1 O Direito Espanhol no Pensamento de Francisco de Vitória

Propaganda
O Direito Espanhol no Pensamento de Francisco de Vitória (Século XVI)
Autora: Lúcia Chueire Lopes
Orientadora: Profª Drª Andréa Doré
Palavras- chave: guerra justa; direito de guerra; Francisco de Vitória.
Pretendeu-se na monografia O Direito Espanhol no Pensamento de Francisco de
Vitória (século XVI) analisar a forma como as relações estabelecidas entre europeus e
nativos da América foram entendidas e significadas pela intelectualidade castelhana no
decorrer do século XVI. A partir do estudo da díade colonização/ dominação propõe-se
então conhecer os pilares políticos e filosóficos utilizados pelos colonizadores para
legitimar suas ações frente aos homens do Novo Mundo.
O estudo foi desenvolvido em duas partes. A princípio, com auxílio da
historiografia produzida sobre o período, desenvolveu-se uma análise da situação em
que se encontrava a Espanha após o descobrimento da América, e o estado do
relacionamento travado entre os espanhóis e os ameríndios. Para isso utilizei a obra de
Richard Morse 1, na qual o autor sugere a opção espanhola de incorporar os nativos na
lógica política vigente na metrópole. Mas tal incorporação não ocorreu de maneira
ordenada. Devido ao grande número de modificações na legislação referente às praticas
coloniais no Novo Mundo, deflagrou-se um amplo debate sobre as formas que deveriam
adotar tais práticas, evidente na discussão travada entre os religiosos Bartolomé de Las
Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, em Valladolid no ano de 1550. Na famosa
Controvérsia de Valladolid os dois pensadores discutiram o direito ou não dos
espanhóis dominarem os nativos e, ainda, a legitimidade de declararem guerra a eles.
A crise de legitimidade não foi tema apenas dos discursos de Las Casas e
Sepúlveda. O segundo capítulo deste estudo destina-se à análise de uma conferência do
jurista Francisco de Vitória (1486- 1546), proferida pouco mais de dez anos antes, em
1538. Nesta conferência, intitulada De Indis et de Jure Belli 2, o jurista espanhol,
também envolto pelo dilema moral e jurídico hispânico, bem como pelo impacto dos
descobrimentos, dedicou-se a compreender as bases jurídicas e filosóficas formadoras
do direito espanhol e como poderiam ser utilizadas a fim de legitimar o domínio dos
espanhóis sobre o Novo Mundo, assim como as práticas manifestas para o alcance de tal
objetivo. A partir do pensamento de Vitória, pretendeu-se neste trabalho perceber a
forma como os espanhóis se compreendiam dentro de uma lógica legal e, mais ainda, a
possibilidade encontrada por eles para incorporar o outro, o nativo americano, em seu
mundo moderno.
Ocioso afirmar que a descoberta da América surtiu forte impacto na visão de
mundo dos europeus, que procuraram firmar sua superioridade frente aos nativos a
qualquer custo, fosse por meio da dominação dos territórios, da conquista econômica ou
mesmo de sua escravização. A Coroa castelhana, de forma instável, instituiu diversas
leis para normatizar o domínio, mas o único título capaz de legitimar as ações coloniais
foi a missão evangelizadora da qual estavam incumbidos os monarcas hispânicos. 3
Porém, a legitimidade concedida pela aliança com a Igreja não resolveu os problemas de
procedimento para a efetivação da conquista. O grande questionamento relacionava-se à
1
MORSE, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Utilizou-se a compilação da conferência: VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o Direito da Guerra (De
Indis ET de Jure Belli Relectiones). Ijuí: Editora Unijuí, 2006.
3
A Bula Inter Coetera, editada pelo papa Alexandre IV em maio de 1493, concedia aos monarcas
ibéricos a posse das terras do Novo Mundo, desde que se comprometessem a espalhar a doutrina cristã.
Para obter o direito de conquista os monarcas deveriam preocupar-se também com os interesses da Igreja,
ampliando não apenas seus limites territoriais como também os limites da fé.
