(+)-Calanolida A, um promissor produto natural no combate à

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121/425 Microbiologia – Pesquisa
(+)-Calanolida A, um promissor produto natural
no combate à replicação do vírus HIV e da bactéria
Mycobacterium tuberculosis
(+)-Calanolide A, a promising natural product against HIV
and Mycobacterium tuberculosis replication
Marcus V.N. de Souza1a; Samir A. Carvalho2a; Raoni S.B. Gonçalves3a; Emerson T. da Silva4a;
Carlos R. Kaiser5b & Alessandra C. Pinheiro2a
RESUMO – Atualmente, a tuberculose (TB) continua sendo um grave problema de saúde pública mundial.
Esta doença contagiosa é a causa mais comum de morbidade e uma das principais causas de morte em
pessoas vivendo com HIV, resultando na morte de um a cada três pacientes. De acordo com as estatísticas,
estima-se que, aproximadamente de 10 a 12 milhões de indivíduos estejam co-infectados com a bactéria
Mycobacterium tuberculosis e o vírus HIV. Adicionalmente, pacientes que vivem com AIDS e estão
contaminados com TB na sua forma latente possuem cerca de 30 vezes mais chances de desenvolverem
tuberculose em sua forma ativa, do que em pessoas sadias. Devido ao alto impacto da TB/AIDS em nossos
dias, necessita-se urgentemente de novos fármacos e estratégias no combate a essas duas doenças. Os
produtos naturais apresentam-se como uma grande versatilidade na oferta de diversas substâncias bioativas,
sendo que, em alguns casos, propiciam a descoberta de importantes fármacos que desempenham um
crucial papel no tratamento de diversas doenças humanas. Considerando a importância dos produtos
naturais no tratamento de diversas doenças, o objetivo deste artigo é relatar a (+)-calanolida A, promissor
produto natural capaz de atuar conjuntamente na inibição da replicação do vírus HIV e da bactéria M.
tuberculosis.
PALAVRAS-CHAVE – Tuberculose, HIV, (+)-Calanolida A.
SUMMARY – Nowadays, tuberculosis (TB) is becoming again, a world-wide problem. This contagious
disease is one of the most common morbidity and one of the leading mortality causes in people who living
with AIDS/HIV resulting in one died from three patients. According an estimate, nearly 10-12 million
people are co-infected with Mycobacterium tuberculosis and HIV. In addition, patients living with AIDS
and contaminated with latent TB gets 30 times more to develop active TB than no infected patients. Due
to the high impact of TB-AIDS nowadays, are needed urgently new drugs and strategies to fight efficiently against these two diseases. The natural products present as great versatility in the provision of various
substances bioactive although, in some cases, permit the discovery of important drugs that play a crucial
role in the treatment of many human diseases. Considering that, the aim of this article is to highlight
(+)-calanolide A, a promising natural product active against both, HIV replication and the bacterial M.
tuberculosis.
KEYWORDS – Tuberculosis, HIV, (+)-Calanolide A.
INTRODUÇÃO
A
tuberculose (TB) e a AIDS (Acquired Immuno
Deficiency Syndrome) são duas doenças infectocontagiosas que mudaram a história da humanidade,
sendo em nosso século dois graves problemas de saúde
pública mundial, responsáveis pela morte de milhões
de pessoas a cada ano, prejudicando o desenvolvimento econômico e social de diversas nações.
Apesar de apresentarem agentes etiológicos diferentes, a tuberculose causada pela bactéria Myco-
bacterium tuberculosis e a AIDS pelo vírus HIV (Human
Immunodeficiency Vírus), vírus da família dos retrovírus
(composto de ARN), essas doenças estão intimamente
relacionadas1. Por exemplo, a tuberculose, que na
década de 1970 e 1980 acreditava-se que seria uma
doença erradicada, ressurgiu, tendo como um dos responsáveis2, a AIDS, doença reconhecida pelo CDC
(Centers for Disease Control and Prevention - Centro
de Prevenção e Controle de Doenças), em Atlanta, EUA,
em 1981.
