Um saber de fronteira – entre a Antropologia e a Educação

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26º REUNIÃO ANUAL DA ANPED
5 a 8 de outubro de 2003
Mesa Redonda
As Ciências Sociais e a Pesquisa em Educação
Coordenação: Alfredo Veiga-Neto
UM SABER DE FRONTEIRA – ENTRE A ANTROPOLOGIA E A EDUCAÇÃO
Tania Dauster
Professora Associada do Departamento de Educação da PUC-Rio
Pesquisadora do CNPq
Poços de Caldas, outubro, 2003.
Um saber de fronteira – entre a Antropologia e a Educação
Tania Dauster
Professora Associada do Departamento de Educação da PUC-Rio
Pesquisadora do CNPq
Este texto tem como objetivo retomar as reflexões que tenho feito em outros artigos sobre as
possíveis contribuições do olhar antropológico na pesquisa e na prática educacional. Em outro
momento (Brandão, Z. org. 1994), escrevi sobre o tema no contexto da discussão da relação entre a
chamada crise dos paradigmas e a educação. Naquela ocasião, apontei para a importância do
relativismo para o educador e ressaltei as tensões entre o singular e o universal que devem permear
os horizontes do trabalho não só do antropólogo, mas, também, do educador. Mesmo considerando
a crítica feita por autores tais como Soares (1991), Velho (1991) e Zaluar (1991), cujo foco
principal é o relativismo, tentei abrir um espaço para essa questão no campo da educação como
modo de problematização.
Embora consciente do debate atual sobre as possibilidades do fazer antropológico, chamei a
atenção para a pesquisa no campo educacional do ponto de vista da etnografia. As considerações em
torno do conceito de cultura e da “leitura” das relações sociais concretas, assim como acerca do
significado delas emergente, foram os aspectos que busquei focalizar a partir de um mergulho na
literatura do campo antropológico.
Se, naquela altura, considerava tal démarche enriquecedora para o pesquisador, acreditava,
paralelamente, que o professor, de maneira geral, lucraria com a abordagem antropológica, olhando
seu aluno com outras lentes, ou seja, analisando a heterogeneidade e a diversidade sociocultural e
abandonando uma postura etnocêntrica que faz do “diferente” um inferior e da diferença uma
“privação cultural”.
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Fruto da articulação entre a Antropologia e a Educação, vêm surgindo pesquisas
institucionais com equipes interdisciplinares, além de dissertações de mestrado e teses de
doutorado, desde o final dos anos 80.
Os trabalhos se passam no meio urbano e estão marcados pela ótica sintetizada nas palavras
de Gilberto Velho (1980).
A possibilidade de partilharmos patrimônios culturais com os membros de nossa
sociedade não nos deve iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e
diferenças provindas de trajetórias, experiências, e vivências específicas. Isto fica
particularmente nítido quando fazemos pesquisa em grandes cidades e
metrópoles onde a heterogeneidade provinda da divisão social do trabalho, a
complexidade institucional e a coexistência de numerosas tradições culturais
expressam-se em visões de mundo diferenciadas e até contraditórias. Sob uma
perspectiva mais tradicional poder-se-ia mesmo dizer que é exatamente isto que
permite ao antropólogo realizar investigações na sua própria cidade. Ou seja, há
distâncias culturais nítidas internas no meio urbano em que vivemos, permitindo
ao “nativo” fazer pesquisas antropológicas com grupos diferentes do seu,
embora possam estar basicamente próximos.
A escolha dessa abordagem ocorreu em função da necessidade de se buscar uma atitude de
“estranhamento” pelo pesquisador, segundo a qual ele viesse a pensar outros sistemas de referência
que não o seu próprio, ou seja, outras formas de representar, definir, classificar e organizar a
realidade e o cotidiano que não em seus próprios termos.
No que tange ao ensino e a pesquisa, ultrapassar estereótipos e buscar explicar a diferença e
a especificidade de um determinado universo social fazem parte dos usos da Antropologia no
campo da Educação.
Cultura – conceito emblemático da Antropologia
Tenho agora como objetivo focalizar o termo cultura a partir do enfoque antropológico, e
busco, entre outros pontos, situá-lo, tendo em vista a questão dos valores e a sua relevância quando
se quer entender o dilema constitutivo da Antropologia, que assim pode ser resumido: compreender
a unidade biológica da espécie humana e a sua diversidade cultural, percebida através da
pluralidade de costumes, atitudes, concepções, práticas, em suma, de múltiplos modos de vida.
