Caramuru Herói do Brasil

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Caramuru Herói do Brasil
Lilian Carla Muneiro1
Resumo:
O filme Caramuru, a Invenção do Brasil pode ser interpretado como contra-mediação da história oficial do Brasil. Classificado como comédia, o texto fílmico estimula
crítica e carnavaliza à intervenção estrangeira. O descobrimento da “Pindorama”
ou “Terra dos Papagaios”, como é denominado o Brasil na obra, é mostrado como
uma série de incidentes e infortúnios que conduz um degredado ao posto de autoridade máxima do novo mundo. Neste artigo, investigamos a heroicidade, a carnavalização apresentada pela personagem protagonista, aspectos relativos à
narratividade e à discursividade e seus elementos constitutivos: temas, figuras, isotopias presentes no texto fílmico.
Palavras-chave: heroicidade; narratividade; discursividade; carnavalização, isotopia.
Abstract
The film Caramuru, the invention of Brazil can be interpreted as a counter-mediation of the Brasilian official history. Classified as a comedy, the filmic text encourages the criticism to a foreign intervention. The Discovery of “Pindorama” or “Land
of Parrots” as Brazil is called in the work, is shown as a series of mishaps and incidents which leads an outcast to the rank of the highest authority of the new world.
In this paper we aim to investigate the heroism, the carnivalization presented by
the main character, aspects related to the narrative and discursivity and their constituent elements: themes, pictures, and isotopies present in the film text.
Keywords: heroicity, narrativity, discursivity, carnivalization, isotopy.
1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil, [email protected]
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O filme Caramuru, a invenção do Brasil2, foi dirigido por Guel Arraes, que também foi responsável pelo roteiro ao lado de Jorge Furtado. A obra é o resultado da
remontagem da minissérie de mesmo nome exibida pela Rede Globo de Televisão, em
três capítulos, em 2000. O filme foi apresentado ao público um ano depois, tomando
carona no bom momento vivido pelo setor cinematográfico com rearranjo de produções televisivas – fomentando lucros e a Indústria Cultural. É importante mencionar
que a transformação da minissérie em filme não se constitui na simples transposição de um formato para outro. Todo o seu processo construtivo, do roteiro, a captação
de imagens, despendeu grande atenção por parte dos autores e equipe técnica, para
que fosse obtida consonância entre as linguagens televisiva e cinematográfica.
As personagens fílmicas não apresentam as características que, em seu conjunto, possam traduzir heroicidade ou um herói propriamente dito3. Na trama, a
performance dos portugueses e franceses revela o ethos do descobridor interessado
na nova terra, vista/mostrada como exuberante fonte de riquezas, passível de exploração e lucro. O público sofre duplo confronto em suas expectativas e crenças:
enquanto o europeu é apresentado como ambicioso, explorador e mentiroso, a imagem do “bom selvagem”, construída e apresentada pelo Romantismo4, apresenta-se
completamente arrasada, de forte, corajoso e destemido é exibido como preguiçoso,
malandro e trapaceiro. O fato é que a película evidencia o ethos do colonizador europeu e também do índio, como veremos no decorrer do artigo.
Percebemos que história do descobrimento é posta em cena de forma metaforizada uma vez que a metáfora é empregada por meio de imagens estrategicamente
combinadas que, apresentadas de forma seqüencial, descortinam a história oficial a
2
Síntese do filme: A obra Caramuru, a invenção do Brasil apresenta outra versão do descobrimento do país, como
resultado de uma sucessão de equívocos. O ambicioso Vasco de Ataíde (papel atribuído a Luiz Mello) pretendia chegar às índias, antes de Cabral para isso tramou o roubo do mapa com a rota descoberta por Vasco da Gama. Entretanto, tendo em mãos o mapa cartográfico modificado por ilustrações que encobriam rochas, o navio naufragou. Os
únicos sobreviventes foram Diogo Álvares, o artista degredado que ilustrou o mapa (papel de Selton Mello), e Vasco
de Ataíde, comandante do navio e traficante de escravos. Diogo, por sorte, consegue sobreviver a fúria de Vasco que
tenta matá-lo, enquanto reza ajoelhado. Igualmente por sorte Diogo é poupado pelos índios que, impressionados pela
quantidade de embarcações que avistam na praia, o deixam vivo. Após ser hóspede dos índios, usufruir da “hospitalidade” Tupinambá e descobrir que viraria refeição, novamente tem sorte de encontrar um “pipoco” durante outra
fuga – trata-se da arma de Vasco de Ataíde no tronco de uma árvore. Seduzidos pela pólvora, tido como artefato divino,
os índios passam a chamá-lo de Caramurú. Sua vida então é poupada e passa a ficar próximo do “cacique”. De Diogo
Alvarez, degredado torna- se “Caramuru o maioral dos Tupinambás”, rei da “terra dos papagaios”.
