Filmes e trilhas no cinema negro dos EUA dos anos 1970: Uma

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
VICTOR MAKOTO OIWA
Filmes e trilhas no cinema negro dos EUA dos anos
1970: Uma análise sobre o ciclo blaxploitation
SÃO PAULO
2011
VICTOR MAKOTO OIWA
Filmes e Trilhas no Cinema Negro dos EUA dos anos
1970: Uma Análise Sobre o Ciclo Blaxploitation
Dissertação apresentada à Banca Examinadora,
como exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre do Programa de Mestrado em
Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa.
Dra. Laura Loguercio Cánepa
SÃO PAULO
2011
VICTOR MAKOTO OIWA
Filmes e Trilhas no Cinema Negro dos EUA dos anos 1970
Uma Análise Sobre o Ciclo Blaxploitation
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado em Comunicação, área de concentração
em Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação do Profa. Dra.
Laura Loguercio Cánepa
Aprovado em ____/____/____
___________________________
___________________________
___________________________
Em memória de William H. Oiwa, Patric R. Oiwa e Eduardo J. Kitagawa
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus,
Minha família toda, principalmente Yoji, Yoko e Mi pela paciência, ensinamentos e todos
os momentos de alegrias e sofrimentos que passamos juntos. Vocês são a razão para eu
continuar insistindo em acreditar nos velhos e bons valores.
A minha orientadora Laura Cánepa, que se interessou pela minha pesquisa e me guiou
nesta jornada, tornando possível a existência dessa dissertação.
Aos professores Rogério Ferraraz, Maria Ignes e Luiz Vadico, pelo conhecimento.
Ao coordenador Leonardo Vergueiro que propôs que eu fizesse o mestrado e pela
oportunidade. Tambem aos colegas de trabalho André Salata, Thomas Gruetz, Cris Merlo,
Bruno E., Mauricio de Caro Esposito e Theóphilo Pinto.
Aos amigos do coração Rodrigo Brandão e família, pelas conversas e dicas sobre o tema,
Igor Hatanda, Caio Neri, Marcos Koga, Pitzan Oliveira e família, Luana Dias Gomes,
Edson Gomes, Fernando Borges, Apo Fousek, Shaw e Carla, Melissa Gomes, Ricardo
Gomes, Douglas Okura, Kiko Dinucci, DJ Marco, Max Takahashi, Francisco Bicudo,
Marcelo Munari, Marina H. Sousa e todos que me ajudaram de alguma forma nesta
pesquisa.
RESUMO
Esta dissertação tem o objetivo de fazer uma análise da relação entre música e cinema
nos filmes estadunidenses dos anos 1970 voltados ao público negro (conhecidos
genericamente, e por vezes erroneamente, como blaxploitation), buscando observar como
se deu a apropriação da cultura afirmativa afroamericana na cultura pop internacional,
com seus sucessos, contradições e clichês que ainda são bastante representativos em
várias manifestações culturais nos dias de hoje. Para isso, foi feito, primeiro, um
apanhado histórico sobre as lutas pelos direitos civis nos anos 1960, o desenvolvimento
da música negra nos anos 1950-1970 e a maior participação dos afroamericanos no
cinema ao longo dos anos 1960-1970. Depois, foi feita a análise de cinco filmes
representativos do período levando em conta sua relação com as trilhas musicais.
Palavras-chave: Análise fílmica. Gêneros cinematográficos. Blaxploitation. Trilhas
sonoras. Black music.
ABSTRACT
This thesis discusses the relationship between music and cinema in the 1970’s american
filmes aimes at black audiences (known generically, and sometimes erroneously, as
Blaxploitation), seeking to observe how was the appropriaton of African American culture
in the pop culture, with its sucsesses, contradictions and clichés that are still fairly
representative of various cultural events today. For that was done, fist, a historical
overview about the civil sirhts struggles in the 1960’s, the developmente of black music in
the years 1950-1970’s and greater participation of African Americans in film over the years
1960-1970’s. Then we made a study os five representative films of the period taking into
account its relationship with the music soundtracks scores.
Key-words: Film analysis. Film genres. Blaxploitation. Soundtracks. Black music.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 11
CAPÍTULO I - A CULTURA NEGRA NOS EUA NOS ANOS 1960 E 1970
1.1 O pano de fundo social .......................................................................... 13
1.2 Os movimentos afirmativos .....................................................................14
1.3 A Transição ............................................................................................ 18
CAPÍTULO II - MÚSICA E CINEMA NA CULTURA NEGRA DOS ANOS
1960 E 1970
2.1 A nação sob um único groove ................................................................ 20
2.2 Os negros no cinema e o cinema dos negros ........................................ 31
2.2.1 A imagem do negro no cinema dos EUA nos anos 60 .............. 34
2.2.2 O nascimento de um gênero: o blaxploitation ........................... 36
CAPÍTULO III - FILMES E TRILHAS SONORAS
3.1 Sweet Sweetback Baadasssss Song ..................................................... 47
3.2 Shaft ....................................................................................................... 51
3.3 A Máfia Nunca Perdoa ........................................................................... 55
3.4 Super Fly ................................................................................................ 59
3.5 O Chefão do Gueto ................................................................................ 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 71
LISTA DE FIGURAS
Figura 1,2,3: Martin Luther King, Malcolm X, Bobby Seale .............................................. 15
Figura 4, 5, 6: Cartaz de Emory Douglas, logo dos Panteras Negras, Catleen Cleaver .. 16
Figura 7, 8: revista Jet Magazine, Jackson5 (1970) e Michelle Obama (2010) .................19
Figura 9, 10: LPs Sam Cooke (1964) e Marvin Gaye (1971) ............................................ 22
Figura 11, 12: Colatânea e Lp de James Brown ............................................................... 27
Figura 13, 14: LPs Curtis (1970) e imagem de C. Mayfield se apresentando .................. 29
Figura 15, 16: Cartaz e fotograma de O Nascimento de uma nação (1914) .................... 31
Figura 17, 18: Richard Wildmarke e Poitier e capa de Sangue do meu sangue (1950) ... 33
Figura 19, 20: Jim Brown em Os 12 condenados e Rio Conchos .................................... 35
Figura 21, 22: cartazes Halls of Anger e Rififi no Harlem (ambos 1970) ......................... 40
Figura 23, 24: DVD Sweetback e cartaz de Shaft (1971) ................................................. 42
Figura 25, 26, 27: cartazes de Blacula (1972), Black Caesar (1973) e Coffy (1973) ....... 43
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AABB - Above Average Black Band
AIP - American International Pictures
BS - Bobby Seale
DC - Dani Cohn
DJ - Disc Jockey
EUA - Estados Unidos da America
CLOD - Catholic Legion of Decency
CORE - Congress of Racial Equality
GFOS - Godfather of Soul
KKK - Ku Klux Klan
LP - Long Play
MGM - Metro-Goldwyn-Mayer
NAACP - National Association for the Advancement of Colored People
NBA - National Basketball Association
NFL - National Football Association
RAP - Rhythm and Poetry
R&B - Rhythm and Blues
SCLC - Southern Christian Leadership Conference
SNCC - Student Nonviolent Coordinating Comitee
TV - televisão
WB - Warner Brother
INTRODUÇÃO
Este é um trabalho que trata do encontro de gêneros musicais e cinematográficos
que ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970, dando início a um processo cultural
importantíssimo na segunda metade do século XX, com reflexos diversos notáveis até os
dias de hoje: a cultura afirmativa dos negros nascidos nos Estados Unidos da América.
Dos movimentos sociais à moda, passando por variadas tendências artísticas, politicas e
comportamentais, o movimento negro estadunidense e suas variadas e contraditórias
expressões é fundamental para compreendermos uma parte do mundo ocidental até os
dias de hoje.
Mas, é claro, trata-se de um assunto muito extenso para ser tratado numa
dissertação de mestrado. Então, optei por um recorte bem específico desse processo
sócio-político-econômico-cultural,
examinando
a
relação
entre
alguns
filmes
protagonizados por artistas negros (conhecidos genericamente como blaxploitation, termo
que será discutido mais adiante) e algumas músicas de soul e funk compostas e
executadas por outros artistas negros dos EUA nos anos 1960 e 1970, que foram trilhassonoras desses filmes.
Por gostar de rap e da cultura hip-hop, desde criança dançando break e vindo a ser
DJ no final da década de 1990, logo me aprofundei nas pesquisas sobre músicas e
músicos de jazz e funk, que influenciaram esse gênero contemporâneo e que estão
largamente presentes nas trilhas de um importante grupo de filmes nos anos 1970.
Também as temáticas abordadas nesses filmes e na cultura hip-hop, tais como racismo,
submundo do crime, marginalidade, sexo, drogas e corrupção me chamavam a atenção.
Cresci vendo filmes como Wild Style dirigido por Charlie Ahearn e Perigo para a
Sociedade (Menace II Society), de John Singleton nos anos 1980 e 1990. Também
assistia a vários filmes do diretor Spike Lee e nem imaginava que tudo isso era, em certo
sentido, um legado deixado por filmes surgiram no final dos anos 1960 e, com mais de
cem títulos representativos que vêm influenciando, desde então, vários diretores e artistas
do mundo todo.
Assim, como pesquisador de cinema e audiovisual, e também como DJ e professor
de música, acredito que posso contribuir com o presente trabalho para o pensamento
11 sobre a relação entre imagem e som em nossa cultura, em particular na cultura afirmativa
do movimento negro nos EUA, com influência evidente inclusive no Brasil.
O trabalho está dividido da seguinte maneira: no primeiro capítulo, procuro
contextualizar a cultura negra nos EUA nos anos 1960 e 1970. No segundo cápitulo, trato
da importância da música e o cinema no ambiente do movimento negro nos anos 1960 e
1970. No terceiro capítulo, seleciono alguns filmes suas trilhas musicais para uma análise.
A metodologia de análise foi bastante simples: procurei relacionar as letras das
canções ao conteúdo dos filmes, buscando encontrar um discurso comum que não era
apenas o de fazer sucesso nas paradas, mas construir uma determinada representação
da vida das comunidades afrodescendentes nos EUA, com suas contradições e
problemas.
12 CAPITULO I - A CULTURA NEGRA NOS EUA NOS ANOS 1960 E 1970
1.1 O pano de fundo sócio-cultural
No final dos anos 1950, o mundo viveu grandes transformações sociais e
econômicas decorrentes de vários conflitos que sucederam à II Guerra. Nesse período,
tiveram início vários acontecimentos marcantes para a humanidade que desembocariam
nas grandes insurreições que marcariam os anos 1960: a revolução cubana, a construção
do muro de Berlim, a Guerra do Vietnã, a explosão dos movimentos sociais na América
Latina etc.
Especificamente na produção cultural estadunidense, que teve grande influência
nesse período, os poetas e escritores conhecidos como beatniks, como Allan Ginsberg e
Jack Kerouak, pregariam a liberdade individual, o amor pelo jazz bepop de Charlie Parker,
o uso das drogas como possibilidade de expansão da mente, inspirando depois o
movimento hippie, que elegeria o amor livre, a vida na natureza e o rock´n´roll como
novas pautas para o movimento; o filósofo e psicanalista Herbert Marcuse defenderia a
idéia de que a alienação dos indivíduos vinha do impedimento do gozo, dando força à
idéia dos hippies; o canadense Marshal MacLuhan apontaria o poderio dos meios de
comunicação de massa como um futuro utópico e inevitável; compositores como Bob
Dylan e Joan Baez ensinariam as virtudes das letras engajadas, capazes de mobilizar
massas; o movimento feminista faria grandes conquistas e revelaria toda uma nova forma
crítica cultural; a cultura e as religiões orientais começariam a ser absorvidas mais
intensamente pela cultura ocidental, trazendo um maior relativismo religioso e
comportamental. Em meio a tantas manifestações pela liberdade e por mudanças na
sociedade, os negros norte-americanos também participariam das mudanças, com a
defesa de seus direitos civis.
13 1.2 Os movimentos afirmativos
Desde os anos 1950 até o final dos anos 1960, ocorreu, nos EUA, um grande
movimento de luta pela igualdade dos direitos civis dos afrodescendentes. Até esse
período, sobretudo no sul dos Estados Unidos (que tinha uma herança cultural mais
intensa da escravidão), a segregação racial fazia parte das constituições da maioria dos
estados: os serviços oferecidos eram divididos entre as raças, que estavam separadas
inclusive geograficamente – e o espaço para os negros sempre era mais precário. Os
afroamericanos eram proibidos de se sentar em praças públicas; o espaço no transporte
público era separado (os negros eram obrigados a ficar nos fundos); havia bares
separados para negros e brancos. No mundo profissional também ocorria a exploração e
a discriminação contra os afroamericanos, asiáticos e latinos, que tinham os salários
menores e a carga horária maior que a dos brancos.
A indignação com esse estado de coisas que ofendia os princípios de liberdade
defendida pela própria Constituição dos EUA (a mesma que os alunos afrodescendentes
aprendiam nas escolas e viam ser aclamada sistematicamente nos meios de
comunicação) levou ao surgimento de várias organizações, tais como a CORE (Congress
of Racial Equality), SNCC (Student Nonviolent Coordinating Comittee) e a SCLC
(Southern Christian Leadership Conference), todas com o mesmo ideal: igualdade de
direitios civis para negros e brancos, e todas importantíssimas para o reconhecimento
político da igualdade social, liberdade, dignidade de seu povo. Ao mesmo tempo, seguia
em atividade a mais antiga dessas associações, a NAACP (National Association for the
Advancement of Colored People).
Em 28 de agosto de 1963, três mil afroamericanos se agruparam em frente ao
Lincoln Memorial, onde participaram de um ato público em defesa da liberdade que
contou com a participação do líder Martin Luther King, que iniciara sua luta como pastor
protestante em 1954. Na ocasião, ele recitou o famoso discurso conhecido como Eu tenho
um sonho, que se tornou mundialmente conhecido e é até hoje muito citado por líderes
políticos e comunitários. O discurso assim começava:
Cem anos atrás, um grande americano, sob cuja simbólica sombra nos
encontramos, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante
decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos
negros que tinham murchado nas chamas da injustiça. Ele veio como uma
alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos
14 depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda
é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de
discriminação.1
Figuras 1, 2 e 3: Fotografias de Martin Luther King, Malcom X e Bobby Seale, respectivamente
Também nessa ocasião, Martin Luther King e outros líderes tiveram uma reunião
bem sucedida com o presidente John F. Kennedy, na Casa Branca. Mesmo que os votos
do congresso não tivessem sido muito claros a respeito das reivindicações, Kennedy se
comprometeu a cumprí-las em seu mandato, e em novembro de 1963, mesmo após o seu
assassinato, seus compromissos foram seguidos pelo sucessor, Lyndon Johnson. No ano
seguinte, Luther King conquistaria o Prêmio Nobel da Paz.