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Assim sendo, do contraste entre o um e o múltiplo, ou entre o mesmo e o “outro”, nasce a
problemática da cultura, contribuição relevante da Antropologia na busca de interpretar as
diferenças sociais e culturais entre os grupos humanos.
Cultura é termo polissêmico. Não se trata, contudo, de percebê-lo dentro da lógica do
senso comum que dá margem a declarações sobre os grupos que diferem de nós, em tons que
podemos identificar nas seguintes expressões: “eles não têm cultura, são selvagens, sem moral, têm
costumes bárbaros”. Estas são afirmações que revelam posturas etnocêntricas.
Etnocentrismo. De que se trata?
Conforme a própria palavra revela, trata-se da centração nos próprios valores e na própria
cultura ou etnia. Tal tendência, se bem que universal, é a lente que nos impede de olhar o “outro” na
sua dignidade e positividade, é o que alimenta as ideologias sobre a carência cultural como
explicações sobre os modos de vida alheios.
A primeira definição científica de cultura foi cunhada por E. Tylor em1871 (apud. Laraia,
p.25, 1986):
Cultura e civilização, tomadas em seu sentido mais vasto, são um conjunto
complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os
costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto
membro da sociedade.
Este conceito inaugural, investido da teoria evolucionista do século XIX, nos seus
desdobramentos, enfatizava mais a unidade do que a diferença entre os grupamentos humanos.
Frisava, ainda, a idéia de que a cultura, enquanto artefato criado pelo homem, se distinguia da
natureza.
Sem dúvida desde sempre, a visão antropológica, de forma generosa, abria-se para a
compreensão dos modos de vida em todos os seus aspectos: as maneiras de comer; vestir; andar; as
técnicas corporais; e as formas de nascer e morrer. Todas estas dimensões formam padrões
particulares que expressam os significados e as visões de mundo dos sujeitos nos seus contextos de
existência.
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Entretanto, esse conceito, pela sua própria força e disseminação, difundiu-se ao ponto do
desgaste, razão pela qual, conforme anuncia Clifford Geertz, há necessidade de delimitá-lo (1978).
Escolhendo o caminho da semiótica, Geertz vê o homem como um animal amarrado a teias
de significado que ele mesmo teceu, e a cultura, como essas teias (1978, p.15). Desenvolvendo seu
pensamento, declara que a cultura é pública e que o comportamento humano é ação simbólica, pois
tem significado (1978, p. 20). Por sua vez, o papel da cultura na vida humana, segundo o mesmo
autor, aproxima-se da idéia de um “programa” ou “sistemas organizados de símbolos significantes
que orientam a existência humana” (1978, p.58).
Mas, em tempos de globalização, como fica a discussão sobre a cultura?
De acordo com Geertz (1999), a diversidade cultural faz parte da sociedade complexa,
considerando-se tanto os grupos étnicos como outras diferenças que podem ser examinadas, por
exemplo, em função de geração, de gênero e de classe.
Geertz propõe a idéia de que o significado é socialmente construído. Confrontando o
enigma da diversidade cultural e seus usos, ele indica que estamos hoje desafiados a pensar a
diversidade por outra ótica. Por quê? No lugar de pensarmos em termos de espaços sociais e
fronteiras bem delineadas, confrontamos um mundo com maneiras de viver distintas, que se
misturam e se interpenetram tal qual uma colagem, cujas bordas são irregulares e moventes. Essa
imagem, na sua riqueza, significa a nossa experiência urbana e cotidiana.
Para o antropólogo americano, vive-se, então, em uma imensa colagem, ou seja, em um
mundo de texturas e símbolos variados e superpostos que pode ser percebido nas expressões da
mídia, no acesso freqüente às linguagens outrora vistas como exóticas e distantes, na migração
intensa de outras culinárias e gostos gastronômicos, assim como no consumo de artigos de
vestimenta e mobiliário de distintas e longínquas regiões. Temos acesso a essa experiência no dia a
dia: a vivência em uma colagem e a cultura da mistura.
