosofia analítica não é especulativa, pois essa história mostra que as
distinções que os filósofos mantiveram entre
Filosofia crítica
e
Filosofia especulativa
(ocupada com a defini-
(objetivando alcançar conclusões gerais
ção e análise crítica
sobre a natureza do universo e sobre
dos conceitos de nossa
nosso lugar e expectativas nele)
vida diária e ciências)
(C. D. Broad),
Metafísica imanente
e
Metafísica transcendente
(limitando-se ao mundo
(objetivando ir além dos sentidos,
dos sentidos)
relacionando-se com o mundo
supra-sensível) (W. H. Walsh),
Metafísica descritiva
e
Metafísica revisionária
(ocupada com a descrição
(tentando criar uma nova
de nossas estruturas reais
estrutura de pensamento)
de pensamento)
(P. F. Strawson),
encontram um certo paralelo no domínio da filosofia analítica na distinção
entre
35
os resultados da análise
e os resultados da análise da linguagem
da linguagem pragmati-
sintaticamente orientada.
camente orientada (filo-
(filosofia da linguagem ideal)
sofia da linguagem ordinária)
De fato, há uma razão profunda para a existência desse paralelo. É que a
dependência das intuições de senso comum e das correspondentes intuições
lingüísticas mantida pela filosofia crítica e pelas metafísicas imanente e
descritiva corresponde a uma similar dependência mantida pelo analista
conceitual pragmaticamente orientado. Em contrapartida, nós vimos que o
analista conceitual sintaticamente orientado quase não sente a necessidade
de ter a mesma consideração com nossas intuições ordinárias espelhadas na
linguagem, lembrando sob esse aspecto o filósofo especulativo.
Essas observações sugerem que a distinção entre filosofia analítica e
tradicional não chega a ser uma distinção de objeto de investigação. De fato,
se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode
ser traduzida em um modo de discurso lingüístico-conceitualmente
acentuado, ou seja, expressa de maneira a legitimar uma pretensão do
filósofo especulativo de estar fazendo análise filosófica da mesma maneira
que o analista conceitual. Para considerar um exemplo radical, considere o
conceito de eu puro na metafísica transcendental de Fichte. O eu puro é algo
apenas intelectualmente acessível, que põe (setzt) o mundo externo para pôrse a si mesmo (pôr Selbstsetzung) simultaneamente como uma necessária
oposição a ele. Ora, seria hoje pouco surpreendente se filósofos analíticos
contemporânos simpáticos ao idealismo decidissem traduzir tais asserções
em uma análise do conceito de “eu elusivo” como constituindo e sendo
36
constituído pela realidade social sob assunções anti-realistas. Mesmo que tal
anti-realismo venha a ser no fundo tão escassamente inteligível e
especulativo quanto o modelo fichteano, ele não será menos defensável do
que algumas idéias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da
ciência(26).
Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo
analista conceitual sintaticamente orientado, já vimos que ele daria algum
trabalho ao analista conceitual pragmaticamente orientado, posto que parece
chocar-se contra as intuições de senso comum que a linguagem ordinária
espelha. Não obstante, mesmo aqui tal estratégia não é inviável: o analista
pragmaticamente orientado pode manter que o desacordo com nossas
intuições é apenas aparente, e tentar mostrar que há um modo de harmonizar
o que está dizendo com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias
(Berkeley antecipou tal estratégia quando pretendeu que seu imaterialismo
estava apenas refletindo as verdadeiras expectativas do senso comum de
pessoas ainda intocadas pela filosofia!).
Para
sumarizar:
porque
o
trabalho
dos
filósofos
analíticos
pragmaticamente orientados inclui momentos de síntese hipotética em que
novos conceitos são pensados e descobertos, esse trabalho é capaz de conter
(mesmo que apenas indiretamente) inesperadas especulações metafísicas, as
quais podem ter conseqüências até mesmo no modo como fundamos nossa
apreensão da realidade empírica. O analista conceitual sintaticamente
orientado pode fazer tais especulações com consciência mais leve, pois ele
pode sacrificar o acordo com as suas expectativas intuitivas acerca do
mundo, sem fazer com que se perca a inteligibilidade de seus argumentos,
dado que para ele essa inteligibilidade é fortemente sustentada por sua
própria coerência formal. Mas mesmo o analista pragmaticamente orientado
37
pode fazer especulações metafísicas ao afirmar que os conceitos que
introduz podem ser requeridos para uma mais adequada tomada de
consciência de nossas concepções ordinárias acerca do mundo. Parece, pois,
que todos os domínios da metafísica tradicional podem de um ou de outro
modo ser alcançados pela análise lingüístico-conceitual. Portanto, manter
que há realmente uma distinção de objeto de investigação entre filosofia
como análise conceitual e filosofia tradicional, mesmo em suas formas mais
especulativas, é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase
lingüístico-conceitual.
Um argumento similar se aplica à tese (b), a qual afirma que a filosofia
difere das ciências empíricas por restringir-se à investigação conceitual.
Que essa tese é falsa já deveria se ter tornado claro, posto que nosso
último exemplo de análise conceitual dizia respeito também ao mundo
natural, mesmo que de uma forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser
apresentado de forma mais dramática. Suponha, primeiramente, que exista
um analista conceitual inteiramente conseqüente, o qual, assumindo a
concepção ampla de análise por nós descrita, crê que conceitos e relações
entre conceitos sejam o objeto de investigação próprio da filosofia, o objeto
capaz de distingui-la de outras áreas do conhecimento. Então, como ele iria
considerar a ciência? Não seria difícil para ele perceber que Einstein, para
chegar à conclusão de que a velocidade da luz é a mesma para todos os
observadores, teve de analisar o conceito de simultaneidade quando o
aplicava a observadores movendo-se a grandes velocidades relativas, pois é
certo que ele não estava analisando objetos empíricos reais movendo-se no
espaço. Quanto ao trabalho do famoso cosmologista contemporâneo Stephen
Hawking, nosso analista conceitual poderia facilmente perceber que esse
cientista não estava envolvido em nenhuma divisão dos buracos negros em si
38
mesmos, mas em importantes análises astrofísicas do que precisa ser
entendido pelo conceito de buraco negro, se desejamos obter uma
compreensão coerente do fenômeno. O conceito de evolução natural, como
logo perceberia o nosso analista conceitual perfeitamente conseqüente, foi
primeiramente assim denominado e analisado de forma correta por Charles
Darwin (e Wallace), como um resultado de reflexões baseadas em
observações zoológicas e botânicas. G. J. Mendel analisou o conceito de
gene, por ele chamado de fator, Watson e Cricke o conceito de DNA. O
psicólogo Carl Jung vislumbrou o conceito de inconsciente coletivo, o
sociólogo T. B. Veblen o de classe ociosa... Estavam todas essas pessoas
fazendo filosofia? Aceitando, como o faz nosso analista conceitual
inteiramente conseqüente, que nosso mundo conceitual é o objeto da
filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo o
trabalho teorético do pensamento parece tornar-se, de um modo ou de outro,
um trabalho de análise conceitual e portanto filosófico.
Contudo, a situação oposta também pode ser imaginada: suponha que
tenhamos junto a nós um empirista de cabeça dura, que decide começar com
a premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente
conceitual, mesmo que ele só seja acessível conceitualmente, posto que seus
conceitos aplicam-se somente a fatos empíricos, mesmo que muito
abrangentes. Como iria ele considerar a maioria das questões apresentadas
pela filosofia? Como a teoria dos atos de fala é sobre ações comunicativas
humanas em contextos reais, como a análise verificacionista dos sentidos
factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como as
mentes podem adquirir conhecimento acerca do mundo, como o realismo
sobre leis científicas é uma tese acerca da constituição possível da realidade,
ele será levado a conceber muito da filosofia como tratando de fenômenos
39
empíricos a serem abordados pela ciência empírica, mesmo no caso deles
serem pervasivos e multiabrangentes.
O caso do analista conceitual inteiramente conseqüente mostra que uma
investigação que não é sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode ser
sempre interpretada de uma maneira que a torne concernente a conteúdos
conceituais. Já o caso do empirista de cabeça dura mostra que uma
investigação usualmente concebida como sendo sobre conceitos, como a
praticada por filósofos ditos analíticos, pode na maioria das vezes ser
interpretada de um modo que a torne uma indagação que vá além dos
conceitos e caia no domínio da ciência empírica.
Que conclusões podem ser tiradas disso? A primeira é que os objetos da
filosofia não precisam diferir essencialmente daqueles da filosofia
especulativa tradicional, nem daqueles da ciência, posto que a filosofia
analítica não pode pretender divergir desses empreendimentos só porque
trabalha com as nossas estruturas conceituais. Sendo assim, os nossos dois
casos mostram que a pretensão de que o objeto de investigação próprio da
filosofia deva ser a estrutura de nossos conceitos, se tomado seriamente,
termina por obstruir qualquer distinção objetual entre filosofia analítica e
outros empreendimentos teoréticos. Uma conclusão subseqüente é a de que
mesmo o método de análise conceitual não pode ser visto como o método
próprio da filosofia. Pois se o filósofo analítico trabalha com conceitos da
maneira liberal acima descrita, é certo que ao cientista também é permitido
proceder da mesma forma, caso considere apropriado.
40
4. CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O
ORGANON ARISTOTÉLICO
Qual é então a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise
conceitual e, de outro, a filosofia especulativa e ciência, se essa não é uma
diferença no objeto de investigação? A resposta parece ser a de que há aqui
uma diferença metodológica contingente, uma diferença nos modos como o
objeto de investigação é questionado. Filósofos analíticos submetem o seu
questionamento a um controle metodológico muito mais rigoroso ao
apresentar as suas concepções em uma metalinguagem semântica, ao
escrutiná-las através de um novo instrumental lógico e lingüístico, e ainda, o
que tem se tornado sempre mais importante, ao opô-las sempre ao pano de
fundo de nossa visão de mundo contemporânea, cientificamente informada.
Sendo assim, somos levados a concluir que filosofia analítica é somente o
nome que damos a uma mais maneira mais refinada de fazer filosofia
desenvolvida durante o século XX, a qual requer a ênfase do meio
lingüístico-conceitual, principalmente por razões de rigor metodológico.
Como a filosofia é uma espécie de jogo heurístico com lances
argumentativos realizados com um material de símbolos lingüísticos, é fácil
entender por que o uso de instrumentos analíticos tornou-se uma
característica distintiva da filosofia atual, ao menos em suas áreas mais
centrais como a epistemologia, a metafísica, a filosofia da linguagem etc.
Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das
doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a assimilação de
procedimentos analíticos por domínios centrais da filosofia contemporânea.
41
Aristóteles considerou as novas doutrinas lógicas e metodológicas
contidas em seu Organon um instrumento necessário para um adequado
exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon continha uma
teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio
dedutivo (a silogística), observações sobre a natureza das definições, o
esboço de uma teoria do raciocínio científico e da explicação científica, uma
classificação das falácias e suas soluções... Com efeito, a assimilação das
doutrinas contidas no Organon mudou lenta mas definitivamente nossos
modos de fazer filosofia em seus domínios centrais. Os instrumentos
aristotélicos de investigação foram assimilados e aperfeiçoados durante a
Idade Média, geralmente sob o nome de dialética, estabelecendo novos e
irreversíveis padrões argumentativos em filosofia, que uma vez adotados
nunca mais puderam ser ignorados.
Ora, a assim chamada filosofia analítica pode ser explicada como a
conseqüência de uma revolução metodológica similar. Desde o final do
século XIX, desenvolvimentos extremamente importantes em domínios
similares aos cobertos pelo Organon aristotélicos surgiram. Alguns diziam
respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana),
outros concerniam à lógica dedutiva (a lógica predicativa de primeira e
segunda ordem, a lógica modal, a lógica epistêmica...), ao raciocínio
indutivo (teorias da probabilidade, da decisão...), à pragmática (teorias da
verificação, concepções contextualistas do significado como função do uso,
a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da
explicação, da confirmação...). Seria deveras surpreendente se a filosofia, ao
menos em muitos de seus domínios, não acabasse sendo definitivamente
alterada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões
superiores de claridade e rigor e aumentando de modo impressivo o seu
42
potencial heurístico. A assimilação de todos esses novos procedimentos em
uma investigação que além disso não deixa de levar em conta os resultados
da ciência tem permitido e irá permitir que vejamos mais coisas de modos
mais claros e distintos, em uma revolução comparável àquela que a
descoberta do telescópio representou para a astronomia.
Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a
filosofia analítica parece ter somente a linguagem como objeto é a sua
preocupação propedêutica geral com o elemento lingüístico-conceitual,
tornada perceptível principalmente através do que Quine chamou de acento
semântico. Esse fato confundiu filósofos analíticos, levando-os a tomar
novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser
usados em outro lugar – pelo método peculiar da filosofia, levando-os ao
erro subseqüente de confundir o objeto de aplicação desses instrumentos
com o objeto peculiar da filosofia. O fato de em filosofia nós geralmente
apelarmos a uma metalinguagem semântica a sublinhar a linguagem, a qual
nos compele a um tratamento mais rigoroso das estruturas lingüísticoconceituais sem ignorar seus sentidos ou mesmo as suas referências
(concebidas através de seus sentidos), portanto, sem fechar o caminho para o
mundo, é um elemento constitutivo essencial do que, de um modo um tanto
enganoso, tem sido chamado de filosofia analítica. De fato, se “análise
conceitual” é o nome de algo, então, é o nome dos modos filosóficos de
indagação que incorporam em si mesmos uma certa ênfase conceitual, junto
com os procedimentos heurísticos que se foram tornando comuns a domínios
centrais da filosofia no decorrer do século XX. Em suma: “análise
conceitual” é o nome dado aos mais salientes traços procedimentais de um
estado da arte historicamente contingente – de um estilo, mais do que de
uma coisa. Mais tarde (capítulo VII, 3) veremos que a emergência da
43
filosofia analítica pode ser muito melhor compreendida como um evento
histórico contingente, gerado pelo desenvolvimento do que poderia ser
chamado de “ciências semióticas”, nada tendo a ver com a descoberta do
verdadeiro objeto da filosofia ou de seu próprio e inalienável método.
44
III
FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO
CONJECTURAL DA CIÊNCIA
Onde a filosofia esteve, lá deverá estar a ciência.
Robert Nozick
’Filosofia’ poderia ser também chamado o que
é possível antes de todas as novas descobertas
e invenções.
Wittgenstein
Neste capítulo começo a busca descritivista pelos critérios usados para
identificar o discurso e pensamento filosóficos. Minha sugestão inicial é que,
mesmo que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação
filosófica, ou nada de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo,
ainda assim seremos capazes de encontrar algo muito peculiar à filosofia se
prestarmos atenção a sua forma.
1. O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL
DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA
Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço
identificador da filosofia nos aspectos materiais da investigação, ele poderá
sempre encontrar um traço formal muito peculiar e comum a toda indagação
filosófica, qual seja, o seu caráter conjectural. Filosofia é essencialmente um
45
empreendimento conjectural ou especulativo, no sentido de que filósofos
não são capazes de produzir acordo consensual suficiente no que concerne
a suas idéias, doutrinas e mesmo aos seus valores e concepções mais
fundamentais. Não há filosofia cujos resultados possam ser tomados por
certos ou indiscutíveis. A razão dessa dificuldade não é difícil de ser
encontrada. Para alcançarmos acordo consensual sobre os resultados de
nossos questionamentos intelectuais, precisamos compartilhar de alguns
pressupostos fundamentadores. Mas a filosofia carece de um mínimo de
compartilhamento de pressupostos em quase todos os passos de sua
indagação. Particularmente importante nesse aspecto é a ausência de
pressupostos compartilhados capazes de produzir acordo consensual sobre
(A) o que são as verdadeiras questões, os problemas, como devem ser as
suas formulações, quais são as assunções gerais que formam o pano
de fundo do campo de investigação em questão. (Filósofos nunca
concordam sobre quais são as questões e preocupações relevantes, ou
sobre se elas realmente fazem sentido, se não são pseudo-problemas.)
E também sobre
(B) o que deve contar como procedimento de avaliação da verdade, ou
seja, como procedimento verificacional e/ou falsificacional de
argumentação, capaz de confirmar ou desconfirmar as soluções
aventadas, sejam elas empíricas ou conceituais. (Filósofos nunca
concordam quanto ao peso dos seus argumentos; argumentos
convincentes para uns podem parecer falaciosos ou irrelevantes para
outros.)
46
Sem o compartilhamento de semelhantes assunções (que não existe na
filosofia, embora exista na ciência) parece impossível esperar qualquer coisa
como um acordo sobre resultados.
Para exemplificar, consideremos uma vez mais a doutrina platônica das
idéias. Essa doutrina foi sugerida como uma solução para o problema da
generalidade ou predicação e construída sob o pressuposto de que para algo
ser um objeto de conhecimento, esse algo deve ser imutável. Ora, como o
mundo visível é sempre passível de mudança, o único objeto próprio do
conhecimento deve ser aquilo que Platão chamou de idéias ou formas,
objetos existindo fora do tempo em um mundo puramente inteligível. Como
conseqüência podemos, por exemplo, generalizar, dizendo que muitas coisas
são belas e predicar beleza de uma grande diversidade de coisas visíveis, na
medida em que elas exemplificam a idéia abstrata do belo. Contudo, a
doutrina também conduz a dificuldades. Uma delas é a seguinte: como pode
a idéia preservar a sua unidade quando compartilhada pelos muitos
indivíduos aos quais se aplica? Para resolver esse problema, Platão apela
para os conceitos de participação e de cópia, por ele usados de uma maneira
metafísica e, aparentemente, inconsistente. Assim, ele é forçado a defender
que muitas coisas podem participar de uma mesma idéia, mas sem a dividir
em partes, o que parece ser inconsistente com o conceito de participação. E
ele é também forçado a pensar que uma coisa deve ser similar à idéia da qual
é cópia, mas que a idéia não pode ser similar à coisa, o que é inconsistente
com o caráter simétrico da relação de similaridade.
O que têm os críticos da doutrina platônica a dizer acerca disso?
Primeiro, eles estão livres para rejeitar o pressuposto platônico de que o
47
conhecimento deve ter por objeto algo imutável, e a questionar a
necessidade de se recorrer a objetos não-empíricos do conhecimento nãoanalítico. Ademais, eles podem se sentir tentados a considerar o conceito
platônico de idéia em última análise incoerente, posto que a tentativa de
explicá-lo é feita através de metáforas irresgatáveis. São essas objeções
justificadas? Sim, talvez. Mas para ser mais justo, não sabemos ao certo. A
incerteza é de fato esperada, visto que a filosofia consiste na criação de
teorias sempre dubiosas, fundadas sobre bases incertas. Essa é uma
conclusão falibilista um tanto deprimente, que filósofos tradicionais
tentaram negar, mas que filósofos contemporâneos já há algum tempo
aprenderam a admitir como inevitável. De fato, não há exceção. Mesmo a
filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser
puramente descritiva, acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo
consensual: onde Wittgenstein viu um remédio, outros viam um placebo ou
mesmo um veneno.
Essa impossibilidade de acordo consensual também provê o mais saliente
termo de contraste entre filosofia e ciência: diversamente da filosofia, em
todas as ciências, tanto empíricas quanto formais, encontramos sempre um
suficiente acordo prévio acerca de assunções gerais (que tornam possível a
existência de problemas comuns), bem como suficiente acordo prévio acerca
de procedimentos de avaliação da verdade (que possibilitam que se chegue a
soluções comuns). Tais acordos prévios possibilitam o acordo ulterior acerca
dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação/refutação em ciências
empíricas, quanto no que concerne às provas de teoremas em ciências
formais. É porque cientistas, diversamente de filósofos, foram capazes de
estabelecer tais pressupostos comuns, que eles conseguem alcançar acordos
48
acerca dos resultados de suas investigações e ter a esperança de chegar a um
desenvolvimento progressivo.
Prestar atenção à natureza conjectural do esforço filosófico ajuda-nos a
explicar duas outras características formais suas, que são o caráter
tipicamente argumentativo e aporético de seu discurso, com poucas (e
questionáveis) exceções. Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo
certos princípios incertos e tentando validá-los ao mostrar o quanto deles se
segue. Tal procedimento é dependente do caráter conjectural da indagação
filosófica, posto que pelo próprio fato de trabalharem com conjecturas,
filósofos procedem a uma constante comparação crítica entre as
conseqüências argumentativas das assunções que eles crêem ser corretas,
adicionada a uma comparação crítica entre as qualidades dos argumentos
usados para se chegar a essas conseqüências, em uma tarefa aparentemente
sem fim. O caráter conjectural da filosofia gera a sua praxis
caracteristicamente argumentativa, dialógica e aporética.
Poderia a filosofia ser definida apenas em termos de seu caráter
conjectural e especulativo? Não sem qualificações, posto que nem todas as
conjecturas são filosóficas. Podemos, por exemplo, fazer conjecturas sobre
as condições climáticas da Terra nos próximos cinqüenta anos, mas isso não
chega a constituir uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa
conjectura não é filosófica pode ser a falta de um ponto teorético: ela não
passa de uma projeção plausível de eventos empíricos. Por outro lado, a
conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática
universal inata a todos os homens não pode ser facilmente provada, sendo
em uma certa medida filosófica. Mas ela só é filosófica em um sentido muito
enfraquecido, posto que esse é um problema bastante específico, cujos
caminhos de verificação experimental seriam facilmente reconhecíveis
49
quando encontrados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física
contemporânea, como a teoria das cordas, não são atualmente testáveis. Elas
possuem, diríamos, algo de filosófico, mas são consideradas científicas na
medida em que os físicos não as considerarem tão especulativas a ponto de
parecer absurda a idéia de se encontrar um meio de fazê-las passar pelo
tribunal da experiência. Vemos, pois, que a diferença entre especulação
científica e filosófica não é tão abrupta, dependendo também do grau de
impossibilidade de comprovação consensual. Poderíamos então qualificar
como filosóficos todos os esforços argumentativos e definitivamente
conjecturais, geralmente com um ponto teorético e uma preocupação ampla?
Isso parece correto, embora ainda breve e pouco informativo.
2. A IDÉIA DA FILOSOFIA COMO
UMA PROTOCIÊNCIA
Uma resposta mais profunda à questão “Por que a filosofia é uma forma
conjectural de investigação?” poderia ser dada no caso de admitirmos a tese
de que ela é uma protociência, ou seja, um empreendimento conjectural
antecipador da ciência, e que a duradoura atualidade das teorias filosóficas
têm a sua origem nas verdades científicas que nelas vêm antecipadas.
Que ao menos parte da filosofia é (ou foi) uma antecipação da ciência não
é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos,
quando todas as ciências empíricas fundamentais ainda estavam para ser
formadas, a palavra “filosofia” era indistintamente aplicada ao completo
domínio da investigação humana. Somente muito mais tarde, com a
emergência daquelas ciências, a aplicação da palavra “filosofia” tornou-se
gradualmente mais e mais restrita. Ao ceder partes de seus domínios à
50
ciência a filosofia tem se revelado, como Antony Kenny escreveu, o útero
do qual as ciências particulares nasceram(27). Essa constatação do papel da
filosofia como protociência foi sintetizada de maneira impressiva em uma
bem conhecida metáfora de J. L. Austin:
A filosofia é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que de tempos
em tempos perde uma porção de si mesmo que se torna ciência, um
planeta, frio e bem regulado, progredindo constantemente em direção a
um estado final distante. Isso aconteceu há longo tempo atrás, com o
nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física;
somente no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra
vez, lento e naquele tempo quase imperceptível, no nascimento da ciência
da lógica matemática, através do trabalho conjunto de filósofos e
matemáticos.(28)
Na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação
especulativa trabalhada em um material de pensamento que ao menos
potencialmente é capaz de receber um lugar na ciência, nós temos uma razão
mais profunda para explicar a sua natureza conjectural, argumentativa e
aporética. Essa razão é que se a filosofia é o que pode ser feito antes da
investigação científica se tornar possível, então torna-se mais compreensível
que as mais diversas hipóteses possam ser sugeridas, que as mais diversas
linhas de pensamento possam ser desenvolvidas na tentativa de justificá-las,
e que a disputa sobre a hipótese certa e o melhor argumento perdure
indefinidamente. Esse estado de coisas somente termina quando o caminho
da inquirição científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando os
investigadores finalmente alcançam suficiente acordo sobre os pressupostos
51
fundamentadores subjacentes a um certo campo de investigação, o que
estabelece uma clara delimitação para as questões a serem admitidas e para
os procedimentos pelos quais as suas respostas podem ser avaliadas. Quando
esse acordo prévio é suficientemente amplo para permitir a produção de
resultados consensuais, os investigadores não continuam a chamar o seu
objeto de pesquisa de “filosófico”: eles simplesmente o redefinem como
objeto da ciência. Por isso é que se diz que a tragédia do filósofo é que
sempre que ele alcança uma verdade definitiva, ele a perde para o cientista.
