Projeto 3x3: Fricções entre Teatro e Performance

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Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
[Projeto 3x3:
Fricções entre Teatro
e Performance]
Relatório Final de Iniciação Científica
CNPq 2011/2012
Otávio Oscar Nunes do Nascimento
Professor Orientador: Antonio Carlos Araújo Silva
Departamento de Artes Cênicas ECA/USP
Agosto de 2012
Otávio Oscar Nunes do Nascimento
PROJETO 3X3:
Fricções entre Teatro e Performance
Relatório Final de Iniciação Científica apresentada ao
Programa de Iniciação Científica RUSP/PIBIC/CNPq
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo
Área de concentração: Artes Cênicas
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Araujo Silva
São Paulo
Escola de Comunicações e Artes / USP
2012
2
RESUMO
O Projeto 3x3 tem como objetivo a experimentação teórico-prática das possibilidades de
inter-relação entre o teatro e a performance art, utilizando o espaço urbano como “lugar”. O
método de trabalho consiste no processo de criação – junto a um grupo de performers
convidados, onde o pesquisador funciona como uma espécie de coordenador/diretor – de três
experimentos cênicos realizados em espaços públicos (praças, ruas, parques, etc.) que tenham
como norte, cada um, a fricção de um elemento da performance art e uma peça canônica da
literatura dramática. A pesquisa pretende investigar relações de choque entre elementos que
distinguem as duas linguagens, produzindo reflexões a partir dos experimentos práticos.
Palavras-chave: Performance e Teatro; Teatro Performativo; Teatro em Espaços Urbanos;
Intervenção Urbana
ABSTRACT
The 3x3 project has as purpose the theorical and practical experimentation of the interrelation
possibilities between theatre and performance art, using the urban space as ¨site¨. The study
approach consists in the creative process with a group of invited performers and the
researcher, who acts as a kind of coordinator/director. Moreover, there are three scenical
experiments which happen at public spaces (squares, streets, pedestrianized streets and so on).
Each of these experimentations is aimed at the friction between performance art and a canonic
dramatic text. The research intends to analyze the differences between these two languages, as
well as, to produce reflections based on these practical exercises.
Keywords: Performance and Theatre; Performative Theatre; Theatre in Urban Spaces; Urban
Intervention
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................5
Do percurso e das motivações
Do processo de investigação: objetivos e metodologias
Da escolha pelo espaço urbano
A estrutura do trabalho
CAPÍTULO 1...............................................................................................10
Apontamentos acerca da performance art
Teatro Performativo
CAPÍTULO 2...............................................................................................19
Experimento Nº 1 // Corpo Performativo X Édipo-Rei
CAPÍTULO 3..............................................................................................32
Experimento Nº 2 // Ação e Representação X Hamlet
CAPÌTULO 4...............................................................................................49
Experimento Nº 3 // Performatividade do Espectador X As Três Irmãs
CONCLUSÃO.............................................................................................63
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................67
4
INTRODUÇÃO
Do percurso e das motivações
As motivações que levaram ao interesse pelo estudo acerca da performatividade
aconteceram a partir de felizes acasos e intuições, quase de forma magnética – sem que fosse
previamente planejada ou pré-concebida.
O primeiro contato com a linguagem da performance art foi proporcionado através de
artistas da minha cidade natal (Macapá-AP), em especial por uma amiga de longa data que
ingressou no curso de Artes Plásticas da UNIFAP (Universidade Federal do Amapá) e
descobriu o gosto por ela. Um fato notável para ser mencionado foi a performance que esta
fez junto a outros dois amigos no interior da universidade, na qual realizavam uma série de
ações envolvendo carne bovina crua, nudez, exibição explícita de vídeos pornôs, numa
espécie de ritualização macabra e um tanto quanto insalubre.
Aquela performance havia causado furor dentro da universidade, que poucas vezes
havia se deparado com tal grau de radicalidade e vanguardismo – atente-se ao fato de que a
cidade de Macapá ainda hoje vivencia o processo de proliferação e consolidação daquilo que
denominamos “arte contemporânea”. Os estudantes envolvidos na performance foram
estigmatizados e processados administrativamente pela universidade.
Diante da repercussão daquela ação, minha reação foi a de comemorar junto a eles o
choque que aquela performance havia provocado, entretanto, aquilo tudo ainda me parecia um
tanto quanto “puramente provocativo”, apenas gerando repulsa e estranhamento, sem levar a
atitudes mais “positivas” de reflexão ou crítica. Hoje em dia não penso mais dessa mesma
forma, mas descubro que aquilo que me pareceu “faltar” na performance, aquele incômodo
causado pelo desejo de “também” aproximar os espectadores ainda permanece.
No âmbito do curso de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, no qual ingressei
no ano de 2008 para formação enquanto diretor teatral, entrei em contato com diversas linhas
de pesquisa envolvendo teatro, num percurso de afinidades que teve como ponto comum,
desde seu início, o desejo por uma prática teatral politicamente engajada, que fugisse à lógica
do entretenimento banal e da reiteração ideológica de valores dominantes
5
No âmbito das disciplinas específicas pertencentes à grade curricular do curso de
direção teatral, através de influências de colegas e professores ligados à performance, fui
entrando em contato com essa linguagem e, intuitivamente, incorporando-as aos experimentos
cênicos em direção.
Durante essas experiências, não houve da minha parte ou mesmo dos atores, nenhum
tipo de aprofundamento ou verticalização do estudo acerca da performance. As características
performativas surgiam “espontaneamente” no interior dos improvisos e das propostas de
cenas.
Nesse momento do percurso, junto aos colegas de trabalho que se tornaram mais
próximos, fundamos o grupo de teatro “BANDO_”, no exato momento em que realizávamos,
sob a minha direção, um experimento de site specific dentro da sede abandonada do DCE da
USP.
Na trajetória de dois anos do grupo, neste e em todos os outros trabalhos, as
características de performatividade foram surgindo através da prática, não por um desejo
“puramente estético” de experimentação, mas sim por um desejo político de incorporação do
espectador na ação. Além disso, nos interessávamos pela investigação daquilo que Josette
Feral nomeia como “estética do choque” – ou seja, uma cena onde o espectador seria
golpeado por uma inesperada inserção de “realidade”, que o tiraria de um lugar confortável e
convencional durante a recepção da obra.