Mas, além dos processos políticos de negociação, houve muita violência e revolta
nesse período, a ponto de vários líderes do movimento negro terem sido assassinados,
entre eles Malcom X, líder mais radical, morto em 1965, e o próprio Martin Luther King,
em 1968. Como descreve o historiador Voltaire Shilling, sua morte provocou uma intensa
onda de protestos acompanhadas de incêndio em bairros negros em mais de 125 cidades
dos EUA (2008, p. 11). Outras revoltas importantes ocorreram, como a de Watts, na
Califórnia, em 1965; a de Detroit, em Michigan, em 1967; e Newark, Nova Jersey, no
1
Fonte: http://www.miranda13.com.br/index.php?view=article&catid=39:gerais&id=64:discurso-de-martin-luther-king-eutive-um-sonho&format=pdf
15 mesmo ano. Na maioria das vezes, essas revoltas se iniciavam por causa da brutalidade
policial ou de algum ato de racismo.
Em outubro de 1966 foi fundado, por Bobby Seale e Huey P. Newton, o Partido dos
Panteras Negras (Black Panther Party of Self Defense), uma organização revolucionária
afroamericana, que visava promover a defesa pessoal para os afro-americanos e a
rejeição da segregação racial. O principal slogan político do grupo era o “black power” e
"Panther Power", ou seja, o poder negro. O partido ficou conhecido mundialmente por sua
profunda participação na política americana na década de 1960 e 1970, tendo sido um
dos maiores movimentos sócio-político-culturais da história do país. Com os punhos
cerrados e cabelos afro puffs (que ficariam conhecidos como cabelos “black power” no
Brasil), faziam protestos nas ruas gritando frases de autoafirmação tais como "black is
beautiful" (negro é bonito) e “freedom now" (liberdade agora). Como observa Shilling
(2008, p. 12), a força e a influência dos Panteras Negras aumentou muito após a morte do
líder pacifista Luther King.
Figuras 4, 5 e 6: Cartaz de Emory Douglas; logo do Partido dos Panteras Negras; cantora Catleen Cleaver
usando o cabelo e o visual “black power”
O Partido dos Panteras Negras existe até os dias de hoje, mas, após os anos
1970, os ideais já não foram mais os mesmos, e a unidade do grupo começou a se
dissolver aos poucos. Mas, como se percebe nos trechos desta entrevista de Bobby Seale
16 feita pelo ex-líder estudantil Daniel Cohn-Bendit (mais conhecido como Dani Cohn) no ano
de 1980, o período em que surgiram os Panteras Negras era mesmo de grandes tensões:
BS: O movimento Black Panther fez mais do que simplesmente mexer com
o imaginário dos americanos e do resto do mundo. Conseguiu acabar com
o terrorismo da Ku Klux Klan. Hoje em dia, a KKK sabe perfeitamente que,
se seus militantes vierem nos agredir, nós temos como defender nossos
direitos. Apoiamos inúmeras campanhas políticos de negros em todo país,
e conseguimos eleger bom número deles. Nossa militância teve grande
importância nesse sentido. Nos anos 50 e 60, nem passava pela cabeça
de um negro disputar um mandato. Atualmente, muitos resolveram entrar
na política. A estrutura política americana, naquela época, era totalmente
racista. Nós, Martin Luther King, os movimentos pelos direitos humanos e
o movimento contra a Guerra do Vietnã conseguimos mudar esse estado
de coisas.
DC: Você ainda acredita que é necessário defender seu trabalho e
suas organizações pelas armas?
BS: Eu não incitaria o povo a pegar em armas, pelo menos enquanto ele
não for atacado pelo poder racista de Reagan. Agora, se ele resolver
atacar, creio que temos o direito de nos defender, defender nossos direitos
democráticos.
DC: Então você continua considerando que os Black Panther tiveram
razão de se armar na década de 1960?
BS: Sim, naquela época o racismo agia de forma tão descarada, que a
polícia invadia os guetos, atirava sobre nós, nos brutalizava, matava e
ainda batia nos cadáveres. É óbvio que tenhamos sentido a necessidade
de nos defender. Existe uma grande diferença entre autodefesa e
agressão.
17 1.3 A transição
A tão esperada mudança defendida nos anos 1960 começava a tomar forma no
início dos anos 1970 com os negros circulando pelos espaços urbanos com mais
liberdade e direitos garantidos. Por outro lado, nos noticiários, via-se, dia após dia,
manchetes sobre o crescimento do crime em centros urbanos e também da inflação nos
bairros com maioria da população negra. Nesse período de transição, logo ocorreram
reações das massas brancas que ainda eram a favor de um país segregado, seguindo
uma tendência de reação à democracia racial que já se apresentava desde os anos 1950.
Após o final da Segunda Guerra Mundial, muitos brancos que moravam nos
centros das grandes cidades vinham se mudando para os subúrbios, fechando-se em
novas "comunidades brancas", em resposta ao número grande de afroamericanos que
constantemente se mudavam para as cidades em busca de uma vida melhor e
começavam a ocupar os bairros centrais, logo desvalorizados economicamente. Esse
movimento de guetificação negra das cidades ficou conhecido na história dos EUA como
"the white flight" (o vôo branco)2.
Mas, no início dos anos 1970, a cultura negra americana, integrada ás grandes
cidades e à indústria do consumo, não era mais confinada e segregada como nas
décadas passadas. Pelo contrário, era o começo da introdução da cultura afroamericana
ao mainstream. Era a época que a Jet Magazine (fig. 7), fazia uma lista de todos os
atores/atrizes afrodescencentes que apareciam na TV, semanalmente. A cultura
afroamericana começava a ditar algumas regras sobre o que era ser cool na moda, na
música etc.
Hoje em dia, vivemos em um mundo onde é comum celebridades afroamericanas
apresentarem os maiores shows de premiações como o Oscar e o Grammy. Muitos deles
também levam para casa prêmios e reconhecimento. Celebridades afroamericanas
aparecem regularmente em capas de revistas da elite do mainstream, são investidores
dos grandes times esportivos, são donos de gigantescas gravadoras e de algumas das
maiores marcas do mercado da moda. O hip hop dominou o mercado e boa parte dos
negócios da música no mundo todo. Atletas negros viraram a norma, provendo os
padrões de medidas para outros atletas. A linguagem do hip hop entrou num léxico
2
Sobre isso, ver o livro White Flight, de Kevin Michael Kruse (2005), mencionado nas referências
bibliográficas deste trabalho.
18 popular, e atletas da NBA definiram o que é ser rico e famoso para uma nação inteira.
Para completar, hoje temos também um presidente negro no comando do poder norteamericano.
Figuras 7 e 8: Capas da revista Jet Magazine com o grupo musical Jackson Five nos anos 1970, e com a
primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, em 2010.
Há algumas décadas, porém, todas essas coisas eram impossíveis de serem
sequer imaginadas. E, para chegarmos até esse ponto, precisamos recordar de uma
época do tempo em que as coisas começaram a mudar, e esta época foi justamente a
transição da década de 1960 para a década de 1970. De todo o processo que se deu
nesses anos em relação à cultura dos negros nos EUA, pretendemos nos debruçar na
relação específica entre cinema e música, que nos permite ter alguns insights sobre a
importância de ambos para as grandes mudanças sócio-político-culturais muito mais
amplas que estava em curso naqueles anos.
19 CAPITULO II - MÚSICA E CINEMA NA CULTURA NEGRA DOS EUA DOS ANOS 1960
E 1970
2.1 Uma nação sob um único groove
A música negra chegou ao sul dos Estados Unidos trazida pelos escravos
africanos que chegaram ao longo dos séculos XVII a XIX, sobretudo em estados agrários
como Alabama, Mississipi, Geórgia e Louisiana. Lá, os escravos utilizavam seus cantos
nas plantações de algodão em forma de lamentos para suas infindáveis e sofridas
jornadas de trabalho – e esses cantos posteriormente definiram as bases do blues, um
dos mais profícuos estilos da música afroamericana. Além de acompanhar os
trabalhadores em suas jornadas, os cantos também serviam para reuni-los após o
trabalho, numa espécie de canto de louvor que seria bastante influente na chamada
música gospel.
Esse blues original passou por várias mudanças, evoluções e transformações ao
longo dos séculos, dialogando com a música dos brancos, dos índios e do resto do
mundo, dando origem ao Jazz, ao Rock, ao Soul, ao Hip Hop e até mesmo a parte da
música eletrônica e todas as ramificações e hibridizações sob influência da música
afroamericana.
Comparando o caráter rural e nostálgico do blues ao caráter urbano e mais otimista
do jazz, disse Martin Luther King abertura do Berlin Jazz Festival, de 1964. "O jazz fala da
vida. O blues conta a história das dificuldades da vida - e, se você pensar por um
momento, perceberá que eles transformam suas duras realidades em músicas apenas
para exprimir esperança ou um senso de triunfo. Nossa música é triunfal"3.
A música sempre teve um papel muito importante em relação ao movimento da luta
pelos direitos civis dos afroamericanos. Mas, na época em que esses movimentos
eclodiram, o povo negro não tinha ainda nenhuma rádio nacional ou programa de TV que
o representasse. Era necessário construir ao mesmo tempo veículos de comunicação,
produtos e um mercado de consumo.
3
Cf. texto original completo em: http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/626.html
20 Mas, nos anos 1950, os cantos gospel tradicionais e o Rhythm and Blues nos anos
1940 (este último que dera origem ao rock´n´roll entre os jovens brancos) 4 uniram-se para
originar a soul music, fusão entre o gospel e do R&B que se tornou extremamente popular
entre os negros estadunidenses durante o final dos anos 1950 e início dos 1960,
originando um mercado mais amplo para gravadoras, produtoras de shows e artistas.
Por outro lado, no Reino Unido durante o final dos anos 1950 e começo dos 1960,
o R&B atingiu seu auge de popularidade, criando vida própria e sendo definitivo para
influenciar as maiores bandas de rock surgidas no período: The Beatles, Rolling Stones,
The Animals e outras. Sem sofrer o mesmo tipo de distinção racial que limitava sua
aceitação nos EUA, os grupos musicais britânicos rapidamente adotaram esse estilo de
música.
Nos EUA, o termo R&B caiu em relativo desuso e foi substituído pelo soul. Como
descreve o pesquisador e instrumentista brasileiro Mike Dias (2010), a música soul
normalmente
apresenta
cantores
individuais
acompanhados
por
uma
banda
tradicionalmente composta de uma seção rítmica e de metais. O desenvolvimento da soul
music foi acelerado graças a duas tendências: a urbanização do R&B e a secularização
do gospel. Artistas como Ben E. King, Ray Charles, Sam Cooke e os Everly Brothers
fundiram a paixão dos vocais gospel com a música cativante e rítmica do R&B, formando
assim o soul.
O sucesso entre o público não negro (brancos e latinos, sobretudo) começou
através da audiência de artistas brancos que tocavam R&B e rock, como o latino Richie
Valenz, mas o público começou a se interessar pelos artistas negros como Little Richard e
músicos de blues como Chuck Berry e Muddy Waters. No fim dos anos 1950, isto fez com
que várias gravadoras buscassem versões comerciais (vendáveis) da música soul. Os
mais influentes selos de gravadoras eram a Stax, baseada em Memphis, Tennessee, e a
Motown, baseada na região de Detroit.
Durante os anos 1960, a música soul era popular entre negros nos EUA, e entre
muitos ouvintes influentes espalhados pelos EUA e Europa. Como nota Dias (2011),
Conhecido também pela sigla R&B, a sigla surgiu nos Estados Unidos no final de 1940 num texto da Revista Billboard.
O termo substituiu race music, que era, em língua inglesa um tanto ofensivo. Em suas primeiras manifestações, o
chamado rhythm and blues era uma versão negra de um predecessor do rock. Foi fortemente influenciado pelo jazz,
particularmente pela chamada jump music (um jazz com predomínio de saxofone e pouca presença de guitarras) assim
como pelo gospel. Por sua vez, também influenciou o jazz, dando origem ao chamado hard bop (produto da influência
do rhythm and blues, do blues e do gospel sobre o bebop).
4
21 artistas do chamado "blue eyed soul” ("soul branco"; músicos brancos que tocavam para
platéias brancas) tais como os Righteous Brothers alcançaram um grande sucesso em
curto prazo, apesar de artistas como Aretha Franklin e James Brown terem provado ser
mais duradouros. Outros importantes músicos de soul da época foram Wilson Pickett e
Otis Redding – este último uma das maiores estrelas as Stax. Na mesma época,
precisamente em março de 1964, James Marshall, também conhecido como Jimi Hendrix,
entrava em um estúdio para fazer sua primeira gravação. Na época, Hendrix era um
membro da banda Isley Brothers, posteriormente tocou com Little Richard, Ike and Tina
Turner e várias outras bandas de grandes nomes. Lançou vários discos solos entre eles o
famoso disco psicodélico Are You Experienced, sendo um nome fundamental para o
rock´n’roll e transformando-se numa das maiores lendas da música pop – e, sobretudo,
retomando para os negros o lugar fundamental também no rock’n’roll, até então um
terreno ocupado majoritariamente pelos brancos estadunidenses e ingleses.
Mas, muitas vezes, quando discutimos sobre música, esquecemos que ela não
existiria no vácuo. A música é um produto de um ambiente existente num período vivido
por cada artista que a criou. O período da soul music, por exemplo, definido
aproximadamente entre 1955 a 1970, e está claramente pautado pelos movimentos e
lutas pelos direitos civis do povo afroamericano. Alguns exemplos vêm a tona como na
música A change is gonna come, de Sam Cooke, lançada em 1964 (fig. 9).
Figuras 9 e 10: LPs de Sam Cooke (1964) e Marvin Gaye (1971).
22 Consta que Cooke ficara extremamente comovido após ouvir a música Blowin' in
The Wind, de Bob Dylan, em meados de 1963, cuja letra mordaz falava sobre racismo nos
EUA. Em A change is gonna come, Cooke reflete sobre os dois incidentes mais
importantes de sua vida: a morte de seu filho, Vincent, aos 18 meses, afogado
acidentalmente em junho de 1963; a sua prisão quando tentou se hospedar em um hotel
"apenas para brancos", em Louisiana. Estes acontecimentos são expressados por uma
voz cansada, especialmente no trecho final, que diz: "Houve horas em que eu pensei que
não duraria muito / mas agora penso que vou agüentar / Vem sendo um caminhada longa,
mas as coisas vão mudar".
A change is gonna come (Sam Cooke)
I was born by the river in a little tent
Oh and just like the river I've been running ever since
It's been a long, a long time coming
But I know a change gonna come, oh yes it will
It's been too hard living but I'm afraid to die
Cause I don't know what's up there beyond the sky
It's been a long, a long time coming
But I know a change gonna come, oh yes it will
I go to the movie and I go downtown
Somebody keep telling me don't hang around
It's been a long, a long time coming
But I know a change gonna come, oh yes it will
Then I go to my brother
And I say brother help me please
But he winds up knocking me
Back down on my knees
Ohhhhhhhhh.....