3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA
Antes de discutirmos em maiores detalhes as possibilidades de derivação
da ciência a partir da filosofia é aconselhável dizer alguma coisa sobre a
classificação e emergência das ciências mais fundamentais.
Ciências são obviamente de dois tipos: formal e empírico. Estes dois
tipos de ciência sempre foram em certa medida interdependentes em seus
desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais foram a lógica e a
matemática. A matemática teve a sua origem na Antiguidade. A aritmética
elementar separou-se da filosofia já entre os gregos, quando o seu objeto, o
elemento numérico, foi pela primeira vez considerado em separação dos
problemas práticos que a aritmética deveria resolver. Uma parte muito
limitada da lógica, ao menos, começou muito cedo, já com a silogística
aristotélica.
Poderíamos falar de protomatemática e protológica filosóficas? Por que
não? O poema de Parmênides, por exemplo, contém uma sugestão
metafisicamente formulada da lei lógica da não-contradição, ao afirmar que
o Ser é e que o não-Ser não pode ser, enquanto Platão dispunha de uma
52
teoria rudimentar da predicação. Além disso, os filósofos pitagóricos,
impressionados com as realizações da matemática abstrata, acreditavam que
os números fossem o princípio sustentador de toda a realidade, confundindo
à sua maneira o formal com o empírico. Contudo, a verdadeira questão sobre
a natureza dos números ainda estava por esse tempo oculta na mais completa
escuridão.
Voltando-nos para as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão
corrigida e atualizada da velha classificação das ciências empíricas
fundamentais proposta por Auguste Comte, posto que ela ainda parece
bastante razoável, além do fato de ser capaz de prover-nos de um rationale
para a compreensão da ordem do aparecimento dessas ciências. O seu
princípio de classificação mantém que as ciências fundamentais estão
relacionadas umas às outras em uma ordem que vai (a) da maior para a
menor generalidade no escopo, correspondendo isso a uma ordem inversa,
que vai (b) da menor para a maior complexidade dos fenômenos por elas
investigados. Modificando um pouco a classificação original de modo a
atualizá-la podemos, aplicando esse princípio, distinguir cinco ciências
fundamentais: física, química, biologia, psicologia e sociologia(29). O
seguinte esquema sumariza essa classificação:
53
PARTICULARIDADE
5. sociologia
4. psicologia
COMPLEXIDADE
ciências
humanas
(a)
(b)
3. biologia
2. química
1. física
GENERALIDADE
ciências
naturais
SIMPLICIDADE
A física é a primeira ciência fundamental, abrangendo em seu escopo
toda a realidade empíricas, sem exceção. A química tem um escopo mais
restrito, aplicando-se à realidade empírica formada pela combinação de
elementos atômicos. A biologia se aplica somente a compostos químicos que
constituem organismos vivos. A psicologia se aplica somente a organismos
que possuem consciência. E a ciência social restringe o seu escopo a
organismos conscientes, na medida em que eles se estruturam socialmente.
À progressiva perda de generalidade dos fenômenos investigados
corresponde um ganho em complexidade, o que se dá pelo fato da
complexidade ser inconcebível no domínio do mais geral.
As relações de generalidade e complexidade também nos ajudam a
explicar a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências fundamentais e,
relacionada a isso, também a própria ordem de seu desenvolvimento
histórico. De fato, para aprender física nós não precisamos geralmente
aprender qualquer coisa de química, mas a química pressupõe algum
entendimento de física em seus fundamentos. Também o aprendizado e a
aceitação da psicologia pressupõe algum entendimento de biologia, mas não
o contrário etc. O desenvolvimento das ciências fundamentais mais
54
específicas e complexas depende de um ou de outro modo do
desenvolvimento das ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência
também envolve os desenvolvimentos das aplicações das ciências mais
gerais: como poderia, por exemplo, a biologia se desenvolver sem o
microscópio, cuja construção depende de desenvolvimentos prévios no
âmbito da física? Isso nos faz entender por que, com o Renascimento, a
primeira ciência a emergir foi a física. Embora houvesse rudimentos de
física mesmo na antiguidade (ex.: a descoberta da densidade específica por
Arquimedes), somente após Galileu a física experimental foi capaz de
emergir como um corpus unificado de idéias científicas. Depois da física, as
outras ciências fundamentais, a química, a biologia, a psicologia, a ciência
social, separaram-se subseqüentemente da filosofia – as últimas duas parece
que até hoje só parcialmente, em um processo escalonado, gradual e
convulsionado.
Mais além, essas dependências nos ajudam a explicar por que o processo
de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito
mais lento, laborioso e escalonado. Nós encontramos uma ruptura
epistemológica(30) clara no nascimento da física como um corpo de
conhecimento científico com Galileu e Newton nos séculos XVII e XVIII,
no nascimento da química com Lavoisier, Cavendish e outros no final do
século XVIII, e mesmo na mais escalonada organização da biologia como
um corpo de conhecimento científico durante todo o século XIX, por
cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin. Rupturas
ocorreram nessas ciências quando, além do acúmulo do conhecimento,
apropriados métodos de investigação foram encontrados, os quais proveram
a possibilidade de acordo consensual sobre o poder preditivo e explicativo
de suas teorias dentro de um corpus unificado. Não obstante, não
55
encontramos ruptura abrupta nos domínios mais complexos da psicologia e
da ciência social. Uma razão para isso pode ser o irredutível elemento de
evidência interna, introspectiva, que sempre desempenha um papel nas
ciências humanas e sociais. Esse elemento de evidência interna não é aberto
à observação interpessoal e por essa razão não pode ser tão facilmente
considerado objetivamente – embora ele não seja de modo algum
desesperadamente subjetivo, como alguns ainda pretendem(31). Mas uma
outra razão para a constituição mais gradual das ciências humanas pode estar
no fato de que em domínios de maior complexidade e diversidade dos
fenômenos
estudados
os
procedimentos
avaliativos
requerem
um
considerável conhecimento de fundo, o qual é provido pelas ciências mais
fundamentais. Para sintetizar: de um modo ou de outro as ciências humanas
requerem, para o seu desenvolvimento, a maturidade das ciências mais
fundamentais e, em adição a isso, o desenvolvimento de suas possibilidades
de aplicação técnica. (Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais
científica a psicologia poderá apresentar-se no futuro, após uma explicação
adequada das bases neurofisiológicas dos fenômenos mentais
por uma
neurociência suficientemente desenvolvida).
Há uma razão pela qual as ciências que estivemos considerando merecem
ser chamadas de “fundamentais”. As outras ciências empíricas disponíveis
são, ou subdivisões particularizadas dessas ciências fundamentais (como a
lingüística e a economia como partes da ciência social) ou combinações dos
resultados das ciências fundamentais, os quais são aplicados localmente a
certos tipos específicos de objetos ou regiões do espaço e do tempo.
Exemplos do último tipo são a história, que aplica (entre outras coisas)
insights psicológicos e sociológicos ao entendimento das mudanças no
mundo humano; a etnologia, que aplica a psicologia e a sociologia ao estudo
56
de grupos étnicos culturalmente distintos; a geologia, que aplica física e
química ao estudo da Terra; a neurofisiologia, que aplica a bioquímica e
biofísica à investigação do funcionamento do cérebro... (Pode haver,
obviamente, combinações dessas aplicações e assim por diante.)
Finalmente, devemos notar que a emergência de ciências fundamentais
sempre substituiu a especulação metafísica. A emergência da física como
ciência experimental pôs um fim ao reino da física aristotélica especulativa
(na medida em que esta não se mesclava confusamente à metafísica), um
destino similar tendo a doutrina dos quatro elementos após o
desenvolvimento da química e também o vitalismo (a doutrina segundo a
qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais
diferentes das forças físicas) após o desenvolvimento da biologia.
Neste e nos próximos capítulos irei assumir essa classificação comtiana
modificada das ciências fundamentais, posto que ela permanence a mais
intuitiva e indisputável, ao menos enquanto não a subordinarmos a questões
subseqüentes sobre redução teórica ou a um problema metafísico acerca da
unidade das ciências.
4. ALGUNS EXEMPLOS DE INSIGHTS
FILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS
Nesta seção considerarei alguns exemplos de idéias filosóficas
antecipando idéias científicas respectivamente nos campos da física, da
química, da biologia e da psicologia. Esses exemplos podem confundir-nos,
como veremos mais adiante, pois eles dizem respeito somente a antecipações
de ciências bem conhecidas, e não às desconhecidas, certamente bastante
diversas, sugerindo enganosamente que as nossas indagações filosóficas
57
atuais deveriam ser relacionadas a ciências futuras exatamente do mesmo
modo que a filosofia do passado tem sido relacionada a nossas ciências
empíricas mais fundamentais. Se mantivermos isso em mente, não deixa de
ser instrutivo considerá-los.
O primeiro exemplo é a idéia defendida por Anaximandro (647-610 a.C.),
de que a Terra não é sustentada por nada, encontrando-se estacionariamente
suspensa, já que igualmente distante de todas as coisas, sendo impossível
para ela mover-se simultaneamente em direções opostas(32). Karl Popper
mantém com suficiente verdade que essa foi uma das idéias mais ousadas de
toda a história do pensamento humano, tornando possível as teorias de
Aristarco, de Copérnico e mesmo de outros, porque
...conceber a terra como livremente disposta no meio do espaço, e dizer
“que ela permanece sem movimento por causa da eqüidistância e do
equilíbrio” é antecipar em alguma extensão mesmo a idéia de Newton de
forças gravitacionais imateriais e invisíveis.(33)
Embora antecipadora da ciência, a hipótese de Anaximandro não poderia de
modo algum ser vista como científica, posto que no tempo em que ela foi
formulada não era concebível nenhum procedimento de avaliação da
verdade que pudesse conduzir a um acordo consensual. Por contraste, as
idéias de Copérnico e Newton foram capazes de ser avaliadas e de obter
acordo consensual acerca de sua verdade ou falsidade, posto que uma tal
condição de cientificidade já havia se tornado alcançável pela época de sua
formulação.
Um exemplo por demais conhecido de antecipação é também a teoria
atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual pedaços
58
visíveis de matéria são agregados de átomos invisíveis e fisicamente
indivisíveis, os quais possuem inúmeras formas distintivas. Essa teoria é
uma antecipação especulativa da forma de uma teoria atômica da matéria,
ainda que não de seu conteúdo. E a teoria dos quatro elementos, terra, água,
ar e fogo, mantida por filósofos como Empédocles, antecipa em termos de
forma ou similaridade de concepção a tabela periódica de Mendeleev, com a
sua seqüência de elementos químicos fundamentais.
O terceiro exemplo é o da primeira hipótese na direção de um
evolucionismo biológico, também sugerida por Anaximandro. Ele afirmava
que a vida começa na água, que criaturas vivas podem ser espontaneamente
geradas da umidade e que seres humanos evolveram de espécies inferiores
(talvez peixes), posto que nos primeiros anos eles teriam morrido se fossem
tão indefesos como são hoje após o nascimento.(34) É verdade que as idéias
de Anaximandro, quando tomadas em um sentido estrito, estavam erradas,
pois ele acreditava em geração espontânea e que os homens tivessem sido
inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo completamente
formados de dentro deles, ao invés de se desenvolverem gradualmente(35).
Contudo, é certo que já existe nessas idéias um quê de evolucionismo,
apontando
para
caminhos
de
pensamento
que
só
puderam
ser
adequadamente trilhados dentro de um quadro categorial científico mais de
dois mil anos depois, quando a existência de um adequado pano de fundo de
desenvolvimentos tornou possível a busca de respostas precisas, detalhadas e
não-especulativas para indagações acerca da origem das espécies.
Alguém poderia aqui objetar que sentenças com “A terra está suspensa no
espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se a partir de formas inferiores de
vida”, que podem ser abstraidas da obra de filósofos pré-socráticos são de
fato verdade verdades científicas. Será então que elas foram filosóficas e
59
hoje se tornaram científicas? Em certo sentido, a resposta é afirmativa. As
idéias por elas expressas passaram a ser consideradas científicas para nós.
Não obstante, isso não significa que elas não fossem filosóficas para outros
homens em outros tempos, pois elas só se completam quando vinculadas ao
contexto de sua enunciação. Ora, precisamente porque estamos examinando
idéias de pensadores do passado, tais idéias precisam ser consideradas nos
contextos onde nasceram, nos quais elas só poderiam ser endereçadas
especulativamente. Ou seja: o predicado ‘...é filosófico’ somente faz sentido
pleno quando relacionado ao contexto histórico no qual as idéias são
consideradas. Como nós situamos as sentenças acima no contexto da obra de
filósofos pré-socráticos, nós as consideramos filosóficas, mas do contrário
nós as consideraríamos científicas.
O último exemplo, relacionado à psicologia – um campo de investigação
que ainda não foi completamente desenvolvido como ciência –, diz respeito
à doutrina platônica da tripartição da alma (Republica, IV, 446 A ss.). De
acordo com essa doutrina, a mais primitiva parte da alma é formada de seus
apetites corporais, desejos e necessidades. A segunda parte é a do elemento
animoso, formado por impulsos emocionais tais como coragem, raiva,
ambição, orgulho, amizade, honra, lealdade etc. A terceira parte da alma é
formada pela razão atuando como um princípio inibitório que comanda os
outros. No diálogo Phaedrus (246 ss.) Platão comparou a razão com o
condutor de um carro de guerra ao qual está atrelado um par de cavalos
alados, um deles bom, que representa o elemento animado e que se esforça
para se alçar ao reino das idéias, e outro mau, representando os maus
apetites, esforçando-se para trazer a todos de volta para o reino terreno e
dando muito trabalho ao condutor.
60
Ora, a doutrina platônica da tripartição da alma pode ser vista como um
antecessor da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund Freud(36).
Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias: o id (Es),
que é inconsciente e representa nossos instintos; o superego (über-Ich), em
geral inconsciente, que representa a figura introjetada do pai, fazendo
restrições morais e exigindo a realização de ideais; e o ego (Ich), geralmente
consciente, o qual está imediatamente vinculado à vontade consciente, à
percepção e ao controle motor. Mais além, a relação dinâmica entre as
instâncias se deve, para Freud, ao fato de que o ego tem a função de mediar
entre as necessidades do id e as restrições e exigências do superego.
Como parece claro, as duas teorias se correspondem em certa medida: o
id freudiano corresponde aos apetites corporais, mas inclui também
elementos volitivos atribuídos por Platão ao elemento animoso da alma,
como a raiva; o superego corresponde em alguma medida ao elemento
animoso, ao bom cavalo da analogia platônica; e o ego parece corresponder
ao elemento racional, ao condutor, tentando satisfazer as demandas opostas
do id e do superego.
O presente exemplo é um pouco diverso dos anteriores. Quando
confrontamos essas duas teorias, deparamos com uma dificuldade similar
àquela que encontramos quando tentamos comparar duas teorias filosóficas.
De fato, a psicanálise não satisfaz as condições da investigação científica, se
estas exigirem que os especialistas sejam capazes de chegar a um acordo
consensual sobre os seus resultados, pois os seus praticantes nunca
conseguiram chegar a tal acordo, por mais preparados que fossem, o que
levou a psicanálise a fragmentar-se em uma variedade de escolas
competidoras, cada qual dirigida por seus próprios “líderes intelectuais”.
Não obstante, enquanto a sugestão de Platão era baseada somente em sua
61
experiência introspectiva e em suas observações circunstanciais do
comportamento humano em geral, a teoria freudiana tira as suas conclusões
de um método de associações livres, comparativamente aplicado a inúmeros
pacientes, além de introduzir um novo elemento teórico, o inconsciente, e de
ser desenvolvida de maneira menos metafórica e mais detalhadamente
articulada. A teoria estrutural da mente pretende dizer-nos mais e parece
realmente fazê-lo. Mesmo incerta, ela sugere um quadro conceitual mais
apto a ser avaliado dentro dos quadros categoriais inerentes à psicologia
científica contemporânea.
Quero concluir esta seção com uma observação terminológica acerca do
conceito de antecipação da ciência. Precisamos distinguir entre boas e más
antecipações. Os exemplos considerados podem ser considerados boas
antecipações: as idéias de Anaximandro sobre a forma e localização da
Terra, ou sobre a evolução biológica, mostram de um modo obviamente
muito grosseiro a direção a ser seguida pela ciência, e a teoria platônica da
tripartição da alma antecipa a forma da teoria freudiana posterior, a qual
tentativamente acerca-se da ciência. Contudo, muitos empreendimentos
filosóficos podem ser vistos como más antecipações no sentido de que eles
apontaram para a direção errada. Um caso famoso foi, no século XVIII, a
hipótese do flogisto, sugerindo a existência de um elemento liberado pelo
fogo e responsável por ele, o que era completamente errado e retardou o
desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo ainda mais
notório de má antecipação foi o da física aristotélica apriorista, a qual, aceita
pela Igreja como matéria de dogma, retardou o desenvolvimento da física
experimental durante toda a Idade Média, até que os experimentos de
Galileu a tornaram insustentável. Finalmente, os conceitos de boa e má
antecipação são relativos à extensão do desvio da verdade que estamos
62
dispostos a tolerar, o que pode variar de acordo com o contexto: o
evolucionismo de Anaximandro, por exemplo, seria visto como uma má
antecipação em um contexto mais estrito, no qual desejamos excluir
explicações não-darwinianas da evolução como fundamentalmente errôneas.
5. FISSÃO
Antony Kenny, considerando o modo pelo qual o pensamento filosófico
dá lugar à ciência, notou que isso ocorre por um processo de parturição que
ele chama de fissão(37). Ele tornou esse processo claro com um exemplo
relativo a um dos problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão
das idéias inatas. Inicialmente o problema era o seguinte: quais de nossas
idéias são inatas e quais são adquiridas? Após Kant essa questão confusa
dividiu-se em duas outras: por um lado, a questão dos papéis da herança e do
meio ambiente na constituição de nossas idéias, por outro, a questão de
quanto de nosso conhecimento é a priori. A primeira questão, diz Kenny, era
anterior e foi passada adiante para a psicologia, enquanto a segunda, relativa
à justificação de nosso conhecimento, permaneceu filosófica. Algum tempo
depois a questão remanescente sobre o a priori dividiu-se outra vez em
questões filosóficas e não-filosóficas, ramificando-se em um número de
questões, uma delas sendo: quais proposições são analíticas e quais são
sintéticas? Para Kenny, a noção de analiticidade encontrou formulação
precisa nos trabalhos de Frege e Russell, em termos de lógica matemática, e
a questão “É a aritmética analítica?” encontrou uma resposta matemática
precisa no teorema da incompletude de Kurt Gödel; todavia, problemas
residuais relativos à natureza e justificação da verdade matemática foram
63
deixados para trás, permanecendo questões de disputa filosófica. O seguinte
esquema resume essa versão do processo:
problema filosófico das
idéias inatas
fissão
questão psicológica sobre o
papel da hereditariedade e
do meio ambiente na constituição de nossas idéias
problema filosófico de se saber o
quanto de nosso conhecimento é
a priori
fissão
questões lógico-matemáticas sobre a definição e
extensão da aprioridade
em matemática
questões filosóficas remanescentes sobre a natureza
e extensão do conhecimento a priori em geral
O modelo de desenvolvimento aqui sugerido é aquele em que os amplos e
confusos problemas filosóficos dividem-se em partes; umas delas
condensam-se em questões científicas, capazes de alcançar respostas
consensuais, enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo
tende a repetir-se outras vezes com as questões filosóficas remanescentes,
talvez até o seu desaparecimento final.
Quando consideramos esse processo, o ponto mais importante a ser
ressaltado é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz mudanças
que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação
filosófica. Como o exemplo mostra, após a fissão a parte do problema que
permanece filosófica precisa ser reformulada, gerando novas respostas. Mas
64
as mudanças não permanecem a ela circunscritas. Todos os problemas
relacionados, que pertencem ao mesmo domínio de investigação filosófica,
podem precisar ser acomodados ao novo estado de coisas, junto com as suas
respostas especulativas. Isso é feito por meio de uma reformulação mais ou
menos extensa dos problemas e de suas respostas, assim como por uma
relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente aos
outros problemas e respostas. Para dar um exemplo: a reformulação kantiana
do problema filosófico remanescente das idéias inatas em termos de sua
doutrina sobre um conhecimento e conceitos a priori levou a reformulações
subseqüentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus. Kant
deixou de conceber esses conceitos como realmente designando seus
objetos, passando a vê-los como idéias da razão: conceitos a priori do tipo
“como se” (als ob), gerados pela natureza da razão, cuja função não é a de
designar seus objetos, mas somente a de orientar nossos processos de
inferência como se tais objetos pudessem ser designados. Assim, devemos
proceder intelectualmente como se existisse um mundo externo que fosse
uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso
conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se houvesse um
objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir um
entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder
como se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa
e interna –, como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar
nosso conhecimento da natureza como um todo. Como conseqüência dessa
reformulação dos conceitos de natureza, alma e Deus como conceitos a
priori diretivos, segue-se uma relocação de seus lugares dentro do sistema
conceitual da filosofia teórica; nesse contexto, ao menos o conceito de Deus,
por exemplo, não precisa nem pode mais ser visto como sendo o de uma
65
entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o todopoderoso Deus veraz ainda mantido na filosofia “pré-crítica” de Descartes.
6. O NÚCLEO RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS
RESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES
Como um resultado dos processos descritos, a filosofia tem se contraído
em um conjunto resistente de questionamentos. Esses questionamentos
certamente incluem os das filosofias das ciências fundamentais, os quais
tomam as já existentes ciências particulares como seus objetos. Como essas
filosofias são dependentes do desenvolvimento dessas ciências, elas devem
se desenvolver mais tarde. Conseqüentemente, não é desarrazoado esperar
que essas filosofias um dia venham a alcançar acordo consensual como
metaciências (ciências de ciências).
Contudo,
o
questionamentos
núcleo
mais
filosóficos
resistente
do
presente
conjunto
de
consiste essencialmente das disciplinas
tradicionais mais centrais e difíceis da filosofia, como a epistemologia, a
metafísica, a filosofia do conteúdo, a ética. Esses domínios centrais têm até
agora resistido a qualquer conversão em ciência, sendo importante perceber
a sua peculiaridade. Eles não estão no mesmo nível das ciências
fundamentais ou mesmo das filosofias das ciências. De fato, o que chama
atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é a sua
extraordinária abrangência. No caso da metafísica são tratados problemas
últimos como o dos universais, da substância, da natureza da causalidade, do
espaço e do tempo, da identidade... que dizem respeito ao mundo de modo
mais geral, envolvendo objetos da experiência, tanto externos quanto
internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências
66
fundamentais, visto que tanto os da física quanto os da biologia, da
psicologia... também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo,
seguem leis causais etc. No caso da epistemologia, as questões não são
menos abrangentes, posto que elas não dizem respeito a esta ou aquela forma
de conhecimento, mas ao conhecimento em geral, sendo comuns a todas as
inquirições da mente. Considerando a dificuldade e relevância desses
domínios de investigação, nossa questão sobre qual é a natureza da filosofia
poderia ser nesse ponto substituída por outra não menos importante: qual é a
natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?