3
Campbell (2007: 306-312) em O herói das Mil Faces apresenta várias transformações sofridas pelo herói: o herói
primordial e o herói humano (que envolve o ciclo cosmogônico “não pela ação dos deuses, que se tornaram visíveis,
mas pela dos heróis, de caráter mais ou menos humano, por meio dos quais é cumprido o destino do mundo”), a
infância do herói humano e sua inserção no “plano da vida contemporânea, para servir na qualidade de transformador humano dotado de potenciais demiúrgicos” o herói como guerreiro, o herói como amante, o herói como imperador e tirano, o herói como redentor do mundo, o herói como um santo e, por fim, a partida do herói.
4
O Romantismo no Brasil foi fomentado pela Monarquia e teve importante papel na exaltação do índio, considerado
o primeiro herói nacional. Didaticamente, divide-se o movimento artístico em três fases: primeira geração, conhecida como nacionalista ou indianista, Gonçalves Dias é um de seus autores mais expressivos; a segunda geração,
conhecida como mal do século (os autores marcaram seus textos com pessimismo e valorização da morte) destaque
para Álvares de Azevedo, Junqueira Freire e Casimiro de Abreu; e a terceira, voltada para a poesia social – Castro Alves ganhou destaque também ao posicionar-se contrario à escravidão no poema Navio Negreiro.
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respeito do descobrimento e possibilitam ao público a realização de inferências através do confronto entre o que foi disseminado a respeito do descobrimento do Brasil
e o que está sendo mostrado pela película. Cimino (2010: 68) quando escreve a respeito da metáfora como potência na construção do conhecimento fala em religare. “A
metáfora ao inventar um real discurso produz o religare da representação mediado
pelo continuo interpretativo dos processos de significação”.
A metáfora é detectada desde o início do filme com o emprego de índice que
aponta, primeiramente, para o universo literário. Com isso, o público é posicionado
diante de uma história extraída de um livro. Enquanto o nome do elenco é inserido
na tela, é exibida uma seqüência de imagens que, ao ganharem nitidez, revelam
páginas de um livro antigo – dada a grafia da letra e a tonalidade do papel. Esse contexto, somado ao background musical, faz com que o público seja imerso na trama
exibida e envolto em outra releitura do descobrimento do país.
A obra fílmica inicia como uma história datada: “Primeiro de março de 1500”.
A voz do ator Marco Nanini5, conhecida pelo grande público brasileiro, dada sua
constante e expressiva atuação na televisão aberta, dá densidade ao seu papel de
narrador onisciente assemelhando-o ao do “contador de histórias” que, em passagens pontuais, situa o público diante dos protagonistas, dando uma idéia prévia da
narrativa. A partir deste ponto, o filme passa a ganhar outro cenário com a exibição
de imagens que combinam referências contidas no imaginário coletivo, que proporciona realismo à cena exibida e contribui para a consolidação da atenção por parte
do público. Mesclam-se a enunciação enunciva e enunciativa, que apresentamos na
terceira parte do artigo.
