Construções existenciais na escrita escolar: verbos selecionados

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Construções existenciais na escrita escolar:
verbos selecionados por alunos do Ensino Básico para expressar existência
Lílian Thais de Jesus1
1 Introdução
Alguns estudos realizados em linguística têm apontado um uso diferente do verbo ter: para
expressar existência. De fato, Mattos e Silva e Machado Filho (2009) realizaram uma pesquisa
sobre as construções em que os verbos haver e ter competiram ao longo da história da língua
portuguesa e apontaram que, dentre elas, estavam as construções existenciais. Outros autores
também observaram o crescente uso do verbo ter com a finalidade de expressar a existência de algo.
Segundo Franchi, Negrão e Viotti (1998, grifo dos autores),
A distribuição dos verbos nas construções existenciais do PB mostra o privilégio às
construções com ter sobre haver e existir, mesmo em um corpus datado e de falantes cultos
como o do Projeto Nurc, de que nos servimos de um modo geral.
A partir de tal afirmação, é possível perceber a preferência de uso do verbo ter para
expressar existência, em preterição de haver, o que contraria a Gramática Normativa da língua
portuguesa.
Ainda que o uso do verbo ter para expressar existência já esteja consolidado na fala – dada a
exaustão de estudos que atestam esse uso como recorrente, conforme a tradição da Gramática
Tradicional será tachado como erro. É na escola, então, que a normatização se dará na escrita/fala
através das regras tradicionais do ensino de Português.
2 Justificativa
Conforme a classificação canônica da Gramática Tradicional, o verbo ter já aparece em
diferentes usos: é auxiliar dos tempos compostos e verbo transitivo (pleno) denotador de posse.
1 Mestranda em Letras – Linha Gramática e Significação – pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: [email protected] .
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Conforme a mesma linha, os verbos selecionados para expressar existência, em substituição do
existir, são os verbos haver e ser; este último aparece em construções canonizadas, como o início
dos contos de fada: Era uma vez. Dessa forma, utilizar o verbo ter para expressar existência é
taxado “erro”, de acordo com as regras das gramáticas normativas, quando, na verdade, pode-se
tratar de uma variação em curso na língua portuguesa brasileira.
Apesar desse quadro, os linguistas Callou e Avelar (2000, p. 95) apresentaram uma
impactante hipótese sobre o uso do verbo ter, nas estruturas existenciais. Segundo os autores,
Observações assistemáticas, inclusive, levam a formular a hipótese de que, no português
atual, a criança só adquire o verbo haver, nessas estruturas, durante o processo de
aprendizado na escola.
Assim, justifica-se um estudo que busque identificar as estruturas existenciais realizadas por
estudantes do Ensino Básico, a fim de refletir sobre os verbos que tais usuários da língua utilizam
em construções existenciais, no contexto de língua vigiado, como é a produção de redações
escolares.
Um estudo sobre as construções existenciais realizadas em escolas também se justifica pelo
fato de que, conforme Faraco (2008, p. 19), há uma discrepância entre a tradição da gramática
normativa no Brasil, que remonta ao século XIX, e a língua portuguesa utilizada hoje em dia. Para o
linguista, mesmo a norma culta, utilizada contemporaneamente, difere daquela norma “artificial”
criada pelos gramáticos da norma padrão:
Há um conflito histórico entre a norma efetivamente praticada no país (a chamada norma
culta) e a norma gramatical definida artificialmente no século 19 (a chamada norma padrão)
e ainda defendida por uma tradição estreita e dogmática, que tem adeptos no sistema de
ensino e nos meios de comunicação social.
O autor ainda continua sua reflexão e atenta para o fato de que, embora não haja efeitos
práticos, continuar com a alegação de necessidade de uma norma que não é nem reconhecida pelos
usuários da língua acarreta consequências sociais relevantes:
Embora essa defesa não tenha nenhum resultado prático, ela tem efeitos negativos sobre o
modo como tradicionalmente se representa a língua no imaginário do Brasil. Nosso
português costuma ser visto, com frequência, como cheio de erros e deformações. O país
tem tido, ao longo de século e meio, grandes dificuldades para reconhecer seu rosto
linguístico e, em consequência, para promover uma educação linguística consistente.