There been times that I thought I couldn't last for long
But now I think I'm able to carry on
It's been a long, a long time coming
But I know a change gonna come, oh yes it will5
Acredito que com a tradução a música perde um pouco do poder e do sentido, por isso senti a necessidade de citar a
letra na forma original.
5
23 Seu exemplo é lapidar de como a soul music dialogou com as questões sociais de
seu tempo, e não apenas com temas como amor e diversão, tantas vezes relacionados a
esse gênero musical.
No final da década de 1960, o som psicodélico, a contracultura e o predomínio do
rock na música pop não poderia deixar de influenciar o soul. No início dos anos 1970,
artistas como Marvin Gaye (What's Going On) (fig. 10) e Curtis Mayfield (Superfly)
lançaram declarações, em forma de discos, com duras críticas sociais.
"Quando a guerra vai terminar? Isto que eu gostaria de saber... A guerra estava
dentro da minha alma." Esta era a pergunta que inspirou Marvin Gaye a criar o grandioso
album de 1971 com o nome de What's Going On?. Ele poderia ter falado pelo país. Na
capa desse disco, Gaye está olhando fixamente para toda uma nação tomada de conflitos
(fig. 9), tais como a Guerra do Vietnan e a guerra racial. Após três décadas, nós ainda
estamos à procura das respostas para as perguntas de Marvin Gaye. "Mãe, Mãe / muitas
de vocês estão chorando /Irmão, Irmão.. / muitos de vocês estão morrendo / Você sabe
que nós temos que achar um jeito de trazer mais amor, aqui, hoje / Pai, nós não temos
que aumentar a intensidade da guerra / Você verá que guerra não é a resposta / Apenas
o amor pode conquistar o ódio / Temos que achar um jeito de trazer mais amor aqui, hoje
/ Vejo linhas e sinais de piquete / Não me puna com brutalidade / O que está
acontecendo? / O que está acontecendo?.."
Com este álbum, Marvin Gaye chegou ao segundo lugar nas paradas de sucesso
Hot100 da billboard, ficando durante 15 semanas consecutivas com esta música,
lembrando que ele já estivera nas paradas pela primeira vez em 1963, e até What's Going
On ele já havia alcancado em primeiro lugar em novembro de 1968 com a música Heard It
To The Grapevine.
What's Going On (Marvin Gaye)
Mother, mother
There's too many of you crying
Brother, brother, brother
There's far too many of you dying
You know we've got to find a way
To bring some lovin' here today - Ya
Father, father
We don't need to escalate
You see, war is not the answer
24 For only love can conquer hate
You know we've got to find a way
To bring some lovin' here today
Picket lines and picket signs
Don't punish me with brutality
Talk to me, so you can see
Oh, what's going on
What's going on
Ya, what's going on
Ah, what's going on
In the mean time
Right on, baby
Right on
Right on
Father, father, everybody thinks we're wrong
Oh, but who are they to judge us
Simply because our hair is long
Oh, you know we've got to find a way
To bring some understanding here today
Oh
Picket lines and picket signs
Don't punish me with brutality
Talk to me
So you can see
What's going on
Ya, what's going on
Tell me what's going on
I'll tell you what's going on - Uh
Right on baby
Right on baby6
Mas, como observa Mike Dias (2010), ao mesmo tempo em que Marvin Gaye
procurava refletir politicamente sobre o seu tempo, artistas como James Brown
conduziram o soul para uma espécie de "jam festival" dançante, resultando nas bandas
de funk dos anos 70, como o Funkadelic, The Meters e a banda War. Mas o que era o
funk?
Segundo o autor Rickey Vincent, que nomeou seu livro justamente com o nome do
gênero Funk, trata-se de uma expressão cultural esplêndida: “o funk tem vibrações
6 Acredito que com a tradução a música perde um pouco do poder e do sentido, por isso senti a necessidade de citar a
letra na forma original.
25 grosseiras e ao mesmo tempo tem sentimentos doces e sexies" (1996, p. 03). No
dicionário, a definição da palavra funk remete a um estilo musical e também a um estado
emocional que mistura o pânico e o pavor. Numa clara liberdade poética, Vicent continua
sua descrição do funk. Para ele, “suas frequências são altíssimas e também muito baixas,
sua essência consiste basicamente nos elementos graves. É uma mistura de todos os
extremos: o funk pode ser quente e também frio (cool), é primitivo porém pode ser
sofisticado, é uma saída e uma entrada, o Funk está em todos os lugares”. Citando o
jornalista do jornal Village Voice, Barry Walters, o autor conclui: "Traduzir o funk em
palavras é como se tivesse que descrever o próprio orgasmo. Ambos te levam a um lugar
onde as palavras se vão e só ficam sensações" (1996, p. 04).
Liberdades poéticas à parte, de fato o funk é um estilo musical intenso e
profundamente ligado aos caminhos trilhados pela cultura negra nos EUA durante os anos
1970. Como prossegue Vincent, existem aspectos do funk que estão intimanente ligados
ao sistema de valores africanos que foram propagados através da cultura negra desde a
África até os EUA. Segundo o autor, “o funk está enraizado profundamente na cosmologia
africana” (1996, p. 05). Idéias como a de que as peassoas são criadas em harmonia com
os rítmos da natureza, com uma unidade espiritual com o cosmos e ao mesmo tempo
com os aspectos corporais e sexuais, estão presentes no funk. No sentido da arte
moderna, conclui o autor, esse gênero musical por ser visto como “uma reação deliberada
e uma rejeição da predileção dos costumes e tradições ocidentais por formalidade e
repressão pessoal”. (1996, p. 05)
O principal representante dessa vertente musical nos EUA nessa época foi James
Brown, já então conhecido como "GFOS - Godfather of Soul” (padrinho do soul). Ele
representava o completo e idealizado homem negro politizado, próspero, sensual – o
implacável guerreiro negro. Ele encarnava o “black proud" (orgulho negro), na música que
dizia "ready to die on our feet, rather than be livin on our knees" (melhor morrer a viver de
joelhos). Brown corporificava, de certa forma, as aspirações do povo afroamericano.
Lançou vários hits desde 1958, com "Try Me”, que permaneceu por 48 semanas no topos
da paradas. Em 1968, cantava "Say it Loud, I'm Black and I'm Proud" (Diga alto, sou
negro e com orgulho), permanecendo durante 10 semanas no topo das paradas da após
seu lançamento. Mas o climax de sua carreira se passou mesmo nos anos 1970, com hits
como “It's a New Day", de 1970, que ficou no topo das paradas durante 32 semanas;
26 "Make it Funky (part 1)", de 1972, que ficou no topo durante 22 semanas; além da trilhamusical do filme O Chefão do Gueto, de 1973, com a música Down and out of New York
City, que ficou no alto das paradas durante 50 semanas no topo da parada7.
Sua banda, os JB's (que também utilizavam vários nomes alternativos como Maceo
and The Macks, A.A.B.B., The First Family e The Last Word e também acompanhavam
cantores como Lyn Collins e Bobby Byrd) contribuía com o R&B e um rítimo primordial
com grooves de funk (que dá enfâse no downbeat - o primeiro compasso de uma batida
de 4 tempos). A banda passou por várias formações, a fase inicial era constituída por
William "Bootsy" Colins (baixista) e seu irmão Phelps "Catfish" Collins (guitarrista) e
fundadores da banda The Pacemakers; Bobby Byrd (orgão) e John "Jabo" Starks (bateria)
e Clyde Stubblefield (bateria) ambos acompanharam James nos anos 60; mais três
metais, Clayton "Chicken" Gunnels, Darryl "Haasan" Jamison e Robert McCollough; e o
tocador de conga Jhonny Griggs. Nesta formação James gravou os funks mais intensos
de sua carreira como Get Up (I Feel Like Beeing) a Sex Machine, Super Bad, Talking
Loud and Saying Nothing. Já na década de 1970, entrou na banda o trombonista Fred
Wesley para liderar a banda juntamente com Maceo Parker e St. Clair Pinckney. Os
irmãos Collins deixaram os JB's e foram tocar com o Parliament-Funkadelic de George
Clinton.
Figuras 11 e 12: LPs de James Brown como padrinho do soul e ícone do funk.
Todas as informações sobre os sucessos de James Brown foram baseadas na parada de sucessos HOT
100 da Billboard. Disponivel em: http://www.billboard.com/charts/hot-100
7
27 O padrinho do soul deu um pontapé inicial para uma nova tendência na música
popular americana. James entregava ao povo seus gritos e seus guinchos juntamente
com o baixo e a bateria pesadíssimas mais do que convincentes, rapidamente foi
considerado o Soul Brother Number 1 (irmão de alma número 1). James Brown é
considerado o padrinho do soul, pois começou sua carreira na época da Soul Music, mas
com a evolução de sua música passou a ser também um ícone da Funk Music.
Say It Loud, I'm Black And I'm Proud (James Brown)
Now we demand a chance to do things for ourserlf
We're tired of beatin' our head against the wall
And workin' for someone else
We're people, we're just like the birds and the bees
We'd rather die on our feet
Than be livin' on our knees
Say it loud, I'm black and I'm proud
Quando Sly Stone e outros chegaram com novas camadas de guitarras fuzz e o
baixo desarraigado com loucuras rítimicas feitas com instrumentos de percussão com
influências do reggae, uma nova coisa foi desenvolvida e o mundo da música nunca mais
foi o mesmo. Adicionar as súbitas congas africanas virou essencial para as perormances
de jazz e soul no mundo inteiro. Gigantes do jazz como Miles Davis, Cannonball Adderley,
Herbie Hancock e Donald Byrd e vários artistas da gravadora Blue Note Records
inclinaram se ao "jazz moderno" adicionando em seus cardápios os baixos eletricos,
pianos eletricos e uma fusão de rítimos focando num conceito de jazz inteiramente novo,
devido a bomba lançada por James Brown.
A bomba explodiu tomando proporções atômicas, e seu eco pode ser ouvido
fortemente nos dias de hoje, iguais aos resquicios eletromagnéticos deixados também por
sua Big Band. A soul music e o funk tomou todos os olhos para o sul dos EUA,
percebemos suas influêncas claramente quando ouvimos Superstition, de Stevie Wonder;
Inner City Blues, de Marvin Gaye; Cloud Nine, dos Temptations, entre outros. Começou
como um efeito e acabou virando um padrão.
Outro artista que não se pode deixar de citar é Curtis Mayfield, instrumentista,
compositor e arranjador de vários clássicos do funk e do soul. Gostaria de falar de seu
primeiro disco, intitulado Curtis, de 1970 (fig. 13), que mostra um ponto de vista
28 diferenciado, amplo e consciente, como podemos ver na primeira faixa do lado A, começa
com uma mulher proclamando as virtudes do "Livro das Revelações" da Bíblia e de fundo
ouve-se um contra-baixo com o efeito de fuzz e umas congas, então Curtis Mayfield grita
(com um efeito de eco gigantesco): "Sisters! Niggers! Whities! Jews! Crackers! Don't
Worry, If there's a Hell below, we're all gonna go!" (Irmãs, negros, brancos, judeus, não se
preocupem, se já um inferno lá embaixo, é pra lá que a gente vai!), então ele começa a
cantar dizendo "que as pessoas fogem de suas preocupações, enquanto os juízes e júris
ditam uma lei que é parcialmente falha e que todos estão errados, as mulheres, os
negros, os brancos, e que era para eles não se preocuparem, pois, se existisse o inferno,
todos iremos para lá."
Figuras 13 e 14: capa do LP Curtis (1970), Mayfield se apresentando.
Curtis ficou famoso pelas suas músicas políticas que tratavam de problemas
sociais.
29 If there's a hell below, We're all gonna go (Curtis Mayfield)
Don't Worry (If there's a Hell Below Us, We're all Gonna Go) (Curtis
Mayfield)
Sisters, brothers and the whities
Blacks and the crackers
Police and their backers
They're all political actors
Hurry
People running from their worries
While the judge and the juries
Dictate the law that's partly flaw
Cat calling, love balling, fussing and cussing
Top billing now is killing
For peace no-one is willing
Kind of make you get that feeling
Everybody smoke, smoke, smoke, smoke, smoke
Use the pill and the dope, dope, dope, dope, dope
Educated fools
From uneducated schools
Pimping people is the rule
Polluted water in the pool
And Nixon talking about don't worry, worry, worry, worry
He says don't worry, worry, worry, worry
But they don't know
There can be no show
And if there's a hell below
We're all gonna go, go, go, go, go
Everybody's praying
And everybody's saying
But when come time to do
Everybody's laying
Just talking about don't worry, worry, worry, worry
They say don't worry, worry, worry, worry
Na época, meados da década de 1970, as músicas de James Brown com base em
R&B e funk corriam o mundo nas mais conceituadas rádios e casas noturnas, desde o
Brasil, passando pela Europa, pela África e chegando fortemente até o Japão.
No final da década, a disco-music viraria febre mundial, sendo pouco mais que
uma evolução mais pop do funk. Rickey Vincent diz que "a disco-music é uma evolução
30 da funk music, mas os conceitos se perdem no caminho, visando apenas o apelo
comercial. Seus conceitos serão relembrados em sua gloriosa forma reconstituídas em
forma de rap, atualmente" (Funk - 1996. p. 09).
2.2 Os negros no cinema e o cinema dos negros
Como observa Lawrence (2009, p. 01), desde o desenvolvimento da indústria
cinematográfica nos EUA no final do século XIX, o cinema representou os negros de uma
forma que refletia sua situação sociopolítica na América do Norte. Considerado inferior
pela maioria branca, o povo negro foi quase sempre representado de forma agressiva ou
inferiorizada, desde pequenos filmes mudos como Dancing Dark Boy (1895) e A Nigger in
the Woodpile (1904), até o prodígio racista de David W. Griffith O nascimento de uma
nação (The birth of a nation, 1914), primeira superprodução do cinema dos EUA, e que
contava justamente a história da Guerra de Secessão propondo a aliança dos brancos do
sul e do norte do país através da Ku Klux Klan, organização racista responsável pela
perseguição aos negros nos EUA (figs. 15 e 16).8
Para saber mais sobre O nascimento de uma nação e seus aspectos racistas, cf. STOKES, Melvin. D.W.Griffith’s The
Birth of a Nation: A history of the most controversial motion picture of all time. New York: Oxford University Press, 2007.
8
31 Figuras 15 e 16: Cartaz e fotograma de O Nascimento de uma Nação (1914).
O filme, apesar do sucesso extraordinário, era tão escandalosamente racista que
causou reações indignadas mesmo na época em que foi lançado, quando a consciência
nacional sobre o racismo nos EUA estava muito menos desenvolvida do que hoje (sobre
isso, v. Lawrence, 2009, p. 02-04). Mas, apesar dos protestos, inclusive da NAACP o filme
foi o primeiro e até hoje um dos maiores sucessos da história da indústria de cinema dos
EUA, lançando as bases comerciais, industriais e estéticas de Hollywood – e também
indicando alguns caminhos bastante discriminatórios no tratamento dos personagens
negros, com reflexos ao longo de todo o século XX.