“Primeiro de janeiro de 1500. Um jovem português olha para a primeira noite do
século XVI. A estrela polar, guia dos navegantes faz um ângulo de 25˚ com o horizonte. A constelação de Orion está quase afundando no oceano Atlântico. Ele ainda
não sabe mas os astros lhe reservaram um destino incomum. Nesse momento a sete
mil km dali, do outro lado do Atlântico, num lugar chamado Pindorama, brilha a
constelação do Cruzeiro do Sul que lá se chama Pauí-Pódole. Uma jovem índia vê
este outro céu. Ela sabe que as estrelas são as almas dos heróis indígenas que morreram. O que ela não sabe é que também vai se tornar uma heroína. E virar estrela,
lá no céu. Ele se chama Diogo, nome que vem do latim e quer dizer “pessoa educada”. Ela se chama Paraguaçu, que eu tupi significa “mar grande”. Ela é uma princesa mas ele vai tomá-la como uma selvagem. Ele será degredado mas vai se tornar
rei do Brasil. A história dos dois juntos vai virar lenda”.
5
Além de ator Marco Nanini é humorista, produtor e diretor. Iniciou carreira artística em 1965, no teatro. Quatro
anos depois estreou na televisão, suporte comunicativo que lhe faria ser conhecido nacionalmente. Entre seus principais trabalhos na televisão destacam-se os personagens: Odorico Paraguaçu na novela O Bem Amado (que também foi aproveitada pelo cinema) e Lineu, no seriado A grande Família em que interpreta o papel de pai. O referido
programa é uma reedição do seriado exibido na década de 1970. Lineu está no papel desde 2001 e até o momento,
2011, vem sendo exibido semanalmente pela Rede Globo. Cabe registrar a participação de Nanini no cinema, mais
especificamente em O auto da Compadecida, em que interpreta um cangaceiro.
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Dando continuidade e demarcando epílogo da narrativa são exibidas imagens do
planeta terra e da lua, reportando o expectador à fantasia e ao mundo da invenção. O
emprego da computação gráfica6 corrobora para a persuasão, na ligação que viria a se
estabelecer entre o velho e o novo mundo – a imagem do planeta terra, de um cometa,
das estrelas e das personagens principais: Diogo e Paraguaçu que, em espacialidades
distintas, olham para o céu, dando encadeamento à narração proferida.
A narrativa gira em torno de Diogo Álvares, pintor português, papel interpretado
por Selton Mello, que é a personagem chave da trama, não especificamente por seus
feitos mas das ações que sofre dada sua performance constantemente comprometida.
Diogo é sonhador, ingênuo, malandro e conta com a sorte nos momentos de apuro ou
naqueles em que se exige alguma atitude. Estas características são reiteradas nas
principais modulações da personagem: momento em que sua carreira artística é
fadada ao fim, em que se disfarça de mulher na nau dos degredados na tentativa de
ser desembarcado, em sua estada na terra dos papagaios ou novo mundo (Brasil),
também no retorno à Europa e na sua volta ao novo mundo, aclamado pelos franceses, como rei dos Tupinambás. Percebe-se que Diogo faz o que pode para sobreviver.
Em Portugal, a personagem só ganhou algum reconhecimento como pintor após
exibir o retrato da condessa de Sintra. Depois de deixá-la irreconhecível obteve o
prêmio de “Grande Promessa da Pintura Portuguesa” atribuído pela Academia Real.
Foi preciso mentir para se fazer notado. Sua passagem pela cartografia real, como
ilustrador, foi desastrosa porque ele era incapaz de compreender o que lhe era solicitado – para Diogo as baleias que desenhava eram mais importantes que as orientações cartográficas. Pela combinação de ingenuidade e vaidade foi envolvido no
desaparecimento de um mapa – que o levou a ser degredado. No Brasil, sua estada
entre os índios foi determinada por uma série de acontecimentos que o levam a ser
o grande soberano dos Tupinanbás: fugiu para não ser assassinado por Vasco de
Ataíde, fugiu para não ser capturado pelos índios. Depois de introduzido na tribo e
ter desfrutado a “hospitalidade Tupinambá” na companhia de duas índias, fugiu
novamente na eminência de virar refeição e só se salvou por encontrar uma arma
que lhe conferiu poder e reverência por parte dos índios. Mais uma vez Diogo foi
salvo pela sorte. Diogo é incapaz de conduzir a própria vida, deixa-se levar.