Devido ao fato do vírus HIV comprometer, debilitar
Recebido em 11/11/2007
Doutor em Síntese Orgânica/Université/Paris/XI; 2Doutorando em Síntese Orgânica/UFRJ/RJ
4
Graduando em Química /UFRJ/RJ; Doutor em Síntese Orgânica/UFRJ/RJ; 5Doutor em Química Orgânica/UFRJ/RJ
a
Instituto de Tecnologia em Fármacos-Far-Manguinhos
Rua Sizenando Nabuco, 100 - Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ - 21041-250
b
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, Instituto de Química
Av. Brigadeiro Tromposwski, s/n, Ilha do Fundão - Rio de Janeiro/RJ – Brasil - 21941-590
1
3
Rev. Bras. Farm., 89(2): 125-130, 2008
125
O
O
O 5
7
O
HO
B
4
O
N
8
O
3
O
Cl
A
9 O
O
1
C
2
OH
O
10
11
3-[(3,4 - dicloro) - benzilidenoamino]cumarina
5,7-dihidroxi-4-metilcumarina
OH
(+) - Calanolida A
FIG. 1 - Estrutura da (+)-calanolida A.
FIG. 2 - Anel 1,2 benzopirona,
esqueleto básico encontrado na
estrutura das cumarinas.
e descoordenar o sistema imunológico, o organismo
infectado se torna sem defesa contra invasores externos
e internos, como bactérias, fungos, protozoários, outros
vírus, parasitas e contra células cancerígenas.
A tuberculose é uma das principais co-infecções em
pacientes HIV positivos, tendo 30 vezes mais chances
de se desenvolver nesses pacientes do que em uma
pessoa sadia, tornando-se a causa mais comum de mortes em pacientes portadores do vírus HIV: um a cada
três pacientes. Estatísticas indicam que, globalmente,
aproximadamente 12 milhões de pessoas estão co-infectados por esses dois agentes etiológicos. No Brasil,
cerca de 8% dos pacientes com tuberculose, também
têm AIDS.
O advento da AIDS não foi somente uma das principais causas do ressurgimento da tuberculose, mas também modificou o seu tratamento, já que a interação TB/
AIDS é capaz de acelerar a progressão de ambas as
doenças devido a uma acentuada diminuição da ativação do sistema imunológico, requerendo assim, condições especiais em seu tratamento.
Como exemplo da complexidade do tratamento TB/
AIDS, pode-se mencionar a duração do tratamento, resistência aos fármacos utilizados, graves efeitos colaterais, formas extra-pulmonares, grande número de medicamentos empregados e interações entres os fármacos
TB/AIDS que, se mal empregados, podem causar, inclusive, a morte do paciente. Em decorrência disto, uma
pergunta pode ser levantada: seria possível a utilização
de um fármaco capaz de combater ambas as doenças?
Bem, essa é uma pergunta difícil de ser respondida; no
entanto, a natureza parece dar indícios a essa pergunta
com a descoberta da atividade biológica do produto
natural (+)-calanolida A (Figura 1), uma piranocumarina pertencente à classe das cumarinas, isolada da
árvore tropical Calophyllum lanigerum, que apresenta
importante atividade em ambos os agentes etiológicos
da TB/AIDS. Devido às promissoras perspectivas desse
produto natural, o objetivo deste artigo é divulgar os
recentes estudos realizados nessa área.
Importância das cumarinas no desenvolvimento
de novos fármacos
A busca da cura de doenças por meio do emprego
de fitoterápicos e a utilização de produtos naturais como
padrões na descoberta de novas moléculas bioatívas,
tornam-se cada vez mais freqüentes3,4, despertando um
crescente interesse por parte das indústrias química e
farmacêutica.