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(FARACO, 2008, p. 19).
É por isso, por tais apontamentos de Faraco, que estudar mudanças, desvios em relação à
norma defendida por gramáticas que não têm em conta usos reais do português brasileiro, como o
uso do verbo t e r para expressar existência, faz-se relevante, a fim de que não se perpetue o
preconceito linguístico às normas reconhecidas e recorrentes no uso da língua pelos falantes do
português brasileiro.
3 Objetivos e hipóteses do projeto
Pretende-se, de maneira geral, verificar quais verbos são eleitos em construções existenciais,
realizadas por usuários de língua portuguesa ainda em processo de aprendizagem. Também se visa
refletir sobre as possíveis causas que levaram o verbo ter a possuir propriedades existenciais.
Mais especificamente, objetiva-se:
1) refletir sobre os contextos de construção das frases existenciais, a fim de verificar quais
elementos linguísticos favorecem o uso de ter existencial;
2) apontar se há o uso do verbo ter para expressar existência em produções escritas por
alunos do Ensino Médio, em escolas da rede privada e da rede pública, da cidade de
Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul;
3) comparar, percentualmente, os usos de verbos existenciais entre escolas da rede pública
e da rede privada de ensino;
4) verificar se o uso do verbo ter para expressar existência é uma variação em curso no
português brasileiro.
A hipótese levantada é a de que, apesar de estarem inseridos em um ambiente regularizador
da língua, que tem em conta apenas a variedade padrão, alunos do Ensino Básico utilizarão a
variante ter existencial para substituir existir. Sobre esta hipótese, conjectura-se que o verbo ter
com sentido existencial seja a variante preferida para substituir existir na escrita escolar porque,
diferentemente de variantes como a conjugação do plural na escrita, ou a concordância do pronome
a gente e o verbo no singular, a utilização de ter existencial não incorre em preconceito linguístico,
estigma, sobre o usuário da língua.
Para o presente texto, porém, pretende-se apenas apresentar uma revisão preliminar da
398
Fundamentação Teórica, deixando de lado, por ora, a metodologia, os resultados e a análise desses
resultados, pois estes serão tratados na dissertação de mestrado que dará conta de tal projeto.
4 Fundamentação teórica
Nesta seção, pretende-se abordar estudos já realizados sobre o tema, mas, principalmente,
apontar justificativas para o surgimento do ter existencial.
4.1 Motivos para o surgimento do sentido existencial no verbo ter
Os linguistas Callou e Avelar (2000) citam alguns autores, apresentando suas teorias, a fim
de refletir sobre bases que deram suporte ao surgimento do sentido existencial ao verbo ter. Para os
autores, haveria três fundamentos que podem ter contribuído para que o verbo ter passasse a
possuir, em sua semântica, o sentido de existência:

verbos existenciais como “operadores funcionais”, assim como o verbo ter → ideia
abordada por Franchi et al. (1998);

agrupamento das construções existenciais e de posse nas construções locativas → realizado
por Lyon (1979);

passagem do PB de pro-drop para não pro-drop → variação em curdo observada por Duarte
(1995).
O presente texto, portanto, tem seu foco em ir à fonte destes fatores que permitiram que o
verbo ter assumisse o campo do verbo haver, na substituição do existir. Assim como relacionar com
outras teorias.
4.1.1 Verbos existenciais como operadores funcionais
Franchi, Negrão e Viotti (1998) consideram os verbos existenciais como operadores
funcionais. De acordo com os autores, o verbo ter, assim como o haver existencial, tem
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propriedades para ser um verbo funcional.
Os linguistas apresentam os verbos funcionais como aqueles em que não é o próprio verbo
que é o predicador da oração, mas a predicação se dá entre os dois elementos da construção. São
funcionais, também, porque “expressam modalização, quantificação e dêixis [...]. O processo ocorre
a partir de verbos predicativos com sentido mais geral, menos específico.”. (FRANCHI; NEGRÃO;
VIOTTI, 1998).