Desta breve síntese percebemos a junção de traços que compõem a personagem
e a colocam como ‘metáfora picaresca’ do herói nacional brasileiro em contraponto
ao programa iniciado pela Primeira República7 e sua capacidade em promover uma
eficácia comunicativa.
6
A computação gráfica também foi utilizada em outros momentos, entre eles: na simulação do naufrágio e na chegada das caravelas. Além disso, auxiliou na cenografia e na tomada de cenas externas – reduzindo o orçamento da
produção fílmica.
7
A historiografia brasileira aponta a Primeira República como período que envolve a tomada do poder pelos republicanos, em 1889, até o Golpe Militar ocorrido em 1930. O governo republicano viu na figura do herói a possibilidade
de consolidar o regime político e, ao mesmo tempo, projetar valores nacionais que distanciasse o novo regime do anterior. Tiradentes, personagem de um movimento de revolta, contra a Monarquia portuguesa, foi escolhido para servir
de panteão nacional. Seu nome foi midiatizado primeiro em torno de sua morte. Sua história foi recontada e sua imagem propalada nos mais diversos suportes midiativos do final do Sec. XIX, perpassando o Sec. XX.
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Isotopia e Carnavalização
A colonização, a religiosidade e o trabalho são temas reiterados na narrativa
de Caramurú, a Invenção do Brasil e, por isso, podem ser entendidos como conectores isotópicos, que promovem leiturabilidade e fornecem sentido ao texto fílmico. Se
relacionarmos a respectiva tríade temática ao programa comunicativo promovido
pelo Estado Brasileiro, desde que fora destituída a Monarquia Portuguesa perceberemos que o filme deflagra a impossibilidade da concretização do projeto proposto à
nação – implementação de ordem para a obtenção do progresso8 – dado o ethos do
colonizador e do índio, avesso ao trabalho e à reflexão com vista ao progresso nacional, destituído de qualquer traço heróico.
Em Caramuru, a Invenção do Brasil tanto os portugueses como os franceses
são exibidos como interesseiros e gananciosos – características atribuídas aos
estrangeiros resgatadas por Mário de Andrade, em Macunaíma9. Esse ethos é reiterado pela ação das personagens Vasco de Ataíde e a Marquesa Isabele (papeis destinados a Luis Melo e Débora Bloch) quando a mentira e a trapaça são tomadas
como essenciais para obtenção de sucesso e riqueza – fundamentais para viver na
Corte. Embora caricaturizados, os indígenas são exibidos de forma ambígua: ingênuos e espertalhões. Ora são ludibriados com acordos que os prejudicam, vendemse por quinquilharias, em outros momentos, como são conhecedores da ânsia do
colonizador pelo ouro, valem-se da lenda do El dourado. “Há cinco luas de distância
onde o sol se esconde atrás da montanha faiscante. O chão se cobre de pedras de
luz. Os nossos antepassados ensinaram que são como estrelas caídas”.
Negociando a respeito da exploração do novo mundo posicionam-se mesmo sem
analisar as possíveis conseqüências do que avalizam. Itaparica sabe de sua posição
frágil no caso de guerra contra a permanência do estrangeiro em suas terras. Apresenta-se como chefe, porém, quando o assunto é trabalho simula delegar poder ao seu
genro, Diogo. Vale registrar que Itaparica não tem o trabalho incorporado a sua cultura e exime-se do esforço em realiza-lo. A frase do cacique revela o contexto ao qual
está inserido: “Bom dimais. Ele trabalha (Diogo), você lucra (Vasco) e eu não faço
nada. Pra mim tá tudo certo. Tudinho”. Ao mesmo tempo em que é enganado, o índio
também quer levar vantagem. Em algumas cenas os índios são mostrados comercializando produtos com o estrangeiro, remédios e pulseiras. Em 36 segundos a película mostra Itaparica em seu fazer e deflagra seu ethos.