As cumarinas são uma classe de produtos naturais
caracterizados pela presença de um anel 1,2 benzopirona em sua estrutura (Figura 2). Esses compostos podem ser obtidos a partir de diferentes fontes naturais
126
CH3
Cl
12
H2NO2S
O
O
667 Cumato
FIG. 3 - Cumarinas bioativas descritas na literatura
CH3
CH3
O
O
O
OCH3
Metoxissaleno
O
O
O
CH3
Trioxissaleno
FIG. 4 – Metoxissaleno e Trioxissaleno, substâncias utilizadas no combate de doenças
de pele como a psoríase e o vitiligo.
como bactérias e fungos, porém, são em espécies vegetais que a sua ocorrência é mais freqüente, destacandose as famílias das Apiaceae, Rutaceae, Fabaceae e Hyppocastanaceae, onde essas substâncias são produzidas
na forma de metabólitos secundários, desempenhando
importantes funções fisiológicas na planta5, como por
exemplo, a regulação de seu crescimento, a absorção
de radiação ultravioleta, protegendo plantas em fase
de crescimento, inibição enzimática, ação antioxidante
e proteção desses vegetais contra ataques causados por
vírus e outros agentes6.
Assim, fica evidente a capacidade de tais substâncias
exibirem atividades bioquímicas e farmacológicas pronunciadas, tornando-se importantes modelos no desenvolvimento de novos fármacos.
Alguns exemplos importantes são descritos na
literatura, como a 3-[(3,4-dicloro)-benzilidenoamino]cumarina, que apresenta atividade anti-inflamatória;
a 5,7-dihdroxi-4-metilcumarina, um anti-oxidante7 e o
667 cumato (Figura 3), que atualmente encontra-se em
fase I de testes clínicos, como inibidor da enzima esteróide sulfatase no tratamento de mulheres com câncer
de mama8.
Um outro exemplo da importância das cumarinas
no desenvolvimento de fármacos são os psoralenos,
substâncias facilmente encontradas em diversos alimentos como cenoura, chicória, tomate e lentilha. Essas furanocumarinas são utilizadas no combate de doenças
da pele, como o vitiligo9, que não é contagiosa, mas
que atinge de 0,5 a 2% da população mundial10 e a
psoríase, outra doença de pele, bastante freqüente, que
atinge homens e mulheres na mesma proporção, caracterizada pelo aparecimento de lesões avermelhadas
e descamativas na pele.
Não existe cura para a psoríase, porém, seu tratamento através da ingestão de psoralenos como o metoxissaleno e o trioxissaleno (Figura 4), seguido da exRev. Bras. Farm., 89(2), 2008
CHO
Ac2O
O
O
ONa
CH2COCH3
AcONa
O
OH
O
FIG. 5 - Obtenção da cumarina através da síntese de Perkin.
Varfarina
O
O
O
OH
Dicumarol
O
O
OH
CH2COCH3
NO2
O
O
OH
C2H5
OH
FIG. 6 - Dicumarol, encontrado em plantas do gênero Melilotus após sofrerem
degradação por fungos.
posição à luz ultravioleta é bastante eficiente na maioria
dos casos. É interessante ressaltar, que segundo relatos
históricos, o tratamento de doenças da pele através da
ingestão de macerados de ervas contendo psoralenos,
já era utilizado no antigo Egito.
A obtenção sintética das cumarinas teve início em
meados do século XIX, através de uma rota sintética
desenvolvida pelo químico inglês William Henry Perkin
(1838-1907), conhecida como síntese de Perkin12. Essa
consiste na condensação aldólica de um aldeído aromático com um anidrido na presença de um sal desse
anidrido.
No caso da síntese de cumarinas, a reação é feita
entre o aldeído salicílico, anidrido acético e acetato de
sódio (Figura 5). Porém, foi em meados do século XX
que houve a entrada de derivados coumarínicos no mercado, inicialmente o dicumarol (Figura 6) e logo em
seguida, a varfarina 13 (Figura 7), o agente anticoagulante ministrado via oral mais utilizado nos Estados
Unidos14.