A mais séria questão relativa à idéia de filosofia como antecipação da
ciência não é sobre o fato indiscutível da ciência ter se estabelecido a partir
da filosofia, mas sobre a extensão dessa derivação. Pode ser que o conjunto
remanescente de questionamentos filosóficos, ou ao menos parte dele,
pertença essencialmente à filosofia de um modo que o torne resistente à
transformação em ciência. Ou será que tudo o que é filosófico pode, em
princípio, tornar-se ciência?
Filósofos dividem-se acerca disso. Alguns, como Keith Lehrer, sugeriram
a hipótese progressista de que a filosofia é “apenas o nome coletivo do pote
de problemas ainda intocado pela ciência”(38). Para ele o fato de que
algumas questões filosóficas há mais de dois mil anos esperam por uma
resposta consensual não significa que essa resposta jamais será encontrada.
A maioria dos filósofos, porém, mantém-se mais reservada. Antony Kenny,
por exemplo, sustenta em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de
Aquino a hipótese, que chamarei de conservadora, segundo a qual, mesmo
que a filosofia tenha em seu passado entregue à ciência partes de si mesma,
essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos
remanescentes
e
centrais
são
os
genuinamente
filosóficos.
Eles
67
compreendem para Kenny a epistemologia, a metafísica, a ética e a teoria do
significado. Esses problemas permanecerão para sempre filosóficos(39).
Tentando justificar essa afirmação, Kenny, influenciado pela idéia
wittgensteiniana de representação sinóptica (ver nota 19), sugeriu que a
filosofia,
diversamente
das
ciências
particulares,
trata
de
nosso
conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos de
maneira a nos prover de uma sinopse, ou seja, de uma visão geral de nosso
próprio conhecimento, mais do que da aquisição de novas verdades. Essa
finalidade dá à filosofia uma espécie de abrangência que não pode ser
encontrada em nenhuma ciência particular. Essa abrangência, argumenta
Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em Aquino permanence de
muitos modos relevante:
A filosofia é tão omniabrangente em seu objeto de investigação, tão
ampla em seu campo de operação, que a conquista de uma sinopse
filosófica sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil que só
um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente
completamente excepcional pode ver as conseqüências mesmo dos mais
simples argumentos e conclusões filosóficas.(40)
No que se segue irei argumentar a favor da primeira e mais progressista
hipótese, embora não da maneira que o leitor possa estar supondo.
7. NOSSA IDÉIA GERAL DE CIÊNCIA
Meu argumento, sugerindo que todas as questões filosóficas no final
deverão ser absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não
68
tentarei demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja
possível. Mas pretendo mostrar que a tese progressista, de que as questões
filosóficas podem ser todas absorvidas pela ciência, pode ser tornada
plausível, na medida em que as razões que o filósofo tem para rejeitá-la
podem ser removidas.
Parece haver duas razões profundas com base nas quais muitos filósofos
vieram a rejeitar a idéia de que a totalidade da filosofia é antecipadora da
ciência(41). A primeira é que quando eles pensam em ciência eles têm em
mente as já bem estabelecidas ciências experimentais da natureza.
Considerando não somente a limitação de escopo da maioria dessas ciências,
mas também o seu caráter empírico mais direto, aceitar a tese progressista
sobre a natureza da filosofia parece comprometer-nos com uma concepção
empobrecedora
e
redutiva
do
núcleo
de
problemas
filosóficos
remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia toda a sua
abrangência e relevância ao colocar os seus problemas no mesmo nível das
ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece então
deixar-nos sem nada, exceto algum tipo de cientismo pedestre,
intrinsecamente estreito e inimigo da abrangência e abstração às quais mais
pertence o genuíno filosofar.
A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista é a adoção
implícita de concepções da natureza da ciência mais influentes do século
XX, como a do positivismo lógico e as subseqüentes reações à sua
influência. Filósofos da ciência só foram capazes de construir teorias
interessantes e detalhadas na medida em que tomavam as ciências mais
desenvolvidas como modelos. Mas como nem todos os domínios científicos
são muito desenvolvidos, havendo certamente outros que sequer emergiram,
os filósofos da ciência geralmente tomaram as ciências naturais – a física em
69
particular – como os modelos exemplares, posto que elas são as mais
avançadas formas avaliáveis de seu objeto. Esse procedimento pode produzir
resultados frutíferos no que concerne à filosofia dessas bem estabelecidas
ciências quando consideradas em si mesmas. Não obstante, quando os
resultados são interpretados como caracterizadores da ciência em geral, ou
como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à
ciência, válido para todos os futuros candidatos, a conseqüência é uma
concepção estreita e obstrutiva dos limites da ciência. Isso é verdade, mesmo
para domínios de uma ciência natural fundamental, como a biologia, como o
evidencia o critério popperiano de cientificidade como falseabilidade de
nossas teorias através de experimentos decisivos. Seu critério pode se aplicar
de forma razoável à sua ciência modelo, a física, como no caso da teoria da
relatividade, que Popper gosta de usar como exemplo. Mas o mesmo critério
conduz à rejeição do caráter científico de muitas teorias psicológicas e sóciohistóricas, incluindo até mesmo a teoria da evolução – uma teoria biológica
cuja cientificidade ninguém ousaria negar. Que tipo de experimento poderia
capacitar-nos a falsificar uma teoria que explica uma infinidade de processos
que se estendem por um período de muitos milhões de anos no passado? E
mesmo que a teoria possa ser testada de algum modo indireto, falhar em
passar em tal teste não seria visto como um falseamento decisivo(42). Por
razões como essa eu penso que Popper estava certo quando pretendeu que a
sua metodologia não era descritiva do que pessoas (incluindo os cientistas)
pensam como pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão
racionalmente argumentada, embora, ao que tudo indica, estreita e artificial,
sobre o tipo de investigação que merece ser chamado de ciência(43). O
resultado da adoção de semelhante modelo de cientificidade pelo filósofo é
que ele não tem mais como permitir a admissão de que a filosofia seja
70
antecipação da ciência, pois é claro que segundo ele as áreas centrais da
investigação filosófica contemporânea, por sua própria natureza, nunca se
tornarão capazes de acomodar semelhantes exigências.
Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir a
hipótese progressista não são adequadas ao nosso caso. Pois quando
mantemos que a filosofia tem uma função antecipadora da ciência, não
precisamos limitar a aplicação da palavra “ciência” a algo similar às já
existentes ciências particulares; e também não somos de modo algum
forçados a aceitar o que filósofos da ciência do século XX nos contaram
sobre como a ciência deve ser. De fato, o que mais naturalmente vem à
mente quando contrastamos filosofia com ciência é a oposição entre o
pensamento conjectural (o da filosofia), no qual não há possibilidade de
acordo sobre os resultados, e um empreendimento não-conjectural (o da
ciência), no qual o acordo sobre a verdade ou falsidade dos resultados pode
ser efetivamente alcançado, juntamente com o progresso resultante dele.
Mais além, parece que a idéia de ciência como um empreendimento nãoconjectural e produtor da verdade concorda muito bem com o que nós –
cientistas e pessoas cultas, com exceção eventual de algum filósofo da
ciência de herança positivista – naturalmente queremos dizer com a palavra
‘ciência’. De fato, para julgar se uma teoria pertence à ciência, não
perguntamos em primeiro lugar se ela pode ser submetida à confirmação ou
desconfirmação empírica (embora isso também tenha, como veremos, o seu
ponto!). O que primeiramente perguntamos é se a comunidade científica
pode alcançar um acordo interpessoal sobre a sua verdade ou falsidade,
mesmo que tal acordo geralmente resulte de alguma forma de verificação
(ou resistência à falsificação) empírica nas ciências não-formais. A
possibilidade de resultados consensuais entre os cientistas parece ser um
71
requerimento mais geral e decisivo, diversamente dos variados modos
através dos quais tais acordos podem ser alcançados.
Como a idéia de que o empreendimento científico coneça a ser definido a
partir de sua possibilidade de consenso me pareceu óbvia demais para ser
passada despercebida, consultando a literatura em filosofia da ciência
encontrei defesas de pontos de vista similares da parte de sócioepistemólogos da ciência, particularmente John Ziman. Já na década de
1960, esse autor chamou a atenção para essa idéia ao consistentemente
manter que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos,
repousa “no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser
público e consensualizável”(44). Ora, parece que a admissão de uma
concepção tão liberal da natureza da ciência, liberta-nos de um compromisso
estrito com esse ou aquele modelo de cientificidade diretamente derivado de
alguma ciência particular e mesmo de qualquer ciência já existente. Adotar
uma tal conceito aberto da natureza da ciência como contraponto para a
conjectura filosófica deixaria, pois, de envolver o risco de passarmos a
pensar esta última sob a perspectiva de algum cientismo positivista.
No que se segue irei aprofundar a concepção geral da ciência vagamente
esboçada por Ziman. Ao contrário de Popper, não farei uma proposta: toda a
minha abordagem será descritivista. O que quero fazer é resgatar, em seus
traços gerais, o sentido técnico ou acadêmico ou próprio da palavra
“ciência” ao tornar explícitos os principais critérios através dos quais
pessoas cientificamente educadas identificam a ciência. Esse será, aliás, um
procedimento paralelo ao procedimento descritivista em metafilosofia. De
fato, se o procedimento descritivista nos leva à idéia de que a filosofia é uma
protociência no sentido de não ser capaz de obter consenso, parece que por
razões de paridade a “ciência” da qual a filosofia é “proto” deve ser tratada
72
dentro de uma abordagem igualmente descritivista, coincidente com a
premissa de que a ciência é, por oposição, uma investigação capaz de
alcançar consenso verdadeiro. Sendo assim, uma explicação descritivista da
ciência parece ser o modo verdadeiramente coerente de imaginar o contraste
entre filosofia e ciência sob uma abordagem metafilosófica ela própria
descritivista. Somente após termos explorado essa maneira de conceber a
ciência em maiores detalhes é que seremos capazes de julgar se o conceito
de filosofia como antecipação da ciência é realmente restritivo.
8. RUMO A UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVA
DE CIÊNCIA
Meu objetivo aqui não será o de desenvolver uma completa
caracterização descritivista da ciência, baseada na análise dos critérios de
demarcação realmente usados pelos cientistas, mas o de tornar disponíveis
os seus fundamentos. A intenção é tornar suficientemente explícita – para o
propósito único de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da
natureza da ciência que podemos chamar de consensualista-objetivista, na
falta de um nome melhor. Segundo essa concepção, o princípio unificador de
toda a ciência é que ela consiste em uma investigação avaliadora de
verdades objetivas, possibilitando o progresso através da obtenção de
acordos consensuais entre os membros da comunidade científica sobre os
resultados dessas avaliações. Para alcançarmos uma compreensão detalhada
dessa idéia e de suas ramificações, podemos identificar três condições de
cientificidade, que são as de progressividade, consensualidade e
objetividade. Essas condições são tão abrangentes que podem ser entendidas
como aplicáveis a todas as ciências, tanto empíricas quanto formais.
73
A primeira condição é a de que em seu período de desenvolvimento uma
ciência deva se comportar como um empreendimento progressivo no sentido
de que as suas teorias, uma vez sugeridas, devam ser capazes de ser
refinadas ou substituídas por outras possuidoras de maior poder explicativo.
Mais além, essa condição nos diz que no processo de sua constituição uma
ciência deve ser acumuladora de conhecimento no sentido de que permite à
comunidade de idéias reconhecer a verdade de um número crescente de
proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como
C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz de se revelar
potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento
A condição C1 se aplica primariamente à totalidade da ciência, entendida
como constituida por um conjunto de ciências particulares, empíricas ou
formais, as quais são formadas por áreas e feixes de teorias mais ou menos
inter-relacionados. Tal princípio também se aplica, contudo, derivadamente,
às ciências particulares e à aceitação de suas teorias.
A satisfação da condição C1 pressupõe a satisfação da condição C2. A
condição C2 é prevalecente, aplicável primariamente a teorias (hipóteses e
sistemas de hipóteses) que aspiram à cientificidade, sendo só derivadamente
aplicável ao corpus do conhecimento científico. Essa é a condição central de
consensualidade, que pode ser enunciada como
C2: A ciência é um empreendimento epistêmico através do qual é
possível se chegar a um acordo consensual sobre a verdade ou falsidade
de suas teorias, um acordo a ser racionalmente alcançado pela
comunidade crítica de idéias que as propõe.
Necessária a um adequado entendimento da condição S2 é uma
apropriada análise do conceito de comunidade crítica de idéias, que nos
74
permite estabelecer quem está intitulado a avaliar as idéias supostamente
científicas e como. Há razões para a introdução desse conceito. Se há
pessoas que não acreditam que a teoria da evolução natural tem recebido
suficiente confirmação, não iremos concluir que isso falseia a nossa crença
de que pode haver um acordo científico sobre a verdade dessa teoria, dado
que esse acordo efetivamente existe. Se um governo totalitário decide
chamar alguma ideologia espúria de ciência, impondo um acordo na
comunidade científica (como ocorreu na União Soviética com a genética de
Lysenko e na Alemanha nazista com a ciência “ariana”), não concluiremos
que essa ideologia é de fato uma ciência. E também não pensamos que uma
comunidade de idéias que baseia a sua verdade na autoridade das escrituras
sagradas ou nas visões de adivinhos está atuando como uma comunidade
científica.
Para
eliminar
tais
interpretações
inadequadas,
que
tornam
a
caracterização consensualista da natureza da ciência inevitavelmente falha,
faremos uso aqui de uma idéia inspirada na sugestão de Jürgen Habermas
em sua teoria consensual da verdade. Segundo essa idéia, a decisão sobre o
que conta como verdade deve repousar em uma discussão (Diskurs) ocorrida
sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale Sprachsituation),
sendo tal situação aquela na qual há uma possibilidade simétrica de todos os
participantes do discurso de realizarem os diversos tipos de ação
comunicativa, o que impede a existência de coerção que não seja a do
melhor argumento. Pelo recurso à situação ideal de fala temos uma garantia
de chegar a decisões sobre a verdade pertencentes a um consenso legítimo,
as quais precisam ser distinguidas de decisões tomadas fora dessa situação e
que podem peretencer a um consenso falso ou ilegítimo(45).
75
Sem dúvida, parece claro que uma comunidade de idéias, para ser capaz
de avaliar hipóteses científicas, deve fazê-lo sob certos pressupostos, como o
da racionalidade e da liberdade de quem as avalia – pressupostos que
dependem de algo que funcione como uma situação ideal de fala. Isso
significa que uma comunidade crítica de idéias pode ser caracterizada como
aquela que, tanto quanto possível, satisfaz um conjunto de critérios de
legitimidade consensual. Sem querer ser sistemático nem exaustivo, eis uma
lista de critérios particularmente importantes:
(a) Uma comunidade crítica de idéias deve ser composta por membros
igualmente bem treinados e informados sobre as matérias que devem
avaliar (os cientistas).
(b) Os membros da comunidade crítica de idéias devem estar engajados
em buscar a verdade e em submeter as suas idéias a um escrutínio
crítico racional.
(c) Os membros de uma comunidade crítica de idéias devem ter completo
acesso à informação, iguais chances de avaliar idéias e direitos
similares de intercâmbio intelectual.
(d) Os membros de uma comunidade crítica de idéias não podem ser
sujeitos a nenhuma coerção em seus procedimentos de avaliação e
conclusões, a não ser a coerção imposta pela melhor justificação.
Aqui os dois primeiros critérios se referem a características dos membros
individuais de uma comunidade crítica de idéias, enquanto os dois últimos se
referem a características da própria comunidade de idéias com relação aos
seus membros.
É importante perceber que tais critérios formam uma constelação ideal
que nunca chega a ser completamente satisfeita por nenhuma comunidade
científica. Contudo, eles devem ser preenchidos ao menos em uma medida
suficiente, posto que nenhuma comunidade científica poderia alcançar
confiabilidade sem que eles fossem minimamente satisfeitos. Com efeito,
76
quando aceitamos uma descoberta científica que se pretende verdadeira (por
exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais
critérios estão sendo suficientemente preenchidos (que os cientistas estão
sendo suficientemente honestos, que não estão sendo pressionados a
manipular dados etc.). Além disso, o cientista trabalhando em pesquisa deve
realizar o seu trabalho sob a constante assunção de uma eventual avaliação
de seus resultados por uma comunidade de idéias que satisfaça critérios que
garantem a legitimidade consensual, usando essa assunção como guia para
uma avaliação pessoal do que está fazendo, mesmo nos casos em que tal
avaliação não ocorra e talvez nunca venha a ocorrer. Assim entendida, a
condição C2 torna-se a exigência central para podermos aceitar teorias como
pertencendo à ciência.
O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias dentro de uma
comunidade crítica de idéias requer ainda uma terceira condição de
cientificidade. Como já notamos, o acordo consensual sobre a verdade entre
os membros de uma comunidade de idéias só é possível se houver um
acordo prévio acerca de assunções concernentes a critérios e métodos de
avaliação da verdade. Assim, a possibilidade de satisfação da condição C2
pressupõe a satisfação de C3, uma condição material que a comunidade
crítica deve satisfazer para ser considerada científica. Essa é a condição de
objetividade, que pode ser enunciada da seguinte maneira:
C3: A comunidade crítica de idéias responsável pela investigação
científica deve ter encontrado um acordo consensual prévio sobre o que
conta como pressupostos fundamentadores para a avaliação das teorias
que neloa são pressupostas. Esses pressupostos são o que confere
objetividade ao discurso científico.
77
O acordo sobre a verdade ou falsidade de teorias requer, pois, um acordo
consensual
prévio,
relativo
à
satisfação
de
vários
pressupostos
fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem
ambicionar um esclarecimento sistemático e entendendo por domínio
epistêmico o conjunto daquilo que pode ser dado como objeto em uma área
do conhecimento, quero listar os seguintes pressupostos:
(i)
(ii)
(iii)
(iv)
Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados elementares
(empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual
a teoria pertence;
Pressupostos sobre o que pode ser aceito como questões
adequadamente formuladas a serem levantadas nesse domínio (a
teoria deve responder a questões significativas, relevantes etc.);
Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria
adequadamente construída no domínio epistêmico (em sua
consistência interna tanto quanto em sua coerência com o sistema
de crenças constitutivo do domínio epistêmico);
Pressupostos sobre o que conta como procedimento de avaliação da
verdade de uma teoria em seu domínio epistêmico (o que envolve a
avaliação de algum tipo de corrrepondência com os fatos que a
teoria tenta explicar).
Note-se que esses pressupostos fundamentadores cobrem um terreno
muito amplo: os elementos e fatos em questão, por exemplo, podem ser
desde entidades empíricas quaisquer a abstrações numéricas. A admissão de
pressupostos de objetividade nos permite estabelecer conexão entre a
concepção de ciência como saber consensualizável, obtido por uma
comunidade crítica de idéias, e a concepção tradicional do método científico
em ciências empíricas como sendo indutivo-dedutivo e/ou hipotéticodedutivo. É que as condições da aplicação desses métodos científicos
acabam coincidindo com condições da aplicação dos pressupostos de
objetividade em ciências empíricas. Vejamos como: o pressuposto (i) está
78
associado à questão da generalidade, ao poder explicativo das teorias
científicas; o pressuposto (ii) está associado a questões de simplicidade; o
pressuposto (iii) está associado a questões como a de coerência,
entrincheiramento, cooperação explicativa; e o pressuposto (iv) está
associado a questões de predição, explicação e testabilidade.
São tais associações inevitáveis? Não seria possível um acordo
consensual sem que as condições de objetividade estejam sendo satisfeitas,
digamos, pela comunidade crítica dos videntes de bolas de cristal? Penso
que não. Parece ser indispensável que os pressupostos fundamentadores
constitutivos da condição de objetividade estejam sendo satisfeitos para que
um acordo consensual legítimo se torne possível. Mas, dirá o cético, o que
garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece
ser problemática, na medida em que o cético espera dela uma solução a
priori que de fato não existe. Na verdade, a resposta só pode ser empírica.
Ou seja: a necessidade de se admitir condições de objetividade é uma
verdade experiencial incontornável que a comunidade crítica de idéias tem
sido forçada a aprender desde o início de seu funcionamento. Ela
simplesmente verificou, por certo a contragosto, que o consenso legítimo só
pode ser atingido quando tais condições são satisfeitas. O fato da aceitação
das condições de objetividade não ser a priori explica a tentação que
sentimos de prescindir do esforço que ela implica. E a sua admissão
responde à eventual objeção de que uma definição consensualista do
empreendimento científico não reconhece tal objetividade, descambando
para um relativismo sociologizador da ciência.
Assim entendidas, as condições de progressividade, de consensualidade e
de objetividade parecem constituir um critério descritivista suficientemente
confiável, ainda que reconhecidamente vago e esquemático, para a
79
demarcação entre ciência (formal ou empírica) e não-ciência. Vejamos agora
o que acontece quando o aplicamos à filosofia.
9. POR QUE CONCEBER A FILOSOFIA COMO UM
EMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?
O ponto a ser sublinhado é que a nossa concepção consensualista de
ciência coloca esta última em contraste direto com a filosofia. Em filosofia,
como em ciência, uma comunidade crítica de idéias deve ser pressuposta,
mesmo que por vezes de modo contrafactual. Com efeito, é esperado que
filósofos tenham competência em suas atividades, que eles busquem a
verdade e se disponham (mesmo que aos resmungos) a submeter as suas
teorias filosóficas ao livre escrutínio por parte de outros pensadores
igualmente competentes, que eles tenham igual informação e possibilidades
de interação (uma queixa contra a filosofia dogmática é que ela falha em
satisfazer essa exigência), e que suas idéias não sejam submetidas a
nenhuma coação ideológica (de fato, a principal queixa contra a filosofia
medieval é a de que nela essa condição nunca pôde ser suficientemente
satisfeita).
Mesmo constituindo uma comunidade crítica de idéias que satisfaça a
idéia da ciência, da qual a filosofia sempre esteve imbuida, as reflexões dos
filósofos não são capazes de satisfazer nenhuma das três condições de
cientificidade por nós consideradas. Isso nos possibilita caracterizar a
filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento heurístico
em uma comunidade crítica de idéias na qual tais condições não são
satisfeitas. As condições negativas são, primeiro
80
NC1: A filosofia falha em satisfazer a condição de progressividade,
pois ela não é um empreendimento progressivo e acumulador
de conhecimento.
A filosofia é de fato acumuladora, mas somente no sentido de acumular
um conteúdo hipotético, isto é, no sentido de que nossas concepções
filosóficas podem ser tornadas mais complexas e aumentar em número. Ela
acumula um número sempre maior de possíveis verdades, as quais tendem a
tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas em seus diferentes
domínios sempre mais estreitas. O caráter acumulador de hipóteses mas nãoacumulador de conhecimento da filosofia pode ser facilmente percebido
quando comparamos diferentes teorias filosóficas sobre uma mesma coisa.
Considere, por exemplo, as doutrinas dos tipos de conhecimento em Locke e
Spinoza. O primeiro é um filósofo empirista, preocupado em distinguir o
conhecimento formal do saber empírico, o segundo é um metafísico
racionalista tentando especular acerca de uma fonte única de todo o
conhecimento. Cada teoria parece iluminar diferentes aspectos do problema,
cada uma parece deter alguma verdade, e ambas juntas parecem ter mais
verdade do que cada uma delas em separado. O problema é que nós não
estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde as verdades se
encontram, ou mesmo de excluir qualquer dúvida cética sobre a sua
existência.
A condição C1 não é satisfeita pela filosofia porque esta última não
satisfaz a sua precondição, que é a de consensualidade. Daí que para ela vale
NC2: A filosofia falha em satisfazer a condição de consensualidade,
Uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade de
suas idéias pode ser alcançado em sua comunidade crítica de
idéias.
81
E isso ocorre porque de um modo ou de outro a condição de objetividade
não chega a ser satisfeita:
NC3
A filosofia falha em satisfazer as condições de objetividade S3,
posto que o filósofo não é capaz de, diante da comunidade crítica de idéias, satisfazer pressupostos fundamentadores.