“Olha a pulserinha! Uma é três, três é dez. Já está acabando! Compra também
remédio do índio, maravilha curativa da floresta, traz força pro marido, felicidade
8
9
“Ordem e Progresso” – dístico da Bandeira Nacional do Brasil.
Mário de Andrade escreveu Macunaíma em 1928. Trata-se de uma das obras mais expressivas do Movimento
Modernista brasileiro. A rapsódia, como foi classificada a obra, coloca em xeque a identidade do brasileiro e também questões econômicas e sociais que alteravam o contexto social, sobretudo da cidade de São Paulo. Com relação ao movimento artístico, vale acrescentar que o Modernismo ganhou reverberação em 1922, com a Semana de
Arte Moderna, ocorrida no Teatro Municipal da cidade de São Paulo.
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pra esposa. Feito da semente mais rara e da raiz mais profunda. É bom pra passar
na cara, é bom pra passar nas costas. Olha o remédio do índio!”
O índio, tal qual o estrangeiro, também queria levar vantagem.
“O terreno é uma belezura! Não tem maremoto, terremoto, furacão, nada disso. Vista
consolidada. Tem praia pras crianças. Cinco mil quilômetros. E a localização? No
meio do caminho para as Índias. Floresta, minério. Lugar para estacionar. Dizem
que pro sul tem até a tal de neve. Olha, eu posso fazer pro senhor um precinho camarada, bem bom mesmo: um espelho. Mas tem que ser espelho do bom!
Estas imagens reiteram o comportamento do cacique. Nas primeiras engana o europeu com uma pedra de ouro. Depois toma
um anel com a promessa de encontrar pedra semelhante.
Percebe-se que a colonização é carnavalizada por exibir-se de modo contrastante com o novo mundo através de oposições que metaforizam o velho e o novo continente: trabalho/preguiça ou monogamia/poligamia. A religião é vinculada ao
Estado e aos interesses políticos coloniais e a ingenuidade das pessoas que nela
crêem. No filme, todas as personagens que trabalham são exibidas como gananciosas e/ou vaidosas – os que não tem o trabalho incorporado a sua cultura, como os
índios – são exibidos como preguiçosos, malandros e aproveitadores.
O índio também é mostrado como paráfrase carnavalizada do herói nacional
mais antigo, tanto em seu fazer como em sua figuratividade. O figurino e a maquiagem também dão o tom do processo de inversão e, sobretudo de carnavalização das
personagens em conseqüência do estranhamento10 produzido pelo contraste entre
o que é mostrado e as referencias indígenas contidas no imaginário social.
10
Vale elucidar que o estranhamento pode ser entendido como a produção de uma inferência que permite ler o que
está sendo apontado, porém numa percepção mais difícil, porque não oferece os habituais condicionamentos da percepção receptiva. Ferrara (1986: 35) fala de forma objetiva sobre o estranhamento e levando em conta o pensamento
de Chklóvski apresenta uma base sintética: “Estranhar consiste em construir, através da linguagem, circunstancias singulares de recepção”.
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Itaparica, com o chapéu, escancara o processo de carnavalização. A
borboleta gigante, que estaria dentro da oca, só se justifica como
índice da carnavalização contida/expressa na cena.
De Degredado a Rei: a enunciação fílmica
A trama que envolve o descobrimento do Brasil e a ascensão de Diogo como Rei
do Novo Mundo é sustentada pela enunciação. Em Caramuru, A Invenção do Brasil
o público é envolvido a pari passo por uma atmosfera persuasiva desde o início, por
conta da enunciação que se descortina nos primeiros minutos do filme. A enunciação enunciva se entrelaça com a enunciação enunciativa configurando um espesso
fio condutor indissociável da trama, demarcada pela conjunção, nem sempre de
medidas iguais, de objetividade e subjetividade dada a projeção das imagens e profusão musical que se sobrepõem ao eixo narrativo.