Essa linha de trabalho, que espontaneamente se aproximou da performance art por
afinidades políticas, chegou a um ponto onde era necessário um aprofundamento histórico,
prático e teórico, onde pudesse sair do terreno da intuição para adentrar de fato numa
pesquisa, sem perder, obviamente, seu caráter intuitivo e espontâneo.
Foi nesse exato momento que surgiu a provocação de Antonio Araujo, orientador
deste projeto, para que os estudantes da turma de direção teatral buscassem caminhos de
pesquisa que pudessem se desenvolver enquanto possíveis investigações em nível artístico,
intelectual e/ou acadêmico.
Desta provocação nasce o mote para o Projeto 3x3, com o intuito de realizar uma
investigação acerca das possibilidades de relação entre o teatro e a performance art.
6
Do processo de investigação: objetivos e metodologias
O objetivo desse projeto de pesquisa é a experimentação teórico-prática das
possibilidades de inter-relação entre o teatro e a performance art.
O método de trabalho consiste no processo de criação de três Experimentos Cênicos
(cenas/performances/intervenções) realizados em espaços públicos (praças, ruas, calçadões,
etc.) que tenham como norte, cada um, a fricção de um elemento da performance art e um
texto canônico da literatura dramática.
Os três elementos escolhidos foram 1) Corpo performativo; 2) Ação X Representação;
3) Performatividade do Espectador. Tais elementos foram respectivamente “friccionados”
com os seguintes textos teatrais: A) Édipo-Rei, de Sófocles; B) Hamlet, de William
Shakespeare e C) As Três Irmãs, de Anton Tchekhov; que são representantes,
respectivamente, da tragédia grega, da tragédia elisabetana e do drama.
A escolha de tais obras se baseou no fato de elas se constituírem como textos teatrais
canônicos – que se tornaram matérias textuais modelares para o teatro em diferentes épocas –
capazes, portanto, de potencializar essa “fricção”, uma vez que os elementos da performance
art entrariam em choque direto com a estrutura cênica e dramatúrgica daqueles.
Tantos os estudos teóricos como os Experimentos Cênicos serviram de base para esta
reflexão escrita, que busca tecer observações acerca das relações entre performatividade e
teatro a partir das práticas realizadas, tendo como foco os três elementos escolhidos e as
possibilidades políticas e conceituais de cada um deles.
Os doze meses de pesquisa consistiram em três fases.
A primeira fase se configurou em um mês de estudo teórico preliminar sobre
performance art e teatro performativo, com vistas a reforçar o pensamento teórico que
embasou os experimentos da segunda fase e a reflexão final desenvolvida na terceira fase.
A segunda fase consistiu na realização dos Experimentos Cênicos e aconteceu junto a
um grupo de performers convidados, onde o pesquisador atuou como uma espécie de
coordenador/diretor, conduzindo e orientando as práticas.
7
A terceira fase, logo após a realização dos três Experimentos, consistiu em dois meses
para a escritura do relatório final, cujo teor é uma reflexão que reúne os estudos teóricos e a
experiência adquirida pelas práticas desenvolvidas ao longo da pesquisa.
Da escolha pelo espaço urbano
A escolha do espaço urbano foi motivada pelo desejo de estudo acerca da potência das
ações artísticas inseridas nos fluxos cotidianos da cidade. Todos os encontros, exercícios e
experimentos do Projeto 3x3 se deram em ruas, calçadas, praças e parques de São Paulo.
Para nossa investigação, o espaço público funcionou como “meio de cultura” para os
experimentos de fricção entre teatro e performance.
Esse termo, retirado da biologia, pode assim der definido:
Os meios de cultura (preparações sólidas, líquidas ou semi-sólidas que contêm
todos os nutrientes necessários para o crescimento de microrganismos) são
utilizados com a finalidade de cultivar e manter microrganismos viáveis no
laboratório.
Os
meios
de
cultura
devem
ter
na
sua
composição,
os nutrientes indispensáveis ao crescimento do organismo em questão, sob forma
assimilável e em concentração não inibitória do crescimento.1
Preservamos desse termo a ideia de utilizar a cidade não apenas como um local onde a
performance se instala, enquanto mera cenografia ou pano de fundo, mas enquanto
“nutriente” para a ação artística, segundo uma dinâmica de incorporação: a ação incorporada
ao espaço e o espaço incorporado na ação. Esta concepção do espaço urbano não apenas
como mero local ou “cenário”, mas como “nutriente” contém afinidades com as formulações
de André Carreira acerca das práticas do Teatro de Invasão. Em seu texto “A cidade como
dramaturgia no teatro de invasão”, Carreira afirma:
A partir de práticas invasoras, isto é, do exercício de criação de espetáculos de rua que
abordam o espaço da cidade não como cenografia, mas como dramaturgia, se constituiu
um olhar que repensa o procedimento cênico de montagem no teatro de rua. A premissa
desta pesquisa está apoiada na proposição de que a cidade e seus fluxos conformam
uma base dramatúrgica2
1
Retirado do site “e-escola”. In http://www.e-escola.pt/topico.asp?id=312. Acessado em 19 de Julho de 2012
2
CARREIRA, 2008, p. 67
8
No Projeto 3x3 a dramaturgia – “aqui compreendida como a define Eugênio Barba,
uma tessitura de ações podendo ou não incluir a palavra” 3 – é fruto do jogo entre o texto, os
performers e a cidade, que em nossa concepção é também considerada como outra
“performer”
O ambiente urbano, portanto, aqui será entendido como o local onde esse diálogo
experimental, através das linguagens do teatro e da performance, acontecerá incorporando as
dinâmicas e fluxos da cidade.
A estrutura deste texto
Este texto é dividido em quatro capítulos.
No capítulo um, realizamos uma abordagem inicial sobre a performance art e
discutimos brevemente as noções de performatividade, teatralidade e teatro performativo
conforme o pensamento da teatróloga franco-canadense Josette Féral.
No capítulo 2, 3 e 4 abordamos os Experimentos Cênicos que representam o objeto de
nossa investigação. Cada um deles é dividido em três partes: uma descreve o processo
criativo, outra o experimento em si e a terceira dedica-se a reflexões e observações a partir da
prática.