Construções existenciais com verbo haver ou ter, geralmente, vêm acompanhadas de um
elemento que expressa dêixis: um advérbio de tempo ou lugar, o que corrobora o tratamento de tais
verbos como funcionais.
Segundo Franchi, Negrão e Viotti (1998), o verbo ter não possui restrições de seleção
semântica:
o que se torna evidente é que as relações semânticas estabelecidas não estão inscritas como
propriedade temática do verbo ter (inclusive pela ausência de quaisquer restrições
seletivas), ou seja, por ele lexicalmente acarretadas: a interpretação depende
componencialmente, do sentido dos sintagmas nominais e preposicionados que formam as
expressões, entre as quais o verbo ter expressa uma relação muito abstrata e inespecífica.
(FRANCHI; NEGRÃO; VIOTTI, 1998).
Esse quadro permite que o verbo ter passe a ser usado em construções com argumentos
internos, expressando a existência desses, uma vez que, para os autores, não há uma “grade” préestabelecida de possibilidades de seleção temáticas para o verbo ter; a interpretação existencial se
dará na composição do verbo ter com seu sintagma (argumento interno).
4.1.2 Proximidade entre as construções existenciais, locativas e possessivas
Lyon (1979) sugere o agrupamento das construções existenciais e possessivas juntamente
com as locativas.
Primeiramente, o autor apresenta as semelhanças entre os enunciados existenciais e os
locativos. Para Lyon,
do ponto de vista da análise semântica, as frases existenciais podem ser consideradas
implicitamente locativas (ou temporais). Para ser devidamente interpretada, a afirmação de
que alguma coisa “existe” ou “existiu” requer complementação locativa, ou temporal.
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(LYON, 1979, p. 410).
Continuando em sua análise, Lyon (1979) justifica sua hipótese atentando para o fato de que,
no inglês, frases existenciais com verbo to be não são comuns, mas, quando aparecem, vêm
acompanhadas de complementos locativos (ou temporais).
(1) There are lions in Africa. ǀ Há leões na África. (LYON, 1979, p. 408-409).
Outra ideia apontada por Lyon (1979) – que aproxima as construções existenciais das
locativas – é a de que, em inglês, construções locativas, assim como as existenciais acompanhadas
de um advérbio locativo ou temporal, são construídas também com o verbo to be.
(2) There are lions in Africa. ǀ There is a book on the table. (LYON, 1979, p. 410).
Em português, a mesma proximidade quanto ao verbo selecionado para construir frases
existenciais e locativas também acontece: é possível utilizar o verbo haver nos dois casos:
(3) Há leões na África. ǀ Há um livro sobre a mesa. (LYON, 1979, p. 410).
Depois de estabelecer uma conexão entre as orações existenciais e as locativas, Lyon (1979)
apresenta uma comparação, desta vez, entre as orações possessivas e as locativas. Segundo o autor,
“há um paralelismo estrutural entre as construções locativas e as possessivas.”. (LYON, 1979, p.
411, grifo do autor).
(4) The book is John’s. ǀ The book is on the table.
(5) John’s book. ǀ The book on the table.
4.1.3 Português como língua não pro-drop
Duarte (1995) aborda em sua tese, intitulada A perda do princípio Evite pronome, a ideia de
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que o português brasileiro, ou PB, estaria se tornando, assim como o francês e o inglês, por
exemplo, uma língua não pro-drop, em que preencher a posição de sujeito torna-se uma obrigação.
Essa mudança, para a autora, estaria relacionada ao empobrecimento do paradigma flexional do PB:
É indiscutível o enfraquecimento de um paradigma que chega a permitir a desinência zero
em todas as pessoas. Não espanta, pois, que as construções com sujeito nulo tendam, com o
tempo, a se tornar cada vez mais marginais, ou residuais, no sistema. Na primeira pessoa do
plural e na segunda, como se viu, a mudança já se acha bastante adiantada. (DUARTE,
1995, p. 56).
Orações encaixadas, assim, irão prever, em sua estrutura, pronomes sujeitos de orações,
mesmo quando deveria prevalecer o princípio “evite pronome”, ou seja, construções com sujeito
nulo quando este for facilmente identificável na frase.