Como interpretar seus significados? Tal contexto, para ser entendido, demanda um
exercício discriminatório constante, tendo em vista situar os elementos que configuram as colagens
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e suas intermediações. Requer a percepção das relações entre os elementos, as mediações, assim
como seus sentidos identitários, mesmo que fluidos. Exige, portanto, um olhar descentrado, que
estranha os estereótipos, buscando um ponto de vista em relação aos significados do “outro” nos
seus próprios termos.
Em outras palavras, trata-se de situar os fenômenos na especificidade do social, o que
significa desnaturalizá-los, ou seja, mostrar que entre outros fatores, as atitudes, os comportamentos
e os gostos são socialmente construídos e nada têm de naturais, pois pertencem ao campo da cultura
e das relações sujeito/sujeito e sujeito/objeto. Trata-se de buscar significados, sistemas simbólicos e
de classificação, em uma postura antropológica, que pressupõe a quebra de visão dissimuladora da
homogeneidade.
Um outro aspecto merece atenção. Em suas análises, Velho (1981) alerta para o risco
metodológico de ver segmentos sociais como se fossem unidades independentes, autocontidas e
isoladas. Refletindo sobre o contexto urbano, o autor sinaliza para a heterogeneidade social que a
noção de sociedade complexa comporta, lançando uma pergunta crucial: “Como localizar
experiências suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas?” (ibid., p.16). Por outro
lado, o que pode ser comunicado e partilhado, quais os valores, quais os limites das negociações
simbólicas? (ibid, p.18 e 19). Tais perguntas são igualmente relevantes para a prática educacional.
Antropologia e Educação
Não se trata de uma área nova de trabalho, assim vale registrar, de forma sucinta, a
contribuição de autores consagrados e outros desenvolvimentos no campo.
Nos anos 30, a antropóloga americana Margareth Mead faz da educação objeto privilegiado
da Antropologia no interior da escola Cultura e Personalidade. Sua obra clássica intitulada
“Growing up in New Guinea”, buscava entender como valores, gestos, atitudes e crenças eram
inculcadas nas crianças pelos adultos com o objetivo de formá-los para viver dentro de sua
sociedade. A autora investigou tanto os modos de transmissão das gerações mais velhas para as
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mais novas, como a própria formação da personalidade e as formas de aprendizagem existentes
(Bonte, P. & Izard, M., 1991). Essa referência é particularmente importante uma vez que a
antropóloga demonstrou, ao lado da dimensão científica, a preocupação pedagógica, buscando a
partir de sua experiência etnográfica, influenciar as atitudes face às crianças e aos adolescentes no
seu país, no sentido de uma menor repressão. A pesquisadora mostrou que a adolescência, com as
características conhecidas por nós, é um fenômeno sociocultural e não uma questão fisiológica
(Erny, P., 1982).
Esta abordagem revelava as especificidades culturais, travando um intenso diálogo com a
psicologia e a psicanálise, tendo em vista sustentar a existência de “personalidades culturais”.
Um outro enfoque localiza-se na vertente da Escola Sociológica Francesa. Pierre Bourdieu
trabalha a noção de habitus tendo em vista o processo educativo, que por intermédio de sua teoria
surge de forma dinâmica, como inculcação de disposições duráveis, matriz de percepções, juízos e
ações que configuram uma “razão pedagógica”, ou seja, como lógica e estratégias que uma cultura
desenvolve para transmitir os seus valores (Bonte, P. & Izard, M., 1991).
Estas breves notas têm o intuito de sinalizar alguns ângulos através dos quais as relações
entre Antropologia e Educação podem ser dimensionadas.
Nos idos de 1954, Claude Lévi-Strauss, escrevendo sobre o lugar da Antropologia e
problemas de seu ensino, teceu considerações sobre o projeto antropológico que, a meu ver,
continuam relevantes, mesmo considerando-se as transformações histórico-teóricas no seu âmbito.
Ao definir o que é Antropologia, Lévi-Strauss explica que ela emerge de uma forma
específica de colocar problemas, a partir do estudo das chamadas sociedades simples, tendo, no seu
desenvolvimento, voltado-se para a investigação das sociedades complexas, para entender a cultura
e a vida social. Uma das vias para a construção deste conhecimento é a etnografia concebida como
descrição, observação e trabalho de campo a partir de uma experiência pessoal. Segundo o autor, o
antropólogo visa elaborar a ciência social do observado, a partir desse ponto de vista, ultrapassando
suas próprias categorias. Construindo um conhecimento fundado na experiência etnográfica, na
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percepção do “outro” do ângulo das suas razões positivas e não da sua privação, buscando o sentido
emergente das relações entre os sujeitos, ele estaria transpondo as suas próprias referências com
aquelas do contexto observado.