3
FABIAO, 2008, p. 237
9
CAPÍTULO 1
Apontamentos acerca da performance art
A partir das décadas de 60 e 70 diversas manifestações artísticas inéditas e de caráter
excepcional começaram a surgir na Europa e nos Estados Unidos sob o nome de performance
art. Essas manifestações tinham traços em comum – principalmente na relação entre corpo,
estética e política – e traziam em sua essência uma ruptura com as formas socialmente aceitas
da arte. Constituíram-se em uma espécie de “complicação cultural” que gerou ações e reações
até hoje presentes na arte contemporânea.
Há poucos dias atrás, durante a escrita deste relatório, duas reportagens sobre a
atualidade e importância da performance na arte contemporânea circularam pela principal
rede social da internet. Ambas apresentavam a inauguração da “The Tanks” – nova ala da
galeria Tate Modern, de Londres – dedicada exclusivamente para ações artísticas de “live art”.
Em entrevista, o diretor da galeria afirmou:
"Isto não é um museu, não é uma galeria, não é um teatro. Isto é algo diferente (...). A
abertura da The Tanks nos permite oferecer um espaço diferente em nossa programação,
para que a performance, o som, as imagens em movimento e a participação possam ter
tanto peso quanto tudo o mais que fazemos”4
Como consequência dessa notícia, mas também se referindo ao lançamento de um
documentário sobre Marina Abramovic5 – a artista performativa mais prestigiada e famosa do
mundo - Adrian Serle, no artigo “Como a arte performática passou a dominar” diz:
A arte performática já não parece uma atração secundária nas galerias, um adendo à
experiência do museu. (...) A proliferação da performance nos museus tem muito a ver
tanto com a arte em si quanto com a mudança no papel dessas instituições, além das
demandas de um público que deseja a sentir influente, envolvido e participativo. (...)
4
“Galeria Tate Modern, em Londres, abre espaço dedicado à ‘live art’”. Por Li-mei Hoang. Agência de notícias
Reuters. Retirado do site http://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRSPE86F04220120716. Acessado
em 23/07/2012.
5
O documentário em questão chama-se The Artist is Present (A Artista Está Presente), dirigido por Matthew
Akers. EUA, 2012.
10
Queremos ser espectadores ativos, ao invés de passivos. Talvez isso seja apenas uma
moda, mas suspeito que não. 6
Desde seu período efervescente, há cerca de 50 anos atrás, tais manifestações sempre
ofereceram uma série de dificuldades para aqueles que tentaram defini-la, seja pelo seu
caráter radicalmente experimental, seja por abranger um campo híbrido de linguagens
artísticas ou ainda por sua incomum relação com a vida social.
Em seu texto “Porque a performance deve resistir às definições”, Lúcio Agra defende
que essa característica da performance – a dificuldade de definição – não deve ser encarada
enquanto um problema, mas sim como uma atitude ativa de fuga das classificações.
“Por que deveríamos abrir mão desta conquista que é dispormos de um modo de
dizer/fazer/pensar em arte que resiste às definições?”
7
, é a pergunta que formula,
apresentando para isso algumas razões para deixarmos que esse “privilégio da indefinição”
continue a ser uma das riquezas da performance:
“o caráter de expansão da linguagem, sobretudo atualmente; a sua “natural” resistência à
apreensão cognitiva racionalista, a sua amplificação geográfica, a sua reverberação em
vários contextos (ela mesma sendo um), sua congenialidade a outras formas emergentes de
invenção artística que resultam de misturas e apropriações de formas tradicionais ou sucatas
culturais, a sua predileção pelo evento efêmero, precário, dificilmente apreensível, a sua
resistência às clássicas ordens identitárias, o seu caráter de proximidade ao subalterno, sua
expansão em lugares antes ignotos, sua formulação em uma temporalidade espiralada (sem
a teleológica perspectiva de um progresso linear-ascendente), a amplitude de seu campo de
pesquisa, sua ilógica, sua predileção pelo paradoxo, o experimental.”8
Apesar de essas diversas razões serem apresentadas como uma defesa para a não
definição da performance, todas elas representam características, ênfases, aproximações,
“devires” e tangenciamentos acerca dessa linguagem.
Para nossa investigação, convém nos aproximarmos um pouco dessas “tangentes” do
conceito de performance.9
6
“Como a arte performática passou a dominar”. Por Adrian Serle. Publicado na Folha de São Paulo em
18/07/2012. Retirado do site http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1121999-como-a-arte-performaticapassou-a-dominar.shtml. Acesso em 23/07/2012
7
AGRA, 2011. Pg 17
8
IDEM, Pg 17
9
É importante que se diga aqui que os estudos que se apresentam nesse texto se referem apenas às pesquisas
acerca da performance enquanto manifestação artística, sem entrar no campo do Performance Studies de
11
Renato Cohen, pioneiro dos estudos da performance no Brasil, escreve acerca do que
pensa ser um mínimo denominador comum da performance.
Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de
rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo
exibido para um plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao
vivo, já poderia caracterizá-la. (...) podemos entender a performance como uma função do
espaço e do tempo (...) algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local10
Portanto, a performance é, antes de tudo, uma arte pertencente ao domínio das artes
cênicas, pois elas acontecem no presente (em determinado espaço e tempo, ao vivo).
Poderíamos encontrar trabalhos que são considerados performances mas que fogem a essa
“regra”, como as fotoperformances de Cindy Shermann ou as videoperformances de Maya
Deren. Entretanto, esses mesmos trabalhos mantém outras características “tangentes” da
performance que os fazem pertencer a essa forma.
Em nossa investigação, manteremos uma filiação à conceituação de Renato Cohen,
porém, atentando ao fato de que o conceito de performance art sempre será capaz de abarcar
ações desviantes de qualquer delimitação que se faça – o que não significa que não devamos
fazer o esforço de tentar encontrar pontos recorrentes ou tecer abordagens aproximativas.
Assim, elencamos a seguir aquilo que chamamos de “ênfases” da performance art,
entendida aqui enquanto fenômeno artístico pertencente ao domínio do cênico.
I)
ÊNFASE NO PRESENTE
Uma das principais marcas da performance é a característica de “evento”, algo
que acontece no momento presente, em simultaneidade temporal e espacial
entre performer e espectadores. Isso é, obviamente, uma característica básica
de qualquer evento cênico. Entretanto, a performance busca enfatizar e
radicalizar o presente através de suas ações, buscando interferir no aqui e
agora de sua execução.
