missa da ceia do senhor 2010

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MISSA DA CEIA DO SENHOR
O futuro da Igreja, numa imensa adoração eucarística…
Caríssimos irmãos e irmãs
Reunidos nesta Missa Vespertina da Ceia do Senhor, dissemos já, na
oração colecta, o mais importante do que nos traz aqui. Vale a pena
recordá-la: “Senhor nosso Deus, que nos reunistes para celebrar a Ceia
santíssima em que o Vosso Filho Unigénito, antes de se entregar à morte,
confiou à Igreja o sacrifício da nova e eterna aliança, fazei que recebamos,
neste sagrado banquete, a plenitude da caridade e da vida”.
Aqui está tudo quanto deve preencher estes solenes momentos: a
memória viva da Última Ceia – pois não haverá outra – e o acolhimento
pleno da caridade e da vida que Cristo nos oferece.
Sobre a definitividade desta Ceia, é conhecida a recomendação de
Teresa de Calcutá, aos sacerdotes e a todos: “Celebra esta Missa como se
fosse a primeira, celebra esta Missa como se fosse a última, celebra esta
Missa como se fosse a única”. Nela se concentra tudo, como sacramento da
Cruz: um Deus que em Cristo de entrega, Deus humanado, para fazer de
nós humanidade divinizada; a absoluta aliança entre Deus e o homem, que,
pessoalmente realizada em Cristo, sacramentalmente nos é oferecida agora;
a nossa incorporação em tal realidade, por nos convertermos a ela e ela nos
converter em seus sinais no mundo.
Pedimos, por fim e em resumo, tudo quanto a Eucaristia oferece, ou
seja, “a plenitude da caridade e da paz”.
Meditemos um pouco mais sobre o que enunciámos e pedimos. Para
isso aqui estamos e com isso mesmo vamos ao Cenáculo e ao Gólgota.
Como crentes sinceros e agradecidos, mendigos do verdadeiro amor do Pai,
que nos oferece Cristo; como do verdadeiro amor de Cristo, que por nós se
oferece ao Pai, vida por vida, arco existencial completo e absoluto, no
ímpeto do Espírito.
Há, antes de mais e sempre, a oferta de Cristo, do Pai provinda e pelo
próprio consentida, no cálice que aceitou beber. É mesmo o núcleo da
tradição cristã, assim transmitida por Paulo, como ele já a recebera
também: “Irmãos: Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o
Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças,
partiu-o e disse: ‘Isto é o Meu Corpo, entregue por vós…”.
De Cristo morto e entregue… Duma morte atroz e iníqua, infligida a
um jovem de trinta e poucos anos, que tanto bem fizera e coisas
maravilhosas dissera, ainda que exigentes e fortes. Salva-nos o facto dessa
morte ser única, ainda que concentrando todas as mortes iníquas de
inocentes sem conta: única por esse homem ser o próprio Deus incarnado,
Deus Filho na nossa humanidade, trazendo a toda a debilidade humana a
inteira caridade divina. Na Cruz assumida e sofrida, Deus Filho volta a
Deus Pai devolvendo-Lhe o Espírito. E aí mesmo, onde se concentra toda a
cruz do mundo, tudo recomeça também: por Ele, que nos eleva, e para nós,
a quem se oferece. É precisamente este corpo entregue que a Eucaristia
celebra e partilha.
De um Deus entregue, vivemos nós. Não sei se alguma vez o
conseguiremos compreender e aceitar plenamente, tão imensa é esta
verdade. Verdade difícil, por contrariar o que nos é mais espontâneo, ou
seja, a nossa tendência para partirmos de nós, sempre de nós, teimosamente
de nós. Na gramática que usamos, insistimos na primeira pessoa: “Eu
quero, eu desejo, eu faço ou hei-de fazer…”. Os outros vêm a seguir, como
companhia ou concorrência. Na gramática divina, cada Um só é o que é na
referência ao Outro: O Pai só o é por gerar o Filho; o Filho, por ser gerado
pelo Pai; o Espírito por proceder dos Dois.
Mas nós temos enorme dificuldade em ser assim. Mesmo com as
melhores intenções, é de nós que partimos geralmente, para realizar
projectos de curto ou longo prazo. É verdade que ainda repetimos “até
amanhã, se Deus quiser”, mas é quase só por dizer e com pouca
disponibilidade para que seja diferente do que desejamos ou previmos.
Recordo a propósito, um trecho da Carta de Tiago, muito expressivo e
realista: “E agora, vós dizeis: ‘Hoje ou amanhã iremos a tal cidade,
passaremos ali um ano, faremos negócios e ganharemos bom dinheiro. Vós,
que nem sequer sabeis o que será a vossa vida no dia de amanhã! O que é,
afinal, a vossa vida? Sois fumo que aparece por um instante e logo a seguir
se desfaz! Em vez disso, deveis dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e
faremos isto ou aquilo’” (Tg 4, 13-15).