Eis aí, resumidamente, um dos legados da Antropologia.
É esse outro olhar, essa forma alternativa de problematização dos fenômenos, que busco
evocar a princípio ao usar a etnografia no campo da Educação.
Como fazê-lo?
Não se trata de reduzir a etnografia a uma técnica, mas, sim, tratá-la como uma opção
teórico-metodológica, o que já implica em conceber a prática e a descrição etnográficas ancoradas
nas perguntas provenientes da teoria antropológica.
Peirano (1995) insiste em dizer que não existe dissociação entre pesquisa teórica e empírica,
sendo a história da disciplina ao mesmo tempo história e teoria, e as monografias, constitutivas do
próprio desenvolvimento da disciplina e da teoria antropológica.
Vale relembrar que a postura de base antropológica visa o entendimento das diferenças
culturais ou da alteridade a partir de um projeto universalista. Como diz Peirano, nesse mesmo
ensaio, a Antropologia pretende não só o conhecimento contextualizado de cada universo cultural,
mas nos seus horizontes universalistas, também supõe que o que se encontra em uma dada cultura
estará em outra, embora de forma distinta.
Vista assim, a relação entre a Antropologia e o campo da Educação adquire contornos
desafiantes. Como articular o projeto antropológico de conhecimento das diferenças com o projeto
educacional de intervenção na realidade? (Novaes, R., 1992). Dado que a prática educacional é
normativa e imbuída de um “dever ser” pedagógico e de um projeto de transformação, como o
educador pode produzir conhecimentos descentrados e incorporar outras lógicas cognitivas? Como
estabelecer a dúvida metódica sobre seus próprios valores e crenças tendo em vista o conhecimento
do “outro” nos seus termos? Como introduzir a “antropo-lógica” em um contexto em que muitos
alunos não têm informações sobre a disciplina, em que se vive um outro clima acadêmico
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alimentado por outras intenções e significados? Quais as tensões, limites e possibilidades que
emergem desta problemática?
Se existem distâncias, no que diz respeito aos métodos, entre as duas disciplinas, existem
também proximidades, uma vez que ambas têm como objeto os modos de vida, os valores e as
formas de socialização ( Gusmão, N., 1997).
Por outro lado, me estimula perceber que, se existem diferenças significativas de abordagens
entre as duas disciplinas, existem, também, proximidades a serem encontradas, até porque ambas
têm como solo as relações entre o indivíduo e a sociedade e tratam da existência humana.
Sobre o ensino
Diante desse dilema, percebo que o ensino de Antropologia na área de Educação deve
permitir que o educador apreenda outras relações e posturas, mergulhando na literatura
antropológica. Trata-se da aprendizagem de uma outra linguagem, de um outro código que
possibilita levantar outras dúvidas acerca dos fenômenos tidos como educativos dentro e fora da
escola. Desconstróem-se estereótipos (Velho, G., 1980) a partir do encontro com um outro sistema
de referências, buscando entender uma outra racionalidade nos seus termos.
Esta atitude de estranhamento visa, através da análise de relações sociais concretas, o
questionamento de categorias abstratas e do senso comum para atingir um conhecimento mais
complexo da realidade.
Passa-se, então, à des-naturalização dos fenômenos, mostrando como práticas, concepções e
valores são socialmente construídos e, portanto, simbólicos. Quais as estratégias a serem usadas?
Segundo Clifford Geertz (1978), o entendimento do que é uma ciência passa pelo
conhecimento de seu exercício. De acordo com esta orientação, tenho como proposta de ensino o
trabalho intensivo sobre as práticas de investigação etnográfica, conhecendo diretamente autores e
suas monografias, discutindo escolhas, trabalhando conceitos forjados no âmbito da disciplina, no
contexto da obra dos autores, com particular destaque para as definições de cultura.