Richard Schechner, que investiga a ideia de performance em diversas esferas (social, política, artística,
esportes, rituais, cotidiano, etc), em uma perspectiva multidisciplinar.
10
COHEN, 2007. Pg 28
12
II)
NAVEGAR NAS FRONTEIRAS ENTRE ARTE E VIDA
Os artistas da performance art lançam mão de certos procedimentos e práticas
que tensionam os limites entre realidade e ficção, entre vida e arte, de forma a
borrar as fronteiras que as convenções artísticas estabelecem entre um e outro.
Essas práticas muitas vezes realizam um embate “cru” entre arte e sociedade,
rejeitando a necessidade de balizas institucionais e comportamentais para a
“fruição” artística. Muitas vezes, inclusice, não é possível fruir, mas apenas
reagir.
Dessa tensão nascem questões que se colocam além do enquadramento
puramente estético, podendo esbarrar em limites, muitas vezes perigosos e
arriscados. Nas palavras de Leandro Acácio:
Tal aproximação entre arte e vida procura ver a primeira em relação direta com
a segunda. Por isso, podemos dizer que se trata de um desmoronamento das
fronteiras, que, trazido para o mundo contemporâneo, possibilita uma nova
visão da arte como também uma nova visão da vida.11
III)
RUPTURA COM AS CONVENÇÕES DA ARTE / EXPLORAÇÃO DOS
LIMITES ENTRE A ARTE E A NÃO-ARTE
Enquanto arte de fronteira, a performance realiza um contínuo movimento de
ruptura com as convenções artísticas e com as formas socialmente aceitas de
arte. Fazer performance muitas vezes também é sinônimo de alargar ou
extrapolar os limites acerca do que é considerado arte, estabelecendo oposições
aos paradigmas em vigor.
A prática da performance nos anos 60 e 70 provocou, conforme já mencionado,
focos de “complicação cultural”. Isso ocorreu por meio de suas práticas
contínuas de ruptura, capazes de gerar relações incomuns com a vida social.
11
ACACIO, 2011, p. 22-3
13
Bia Medeiros12, ao discutir sobre o trabalho de seu grupo (Corpos
Informáticos), que realiza uma “arte que pouco se inquieta de sua permanência,
tal como a performance”13, vai usar dois conceitos iluminadores sobre essa
postura da performance diante das convenções estabelecidas na arte: sinais
nomadizantes e sinais normatizantes.
o sinal nomadizante é o instante singular, inevitável e irrepetível. Deste
distinguimos a arte como tentativa de ordenar uma visão já dada do mundo –
sinais noRmatizantes- da arte como um meio de tornar perceptível uma dimensão
poética. Sinais nomadizantes são sinais que produzem uma espécie de cesura, onde
a espacialidade e a temporalidade anterior se tornam alteradas; uma tensão
imediata e modificadora, arrebatamento, nocaute, desesclarecer momentâneo,
questionamento obsceno, perturbador, reflexos perplexos, pausas, desconstruções,
mas não no sentido de destruir, pois se desconstrói compondo. Inegável força que
nos arranca da mesmice e nos relança no processo. Trata-se de revelações, e estas
afirmam a potência de transfiguração dos lugares-comuns, desestabilizam os sinais
noRmatizantes. (...) o sinal nomadizante caminha para a destruição dessa maneira
de experienciar a vida. A arte não se subjuga a nada de exterior a ela, a nenhuma
das coisas que se encontram na nossa frente.14
IV)
MULTI-DISCIPLINARIDADE / HIBRIDISMO
Os artistas da performance criam experiências cênicas sem demarcações de
território, onde o apagamento das fronteiras entre os diferentes domínios
artísticos são fator determinante. Subvertendo a ideia de fronteira, a
performance tem uma lógica desterradora, capaz de lançar mão de
ferramentas, estratégias, mídias e suportes dos mais diversos campos e de
incorporar ao seu repertório manifestações as mais díspares possíveis. Nesse
sentido, quando se busca, por exemplo, classificar um performer, se torna
quase impossível dizer se ele é dançarino, pintor, escultor, músico, ator, etc.
Essa “babel” das artes não se origina de uma migração de artistas que não
encontram espaço nas suas linguagens, mas, pelo contrário, se origina da busca
12
Maria Beatriz Medeiros é professora e pesquisadora da Universidade de Brasília e também coordena o grupo
de performance Corpos Informáticos.
13
AZAMBUJA; MARTINS; MEDEIROS, 2008, p. 1888
14
Ibidem, p. 1888-9
14
intensa, de uma arte integrativa, uma arte total, que escape das delimitações
disciplinares15
V)
ÊNFASE NO PROCESSO (NÃO NO PRODUTO)
A performance busca retirar a arte dos lugares habituais de consumo, dos
circuitos institucionais, se afastando da lógica do “produto” artístico e da
canonização da ideia de “obra de arte”, com o intuito de insistir no aspecto
processual do trabalho. O que os artistas tentam mostrar não é o produto final
e, sim, o processo, buscando “reinstituir a presença”. A obra, muitas vezes, é o
próprio processo de criação, e vice-versa.
VI)
BUSCA PELA PRODUÇÃO DE EXPERIÊNCIA
A ênfase no processo em detrimento do produto gera uma tendência a construir
as ações performativas enquanto geradoras de “experiência”. Eleonora Fabião
coloca os “programas” da performance enquanto “ativadores de experiência”.
Longe de um exercício, prática preparatória para uma futura ação, a
experiência é a ação em si mesma. Em Do Ritual ao Teatro, o antropologista
Victor Turner entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo
“experiência” e esclarece: etimologicamente a palavra inclui os sentidos de
risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Ou seja,
uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e
corpo pós experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora ou
seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma. As
escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, oscilam
entre um sopro e um renascimento.16
Na performance, portanto, o mais importante não é o que a obra busca
significar ou simbolizar, mas sim a travessia da experiência, que transcende a
possibilidade e o esforço de interpretação e produção de significado, indo além
da pura reflexão ou interpretação racional. Assim, escapa também à demanda
da teoria e da crítica estética tradicional de “compreender” a obra de arte. Em
geral, a materialidade das ações e a corporeidade do performer dominam os
15
COHEN, 2007, p. 50
16
FABIÃO, 2008, p. 3
15
atributos do “entendimento” (no sentido tradicional), numa atitude de
resistência à obra definitiva.