É um incisivo repto a viver eucaristicamente, de Cristo e para Cristo,
segundo o desígnio de Deus Pai. São Paulo sentia-o vivamente, ao resumirse com estas palavras, quais rasgos de alma: “Sim, o amor de Cristo nos
absorve completamente, ao pensar que um só morreu por todos e, portanto,
todos morreram. Ele morreu por todos e, portanto, todos morreram. Ele
morreu por todos a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si
mesmos, mas para Aquele que por eles ressuscitou” (2 Cor 5, 14-15).
Viver de Cristo e para Cristo, vivendo com Ele do Pai e para o Pai,
na união do Espírito. Bastaram trinta e poucos anos a Jesus para o
demonstrar na terra. Segundo São Lucas, a primeira frase de Jesus
adolescente, já no templo de Jerusalém, é responder a Maria e a José: “Por
que me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?” (Lc
2, 49). E a última, já no alto do Gólgota, novo templo do seu corpo
entregue, é, como lembramos: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”
(Lc 23, 46).
Irmãos e irmãs, repitamos ainda uma vez a Colecta desta Missa da
Ceia do Senhor: “Fazei, Senhor, que recebamos neste sagrado banquete do
amor do Vosso Filho a plenitude da caridade e da vida!”. Assim
precisamos, na verdade, agora e sempre mais. Não faltam dificuldades na
vida das famílias, da sociedade e mesmo da nossa Igreja. Recebamos de
Cristo a oferta de si próprio, caridade e vida das nossas vidas, como na
Eucaristia acontece. Recebamo-Lo e preparemo-nos para O receber com
maior fidelidade e propósito, com muito maior entrega e adesão ao seu
amor.
Não há outra fonte onde beber, outra força a buscar, outra luz a
receber. Dizemo-lo tantas vezes, sejamos mais coerentes agora. Na
exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia
fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, o Papa Bento XVI liga, com
toda a pertinência, qualquer ressurgimento da Igreja à atenção eucarística
retomada: “O sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial;
graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo! Quanto mais viva for
a fé eucarística no povo de Deus, tanto mais profunda será a sua
participação na vida eclesial por meio duma adesão convicta à missão que
Cristo confiou aos seus discípulos. Testemunha-o a própria história da
Igreja: toda a grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da
fé na presença eucarística do Senhor no meio do seu povo” (SC, nº 6).
São programáticas estas palavras do Sucessor de Pedro, que presidirá
à Eucaristia na nossa cidade, daqui a mês e meio. Programáticas para a
Igreja que queremos eucaristicamente renovada em missão, recebendo a
Cristo para O levar ao mundo.
São também motivo de revisão de vida, pessoal e pastoralmente
falando. Porque surgem decerto as perguntas: - Que centralidade tem a
Eucaristia nos nossos Domingos e nos dias que se seguem? – Que tempo
dedicamos à adoração eucarística, quer em solene exposição, quer em
oração particular diante do sacrário? – Com que respeito nos comportamos
nos nossos templos, diante do Santíssimo Sacramento neles guardado?
Na verdade, irmãos e irmãs, o futuro da Igreja só pode estar numa
imensa adoração eucarística, pois ela vive do que lhe foi assinalado na Ceia
e dado na Cruz. E a própria missão – como a que queremos redobrar este
ano – é da Eucaristia que nasce e é na sua adoração que se aviva, como
bom contágio da caridade de Cristo: como quem alarga uma convivência,
como quem alastra a comunhão.
Oiçamos a este propósito outro trecho da mesma exortação
apostólica de Bento XVI: “A união com Cristo, que se realiza no
sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: a
‘mística’ do sacramento tem um carácter social, porque […] a união com
Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele se
entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente
unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar Seus” (SC, nº 89).
E, dirigindo-se a oferta de Cristo à totalidade da indigência humana,
ninguém ficará de fora da projecção eucarística, através daqueles que a
recebem e transmitem a Sua imensa caridade partilhada.
Estamos assim no âmago das últimas coisas, concentradas e
entregues na Cruz do Senhor, eucaristicamente celebrada e acolhida. Nela
está toda a nossa glória, a atracção universal e a alegria dos corações. Total
era para São João Maria Vianney, magnífico inspirador do presente Ano
Sacerdotal, que não pode ficar sem citação, a concluir esta homilia. É um
belo testemunho de quem o viu e ouviu, soando assim: “‘No último ano de
vida […] falou-nos do amor de Deus e pôs-se a chorar’. Começava, às
vezes, no púlpito, a tratar de diferentes matérias, mas sempre se voltava
para Nosso Senhor, presente na Eucaristia. ‘Esse atractivo pela presença
real aumentou de modo extraordinário no fim da sua vida… Interrompia a
pregação e chorava. O seu rosto parecia resplandecer e só se ouviam
exclamações de amor’” (Francis Trochu, O Cura d’Ars, Braga, 1987,
p.608-609).
Estava no fim da sua vida, sintetizando o que ela sempre fora, desde
a primeira comunhão. Estejamos com ele agora, no mesmo Cristo
eucarístico, coração da Igreja e da missão.
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 1 de Abril de 2010
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