No primeiro filme sonoro, O cantor de Jazz (The Jazz Singer, de 1927), o
protagonista é Al Jolson, ator branco que fundamentou sua interpretação musical nos
Minstrel Shows (peças teatrais do final dos anos 1920, de dança e musicais feitas por
atores brancos que pintavam a cara de preto e ingênuamente tiravam sarros de afroamericanos). Al fazia o papel de Jakie Rabinowitz, um jovem judeu que desafiava as
tradições de sua família e cantava numa casa de diversões, é punido por seu pai e anos
depois vira um cantor de jazz de sucesso, sempre com conflitos em relações familiares e
de herança cultural.
Ao longo do tempo, houve uma série de tentativas de reagir a esse estado de
coisas, tanto em filmes feitos por realizadores negros e/ou pertencentes a outras minorias
(como os indígenas) como também pelos conflitos que foram levando, pouco a pouco, o
cinema dos grandes estúdios a absorver personagens negros mais positivos.
Desde a década de 1930 até o final da década de 1960, vigorou no cinema
estadunidense o chamado Código Hays, um código de conduta que vinha sendo
respeitado e utilizado pelos produtores e distribuidoras nas décadas anteriores. O Código
Hays foi criado em resposta a uma série de escândalos atormentaram a indústria de
filmes no início da década de 1920, Algumas proibições sugeridas pelo código relativas à
questão racial indicavam que a escravidão branca nunca deveria ser mostrada e que a
miscigenação (relação sexual entre brancos e negros) era proibida.
Esse código, também conhecido como Production Code pressionava por
comportamentos apropriados, respeito perante o governo e defesa dos valores cristãos.
Baseando-se numa inspeção extensiva sobre as gravações originais dos estúdios, os
32 arquivos censurados e os arquivos da Catholic Legion of Decency (CLOD), Hollywood
censurou centenas de filmes que foram expurgados para promover uma política
conservadora década de 1930, principalmente a partir da Grande Depressão. A
obrigatoriedade da utilização do código não existia mas quem se atrevesse a não utilizá-lo
era boicotado, juntamente com o cinema que ousasse a exibir o fime – e, na época, uma
grande parte das salas de cinema nos EUA eram diretamente ligadas aos estúdios, em
um tipo de organização vertical da produção/distribuição/exibição que só seria proibida a
partir do final da década de 1940.
Mas, a partir dos anos 1950, o Código Hays vinha sendo questionado, a princípio
de maneira tímida e depois de forma cada vez mais provocante, até que, no decorrer dos
primeiros anos da década de 1960, o grande movimento de liberação dos costumes
favoreceu o surgimento de imagens que evocavam diretamente assuntos proibidos pela
comissão de censura nos filmes hollywoodianos, o que acabou por derrubar o código em
1968, ano que marcou o abandono oficial da censura no cinema hollywoodiano. Após este
fato o código foi modificado para o sistema de classificação etária que é vigente até hoje
nos EUA.
Figuras 17 e 18: Richard Widmark e Poitier em cena e poster do filme Sangue do meu sangue (1950).
Com o fim da censura política, nascia então um novo gênero, o filme “anti-racista”,
que tivera alguns precursores nos anos 1950, como Sangue do meu Sangue (No way out,
33 Joseph L. Mankiewicz, 1950, que lançou ao estrelado o ator negro Sidney Poitier);
Sementes da Violência (Blackboard jungle, Richard Brooks, 1955,) e Acorrentados (The
defiant ones, Stanley Kramer, 1958), ambos também estrelados por Poitier (figs. 16 e 17).
2.2.1. A imagem do negro no cinema dos EUA nos anos 1960
Na década de 1960, começaram a aparecer alguns filmes hollywoodianos com
protagonistas negros. A principal estrela da época era o ator Sidney Poitier, que já
despontara nos anos 1950 e atuou em vários filmes e fez grande sucesso em diferentes
gêneros, mas ficou mais conhecido por seus filmes em que interpretou papéis com
características bem marcantes.
Em boa parte desses filmes, ele interpretava um jovem simples, que quse nunca
demonstrava raiva, frustração ou ódio por algum motivo ou por alguém. Sempre em
ambiente familiar, mostrando as dificuldades dos afro-americanos, mas de uma forma
camuflada, como em O Sol Tornará a Brilhar (A Rising in the Sun, Daniel Petrie, 1961) em
que o personagem Walter Lee Younger (Sidney Poitier) é um motorista de um empresário
milionário e mora numa casa de dois cômodos com sua esposa, filho, mãe e a irmã. O
filme mostra e dificuldade que ele sofre para tentar proporcionar uma vida melhor à
família. Os filmes mostravam basicamente que os negros eram pessoas boas e
educadas, e as cenas de racismo eram sutis.
Outra característica que começava a aparecer nos filmes dessa época era a
miscigenação, porém não explícita, como em Ao Mestre com Carinho (To Sir, With Love,
James Clavell, 1967). Nesse filme, o mesmo Poitier interpretava Mark Thackeray, um
professor substituto que vai lecionar em uma escola pública para um bando de alunos
rebeldes, desinteressados, agressivos e com problemas de relacionamentos familiares. O
professor substituto flerta quase o filme inteiro com uma professora e tem um affair com
uma de suas alunas, as duas brancas. Há uma cena muito interessante neste filme
quando um de seus alunos vem a falecer e os colegas de classe não podem ir ao enterro
por ele ser negro, alegando que os familiares não aceitariam uma coisa dessas. De
maneira mais explícita, o tema apareceria ainda com Poitier em Adivinhe quem vem para
jantar (Guess who’s coming to dinner, Stanley Kramer, 1967), em que ele e Katherine
34 Hougthon interpretam um casal interracial que enfrenta a resistência de ambas as
famílias. O filme foi premido com o Oscar de Melhor Roteiro Original em 1968, ano em
que o casamento interracial ainda era proibido em 12 estados americanos.
Ainda no mesmo ano, Poitier interpretou o investigador Virgil Tibbs em No calor da
noite (In The Heat of The Night, Normal Jewison, 1967). No filme, um figurão de uma
pequena cidade do Mississippi é assassinado e as suspeitas caem sobre Mr. Tibbs, um
detetive negro de passagem pela cidade. Quando a polícia local descobre quem ele é,
passa a depender de sua ajuda para solucionar o caso. Tibbs acaba tendo que lidar com
criminosos e com o preconceito das pessoas locais. Um dos primeiros filmes que mostra
um negro discutindo problemas raciais sem abaixar a cabeça.
Figuras 19 e 20: Jim Brown no filme Os 12 Condenados e em Rio Conchos.
Além do onipresente Poitier, outro ator negro que atraiu um enorme público nos
anos 1960 foi o famoso jogador de futebol americano profissional (NFL) Jim Brown (figs.
18 e 19), que atuou em filmes dramáticos de ação como Rio Conchos (Gordon Douglas,
de 1964); Os Doze Condenados (Dirty Dozen, Robert Aldrich, 1967); 100 Rifles (Tom
Gries, 1969), em que contracenou com Burt Reinolds e Raquel Welch – neste filme foi um
dos primeiros a ter cenas de amor interracial. Os filmes em que Jim atuou foram
chegando mais perto do gosto da audiência afroamericana, mas ainda parecia faltar algo
que garantisse uma identificação mais direta com sua realidade.
35 Existiam filmes que tratavam do racismo de uma forma mais pesada, como The
Black Klansman de 1966, dirigido por Ted V. Mikels. No começo do filme, a filhinha de
Jerry Ellsworth (Richard Gilden) é assassinada num ataque a igreja feita por um grupo da
Ku Klux Klan. Então, por ser um negro com a pele mais clara, ele se passa por branco e
se infiltra em um Klan para vingar a morte de sua filha. Um filme político até demais para
sua época, cheio de mensagens e protestos, que termina com uma frase de John F.
Kennedy:
“Se um Americano, por sua cor de pele ser escura, não pode almoçar em
um restaurante público, se ele não pode mandar seus filhos para a melhor
escola pública disponível, se ele não pode gozar da vida inteira livremente,
que tanto batalhamos e buscamos para nós, então quem entre nós
gostaria de ter a cor da pele trocada para se colocar no lugar dele?”
2.2.2 O nascimento de um gênero: o Blaxpoitation
Apesar de observada apenas genericamente por grande parte dos estudos de
cinema, uma das mais variadas e numerosas vertentes da cinematografia popular mundial
está ligada ao segmento chamado “de exploração”. Como descreve Cánepa, esse antigo
filão da atividade cinematográfica adquiriu muitas faces ao longo do tempo e ao redor do
planeta, mas, estrito senso, consiste na produção de filmes que têm como objetivo
principal explorar temas considerados polêmicos ou tabus, usando seu potencial de
escândalo com fins comerciais. O termo, adotado do inglês exploitation, foi derivado das
práticas publicitárias e chamarizes usados em cartazes, anúncios de jornais e trailers,
para suprir, em produções baratas realizadas desde as primeiras décadas do século XX,
a falta de estrelas e astros famosos ou o reconhecimento como produtos de grandes
estúdios. Após os anos 1950, exploitation também passou a designar um conjunto mais
específico de filmes eróticos, policiais e de horror destinados a atrair principalmente o
público masculino (2009. p. 01).
Na dissertação de mestrado A Cultura do Lixo: Horror, sexo e exploração no
cinema (2002), Lúcio Piedade, partindo das idéias do pesquisador estadunidense Eric
Schaeffer, divide a história do cinema de exploração em quatro fases. A primeira, a qual
chama de Clássica, abrange filmes muito baratos, exibidos marginalmente entre os anos
1920 e 1950, cujos temas centrais eram assuntos proibidos como sexo, prostituição, uso
de drogas, nudez e delinqüência juvenil (às vezes feitos com fins educativos, mas que
36 acabavam sendo apropriados pelo circuito de exploração). A segunda fase, a do
Teenexploitation, envolve espetáculos feitos especificamente para jovens, tratando dos
temas clássicos e também de novos tipos de histórias de horror estreladas por terríveis
monstros, num fenômeno que deu grande impulso ao cinema B nos EUA. A terceira fase,
tida como a da Explosão, a partir de 1959, marca o surgimento de vertentes e
ramificações, fazendo com que a palavra exploitation passasse a designar gêneros muito
específicos a partir de subdenominações como sexploitation (para filmes cujo chamariz
principal é o apelo sexual), blaxploitation (para filmes com temática violenta envolvendo
afro-descendentes), nunexplitation (para histórias bizarras passadas em conventos);
woman in prison (para filmes sobre presídios femininos) etc. Por fim, na fase da
Generalização, o cinema de exploração se espalha pelo mundo, tendo suas próprias
versões nacionais e vendo muitas de suas práticas serem apropriadas pelo cinema
mainstream (PIEDADE, 2002, p. 17-18).
É no contexto da explosão e da generalização do cinema de exploração que se
pode compreender o gênero que interessa a este trabalho: o blaxploitation. Como observa
Mikel Koven (2001, p.10), a definição de blaxploitation é problemática e se refere a filmes
que satisfizeram o desejo dos espectadores negros estadunidenses de ver atores e
atrizes negros nas telas interpretando papéis importantes. Mas esses papeis não
necessariamente correspondiam à vida real dos espectadores. Não se tratava de ver no
cinema a própria realidade, mas sim um imaginário idealizado (idealização incluía poder
se impor através da violência e da atitude cool) e em boa parte das vezes transgressor
(no sentido da resposta violenta ao racismo e à estrutura social excludente, resposta essa
que poderia adquirir o sentido criminal).
Nesse sentido, o autor chama a atenção para as diferenças entre filmes dirigidos
por brancos e por negros, no sentido de uma percepção melhor dos segundos em relação
à realidade da população afrodescendente (KOVEN, 2001, p. 11). Mas, também observa
Koven, (2001, p. 12-13), a ligação dos filmes à indústria do exploitation de empresas
como a AIP (American International Pictures) levava à exploração do noticiário (que
tematizava com frequência a violência nas comunidades negras) e também ao sexo e a
violência, que, como mostra Lúcio Piedade (2002) em sua dissertação, são temas centrais
para a indústria do exploitation. E ele vai mais longe: “o período do blaxploitation não é
representativo do cinema negro nos EUA, pois estava sob o domínio de uma indústria dos
37 brancos, reproduzindo em grande parte sua própria visão de mundo”. (KOVEN, 2001, p.
16, Trad. Livre do Autor)
Ainda assim, não há dúvidas de que esse cinema teve um impacto cultural
gigantesco para as comunidades negras e criou imagens e ideias contraditórias que
marcam um momento da cultura afirmativa. Na descrição de Walker, Raush e Watson,
mesmo sendo o blaxploitation off-Hollywood, sua influência sobre o público traria
modificações importantes ao cinema dos EUA:
Irmãos poderosos e irmãs super sexies, seus cabelos escolhidos pela
perfeição esférica e suas brilhantes armas em punho, iluminaram a tela do
cinema numa explosão que mudou para sempre Hollywood. A época eram
os anos 1970, e boa parte da America – especialmente a America negra –
ainda lidava com os tumultuados anos 1960. Dessa era veio um novo tipo
de filmes que mudou completamente a forma como as pessoas negras
eram apresentadas nos filmes. Naqueles anos, esses filmes foram
chamados de blaxploitation. (WALKER, RAUSCH, WATSON, 2009, p. vii).
Mas a empolgação dos autores com esse cinema também não vai tão longe.
Segundo eles, tanto a identificação quanto a valoração desse gênero são questoes
polêmicas e trazem poucas certezas:
Tão dificil quanto decidir que filme deu origem ao gênero blaxploitation é
definir o que esse gênero realmente é, quanto ele durou, e quais filmes
podem se encaixar nessa classificação. O termo é positivo ou negativo?
Pode ser o “blaxploitation” usado para descrever filmes feitos antes do
termo ser cunhado, ou depois que cessou a produção desses filmes em
série? Se a maioria dos filmes eram thrillers de ação, o que fazer com os
dramas, as comédias e os filmes de horror que são assim classificados?
(WALKER, RAUSCH, WATSON, 2009, p. viii)
De fato, quando se discute o blaxploitation, essas e outras dúvidas surgem
necessariamente. Em que o gênero diferia dos filmes de ação hollywoodianos
convencionais? Todos os filmes dos anos 1970 contendo atores/protagonistas/temas
negros são blaxploitation? Trata-se de um gênero, de subgênero ou de um ciclo?