Outras características que também nos interessam na performance art são: o corpo
performativo; o status da ação na performance e o lugar do espectador. Entretanto, esses três
aspectos serão discutidos e aprofundados nos próximos capítulos, uma vez que foram os
elementos escolhidos para a realização dos experimentos práticos de fricção entre teatro e
performance.
Agora que discutimos alguns aspectos que consideramos essenciais para esta
investigação acerca da performatividade, discutiremos sobre as questões que envolvem o
cruzamento entre o teatro e a performance à luz das discussões de Josette Féral sobre o Teatro
Performativo.
Teatralidade e Performatividade: conceitos opostos?
Inicialmente, a performance art, no contexto em que se encontrava a arte nos
anos 60 e 70, se colocava enquanto contraponto assumido ao teatro praticado na época –
principalmente no que se refere ao espaço teatral, à “representação” e aos modos de produção
do teatro. Esses artistas buscavam superar os limites que o teatro convencional colocou para si
mesmo, por “recusarem separar a arte de sua inscrição no real”17 e assim procuraram
concretizar, através de suas experiências, o desejo de “turbinar a relação do cidadão com a
pólis: (...) des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo”18. A performance art surge
portanto com o desejo político de agir concreta e diretamente sobre o mundo através de suas
ações artísticas.
Josette Féral vai falar de uma “desconfiança recíproca” entre o teatro e a performance,
evocando o teórico americano Michael Fried, em seu ensaio “Arte e Objetividade”, escrito no
calor da década de 60:
17
FERAL, 2008, p.199
18
FABIÃO, 2008, p 237
16
A arte degenera à medida em que se aproxima do teatro” ou ainda “O sucesso, ou mesmo a
sobrevivência das artes, começa crescentemente a depender de sua capacidade de negar o
teatro19
Apesar deste contraponto inicial que os diferenciou, nenhuma arte sofreu tanta
influência da performance como o teatro, absorvendo, da década de 60 em diante, diversas
características peculiares à performance art.
Por essa razão, Féral vai discutir as experiências teatrais contemporâneas a partir de
um operador conceitual que denomina de “Teatro Performativo”, pesquisando nas obras de
artistas e grupos de teatro as características que os diferenciam do teatro convencional e os
aproximam da performance.
Em seu estudo acerca do teatro performativo, Féral, através de uma análise atenta às
diversas experiências teatrais contemporâneas, vai atualizar e discutir alguns conceitos
paradigmáticos da teoria teatral, relacionando-os à ideia de performatividade.
Féral afirma que qualquer performance ou peça contém em si elementos de
teatralidade e performatividade, diferindo-se apenas quanto aos graus de intensidade com que
cada um deles se materializa numa obra cênica.
Ao discutir o conceito de teatralidade, Féral vai afirmar que não se pode
considerá-lo enquanto um dado empírico, qualidade, ou uma categoria universal e imutável –
mas sim determinado pela relação entre o olhar do espectador, a intenção de se fazer teatro, as
convenções sociais, a representação e a ação construída sobre a cena.
Tanto a teatralidade como a performatividade são elementos relacionais: devem ser
observados a partir dos aspectos sociais, culturais, éticos e políticos de uma época ou mesmo
a partir da situação específica que envolve artistas e público, da forma como ela é vista e dos
meios pelos quais é mostrada.
Baseada nisso, Féral vai discutir o conceito de teatralidade a partir da ideia de um
“acordo” entre artista e espectador. Ele implica necessariamente num jogo, onde as regras e
19
FERAL, 2009, p. 197-8 apud FRIED, Michael. Art and objecthood. In Artforum 5. Nova York, 1967
17
convenções criam o espaço de representação, o “enquadramento” teatral no qual ambos vão
jogar.
Segundo tal visão, o ator é considerado o “produtor” da teatralidade, enquanto o olhar
do espectador apropria-se desse “fazer” do ator, tendo consciência da intenção da execução
do ato teatral e do enquadramento ficcional.
Esse olhar solicita a instauração de um “espaço outro” que se torna o “espaço do outro” –
espaço virtual, espaço de criação – que, por sua vez, dá lugar diferenciado aos sujeitos
atuantes e ao surgimento da ficção.20
Aqui, portanto, a teatralidade é vista como um “processo” e não como uma qualidade
intrínseca a uma ação cênica. Da mesma forma a performatividade, que enfatiza, dentro desse
sistema de relações, as características aproximativas da performance art que descrevemos
anteriormente.
Para este trabalho, gostaríamos de adotar essa visão de Josette Féral como parâmetro
de análise e discussão acerca das fricções entre teatro e performance que se concretizaram nos
experimentos cênicos que realizamos.
20
ACACIO, 2011, p. 40
18
CAPÍTULO 2
Experimento Nº 1 // Corpo Performativo X Édipo-Rei
Os primeiros passos de nossa investigação buscaram experimentar relações entre
corpo, performance e espaço urbano.
Essa primeira abordagem se deu através daquilo que chamamos de “Exercícios
Preparatórios” e “Práticas Nômades”.
Apesar do forte interesse por parte deles e de alguma experiência anterior,
praticamente todos os performers convidados para esse trabalho prático não vinham da área
da performance ou da intervenção urbana, mas sim do teatro. Além disso, apresentavam
formações diversas, adquiridas em diferentes escolas. Isso gerou a necessidade da formação
de um vocabulário comum acerca das ações performativas.
Através das Práticas Nômades realizamos cada encontro em uma localidade diferente
da região metropolitana, na busca pela exploração de diversas facetas de uma cidade tão
plural como São Paulo.
Através dessa dinâmica, descobrimos aspectos característicos de cada região: a frieza e
a pressa do calçadão do Centro, o clima descontraído e aconchegante do agitado comércio do
bairro da Liberdade, o clima interiorano e o calor humano do Rio Pequeno, a elegante
indiferença dos transeuntes da Avenida Paulista, entre outros.
Os Exercícios Preparatórios consistiram numa série de práticas que buscavam
exercitar as relações criativas entre os performers e o espaço urbano.