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Abre-se relevante espaço para os debates contemporâneos sobre o estatuto da Antropologia
como ciência, os limites dos pesquisadores na elaboração da interpretação, as questões relativas à
“padrões e estilos de vida” na sociedade complexa e às relações entre cultura, a massificação da
sociedade contemporânea e a relativização da globalização (Velho, 1994). Acrescentem-se outras
discussões sobre o trabalho de campo em uma perspectiva dialógica, investindo-se nas polêmicas
sobre a descrição etnográfica.
Tratando-se de uma iniciação à literatura antropológica, não existem pretensões de esgotar
coisa alguma, mas de elaborar, no contexto da educação, outras perguntas inspiradas na
Antropologia, fabricando outras versões sobre os fenômenos de interesse do educador, ou seja,
gerando um saber de fronteira, um saber híbrido entre a Antropologia e a Educação.
Sobre a pesquisa e as orientações de teses e dissertações
Os trabalhos de pesquisa se passam no meio urbano e vêm buscando a ótica da Antropologia
das Sociedades Complexas. Gilberto Velho (1980) já mostrara como as grandes cidades são
reveladoras da complexidade institucional e da heterogeneidade oriunda de diferentes tradições
culturais ou religiosas e daquela proveniente do mundo do trabalho. Portanto, mesmo a partilha de
patrimônios culturais extensivos, não afasta descontinuidades e diferenças emergentes de
experiências sociais distintas. São estas distâncias que tornam possível a pesquisa na própria
sociedade do observador.
O mesmo autor, prosseguindo em suas investigações, atribui especial relevo aos processos
de construção da identidade, projeto e memória, por exemplo, tendo em vista a reflexão sobre as
“sociedades complexas moderno-contemporâneas”, referenciando-se, sobretudo ao contexto
brasileiro (Velho, 1994). Segundo ainda Gilberto Velho (idem), não se trata, também, de distinguir
as chamadas elites e as camadas populares, mas, sim, valorizar os aspectos dinâmicos e relacionais
entre os mesmos. Então, desvendar as combinatórias e mediações entre os níveis diferentes de uma
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sociedade complexa é, como diz o autor, tarefa contemporânea e significativa para a pesquisa
histórico-sociológica.
Entre outras, estas são questões que vêem sendo debatidas no interior das pesquisas que faço
e oriento.
O projeto institucional intitulado “O Campo Simbólico da Universidade” – os professores, a
diversidade cultural e a excelência acadêmica – tem como objetivo dar continuidade à investigação
sobre as questões relativas à cultura letrada que estejam associadas à transmissão do conhecimento
e de valores na universidade, conforme vinha anteriormente sendo trabalhado no projeto “Os
Universitários – modos de vida e práticas leitoras”, concluído em 2002.
O projeto em curso, entretanto, irá investigar tais questões segundo a ótica dos professores,
enfatizando contrastes com a própria geração do entrevistado enquanto estudante. Buscamos os
sistemas de representações e de classificações, assim como os significados, do ponto de vista do
universo docente, tendo como vetor as relações com a leitura e a escrita. Da mesma forma, levamos
em consideração a diversidade étnica, social e cultural dos estudantes, uma vez que a entrada de
alunos de setores populares nesta Universidade vem compondo uma outra história para as relações
entre estes e os professores, sendo reproduzidas/produzidas no contexto universitário as lógicas de
inclusão e exclusão da dimensão macro social.
Sendo assim, investigamos, entre outras, as seguintes questões, solicitando contrastes entre a
própria geração do professor e as novas gerações: o papel e o significado da Universidade frente à
diversidade cultural e social e as novas gerações; a transmissão da cultura letrada no contexto
universitário; as práticas, os usos e as representações de leitura e de escrita do professor frente às
novas gerações e à diversidade étnica; o lugar e o significado da fotocópia na Universidade; as
expectativas, padrões e normas que estão subtendidas quando se fala em “qualidade do curso” e
excelência acadêmica; e as relações entre pesquisa e ensino na formação de profissionais. Como
opção teórico-metodológica, faremos uso da etnografia e de entrevistas em profundidade.
Concebemos a prática de pesquisa ancorada nas perguntas provenientes da teoria antropológica.
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Buscaremos em autores dos campos da Antropologia, Educação e História Cultural a teoria que
iluminará o processo investigativo.