2
1
tutela dos homens americanos, pois a difusão da doutrina cristã não concedia
necessariamente poder sobres os ameríndios e, se o fizesse, a posse não deveria ser
manifestada dentro do que pregava a doutrina religiosa? Buscou-se entender, então,
como as práticas violentas contra os nativos poderiam ser legitimadas.
Entre os anos de 1493 e 1542 diversas legislações foram promulgadas pelos
monarcas espanhóis, tentando impedir os maus tratos aos indígenas. Todavia, estas
legislações foram fortemente combatidas pelos colonos, pois eles necessitavam da força
de trabalho daqueles homens. Alegavam também que os indígenas recusavam-se a
aceitar a palavra cristã e que, por tal motivo, era justo usar de violência para que não
apenas colaborassem com os colonizadores, como também cedessem ao avanço da
cristandade. As idas e vindas da legislação tornaram possível o questionamento por
parte dos pensadores do período sobre a legitimidade do domínio.
Las Casas e Sepúlveda apresentaram posições opostas sobre esta questão. O
primeiro defendeu a liberdade dos indígenas, bem como sua posição de igualdade frente
aos europeus, baseada no Direito Divino que entendia os homens como iguais. O frei
dominicano defendeu ainda que a doutrina cristã devesse ser ensinada com paciência e
baseando-se nas premissas de amor pregadas pelo próprio Cristo; o uso da violência
para doutrinar os nativos, segundo Las Casas, opunha-se diretamente ao que pregava a
Igreja. Sepúlveda foi radical em seu julgamento dos nativos, os compreendia como
inferiores e naturalmente servos. Utilizando os fundamentos do Direito Natural
Aristotélico, o cronista espanhol afirmou que o uso da violência era justificado para
impedir as revoltas nativas, bem como deslizes após a conversão. Destacou ainda que a
hierarquia baseada no domínio da perfeição sobre a imperfeição, da força sobre a
fraqueza, ou mesmo da virtude sobre o vício, era a condição natural entre os homens, e
não a igualdade. Dessa forma, lhe parecia não apenas possível, mas sim lógico aceitar
os nativos como inferiores e carentes de tutela. 4
A argumentação de Francisco de Vitória possuiu duas diferenças em relação às
de Las Casas e Sepúlveda. Em primeiro lugar, ao invés de opor as jurisdições do Direito
Natural, Direito Divino e Direito Positivo procurou uni-las, buscando a contribuição de
cada uma delas para a constituição do direito hispânico. Sua outra importante
contribuição para a discussão da tutela dos nativos foi relativa ao poder de doação dos
territórios pelo Papa aos monarcas; questionou não apenas a legitimidade da tutela
“civil” sobre os nativos, mas também a legitimidade da tutela espiritual.
Dividida em duas partes, sua conferência contemplou a princípio o
questionamento do poder temporal e a jurisdição do poder da Igreja, bem como a
condição do indígena americano perante o Direito Natural e o Direito Positivo,
analisando ainda sobre quais homens o Direito Positivo se aplicava. Vitória afirmou que
o Direito Natural possuía jurisdição superior aos demais. Na segunda parte da sua
conferência, o jurista buscou transportar suas concepções sobre o direito para uma
questão prática, de urgência no período em que vivia: a guerra contra os nativos.
Vitória analisou neste segundo momento quais as causas que poderiam justificar
as atitudes hostis contra os índios, e de que forma a guerra seria lícita. O jurista afirmou
que tanto Igreja quanto Coroa espanhola tinham a função de propagar a religião cristã e
passar a todos os homens os ensinamentos do Evangelho, mas não a qualquer custo. A
difusão da doutrina deveria ser feita não apenas por palavras, mas também por ações, e
4
Sobre isso as fontes: LAS CASAS, Bartolomé de. As Índias Ocidentais. São Paulo: Edições Cultura,
1944. SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado sobre lãs justas causas de la guerra contra los índios.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1986. E as obras: JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas. Todos os
direitos para todos. 2000. E: BRUIT, Hector Hernan. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos
Vencidos. Campinas: Editora Unicampi, 1995.