A história desse fármaco se deu no início do século
XX, quando fazendeiros norte-americanos, após importarem da Europa plantas do gênero Melilotus alba
e M. officinalis, popularmente chamadas de trevos-doce
para serem utilizadas como alimento para o gado, verificaram o aparecimento de uma doença hemorrágica
nesses animais e que até então era desconhecida. Em
1922, após estudar o assunto, o veterinário e patologista
Frank W. Schofield (1889-1970) associou a causa dessa
nova doença à ingestão, por parte do gado, de trevosdoce deteriorados pela ação de fungos15. O trabalho de
isolar a substância hemorrágica foi iniciado por um jovem estudante da Universidade de Wisconsin, Karl Paul
Link (1901-1978)16. Em 1939, Link e colaboradores finalmente isolaram a substância que, em 1940, foi identificada e sintetizada, ficando conhecida como 3,3’-metilenobis-[4-hidroxicumarina] ou dicumarol. Devido aos
seus excelentes resultados, o dicumarol foi patenteado
em 1941 e utilizado terapeuticamente como anticoagulante. No final da década de 40, visando obter um
derivado mais potente com o objetivo de usá-lo como
anti-raticida, Link sintetizou o 3-fenilacetil etil, 4-hidroxicumarina, que teve sua patente beneficiada pela
Wisconsin Alumni Research Foundation de onde foi
originado o nome Warfarin (nome em inglês do fármaco
varfarina), que atualmente é ministrado em pequenas
doses como anticoagulante e anti-trobótico.
O mecanismo de ação dessa substância foi elucidado
em 1978 por Whitlon e colaboradores que verificaram a
sua atuação como inibidor da vitamina K, uma vitamina
Rev. Bras. Farm., 89(2), 2008
O
Acenocumarol
Femprocumona
FIG. 7 - Derivados sintéticos de cumarinas, comercializados como anticoagulantes.
O
HO
O
O
O
O
OCH3
Xantotoxina
7 - hidroxicoumarina
OCH 3
O
O
O
O
O
O
Bergaptenina
Angelicina
FIG. 8 - Exemplos de diferentes classificações de cumarinas.
lipossolúvel, produzida por bactérias intestinais, podendo ser encontrada também em inúmeros alimentos
que compõem a dieta humana como leite, frutas, vegetais e ovos. Sua principal função no organismo está
relacionada com a coagulação sangüínea. O mecanismo
de ação da varfarina é encontrado em outros fármacos
sintéticos, derivados de cumarinas, também disponíveis
no mercado, como a femprocumona (Figura 7), produzidas pela Roche com o nome de Marcoumar® e o
acenocumarol (Figura 7), comercializado no Brasil com
o nome Sintrom®17.
Classificação das cumarinas
Atualmente, cerca de 1.300 derivados já foram isolados de aproximadamente 800 diferentes tipos de plantas7. Na natureza, esses derivados apresentam uma
grande diversidade estrutural, com diferentes grupos
funcionais nas varias posições do sistema benzopirona.
Dessa forma, é possível dividir as cumarinas em subclasses distintas18, sendo essas: a) cumarinas simples,
onde encontramos a cumarina e os derivados hidroxilados e metoxilados, como por exemplo: a 7-Hidroxicumarina (Figura 8); b) as furanocumarinas, que possuem um anel furano condensado ao anel benzênico,
podendo ser linear, como, por exemplo, a xantotoxina
e a bergaptenina (Figura 8) ou angular como a angelicina (Figura 8) e d) as piranocumarinas, em que se
inclui a (+)-calanolida A (Figura 1), um promissor produto natural no combate à replicação do vírus HIV e da
bactéria Mycobacterium tuberculosis, que será abordada
a seguir.
(+)-Calanolida a e sua atividade contra o vírus HIV
A (+)-Calanolida A é extraída de folhas e ramos da
127
árvore tropical Calophyllum lanigerum var. austrocoriaceum. Esta espécie é membro raro da família Guttiferae – ou mangosteen-tirar, sendo as primeiras amostras coletadas em 1987, por meio de uma expedição do
Instituto Nacional do Câncer (EUA) a Sarawak (Malásia), na ilha de Borneo. Nessa expedição, todas as
amostras coletadas foram testadas contra o câncer, porém, nenhuma delas apresentou atividade.