Todos eles foram realizados, desde o início, em ruas, praças e calçadas. Isso fazia com
que se desviasse bastante do próprio significado de “pré-paração” - uma vez que aos olhos de
quem é “espectador” (os transeuntes, os habitantes, etc.), o que se realiza não é um ensaio ou
treinamento, mas uma ação. Na rua, o “ensaio” já é performance. Os atores não iriam
preparar-se: a própria experiência em sua imprevisibilidade e frescor era o exercício.
Para embasar esse estudo coletivo sobre o corpo foram escolhidos dois artigos:
Performance e teatro: Poéticas e Políticas da cena contemporânea, de Eleonora Fabião, onde
existe um trecho especialmente voltado para a discussão do corpo no âmbito da performance;
19
e Corpografias Urbanas, de Paola Berenstein, onde a autora trata da experiência corporal na
cidade.
Para este primeiro momento, a observação, vivência e imersão no ambiente urbano
fizeram-se necessárias, na medida em que o entendimento de suas dinâmicas é essencial para
que se procurem as brechas nas quais a cena urbana pode habitar.
Partindo disso, um dos principais exercícios práticos realizados – que foi chamado de
“Investigação sobre corpos” - consistia em observar, seguir discretamente e experimentar
“imitar” os corpos que transitavam por aquele determinado espaço público.
Foram colocadas as seguintes perguntas: Qual o objetivo deste corpo? Quais são suas
relações com os outros corpos? Quais relações ele estabelece com o espaço da cidade?
Essa investigação era uma tentativa de traçar aquilo que Paola Berenstein chama de
“Corpografias Urbanas” – a cidade presentificada e expressa no corpo de quem a vivencia.
Segundo a autora, é possível decifrar as corpografias através do estudo dos movimentos, dos
gestos e dos padrões corporais de ação, na tentativa de, através dos corpos, conhecermos a
cidade e a rede de interações que ela compõe.
Esse estudo dos corpos e das corpografias foram também embasados na discussão que
Eleonora Fabião realiza acerca da ideia de “corpo relacional”.
O marco da performance – talvez seu diferencial mais claro – é a afirmação acentuada
do corpo enquanto suporte e tema da ação artística. Não foi a toa que escolhemos este
“elemento” como o primeiro a ser trabalhado e pesquisado neste projeto.
A autora lança mão de Deleuze e Espinosa para discutir filosoficamente e
conceitualmente o status do corpo na performance. Segundo ela, o corpo é definido pelos
afetos que ele é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. A artisticidade do corpo performativo
está justamente em sua capacidade de mobilizar esses afetos através do gesto performativo;
De evidenciar o status de corpo enquanto movimento e mobilidade; De agir de forma incisiva
contra o pensamento que entende o corpo enquanto forma rígida e imutável; E, por fim, de
lutar contra a domesticação e submissão dos corpos e das relações. Resumindo, o corpo como
potência sempre em transformação.
Resumindo, trata-se de uma visão do corpo como potência sempre em transformação.
Nesse sentido, Fabião vai tratar da capacidade excepcional da performance em criar
dissonâncias, risco, desmecanização e “complicação cultural”. Isso por meio da
20
desestabilização de convenções e limites, valendo-se do corpo como o principal suporte de
desvio.
Através do corpo e de sua capacidade de afetar e ser afetado, ela busca gerar
“experiência” – no sentido de risco, perigo, prova e transformação: “Se o performer investiga
a potência dramatúrgica do corpo é para disseminar reflexão e experimentação sobre a
corporeidade do mundo, das relações, do pensamento”21.
Nossa ideia, então, foi realizar um processo criativo onde essas discussões sobre o
corpo pudessem estar presentes.
Começamos o trabalho sobre Édipo-Rei através de leituras, debates e conversas,
procurando relacionar a pesquisa anterior sobre o meio urbano e corpografias com os
elementos acerca do mito de Édipo.
As discussões desembocaram numa reflexão sobre o papel do indivíduo
contemporâneo e a “culpa” acerca dos problemas sociais que a cidade, mais especificamente a
metrópole, expressa através de suas contradições extremamente aguçadas.
Como forma de trabalho sobre o texto, para este primeiro momento de criação junto ao
grupo, achamos interessante que cada performer tivesse a chance de realizar uma
experimentação individual – uma vez que os exercícios anteriores haviam sido realizados em
grupo e desejávamos, como forma de entrosamento criativo, observar as diferentes visões que
cada um teria sobre o mesmo tema.
Foi proposto, então, que cada performer realizasse um “programa cênico”
(cena/performance/intervenção) cuja base de criação fosse a tríade CORPO/CIDADE/ÉDIPO.
O método de fricção escolhido foi a “livre inspiração”. Os performers tinham um
mote: o estudo do corpo performativo e das corpografias urbanas. O que foi proposto
enquanto processo para a criação de seus experimentos foi buscar, tematicamente, questões no
texto de Édipo-Rei que pudessem gerar fagulhas e inquietações que foram colocadas em ação
através da “ferramenta” do corpo performativo.
Esses programas foram “apresentados” nas imediações da Praça da Sé. As
reverberações destes na movimentada praça nos deixaram entusiasmados e, em seguida, ao
discutirmos sobre como trabalharíamos em um experimento único para todos, decidimos que
a individualidade das performances eram interessantes enquanto conjunto.
21
FABIÃO, 2008, p. 238
21
Portanto, o Experimento N° 1 configurou-se enquanto uma “Teia de Performances
Simultâneas”, onde cada um re-performou sua criação. O espaço escolhido foi o Largo São
Bento.
Apesar de habitarem o mesmo espaço e estabelecerem diversas formas de
contato e convivência entre eles, formando uma intervenção cênica ocupou parcialmente o
Largo São Bento, os três programas funcionavam de forma autônoma e independente.
Por essa razão, trataremos as ações dessa “Teia” uma a uma, discutindo suas
reverberações e as reflexões que provocaram.
EXPERIMENTO Nº 1 – METRÓPOLE EDIPIANA
“DE QUEM É A CULPA?” - por Karina Fuji
Neste programa a performer criou uma mandala, feita com recortes de revistas e
jornais, na qual havia diversas manchetes onde estavam estampadas palavras que remetiam à
crise econômica mundial, desastres ambientais, denúncias de corrupção, violência, crimes,
revoltas e rebeliões, entre outros.
Próxima a essa mandala, a performer se cobria com uma mistura de argila e areia que,
à medida que secava, remetia ao concreto das calçadas e prédios.
Figura 1 – Programa Cênico “De quem é a culpa?”