Sabendo que o pesquisador é parte do problema que ele vai investigar, tentaremos
compreender nossas idiossincrasias e pré-conceitos. Situar o problema na especificidade do social
significa mostrar que fatores como as atitudes, os comportamentos, os gostos, a formação do leitor e
a relação com livros são fenômenos socialmente construídos e nada têm de naturais, pois
pertencem ao campo da cultura e das relações sujeito/sujeito e sujeito/objeto. É ainda buscar
significados, sistemas simbólicos e de classificação, em uma postura antropológica, que pressupõe a
quebra da visão dissimuladora da homogeneidade e dos estereótipos.
Desde o final dos anos 80 venho, no contexto do Programa de Pós-Graduação de Educação
da PUC/Rio, construindo um campo de pesquisas de Antropologia da Educação, apoiado pelo
CNPq, o que significa a conquista de uma legitimidade institucional e de uma identidade
acadêmica.
A escolha do campo empírico tem como focos a escola e a universidade como também se
desloca para outros espaços sociais, mesmo dando continuidade às questões ligadas à aprendizagem
e a socialização.
No que tange às atividades de orientadora, podem ser registradas 28 teses e dissertações,
sendo alguns trabalhos vinculados às pesquisas institucionais. Atualmente temos temas que
incluem: o papel da leitura e da escrita nos movimentos de inclusão e exclusão das camadas
populares na universidade; os processos de socialização e transmissão cultural em um ritual de
origem afro, o jongo; e a construção da orientação sexual em uma escola na Zona Sul da cidade do
Rio de Janeiro.
Estas notas mostram que existe um processo de migração da Antropologia para uma outra
área fora das fronteiras das chamadas Ciências Sociais, no caso a Educação. Mesmo considerandose as distâncias em termos de crenças, valores e atitudes entres estes dois campos disciplinares as
mediações vêm se realizando nas suas margens.
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Considerações Finais – relações necessárias
Em suma, este texto foi construído a partir de outros trabalhos nos quais teci reflexões sobre
a prática etnográfica no campo da educação e a partir da minha experiência de ensino e pesquisa.
Entendo que a apropriação de atitudes emblemáticas do campo antropológico pelos
profissionais da educação é mais que pertinente, pois indispensável, e possibilita a construção de
um saber híbrido ou de fronteira, além de um olhar mais complexo sobre os fenômenos
educacionais.
Quais seriam estas atitudes? Refiro-me à produção de um conhecimento dos fenômenos
educacionais a partir de observação participante e do “olhar” relativizador.
Sem querer transformar o educador em antropólogo, trata-se de convidar o educador a
mergulhar em um outro sistema de referências e inspirar-se na prática antropológica.
Trata-se de estabelecer uma outra forma de problematização a partir da qual, por exemplo, o
aluno não será percebido pela “ótica da privação cultural”, mas será encarado nos seus próprios
termos, a partir de seus sistemas de referência e valores. Ademais, na pesquisa, trata-se de
interpretar os fenômenos ditos educacionais, dentro ou não das instituições educacionais a partir de
um outro código, apropriando-se de outras linguagens, conceitos e modos de “olhar, ouvir e
escrever” referenciados no trabalho do antropólogo (Cardoso de Oliveira, R.,1998).
Este movimento flexibiliza o afã homogeneizador, próprio do estilo de certos profissionais
da educação, através do distanciamento de posturas reificadoras e etnocêntricas, pelo exercício do
estranhamento, no qual são afastados os conhecimentos estereotipados provenientes do senso
comum e exercitada a postura antropológica.
Para terminar, desejo registrar uma contribuição para uma possível história da Pósgraduação em Educação no Brasil.
O campo da Educação tem como marca a apropriação de outras disciplinas para montar a
reflexão sobre seu próprio objeto, a saber, as práticas e os saberes docentes.
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Até onde sei, a Antropologia foi incorporada a um projeto departamental, tanto na graduação
como na pós–graduação, pela primeira vez no Brasil, pela PUC-Rio, no final dos anos 80, onde já
estava instalada de forma consistente a pesquisa qualitativa educacional. Coube-me a honra de abrir
aí a área de Antropologia e Educação, através da mediação da Prof. Vera Candau, dentro do espírito
pluralista e inquieto do Departamento de Educação.
Desde então, é crescente a demanda no campo da Educação pela disciplina antropológica,
estreitando-se, assim, cada vez mais, os imprescindíveis laços entre os dois campos disciplinares e a
cultura e a educação.
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