Certamente é uma tarefa difícil responder com clareza a essas questões, mesmo porque
alguns diretores e atores não aceitaram e não aceitam até hoje o termo, por causar
conflitos e interpretações negativas. No caso do diretor e ator negro Keenen Ivory
Wayans:
38 Tenho apenas uma única visão pessoal sobre o termo Blaxploitation,
aquela que é racista. Não existem coisas do gênero "Negro". Negro não é
um gênero. Não existem filmes "brancos", apenas filmes. Existem filmes
bons, filmes ruins e filmes de exploitation, Muitos destes termos começam
de uma maneira inocente. É como eles eram usados. O termo era utilizado
em uma forma muito negativa tanto pelos grupos de pessoas com
interesse pessoal e a mídia do mainstream (CHAVEZ; CHAVEZ;
MARTINEZ, 1998, p. 80).
Consciente das polêmicas, mas com base em minhas pesquisas realizadas até
agora, porém, considerarei o blaxploitation como um ciclo de filmes (a maioria deles de
ação) da década de 1970 que trata de temas/problemas/situações dos afroamericanos,
contendo atores negros como protagonistas, com um elenco formado majoritariamente
por negros e que eram direcionados ao público negro dos guetos, num contexto de
produção ligado ao cinema de exploração. Eram filmes na maioria das vezes abordavam
o submundo do crime e da marginalidade, mas também a cultura negra (música, arte,
moda, comportamento) e o orgulho negro, além, é claro, dos problemas com as drogas e
com as condições muitas vezes precárias dos guetos habitados pelas famílias
afroamericanas nas grandes cidades.
Esses filmes também tinham outras características marcantes, como a presença
recorrente de certas categorias de personagens: os “pimps and hores” (cafetões e
prostitútas), os militantes panteras negras que questionam as atitudes tanto de negros
como de brancos, os antagonistas geralmente encarnados por atores brancos em papéis
de homens racistas (sempre chamados nesses filmes como o "the man"), o “pusher”
(traficante de drogas), o pastor da igreja e seus seguidores, a polícia e os políticos
corruptos.
Outras características frequentemente referidas pelos analistas desses filmes são o
estilo exagerado, a presença do sangue, as vestimentas extravagantes, muitas cores,
muitas armas, muitas cenas de sexo. A impressão que se tem é que eles resolveram
fazer totalmente o oposto do que o código Hays sugeria até uma década antes.
Então, generalizando a questão do blaxploitation para além dos filmes de ação
mais lembrados hoje, e pensando em termos de filmes comerciais da década de 1970
direcionado ao público negro, é preciso lembrar que foram lançados também vários outros
blaxploitation com temas de terror, western, artes marciais e até mesmo animações.
39 Foram lançados mais de 200 títulos considerados blaxploitation, mas falarei, neste
momento, de alguns que acredito serem os mais importantes, os quais dividi como
representantes de três fases: (1) o nascimento e a criação da fórmula; (2) o boom e
invasão no mainstream; (3) a decadência e o fim.
Na primeira fase, em torno de 1970, começaram a surgir filmes com protagonistas
ambiciosos, objetivos modernos e histórias especificamente direcionadas ao público
negro da periferia. Um desses filmes foi Halls of Anger (Paul Bogart, 1970, produzido pela
pequena Mirish Corporation, fig, 21), que seguia à risca conceito "não se mexe em time
que está ganhando" utilizado pelos filmes de exploração. O filme remetia-se ao sucesso
de Ao Mestre, Com Carinho (produção de porte médio da Columbia Pictures), mas com
enredo mais complexo. O filme tratava do professor Quincy Davis (interpretado por Calvin
Lockhart) em um colégio constituído apenas com alunos brancos, num bairro de brancos.
Eis que o diretor desta escola propõe um cargo novo a ele em uma nova escola no bairro
em que ele havia crescido. Uma escola de negros, num bairro negro. Mas a problemática
é apresentada quando o diretor diz, numa das primeiras cenas, que sessenta alunos
brancos serão transferidos para essa escola onde há três mil alunos negros. O professor
reluta, mas acaba aceitando a missão de manter a paz nessa situação potencialmente
explosiva. A minoria branca é tratada como os negros eram tratados na vida real, eram
proibidos de utilizar certos bebedouros e coisas desse tipo. Quincy continua lutando para
manter a paz e a harmonia entre os alunos, mas vê que o problema é bem maior do que
apenas dentro da escola e que não tem controle sobre a sociedade. Aqui, ao mesmo
tempo em que se percebe a crítica social ao racismo e um apelo à igualdade, também é
possível notar tanto um certo ar de “desforra” para o público negro quanto uma visão
antipática dos alunos negros, num tipo de contradição muito frequente nos filmes de
exploitation.
40 Figuras 21 e 22: Cartazes de Halls of Anger e Rififi no Harlem.
Outros filmes com temas mais ou menos semelhantes surgiram nesse mesmo ano,
como The Liberation of L.B. Jones (do grande diretor branco William Wyler, e produzido
por uma pequena companhia francesa, a Liberation Co.), que falava do primeiro xerife
negro de uma cidadezinha no interior e de todo seu processo para ganhar respeito entre
os moradores dessa cidade.
Esses títulos foram lançados em 1970, tratavam mais de contenção e volatilidade,
temas do cotidiano, conseqüentemente surge o interesse do público negro nessa nova
linha de produtos, não apenas para assistir aos filmes, mas criou-se também uma
atmosfera de excitação e prosperidade que começara a vigorar nos guetos. A MGM, uma
das maiores produtoras de Hollywood, que, como todas, passava por grandes
dificuldades econômicas naqueles anos, percebe o potencial comercial lança logo a
comédia Rifiri no Harlem (Cotton Comes To Harlem, Ossie Davies, 1970, fig. 22), obtendo
grande sucesso de bilheteria (v. tabela na página 47).
Mas há historiadores que afirmam que o ciclo do blaxploitation começou mesmo
em 1971, com Sweet Sweetback BaadAsssss Song, dirigido e estrelado pelo artista negro
Melvin Van Pheebles, que, numa produção pequena de menos de quinhentos mil dólares,
arrecadou mais de quinze milhões de dólares nas bilheterias estadunidenses (v. tabela, p.
47). Na esteira desse sucesso, novamente a MGM investe no filão com o filme sobre o
detetive negro Shaft, interpretado por Richard Roundtree (Gordon Parks, 1971). O filme
41 custou pouco mais de um milhão de dólares, e rendeu mais de doze milhões. A estes
filmes seguiu-se uma alavanche de dinheiro em forma de melodramas focando em
gangsters, cafetões, prostitutas, detetives sexualmente exaltados. Suas apresentações de
sensuais, carismáticos e, acima de tudo, poderosos personagens negros, independente
de suas ambivalências morais, teve um efeito cultural e econômico fundamental.
Foi então que se iniciou a segunda fase do blaxploitation, com sua entrada ao
mainstream. Como descrevem WALKER, RAUSCH e WATSON, (2009, p. viii), esses
filmes ajudaram a sustentar não apenas alguns estúdios (como a produtora exploitation, a
AIP), como também deram lucro a grandes estúdios (como a MGM) e, sobretudo, a salas
de cinema dos centros das cidades, então abandonadas pelo público branco e ocupadas
pelos negros. Tempos depois, essas salas seriam definitivamente fechadas e substituídas
pelos multiplexes nos subúrbios. Mas, naquele momento, os filmes estrelados por heróis e
anti-heróis negros eram uma solução comercial válida.
Figuras 23 e 24: Capa do DVD de Sweet Sweetback´s Baadassss song e cartaz de Shaft.
Em 1972, apareceram filmes como Blacula (comédia de vampiro dirigida por
William Crain e produção da AIP, fig. 25), Across the 110th Street (filme de guerra entre
máfias dirigido por Barry Shear para a produtora Film Guarantors, que produziu apenas
dois filmes), Super fly (história de um traficante dirigida por Gordon Parks Jr. em co-
42 produção com a Warner Bros.) e O ocaso de uma estrela (Lady sing the blues, drama
biográfico sobre a cantora de jazz Billie Holliday estrelado pela cantora Diana Ross e
dirigido Sidney Furie, numa co-produção da Paramount com a gravadora Motown), que
fizeram um lucro gigante de bilheteria, como se pode conferir na tabela da página 47.
No ano seguinte, seria a vez de O chefão do Gueto (Black Ceasar, de Larry Cohen,
produção da AIP, fig. 26), um dos filmes mais famosos so período, que contava a história
de um jovem negro que monta um esquema mafioso de venda de drogas e entra em
choque com a máfia italiana e com a polícia.
Este foi também o ano em que uma atriz negra ascendia ao estrelato: Pam Grier,
que estrelou a continuação de Blacula chamada Scream, Blacula, Scream e o grande
sucesso Coffy (Jack Hill, em produção para a AIP, fig. 27), em que interpreta uma
enfermeira obrigada a se envolver no mundo do crime. No ano seguinte, ela faria se
eternizaria no papel da prostituta com sede de vingança Foxy Brown (também da parceria
de Jack Hill com a AIP), mais tarde homenageada por Quentin Tarantino no longa Jackie
Brown, uma homenagem do diretor a vários filmes de blaxploitation, que foi estrelado por
ela em 1997.
Figuras 25, 26 e 27: Cartazes de Blacula, O Chefão do Gueto e Coffy.
43 Mas, em 1975, algumas coisas começaram a mudar na indústria de cinema dos
EUA. Em primeiro lugar, o sucesso extraordinário de Tubarão (Jaws, de Steven Spielberg)
indicou caminhos muito mais lucrativos para os grandes estúdios, que foram perdendo o
interesse pelo ciclo de filmes voltados para o público dos guetos e voltaram a investir em
produções maiores, buscando cada vez mais ao público adolescente (mudança que teria
seu momento decisivo em 1977, com Guerra nas Estrelas, de George Lucas). Em função
disso, começou a crescer o mercado para os multiplexes, os cinemas de shopping centers
nos subúrbios mais abastados de população predominantemente branca, o que fez com
que os cinemas dos centros da cidade, que vinham exibindo muitos longas-metragens de
blaxploitation, iniciassem uma longa decadência.
Além disso, apesar do público afro-americano estar gostando dos filmes, ao
mesmo tempo havia aqueles que se sentiam ofendidos, alegando que nem todos os
afroamericanos eram traficantes ou andavam armados e falavam gírias – aliás, na
realidade, tratava-se de uma minoria. Esse foi um dos fatores, entre outros que causaram
o fim do ciclo blaxploitation. A campanha feita pelas organizações que lutavam pelos
direitos civis como a NCAAP e a CORE, que acusaram os filmes de estereotipar
negativamente os negros, entraram com uma liminar e acabaram vencendo, proibindo os
estúdios de lançarem mais filmes do gênero. Os filmes em si não eram ricos em
variedade e originalidade, as mesmas histórias eram contadas de várias maneiras
diferentes, repetidamente, assim foi secando a fonte de temas. Os orçamentos vinham
diminuindo cada vez mais, e quando já se tem um orçamento baixo e a mesma história é
contada pela terceira ou quarta vez consequentemente você perde mercado, perde
público e chega ao fim.
Então, se de um lado a lenta apropriação dos personagens negros pelo cinema
mainstream era uma realidade incentivada, entre outras coisas, pelo blaxploitation, por
outro lado, esses filmes já não tinham o interesse de mercado que tinham antes. Ainda
assim, os lucros de alguns dos filmes citados mostram a importância deles na primeira
metade dos anos 1970 nos EUA, como se pode perceber na tabela abaixo.
Título
Custo de produção
Lucro bruto de
estimado (orçamento)
bilheteria nos EUA
44 Sweet Sweetback's
$ 150.000
$ 15.180.000
Shaft
$ 1.2 Milhões
$ 23.250.000
Cotton Comes to Harlem
$ 2.2 Milhões
$ 15.375.000
Superfly
$ 149.000,00
$ 18.900.000
Coffy
$ 600.000
$12.944.000
BaadAssss Song
Tabela 1. Fonte: Variety Magazine
Os números falam por si, e são apenas alguns exemplos, pois existiram
aproximadamente duzentos títulos na década de 1970 apontados como blaxploitation.
Filmes de vários países foram influenciados na época, como: Black Fire (México);
Soul Brother of Kung Fu e Black Dragon ambos de Hong Kong; Mandingo e Passion
Plantation, ambos italianos; Mister Death Man, da África do Sul; Slavers, do Oeste da
Alemanha; Man Friday e Embasy, ambos da Grã Bretânia; Harder They Come, da
Jamaica – todos devidamente rebatizados e importados para os EUA. Até mesmo o Brasil
não ficou fora dessa onda, com o filme A Rainha Diaba, lançado oficialmente em 1974
pelo diretor Antônio Carlos da Fontoura, baseado numa peça de Plínio Marcos. O filme
não tratava diretamente do racismo, mas da criminalidade e do tráfico de drogas, tendo
um protagonista negro cercado de vários clichês encontrados nos blaxploitation.
45 CAPITULO III - FILMES E TRILHAS SONORAS
Como já foi dito no começo desta dissertação, o objetivo de análise é mostrar a
relação de alguns filmes do ciclo blaxploitation e de seus concorrentes produzidos nos
grandes estúdios com as trilhas musicais compostas e executadas por grandes artistas da
black music (música negra) naquele período, mostrando a importância da combinação de
música e cinema para a conflituosa cultura afirmativa dos negros no começo dos anos
1970.
Antes disso, porém, é preciso destacar que, desde o final dos anos 1960, o cinema
dos EUA vinha modificando suas trilhas musicais, incluindo canções-tema extradiegéticas como trilhas principais de filmes não-musicais, em substituição, por vezes, das
músicas orquestrais do cinema clássico hollywoodiano. Exemplos disso são o filme de
estrada Sem Destino (Easy Rider, Peter Fonda, 1969) e o drama romântico A primeira
noite de um homem (The graduate, Mike Nichols, 1967), que utilizaram bandas como
Stepenwolf e Simon & Garfunkel para comporem os temas musicais principais – no caso,
as canções Born to be wild e Ms. Robinson, respectivamente, que foram enormes
sucesso nas rádios e nas vendas de discos em seus respectivos anos, tornando-se
clássicos da música pop até hoje.
Essas canções ganhavam novos significados ao se relacionarem com as imagens
dos filmes, permitindo um novo uso mais complexo para a música no cinema de ficção,
pois agora não apenas as melodias e o ritmo, mas também as letras das canções podiam
ser usadas para comentar a narrativa, acrescentando novos sentidos. Nesse sentido,
observar o uso de algumas canções soul e funk nos filmes blaxploitation nos ajuda a
perceber como, no cinema voltado mais especificamente ao público negro, foram os
ritmos da música negra (e não o pop rock) que marcaram as trilhas musicais, o que nos
leva a perceber uma exploração de nicho de público para além dos filmes, levando-nos
também a outros aspectos do sistema da indústria cultural.
Para isso, foram escolhidos cinco filmes exemplares e suas trilhas musicais
formadas por grandes canções-tema: Sweet Sweetback Badaaaaasss Song, com trilha
musical do conjunto Earth, Wind & Fire; Shaft, com trilha musical de Isaac Hayes; Across
the 110 St, com trilha musical de Bobby Womack; Black Ceasar, com trilha de James
Brown; Superfly com trilha de Curtis Mayfield.