A enunciação corrobora para a consolidação da persuasão da narrativa sobre o
público. A visita da Marquesa de Sevigni, Isabele Davezq11 à casa de Diogo serve de
ilustração. Em menos de três minutos, ela manipula o jovem e o convence, através da
sedução, a infringir a lei e retirar um mapa da cartografia com o pretexto de desenhála. A enunciação enunciativa é identificada na fala proferida pela Marquesa enquanto
que a enunciação enunciva soma-se à fala e à performance de Diogo, exprimindo e
dando concretude aos desenhos por ele imaginados. As duas imagens abaixo são exibidas ao público de modo a corroborar a enunciação proferida pelo pintor e ilustrar
o modo como iria retratá-la, associando-a ao grande assunto da época: as navegações.
Os desenhos denotam a subjetividade das cenas e fomentam o processo persuasivo em curso.
11
A personagem Marquesa de Sevigni foi interpretada pela atriz Débora Bloch.
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Soma-se a subjetividade contida em Caramuru outro elemento que ajuda a dar
densidade às cenas e atua como condutor da trama: o som. Nesta mesma sequência
que estamos analisando percebemos que logo depois da Marquesa bater na porta da
casa de Diogo12, e enquanto a porta é aberta, a produção insere uma música que
dura pouco mais de sete segundos cooperando com o contexto e com a expressão
envolvente feita pela atriz, explicitamente simulada e simuladora13.
Isabele se arruma e simula surpresa em ver Diogo.
As imagens reiteram a representação de Isabele
diante de Diogo ao fingir interesse pela sua arte.
12
I (Isabele) – Diogo Álvares eu vim me pôr a disposição de seu gênio.
D (Diogo) – Deve haver algum engano.
I – Eu vi o retrato que você fez da condessa de Sintra, um verdadeiro milagre da imaginação. Quase não a reconheci
com cabelos. Se foi capaz de criar beleza a partir daquele horror o que não será capaz de criar se eu lhe servir de
modelo?
D – Minha senhora, melhorar o que é feio é oficio dos artistas, mas uma beleza como a sua só Deus é capaz de produzir.
I – Infelizmente a beleza é passageira. Não me negue o privilégio de ser imortalizada pela sua arte.
D – Eu é que vou ficar conhecido como o autor do retrato de...
I – Isabele Davezac, marquesa de Sevigni. Quero levá-lo ao mais alto píncaro da glória. Estou disposta a fazer
todos os sacrifícios. Pousarei a você inteiramente nua.
D – Ah, Dona Isabele não vou lhe decepcionar. Farei a senhora encarnada em Vênus a deusa grega da beleza. Ela
surge inteiramente nua numa concha do mar, Zéfir o vento do oeste sopra seus longos cabelos e uma ninfa lhe
estende um manto florido que cobrirá a sua magnífica nudez.
I – Belíssimo! Você deve retratar o seu século. Sua Glória deve estar associada às de Portugal. O quadro tem que
abordar o grande tema de hoje.
D – Os descobrimentos!
I – Exatamente.
D – O corpo descoberto de mulher comparado com a terra também despida e finalmente revelada pelas grandes
navegações.
I – E os dois, a terra e o meu corpo revelados aos homens por um artista genial.
D – Será minha obra prima, um quadro para a galeria do Rei.
I – Não, um quadro é pouco. Uma obra dessa magnitude não pode ficar pegando poeira entre marinhas e madonas.
Que a sua obra se imortalize no próprio mapa de Pedro Álvares Cabral”.
13
Na partida da nau de degredados verifica-se outro momento em que a música atua como elemento subjetivo. O
background que embala a despedida e juras de amor entre Diogo e Isabele é interrompida pela chegada de Vasco
que ao apoderar-se da rosa destinada a Diogo diz: “Uma rosa, uma dama e uma partida. Cheire-a com gosto. Aonde
vais elas não existem.... Despeça-se de Portugal!”. Outra música é inserida gerando tensão.