Com efeito, o filósofo não é capaz de
(i)
(ii)
(iii)
(iv)
alcançar aceitação geral acerca do que pode ser contado como
dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;
assegurar a outros filósofos que as suas questões não são
basicamente enganosas (pseudoproblemas);
conseguir aceitação geral da adequação de suas teorias
(coerência interna e externa);
desenvolver procedimentos de avaliação da verdade
(argumentos) que sejam geralmente aceitos por seus vizinhos
filósofos (mostrando que a sua teoria concorda com os fatos que
tenta explicar, seja qual for a natureza dos últimos).
Como C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos
fundamentadores, fica claro que, ultimadamente, a filosofia não é ciência
porque é incapaz de satisfazer tais condições de objetividade. Em casos
como os das ciências naturais, isso significa que a filosofia não é capaz de
satisfazer as condições impostas pelos métodos da ciência, para o prazer dos
filósofos da ciência com herança positivista. Contudo, trata-se agora de um
prazer restrito aos seus merecidos limites, posto que as condições de
progressividade, consensualidade e objetividade ampliam o horizonte da
ciência para muito além do que é sugerido pela simples investigação da
aplicação do método científico nas ciências naturais.
Vimos, pois, que as condições de progressividade, consensualidade e
objetividade correspondem otimamente aos critérios que intuitivamente
82
usamos quando somos chamados a distinguir o que pertence à ciência do que
pertence somente à filosofia.
10. CONSEQÜÊNCIAS DA TESE PROPOSTA
Quando consideramos a totalidade da filosofia como um empreendimento
antecipador da ciência, a adoção da concepção de ciência recém exposta
conduz-nos a algumas conseqüências interessantes.
Primeiro, considerando que nossos critérios para o que pode contar como
ciência deixam em aberto os modos concretos pelos quais a investigação
pode vir a ser considerada científica, a identidade própria da investigação
que há de surgir permanece em aberto. Em outras palavras, os critérios
sugeridos não antecipam o caráter próprio de nenhum campo científico ainda
por surgir; em especial, eles não antecipam que as ciências eventualmente
destinadas a tomar o lugar dos presentes domínios da indagação filosófica
devam ter qualquer similaridade com as ciências experimentais já
conhecidas por nós. Dada a concepção proposta da natureza da ciência,
mesmo teorias especulativas de amplo escopo, como a metapsicanálise
freudiana, ou a lei comtiana dos três estágios, poderiam tornar-se científicas,
bastando para isso que fossem construídas sobre um pano de fundo de
informações que as tornasse capazes de alcançar acordo consensual em uma
comunidade crítica de idéias. Mais além, quaisquer doutrinas filosóficas
especulativas, como a doutrina fichteana do Eu puro, a escatologia scotista, a
doutrina do Uno em Plotino, poderiam, em princípio, ainda que muito
improvavelmente, tornar-se científicas na medida em que pudessem ser
reconstruídas de modo o tornar um acordo consensual legítimo sobre a sua
verdade realizável.
83
Mesmo uma concepção da natureza da filosofia como a que estamos
sugerindo aqui poderia deixar de ser filosófica para se tornar científica
quando, aplicada a ela mesma, se revelasse objeto de consenso em sua
verdade. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como uma
protociência similar à concepção consensualista-objetivista seja mais
adequadamente e mais completamente desenvolvida, e que essa concepção
receba no futuro mais e mais confirmação pela emergência de novos campos
científicos que substituam aos poucos as nossas atuais discussões filosóficas.
Uma conseqüência será que uma comunidade crítica de idéias no futuro
acabará por aceitar a verdade da idéia de que a filosofia é uma protociência
em termos de acordo consensual autêntico, vindo a admitir isso como uma
verdade científica inobjetável. A idéia de que a filosofia é uma protociência
teria então auto-satisfeito a condição de cientificidade por ela mesma
construida.
Uma segunda conseqüência interessante de nossa concepção de ciência
em relação à filosofia é que nós não precisamos necessariamente eliminar a
abrangência de nossas visões filosóficas por admiti-las como substituiveis
pela ciência. De fato, há razões para esperar algo diverso. Falando sobre a
interdependência dos problemas filosóficos pertencentes ao núcleo residual
– como os da metafísica e epistemologia –, filósofos como Wittgenstein já
notaram, com certo exagero, que tais problemas são tão profundamente
interligados uns aos outros que cada um deles só poderá ser resolvido
quando todos os outros já tiverem sido resolvidos. Essa observação mostra
uma maneira como os nossos problemas filosóficos centrais podem dar lugar
à ciência: não tanto por meio da construção de teorias diretamente
demonstráveis como correspondendo ou não aos fatos que elas devem
explicar, mas por meio do suporte heurístico que teorias são capazes de
84
oferecer
umas
às outras, pela sua cooperação
explicativa, pelo
entrincheiramente das crenças delas derivadas. Um certo grau de suporte
interteórico, ou seja, de cooperação explicativa entre teorias, pode ser
facilmente encontrado, mesmo nas ciências naturais: a teoria evolucionária
de Darwin, por exemplo, chegou a ser abandonada pelo autor quando este
não soube responder à objeção de que os novos caracteres deveriam se diluir
com o cruzamento dos indivíduos que os portassem com a multidão dos
membros menos dotados da espécie. Problemas como esse, contudo, foram
resolvidos a favor da teoria da evolução por seleção natural quando, muitos
anos mais tarde, ela recebeu o suporte heurístico da descoberta, dentro da
comunidade científica, dos artigos de Gregor Mendel, fundando a ciência da
genética (embora, como é sabido, esses tivessem sido publicados no tempo
de Darwin sem que fossem lidos). Algo similar pode ocorrer com os
problemas inter-relacionados da filosofia: o acordo consensual poderá surgir
nesses domínios, não tanto como resultado do que conta como confirmação
experiencial objetiva, embora algum tipo de confirmação objetiva deva ser
necessário, mas através do suporte interteórico que a solução de um
problema pode dar à solução de outros e vice-versa.
Há, finalmente, algumas conclusões a serem tiradas da constatação de que
em muito da indagação filosófica o suporte interteórico deve prevalecer
como meio de avaliação da verdade.
A primeira é que há menos razões para suspender a crença otimista de
que mesmo nos mais resistentes domínios da filosofia seremos capazes de,
em um algum momento futuro, encontrar o caminho de um acordo
consensual (a existência de apenas cinco ciências fundamentais parece falar
a favor disso).
85
A segunda é que também temos razões para esperar que o objeto de
investigação após tais acordos não venha a ser compreendido por um grande
número de teorias de pequeno escopo e independentes umas das outras, mas,
ao invés, por abrangentes constelações de teorias científicas mais ou menos
interligadas; nesse caso somente a forma conjectural de nossos problemas
será necessariamente perdida – não a sua abrangência.
Uma terceira conclusão, pelo menos indicada pela interdependência
heurística das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas filosóficas
em áreas como epistemologia, metafísica e ética, pela simples comparação
com o que aconteceu com conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências
como a física, a química ou a biologia, as quais mostraram-se simplesmente
demasiado errôneas ou grosseiras para continuarem preservando mais do que
uma importância meramente histórica. De fato, no caso das ciências naturais,
há profundas rupturas epistemológicas distinguindo a ciência da indagação
filosófica pré-científica (ou não consensualizável). Contudo, em níveis
posteriores de conhecimento, em que o entrincheiramento e suporte
interteórico podem ser marcas prevalecentes da verdade, parece que a
transição da filosofia para a ciência tende a ser mais gradual, posto que
envolve correções de teorias inter-relacionadas, correções talvez profundas,
embora muitas vezes sem o salto para o totalmente novo. Isso significa que a
especulação filosófica em seus domínios centrais pode ser heuristicamente
mais relevante, uma vez que ela deve acumular verdades (embora não
saibamos onde elas estão) antes que acordos consensuais se tornem fortes o
suficiente para produzir, de maneira mais urbana e discreta, uma mudança
qualitativa mais significante. A atenção a isso pode resgatar muito da
importância das disciplinas filosóficas fundamentais do descaso positivista e
cientificista.
86
IV
RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS
DA FILOSOFIA
Em todo lugar buscamos o incondicionado,
e o que encontramos são apenas coisas.
Novalis
Podemos entender por que a filosofia é uma forma conjectural de
investigação ao concebê-la como uma antecipação da ciência. Mas nem
todos os traços característicos da indagação filosófica podem ser explicados
dessa maneira. Os traços indicados nas definições históricas de filosofia
como a busca da sabedoria, o espanto, o apelo freqüente a princípios
transcendentais de explicação, o impulso que objetiva integrar nossas
experiências em uma visão abrangente, capaz de nos fazer compreender o
mundo como um todo e o nosso lugar nele, a produção de sistemas
filosóficos tentando desenvolver e justificar tais visões do mundo – todos
esses aspectos dificilmente podem ser entendidos se persistirmos em pensar
a filosofia como limitando-se apenas a um empreendimento cognitivo
antecipatório, direcionado à ciência. Neste capítulo tentarei mostrar que uma
resposta a essas questões pode ser encontrada quando, ao invés de
investigarmos o modo como a filosofia dá lugar à ciência, perquirirmos o
modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a
filosofia com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.
87
1. FILOSOFIA E RELIGIÃO: A ABORDAGEM
GENÉTICA
Há duas características particularmente importantes que a filosofia
compartilha com o pensamento religioso, as quais podem ser chamadas de
abrangência e transcendência. Religiões monoteístas, como a judaico-cristã,
chegam à característica de transcendência por apelo a um Deus que se
encontra além do mundo da experiência, mas que é misteriosamente
concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora desse
mundo. Por essa via as religiões também alcançam abrangência: o conceito
de Deus está no centro de uma doutrina que objetiva integrar nossos modos
de ver em uma explicação do mundo onde vivemos e do lugar que o homem
nele ocupa, daí se deixando derivar um conjunto de diretivas para a conduta
e vida humana. Muito da filosofia tem preservado aspirações similares de
transcendência e abrangência, embora realizando-as sem o apelo a um Deus
pessoal.
Filósofos tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, a qual
conduziu os seus maiores expoentes à construção de sistemas filosóficos
abarcantes, buscando explicar a realidade como um todo e freqüentemente
derivando dessa explicação diretivas gerais para a conduta humana. Embora
as aspirações da filosofia contemporânea não sejam tão elevadas, a
amplitude de propósito ainda permanece um elemento importante na
avaliação da pertinência e importância da investigação filosófica.
Quanto à transcendência, embora a filosofia não apele ao sobrenatural da
mesma maneira que a religião, ela apela a princípios metafísicos de
explicação que permanecem além das possibilidades reais de experiência e
entendimento. Embora esses princípios não sejam seres espirituais, como os
deuses das religiões, eles podem não se deixar distinguir completamente
88
deles. Pois como os deuses, é comum que não possam ser adequadamente
alcançados através do entendimento humano, que possuam algum atributo
mental, que se relacionem ao mundo experienciavel um modo obscuro e
misterioso. Para entendermos a imensa importância de tais princípios
metafísicos, precisamos apenas considerar o lugar central que eles sempre
ocuparam na história da filosofia. Aqui vai uma lista, de Tales a
Wittgenstein:
- água (Tales); ilimitado (Anaximandro); ar (Anaxímenes); terra
(Xenófanes); fogo (Heráclito); Ser (Parmênides); os átomos
(Demócrito); o número (Pitágoras).
- as idéias, especialmente a idéia do bem (Platão); o ser enquanto ser ou
substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (John
Scotus); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e muitos outros);
- a substância pensante finita ou infinita (Descartes); a substâncianatureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); mentes (Berkeley); o
oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental
(Kant); o eu puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a vontade
(Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); a seridade do ser
(Heidegger); o indizível (Wittgenstein).
O relacionamento entre filosofia e religião pode ser historica e
geneticamente abordado por meio da consideração de princípios ou
entidades-princípio, dado que são entidades que atuam como princípios
capazes de produzir ou determinar ou sustentar alguma coisa. É bem
conhecido o fato histórico de que a filosofia ocidental nasceu do solo da
mitologia grega e da religião. Em algum ponto os pensadores gregos se
tornaram insatisfeitos com as explicações dos eventos da natureza e da vida
humana fornecidas pela mitologia e começaram a substituí-las por
explicações filosóficas. Historiadores da filosofia já sugeriram que o contato
com outras culturas, com seus diferentes deuses e valores, poderia ter
89
contribuído para enfraquecer a crença dos gregos em suas explicações
mitológicas(46). Mas esse fato nunca poderia em si mesmo ter sido
suficiente para dar início à especulação filosófica, posto que muitas outras
culturas foram similarmente expostas, a outras sem que desenvolvessem
qualquer tipo de filosofia argumentativa (algumas, ainda, reagiram a tal
exposição pela revigoração reativa de suas próprias crenças, considere, por
exemplo, a sobrevivência do judaismo na Europa). Uma explicação mais
plausível e por muitos aceita para o nascimento da filosofia ocidental é a
exposta por W. K. C. Guthrie, de que a descoberta da ciência abstrata entre
os gregos sugeriu à mente humana o uso da generalização(47). Contudo, só
isso não seria suficiente para produzir a emergência do pensamento
filosófico, posto que generalizações de senso comum sobre fenômenos
ordinários sempre existiram: que o Sol nasce a cada dia ou que dois e dois
são quatro eram generalizações já sabidas antes do surgimento de qualquer
ciência.
Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação
filosófica ocidental, que incorpora a aceita por Guthrie, seria a seguinte. Os
gregos, muito em conseqüência de sua exposição a outras culturas,
produziram desenvolvimentos científicos em aritmética, geometria, física e
astronomia. Mas enquanto outros povos viam os resultados da ciência
apenas como um instrumento para a realização de fins práticos, os gregos
pela primeira vez os consideraram em abstração dessas finalidades práticas,
ou seja, como generalizações científicas. Essa abstração capacitou-os a se
tornarem conscientes das características intrínsecas desse tipo de
generalização. Eles puderam ver que as generalizações científicas têm um
poder explicativo, que lhes faculta, não apenas a explicar o que é
abertamente avaliável, como é o caso das generalizações de senso comum,
90
mas também a “natureza oculta das coisas”. Nesse contexto teriam também
percebido que a forma científica de explicação é baseada na assunção da
existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nas
matemáticas, regularidades não só capazes de ser refletidas nas
generalizações, mas também, quando empíricas, de possibilitar explicações
dos fatos e previsões (como o haviam demonstrado as predições
astronômicas) e, quando matemáticas, possibilitar justificações e inferências
(como nas provas dos teoremas) em um procedimento em certa medida
análogo. Com efeito, assumindo a possibilidade geral de tais generalizações
abstratas apoiadas na inferência a partir de regularidades dadas, seguida de
explicação e previsão, os Gregos teriam alcançado o que poderíamos chamar
de uma idéia de ciência, tanto empírica quanto formal, ou seja, dos
procedimentos de (a) generalização de regras ou leis, e (b) de inferência ou
explicação. Essa idéia equivalia a um novo tipo de explicação dos fatos,
muito diferente daquela provida pelo antropomorfismo religioso. De fato,
parece que foi a descoberta da possibilidade de substituir explicações
religiosas por explicações por meio de regras, princípios ou leis, aplicáveis
mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a fagulha que acendeu
o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos présocráticos. A idéia subjacente que veio à mente desses primeiros filósofos
deve ter sido simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado,
não por apelo à vontade dos deuses, mas a regularidades semelhantes
àquelas descobertas pela ciência. Claro que a maior parte das questões não
era passível de ser realmente abordada em termos científicos. Mas ainda
assim poderiam ser abordadas especulativamente, conjecturalmente,
respaldadas pela idéia de ciência e por resultados que, mesmo não sendo
91
consensuais, permaneceriam intelectualmente estimulantes. A prática disso é
o que veio a ser chamado de filosofia.
Devido a essa influência do modelo científico, seja ele empírico ou
formal, no surgimento da filosofia grega, não é surpreendente que o primeiro
filósofo da tradição ocidental – Tales de Mileto – fosse também um
astrônomo e um competente matemático, que uma vez predisse um eclipse
solar. Sua hipótese de que a água poderia ser o princípio (arché), ou seja, a
causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de
substituir a explicação pelo apelo a deuses por algo mais próximo da
explicação não-antropomórfica provida pela ciência. Certamente, uma tal
explicação não poderia ser adequadamente construída em termos científicos,
pois não haveria como possibilitar a ela o tipo de acordo consensual que
vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem os seus sucessores poderiam
alcançar um entendimento científico de uma questão tão ampla como a dos
constituintes últimos da natureza, posto que acordos consensuais acerca
disso dependem da realização de sofisticadas observações científicas, o que
somente hoje é possível. Contudo, os pensadores pré-socráticos eram pelo
menos capazes de filosofar sobre um tal assunto, ou seja, eles já eram
capazes de ter vislumbres conjecturais sobre a natureza das coisas. Ou seja:
sugestões necessariamente vagas, incompletas, inevitavelmente falhas, mas
mesmo assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar o nosso
entendimento da realidade. O que filósofos como Tales e, com maior
refinamento, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram idéias
esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja,
formas de teorias funcionando como realizações protocientíficas da
imaginação especulativa. Entre os pré-socráticos as entidades-princípio
tomaram muitas vezes a forma de causas eficientes e sustentadoras do
92
mundo experienciado por nós, sendo inicialmente coisas sensíveis, como
água e terra, mas rapidamente se tornando coisas mais evanescentes, como o
ar invisível, sendo ao final mais consistentemente substituídas por entidades
não-experienciáveis empiricamente, como o ilimitado de Anaximandro, o
Ser de Parmênides e o número de Pitágoras, as quais foram substituidas
inevitavelmente por muitas outras em toda a história da filosofia. Irei
aprofundar a análise desses princípios, mas devo primeiro considerar
algumas idéias de Auguste Comte, capazes de nos oferecerem uma
orientação importante.
2. A LEI COMTIANA DOS TRÊS ESTÁGIOS
A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como um
substituto para as explicações da mitologia e da religião traz à memória a
assim chamada “lei dos três estágios”, desenvolvida por Comte como uma
ordenação da longa jornada da mente, começando da superstição até chegar
à ciência(48). Irei fazer algum uso dessa lei na seção 4. Mas agora, como
creio que a lei de Comte é de grande importância e que ela tem sido malentendida e injustamente depreciada, irei reconstruí-la em alguns detalhes,
respondendo na próxima seção às objeções mais influentes contra ela
levantadas(49).
A lei dos três estágios pode ser entendida em três níveis: (a) no nível do
desenvolvimento dos produtos da cultura humana em suas distintas
ramificações; (b) no nível do desenvolvimento da mente individual; e (c) no
nível do desenvolvimento da sociedade humana.
É no nível (a), como uma lei geral governando o desenvolvimento da
cultura humana, que a lei dos três estágios é particularmente importante.
93
Para Comte, associado à emergência de cada ciência fundamental (capítulo
III, 4), há um processo evolucionário em que a cultura humana passa através
de três estágios sucessivos: o religioso ou fictivo, o metafísico ou abstrato, e
o científico ou positivo (ver esquema). Eis um esquema orientador:
Subestágios:
Estágios:
(i) animista
(1) religioso ou fictivo
(ii) politeista
Níveis:
a) cultural
(iii) monoteista
(2) metafísico ou absoluto
(3) científico ou positivo
Lei dos
três
b) individual
(1), (2) e (3)
c) social
(1), (2) e (3)
estágios
O estágio religioso ou fictivo é o necessário ponto de partida de nossa
evolução cultural. Esse estágio é dominado pelo antropomorfismo: a mente
humana tenta explicar as anomalias da natureza projetando as suas próprias
características no mundo externo. Os fenômenos naturais, particularmente os
desviantes, são explicados como causados pela vontade de seres humanos
com poderes sobrenaturais: os deuses ou o Deus. O conhecimento acerca
dessas entidades sobrenaturais, suposto como adquirido nesse estágio, é
considerado absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente
ilusório, sendo produto, não da razão, mas tão-somente da imaginação.
O estágio religioso assume subseqüentemente três formas, cada uma
passando para um nível de abstração mais alto. Na primeira, o subestágio
94
animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes são
vagamente concebidos como possuindo vida, paixões e vontade. No segundo
subestágio, chamado de politeísta, tais objetos são substituídos por deuses,
seres vivos de natureza sobrenatural, normalmente invisíveis, intervindo
arbitrariamente no curso da natureza. Finalmente no subestágio monoteísta,
as divindades do politeísmo são condensadas de maneira a formar um único
Omni-Deus, típico da religião judaico-cristã. Comte vê esse movimento
como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a
uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos. Nele a
mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão.
O segundo estágio, o estágio metafísico (filosófico), é para Comte apenas
transicional. Ele representa um progresso notável, pois os princípios de
explicação deixam de ser buscados em divindades sobrenaturais e passam a
ser buscados na própria natureza. Mas embora esses princípios possam
pertencer à natureza, eles estão lá de maneira oculta. Eles são chamados de
“poderes naturais”, “propriedades essenciais”, ou “entidades abstratas”.
Exemplos de tais princípios são para Comte o flogisto, antecedendo a
química moderna e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais princípios,
afirma ele, são fundamentalmente equívocos em seu caráter. Eles deveriam
fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos,
ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas eles falham em
realizar essa função; por outro lado, eles não podem ser concebidos como
agentes pessoais sem o regresso a um estágio teológico. Eles são o que
Comte sugestivamente chamou de “abstrações personificadas”, apontando
assim para a sua inconsistência interna. Mais tarde testaremos essa idéia,
aplicando-as às entidades-princípios referidas pelos filósofos.
95
Comte tem uma concepção completamente negativa do valor intrínseco
dos primeiros dois estágios. Para ele, eles são basicamente dependentes da
imaginação, e nem as explicações nem as previsões feitas através das
construções conceituais dela originadas são genuínas. A utilidade dessas
explicações
e
previsões
repousa
basicamente
em
seus
efeitos
sociopsicológicos, como o de estruturação do poder ou a diminuição da
ansiedade humana diante daquilo que está além do seu controle. Além disso,
há uma conseqüência prática a longo prazo: somente por meio dessas
construções conceituais ilusórias o caminho para o estágio científico é
preparado. A mente humana, diz Comte, não pode investigar sem ser guiada
por algum tipo de teoria. Os estágios metafísico e teológico produzem
teorias com base nas quais a mente humana pode perseguir a investigação e,
motivada por uma ilusão de conhecimento, perseverar na observação
cumulativa dos fatos que ao final acaba por conduzir à ciência. Um bom
exemplo desse processo é dado pela transição da astrologia à astronomia: a
contínua observação de corpos celestes, objetivando predizer o destino
humano, conduziu ao desenvolvimento de mensurações matemáticas, que
criaram condições para a emergência da astronomia como ciência.
Para Comte o estágio metafísico é intermediário e provisório, não
passando de uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio
positivo. Somente neste último a ciência se estabelece como a única forma
adequada de investigação, sendo as velhas questões teológicas e metafísicas
abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis. No estágio
positivo ou científico o que é buscado deixa de ser um tipo de conhecimento
absoluto para se tornar um tipo relativo, passando a ser tal devido à
falseabilidade intrínseca a toda a investigação humana (com efeito, de que
maneira poderíamos reconhecer o conhecimento absoluto, caso o
96
encontrássemos?). A intenção de explicar o mundo como um todo é também
reconhecida como uma ilusão: não podemos fazer mais do que explicar os
seus constituintes, o que é realizado pelas ciências particulares (com efeito,
como poderiam conceitos que objetivam classificar os constituintes do
mundo serem aplicados ao mundo como um todo?). Mais além, nesse
estágio os fenômenos cessam de ser explicados pela imaginação e vêm a ser
explicados exclusivamente pela razão, a qual não busca mais as causas
essenciais ocultas, mas apenas a descoberta de leis, ou seja, de regularidades
verificáveis que os fenômenos mantêm entre si. O conhecimento dessas
regularidades
permite-nos
explicar
realisticamente
as
associações
encontradas entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando
dessa maneira a realização de predições. E esse poder de fazer predições
conduz-nos a um domínio real – e não somente imaginário – sobre a
natureza.
Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no
desenvolvimento da mente individual, o que evidencia a sua raiz biológica.