46 3.1 Sweet Sweetback's Baadaaaaasssss Song
Ano: 1971, EUA
Gênero: Ação / Aventura
Duração:: 97 min.
Produtora: Cinemation Industries
Diretor: Melvin Van Peebles
Produtor: Melvin Van Peebles
Roteirista: Melvin Van Peebles.
Elenco: Brer Soul (Melvin Van Peebles),
Simon Chuckster, Johnny Amos, John
Dullaghan,
Trilha-sonora: Earth Wind and Fire e Melvin
Van Peebles
Slogan: "You Bled my Momma... Bled my
Poppa... but you won't bleed me..."
Cartaz e ficha técnica Sweet sweetback baadasssss song
Filme independente muito importante, se não o mais, para o nascimento do
blaxploitation foi Sweet Sweetback’s Baadasssss Song dirigido, escrito e atuado por
Melvin Van Peebles. O diretor dizia que Sweetback era um ataque aos grandes estúdios
de cinema na época. Para isso, ele criou como protagonista um personagem bastante
sexualizado, estrelando cenas raras de sexo com atores negros. Van Peebles desejava
utilizar o sexo como foco principal para conseguir a atenção do povo afroamericano para
difundir seus ideais. As tais mensagens não foram absorvidas pela grande maioria
instantaneamente, mas o filme teve uma repercussão muito boa fora dos EUA. Em Paris,
Melvin foi considerado um gênio na época.
Sua edição em andamento rápido e seus jump-cuts eram caractéristicas únicas no
cinema norte-americano para a época. Louis Parker, que escrevia para o jornal Houston
Chronicle, comentou que a edição do filme tem uma "improvisação jazzistica com uma
qualidade muito boa, frequentemente aparecem cenas com luzes estridentes e
psicodélicas que ilustram muito bem a alienação de Sweetback" (TORRIANO; VENISE,
2002, p.106). Torriano também escreveu que o filme possui "estranhos ângulos de
câmera, superimposições, efeito de reverse, imagens de rack-focus, zooms extremos,
stop-motion, step-printing e abundância de cenas com tremores causados pelo dispositivo
47 em mão e que todas estas características ajudaram para expressar a paranoia do
pesadelo que a vida de Sweetback veio a se tornar” (2002, pp. 106-107).
O slogan utilizado nesse filme era “You Bleed my momma, you bleed my poppa,
but you ain’t bleed me” (“Você sangrou minha mãe, sangrou meu pai, mas não vai me
sangrar), frase também é utilizada de refrão na trilha sonora.
Sweetback é um joven garoto afro-americano, orfão (representado por Mario Van
Peebles, filho de Melvin), adotado por um proprietário de um bordel nos anos 40. No
bordel, o garoto trabalhava como entregador de toalhas. Esta mulher o nomeia "Sweet
Sweetback" devido ao tamanho de seu pênis. Como adulto, Sweetback, representado por
Melvin Van Peebles, trabalha fazendo peças sexuais, entretendo os clientes da casa em
shows de sexo. Numa noite dois policiais aparecem para conversar com o chefe de
Sweetback, Beetle (Simon Chuckster) sobre um homem que fora assassinado, e dizendo
que a comunidade afro-americana está pressionando-os para entregar o suspeito. Os
policiais propõem levar Swetback preso, acusando-o pelo crime e dizendo que o soltariam
em alguns dias por falta de evidências, apenas para acalmar os ânimos da comunidade
afro-americana. Beetle acaba concordando e eles lvam Sweetback para a cadeia. No
caminho à delegacia, os policiais prendem um jovem qe faz parte dos Black Panthers,
chamado Mumu (Hubert Scales) e o algemam ao Sweetback. Mas Mumu insulta os
policiais e no caminho à delegacia eles param e fazem os dois descerem do carro, soltam
as algemas do pulso de Mumu e começam a espancá-lo. Sweetback que ainda está
algemado, aproveita as algemas que estão em seu pulso e bate, revidando a ação
violenta do policial, levando-o ao chão, inconciente.
Sweetback foge juntamente com Mumu e vai à casa de uma mulher que o solta
das algemas em troca de sexo. Agora, sem algemas Sweetback continua sua corrida e
logo é capturado pelos Hells Angels, uma gangue de motoqueiros liderados por uma
mulher que fica impressionada pelo tamanho de seu pênis e decide ajuda-los em troca de
sexo. A polícia encontra Sweetback e Mumu onde estão estacionadas as motos, mas
Sweetback consegue fugir, Mumu foge com um dos motoqueiros (John Amos) e logo os
dois são mortos. Logo após a fuga de Sweetback, ele encontra com um homem branco
que simpatiza com ele e decide aceitar trocar as roupas com ele. O filme se conclui no
deserto, onde a polícia de Los Angeles mandam vários cães de caça atrás de Swetback.
Ele foge até chegar ao Rio de Tijuana jurando que voltaria para cobrar as dívidas.
48 Nas legendas do início do filme, está escrito: “Esse filme é dedicado às pessoas
que estão cheias do the man (termo bastante utilizado nos filmes blaxploitation, nesse
caso, referindo-se aos políciais racistas, mas normalmente faz referência aos brancos).
Nos créditos de elenco, aparece participação especial de “black community” (querendo
dizer que ele não utilizou atores profissionais e sim o povo da comunidade afroamericana).
A trilha sonora foi gravada pela banda Earth Wind and Fire, ainda então
desconhecida. Melvin Van Peebles não tinha dinheiro para qualquer tipo de publicidade
tradidional utilizada na época, então ele lançou o disco de vinil da trilha sonora alguns
meses antes do lançamento do filme, justamente para gerar uma publicidade ao filme,
visitava estações de rádios que transmitiam músicas negras, falava do disco e já
aproveitando a situação fazia um merchandising do filme. Pelo fato de Melvin não ter
dinheiro nem para contratar um compositor para esta trilha, ele decidiu fazer isto por si
próprio, Como ele não sabia ler nem escrever músicas, numerou todas as teclas de um
piano para que pudesse relembrar das melodias. Melvin dizia que ter criado a história e os
cenários de um jeito que o som possa ser usado como parte integrada do filme. Ele
acreditava que as produtoras e diretores de filmes nunca davam muito valor ao audio nos
filmes que foram produzidos até a época, uma de suas maiores preocupações era de
manter o áudio e as músicas muito bem relacionadas com o filme. As músicas foram
tocadas pelo ainda desconhecido na época, Earth, Wind and Fire. Após o grupo ter
gravado a trilha sonora, o sucesso deles começaram a despontar, lançando vários hits de
funk. O contato foi feito pois sua secretária estava saindo com um dos integrantes do
grupo e assim que Melvin contou o roteiro eles se interessaram e gravaram a trilha
mesmo sem cachê, após o sucesso do filme eles foram recompensados.
A trilha sonora de Sweetback contêm músicas que lembram muito as músicas
gospel cantadas nas igrejas frequentadas pelo povo afro-americano, com uma pequena
diferença, as letras, ele gravou um coral que cantou no refrão da música tema do filme
(trecho da letra citada no primeiro parágrafo deste sub-capítulo). Logo na introdução do
filme a cena que é mostrada é a do pequeno Sweetback (Mario Van Peebles, filho de
Melvin) perdendo a virginidade com uma das prostitútas que trabalham no local. O fato
mais chocante desta cena é que enquanto está sendo mostrado cenas da prostitúta se
despindo, chamando o garoto para o quarto e deixando-o nú, assim que o garoto começa
49 com o ato sexual uma música de igreja começa a tocar "I'm gonna let it shine..." e logo
entra um baixo de funk para anunciar o nome do filme, a música de igreja volta a soar
novamente, ocorre um corte de cena e na próxima sequencia Sweetback já é um adulto.
As faixas do disco são nomeadas pelas cenas do filme, como por exemplo a faixa
um do lado um do vinil foram nomeadas de "Sweetback Losing His Cherry" e a segunda
de "Sweetback Getting It Uptight And Preaching It So Hard The Bourgeois Reggin Angels
In Heaven Turn Around", isto é, pelo fato de Melvin além de dirigir o filme também fez toda
a trilha sonora ele já imaginava as músicas, as vezes, antes mesmo de ter pensado no
roteiro em si.
Como havia de se esperar os grandes estúdios ignoraram-no, por isso o filme foi
financiado pelo próprio diretor, transformando idéias em um sucesso underground
gigantesco. O filme foi censurado (por um júri do qual todos os integrantes eram brancos),
mas foi liberado logo após o lançamento de Shaft, em 1971 (ver a seguir). Sweetback foi
enormemente aceito pela comunidade e pelos militantes dos Panteras Negras, tornandose até uma obrigação para quem viesse fazer parte do grupo. O orçamento desse filme foi
de U$ 150 mil (sendo que U$ 50 mil Melvin pediu emprestado de Bill Cosby), e o lucro foi
de U$ 15.180.000, superando as expectativas.
O final do filme era chocante para os afro-americanos frequentadores de cinema,
pois eles nunca imaginariam que Sweetback fugiria das mãos dos policiais. O crítico de
cinema Roger Ebert considera, inclusive, que este é um motivo pelo qual o filme não pode
ser etiquetado exatamente na categoria de exploitation, já que se trata de uma obra de
denúncia e transgressão política (EBERT, 2004).
50 3.2. Shaft
Ano: 1971, EUA
Gênero: Ação / Aventura
Duração: 100 min.
Cia.Produtira: Metro Goldwyn Mayer
Diretor: Gordon Parks
Produtor: Joel Freeman
Roteiro: Ernest Tidyman e John D.F. Black,
baseados no romance de Ernest Tidyman
Elenco: Richard Roundtree, Moses Gunn,
Charles Cioffi, Christopher St. John
Trilha sonora: Isaac Hayes
Slogan: "Hotter than Bond, Cooler than
Bullit... Shaft's his name. Shaft's his game."
Cartaz e ficha técnica Shaft
Quando se ouve o termo blaxploitation, o primeiro nome que vem à mente da
maioria das pessoas é Shaft, dirigido por Gordon Parks, filme lançado pela MGM, o mais
conhecido do gênero, o ícone. O blaxploitation entrava em sua segunda fase o
mainstream (citada no capítulo anterior). A MGM vinha trabalhando em um filme como
Sweetback, mas com algumas diferenças. Mais glamuroso, com enredo mais
convencional e com uma realidade menos claustrofóbica que Sweetback.
Dirigido por Gordon Parks, que era fotógrafo, poeta, jornalista, músico e ativista,
padrinho da filha de Malcom X. Foi o co-fundador da revista Essence. Ele foi o primeiro
afroamericano a trabalhar na revista Life. Como músico (pianista de jazz) compôs e
coreografou uma peça de ballet dedicado a Martin Luther King. The Learning Tree foi o
primeiro filme dirigido por um homem afro-americano, o próprio Gordon Parks, mas isto é
apenas uma informação relevante, a parte chocante é que isto nunca havia acontecido
antes de 1969. Ele dirigiu o filme (baseado em seu próprio livro de 1963), ganhando boas
críticas mas não teve muito sucesso com bilheterias. Dois anos depois ele fez Shaft, um
filme de ação com elementos de film noir, conta a história de um detetive afroamericano,
John Shaft (Richard Roundtree), que vaga pelo Harlem (bairro de Nova York) e entre os
bairros onde fica a máfia italiana. Ele é também uma máquina de sexo também, muito
51 estiloso, com sua jaqueta de couro e seu jeito de andar. A primeira cena mostra ele numa
tentativa frustrada de pegar um taxi por ele ser negro. Shaft é contratado por Bumpy
(Moses Gunn), um gângster que quer saber quem sequestrou sua filha e porque, por ter
seu nome sujo por ser envolvivo em tráfico de drogas, extorsão e jogos de azar, não
poderia recorrer à policia. Shaft é o primeiro héroi negro americano do cinema, antes
disso o povo afro-americano nunca tinha visto um herói assim. Richard Roundtree, que
havia feito apenas alguns papéis em teatro e trabalhos de modelo virou um ícone da
contracultura.
De acordo com Melvin Van Peebles, no livro What it Is... What it was... a produção
original era para ser uma história de um detetive branco mas percebendo o sucesso de
Sweetback, o script original foi reescrito e acabaram utlizando uma adaptação do
romance de Ernest Tidyman de 1970 chamado Shaft que tem como foco um detetive
afroamericano. As produções de Shaft se iniciaram em janeiro de 1971 logo após o
lançamento do filme de Melvin. No começo de novembro de 1971, o The New York Times
reportou que o filme que durou 10 semanas para ser filmado seria lançado e Richard
Roundtree seria protagonista, e que tinham como base o livro de Tidyman. Ernest
Tidyman que era branco, era um editor da The New York Times antes de ser um escritor
de romances. Ele vendeu os direitos de Shaft para a MGM (antes do livro ser publicado) e
foi honrado pela NAACP pelo seu trabalho no filme e no livro Shaft.
O filme foi um dos três maiores únicos lucros que a MGM teve no ano, com o
orçamento de apenas U$ 500 mil, fazendo U$ 23 milhões de lucro em vendas de
bilheterias. Este influenciou uns 150 a 200 outros filmes feitos na década de 70 (ou seja,
praticamente todo o ciclo blaxploitation).
Certamente Sweet Sweetback's Badaaaaass Song foi um big hit, mas, por ser
independente e não de um estúdio de produção renomado seu sucesso, foi em outro
nível, independente de vendas de bilheteria, sua atitude era muito "militante" para o
mainstream, enquanto que Shaft era muito mais equilibrado nesse aspecto. No filme, o
protagonista afroamericano sempre estava um passo a frente de todos, era sempre o cara
mais esperto, o mais malandro da sala e sempre provava sua superioridae diante dos
policiais brancos, ele não odiava os brancos e nem sentia inveja, nuca demonstrava raiva
por alguém ou algo. Ele apelava pelo público afroamericano frequentador de cinema mas
52 sem assustar os executivos brancos por trás dos grandes estúdios, esta era a fórmula que
Hollywood gostaria de emular, pelo menos eram a primeira intenção.
E há que destacar mesmo a diminuição da discussão sobre o preconceito racial
numa comparação entre Shaft e Sweet Sweetback. Shaft é um afro-americano que
trabalha num mundo de brancos e ele está perfeitamente satisfeito. Em uma das cenas
um, dos seus conhecidos, um militante afroamericanos o acusa de "pensar como um
homem branco" (de ser um vendido como o Uncle Tom) e Shaft logo responde o seu
amigo que ele não está pensando para perguntar aquilo e que se continuasse falando
desta forma, ele seria morto rapidamente. No filme, Shaft trabalha com muitos policiais
brancos (quando realmente precisa), mas, por opção ele prefere trabalhar sozinho e
quando precisa de ajuda do grupo de militantes negros (que são seus associados) ele
sempre mantém distância quando eles começam com radicalismos. Podemos dizer que
temos um herói que pode ter um apelo para a audiência afroamericana sem dar as costas
a audiência branca e vice-versa.