2
a guerra, definitivamente, não era uma ação louvada pelo catolicismo. Das quatro
proposições de Vitória, a segunda é de especial importância, uma vez que condenava a
legitimidade da guerra como instrumento de ampliação de domínios. A expansão
territorial tinha por objetivo apenas enriquecer uma parte envolvida, de forma que se
fosse um argumento plausível, toda guerra teria uma causa justa, e nunca haveria um
culpado em ações beligerantes. Sua terceira proposição não se distanciou muito deste
debate, referia-se à glória do Príncipe, no que diz respeito à retomada do que lhe era de
direito. Mais uma vez remontando à sua primeira palestra, o jurista afirmou que o
território não era, por direito, nem da Coroa hispânica, nem da Igreja. Por fim, Vitória
apresentou argumentos que justificavam a declaração da guerra: a guerra justa deve
repelir uma outra força, ou seja, deve ser defensiva e o objetivo da guerra deve ser a
paz, e não o lucro. Era legitima também quando os direitos de livre comércio e
comunicação eram violados – por qualquer uma das partes-. 5
A fim de compreender a lógica do pensamento do jurista e teólogo Francisco de
Vitória, utilizou-se neste estudo monográfico a análise de dois pensadores. O primeiro,
Tzvetan Todorov, afirma em sua obra 6 que ao invés de defender os ameríndios o jurista
Francisco de Vitória proporcionou uma argumentação para justificar o travar de guerra
contra os americanos e as práticas violentas. Não entendia o jurista como defensor dos
indígenas. Já Richard Morse apresenta posição contrária. Entende que as preocupações
do jurista espanhol não se postavam diretamente em defesa do nativo americano, mas
sim em defesa de valores morais e políticos, tão caros à Espanha no século XVI.
Segundo o autor, o objetivo de Vitória em suas conferências era o de compreender e
incorporar o Novo Mundo em uma nova lei, não o deixando abandonado aos mandos e
desmandos da Igreja. 7
Concluo, por fim, que a contribuição de Vitória deva ser colocada em
perspectiva. O jurista não conheceu a realidade da colonização da América e de seu
gabinete buscou apenas incorporar esta nova realidade à lógica vigente na Espanha. Ele
não objetivou defender os índios da mesma forma que fez Las Casas. Sua preocupação
não era dirigida à humanidade dos nativos, mas sim à regulamentação do
relacionamento entre diferentes nações. A ação desenfreada e sem normas da
colonização da América, acreditava, não era prejudicial apenas para os índios, mas para
todo o globo. Pois, se não houvesse leis capazes de regulamentar as relações de posse,
dominação e mesmo de guerra, qualquer ação beligerante entre quaisquer que fossem as
nações seriam legítimas e não passíveis de qualquer questionamento. O jurista procurou
basear suas formulações em tudo que acreditava pertinente que já fora produzido sobre
direito. Sua posição foi dúbia, resgatou conceitos bíblicos e utilizou o que de mais
marcante encontrou no pensamento de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino,
aproximou-se da sabedoria aristotélica, e analisou as premissas do direito positivo e
canônico a fim de formular bases de um direito internacional; mas sua preocupação
direcionava-se à constituição do Estado espanhol com bases sólidas, para um governo
eficiente e justo. Com bases na tradição da lei natural, vislumbrou uma sociedade que
partisse da ordem. A questão referente às almas dos indígenas não estava em seu
horizonte.
5
Sobre isso ver: PAGDEN, Anthony. Commerce anda Conquest – Hugo Grotius and Serafim de Freitas
on the freedom of the seas. In: Mare Liberum, n. 20, 2000, pp.33 a 55.
6
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
7
MORSE, Richard. A Teoria Política do Governo Colonial. In: BONILLA, Heráclio. Os Conquistadores.
1492 e a população Indígena das Américas. 2006, p. 394.
3
Download