Logo depois, amarrava um espelho na parte de trás da cabeça onde havia a frase “DE
QUEM É A CULPA?” e se sentava em cima da mandala, onde havia outro espelho de mesmo
tamanho em que ela podia observar, com a cabeça entre as pernas, o próprio rosto. Depois de
um tempo assim, a performer tem esse outro espelho amarrado contra o rosto (com a face
espelhada para dentro) e realiza uma caminhada pelas imediações.
A inspiração da performance surgiu do desejo de traçar paralelos com a peste que
assola a cidade de Tebas em Édipo-Rei. A peça inicia com um problema de ordem pública: os
cidadãos se dirigem ao palácio do rei para suplicar que este livre a cidade da doença que os
22
assola. Édipo vai em busca da resolução do enigma que, segundo o oráculo, é
responsabilidade de apenas uma pessoa: o assassino do antigo rei. Ao procurar o “culpado”,
ao final Édipo descobre que o “culpado” é ele próprio.
Com isto em mente, a performer buscou as manchetes alarmantes sobre as “pestes”
que assolam o mundo contemporâneo. E através da materialidade do reflexo do espelho
almejava provocar o público a se perguntar se a “culpa” por esses problemas está realmente
nos “outros” ou em nós mesmos – por nosso individualismo, indiferença e passividade
enquanto cidadãos.
Dos três programas apresentados, esse foi o que mais se aproximou das características
da linguagem da performance art em seu sentido, digamos, mais “restrito”. A performer se
apropriou dos estímulos de Édipo-Rei propondo uma recriação livre através de um típico
programa de performance: ação metodicamente calculada e programada, que segue os passos
que foram traçados anteriormente.
A ação trouxe ainda fortes traços daquilo que chamamos corpo performativo. Na
performance art são recorrentes ações que trabalham o corpo enquanto objeto manipulável. O
artista “o explora, o manipula, o cobre, o descobre, o pinta, o fixa, muda-o de lugar, o corta, o
isola, lhe fala como um objeto que lhe é estranho”.22
Essa visão do corpo nutre relações diretas com a body art, vertente das artes
performativas que toma o corpo como meio de expressão e/ou matéria para a realização dos
trabalhos, interessada em ressaltar aspectos da corporeidade e da presença física e real dos
performers, transfigurando o corpo em corpo-objeto ou em corpo-plástico.
Em “De quem é a culpa?” a performer lança mão de concentração e tenacidade para
realizar seu programa, tendo somente a ação concreta, corporal, como elemento de
comunicação com a cidade e os espectadores. Os signos do discurso artístico são puramente
visuais e sinestésicos, a presença da própria performer é enfatizada, sem nenhuma mediação
através de personagens ou máscaras.
Essa exposição da artista, somada ao fato de que esta não buscava chamar a atenção ou
atrair espectadores, mas somente focar-se na sequência de suas ações, gerava uma postura de
22
ACACIO, 2011 apud FÉRAL, Josette. “Performance et Théâtralité: le sujet démystifié” (“Performance e
Teatralidade: o sujeito desmistificado”)
23
recusa à espetacularização que deixava os transeuntes intrigados e curiosos, uma vez que sua
atuação se desviava do que estes estavam acostumados a presenciar.
Figura 2 – Programa Cênico “Lady Jo & Lady Casta”
“LADY JO & LADY CASTA” – Luís Garcia e Raquel Morales
Em “Lady Jo & Lady Casta”, os performers encarnaram figuras femininas que
representavam arquétipos de mulheres da alta sociedade, vestidas em tons de rosa e lilás, e
levando a tiracolo um pônei rosa-choque de madeira e pelúcia. A ação consistia em realizar
uma deambulação pelos arredores, em estado de total porosidade com o meio urbano, se
incorporando aos fluxos e acontecimentos que ocorriam ao redor.
No caso da Praça da Sé, a performance encontrou diversas possibilidades de interação,
uma vez que gerou uma espécie de “fagocitose” em relação a outras performances ali
presentes, fossem elas religiosas, musicais, teatrais e até mesmo “terapêuticas”, como era o
caso de um projeto que buscava realizar uma pequena “terapia psicanalítica” em plena praça
pública.
Lady Jo & Lady Casta eram inspiradas em figuras públicas, como Lady Di, a exprincesa da Inglaterra – remetendo-a
diretamente à figura de Jocasta, de Édipo-Rei –
enquanto mulher de um homem de grandes poderes que também se interessa pelos infortúnios
de seu povo. Junto a isso se mesclava o arquétipo da mulher evengélica e moralista, a idéia de
eugenia e higienização social (que contrastava com a situação de contato direto com
moradores de rua, desempregados, bêbados, entre outros), um jogo feito com desenhos de giz
no chão onde se brincava com a idéia de apropriação privada de espaços coletivos e, também,
o registro espetacular/televisivo de figuras da alta sociedade que “descem” em meio ao povo
para realizar uma troca superficial, em geral de cunho assistencialista.
24
Outro dado interessante da ação foi que ambos os performers saíam de suas casas já
vestidos com as roupas das “personagens”, o que tornava a performance um acontecimento
desde esse momento – sem começo e fim determinados – e a interação se dando por todos os
locais nos quais eles transitavam.
Os pontos altos de interação e intervenção foram num protesto que estava acontecendo
dentro do metrô, onde um grupo de mulheres estava realizando uma campanha acerca do dia
internacional do combate à violência contra a mulher, e Lady Casta deu um depoimento
discursando a favor do tema. Outro momento ocorreu dentro de um Shopping Center, onde as
figuras foram assediadas pelos consumidores, que “entraram na brincadeira” irreverente junto
com os performers.
Com essa ação, criou-se uma reação provocativa em relação ao texto de Sófocles. Em
Édipo-Rei, o povo é encarado pela família real como vítima, um coro de assolados pela peste
que aparentemente nada pode fazer contra seu destino de sofrimento, recorrendo a seu rei para
que este resolva os seus problemas. O rei, por sua vez, encarado como herói solucionador, se
coloca à frente da busca pela causa dos males da população, alienando-os do papel de agentes
de sua transformação e da superação de seus males.
O paralelo entre esse quadro e os dias atuais se mostrou claro e os performers
escolheram as figuras das primeiras-damas como forma de mostrar o lado também perverso
dessa relação, aquele que busca atenuar contradições e aparentar preocupação das figuras que
estão no poder em relação às massas, por meio de um viés “maternal”, diretamente
relacionado à piedade e à solidariedade.