Se para alguns, Shaft é um "grande" filme, em termos de roteiro, trama,
personagem e direção não tem muita coisa original. O ponto importante do filme é o
impacto cultural que ele causou, dando um ponto de partida para o gênero blaxploitation
chegar ao mainstream e conseguir os olhares de Hollywood se interessando em filmes
com temas afroamericanos pela primeira vez na história do país. A influência que Shaft e
seus sucessores causaram nos filmes, músicas e na própria cultura foram bem profundos.
O sucesso foi tão grande que logo lançaram a sequencia Shaft’s Big Score (1972),
desta vez a trilha fora criada pelo próprio diretor, Gordon Parks e, em 1973, Shaft in
Africa, o capítulo final da saga de Shaft vem com uma trilha sonora finissíma escrita pelo
experiente jazz player e arranjador do grupo The Impressions, Johnny Pate. Nesse último,
transformaram Shaft, um herói de ação em um espetáculo negro, chamando o diretor
inglês de filmes de ação John Guillermin para trabalhar com Gordon Parks.
A trilha do primeiro filme foi gravada por Isaac Hayes, o baixo elétrico de funk e o
balanço foi introduzido às trilhas sonoras após esse filme. Os chimbais sibilam
sugestivamente com a técnica chamada 16 hats (tocados por Willie Hall), e wicka-wicka...
faziam as guitarras, com uma regência pontual, chegam a fanfarra e as cordas
anunciando, o indomável, SHAFT, na introdução do filme. Isaac Hayes ganhou Grammy
de melhor trilha original e Melhor Música Original pela Academy Awards do ano com a
53 música “Shaft’s Theme”, dentro de dois meses alcançou o topo da parada de Hot 100
Billboard e se manteve por duas semanas. Assim foi o nascimento do Blaxploitation Funk.
A música carimbou esta sonoridade de guitarras com pedais de efeito wah-wah, um
marco, ele mudou o jeito de fazer trilhas, utilizou instrumentos que não eram comuns em
trilhas de filmes, como o contra-baixo. Esta sonoridade fora imitada, expandida e utilizada
na maioria dos filmes Blaxploitation e continuam influênciando vários diretores até hoje.
Isaac Hayes que já frequentava as paradas de sucesso da billboard com albums de
vinil como "Hot Buttered Soul" de 1969 (alcançando a 8ª posição no top40 norte
americano), e com o album The Isaac Hayes Movement (em 8ª lugar no top 40 norte
americano) e também com o album ...to Be Continued de 1970 que chegou a 11º lugar no
top40 norte americano. Ele já havia conquistado um público grande desde o lançamento
de seu primeiro álbum, mas foi com a trilha de Shaft, com o álbum que leva o mesmo
nome do filme que ele chegou no topo da parada, ficando lá durante várias semanas
consecutivas. Depois deste disco, Isaac Hayes não parou mais de lançar músicas e
milhares de grandes Hits ao longo de sua carreira, aparece no documentário de música
chamado WattStax (1973) fez também mais trilhas como Truck Turner e Three Tought
Guys, ambos de 1974, nestes filmes além de fazer a trilha ele era o ator protagonista
também.
A letra da canção-tema de Shaft confirma a força de alguns clichês do cinema e da
música negros daquele período, como o apelo sexual, a atitude destemida e cool, assim
como a violência.
Shaft! (Isaac Hayes)
Who's the black private dick
That's a sex machine to all the chicks?
(Shaft!)
You're damn right
Who is the man
That would risk his neck for his brother man?
(Shaft!)
Can ya dig it?
Who's the cat that won't cop out
When there's danger all about
(Shaft!)
Right on
54 You see this cat Shaft is a bad mother-(Shut your mouth)
But I'm talkin' about Shaft
(Then we can dig it)
He's a complicated man
But no one understands him but his woman
(John Shaft)
55 3.3. Across 110th Street (A Máfia Nunca Perdoa)
Ano: 1972, EUA
Gênero: Ação / Aventura
Duração: 102 min.
Cia. Produtora: United Artists
Diretor: Barry Shear
Produtor: Ralph Serpe
Roteiro: Luther Davis baseado no romance
de Wallys Ferris
Elenco: Yaphet Kotto, Anthony Quinn, Antony
Franciosa, Richard Ward
Trilha-sonora: Bobby Womack
Slogan: "If you steal $ 3000.000 from the
mod. It's not robbery. It's Suicide."
Cartaz e ficha técnica A máfia nunca perdoa
Melodrama de crime que recebeu muitos elogios na época por superar as
limitações do blaxploitation, esse filme dirigido por Barry Shear se passa no Harlem, onde
a rua 110th delimita uma fronteira informal. O filme mostra uma substituição de cargos na
polícia, quando o responsável Capitão Matelli (Anthony Quinn) é substituído por um
tenente negro chamado Pope (Yaphet Kotto), por ter um grau de escolaridade maior. O
filme trata de questões raciais em autoridades da raça negra, que vinham cada vez mais
ocupando espaços na vida real. No Harlem naquela época, era politicamente vantajoso
ter um policial negro encarregado das investigações. O filme mostra também o início da
preocupação da polícia com bandidos de cargos menores que venham a ser um perigo no
futuro e não apenas os criminosos grandes.
O filme é notavelmente marcado por ser o primeiro a utilizar uma camera SelfBlimp. (que e um tipo de camera que não necessita do blimp um dispositivo que serve
para diminuir o som produzido pela própria câmera) o modelo era o Arriflex 35BL para
syncar o som. Devido ao tamanho bastante reduzido da câmera era possível fazer uma
produção não apenas para filmar com a câmera na mão, mas também em locações
56 menores do que era possível até aquela época e também gravar som utilizável ao mesmo
tempo.
Os críticos elogiaram muito a música que tem o mesmo nome do filme. Bobby
Womack ficou em 19ª lugar nas paradas de Top Black Singles da Billboard no ano de
1973. A letra começa dizendo: "Eu era o terceiro irmão de cinco / Fazia o que era preciso
para sobreviver / Não digo que o que eu fiz era o certo / Tentando sair do gueto era uma
luta diária... Atravessando a rua 110, os cafetões tentavam pegar as mulheres que eram
fracas / Atravessando a rua 110 / Os traficantes não deixavam os viciados serem livres /
Atravessando a rua 110 / A mulher tentava dar o golpe na rua / Atravessando a rua 110 /
Você encontra isso tudo na rua..."
A mesma música foi utilizada por Tarantino em uma homenagem que ele faz ao
blaxploitation com Jackie Brown (1997) e também utilizada pelo diretor Ridley Scott no
filme Americam Gangster (2007) e no jogo de video game chamado True Crime: New
York City. Com isso, tornou-se hoje um clássico dos filmes dessa época, ainda que não
tenha sido tao bem-sucedida quanto a trilha de Isaac Hayes para Shaft na mesma época.
Across the 110th Street (Bobby Womack)
I was the third brother of five,
Doing whatever I had to do to survive.
I'm not saying what I did was alright,
Trying to break out of the ghetto was a day to day fight.
Been down so long, getting up didn't cross my mind,
I knew there was a better way of life that I was just trying to find.
You don't know what you'll do until you're put under pressure,
Across 110th Street is a hell of a tester.
Across 110th Street,
Pimps trying to catch a woman that's weak
Across 110th Street,
Pushers won't let the junkie go free.
Across 110th Street,
Woman trying to catch a trick on the street.
Across 110th Street,
You can find it all in the street.
I got one more thing I'd like to y'all about right now.
Hey brother, there's a better way out.
Snorting that coke, shooting that dope man you're copping out.
57 Take my advice, it's either live or die.
You've got to be strong, if you want to survive.
The family on the other side of town,
Would catch hell without a ghetto around.
In every city you find the same thing going down,
Harlem is the capital of every ghetto town.
Across 110th Street,
Pimps trying to catch a woman that's weak
Across 110th Street,
Pushers won't let the junkie go free.
Across 110th Street,
A woman trying to catch a trick on the street, ouh baby
Across 110th Street,
You can find it all in the street.
Yes he can, oh
Look around you, just look around you,Look around you, look around you,
uh yeah.
58 3.4. Super Fly
Ano: 1972, EUA
Gênero: Ação / Aventura
Duração: 93 min.
Cia. Produtora: Warner Bros.
Diretor: Gordon Parks Jr.
Produtor: Sig Shore
Roteiro: Phillip Fenty
Elenco: Ron O'neal, Carl Lee, Sheila Frazier,
Julius Harris, Charles McGregor
Trilha sonora: Curtis Mayfield
Slogan: "Never a dude like this one! He's got
a plan to stick it to the man!"
Cartaz e ficha técnica Super fly
A Warner Brothers ficou desapontada com a perda de Gordon Parks para a MGM e
chamou seu filho, Gordon Parks Jr. para dirigir Superfly, que estabeleceu o esteriótipo
vistoso dos traficantes afroamericanos e pimps (cafetões), com seus carros e estilo de
vestir que persiste na cultura pop até os dias de hoje, principalmente entre os artistas de
hip-hop. Ron O’neal faz o papel de Priest, um traficante de cocaína que aparentemente
tem tudo que muita gente gostaria de ter: mulheres, dinheiro, uma casa bem confortável
para morar e respeito nas ruas. Depois de uma tentativa de assassinato, ele começa a se
questionar sobre as coisas que vem fazendo a ele mesmo e, o mais importante, ao seu
povo. Então, ele decide fazer um serviço derradeiro, com lucros bem altos, e sair da vida
do crime. Assim começam as várias confusões. Como Sweetback, Superfly é um antiherói, mas com uma visão e sentimento de transformação mais profundos.
59 Superfly é um dos melhores filmes estrelados por atores negros naquele período,
se não o melhor, apesar de um certo amadorismo em alguns momentos em função da
pouca experiência do diretor. Mesmo assim, Gordon Parks Jr. dirigiu muito bem o filme
mostrando, que aprendeu muito com seu pai, o diretor de Shaft. Há uma momento em
que Priest está distribuindo cocaína, e aparece uma montagem de fotografias tiradas por
ele mesmo, enquanto Curtis Mayfield toca Pusherman de fundo, que é uma sequencia
muito bem elaborada.
O filme foi financiado inicialmente por dois dentistas afro-americanos e por Gordon
Parks (que dirigiu Shaft). Em relação às críticas, o filme era controverso, sobretudo pela
glorificação do traficante. O filme passava a ideia de que a America dos afroamericanos
era controlada pelas drogas, ao contrário das iniciativas defendidas pelos movimentos de
luta pelos direitos civis. Por outro lado, o produtor e o diretor do filme alegavam que
queriam mostrar o lado negativo e os aspectos vazios da vida em torno do uso e do tráfico
de drogas. Isto fica evidente em várias partes do filme, e com clareza podemos ver na
parte que Priest expõe seus desejos dizendo que quer largar a vida do tráfico de drogas.
O filme teve muito sucesso, tanto que logo depois veio a seqüência Superfly TNT (1973),
dirigido por Ron O’Neil, e Return of The Superfly (1990), uma sequencia tardia do filme
dirigida por Sig Shore e estrelada por Nathan Purdee no papel de Superfly.
A trilha musical de Superfly ficou por conta do soulman Curtis Mayfield, que fez
nessa ocasião um dos melhores discos do gênero. Curtis via o filme como uma verdadeira
chance de fazer uma declaração sobre a condição do povo negro da época, e ele
conseguiu, mesmo que o filme estivesse eticamente caminhando em direção um pouco
distinta, já que a ambiguidade do herói/traficante repetia a contradição já apontada em
outros filmes do gênero em relação aos protagonistas negros. Curtis Mayfield deu voz ao
vazio e o niilismo do coração daquele “narco-sonho”. Ao mesmo tempo maduros, suaves
e compreensíveis, os sussuros astutos de Mayfield falando sobre a vida e problemas
sociais de traficantes se diferenciavam das demais trilhas sonoras, superando as
expectativas do público.
O disco Super Fly foi o terceiro album de Mayfield. Foi lançado em julho de 1972
pelo selo Curtom Records, que utilizara um gravador de 8 canais e tinha distribuições
internacionais incluindo países como Itália, Alemanha, França, Canada, Inglaterra e até
mesmo cópias vendidas no Brasil. O disco é considerado um clássico da soul/funk music
60 dos anos 1970, já nasceu como um hit com o single chegando rapidamente a marca dos
dois milhões de cópias vendidas. A música Freddie's Dead permaneceu durante 62
semanas nas paradas, chegando ao topo 8 vezes (tanto na parada das categorias de
R&B e pop). Os críticos de música da época glorificaram o disco. Numa resenha do album
em 2004 a Rolling Stones deu 5 estrelas e citou Mayfield como "um progresso musical
criativo". O crítico de rock Robert Christgau do jornal The Village Voice deu nota "A" ao
album e vangloriou o compositor. Christgau escreveu também que "As músicas falam das
(e para) as vítimas do gueto e não apenas para aquelas que já conquistaram algo. A
franqueza e o rítimo são essenciais para a sobrevivência".
Superfly, juntamente com What's Going On? (1971), de Marvin Gaye, foi um dos
pioneiros álbuns-conceito de soul music, com suas letras de auto-ajuda / consciência
social que tratavam de pobreza e abuso de drogas. Assim, o filme e a trilha sonora de
Superfly podem ter pontos de vistos, de certo modo, como “dissonantes”, pois o filme
defende visões ambiguas sobre os traficantes de drogas, enquanto que a posição de
Curtis Mayfield é muito mais crítica. Devido ao sucesso significativo, Curtis foi chamado
para fazer várias outras trilhas de filme durante décadas. A música Pusherman do mesmo
disco foi utilizado por Spike Lee no filme Crooklyn (1994).
Little Child Runnin' Wild (Curtis Mayfield)
Little child Runnin' wild
Watch a while
You see he never smiles
Broken home
Father gone
Mama tired
So he's all alone
Kind of sad
Kind of mad
Ghetto child
Thinkin' he's been had
In the back of his mind he's sayin'
Didn't have to be here
You didn't have to love for me
While I was just a nothin' child
Why couldn't they just let me be
Let me be, let me be, let me be
61 One room shack
On the alley-back
Control, I'm told
From across the track
Where is the mayor
Who'll make all things fair
He lives outside
Our polluted air
And I didn't have to be here
You didn't have to love for me
While I was just a nothin' child
Why couldn't they just let me be
Let me be, let me be, let me be
I got a jones
Runnin' through ma' bones
I'm sorry son
All your money's gone
Painful rip
In my upper hip
I guess it's time
To take another trip
Don't care what nobody say
I got to take the pain away
It's getting worser day by day
And all my life has been this way
Can't reason with the pusherman
Finance is all that he understands
'You junkie, mama cries, you know'
Would rip her, but I love her so
Love her so, now....