Como ele notou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em
parte vivemos em um mundo imaginário de seres míticos como fadas e
bruxas... Nós somos metafísicos na adolescência quando, ainda destituídos
de conhecimento dos fatos, tornamo-nos capazes de aplicar a razão,
construindo explicações infundadas. Por fim, quando nos tornamos adultos
(na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos “físicos”,
admitindo somente o conhecimento positivo, firmado e confirmado por
meios científicos.
Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta a si mesma ao
nível da organização social e de suas práticas. Mas essa manifestação é
dependente da concretização efetiva dos estágios no domínio da cultura.
97
Ora, considerando que as ciências fundamentais necessariamente foram
formadas em tempos diferentes (posto que o desenvolvimento de uma
ciência fundamental pressupõe o desenvolvimento de outra) e também que o
desenvolvimento da técnica só se dá como resultado do desenvolvimento
teórico da ciência, é de se esperar que o efeito social da formação das
ciências fundamentais na “positivação” da organização econômica e social
seja antes um fenômeno tardio. A sugestão de Comte é que no nível da
organização social o estágio teológico durou até o fim da Idade Média,
sendo essa organização sendo caracterizada por uma sociedade autoritária e
militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma
Protestante, as idéias metafísicas começaram a dirigir a sociedade,
estabelecendo um império da lei e dos direitos abstratos. Somente após a
Revolução Francesa e com a instauração da Revolução Industrial, em um
período no qual todas as ciências fundamentais alcançaram a sua
“positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a
afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social.
Este último período é caracterizado pela emergência de uma sociedade
pacífica, na qual a vida econômica dos homens torna-se o centro da atenção.
Nessa sociedade a ciência é destinada a um papel determinador, o que deve
conduzir a uma sociedade organizada e regulada por um grupo elitista de
cientistas.
3. UMA BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE
A lei de Comte sempre foi objeto de crítica. Algumas, como a acusação
de rigidez e dogmatismo, além de um excessivo descrédito às formas nãopositivas de pensamento, sem falar em distorções reducionistas e no
98
excessivo otimismo positivista, são a meu ver plenamente justificadas. Mas
as objeções centrais parecem-me injustas e pretendo respondê-las.
A primeira objeção, levantada por Habermas, é a de que a lei dos três
estágios é ela mesma metafísica, posto que é alcançada a priori, sem recurso
aos fatos observacionais(50). Isso é certamente falso. Comte diz
explicitamente e mostra através de seus escritos que a sua lei é originada de
um exame atento dos fatos concernentes à evolução de nossa cultura e à
emergência das ciências fundamentais, junto a refletidas considerações
acerca da natureza humana. Contra uma objeção subseqüente, de que a
própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que há só uma única
instância histórica, ela mesma inacabada, que é a da nossa civilização, é
possível sugerir que a lei dos três estágios poderia ser melhor justificada
como resultado de uma inferência pela melhor explicação, a única capaz de
colocar sob um único chapéu uma míríade de fatos sócioculturais em sua
progressão histórica. Com efeito, é porque a explicação provida por essa lei
dá certa coerência à progressão histórica da cultura humana, e porque tal
coerência é confirmada por nossa compreensão dessa cultura, que a lei tende
a imprimir-se em nossas mentes como uma explicação razoável e natural.
Além disso, porque a lei pode ser gradualmente confirmada ou refutada por
uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais passados e também
futuros, ela tende a se tornar no final não muito menos confirmável ou
refutável do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.
A segunda objeção é a de que, quando aplicada à explicação dos três
estágios em um nível social, a lei de Comte não pode dar conta da ordem de
emergência das ciências: a matemática, por exemplo, já havia emergido
entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham
emergido quando a sociedade ainda estava em seu estágio metafísico. Como
99
a primeira objeção, essa também foi explicitamente respondida por Comte.
Para ele, cada ciência fundamental só pode nascer após os estágios
metafísico e teológico terem ocorrido em seus próprios domínios; mas, dado
que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem
alcançar as suas positivações simultaneamente. Assim, ao nível da sociedade
os estágios acabam sendo firmados por último, como efeito da soma das
mudanças parciais nos vários domínios. De um modo similar, uma criança
pode antecipar alguns traços da mente do adulto e o adulto também pode
preservar alguns traços de adolescente e mesmo de criança, o que não nos
faz confundi-los. (Certamente, Comte foi exageradamente otimista quanto
ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e o estágio
científico da sociedade encontra-se ainda hoje em processo de formação.)
Uma terceira e mais séria objeção é a de que o uso feito por Comte da
palavra ‘lei’ é abusivo e enganoso: a unicidade dos eventos considerados, a
vaguidade e incerteza do processo considerado, não nos dão nenhum direito
de usar essa venerável palavra; como notou Karl Popper, o melhor que
podemos fazer é talvez falar de uma tendência (trend) sócio-cultural(51).
Uma resposta a essa objeção consiste simplesmente em aceitá-la.
Certamente, o que Comte descobriu foram somente tendências, válidas em
termos vagos e probabilísticos; conseqüentemente, a sua descoberta não foi
de uma lei no sentido em que estamos acostumados a usar a palavra.
Contudo, há uma outra resposta possível, que prefiro. Ela consiste
simplesmente na admissão de que a forma própria de uma lei sóciohistórico-cultural seja a de uma tendência genérica. Nós não podemos
esperar que uma lei dessa ordem mantenha a mesma precisão e falta de
exceção de leis da física ou da química. Uma lei social funciona de modo
semelhante a uma lei estatística. Por isso seria irrazoável esperar de seu
100
enunciado mais do que uma probabilização de certos resultados, posto que a
multiplicidade de variáveis que podem intervir no processo é praticamente
ilimitada. Contudo, é falso pensar que a vaguidade e incerteza de uma lei
comprometa o seu status, exceto quando confusamente assimilamos o
conceito próprio de lei ao de leis físicas fundamentais, como filósofos das
ciências naturais (entre eles Popper) nos convidam a fazer. O que mais
distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e
precisão
(pois
nesse
caso
nenhuma
lei
estatística
satisfaria
tal
caracterização), mas nossa assunção de que a generalização feita em seu
enunciado é de um tipo não-acidental. De fato, o suposto caráter nãoacidental da regularidade asserida pela generalização pode ser admitido
como a única característica que deve ser comum a todos os tipos de lei. O
fato é que a ciência precisa de um termo para cobrir todos os tipos de
generalização que supomos serem não-acidentais, e a palavra “lei” parece
ser a mais adequada para realizar esse trabalho. Se esse ponto de vista for
correto, então a lei dos três estágios pode preencher a condição de lei
científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo
possível, onde existisse uma sociedade constituída por seres humanos
biologicamente idênticos a nós e sob circunstâncias similares, ela, no
processo de se tornar uma sociedade científica, iria provavelmente seguir
uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos de
conhecimento ao invés de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio
científico; por conseguinte, parece que devemos aceitar a idéia de que a
seqüência de estágios é do tipo não-acidental, ou seja, de que se trata de uma
lei no sentido liberal de uma tendência sócio-cultural necessária.
Concluímos que, sob uma interpretação suficientemente tolerante e
flexível, a idéia de que o progresso da cultura humana tende a seguir os três
101
estágios descritos é defensável. Nosso próximo passo será considerar a
filosofia tradicional munidos das idéias recém adquiridas e ver o quão longe
isso pode nos levar.
4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIA
ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA
Podemos sumarizar a visão comtiana do lugar da filosofia entre religião e
ciência por meio do seguinte esquema:
RELIGIÃO
(explicação
por deuses)
FILOSOFIA
(explicação
por princípios)
CIÊNCIA
(explicação
por leis)
A despeito do óbvio apelo metafilosófico dessa idéia, Comte não a
aplicou suficientemente aos domínios centrais da filosofia, presumivelmente
devido à mera ausência de uma maior familiaridade com a sua história; em
geral os seus exemplos são de princípios metafísicos pertencentes à préhistória das ciências positivas, tais como o flogisto antes da química e o éter
na infância da física.
Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três
estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, a primeira coisa
a fazer é tornarmos explícitas as mais distintivas propriedades das entidades
mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas
propriedades, que chamo de teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:
(i)
Transcendência física: Entidades mentais são feitas de um material
essencialmente diverso daquele de que são feitos os corpos físicos,
além de serem superiores (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma
substância pensante infinita);
102
(ii)
(iii)
(iv)
Hipermentalidade: Os poderes mentais das entidades mentais são
alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o
futuro, algumas são oniscientes etc.);
Hiperfisicalidade: Os poderes físicos das entidades mentais
encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez
infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer
leis físicas etc.);
Idiossincrasia mental-corporal: As entidades mentais ou não se
associam aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas
a eles, não o são necessariamente, nem o são dos modos
usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter nenhum corpo
físico, podem habitar seres não-vivos, mudar livremente o corpo
no qual escolhem habitar, habitar muitos deles simultaneamente
etc.).
Essas propriedades podem ser vistas como supostos critérios de
identificação, os quais nos possibilitariam descrever e eventualmente
reconhecer o sobrenatural e o divino. Nem todas elas precisam estar
presentes: no materialismo epicurista, por exemplo, os próprios deuses
devem ser físicos, suas mentes sendo feitas de átomos materiais
extraordinariamente sutis, falhando, pois, em satisfazer adequadamente o
critério (i). Típico das propriedades teomórficas é que elas não são objetos
de nossa experiência ordinária, seja ela do mental ou do físico; mesmo
assim, parece que podemos concebê-las secundariamente, ao menos até certo
ponto, por alteração e estensão do que já sabemos com base em nossa
experiência ordinária.
Se, seguindo Comte, desejamos considerar as entidades-princípio
metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a
regularidade da lei científica, então, devemos entendê-las como consistindo
de algo que se encontra entre
103
A. o que é teomórfico, ou seja, o que possui uma ou mais propriedades teomórficas recém designadas e
B. o que é natural, ou seja, o que possui somente as propriedades físicas ou psicológicas, ou mesmo propriedades formais (como as dos
objetos matemáticos), ordinariamente reconhecidas pelo senso comum e possivelmente também pela ciência, posto que a ciência
pode ser facilmente entendida como uma extensão crítica do senso
comum.
Feita essa admissão nós nos encontramos preparados para distinguir alguns
tipos básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é
(a) +A+B: entidade-princípio metafísica híbrida (ou inflacionada). A
constituição de um conceito metafísico que pretende designar um
princípio desse tipo é semanticamente dependente (mesmo que de
maneira elusiva) de ambas as propriedades, teomórficas e naturais;
por um lado, de propriedades teomórficas (que são constitutivas do
sobrenatural) e, por outro, de propriedades normais, físicas, mentais
ou formais, acessíveis à nossa experiência ordinária de senso comum
e de ciência (a qual poderia dar-nos acesso a leis científicas).
O Deus sive Natura de Spinoza poderia servir como um exemplo de
entidade-princípio metafísica híbrida. Para esse filósofo o que existe é Deus
ou substância, que é também natureza. Como natureza ele é acessível a nós
sob os seus atributos essenciais de extensão (ou experiência do físico) e
pensamento (ou experiência do mental), possuindo como tal um status de
entidade-princípio natural (+B). No entanto, esse modo de ver não chega a
ser tão absolutamente natural e livre de antropomorfismo como parece:
como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um
correspondente modo mental, ele implica que todas as coisas físicas, como
104
essa mesa e aquela cadeira, são também mentais, possuindo algum tipo de
sensiência. Isso revela, porém, que a natureza spinoziana abriga uma
idiossincrasia mente-corpo (+A). Mais além, a natureza como “Deus” é
hipostasiada como possuindo a capacidade de amar-se a si mesma com amor
infinito (Ética, livro V, prop. 35), o que significa que o Deus de Spinoza
também possui algum tipo de propriedade teomórfica de hipermentalidade
(+A).
Talvez o melhor exemplo de um primeiro princípio híbrido rico e
multicor seja a natureza em John Scotus Eriúgena. Para esse filósofo a
natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é
criada. Ela é Deus, como o ser perfeitíssimo e incognoscível que tudo causa.
A segunda é a natureza criada que cria, ou seja, os arquétipos (formas) da
sabedoria divina, que são as causas eficientes de todas as coisas. A terceira é
a natureza como o mundo que é criado e não cria, ou seja, tudo o que é
gerado no espaço e tempo, que embora não crie é manifestação de Deus
(theophania). Finalmente, há a natureza que não é criada e não cria, ou seja,
Deus como o termo final da criação, quando a natureza será a ele novamente
assimilada.
Considerando o conceito de natureza em Scotus, vemos que de um lado
ela deve ser o Deus pessoal cristão (como natureza criadora e incriada e a
natureza que não é criada e não cria), possuindo propriedades teomórficas
como a consciência, a intencionalidade, a liberdade da vontade etc. (++A).
Contudo, de outro lado a natureza é também aquela constitutiva do próprio
mundo espaço-temporal que nos circunda (a natureza criada e não-criadora),
envolvendo uma inevitabilidade nomológica que o impele inexoravelmente
em direção ao seu destino último (++B). Se admitirmos uma unidade no
conceito de natureza, o hibridismo rico de Scotus se torna tão flagrante que
105
parece preso a uma inconsistência insuperável, que sempre impressionou os
críticos.
Outra entidade-princípio mista, que de algum modo nos recorda a
natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é
hipermental (posto que é origem de toda a realidade) (+A), possuindo
idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) (+A),
mas que em contrapartida deve desdobrar-se a si mesmo em um processo
que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais
(+B).
Ainda um exemplo de entidades-princípio híbridas são as mônadas de
Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é constituído de um número
infinito de pontos mentais chamados mônadas. De um lado, uma mônada
tem as suas próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras
mônadas através de aparências de natureza espaciotemporal (+B). De outro
lado, cada mônada é também uma força viva, possuindo algum grau de
percepção e consciência, que se estende em maior ou menor medida a todo o
universo
das
mônadas!
Conseqüentemente,
mônadas
também têm
características teomórficas, como idiossincrasia físico-mental (porque coisas
materiais são aparências fenomenais de agregados de mônadas) e
hipermentalidade (porque mônadas são sempre oniscientes, mesmo quando
em um grau ínfimo) (+A).
Finalmente, é preciso notar que B não precisa pertencer ao mundo físico
ou mental, podendo ser também de natureza formal (embora pessoalmente,
como bom empirista, eu acredite que o elemento formal seja também em
algum sentido redutível ao empírico). Esse é o caso do número como
entidade-princípio inflacionada em Pitágoras. Para esse filósofo, como para
nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são
106
ordinariamente acessíveis (+B). Ao mesmo tempo, contudo, o número deve
ser imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos, dele derivando o bem e o
mal, o masculino e o feminino etc. (+A)
Certamente, a quantidade relativa de +A e +B pode variar: o Deus sive
Natura spinoziano é quase naturalista (poderíamos designá-lo como
+A++B), enquanto as mônadas distinguem-se através de suas propriedades
teomórficas (poderíamos designá-las como ++A+B). A natureza enriquecida
de Scotus é para ser situada aproximadamente no meio (++A++B). A
maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa são de um tipo
inflacionado, aludindo a ambos os tipos de propriedade, teomórficas e
naturalistas, de maneira a se tornarem cognitivamente acessíveis.
O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma
(b) –A–B: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A
constituição de um conceito metafísico objetivando designar um
princípio desse tipo é explicitamente concebida como carente de
qualquer dependência semântica de propriedades teomórficas ou das
propriedades físicas ou mentais ou formais usuais, tal como elas são
ordinariamente experienciadas e conhecidas pelo senso comum e pela
ciência.
A conseqüência dessa estratégia explicativa é que o princípio-entidade
torna-se em si mesmo incognoscível. De fato, ou a palavra-conceito usada
para designar tal princípio metafísico é completamente destituida de sentido,
ou (como geralmente é o caso) algum sentido advém externamente do
contexto ou equivocamente de uma eliminação inconsistente das referências
originárias.
Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica
elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, que era concebido como totalmente
inalcançável para os nossos poderes cognitivos (o Uno pode ser aproximado
107
somente pelo que ele não é, posto que ele não é nada que possa ser
conhecido). Todavia, o mais notório exemplo de entidade-princípio elusiva é
o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências
fenomenais e que inclui, entre os seus mais nobres habitantes, a coisa em si e
o Eu transcendental. Contemporaneamente, exemplos de princípios elusivos
são o conceito wittgensteiniano de indizível (Unausprechlich), apontando
para o que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito
heideggeriano de Ser, entendido como a seridade do ser, a qual poderia ser
aproximada, ao menos, através dos meios metafóricos da linguagem
literária. O tipo deflacionário de princípio metafísico tem a vantagem de não
correr o risco de ser demonstrado internamente inconsistente; mas o preço
dessa vantagem é o de simplesmente não ser um conceito. E essa vacuidade
semântica é eventualmente capaz de contaminar o restante do discurso
filosófico com vacuidade retórica, como o desenvolvimento da obra de
Heidegger muito claramente demonstra.
Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem
ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos.
Considere o caso do conceito de vontade em Schopenhauer. Em princípio
ele é o mesmo que o da coisa em si, que Kant estabeleceu como sendo um x
incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o
suposto designatum de seu conceito só pode ter a forma –A–B. Mas só isso
não satisfaria as intenções do filósofo. Segundo Schopenhauer, pela
experiência do corpo notamos que por detrás das aparências sensíveis o que
realmente existe é a vontade, a qual é uma pulsão cega que se manifesta a si
mesma como força, sendo mais diretamente objetivada em nossa experiência
interna da vontade de viver, por ele entendida como sendo capaz de mostrar
a sua presença na totalidade do mundo, orgânico e inorgânico.
108
Essa estratégia torna possível que a inicialmente inofensiva coisa em si
termine por se manifestar como uma perversa vontade cósmica, que pervade
toda a natureza e que é a verdadeira fonte do interminável sofrimento da
humanidade. Notamos, pois, que aquilo que a princípio era para ser
concebido como da forma –A–B, recebe propriedades que o transformam em
um princípio que tomado como uma força natural cega passa a possuir algo
do caráter de uma lei natural universal (+B), embora simultaneamente
envolvendo, em suas manifestações como uma vontade de viver universal,
traços teomórficos, ou seja, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de
hipermentalidade (+A). Isso é assim, mesmo que Schopenhauer aplique aqui
o velho truque filosófico de negar o que fez depois de já tê-lo feito. Por isso,
o seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma
composição conceitual da forma +A(–A–B)+B (os parênteses servem aqui
para cercar o que estava na origem do processo de constituição conceitual).
Buscando alternativas entre +A+B e –A–B, entre os princípios híbridos e
elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades básicas:
(c) +A–B: entidade-princípio teológica. A constituição de um conceito
objetivando designar um princípio desse tipo é semanticamente
dependente de propriedades teomórficas não acompanhadas de
propriedades naturais.
Essa combinação é obviamente imprópria ao que chamamos de
indagação filosófica, posto que ela nos traz de volta à religião: entidades que
são fisicamente transcendentes e/ou hipermentais e/ou mente-corpoidiossincráticas sem qualquer apelo a explicações naturalistas são
precisamente entidades espirituais como deuses, totens etc. Mas há ainda
uma última alternativa, que consiste simplesmente na recusa do elemento
teomórfico:
109
(d) –A+B: entidade-princípio naturalista. A constituição de um conceito
filosófico objetivando designar um princípio desse tipo é
semanticamente dependente de propriedades naturais admitidas pelo
senso comum e eventualmente pela ciência, sejam elas físicas,
mentais ou formais.
A diferença enunciada entre um princípio naturalista e uma lei científica
repousa em seu caráter filosófico-especulativo. Ela repousa na ausência de
um possível acordo consensual sobre os valores-de-verdade dos enunciados
freqüentemente demasiado vagos e impalpáveis dos princípios filosóficos
naturais.
A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese
de Anaximandro de que a Terra é suspensa no vazio e de que os seres
humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III (seção 4). Mas
o exemplo padrão de princípio natural é talvez a teoria atomista de filósofos
materialistas como Leucipo e Demócrito, afirmando que coisas concretas
são constituidas de porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito,
os átomos podem ter formas diferentes, responsáveis por diferentes
propriedades da matéria; eles podem juntar-se uns aos outros de modo a
formar pedaços de matéria etc. Embora os átomos possam ser
“teoricamente” divisíveis, posto que eles têm formas e tamanhos e pesos,
eles permanecem sendo fisicamente indivisíveis(52). Certamente, dado que a
hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência
ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos
teomórficos, o conceito filosófico de átomo, tal como o conceito científico,
tem a forma –A+B.
Princípios naturalistas são aqueles que mais facilmente demonstram o seu
caráter protocientífico porque eles ocorrem mais freqüentemente em
110
antecipações mais antigas das bem desenvolvidas ciências naturais
contemporâneas.
Com
relação
ao
atomismo,
o
modelo
de
seu
desenvolvimento é o mesmo discutido nos exemplos no capítulo III: o
atomista antigo não poderia identificar as propriedades de seus átomos,
mensurá-las, ou observar os seus traços, obtendo consenso acerca dos
resultados, como fazem os físicos de hoje com as partículas elementares;
mas eles podiam especular sobre a sua existência, assumindo as suas teorias
uma forma que é comum a todas as teorias atômicas, posto que a idéia de
que a matéria não é divisível de modo contínuo, mas em componentes
discretos, é comum tanto à teoria atômica dos antigos quanto às teorias
contemporâneas. (Pode ser que quanto mais remotamente distante de sua
realização científica está a idéia que o filósofo busca alcançar, mais
teomórfica a explicação tende a ser, mas nesse caso os atomistas gregos
demonstraram que há exceções.)
Outro exemplo de princípio naturalista é o Ser de Parmênides, posto que
ele é destituido de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho
da verdade” é daquilo que é. Substantivando aquilo que é como o Ser (to
on), ele atribui ao Ser os predicados de unidade, unicidade, eternidade,
imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade e limitação, tratando assim o
Ser como se ele fosse uma coisa, embora algo somente alcançável pelo
pensamento, não pelos sentidos. Mais além, como pensar o que não é é
completamente impossível, o Ser é o único objeto do pensamento e “a
mesma coisa é que é para ser pensada e para ser” (to gar auto noein estin te
kai einai).
A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica nãodeterminadora (capítulo V, seção 1), que nos parece inevitável ao discurso
filosófico: a vaguidade e incompletude do argumento, junto com a
111
suspeitada inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao Ser,
sugerem um indefinido número de chaves interpretativas, nenhuma delas
inteiramente satisfatória. Meu próprio palpite é que o Ser parmenídico seria
melhor entendido se fosse identificado ao que hoje poderíamos chamar de a
totalidade dos conteúdos proposicionais concebíveis, verdadeiros e falsos.
Essa interpretação, que logo explicarei, satisfaz um princípio de caridade,
salvando a maioria das afirmações de Parmênides sobre o Ser. Considere,
primeiro, a totalidade de proposições concebíveis (verdadeiras e falsas).
Embora formais, elas pertencem a um mundo natural, no sentido de não
serem teomórficas (+B) (suspeito que elas possam ser reduzidas a alguma
coisa mental e em última análise física, como conjuntos de conteúdos
proposicionais pensados e similares). Essa totalidade de proposições é,
certamente, tudo o que pode ser pensado (i. é, “o que é para ser pensado”).
Esse conjunto de proposições é também eterno (ou atemporal), imutável,
imperceptível pelos sentidos e em sentido indivisível e homogêneo, em
contraste com o mundo perceptível pelos sentidos. Mais além, a serem
excluídas da totalidade das proposições concebíveis estão aquelas
inconcebíveis (como “Sábado está na cama”), particularmente as
contradições (como “Certos solteiros são casados”). Isso nos permite
justificar o famoso dictum de Parmênides de que não se pode pensar o que
não é. Finalmente, de acordo com essa interpretação, o “caminho da
verdade” admite o pensamento de proposições falsas, o que faz com que o
Ser parmenídico se torne imune à objeção platônica de que é impossível para
Parmênides dizer o que é falso(53).