Devido ao surgimento da AIDS, que nessa época
ainda não se tinha muita informação nem tratamento
efetivo, diversos grupos de pesquisas testaram diferentes produtos naturais e sintéticos na tentativa de se
encontrar a cura para essa doença.
Nesse contexto, as amostras anteriormente testadas
no combate ao câncer, foram também testadas contra o
HIV, que surpreendentemente apresentou uma amostra
bastante promissora, que continha a piranocumarina,
(+)-calanolida A. Da mesma forma, foram coletadas
amostras de outras espécies do gênero Calophyllum
relacionadas estruturalmente. Porém, dessa classe de
cumarinas policíclicas, a (+)-calanolida A demonstrou
ser a mais ativa contra a replicação do vírus HIV-1
(EC50=0,1µM), mas inativa contra HIV-2,19 (retrovírus
encontrado principalmente na África).
Uma vez determinada a atividade da (+)calanolida A, foi necessária a coleta de uma quantidade
maior de material para a realização dos testes subseqüentes. Porém, ao realizar outra expedição à ilha
de Borneo, os pesquisadores tiveram grande dificuldade em encontrar novos espécimens da desejada planta nativa, uma vez que esta, por ser imensamente utilizada como lenha e na construção de residências, se
encontrava em extinção. No entanto, uma solução para
esse problema veio do Singapore Botanic Garden por
ter este recolhido amostras dessa mesma espécie cerca
de 100 anos antes.
As piranocumarinas, isoladas do Calophyllum, encontram-se em três tipos básicos estruturais: (a) dipiranocumarinas tetracíclicas, em que o anel D possui
um grupo dimetil geminado como, por exemplo, a (+)calanolida A; (b) dipiranocumarinas tetracíclicas com
anéis reversos C e D, com o grupo dimetil geminado
no anel C, como a pseudocalanolida C 20; e (c) dipiranocumarinas tricíclicas, exemplificado pela
calanolida E119, que não apresenta o anel C (Figura
9).
Membros individuais de cada grupo variam em relação ao substituinte na posição C4 do anel lactônico
da cumarina, onde metil (cortadolida), n-propil (calanolida), ou o grupo fenil (inophyllum) podem ser encontrados. Das cumarinas policíclias isoladas do gênero
Calophyllum, os compostos que exibiram maior atividade anti-HIV foram: (+)-calanolida A19, (+)-ino-
6
7
O
O
O5
D
4
8
3
A
HO
B
2
9O
O
O
O
O
O
O
C
12
10
11
O
OH
OH
(+)-Calanolida A
Pseudocalanolida C
Calanolida E1
FIG. 9 - Estruturas básicas das piranocumarinas isoladas do Calophyllum.
128
O
O
O
R
O
O
O
OH
R
O
O
O
OH
(+)-Calanolida A (R=n-propil)
(-)-Calanolida A (R=n-propil)
(+)-Inophyllum B (R=Fenil)
(-)-Inophyllum B (R=Fenil)
FIG. 10 - Piranocumarinas isoladas do Calophyllum e testadas contra o HIV.
phyllum B21, (-)-calanolida B19 e (-)-inophyllum P21 (Figura 10). Os enantiômeros das calanolidas, (-)-calanolida A e (+)-calanolida B não possuem atividade
antiviral no teste in vitro, demonstrando que a estereoquímica das piranocumarinas é importante para sua
atividade biológica22.
O mecanismo de ação da (+)-calanolida A foi estudado por Currens e colaboradores23, demonstrando
que esse produto natural é capaz de inibir a enzima
transcriptase reversa (TR) do HIV-1, essencial para a
replicação desse vírus. Possui a propriedade de inibir
grandes variedades de cepas deste vírus, inclusive as
que são resistentes ao AZT, primeiro e típico fármaco
inibidor da TR. Dentre estas cepas, destaca-se a A17,
que é resistente à maioria dos fármacos utilizados para
inibir a enzima transcriptase reversa.
Em estudos in vivo, a (+)-calanolida A mostrou significante atividade via oral e parenteral em tratamento
diário de uma e duas doses, sendo capaz de eliminar a
replicação viral em dois compartimentos fisiológicos
distintos (subcutânea e peritonial), mostrando boa absorção oral. Além disso, esse produto natural possui
sinergismo na combinação com AZT.
