Ceia do Senhor

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HOMILIA DA CEIA DO SENHOR 2012 – D. Manuel Clemente
- O mundo, que Cristo salva pela oferta de si, espera-nos agora como sinais vivos
dessa oferta em nós!
“O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o
e disse: ‘Isto é o meu corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim’”.
Amados irmãos: Iniciemos o Tríduo Pascal retomando-lhe o significado e o verdadeiro
fruto. Assim será, de facto, ao evocarmos a Ceia do Senhor, em que Ele mesmo
assinalou tudo quanto fizera e fará por nós, ou seja, a entrega da própria vida; vida que
comungaremos também, para que seja substância duma humanidade nova, reconciliada
com Deus e em si mesma.
A lição deste facto é tão imensa que, sendo apenas um, o temos de reapropriar muitas
vezes, em reconhecimento profundo e ação de graças sempre. Permiti-me relembrar o
sábio conselho de Teresa de Calcutá aos sacerdotes: “Celebra esta Missa como se fosse
a primeira; celebra esta Missa como se fosse a última; celebra esta Missa como se fosse
a única”.
E não só para cada um, individualmente, a Santa Missa é assim. Para todos nós também
- enquanto Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo -, ela marca o
ritmo da vida comunitária e representa o ápice do que devemos ser. Para nós, cristãos, a
Santa Missa é a definição da vida, de Deus recebida na entrega de Cristo; ao Pai
retribuída e em Cristo sempre. A doxologia final da oração eucarística, há de incluir-nos
e ultimar-nos cada vez mais, num infindo Ámen: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a
Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória,
agora e para sempre!”.
- Pois não nos há de admirar, nesta hora vespertina que Jesus escolheu, que sejam tantos
pelo mundo além a celebrar a sua Ceia para lhe herdar a Páscoa, a “nova e eterna
aliança” no seu corpo e sangue – quer dizer, na pessoa viva de Cristo Jesus, que por nós
e a nós se entrega?
E isto mesmo acontecendo “na unidade do Espírito Santo”, pois só Deus nos converte a
Deus e atrai a Cristo: “Ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido pelo Pai”
(Jo 6, 65). É o Espírito a congregar-nos aqui, em torno da Ceia do Senhor: percebamolo melhor e agradeçamos muito.
Isto mesmo vivemos e celebramos, principalmente agora e geralmente pelos dias. Algo
podemos dizer do seu porquê, mas só Deus realmente Se conhece e determina, no que
gratuitamente nos oferece. Quanto a nós, acolhamos e imitemos a sua obra, seguindo a
exortação apostólica: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos bem amados, e
procedei com amor, como também Cristo nos amou e se entregou a Deus por nós como
oferta e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).
“Isto é o meu corpo, entregue por vós”, assim ouvimos. E em tão poucas palavras
desvenda-se uma realidade importante e oportuna. Sobre o que seja “corpo”, e um corpo
entregue.
Concordaremos nós, amados irmãos e irmãs, que, se há palavras que hoje se banalizam
e esvaziam, uma delas é esta do “corpo”. E o pior que sucede é reduzir-se “corpo” a
objeto, falando-se dele como mera coisa. Assim referimos o nosso corpo como quem o
goza, suporta ou sofre; assim o corpo dos outros, qualificando-lhe a medida ou a figura
e secundarizando-lhe o significado; assim o tomamos como simples alvo de cuidado ou
estética. Ouvem-se mesmo frases como esta: “O corpo é meu, faço dele o que quiser”…
Mas tal degradação do corpo, de verdadeira substância a mero objeto, é efetivamente
um grave despiste antropológico e absolutamente não cristão. A deriva é antiga e nem
sempre advertida. Liga-se a um espiritualismo desencarnado, que deprecia a matéria e
se fixa numa pseudo “alma”, que só por si valeria ou a seu bel prazer funcionasse, com
ambíguo desprezo dum “corpo” que carregava ou usava. Daqui tanto nasceram
ascetismos dúbios como laxismos extremos, hostis ou indiferentes à corporeidade que
realmente temos e somos. Algo destes desvios pôde verificar-se entre nós; mas não em
Cristo, nem no cristianismo autêntico, que só dele ganha legitimidade.