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Em várias passagens, essa enunciação mista é enfatizada na seqüência de incidentes que condicionam a vida de Diogo na narrativa: seus encontros não previstos
com Vasco de Ataíde, suas passagens com Isabele, com as índias Paraguaçu e
Moema, e os momentos densos com Itaparica. Afinal, a personagem sobrevive a um
naufrágio, livra-se das perseguições por parte de Vasco e também, por duas vezes,
dos índios. A enunciação também reitera a fragilidade de Diogo que, em momentos
de apuros, tem desmontada toda a simulação de coragem e valentia que projeta na
tentativa de se fazer aceito. Quando informado que sua carne iria servir de refeição
aos índios a personagem altera a trama enunciativa, passando para a esfera enunciva, apresentando argumento inverso para escapar da situação que lhe era imposta,
para isso grita: “... eu sou um covarde. Vou contaminar a vossa tribo. Seus guerrilheiros vão virar uns poltrões depois não digam que eu não avisei”.
Outro momento em que as enunciações são alteradas passando do eixo enuncivo
para o enunciativo refere-se à transformação da personagem que de caça passa a ser
visto como herói Caramurú “Deus do Trovão”. Diogo, em fuga, cai e, ao ver-se completamente sem alternativa reza: “Santana que pariu Maria, que pariu Jesus Cristo.
Assim como essas palavras são certas a divina providencia há de me estender sua
mão”. Ao olhar para a árvore ao seu lado depara com uma arma presa no tronco.
Desesperado, demonstrando falta de intimidade com o manejo do objeto em mãos,
atira sem determinar um alvo. Neste instante, marcado subjetivamente pela suspensão da trilha sonora que demarcava a perseguição e inserção do silêncio para acentuar
o estrondo da arma e a revoada de pássaros, Itaparica, o cacique, com uma ave em
mãos questiona: “Mas que pipoco é esse de matar urubu?” Diogo responde: “Não seria
uma arara”. Este é o momento revelador não só para os Tupinambás que crêem que
ele seja uma espécie de salvador, mas para Diogo que, atônito, dá-se conta do poder
diante dos índios, obtido por conta da arma. Sua vida foi poupada pela crença dos
índios de que Diogo era Caramuru, capaz, portanto, de desenvolver outras armas.
Na seqüência que acabamos de descrever a música é importantíssima enquanto
fator persuasivo e, ao mesmo tempo, determinante para registrar a performance dos
índios, que praticam a ação, e de Diogo que sofre com a perseguição. Além disso, a
sonoplastia14 empregada pontua o grande momento de mudança do eixo enunciativo e da transformação da personagem protagonista: de caça Diogo passa a ser rei
da tribo, “o maioral dos tupinambás”.
Imagens que ilustram a de transformação da personagem – de degredado e caça para Caramuru.
14
Cabe salientar que a música também demarca e identifica outras passagens de Diogo: seus encontros com Isabele,
Diogo, com algoz Vasco de Ataíde e com Paraguaçú.
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Depois de ser chamado de Caramurú e ganhar mais regalias o protagonista é
questionado quanto a produção dos “pipocos para a guerra”. O novo herói improvisa
justificativa: “Infelizmente, os deuses não tem sido favoráveis”. Mesmo tendo adquirido respeito entre os índios e portando-se aparentemente como um guerreiro, não
dá conta de manter a postura de líder dos tupinambás quando informado a respeito
da presença de várias embarcações. Ao reencontrar Vasco de Ataíde, que voltava ao
novo mundo, desta vez com uma embarcação francesa, ajoelha-se e clama pela vida:
“Senhor Vasco, perdoe esse inocente que lhe suplica pela vida... Sou apenas um
degredado excelência”.
Vasco de Ataíde volta não mais representando Portugal mas sim o governo Francês. As imagens foram extraídas da chegada de Vasco e do encontro com Diogo.
Verificamos que a enunciação, ao apresentar a performance de Diogo, exprime,
progressivamente, um ethos frágil tendo em vista as características imputadas ao
herói republicano. Entretanto, à medida que esta fragilidade é reiterada nas adversidades vividas pela personagem, é expressa critica aos mais variados contextos: ao
mundo das artes, à hipocrisia dos costumes, à ambição dos colonizadores e seu modo
de vida e também ao novo mundo – especificamente ao índio que deixa-se dominar
e seduzir pelo europeu.