Relação estrutura-atividade
Devido à importância da (+)-calanolida A no combate
à replicação do vírus HIV, diversos derivados desse
produto natural têm sido sintetizados, obtendo-se,
assim, importantes informações a respeito de sua relação
estrutura-atividade na busca de novos fármacos.
Por exemplo, Zembower e cols.24 sintetizaram e avaliaram uma série de análogos da (+)-calanolida A (Figura 11) com o intuito de examinar a relação estruturaatividade do anel trans-10,11-dimetildihidropirano-12ol (denominado anel C). A remoção do grupo metila na
posição 10 resultou na diminuição da atividade e somente um epímero manteve atividade anti-HIV. A substituição do grupo metil por um etil reduziu em quatro
vezes a atividade quando comparada à (+)-calanolida
A racêmica, e a substituição do metil por um grupo isopropil eliminou completamente a atividade anti-HIV.
A adição de uma metila ao carbono na posição 10 ou 11
mantém as mesmas características estereoquímicas das
calanolidas, enquanto remove a quiralidade no respectivo carbono, resultando na redução da atividade
em relação à (+)-calanolida A. Nos exemplos acima
mencionados, análogos alquílicos cis em relação às
posições 10 e 11 são completamente desprovidos de
atividade.
Intermediários sintéticos em que o grupo hidroxila
secundário na posição 12 está no estado oxidado, como
Rev. Bras. Farm., 89(2), 2008
Redução da ligação olefínica
Diminuição da Atividade
O
6
7
Fenila, Metila
Pouco ativos
O5
D
4
8
3
Inativos H, Isopropila
B
A
O
9O
O
2
O
N
H
O
1
C
12
10
Etila, Dimetila
Pouco ativos
R
11
cis
Inativo
OH
(S) (1) Ativo
OH
(R)
OAc
(S)
OH
Inativo
(±)-Azacalanolida A
Inativo
OMe (S)
Inativo
Pouco Ativo
CO
FIG. 13 - Derivado estrutural mais ativo que a (±) calanolida A.
6
O5
7
D
4
8
7
3
A
9
O
O
O
2
8
O
O
1
C
A
12
10
R
11
O
B
B
OH
(S)
Ativo
OH
(S)
Inativo
SH
(S)
Inativo
N3
(R)
Inativo
CO
O
O
O
O
O
O
O
O
O
C
12
Pouco ativo
OH
OH
OH
(+) - Calanolida A
(-) - Calanolida A
(-) - Calanolida B
Porcentagem da inibição 96%
(MIC = 3.13 m g mL-1)
Porcentagem da inibição 98%
(MIC = 6.25 m g mL-1)
Porcentagem da inibição 99%
(MIC = 6.25 m g mL-1)
FIG. 11 - Modificações estruturais realizadas na (+)-calanolida.
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
O
OH
O
O
O
O
OH
OH
C
C
O
O
10,11-trans-oxocalanolida A
10,11-cis-oxocalanolida A
(-) - 7,8-Dihidrocalanolida B
Porcentagem da inibição 98%
(MIC = 3.13 m g mL-1)
7,8- Dihidrosoulatrolida
Soulattrolida
Porcentagem da inibição 99%
Porcentagem da inibição 99%
-1
(MIC = 6.25 m g mL-1)
(MIC = 3.13 m g mL )
FIG. 12 - Intermediários sintéticos menos ativos.
por exemplo, a oxocalanolida A 10,11–trans e o derivado
10,11–cis (Figura 12), tiveram uma redução de cerca
de cinco vezes na atividade anti-HIV, representando
os primeiros intermediários da (+)-calanolida A que
exibiram atividade na inibição da enzima transcriptase
reversa sem possuir a hidroxila na posição 12.