Para demonstrar sua teoria, Duarte (1995, p. 95, grifo da autora) apresenta o pronunciamento
de Dom Pedro I, do Dia do Fico. Segundo a linguista, mesmo que o enunciado seja, em sua origem,
desprovido de um sujeito pronome, na reprodução realizada por crianças, nos dias de hoje, o
pronome está lá:
(6) Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, diga ao povo que eu fico.
No caso das construções existenciais, haverá um sujeito (pronome) expletivo. Dizer que se
trata de um sujeito expletivo significa apontar para o fato de que tal sujeito não tem função
semântica na frase, ele não é necessário dado o seu significado, mas é justamente desprovido de
sentido, está presente apenas para que a posição sintática não esteja vazia.
O sujeito expletivo nas construções existenciais, segundo Callou e Avelar (2000), será,
geralmente, a gente o u você. Como mencionado anteriormente, não se trata de um sujeito
selecionado pelo verbo, mas está presente apenas para que a posição de argumento externo esteja
preenchida. As construções existenciais com sujeito expletivo serão construídas com ter, uma vez
que as mesmas estruturas com haver são impessoais, não admitem sujeito.
Tendo em conta a variedade sulista do português brasileiro, e a fim de realizar-se uma
exemplificação, pode-se ter em conta o seguinte exemplo:
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(7) Em Porto Alegre tu tem a Usina do Gasômetro pra assistir o pôr do sol.
Imaginando uma situação hipotética, em que alguém de fora do Rio Grande do Sul solicita a
um gaúcho uma dica de programação para se fazer na capital do Estado, o enunciado parece ser
aceitável (em um contexto de fala espontânea). No caso em questão, o pronome tu não é o
possuidor (ou entidade possuidora) do ponto turístico, o verbo ter não expressa posse, mas
existência, e o sujeito pronome pode estar funcionando como um sujeito expletivo. Tais afirmações
podem ser verificadas com a paráfrase que segue as ‘convenções’ de uma frase existencial de
acordo com as normas gramaticais:
(8) Em Porto Alegre há a Usina do Gasômetro, um ótimo ponto turístico para se assistir o
pôr do sol.
A queda do princípio Evite Pronome parece favorecer as construções existenciais com verbo
ter, em detrimento do haver.
5 Considerações finais
A partir dos apontamentos trazidos no presente artigo, é possível perceber alguns fatores que
podem ter permitido que o verbo ter passsasse a figurar no campo de haver, para substituir existir.
Uma consideração preliminar alcançada é o fato de que talvez não seja o verbo ter que
passou a possuir em sua semântica o sentido de existência, mas, conforme os apontamentos de
Franchi, Negrão e Viotti (1998), o sentido de existência seria conferido por toda a construção (o
verbo ter e seu argumento interno).
É necessário ainda aprofundar tais teorias, por exemplo quanto à sintaxe das construções
existenciais com ter (posse ou existência), tendo em vista os apontamentos de Lyon (1979).
Também pode ser relevante verificar na história da Língua Portuguesa o que permite que o
verbo ter figure no campo de haver, e o inverso da mesma forma. Um exemplo da possível
proximidade entre esses verbos pode ser o fato de que haver costumava expressar posse, ter venceu
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nestas estruturas; agora parece que o mesmo está acontecendo, de forma inversa, nas estruturas
existenciais. Dado esse contexto, parece ser relevante aprofundar um estudo que aborde uma
pesquisa diacrônica desses verbos.
Referências
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CALLOU, Dinah; AVELAR, Juanito Ornelas de. Sobre ter e haver em construções existenciais:
variação e mudança no português do Brasil. Gragoatá, Niterói, n. 9, p. 85-100, 2000. Disponível
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DUARTE, Maria Eugênea Lamoglia. A perda do princípio ”Evite pronome” no português
brasileiro. Tese (Doutorado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Geologia,
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 1995.
FRANCHI, Carlos; NEGRÃO, Esmeralda Vailati; VIOTTI, Evani. Sobre a gramática das orações
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Acesso em: 25 set. 2016.
LYON, John. Funções gramaticais. In: _____. Introdução à linguística teórica. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1979. p. 353-424.
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