Se essa paráfrase é correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como
uma antecipação do que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um
mundo de idéias, os estóicos com a sua doutrina do lekton (como a matéria
112
incorpórea do que é veiculado por signos lingüísticos), Peirce com a sua
categoria de terceiridade, Frege com o seu reino de pensamentos atemporais
e imutáveis (os sentidos das frases assertivas), Popper com o seu mundo 3
(das criações culturais resultantes da interação entre o mundo físico e o
mental)... Se for assim, então temos um impressivo exemplo de antecipação
especulativa de algo que filósofos posteriores lograram compreender de
maneiras mais avançadas, embora sempre com uma margem de sucesso
muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas difiram profundamente,
não estamos autorizados a afastar a hipótese de que há algo relevante para
ser encontrado no final da investigação, algo que em princípio poderia
tornar-se questão de acordo científico-consensual.
Exemplos da forma –A+B são interessantes porque eles podem, em
certos casos, ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência
que não ocultam uma intenção antropomorfizadora deceptiva – eles são
construídos somente para satisfazer nossa curiosidade especulativa sobre
questões que se encontram além de nossas presentes possibilidades de
avaliação consensual. Esses casos demonstram que a posição depreciativa de
Comte, sustentando ser a indagação metafísica mero produto da imaginação
sem a menor conseqüência, exceto a de preservar, através de esperança e
ilusão, a disposição para a investigação, era demasiado pessimista.
Finalmente, é para ser notado que a estratégia naturalista também pode
ser combinada com outras durante o processo argumentativo de
estabelecimento do princípio filosófico e da sua correspondente constituição
conceitual. Isso parece ser o caso do conceito platônico de idéia ou forma.
Para fazer esse conceito concebível, Platão precisou apelar para analogias
tomadas da experiência ordinária, começando com os significados
psicológicos da palavra “idéia” e o significado especial da palavra “forma”,
113
o que significa a adição de +B. Conjuntamente, a idéia para Platão deveria
ser concebida como uma entidade não-teomórfica (–A) tendo, pois, a forma
–A+B. Contudo, como Platão sustenta que as idéias pertencem a um mundo
de coisas puramente inteligíveis, superior e mais real do que o mundo
sensível, o conceito de idéia deveria também adquirir a forma –B. Como
conseqüência, parece que a idéia platônica poderia ser referida como
resultante de uma composição conceitual da forma “(–A+B)–B”.
5. CONCLUSÕES
A primeira conclusão de nossa análise dos princípios metafísicos sob a
perspectiva sugerida pela lei dos três estágios é que ela mostra uma certa
limitação na concepção comtiana. Ao menos quando consideramos os casos
–A–B e –A+B, vemos que a sua tese de que os princípios metafísicos são
abstrações personificadas inconsistentes é demasiado restrita. Mais além, o
caso –A+B mostra que especulações filosóficas também são capazes de
constituir um empreendimento puramente heurístico, motivado pela simples
curiosidade especulativa, sem uma orientação para explicações teomórficas.
Essas especulações não possuem a motivação prática de conhecimento e
domínio efetivo da realidade que é própria da ciência. Tal motivação me
parece derivada do mesmo domínio que em seu contexto próprio conduziu
às explicações imaginárias da realidade que encontramos nas religiões. Não
obstante isso, especulações do tipo –A+B aparecem como esboços
explicativos conjecturais, constituindo, não um estágio provisório de idéias
inerentemente equívocas, mas os inícios especulativos da ciência, os quais
são eventualmente capazes, ao menos em seus contornos, de ser mais tarde
admitidos como parte óbvia das conquistas da ciência.
114
O reconhecimento de tais possibilidades também mostra, particularmente
no caso examinado do Ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade
podem justificar-se em filosofia no caso demasiado freqüente em que um
filósofo está tentando (como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel,
Wittgenstein e muitos outros) dizer algo que se encontra além dos recursos
conceituais a seu dispor. Como H. H. Price uma vez apontou, em uma
passagem bastante sugestiva:
podem muito bem existir algumas coisas que na terminologia avaliável
em certo tempo só possam ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora
ou (o que é ainda mais perturbador) em um oxímoro ou em um paradoxo,
isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas
existentes e que é em seu sentido literal absurda. O homem que as diz
pode, é claro, estar confundido. Mas é possível que ele esteja dizendo
alguma coisa importante. Nesse caso seus sucessores podem ser capazes
de adivinhar o que ele está tentando sugerir. As regras terminológicas
podem ao final mudar. E a metáfora selvagem ou o paradoxo ultrajante
de hoje podem tornar-se a platitude de depois de amanhã.(54)
Embora eu não creia que filósofos possam pensar alguma coisa precisa
ou adequada que eles não possam também dizer em uma linguagem
suficientemente precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o
bastante), parece claro para mim que filósofos freqüentemente têm intuições
importantes, mas imprecisas e inadequadas, as quais eles só conseguem
exprimir em termos que são correspondentemente falhos. A moral dessas
considerações parece ser a de que, não importando o quão inerentemente
contraditórias ou malconcebidas sejam as estratégias levadas a termo por
115
intermédio de princípios-entidade inflacionários e deflacionários, elas
podem estar sempre apontando para algo importante escondido por trás das
cortinas.
Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos
que a abrangência encontrada na filosofia é proveniente de um desejo
aparentado ao desejo existente na religião de se encontrar uma explicação
integrada de todo o mundo e do lugar e perspectivas que o homem nele pode
encontrar. Contudo, isso não é necessariamente a herança infeliz de uma
busca impossível. Quando consideramos que as questões centrais da
filosofia contemporânea estão sempre em alguma medida relacionadas umas
com as outras, parece que a abrangência, quando preservada dentro dos
limites razoáveis, pode ser uma aspiração bem justificada da filosofia,
mesmo enquanto esta última é considerada em termos de um esforço
antecipador da ciência. Se isso é verdade, então mesmo a busca religiosa da
abrangência, não era tão fora de propósito quanto se possa pensar.
116
V
A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA
E ARTE
Parece-me que a filosofia é um verdadeiro
canto que não é o da voz, e que ela tem o
mesmo sentido de movimento que a música.
Gilles Deleuze
Nós comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais
fundamentais, a ciência e a religião, mostrando que a filosofia se situa de
certo modo entre as duas. A filosofia não é somente um esforço antecipador
da ciência, posto que ela retém alguns traços do pensamento religioso, não
somente na amplitude especulativa de seus objetivos teóricos e práticos, mas
também pelo seu freqüente apelo a princípios explicativos que, como o Deus
ou os Deuses, permanecem de algum modo além de nossa compreensão.
Agora é tempo de comparar a filosofia com uma terceira atividade cultural
fundamental: a arte.
Baseados no fato de que há uma certa similaridade entre filosofia e arte,
alguns filósofos perfilharam a tese de que a filosofia é essencialmente uma
forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa idéia, a filosofia
não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a
realidade, nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e
117
horizontes da existência humana até agora desconhecidos, mas como um
prisma com o qual são criados fascinantes e provocativos modelos
conceituais e esculturas de pensamento.(55)
No que se segue considerarei a interface entre filosofia e arte de maneira a
mostar que os aspectos mais propriamente artísticos da filosofia, longe de
constituírem uma condição suficiente para a sua existência, não chegam a
serem sequer necessários. Não obstante, como quero sugerir no final, ainda
assim a filosofia pode ser vista como uma atividade derivada da atividade
artística, ou aparentada com esta, por fazer com um material cognitivo o
mesmo que a arte faz com um material intuitivo-emocional. Para tornar a
primeira tese plausível, precisamos começar distinguindo dois tipos de
similaridade entre filosofia e arte: (a) similaridades externas, ou seja,
aquelas que são devidas à utilização de recursos artísticos em filosofia, os
quais não precisam estar sempre e necessariamente presentes, e (b)
similaridades internas, ou seja, similaridades de natureza entre as duas
práticas culturais, as quais estão sempre e necessariamente presentes.
Começaremos com as primeiras.
1. O SABOR ESTÉTICO DE ALGUNS ESCRITOS
FILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS
Similaridades entre filosofia e arte são externas quando o filósofo se
utiliza de meios literários. Há várias razões para uma abordagem literária das
questões em filosofia. Uma delas é que um discurso com maior poder
sugestivo permite comunicar idéias de uma maneira mais efetiva e
impressiva. A mais séria razão, contudo, é que filósofos freqüentemente não
118
encontram alternativa, precisando escolher entre seguir adiante de maneira
linear, mas com argumentos falhos, ou se exprimir por caminhos mais
alusivos, que se encontram abertos a interpretações diversas e que são menos
incorretos, mas também menos informativos. É uma razão legítima produzir
o que pode ser chamado de um discurso metafórico, ou, como prefiro
chamar, um discurso semanticamente sugestivo em filosofia, no qual as
palavras e suas combinações evocam coisas que não são as literalmente
significadas por elas. Considere-se o recurso a símiles e a mitos em Platão, o
recurso à poesia, à imaginação poética e à alegoria por Nietzsche, o recurso
a aforismos por Wittgenstein, e perceberemos o quão importante e poderoso
pode ser o uso da linguagem figurativa em filosofia.
Esses recursos estéticos múltiplos são arte: eles são arte na filosofia, que
é seu veículo. Mas nem por isso eles precisam ser confundidos com a
filosofia em si mesma. O uso de recursos literários na filosofia parece
externo ao empreendimento filosófico em si mesmo. Para entendermos por
que o uso de recursos artísticos externos não faz da filosofia uma forma de
arte, precisamos apenas considerar, por comparação, o caso da religião. Essa
última sempre fez uso externo de recursos artísticos de maneira a realizar as
suas funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas histórias
mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia ou os
Upanishads, que são também obras literárias de maior ou menor qualidade.
No entanto, ninguém concluiria disso que a Teogonia ou a Bíblia devem ser
pensados como trabalhos de ficção, ou que a religião pode ser reduzida a
uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode concebivelmente
existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de ser
diferente com a filosofia?
119
2. SIMILARIDADES INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE
Há também similaridades internas, isto é, similaridades de natureza entre
filosofia e arte. Se a filosofia fosse para ser considerada uma forma de arte,
isso seria devido a essas similaridades internas. No entanto, veremos que as
propriedades que são similares, embora possam ser necessárias tanto à
filosofia quanto à arte, não são suficientes para qualificar nenhuma das duas,
o que nos leva a rejeitar uma identidade essencial entre ambas.
Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a primeira é
uma atividade cultural sem finalidades ulteriores: como a arte, a filosofia é
um fim em si mesmo. Em certa medida, ao menos, isso é verdade: a filosofia
justifica-se como algo prazeroso em si mesmo, muito mais que por alguma
vantagem externa que ela possa trazer. Contudo, a importância dessa
similaridade não pode ser exagerada, pois no caso da filosofia podemos
encontrar uma associação mais direta com finalidades externas: as
concepções filosóficas que adotamos têm uma influência indireta nos modos
como julgamos e agimos. Contudo, não podemos adotar as concepções
expressas pelas obras de arte, posto que tais opiniões não existem (a arte
pode assumir um papel pedagógico, mas ao fazê-lo deixa de ser arte). O
melhor que se pode fazer é adotar algumas concepções alcançadas sob a
influência de alguma experiência estética.
Um segundo elemento em comum diz respeito ao que podemos chamar
de função integradora da arte. A arte visa a integração de nossa vida
sensível e emocional, possibilitando-nos harmonizar os sentimentos, além de
produzir um alargamento e enriquecimento de nossa experiência emocional.
Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também possui uma função
integradora, não tanto de nossa vida sensível e emocional, mas do que já foi
120
chamado de vida do entendimento e da razão. Parece que a filosofia faz com
o material abstrato dos conceitos o que a arte faz com o material sensível da
intuição. Na produção e apreciação da arte, a imaginação sensível está em
serviço, enquanto no caso da filosofia é a “imaginação intelectual” que
trabalha. Desse modo a filosofia poderia ser chamada de uma “arte da
razão’, em contraste com a costumeira “arte das emoções”. Contudo, que a
palavra ‘arte’ é usada aqui em um sentido meramente analógico é revelado
pelo fato de que algo similar pode ser dito acerca da religião. A religião
também tem uma função integradora, relativa à nossa visão do mundo e ao
nosso lugar nele. É a religião então algo como a “arte da espiritualidade”? E
o que dizer da ciência? Acaso ela não possui também uma função
integradora com respeito ao nosso conhecimento do mundo e mesmo de nós
mesmos? Com base nisso deveríamos então concluir que a religião e a
ciência também são formas de arte? A resposta negativa que damos a essa
questão estende-se inevitavelmente à filosofia.
Outra similaridade entre filosofia e arte diz respeito à criação. Como a
arte, a filosofia é em certa extensão um trabalho da imaginação. A criação
em arte não é dirigida somente para a produção da costumeira beleza e
harmonia, mas também de um inesperado contraste – o que Walter
Benjamin chamava de schock – capaz de sugerir a cada um de nós uma
reorganização dos valores emocionais que associamos às coisas. A criação
filosófica, por sua parte, também produz tais contrastes com o material
cognitivo de conceitos abstratos. Esse é um aspecto da filosofia que é
notadamente similar ao de certas obras de arte, qual seja, a sua capacidade
de produzir um inesperado contraste na forma de tauma, a palavra grega
para surpresa, espanto, que os antigos também aplicavam à filosofia. Aqui
mais uma vez vemos a filosofia funcionando como a “arte da razão”,
121
esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de
reorganização de nosso universo intelectual. Isso pode ser notado em
sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teológica do mundo
em Plotino e o idealismo subjetivo de Fichte. Tais sistemas não mostram
como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção implícita desses
filósofos), mas como o mundo poderia ser ou possivelmente (mas muito
improvavelmente) é. Esse é um ponto interessante, mas outra vez não mostra
que a filosofia é arte. Ele mostra que a filosofia é uma atividade criativa,
mais que a ciência e menos que a arte.
A tese de que a filosofia é uma forma de arte é mais decisivamente
desqualificada quando consideramos que há também diferenças essenciais
entre as duas práticas. Diversamente da arte, a filosofia tem propósitos
heurísticos imediatos: ela busca descobrir a verdade. Mesmo filósofos da
variedade cética usualmente objetivam estabelecer a verdade de suas
negativas. Embora não se possa negar que a boa arte também tenha a
verdade como fim, ela a tem de modo indireto: ela nos torna mais abertos
para entendermos a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. A filosofia,
contudo, busca a verdade de modo mais direto: ela pretende, senão dizer o
que é ou não é verdadeiro, ao menos indicá-lo. Embora essa busca da
verdade não resulte em um efeito progressivo e acumulador de
conhecimento no mesmo sentido da ciência, ela é, como já notamos (III, 8),
acumuladora de conteúdo, preenchendo mais e mais um spectrum de
possibilidades de verdade. Com efeito, como sugerimos, se a filosofia ocupa
os lugares epistêmicos de domínios científicos desconhecidos, então
podemos esperar que as ramificações das alternativas especulativas em um
dado domínio da filosofia tenham um limite em número, enquanto isso pode
não ser o caso com a arte.
122
Não obstante, a filosofia, como a religião, permanece mais próxima da
arte do que da ciência. Como isso pode ser explicado? Penso que a teoria
psicanalítica pode ser-nos de algum auxílio aqui. Segundo essa teoria,
filosofia e arte têm em comum o fato de que ambas são em alguma medida
um resultado do que Freud chamava de processo primário (primäre
Vorgang) de pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio
do prazer, mais que no princípio da realidade(56). Para Freud essa forma de
pensamento ocorre nos sonhos, no trabalho da imaginação neurótica e
psicótica, na criação e apreciação de obras de arte, e também no raciocínio
religioso e filosófico. No processo primário, as emoções ou cargas
(Besetzungen) não se encontram mais firmemente ligadas a suas
correspondentes representações. Assim, as cargas das representações
inconscientes e pré-conscientes se tornam capazes de ser cedidas a outras
representações de um ou de outro modo associadas às originais, tornando-se
as últimas conscientes, o que produz prazer pela diminuição dos níveis de
tensão endopsíquica. É importante notar que os mecanismos pelos quais as
cargas de representações não-conscientes são cedidas à representações
capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento
(Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação R é cedida a uma
representação R1, a qual por força disso se torna consciente, e a
condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações
R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que por isso se torna
consciente. Uma conseqüência desse processo é que representações são
combinadas na consciência de modos muito mais flexíveis do que os
encontrados no processo secundário (sekundäre Vorgang), o qual é mais
característico de nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio
da realidade. O que chamei de sugestividade semântica é algo obviamente
123
dependente do processo primário, posto que envolve condensação e/ou
deslocamento.
Agora, o fato de que do ponto de vista psicanalítico o pensamento
filosófico pode ser compreendido como sendo em certa medida um efeito do
processo primário parece corroborar a idéia de que a filosofia não pode ser
considerada uma forma de arte. Pois se o processo primário fosse suficiente
para caracterizar a arte, então precisaríamos assimilar outros produtos dele à
arte, como, por exemplo, os sonhos e os sintomas neuróticos. Sem comentar
o caso dos sintomas neuróticos. É claro que não estamos dispostos a admitir
que sonhos sejam manifestações artísticas apenas pelo fato de que os seus
conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio
de deslocamento e condensação. Tais considerações não provam, mas
reforçam a nossa opinião de que nem as similaridades internas nem as
externas são suficientes para caracterizar a filosofia como algo equivalente a
uma forma de arte, mesmo que a filosofia, tal como a religião, possa ser
grandemente enriquecida por meios estéticos.
Contudo, essa conclusão não invalida a segunda tese inicialmente
considerada, segundo a qual a filosofia seria um produto aparentado à
atividade cultural artística e a ela relacionado por derivações históricas. Pois
a filosofia é tão pouco uma forma de arte como é uma forma de ciência ou
de religião. Mas nós já vimos que existem fortes traços de parentesco entre a
filosofia e a ciência ou a religião, sem que, obviamente, a filosofia seja
ciência ou religião. Do mesmo modo, como em suas similaridades internas a
filosofia
possui
necessariamente
sugestividade
semântica,
função
integradora etc., ela se constitui de uma atividade até certo ponto
assemelhada à atividade artística, embora transladada para o nível do
entendimento e da razão. As entidades-princípio, por exemplo, nos fazem
124
considerar assim: elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando
concebidas em termos naturais. Assim, como produto derivativo da atividade
artística a filosofia pode continuar sendo considerada a “arte da razão”.
125
VI
PARA UMA TEORIA GLOBAL: BUSCANDO INTEGRAR
AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS
Neste capítulo reuniremos os resultados alcançados em uma tentativa de
encontrar uma explicação descritivista integrada da natureza da filosofia.
Essa explicação conduz a uma exposição mais perspícua das principais
configurações criteriais esperadas na identificação do discurso e do
pensamento filosóficos.
1. FILOSOFIA COMO UMA ATIVIDADE
CULTURAL DERIVADA
Entendo por prática cultural um conjunto recorrente de atividades sociais
em níveis predominantemente afetivo-cognitivos, as quais não são
imediatamente relacionadas à satisfação das necessidades práticas da vida,
sendo sustentadas diante de um pano de fundo de interesses humanos
coletivos. Podemos ver que a filosofia é capaz de partilhar similaridades
com as três práticas culturais fundamentais. Elas são:
a) CIÊNCIA,
b) RELIGIÃO,
c) ARTE.
126
Chamo essas três práticas culturais de “fundamentais” por causa de sua
importância e originariedade relativamente à vida humana em sociedade. Se
há outras práticas culturais (atividades comunitárias, jogos sociais etc.), elas
são geralmente derivadas daquelas, combinando-as umas com as outras ou
com atividades que não são propriamente culturais, como o trabalho e o
entretenimento.
Admitindo o caráter fundamental dessas três práticas culturais, a seguinte
questão emerge: é a filosofia uma quarta atividade cultural fundamental, no
mesmo nível da ciência, da religião e da arte, apenas diferente delas?
Filósofos do passado tentaram conferir à filosofia um status próprio,
independente dessas atividades, talvez superior ao delas, embora essas
tentativas nunca chegassem a ser convincentes. Nossos comentários prévios
sobre o caráter protocientífico da filosofia, sobre a herança religiosa de seus
interesses e sobre os aspectos artísticos de seu discurso, conduziram-nos à
conclusão de que deveríamos ser mais modestos. Deveríamos reconhecer a
existência de apenas três espécies mais fundamentais de atividade cultural,
sendo a filosofia em última análise uma espécie derivada, tanto em suas
motivações como no material por ela usado e em seus procedimentos
metodológicos. O lugar da filosofia com relação às práticas culturais mais
fundamentais pode ser grosseiramente comparado ao da ópera entre as
formas mais fundamentais de arte. A ópera é uma combinação de música,
drama e poesia. Similarmente, a filosofia pode ser vista como um composto
resultante da combinação de elementos que querem ser aproximados da
ciência, da religião e da arte. E do mesmo modo que a poesia não é um
elemento estritamente necessário à ópera (diversamente da música e da ação
dramática), o elemento artístico externo parece não ser estritamente
indispensável à filosofia.
127
A analogia com a ópera, como qualquer outra, tem seus limites. Embora
combinadas de maneira a produzirem juntas um resultado mais impressivo,
música, enredo e poesia podem ser facilmente separadas no caso da ópera:
podemos ouvir a melodia isoladamente, quando uma ária é parafraseada ao
piano, nós podemos ler as suas estrofes poéticas sem pensar na música, ou
ler o resumo do enredo. O mesmo não pode ser dito tão facilmente da
filosofia. Pois a última não é apenas uma colagem de elementos originados
da ciência, senso comum, conhecimento e religião, talvez harmonizados com
auxílio de meios estéticos. E ela também não é uma combinação perfeita
desses elementos na constituição de um produto completamente original,
como um novo composto químico, que é formado a partir de outros. A
metáfora de uma amálgama parece aproximar-nos melhor do caso em
questão. Em uma amálgama, diferentes elementos químicos não são apenas
misturados ao acaso, nem combinados para formar um composto químico
completamente novo, mas adicionados uns aos outros de um modo tal que as
propriedades macrofísicas do todo são alteradas. Algo similar pode ser
sugerido com respeito às indagações filosóficas: elas costumam juntar
elementos diversos de maneira a prover-nos de algo que é em seu todo
aparente algo novo, mas que ainda assim permanece uma prática cultural
derivada, posto que de tal unificação de elementos não se deriva algo
intrinsecamente original.
128
2. UMA EXPLICAÇÃO INTEGRADA DA
ATIVIDADE FILOSÓFICA
Tentando substituir as analogias antecedentes por algo mais literal, sugiro
que a filosofia seja uma espécie derivada de atividade cultural em suas
motivações, material semântico e procedimentos.
No que concerne às motivações, parece que a filosofia faz com que elas
derivem: (a) da curiosidade inquisitiva associada às formas científicas de
investigação, ou seja, associada ao desejo de adquirir um conhecimento
consensual que seja confirmado por seu efetivo poder de explicação,
previsão e manipulação da realidade; (b) de motivações originalmente
religiosas, as quais incluem o impulso que objetiva integrar nossas
experiências e prover uma visão imaginativa abrangente do mundo e da
condição humana, freqüentemente através do apelo a uma realidade
transcendente, que se encontra além daquilo que a experiência ordinária
pode nos oferecer, de modo a ser capaz de organizar e guiar nosso acesso ao
mundo; e (c) da arte, em sua busca de “efeitos catárticos”.
Com respeito ao material semântico ou conceitual – os data primários a
serem considerados – também ele não pertence propriamente à filosofia,
pois: (a) Parte desse material é o mesmo que os data de nosso mundo
natural, físico, mental ou formal, acessível em nossa experiência ordinária
ou inerentes à informação científica. Como vimos no capítulo IV, no caso
dos conceitos naturalistas de entidades-princípio (–A+B), esses podem ser
simplesmente todos os data a serem considerados. (b) Também vimos que
no caso de conceitos metafísicos híbridos (+A+B), a filosofia pode recorrer a
propriedades teomórficas (de transcendência, hipermentalidade etc.), as
quais estavam originariamente presentes na constituição dos seres espirituais
129
que são objeto da veneração religiosa, tratando essas propriedades como se
fossem data elementares ou indicativos deles. O material semântico
teomórfico nada mais é, sob o nosso ponto de vista, do que uma modificação
do material tomado de nossa experiência ordinária de senso comum ou até
mesmo científica, do físico, mental e formal, que entra na constituição
semântica de conceitos metafísicos híbridos, ainda que esse movimento
costume ser negado. (c) O material semântico carregado de sugestividade
emocional, que usualmente toma parte na invenção estética.