62 3.5. Black Caesar (O Chefão do Gueto)
Título alternativo: The Godfather of Harlem
Ano: 1973, EUA
Gênero: Ação / Aventura
Duração: 94min.
Cia. Produtora: AIP
Diretor: Larry Cohen
Produtor: Larry Cohen
Roteiro: Larry Cohen
Elenco: Fred Williamson, Art Lund, Julius
Harris, Gloria Hendry, D'urville Martin, Val
Avery
Trilha-sonora: James Brown
Slogan: "Hail Caesar Godfather of Harlem!
The cat with the .45 caliber claws."
Cartaz e ficha técnica O chefão do gueto
Dirigido por Larry Cohen, Black Caesar veio para o Brasil com os títulos de O
Chefão do Gueto e O Chefão de Nova Iorque. O filme conta a história de Tommy Gibbs
(Fred Williansom), um jovem engraxate que, através do mundo do crime e da
contravenção, vem a dominar quase todo o bairro do Harlem, superando a máfia italiana e
a máfia de policiais brancos corruptos. Seus amigos de infância são: Joe (Philip Roye) um
advogado, Rev. Rufus (D’urville Martin), um evangélico e Helen (Gloria Hendry), uma
cantora de boate e sua grande paixão.
Tommy consegue subir na vida do crime chantageando políticos e policiais
corruptos de Nova Iorque, incluindo seu maior inimigo, o policial McKinney (Art Lund), que
quebrara sua perna quando adolescente. Tommy acaba sendo ameaçado e manda sua
esposa Helen para casa de Joe. Os dois acabam se envolvendo amorosamente e Tommy
leva um tiro de um policial nas ruas, ele vai até um beco e é morto por jovens gangsters
(crianças) que são a próxima geração na vida do crime.
Black Caesar é uma refilmagem do filme gangster Little Caesar (1930), dirigido por
Mervyn Leroy e lançado pela Warner. Black Caesar teve uma sequencia, lançaram no
mesmo ano o “Hell Up In Harlem”, era como se fosse Black Caesar II. No começo do filme
mostram que Tommy não foi morto e alguém resgatou ele após o ataque das crianças.
63 Após Isaac Hayes e Curtis Mayfield despontarem suas carreiras, compondo as
trilhas de Shaft e Superfly, aparentemente todas as estrelas de soul da época acabavam
fazendo músicas para algum filme blaxploitation, e James Brown certamente não foi uma
excessão. J. Brown canta o tema principal deste filme de Larry Cohen e também em
outras 10 faixas que fazem parte do disco trilha sonora do mesmo (A maioria delas foram
escritas por Brown em colaboração com Fred Wesley). Barry Devorzon's dava o pontapé
inicial com sua voz, a letra de "Down and out of New York City" estabelece a história do
filme, enquanto que a maioria das outras cinco músicas com vocais, refletem mais a
narrativa do filme de uma sequencia ou de outra, e em Make it Good to yourself, parece
estar na trilha apenas pois tem uma letra de conscientização social afro-americana, e em
Mama Feelgood, Brown apenas manuseou apropriadamente os vocais em cima da voz de
Lynn Collins. especialmente quando a música é divorciada da narrativa do filme, como na
maioria dos albuns deste período, as faixas da trilha sonora de Black Caesar aparenta ser
um pouco desordenado, especialmente quando o tema de alguma música não parece
fazer parte do contexto do filme, talvez, algumas eram escolhidas apenas pela sonoridade
e não o tema em sí.
The Boss, uma das músicas mais sampleadas atualmente, aparece logo depois da
conversa que Tommy tem com Cardoza (o cabeça da máfia italiana) para conseguir um
ponto de tráfico. Nesta sequencia é mostrada uma série de colagem com várias imagens
que demonstram a ascensão de Tommy Gibbs na vida do crime. A letra diz "I paid the
costo to be the boss (Paguei o preço para ser o chefão)".
A música melodramática Mamma's Dead, toca bem na hora que Tommy Gibbs vai
visitar o túmulo de sua mãe e tem uma conversa com seu amigo Rufus. A letra de James
fala "nunca mais irei vê-la novamente" a música para de tocar e entra em uma cena na
entrada do cemitério, quando Tommy conversando com seu pai, que sempre foi ausente
em sua vida, e pergunta se ele quer ficar em sua casa, o pai responde que não pois ele
viaja bastante, a música volta a tocar com James cantando "não tenho mais ninguém para
olhar por mim..." Assim começa a decadência de Tommy na vida do crime.
Este disco é um dos ultimos trabalhos mais consistentes lançados pela gravadora
Polydor, e foi um grande sucesso de vendas. A idéia inicial de James era de utilizar
músicas já lançadas em discos anteriores, mas Fred Wesley, que era o líder de sua
banda, insistiu e conseguiu convencê-lo a gravar músicas exclusivamente para o filme. A
64 abertura do filmes se inicia com a música Down and Out In New York City, um hino funk
dedicado à cidade de Nova York.
Down and Out In New York City (James Brown)
Say, brother
Can I borrow a fan, brother, you know
Say, say, say
I'd sure like just a dime
So I can buy some coffee and snacks
I guess I'd better stop
trying to be hip and get on down
Hey man, you know...
I was born in New York City
Saved by the night on a Monday
Trying to shoot the news
Not a bad cat, not a bad hat
Doing me a real big favor
Forget the bad cats and the bad hats
Playing it all real good
And a damn boy give me a shine, boy, ha!
When a cold wind comes in New, New York City
And the street's no place to be but there you are
So you try hard or die hard
No one really gives a damn to try hard
And to die hard, no one give a damn
And a damn boy give me a shine, boy, ha!
Down and out in New York City
This ain't no way to be
Oh boy, letting you go
When you're down and out in New York City
Never, never, never gonna get that way again
No... not me, when you need a friend
You need to have her
When you want a friend
Gonna get myself together in the morning
Gonna leave it all I want my dream
All the bad cats and the bad hats
Doing me a real big favor
You've got the bad cats and the bad hats
Paying me all real good
And a damn boy give me a shine, boy, ha!
Give me a shine, boy
Down and out in New York City
This ain't no way to be
Oh boy, letting you go
When you're down and out in New York City
65 Never, never, never gonna get that way again
No. not me, when you need a friend
Troubled mind
When you need a friend
You've got a troubled mind
Ain't nobody gonna give you one thin dime
Friends can be cruel sometimes
And be sweet, but what?
What bugs a man, what hurts a man
When you give him a drink
Just can't get nothing to eat
That's New York CityThat's New York City
New York City
Horton and 25th Street
Bricks
8th Avenue...
66 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa sociedade inundada por icones brancos da cultura pop, os herois
negros dos filmes blaxploitation foram a resposta necessária a
personagens como James Bond e ícones cinematográficos como John
Wayne. Talvez pela primeira vez desde a invenção do cinema, havia
finalmente heróis negros que salvavam o dia, frequentemente resistindo
bravamente à opressão branca. E não importa o quão negativas sejam as
afirmações sobre a era do blaxploitation – o fato é que ela proveu a uma
geração heróis que retinham sua significativa verdade. (WALKER,
RAUSCH, WATSON, 2008, p.ix, Trad. Livre do Autor)
Uma das boas maneiras de se compreender uma geração é compará-la à geração
seguinte. Nesse sentido, pensar o blaxploitation a partir de seus sucessores pode ser
revelador de sua importância, a despeito de todas as polêmicas em torno desse gênero
de filmes. Entre os herdeiros desse numeroso e variado gênero, podemos encontrar
cineastas como Spike Lee e Quentin Tarantino, atores como Samuel L. Jackson e Woopy
Goldberg. No caso da música, a herança também é muito significativa, contando com
figuras do peso de Ice T (nome artístico de Tracy Marrow), Dr. Dre (nome artístico de
André Romelle Young), Tupac Shakur, Wu Tang Clan entre dezenas de outros.
É claro que não se trata simplesmente de uma continuidade. A cultura americana
(e não apenas a afroamericana) sofreu muitas mudanças em relação ao que havia na
década de 1970. Afinal, aquela foi uma época de libertação e autoafirmação de diversos
grupos (como os negros, os gays, as mulheres etc) que hoje já têm suas reivindicações e
direitos muitos mais aceitos e absorvidos pela sociedade, ainda que não livres de
tensões. Ao mesmo tempo, tratava-se da era do ouro do cinema de exploração e de um
período em que Hollywood buscava desesperadamente novas soluções comerciais, e
então o público negro que lotava os cinemas das cidades parecia um bom alvo
mercadológico.
Na década de 1980, quando o blaxploitation já perdera todo o seu fôlego, sendo
em grande parte absorvido pelo mainstream com grandes astros negros começando a
despontar (como Denzel Washington), apareceram filmes que tinham várias influências da
década passada, mas esta se apresentava sob novos pontos de vista, nos chamados Hip
Hop Movies. Foi quando começaram a surgir filmes com mais qualidade técnica e
orçamentos mais altos, com enredos, montagem e fotografias mais complexas. Filmes
67 como The Answer, de Spike Lee, e documentários como Wild Style (Charlie Ahern, 1982),
Style Wars (Henru Chalfant e Tony Silver, 1983), títulos que falam da cultura e estilo de
vida do movimento Hip Hop e de seus elementos, que são grafite, o break dance e os
MCs e DJs do rap.
Em 1988, também Dennis Hopper digiriu o filme Colors (As Cores da Violência),
que falava sobre de dois policiais, Bobby (Robert Duvall) e Danny (Sean Penn) que
trabalham na LAPD (Departamento da Policia de Los Angeles), com a missão de cuidar
de jovens e crianças envolvidas nas gangues Bloods (vermelhos) e os Creeps (azuis),
que se diferenciam através das cores das vestimentas. Nessa década também foram
lançados School Daze (Lute pela coisa Certa, 1988) e Do the Right Thing (Faça a coisa
Certa, 1989), ambos de Spike Lee, mostrando o ponto de vista de um negro num bairro
pobre de Nova Iorque onde convivem diferentes raças e diferentes culturas (italianos,
asiáticos, negros, brancos e latinos) e seus conflitos e ideais. Nesses filmes, Lee seguiria
em uma trilha de revelação como um dos mais profícuos autores do cinema dos EUA,
geralmente tratando de temas voltados ao universo dos negros e de seus conflitos, e
liderando uma geração de diretores que trataram a questão racial nos EUA com mais
variedade e complexidade.
Na música, o legado do sucesso das trilhas musicais dos filmes de blaxploitation
também é notório, sobretudo no nascimento de um gênero musical: os artistas do
movimento hip hop dos anos 1980 e 1990 não se cansam de declarar, em variadas
entrevistas, que cresceram assistindo a esses filmes, tendo-os como modelo em suas
vidas e carreiras. Não por acaso, muitos rappers citam filmes de blaxploitation, utilizam
seus vulgos e se baseiam nas atitudes de seus heróis em suas letras.
Um exemplo disto é o grupo de rap Das Efx, que sampleou a música Blind Man
Can See, da trilha sonora de Black Caesar, e fizeram uma música chamada They Want
EFX, um clássico da década de 1990. Também Ice-T sampleou a música The Boss, do
mesmo álbum de James Brown, e fez a música You Played Yourself, também sampleada
pelo produtor Alchemist, que produziu uma música para o disco do rapper Prodigy (Mobb
Deep). Nos anos 2000, a mesma canção foi sampleada pelo rapper Nas na faixa Get
Down. Existem milhares de outros produtores de rap que samplearam algum trecho de
músicas de trilhas sonoras ou até mesmo de diálogos dos filmes (como o grupo Wu-Tang
Clan, que utilizou um diálogo do filme Education of Sonny Carson).
68 Nos anos 1990, muitos filmes com protagonistas e temas negros estiveram
relacionados às gangues e às drogas. De fato, desde os anos 1960, muitas famílias foram
se desestruturando por causa de drogas e da criminalidade, e muitas crianças negras
foram crescendo sem a figura paterna, muitas criadas pelos avós, e os filmes dessa
época retratam as consequências disso, como Boys in the hood, de John Singleton (1991)
e Menace II Society (Albert Hughes, 1993). Mas, para além das tristezas, também
começaram a aparecer muitos filmes de comédia também, que satirizavam o próprio estilo
de vida do negro, coisas como a moda, as gírias, estilo e até mesmo os problemas como
viciados, enfim todo o estilo de vida da época, como Crooklyn (1994), de Spike Lee,
baseado nas memórias de infância do diretor. Também a maioria dos filmes com temática
negra que apareceram nessa época tinham o rap como trilha sonora.
As influências não pararam por aí, nos anos 2000, continuavam a aparecer mais
filmes influenciados pelo gênero. O mais evidente deles foi John Singleton, por exemplo,
que fez uma releitura de Shaft, um policial da delegacia de homicídios frustrado pelo
sistema, em Nova Iorque, no início do filme é chamado de madrugada para investigar
uma morte de um jovem negro inocente e vai atrás de um dono do tráfico dominicano.
Richard Roundtree (o Shaft original de 1971) é o seu Tio Shaft no filme, até mesmo o
diretor Gordon Parks Jr. faz uma aparição no filme numa uma festa surpresa para o novo
Shaft (Samuel L. Jackson). Esse filme é interessante que além de ser uma releitura
contemporânea, é meio que uma continuação após trinta anos. Shaft (Samuel L. Jackson)
acaba largando o emprego da polícia para ser detetive igual seu tio Shaft (Richard
Roundtree) e ainda no final saem para fazer um serviço juntos. Na música também o
produtor Madlib sampleou uma música da trilha sonora de Sweetback e produziu a
música C'mon Feet, do clássico album The Unseen.
De qualquer forma, todo esse conjunto de obras nos permite compreender o
blaxploitation não apenas como um ciclo de filmes rentável num dado momento histórico,
mas como uma espécie de divisor de águas que modificou definitivamente a
representação dos negros no cinema dos EUA, popularizando também, ainda mais, a
música funk e soul, contribuindo para a politica afirmativa dos negros nos Estados Unidos.
Ainda que a contribuição dessas obras seja contraditória e tenha causado dúvidas
mesmo entre membros do movimento negro, como aponta Piedade (2002, p. 06), se
grande parte da produção exploitation surge compensando seus baixos orçamentos com
69 apelos explícitos aos instintos dos espectadores, muitas vezes, esses apelos podem se
tornar elementos transgressores, mesmo que se apresentem de forma contraditória.
Assim, observando-se com mais atenção, não é raro encontrar-se, nos filmes de
exploração, rasgos de conservadorismo ou preconceito ao lado de momentos
perturbadores da ordem (social, sexual, política, estética...) vigente. Com isso, apesar da
péssima fama, eles filmes oferecem um panorama interessante sobre as preocupações e
aspirações inconfessáveis das sociedades em que são produzidos, e também participam,
muitas vezes, do debate sobre elas.
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