A escolha vocabular e a disposição dos intertextos extraídos da cultura nacional e também de obras difundidas pela mídia fazem parte da enunciação e corroboram com a adesão do público em relação à obra fílmica. Certamente, não houve
intenção por parte dos diretores em aproximar a fala das personagens à época narrada. Afinal, a opção de adotar a Língua Portuguesa, tal qual era falada, associada
ao Tupy Guarani, possivelmente iria requerer bem mais do que tempo de pesquisa
e esforço dos atores. Seria necessário legendar o filme, o que exigiria mais atenção
do público. Neste aspecto, verifica-se também a inversão, pois os índios são apresentados falando o idioma do colonizador, embora sejam singularizados por apresentar vocabulário repleto de expressões meticulosamente escolhidas na cultura
nacional, que contempla regionalismos, além de diversos sotaques – que simbolizariam, nos valendo de Darci Ribeiro (1996), os vários brasis. O sotaque das personagens, somado a articulação vocabular, é que os diferenciam.
Neste ponto retomamos a obra de Mário de Andrade. De Macunaíma foram
extraídas várias expressões reiteradas na performance de seu herói. As palavras brin-
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car e festinhas foram empregadas em Caramuru, a Invenção do Brasil no contexto
relacionado à sensualidade. Na realidade, a influência de Macunaíma é tamanha que
a obra pode ser entendida como um grande intertexto capaz de auxiliar toda a trama
fílmica. Já mencionamos o comportamento do protagonista e dos índios que se assemelham à personagem andradiana, intitulada herói de nossa gente.
Os conflitos e a malandragem apresentada por Diogo ganham expressão quando
associados a elementos/textos de conhecimento do público, cuidadosamente inseridos na narrativa. Diogo vale-se de uma brincadeira infantil que entoa como uma
prece às avessas na tentativa de livrar-se da situação que se encontrava – na eminência de escolher uma das índias para si. “Minha mãe mandou eu escolher essa
daqui, mas como eu sou teimoso escolho essa daqui”. Não dando conta vai invocar
Camões – como explicamos no parágrafo a seguir.
O soneto 11 de Luís Vaz de Camões, originado do texto bíblico Coríntios 13,
conhecido do público dada sua difusão literária e também pelo sucesso do poema
canção Monte Castelo, que se vale dos versos do poeta português, cantado por Renato
Russo, líder do grupo de rock Legião Urbana15, foi empregado em dois momentos. Primeiro Diogo utiliza alguns versos para explicar o significado da palavra amor à Paraguaçu quando a conhece, logo depois de chegar ao “novo mundo”. “O amor é fogo
que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer”. Depois, a personagem vale-se do poema na tentativa de justificar seus sentimentos no drama amoroso que vive, ao dar-se conta da
impossibilidade de ter o amor das duas índias só para si. Ele profere três estrofes que
dão continuidade ao texto poético anteriormente apresentado: “O amor é estar preso
por vontade/ É servir a quem vence o vencedor/ é ter com quem nos mata lealdade”,
para então emitir sua conclusão: “O amor é uma desgraça”.
Esse “jogo de cintura” da personagem revela sua malandragem, intrínseca em
seu fazer, também condicionante para a inversão apresentada pela enunciação, que
engloba o processo de transmediação – migração das linguagens literária, televisiva
e cinematográfica – enaltecendo as características de carnavalização que, associadas
aos conectores isotópicos, reforçam o “mundo ao revés”. Desta forma podemos dizer
que inversão constitui-se num procedimento de linguagem bem como a mediação do
herói e sua comunicabilidade que colocam em cena o descobrimento oficioso do país
apresentado “ao revés” do que o Estado propunha, apresenta-se a “paródia de um
descobrimento ordinário”, com um herói burlesco: Caramuru.
15
A banda de rock Legião Urbana foi criada em 1982 e permaneceu no cenário musical até 1996, com a morte de
Renato Russo, líder e vocalista do grupo. Neste período foram lançados 16 álbuns.
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ANUÁRIO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO LUSÓFONA | 2011
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