Os procedimentos heurísticos também não são originariamente
filosóficos, pois... (a) procedimentos metodológicos da filosofia não são
essencialmente diferentes dos procedimentos ordinários irrefletidos, ou dos
procedimentos das ciências formais ou empíricas. O método geométrico dos
filósofos racionalistas (tais como Descartes e Spinoza) refletiu o modo
apriorista como eles fundamentavam os seus argumentos, em uma mímica
dos procedimentos axiomáticos das matemáticas; o método histórico dos
filósofos empiristas (tais como Locke e Hume), baseado na introspecção e
informação empírica sobre o mundo e o comportamento humano, tem as
mesmas origens que os procedimentos de observação próprios das ciências
naturais e humanas, embora os últimos sejam mais acurados e melhor
controlados (sequer os instrumentos analíticos contemporâneos são
propriedade exclusiva da filosofia). (b) Como vimos (capítulo IV, seção 4),
o raciocínio filosófico comumente repousa na assunção de princípios
metafísicos, os quais podem ser representados pelo conceito metafísico
incoerente (ou seja, “+A+B”), carente de sentido (ou seja, “–A–B”), ou
meramente vago (ou seja, “–A+B”) (os primeiros dois tipos, ao menos,
retendo algo, mesmo que por negação, dos freqüentemente incoerentes e
incognoscíveis seres sobrenaturais da religião). Enquanto conceitos da forma
130
“+A+B” e “–A–B” ocorrem no mais das vezes em metafísica transcendente
e racionalismo, conceitos da forma “–A+B” são mais apropriados ao
naturalismo e ao empirismo. (c) Os trabalhos da imaginação no uso de
instrumentos retóricos, a construção de símiles etc., são todos recursos
sugestivos capazes de produzir efeitos estéticos.
As colunas do seguinte diagrama sumarizam as principais propriedades
que podem pertencer ao discurso e pensamento filosóficos:
FILO- MOTIVAÇÃO MATERIAL SEMÂNTICO PROCEDIMENTOS
SOFIA
(DATA)
(A) da
CIÊNCIA
Curiosidade científica visando um
conhecimento
real do mundo
Obtido dos data da ex- Uso de hipóteses
periência comum ou
e do raciocínio
científica, formal ou
argumentativo
empírica
(B) da
RELIGIÃO
Desejo de uma
concepção transcendente ordenadora do mundo
e da vida
Traços teomórficos,
hipermentalidade,
hiperfisicalidade e
idiossincrasia mentecorpo, admitidos como data
(C) Da
ARTE
Desejo de experiência catártica
harmonizadora
do mundo sensório-emocional
data simbólico-sensoriais, carregados de
sugestividade semântica
Recurso a intuições de princípios transcendentes, à experiência mística,
à exortação
Aplicação de recursos literários
para a produção
de sugestividade
semântica
O diagrama sugere fortemente que, longe de ser uma atividade cultural
autocontida, a filosofia apenas combina o que apropria de outros domínios
131
da cultura humana. Interpretamos os três níveis horizontais do diagrama
como representando as três possíveis dimensões da indagação filosófica: (A)
Uma dimensão heuristicamente orientada, constituida de conjecturas
antecipadoras da ciência; (B) Uma dimensão misticamente orientada,
contendo
especulações
e
princípios
metafísicos
não-fundados,
cognitivamente problemáticos e geralmente admitidos como matéria de
crença; (C) Uma dimensão esteticamente orientada, manipulando o medium
do discurso filosófico de maneira a sugerir possibilidades e multiplicar a sua
eficácia.(57). A consideração dessas dimensões torna explícitos os novelos
conceituais envolvidos na identificação do discurso e pensamento filosófico
a partir de nossa perspectiva metafilosófica descritivista. Revendo os três
níveis uma última vez, em maiores detalhes:
A) A dimensão heuristicamente orientada. Essa primeira dimensão é
motivada
pela
curiosidade
científica,
que
é
racional
e
realista,
potencialmente operativa, apta a ambicionar resultados efetivos. Ela é
constitutivamente direcionada à ciência, posto que essencialmente cognitiva
e heurística. Essa dimensão é baseada principalmente em generalizações
hipotéticas(58), seguidas de argumentos objetivando mostrar o que pode
delas resultar, e tentando reforçar a sua plausibilidade pela sua consistência
com os resultados obtidos – uma tarefa sempre realizada sob o pressuposto
(real ou imaginário) de uma comunidade crítica de idéias com função
mediadora. É como efeito das deficiências inerentes à dimensão
heuristicamente orientada que a filosofia se distingue da ciência
negativamente, por não satisfazer as condições de compartilhamento de
assunções básicas, do acordo consensual na avaliação da verdade, e do
progresso como uma acumulação de crenças admitidas como verdadeiras
pela comunidade crítica de idéias (capítulo III, seção 8).
132
Essa primeira dimensão é caracteristicamente argumentativa e buscadora
da verdade, repousando em enunciados constatativos. Mas as duas
dimensões seguintes não são mais essencialmente cognitivas, dependendo
mais de proferimentos performativos: B é uma dimensão primariamente
exortativa, repousando mais na ênfase normativa do que na verossimilitude,
enquanto C é primariamente expressiva.
B) A dimensão misticamente orientada. A curiosidade especulativa e o
impulso em direção a maior abrangência (o que Wittgenstein chamou de
“craving for generality”), geralmente unidos a um desejo de transcendência,
constituem o elemento motivacional dessa dimensão da indagação filosófica.
Essa dimensão contém essencialmente elementos que são em última análise
não-racionais e não-cognitivos, os quais em geral afetam a especulação
filosófica,
particularmente
aquela
que
apela
a
entidades-princípio
metafísicas do tipo híbrido ou elusivo, mas em menor grau também as
investigações naturalistas. (Usando a metáfora wittgensteiniana, a dimensão
mística não é do que pode ser dito, mas do que pode ser apenas mostrado;
sendo cognitivamente elusivos, os princípios metafísicos acabam podendo
ser apenas mostrados, embora com auxílio do que pode ser dito.)
C) A dimensão esteticamente orientada. Essa dimensão contém os
elementos artísticos próprios, atuando expressivamente e sugerindo
possibilidades cognitivas.
Meu argumento a favor de uma configuração criterial constituindo a
dimensão heuristicamente orientada foi apresentado no capítulo III, e os
argumentos a favor de configurações criteriais constituindo as duas outras
dimensões foram apresentados nos capítulos IV e V. A questão agora é:
133
como podemos organizar essas configurações criteriais de um modo que nos
ajude a identificar o que conta como filosofia no sentido acadêmico ou
técnico da palavra?
Não estou nem um pouco seguro quanto a resposta. Mas como acho que
ela deve ser tentada, hei-la:
A presença de configurações criteriais constituindo a dimensão
heuristicamente orientada pode ser considerada o critério primário, qual
seja, uma condição necessária para que algo possa ser chamado de
‘filosofia’ no sentido acadêmico ou técnico mais amplo da palavra.
Mas é a presença dessa configuração criterial em si mesma suficiente?
Em um sentido estrito, ao menos, me parece que não. Eis a razão: a
curiosidade científica não parece ser a mesma que a curiosidade
especulativa, ainda que possa não haver um limite distinto entre as duas;
assim, parece que somente a primeira não conduziria ao tipo de
empreendimento conjectural geralmente abrangente e despreocupado de
resultados consensuais que usualmente esperamos da filosofia. Se isso é
correto, então parece que é parte do mesmo impulso que em tempos
ancestrais conduziu à formação de explicações religiosas e míticas, aquele
que ainda agora nos conduz à especulação filosófica! Mas se isso é
verdadeiro, então os elementos criteriais constitutivos da dimensão
misticamente orientada são também necessários a uma forma apropriada de
indagação filosófica, e mesmo uma filosofia naturalista (do tipo –A+B) é
tributária de impulsos especulativos pertinentes ao âmbito místico-religioso
ou dele derivados.
Sobre a dimensão esteticamente orientada, nossas considerações sobre o
papel da arte em filosofia conduzem-nos à sugestão de que o elemento
artístico constitutivo do que chamei de similaridades internas, devidamente
134
deslocado para o domínio da razão e do entendimento, também constitui um
elemento ultimadamente imprescindível. As idéias filosóficas, as entidadesprincípios, só podem ser formas de teorias e nos dizer alguma coisa se
possuirem sugestividade semântica, se forem polissêmicas, se forem
susceptíveis de uma variedade indeterminada de interpretações. Sem dúvida,
mesmo filósofos cujo texto pouco ou nada tem de artístico e que são
voltados para a ciência, possuem conceitos-chave dotados de sugestividade
semântica. Tome como exemplo a noção de Deus em Aristóteles, a de
substância em Locke, a de sentido em Frege... Admitir isso, contudo, não
nos impede de considerar que a ênfase excessiva no elemento artísticoretórico, acompanhada de uma mímica descompromissada das outras
dimensões, tenha em alguns casos sido capaz de produzir filosofia como
uma espécie de patologia cultural.
As variações na importância de cada dimensão podem ser ilustradas se
desenharmos um triângulo com as atividades culturais fundamentais situadas
para além de cada vértice e a filosofia no seu interior:
RELIGIÃO
CIÊNCIA
FILOSOFIA
(ARTE)
À filosofia pertence tudo que está dentro do triângulo. As setas mostram
que as relações entre as dimensões são historicamente dinâmicas. Através do
tempo as explicações religiosas gradualmente deram lugar a explicações
filosóficas. E os remanescentes religiosos da filosofia foram sendo
gradualmente substituídos por formas de indagação cada vez mais próximas
135
do modelo da ciência. Como mostra a figura, a atividade e o discurso
filosófico estão muitas vezes profundamente associados à expressão estética,
o que explica por que a filosofia, particularmente em suas origens,
permanece freqüentemente ligada à arte. Contudo, quando a indagação
filosófica aproxima-se do discurso consensual da ciência, a expressão
artística tende a desvanescer-se, sendo substituída por formas mais diretas e
precisas de apresentação. Essas são tendências muito genéricas e inevitáveis,
ainda que retrocessos parciais possam ser sempre notados. (Será a filosofia
completamente substituída pela ciência? A resposta a isso depende da
resposta a outras questões, como a da finitude do conhecimento possível.)
136
VII
COROLÁRIOS E PERSPECTIVAS
O futuro elude a imaginação.
D. M. Jesseph
Neste capítulo sugerimos algumas aplicações da explicação proposta para
a natureza da filosofia. Elas consistem em uma diferenciação mais inteligível
entre diferentes formas de filosofia e em uma nova explicação da sucessão
dos diversos modos de se fazer filosofia, incluindo o modo lingüísticoanalítico.
1. FORMAS DE FILOSOFIA
Movidos somente por uma intenção cartográfica prática, podemos
classificar filosofias de acordo com o lugar ocupado por elas no interior do
triângulo apresentado no final do último capítulo. De fato, investigações
filosóficas podem ser comparativamente situadas naquele espaço, em
concordância com o peso relativo de suas dimensões de orientação
científica, mística e estética. Considere o caso do Tractatus LogicoPhilosophicus de Wittgenstein: por sua tentativa (protocientífica) de
construir uma teoria pictorial da representação, por sua doutrina mística do
indizível e por seus recursos estéticos, tanto estruturais quanto retóricos, essa
137
obra pode ser situada próxima ao centro do triângulo. Contudo, o exemplo
mais impressivo de uma obra filosófica situada no centro do triângulo seriam
os diálogos platônicos. A filosofia de Platão possui uma dimensão
protocientífica, cognitiva ou teórica própria, a ser encontrada na natureza
essencialmente argumentativa de seus escritos, em cujo centro – a doutrina
das idéias –, verdades ontológicas são buscadas e justificads em conexão
com uma teoria sobre nossas capacidades cognitivas e com preocupações
morais e sociais. Mas a filosofia de Platão também possui uma dimensão
mística, reconhecível em sua tentativa de criar uma visão especulativa do
mundo e, mais especificamente, em seu apelo aos mitos órficos, em sua
doutrina da alma do mundo e em sua quase religiosa veneração à forma do
bem. Por fim há o elemento estético, que transforma os seus diálogos em
trabalhos literários de grande beleza e permanente apelo. Com efeito,
alcançando um balanço ideal entre as três dimensões consideradas, a obra
platônica permanece o exemplo paradigmático de um esforço filosófico
clássico à beira da perfeição (Platão é o Mozart da ópera filosófica). Outras
filosofias clássicas, como a de Descartes, Kant e Hegel, também se
aproximam, umas mais, outras menos, desse ideal de integração de
influências.
Contudo, o papel dessas diferentes dimensões raramente é distribuído de
forma tão equitativa. Há filosofias limítrofes, a serem situadas próximas a
borda ou a algum vértice do triângulo. Assim a filosofia de Aristóteles, por
suas motivações e realizações, está mais próxima do vértice científico do
triângulo do que a de Platão, e muitos influentes filósofos especializados de
nosso tempo – penso em Frege, Carnap e Quine, para não mencionar Russell
e a tradição empirista – fazem uma espécie de trabalho que poderia ser
situado mais próximo do vértice científico do triângulo (o que já vimos ser
138
esperado, posto que a filosofia parece aproximar-se gradualmente da
ciência). Por outro lado, filosofias como a de Plotino e John Scotus,
principalmente por suas motivações, devem ser localizadas no vértice
místico/religioso do triângulo. Um filósofo pré-socrático como Heráclito, ou
grandes escritores como Marco Aurélio, Sêneca, Montaigne e Nietzsche
podem ser classificados como “artistas filósofos”, cuja obra poderia ser
localizada mais ou menos próxima do vértice artístico do triângulo. E as
filosofias de Kierkegaard, Agostinho e mesmo Hegel, poderiam ser
consideradas mais próximas do lado estético/místico do triângulo. Há
também casos que são realmente limítrofes: Novalis e Cioran foram tanto
artistas quanto filósofos. E a obra de Jacques Derrida parece-me melhor
avaliada se admitida como pertencendo ao domínio da arte. Esses casos
limítrofes devem ser distinguidos daqueles casos de artistas trabalhando já
fora das fronteiras filosóficas, embora em suas proximidades, como
Hölderlin e Goethe. Casos limítrofes, situados no vértice do triângulo onde
começa o pensamento religioso são, por exemplo, as doutrinas místicas de
Jakob Böhme ou de Meister Eckhart (os sermões religiosos de Eckhart estão
embebidos de profundos insights antropológicos). E há, por certo, casos
limítrofes situados entre filosofia e ciência. Considere, por exemplo, a
psicanálise: apesar de ainda dependente de interpretações subjetivas nãoconsensuais, deve ser reconhecido que as técnicas psicanalíticas possibilitam
insights novos e inalcançáveis pela psicologia introspeccionista que a
antecedeu. Um outro exemplo de trabalho nesse domínio limítrofe seria dado
pelos imaginativos escritos antropológicos de Claude Lévi-Strauss: eles
satisfazem uma ambição filosófica, estética e ainda (modestamente)
científica.
139
Pode-se classificar a totalidade dos movimentos filosóficos e mesmo
tradições de acordo com os seus lugares relativos no triângulo. A filosofia
norte-americana contemporânea (de Peirce a Quine) é tipicamente
influenciada pela ciência; ela é freqüentemente um empreendimento
naturalista,
buscando
esforçadamente,
mesmo
que
deceptivamente,
reproduzir os standards de claridade, rigor e objetividade exibidos pela
ciência. Essa é a razão de seu sucesso em um mundo cada vez mais
dominado pela ciência, mas também de suas limitações: o cientismo, a
fixação em standards científicos como padrões de valoração, conduz à
fragmentação positivista do pensamento, à perda da visão sinóptica, ou seja,
à perda da visão do todo característica da grande filosofia.
A filosofia alemã (de Eckhart a Hegel) encontra-se, em seu modo de
operação, inclinada em direção ao vértice místico-religioso do triângulo.
Historicamente ela possui um pesado acento místico subjacente ao seu
discurso elusivo e à suposta profundidade de suas obscuridades metafísicas.
Por isso ela ainda retém uma abrangência sistematizadora, por exemplo, em
Jürgen Habermas.
Já a filosofia francesa (de Sartre a Deleuze) tem sido mais e mais
influenciada por um ideal de expressão artística, sendo centrada na dimensão
estética e naquilo que chamei de similaridades externas entre filosofia e arte.
Mas não se trata de um puro centramento na dimensão estética, como
acontece, por exemplo, em Cioran, mas de um centramento na dimensão
estética aliado a uma imitação insincera e meramente retórica das outras
dimensões, daí resultando um jogo retórico-literário sem compromisso
heurístico, no qual argumentos são no melhor dos casos vagamente
sugeridos. Da insistência nesse modo de proceder resulta uma persiflagem
literária do trabalho real da filosofia. Como uma criança divertindo-se com
140
um brinquedo como se fosse a coisa real, os filósofos franceses fazem de
conta que estão fazendo filosofia. Por isso se faria mais justiça a alguns de
seus textos (penso em Jacques Derrida) se eles fossem avaliados como obras
de arte que se utilizam de um material filosófico. Mas então seriam más
obras de arte, posto que estão a serviço da corrupção da consciência mais do
que de sua regeneração.
Tão teoreticamente trivial como o presente exercício cartográfico possa
parecer, ele parece impor alguma ordem ao entulho das formas filosóficas.
Além do mais, torna mais clara a aplicabilidade universal da explicação
integrada por nós proposta, mesmo que esta última esteja à espera de um
mais detalhado desenvolvimento.
2. TRÊS FASES HISTÓRICAS NA
EVOLUÇÃO DA FILOSOFIA
Como seria de se esperar, as relações entre os elementos pós-religiosos e
protocientíficos mudam com a emergência das ciências. A conseqüência
disso é que todo o desenvolvimento histórico da filosofia pode ser concebido
sob a perspectiva das mudanças no relacionamento dinâmico entre filosofia
e ciência. Essa constatação nos convida a dividir a história da filosofia em
três maiores períodos, de acordo com a relação entre filosofia e ciência.
No começo havia somente a religião, a arte, nenhuma idéia da ciência e,
conseqüentemente, pouco ou nenhum espaço para a filosofia. O primeiro
período do desenvolvimento da filosofia ocidental começou com os filósofos
gregos. Podemos chamá-lo de pré-formacional, posto que precede à
formação das ciências fundamentais como corpos sistemáticos de
conhecimento. Como já notamos (capítulo IV, seção 1), a emergência da
141
filosofia grega tornou-se possível, não tanto por causa da percepção do
caráter insatisfatório das explicações mitológicas, mas essencialmente como
uma conseqüência da emergência de uma idéia de ciência.(59) O nascimento
fragmentário das primeiras teorizações científicas (em aritmética, geometria,
física, astronomia) estava fundamentado em uma idéia da ciência (formal e
empírica), segundo a qual, com base em certos dados, seria possível obter
generalizações (teoremas, leis) feitas sob a abstração de suas aplicações
práticas e capazes de predizer e explicar outros dados, trazendo à superfície
o que a natureza ocultara. Parece ter sido esse novo modelo de pensamento
fornecido pela ciência a fagulha que acendeu a chama da especulação
filosófica na Grécia antiga, pois ela deve ter sugerido à mente humana a
explêndida idéia de que possivelmente o mundo inteiro, cuja natureza oculta
era previamente explicada pela religião, poderia ser explicado através de
generalizações abstratas. Embora esse empreendimento fosse completamente
impossível como matéria de fato, ele sempre foi possível como matéria de
conjectura ou especulação, sendo isso precisamente o que os primeiros
filósofos, que eram também cientistas, ou ao menos pessoas cientificamente
informadas, tentaram fazer. Ao fazerem isso, eles costumavam, em maior ou
menor medida, misturar as suas especulações com as velhas explicações
antropomórficas. Contudo, vimos que mesmo isso não precisava ser nem foi
realmente um elemento indispensável ao empreendimento filosófico.
Esse primeiro período de indagação filosófica durou até o renascimento.
Durante toda a Idade Média, embora desenvolvendo novos procedimentos
dialéticos e sendo sempre guiada pela idéia, originalmente sugerida pela
ciência, de explicar a natureza oculta das coisas por meio de generalizações
conceituais, a filosofia não necessitava afirmar-se em um diálogo com a
ciência, posto que a última ainda permanecia demasiado rudimentar e
142
fragmentária para ser capaz de desafiar as concepções ordinárias do mundo,
que forneciam o material para as primeiras reflexões filosóficas.
A segunda fase da filosofia, que denominamos paraformacional, foi
marcada pela emergência de ciências empíricas fundamentais – a física,
seguida da química, da biologia, da psicologia e da ciência social – na forma
de
corpos
sistemáticos
de
conhecimento,
conjuntamente
com
desenvolvimentos paralelos nas ciências formais (ver capítulo III, seção 3).
Essa fase iniciou-se com Descartes e floresceu ao menos até Hegel. Com
Descartes e após ele a filosofia teórica desenvolveu-se em considerável
medida como uma reação ao crescimento da ciência. Por exemplo: o
representacionalismo cartesiano e lockeano, bem como o idealismo
transcendental de Kant, foram, em parte, acomodações conjecturais de nossa
visão filosófica do mundo à força da forma científica do argumento da
ilusão, segundo o qual a mente não pode ter experiência direta do mundo
externo, mas apenas de seus efeitos físico-químicos.
Assim, a tarefa da filosofia moderna não foi tanto a de preparar o
aparecimento de novos campos científicos, mas principalmente a de produzir
uma reformulação e relocação do material de idéias pertencente aos campos
remanescentes da filosofia em conformidade com novas idéias científicas,
tanto formais quanto empíricas. Tomando a metafísica de Descartes como
exemplo, é difícil ver como ele poderia acreditar no caráter frutífero do
método geométrico em filosofia sem que tivesse sido testemunha de seu
poder heurístico na ciência, e é difícil ver como ele poderia sentir a
necessidade de responder ao cético se ele não estivesse ciente, por exemplo,
do argumento da ilusão em sua forma científica, ou de que o coração não é a
sede da alma.
143
Finalmente chegamos ao que pode ser chamado de fase pós-formacional
do desenvolvimento da filosofia, que surge após a emergência das ciências
fundamentais. Como vimos, essas ciências requerem certa ordem de
desenvolvimento, que vai da física à ciência social, posto que é difícil
imaginar
uma
ciência
fundamental
mais
complexa
e
particular
desenvolvendo-se antes de uma mais simples e mais geral. Nos dias de hoje
muitos desenvolvimentos científicos localizados estão a emergir, o que
requer a existência prévia das ciências fundamentais, já que eles as aplicam.
A filosofia contemporânea é, mais do que nunca, de um lado a participação
na emergência desses desenvolvimentos e de outro uma resposta a eles,
nascida da necessidade de ajustamos nossas concepções filosóficas
remanescentes de maneira a se tornarem mais coerentes com as perspectivas
por eles criadas.
3. A FILOSOFIA LINGÜÍSTICO-ANALÍTICA
NAS RODAS DA HISTÓRIA
A consideração da última fase do desenvolvimento da filosofia sob a
perspectiva aqui proposta ajuda a entender por que no século XX ela foi
enganosamente considerada como essencialmente definível em termos de
uma atividade de análise conceitual. Uma razão para isso parece ser que,
tendo as ciências empíricas fundamentais tomado o lugar uma vez ocupado
pela filosofia como uma especulação empírica antecipadora da ciência, esta
última foi em grande parte reduzida a uma indagação de segunda ordem,
mais reflexiva e distanciada das preocupações empíricas. Contudo, a razão
central para a consolidação da filosofia dita lingüístico-analítica foi ainda o
desenvolvimento de novos mecanismos de controle de procedimentos
144
argumentativos,
requerendo
uma
organização
mais
explícita
dos
componentes lógico-conceituais do discurso, o que costuma demandar
acento semântico, ou seja, um tratamento metalingüístico dos elementos
lingüístico-conceituais. Sob tais circunstâncias, tornou-se fácil confundir a
filosofia, em sua natureza própria, com um simples esforço de
esclarecimento lingüístico-conceitual. No entanto, o distanciamento da
especulação
filosófica
de
preocupações
com
questões
de
ordem
propriamente empírica, assim como a ênfase lingüístico-conceitual, são
apenas momentos de uma evolução histórica, sendo como tal contingentes.