É verdade que na alusão evangélica, tornada fórmula sacramental, Cristo diz “isto é o
meu corpo”, como depois dirá “este cálice é o da nova aliança no meu sangue”. Mas
qualquer biblista nos explicará que, falando de corpo e sangue, Jesus refere, na
linguagem que usou, o que nós podemos traduzir por pessoa ou vida, ou seja, Ele
mesmo e não algo de exterior ou indiferente a si. E também Bento XVI esclarece, a
propósito: “Quando Jesus fala do seu corpo, obviamente que este não quer dizer o corpo
distinto da alma e do espírito, mas toda a pessoa em carne e osso […]. Assim pode
instituir agora o sacramento em que se torna o grão de trigo que morre e em que, através
dos tempos, se distribui a si mesmo aos homens na verdadeira multiplicação dos pães”
(Jesus de Nazaré. Parte II, Cascais: Principia 2011, p. 112).
Por isso, evocar e receber a Ceia do Senhor não pode ser para nenhum de nós algo de
ocasional ou periférico, antes requer coerência de vida e totalidade de entrega, a Deus e
aos outros: receber dignamente a Cristo, para O comunicar correta e diligentemente aos
outros.
Estamos em Eucaristia e na Última Ceia que a assinalou. Ato pessoalíssimo de Cristo,
que assim mesmo resumiu a sua vida como entrega, ao Pai e a nós, ao Pai por nós todos.
Esta é a aliança, insubstituível porque total, em que n’ Ele somos refeitos, como filhos
de Deus e oferta ao mundo. Nós mesmos, essenciais e sempre; não alguma coisa ou
certos momentos, mas integrais e plenos, duma vez por todas. - O mundo que Cristo
salva pela oferta de si, espera-nos agora como sinais vivos dessa oferta em nós!
Espera, ansiosamente espera, incluindo-se aqui o que podemos considerar a dimensão
social da Eucaristia, hoje particularmente requerida. Já o escreveu Bento XVI, com
grande persuasão: “… as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem
consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a
Eucaristia impele todo o que acredita n’Ele a fazer-se ‘pão repartido’ para os outros e,
consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu
na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda
hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: ‘Dai-lhes vós de
comer’ (Mt 14, 16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a
Jesus, pão repartido para a vida do mundo” (Sacramentum Caritatis, 88).
Para que tal suceda, também nós havemos de redescobrir e incentivar, na vida própria e
da Igreja de todos, aquilo a que poderemos chamar a “incorporação” de Cristo e a
consequência dela. Compreendamos sempre mais e melhor que a repetida “memória”
que fazemos da Ceia do Senhor se concretiza na permeabilidade crescente que Ele
ganha em nós, para poder prosseguir a sua entrega por todos. Falamos correntemente de
vida “cristã”; mas com mais propriedade falaríamos de vida de Cristo em nós, com geral
proveito e benefício.
Importa aprofundar nas nossas vidas a consciência que Paulo tinha da sua, desde que o
Ressuscitado o agregara à sua Páscoa e à missão evangélica. Consciência manifestada
em frases como esta, aos coríntios: “Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus,
para que também a vida de Jesus seja manifestada no nosso corpo” (2 Cor 4, 10). Ou
esta outra, aos gálatas: “Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é
Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de
Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2, 20). Paulo sabe-se de
Cristo e morada do seu Espírito, em despossessão completa de si próprio. E assim nos
quer a nós: “Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, […] e que vós
já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no
vosso corpo” (1 Cor 6, 19-20). E finalmente, na mais alargada das visões: “Sim, Ele
[Deus Pai] tudo submeteu a seus pés [de Cristo] e deu-o, como cabeça que tudo domina,
à Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que tudo preenche em todos” (Ef 1, 2223). Poderíamos porventura dizer que, ainda mais do que O comungarmos a Ele, é
Cristo que nos “comunga” a nós, quando O aceitamos como vida das nossas vidas, para
através de nós se expandir, precisamente como Corpo de Deus no mundo.
Por isso mesmo a Missa se prolonga em missão, porque, uma vez oferecida a Deus, é
logo remetida ao mundo, como expressão constante dum amor que nos cria e recria em
Cristo. Daí também que quem recebe e comunga dignamente a Cristo, lhe prolonga
necessariamente a atitude, como o lava-pés que a seguir repetiremos, sinalizando mil
gestos da caridade de Cristo, em nós e através de nós, para chegar a todos,
especialmente aos pés mais cansados e às vidas mais sofridas. Daí que o Evangelho
escutado concluísse com uma grande exigência: “Compreendeis o que vos fiz? Vós
chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se Eu, que sou Mestre e
Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o
exemplo, para que, assim como Eu vos fiz, vós façais também”.
Recolhamos então a oferta de Cristo, Recolhamo-la com inteira devoção e urgência
máxima. A memória viva do que fez por nós continua no que agora quer oferecer a
todos. E através de nós, indispensavelmente.
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 5 de Abril de 2012
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