Galinis e cols.25 reduziram a ligação 7, 8 olefínica
da (+)-calanolida A e da (-)-calanolida B para analisar
o impacto na atividade anti-HIV. Adicionalmente, foi
realizada uma série de modificações na hidroxila
presente no C-12 da (-)-calanolida B na intenção de
investigar a importância desse substituinte na atividade
anti-HIV dessas cumarinas. Um total de 14 análogos
foi preparado e suas atividades avaliadas e comparadas
às da (+)-calanolida A e (-)-calanolida B. Apesar de
nenhum desses derivados obterem atividade superior,
à (+)-calanolida A e à (-)-calanolida B, importantes
informações da relação estrutura-atividade dessa classe
de compostos foram obtidas.
Outro exemplo da importância do estudo da relação
estrutura atividade e do desenvolvimento de derivados
sintéticos dessa classe de compostos foi o trabalho
realizado por Sharma e cols.26, que descreveram a síntese e a avaliação da atividade anti-HIV-1 da (±)azacalanolida A (Figura 13), que demonstrou ser mais
ativa e mais segura, terapeuticamente, que a (±) calanolida A.
Rev. Bras. Farm., 89(2), 2008
O
O
O
O
O
O
(+) - 12-Oxocalanolida A
Porcentagem da inibição 78%
(MIC = >12.5 m g mL-1)
O
O
O
O
O
(+/-) - 7,8 - Dihidro -12 oxocalanolida A
Porcentagem da inibição 43%
(MIC = >12.5 m g mL-1)
O
O
O
O
(+/-) - Calanolida D
Porcentagem da inibição 57%
(MIC = >12.5 m g mL-1)
MIC - Definido como a concetração mínima inibitória de um antibiótico para inibir uma bactéria
FIG. 14 - Piranocumarinas com atividade com a Mycobacterium tuberculosis.
A atividade in vivo em conjunto com a variedade de
estudos in vitro sugere que (+)-calanolida A e seus
derivados possuem características favoráveis em uso
clínico contra a AIDS, representando uma nova classe
promissora de inibidores da enzima transcriptase
reversa27.
(+)-Calanolida A e sua atividade contra a Mycobacterium
tuberculosis
Apesar de suas promissoras perspectivas no combate
à replicação do vírus HIV, a (+)-calanolida A apresentou
também uma importante atividade contra o agente
etiológico da tuberculose, o Mycobacterium tuberculosis,
identificado por Xu e cols28 que avaliaram uma série
de piranocumarinas, sendo a (+)-calanolida A, conjuntamente com a (-)-7,8-dihidrocalanolida B e a sou129
latrolida (Figura 14), as piranocumarinas mais promissoras, apresentando uma concentração mínima inibitória
(MIC) de 3,13µg/mL. Uma outra importante informação
a respeito da atividade antibacteriana das pirocumarinas
é que essa classe de produtos naturais é capaz de combater também a Mycobacterium tuberculosis multiresistentes aos fármacos empregados no tratamento da
tuberculose, representando assim, uma importante classe para o desenvolvimento de novos fármacos no combate a essa doença.
CONCLUSÃO
O binômio tuberculose/AIDS representa atualmente
um grave problema de saúde mundial, estando intimamente relacionados e conjuntamente responsáveis
pela morte de milhões de pessoas a cada ano, atingindo
negativamente o desenvolvimento econômico e social
de diversas nações.
Assim sendo, torna-se necessário o desenvolvimento
de novas estratégias e abordagens terapêuticas, baseadas, por exemplo, no desenvolvimento de novos fármacos capazes de combater ambos os agentes etiológicos, com menores efeitos colaterais, maior potência,
com melhores perfis farmacocinéticos e amplo espectro
de atividade a diferentes vírus HIV e Mycobacterium
tuberculosis resistentes.
Nesse contexto, a classe de produtos naturais comumente conhecidas como piranocumarinas, tendo
como seu principal representante a (+)-calanolida A,
representa novas perspectivas e abordagens no tratamento do binômio tuberculose/AIDS. Demonstra-se,
assim, novas possibilidades no desenvolvimento de
fármacos capazes de combater simultaneamente essas
enfermidades que assolam sobremaneira a humanidade.
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