Dizer que a filosofia do século XX foi em boa parte uma indagação
lingüístico-conceitual é apenas descrever a forma que a filosofia tomou em
um certo período histórico e não diagnosticar a sua natureza própria.
Adotando essa perspectiva encontramo-nos melhor situados para chegar a
um entendimento dos desenvolvimentos internos da filosofia lingüísticoanalítica no século XX. Minha sugestão é que podemos entender as
principais conquistas da filosofia lingüístico-analítica como intrinsecamente
ligadas ao desenvolvimento de uma constelação de teorias científicas que
pertencem ao âmbito do que pode ser chamado – no sentido mais amplo
possível – de semiótica. A filosofia lingüístico-analítica é ligada à semiótica,
de um lado pelo modo conjectural próprio pelo qual esse campo de estudos
tem sido gradualmente explorado, de outro pela definitiva necessidade de
relocação e reformulação acomodativa de nossas idéias de problemas
filosóficos tradicionais, resultante dos desenvolvimentos nos domínios da
semiótica.
Para poder argumentar a favor dessa sugestão preciso primeiro explicar
brevemente o que quero dizer com a palavra “semiótica”. Chamando de
“signos” a todas as coisas que são usadas para representar outras, semiótica é
145
o nome que podemos dar para a idéia vaga e extraordinariamente abrangente
de uma ciência geral dos signos. O projetado campo científico da semiótica é
usualmente dividido em três grandes domínios(60): sintática, semântica e
pragmática. O primeiro, a sintática, consiste na investigação das regras
combinando signos com signos, o que pode ser entendido de modo a incluir
a sintaxe lógica. O segundo domínio da semiótica é o da semântica,
entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas
combinações) com os seus designata. O terceiro domínio é o da pragmática,
entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas
combinações, junto com as relações que eles têm com os seus designata) aos
falantes e às circunstâncias de seu uso concreto na linguagem. É fácil ver
que há uma certa ordem de pressuposições entre os domínios: de um modo
geral, a semântica pressupõe a sintática, e a pragmática pressupõe ambas, a
sintática e a semântica. Isso se torna claro quando consideramos que se pode
aprender a sintaxe de uma linguagem não interpretada, ou seja, em abstração
do que os signos significam, de sua semântica e de sua pragmática. Contudo,
dificilmente se pode aprender as relações referenciais de uma linguagem,
seja das combinações de signos, seja dos próprios signos isolados, quando
eles são polissêmicos, sem se ser capaz de identificar as suas unidades
sintaticamente
estruturadas.
Também
podemos
avançar
muito
no
aprendizado da sintaxe e da semântica em abstração do contexto, ou seja,
sem considerar o uso da linguagem nas circunstâncias concretas da
comunicação humana, ou seja, a pragmática. Todavia, não podemos
aprender a aplicar as regras pragmáticas, ou seja, avançar no aprendizado do
uso dos signos em proferimentos concretos, quando não sabemos identificar
as suas possíveis articulações sintáticas e as suas referências (capítulo II,
seção 2). A conseqüência disso é que é natural esperar que o
146
desenvolvimento histórico do conhecimento semiótico siga a mesma ordem
dessas pressuposições, começando com a sintática, prosseguindo com a
semântica e terminando com a pragmática.
Essas considerações ajudam-nos a entender os desenvolvimentos
históricos da filosofia analítica no século XX. Com efeito, a filosofia
analítica apareceu em três ondas sucessivas de investigação. No final do
século XIX, Gottlob Frege desenvolveu pela primeira vez uma completa
formulação simbólica do cálculo dos predicados. Isso foi uma contribuição
essencialmente
sintática
(embora
também
contendo
uma
forma
esquematizada de semântica) de importância sem precedentes para o
desenvolvimento da lógica, tanto que não seria grande exagero dizer que a
lógica como ciência realmente começou com Frege. Podemos considerar o
atomismo lógico de Bertrand Russell e do primeiro Wittgenstein no
Tractatus como as mais importantes respostas filosóficas tentando acomodar
nossas concepções filosóficas remanescentes em filosofia do conteúdo e
teoria do conhecimento a esse desenvolvimento sem precedentes da ciência
lógica. Embora já existissem desenvolvimentos semânticos – como a
distinção fregeana entre sentido e referência, a elusiva teoria do significado
do Tractatus, e as especulações de Russell sobre os designata dos nomes
logicamente próprios em sua teoria das descrições – eles desempenhavam
um papel complementar e em sua maioria ainda esquemático.
A segunda onda foi principalmente semântica: Wittgenstein, na fase
intermediária de seu desenvolvimento filosófico, seguido por positivistas
lógicos como Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sugeriu uma semântica fullblooded, principalmente na forma do princípio da verificabilidade, segundo
o qual o sentido da proposição é o modo de sua verificação, sendo
geralmente dado a cada enunciado um feixe de modos de verificação. As
147
conseqüências desse princípio em uma tentativa de reformulação de nossa
visão filosófica remanescente de mundo foram paradigmaticamente
desenvolvidas no livro de A. J. Ayer, intitulado Linguagem, Verdade e
Lógica, que hoje ainda reverberam na obra de filósofos como Kai Nielsen
Michael Martin.
A terceira onda trouxe em sua crista os esforços dirigidos à criação de
uma ciência da pragmática e à acomodação de problemas filosóficos a ela
relacionados e aos seus resultados. Ela começou com as reflexões dispersas
do último Wittgenstein sobre as múltiplas funções da linguagem e sua
identificação do significado das expressões com o seu uso no contexto de
jogos de linguagem. Mas a emergência da pragmática como uma reflexão
sistemática sobre as ações comunicativas deveu-se principalmente aos
esforços de J. L. Austin, que mais tarde foram levados adiante por J. R.
Searle em sua teoria dos atos de fala, além de contribuições independentes,
como a teoria das implicaturas conversacionais de Paul Grice. Investigações
da pragmática também conduziram a tentativas de acomodar velhos
problemas filosóficos aos novos resultados. Um exemplo inicial disso foi a
reestruturação e relocação do problema mente-corpo – mesmo que em uma
forma ultimadamente desencaminhada – como um resultado de reflexões
pragmáticas sobre um necessário momento interpessoal no aprendizado da
linguagem. Parte dessa tentativa pode ser observada na análise de conceitos
mentais feita por (proto)behavioristas como Gilbert Ryle em O Conceito de
Mente e também no trabalho do (também protobehaviorista) último
Wittgenstein, por exemplo, em seu argumento contra a possibilidade de uma
linguagem privada e em sua tentativa de escapar de sua conseqüência
paradoxal – a rejeição de nossa linguagem mentalista – através de uma
equívoca doutrina da expressão criterial. Outro esforço reformulador de
148
problemas filosóficos emergindo como uma aplicação de desenvolvimentos
pragmáticos (especialmente, embora não inteiramente, da teoria dos atos de
fala) é encontrado na tentativa de Jürgen Habermas, em sua pragmática
universal, de ler estruturas sociais e suas possíveis distorções nos modos de
funcionamento de nossas ações comunicativas. Uma vez mais vemos o papel
da ênfase lingüístico-conceitual como uma característica relevante, que não
obstante é historicamente contingente e não-essencial à filosofia enquanto
tal.
4. O FUTURO DA FILOSOFIA
O que pode ser esperado para o futuro? Certamente, nós podemos esperar
que algum dia as atuais filosofias da ciência venham a se transformar em
metaciências na medida em que alcançam um consenso adequado sobre a
verdade de suas explicações da natureza dos componentes científicos mais
básicos. Mas nossas maiores expectativas são dirigidas ao núcleo central de
problemas filosóficos, os quais parecem permanecer tão distantes quanto
sempre de um acordo científico. Os domínios de especulação mais difíceis e
complexos da metafísica e da epistemologia são multiabrangentes: a
epistemologia, por aplicar-se a todos os atos cognitivos e ao nosso acesso à
realidade; a metafísica porque ela precisa explicar, independentemente das
ciências que a pressupõem, as categorias últimas da realidade (como
propriedade, substância, espaço, tempo, causalidade, identidade...), as quais
são constitutivas dos mais variados objetos do conhecimento, atravessando
não só as muitas formas de conhecimento científico como também todo o
saber comum. Embora não tão abrangente, a ética parece encontrar-se
integrada de forma complexa no centro da atividade social humana,
149
conseqüentemente também requerendo o mesmo tipo de abordagem
argumentativo-conjectural.
A explicação global da natureza da filosofia esboçada nesse livro oferecenos alguns indícios para pensar – muito cautelosamente – o futuro da
filosofia. Se a filosofia é uma atividade cultural intermediária ou derivada, a
estabilidade não pode ser esperada. Isso se deixa sugerir quando
consideramos novamente a analogia com a ópera. Essa última cresceu
paralelamente
ao
desenvolvimento
da
música
polifônica
após
o
Renascimento, chegando ao ápice de seu desenvolvimento nos séculos
XVIII e XIX, somente para perder quase completamente a sua importância
no século XX, mesmo que ainda tenha sobrevivido em formas menores,
como as da opereta e do musical. Provavelmente algo similar pode ser dito
da filosofia, ao menos no sentido clássico e predominante da palavra: os
melhores tempos já se foram. Eles pertenceram originalmente aos grandes
sistemas de Platão e Aristóteles, e, na modernidade, ao período de
configuração das ciências fundamentais, quando a filosofia, em um
desenvolvimento que começou com Descartes e culminou com a obra de
Kant, era em grande medida uma acomodação das concepções filosóficas
remanescentes às transformações geradas pela emergência dessas ciências.
Hoje a indagação filosófica, em sua maioria restrita a inúmeras subquestões
que emergem nos núcleos de questionamento remanescentes, as quais por
suas naturezas permanecem altamente dependentes de argumento, parece
progredir em suas formas menores. Contudo, é bom recordar que esse
diagnóstico não é necessariamente um julgamento de valor, pois a filosofia
contemporânea pode ser importante e por vezes fascinante (a Ópera dos Três
Vinténs é, como ópera, uma forma menor, mas não menos importante do que
150
O Crepúsculo dos Deuses, ao menos para aqueles que se recusam a se deixar
impressionar pelo pathos wagneriano).
De fato, em nossos tempos, a ciência tem crescido tanto que tem tomado
o lugar de muito do que antes era filosofia, embora, vale lembrar, muito
pouco de seus domínios mais importantes. Contudo, se adotarmos a
concepção
tolerante
da
ciência
como
conhecimento
público
consensualizável, parece não haver razões para negar que em princípio, em
algum tempo no futuro, a ciência possa absorver todo o campo da filosofia.
Isso não ocorrerá se não houver limite para a criação de novas questões
filosóficas, se o objeto do conhecimento for ilimitado, se os problemas
filosóficos forem automultiplicativos, se houver limites intransponíveis para
a possibilidade de consenso... Se for assim, então a especulação filosófica
será sempre possível e sempre poderá existir. Contudo, como o que
experienciamos até agora tem sido apenas uma seqüência de subdivisões e
combinações aplicadas das ciências fundamentais, há razões para esperar
que haja um limite para a aquisição de novo conhecimento científico
essencial. Nesse caso pode ser que um dia os filósofos e até mesmo os
cientistas venham a encontrar-se desempregados, sentando-se lado a lado em
um mundo intelectualmente saciado, onde todas as coisas que vale a pena
conhecer já terão sido investigadas e que nenhuma descoberta importante
reste a ser feita. Nesse tempo não haverá mais lugar para a acomodação do
restante de nossa visão filosófica à ciência, posto que não haverá mais
nenhum “resto” filosófico de nossa visão do mundo: a soma do nosso
conhecimento científico será a nossa visão do mundo, nada mais sendo
admitido, posto que a busca pela totalidade para além desse conhecimento
passará a ser reconhecida como um empreendimento conceitualmente
desnecessário e sem sentido.
151
De fato, se as avaliações feitas neste livro forem corretas e se a
emergência de novos campos científicos não for uma possibilidade
indefinidamente auto-multiplicativa, não é difícil prever que, quando a
poeira de confusão conceitual que tem sido levantada e que continua a ser
levantada pela formação de todas as novas ramificações da ciência baixar,
virá o dia em que a filosofia, mesmo em suas formas menores, chegará a um
fim. Contudo, como também vimos, isso não precisa significar que as
conjecturas centrais da filosofia virão a ser substituídas por uma
multiplicidade de teorias científicas estreitamente focalizadas, não interrelacionadas, pouco excitantes – como a fragmentação positivistacientificista do campo da experiência sugere –, uma vez que a liberalidade
de nosso conceito de ciência e a inter-relação entre as questões filosóficas
centrais sugerem que realizações científicas abrangentes tomem o lugar das
últimas, preservando dessa maneira o suspeitado valor das questões que as
geraram.
152
NOTAS:
1 R. Carnap, “On the Character of Philosophical Problems” in, R. Rorty
(ed.) The Linguistic Turn, p. 54.
2 Cf. M. Inwood, A Heidegger Dictionary, p. 164.
3 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109.
4 C. D. Broad, Scientific Thought, p. 20; ver também B. Blanchard, On
Philosophical Style, p. 6.
5 G. E. Moore, “What is Philosophy?”, p. 23.
6 E. Tugendhat, “Die Philosophie unter sprachanalytischen Sicht”, em
Philosophische Aufsätze.
7 W. V. O. Quine, Word and Object, p. 270 ss.
8 W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann”.
9 Ver, por exemplo, G. Ryle, “Systematic Misleading Expressions”.
10 A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento da ilusão é
encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma crítica
muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser
encontrada no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society:
Philosophy in the Real World, cap. I, p. 28 ss.
11 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109, 118, 119...
Ver também A. Kenny (ed.), The Wittgenstein Reader, pp. 263-285.
12 Prefiro pensar que Wittgenstein estava falando de seu modo pessoal e
minimalista de fazer filosofia, mais do que propondo o método
próprio de filosofar. Que ele também manteve idéias diferentes e
talvez incompatíveis foi apontado por seus melhores intérpretes (ver
A. Kenny, “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”; ver também
meu livro A Linguagem Factual, cap. II).
13 L. Wittgenstein, The Blue Book, pp. 17-18.
14 Assim escreve A. J. Ayer sobre o método terapêutico de Wittgenstein,
“Sua repetida preferência por descrição no lugar da explicação e a
abstenção de teoria que ele afirmava praticar e se regozijava diante
dos seus leitores não são características de seu procedimento real em
nenhum estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das
Investigações Filosóficas. Que suas explicações são rúnicas não as
reduz a descrições: suas teorias não cessam de ser tais ao serem
153
encobertamente assentadas.” (A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p.
137.)
15 L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, sec. 79.
16 J. R. Searle, “Proper Names”. Resultados similares aos que
encontramos tão claramente expostos no artigo de Searle podem ser
também inferidos de uma cuidadosa leitura do texto de Wittgenstein.
17 R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.
18 J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real
World, p. 138.
19 Assim escreveu Ludwig Wittgenstein: “uma fonte principal de nosso
fracasso em entender é que nós não dominamos uma clara concepção
do uso de nossas palavras. – Nossa gramática é carente dessa espécie
de sinopticidade. Uma representação sinóptica produz precisamente
aquele entendimento que consiste em ‘ver conexões’. Daí a
importância de descobrir e inventar casos intermediários”
(Investigações Filosóficas, sec. 122). Sobre o conceito de
representação sinóptica (übersichtliche Darstellung), ver os
interessantes comentários de G. P. Baker & P. M. S. Haker, em
Wittgenstein: Understanding and Meaning, p. 489.
20 Ver E. Tugendhat, “Die Philosophie unter den Sprachanalytischen
Sicht“, em seu Philosophische Aufsätze.
21 W. V. O. Quine: World and Object, p. 270 f.
22 W. V. O. Quine, Word and Object, pp. 271-272. Quine viu
corretamente que o modo formal de falar não pode ser usado para
identificar a filosofia, posto que ele pode ser universalmente aplicado.
Por essa razão, ele rejeitou a tese de Carnap de que a possibilidade de
tradução em um modo formal de falar pode ser usada como modo de
distinguir as questões pertencentes à filosofia, escolhendo a expressão
“acento semântico” para marcar a sua própria perspectiva naturalista.
23 Kai Nielsen sublinha o fato óbvio mas notável que quando filósofos
descrevem os usos de nossas expressões “eles estão fazendo
observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” (“What is
Philosophy?”, em History of Philosophy Quarterly, 10, 1993, pp. 389390).
24 Ver, por exemplo, D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: an
Opinionated Introduction, cap. 10
25 A. J. Ayer, em entrevista com B. Magee (B. Magee, Men of Ideas, p.
127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e a observações
similares feitas na entrevista com J. R. Searle – uma objeção a qual
respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica,
154
como qualquer indagação metalingüística, inevitavelmente deixa o
mundo real de fora (Ver B. Magee in Confessions of a Philosopher,
pp. 74-76).
26 Um espécime disso é o livro de B. Latour & S. Woolgar, Laboratory
Life: The Construction of Scientific Facts.
27 A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p. 4.
28 J. L. Austin, Philosophical Papers, p. 232.
29 Ver A. Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vol. I. Não
sigo a sua classificação em detalhe, posto que ele comete ao menos
dois erros óbvios: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada)
entre as ciências fundamentais e a exclusão da psicologia, que ainda
era inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de
classificação, porém, permanecem válidos.
30 Alguém poderia objetar que a idéia de uma ruptura epistemológica
distinguindo ciência de pré-ciência é enganosa, posto que os critérios
usuais de cientificidade realmente não nos permitem identificar tais
rupturas. Eu concordo com isso. Mas eu também defendo que não
encontramos qualquer dificuldade em identificar essas ruptures
intuitivamente e que o critério de cientificidade sugerido na seção 8
do presente capítulo é capaz de resgatar essa intuição, possibilitando
uma mais clara identificação das rupturas epistemológicas. De fato, a
ruptura epistemologica ocorre quando a verdade em todo um domínio
da investigação se torna consensualmente alcançável.
31 Como J. R. Searle notou, é um erro acreditar que porque objetos da
experiência interna têm um modo de existência ontologicamente
subjetivo, eles também devem ser epistemologicamente subjetivos,
impossibilitando o seu acesso pela ciência (ver seu Mind, Language
and Society: Philosophy in the Real World, pp. 43-45).
32 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield (eds.), The Presocratic
Philosophers, pp. 133-134.
33 K. Popper, “Back to the Pre-Socratics” em suas Conjectures and
Refutations, p. 138.
34 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield (eds.), The Presocratic
Philosophers, pp. 140-142.
35 Ver discussão em W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy,
vol. I, p. 103.
36 S. Freud, The Ego and the Id.
37 Aquinas on Mind, pp. 4-5.
38 K. Lehrer, Theory of Knowledge, p. 7. Ver também W. James, Some
Problems of Philosophy, p. 23.
155
39 Aquinas on Mind, p. 5.
40 Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de Kenny, mas
não com a sua conclusão. Meu objetivo é mostrar que acreditar que a
tese progressista põe em perigo a abrangência da filosofia é confundir
a natureza das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente
alcançáveis) eventualmente destinadas a substituir os problemas
centrais da filosofia, que são questões cuja natureza desconhecemos,
com os empreendimentos das ciências particulares existentes, cuja
natureza já conhecemos.
41 See J. Passmore, “Philosophy”, in P. Edwards, The Encyclopedia of
Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.
42 See K. R. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 339-340. O
exemplo standard de falsificação decisiva usado por Popper é a
deflexão da luz das estrelas observada no eclipse de 1919.
Ironicamente, precisamente esse tipo de teste seria mais tarde
considerado demasiado inconfiável para ser significativo quando
tomado em isolamento (Cf. Martin Gardner: Relativity Simply
Explained, New York 1962, pp. 96-7)
43 See K. R. Popper, The Logic of Scientific Inquiry, cap. II
44 “What is Science?”, p. 42. A ciência, como um corpus de
conhecimento, como o que os cientistas fazem e como uma
instituição, escreve J. Ziman, “não pode ser tratada separadamente,
mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre
diferentes planos cartesianos” (ibid. p. 42). Ver também o novo livro
de Ziman, Real Science.
45 Ver J. Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa idéia e por
chamar minha caracterização da ciência de “consensualista”, eu não
estou de modo algum sugerindo que a ciência seja matéria de alguma
espécie de decisão consensual arbitrária. Nossa experiência coletiva
tem mostrado que é somente porque fatos que concebemos como
independentes de nós mesmos podem ser correspondidos por nossas
proposições, que somos capazes de alcançar acordo interpessoal sobre
o valor-de-verdade dessas proposições no interior de uma comunidade
crítica de idéias.
46 Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy, vol. I, p. 14.
47 Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 f.
48 A lei foi primeiramente sugerida por A. Turgot em suas Réflexions sur
la Formation et la Distribuition des Richesses (1750), tendo sido
também sugerida por outros. Mas mas somente Comte a desenvolveu
em todas as suas implicações. De Auguste Comte, ver Cours de
156
Philosophie Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), vol. I; ver
também, Discours sur L’esprit Positif, Oevres, Paris 1968 (1844), vol.
XI, p. 2 f.
49 O desenvolvimento da assim chamada lei dos três estágios por Comte
tem sido freqüentemente mal-entendido, penso que sob influência de
preconceito. A sua plausibilidade é defendida por W. Schmaus em, “A
Reappraisal of Comte’s Three-State Law”. Ver também C. F. Costa,
“Filosofia, Ciência e História”.
50 J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.
51 See K. R. Popper, The Poverty of Historicism, cap. IV.
52 Embora Demócrito nunca tenha dito isso, a conclusão é difícil de ser
evitada, dadas as propriedades especiais internas que ele atribui aos
átomos (para uma discussão, ver W. K. C. Gutthrie, A History of
Greek Philosophy, vol. II, p. 396).
53 Uma objeção cabível seria a de que conteúdos proposicionais não
seriam naturais, pois não são nem físicos nem psicológicos. Essa
objeção seria justificada em uma interpretação realista da natureza
desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma
interpretação nominalista. Se o conteúdo proposicional for analisado,
digamos, como o conjunto de representações mentais, atuais ou
possíveis, de estados de coisas, então ele pode ser entendido em
termos naturalistas como uma entidade psicológica e em última
análise física.
54 “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough,
p. 40.
55 “Philosophy as Art”, Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver
também J. Deleuze e F. Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J.
H. Gill tenta confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o
papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos,
mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta (ver J. H. Gill,
Metaphilosophy, cap. 6).
56 Ver S. Freud, Traumdeutung, chap. VII.
57 C. F. Costa, “A Conjectura Filosófica”, p. 29 ss.
58 Pode-se perguntar aqui como seria o caso das filosofias orientais. Tal
caso mereceria um estudo à parte. Certamente, esses povos estavam
inicialmente menos próximos de uma idéia da ciência do que os
gregos. Mas é sintomático o fato da filosofia indiana nunca ter se
distinguido suficientemente da religião. Ou o fato da filosofia chinesa
ser centrada em questões humanas, como a da política. Ou ainda o
157
fato de Hegel ter pensado que elas não seriam propriamente filosofias,
mas sabedorias, posto que insuficientemente argumentativas.
59 Quando digo “generalização hipotética”, não estou negando que o
filósofo usualmente chegue a tal generalização a posteriori, apoiandose em argumentos e exemplos prévios. Meu ponto é o de que há
sempre um “salto” para a generalização, o qual demanda confirmação
ou desconfirmação ulterior de um modo essencialmente análogo ao
procedimento hipotético-dedutivo nas ciências empíricas.
60 Ver (por exemplo) C. W. Morris, Foundations of a Theory of Signs.
158
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