Essa estratégia é essencial dentro na manutenção do status quo, pois busca aparar as
arestas de autoridade e dominação, maquiando, através de atributos ditos “femininos”, as
verdadeiras faces dessa estrutura. É fácil notar essas estratégias em ação através do
assistencialismo, do marketing social, do voluntariado, entre outras.
Tais artifícios são uma resposta do sistema às pressões que os movimentos sociais
impõem ao exigir uma sociedade mais igualitária. Eles oferecem soluções parciais e falsas por
um lado e, por outro, mantêm em pleno funcionamento as estruturas que geram a
desigualdade e a dominação.
25
Quanto ao papel da performatividade, ao contrário do programa em “DE QUEM É A
CULPA?”, “Lady Jo & Lady Casta” se aproximou mais da linguagem do teatro, por delinear
personagens, se utilizar de figurinos e instaurar a ficcionalidade.
Por outro lado, o programa performando não pode ser encarado enquanto teatro, no
sentido convencional. A ação se aproximou bastante das práticas do happening, uma
modalidade de ação cênica que valoriza o espontâneo, o improviso, a presença, a dissolução
da separação entre atores e espectadores e o espaço não convencional de atuação –
funcionando como uma espécie de “evento teatral sem trama”.
Tais acontecimentos apresentam estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As
improvisações conduzem a cena - ritmada pelas ideias de acaso e espontaneidade - em
contextos e espaços variados. O happening ocorre em tempo real, como o teatro, mas recusa
as convenções teatrais.
Esta é uma categoria interessante para nossa investigação, pois se configura como uma
modalidade de fricção entre o teatro e a performance, nutrindo fortes semelhanças com as
atuais práticas do teatro performativo.
Em “Lady Jo & Lady Casta” era marcante a presença das “personagens” criadas pelos
performers, entretanto, a ação não estava pré-definida, acontecendo de acordo com os fluxos
improvisacionais.
O papel do corpo, nesse caso, funcionava de forma dual: tanto como teatro, através das
“máscaras” criadas pelos performers – a postura, os gestos, as maneiras de tocar e ser tocado,
o jeito de sentar e andar que remetiam à figura da “socialite” – quanto como performance:
através da ação no presente, aberta aos fluxos, imersa no ambiente, arriscando-se para fora
dos limites ficcionais e se colocando em situações “reais” que escapavam às convenções de
uma teatralidade segura e isolada de um palco.
26
Figura 3 – Programa Cênico “Gentrificação”- Experimento Cênico nº 1 – “Metrópole Edipiana”. Performer:
Henrique Lima. Foto: Otávio Oscar
“GENTRIFICAÇÃO” – Henrique Lima
Em “Gentrificação”, o performer, vestido com um terno, realizava, na primeira parte,
uma série de movimentos e ações de ocupação dos espaços públicos com o corpo coberto por
um saco plástico preto, de forma que sua identidade não estivesse revelada a maior parte do
tempo. Os movimentos, a forma do corpo e os locais escolhidos trabalhavam com a idéia de
invisibilidade e anonimato, e o saco de lixo remetia à imagem de pessoas descartadas e
esquecidas. A cor preta, em sua simbologia, reforçava a tragicidade da ação ao associar tudo
isso a uma sensação de luto, trevas, falta de esperança, angústia e fim. Nos momentos de
imobilidade do performer, deitado à beira das calçadas ou encostado em alguma parede,
tornava-se evidente a imagem de um cadáver que havia sido apenas coberto e, logo em
seguida, esquecido.
No segundo momento da performance um novo material entrava em cena substituindo
o saco de lixo preto: o papel higiênico. Nesse caso, tal elemento servia para que o performer
pudesse enrolar sua cabeça e ombros num claro desejo de privação da visão. O agudo
contraste entre preto e branco trazia à tona, então, a ideia de higienização, ironicamente
associado à perda da visão e à autocegueira. Logo após se vendar, o performer deixava o
estado corporal de abandono e morte e fazia uma caminhada cega pelos arredores do calçadão
até finalizar a sua ação.
Essa performance inspirava-se no tema da “cegueira voluntária”. Em Édipo-Rei,
durante a busca pelo assassino de Laio, Édipo traça um caminho voluntário para a descoberta
de si mesmo enquanto o elemento causador dos males sociais, morais e religiosos de Tebas.
Metaforicamente, Édipo viveu cego durante todos os anos de prosperidade em que esteve em
Tebas, ao se tornar o homem mais rico e poderoso da cidade. É revelador e irônico notar que
27
somente ao final, ao enxergar a verdade, Édipo fure os próprios olhos para que nunca mais
veja os males que causou.
O espaço da cidade permite que vejamos, em todos os cantos, as diversas doenças e
misérias do tecido urbano. Como solução para essa “poluição visual”, governantes e
dirigentes criam políticas que buscam afastar da vista o lado indesejável do sistema que
vivemos, marcado pela gentrificação, elitização, repressão, especulação imobiliária, entre
outros. Entre elas, por exemplo, aparecem os mecanismos de higienização, medidas que não
resolvem o problema em sua essência, mas somente os “retira de vista”.
Isto posto, o performer buscou estabelecer um paralelo entre a “auto-cegueira” de
Édipo e tais políticas, vistas aqui como uma espécie de cegueira.
A ação de Henrique Lima funcionou como uma espécie de instalação móvel: o
performer criou imagens utilizando dois materiais simples (o plástico preto e o papel branco)
que se movimentavam e se instalavam em diferentes pontos do espaço.
Essa ação minimalista e silenciosa transitava entre a visibilidade e a invisibilidade e,
por não instaurar um espaço de fruição, passou despercebida pela maioria das pessoas. O
performer poderia facilmente ser confundido com algum morador de rua, mendigo ou louco.
Essa fronteira entre ficção e realidade, arte e cotidiano, ação real e representação,
inscrita no espaço urbano, representou um risco real para o performer. Justamente por remeter
ao alvo das políticas higienistas, em muitos momentos ele poderia facilmente ter sido
abordado pelas autoridades responsáveis. Na verdade, isso ocorreu, num determinado
momento em que um policial se aproximou para checar se o corpo “embrulhado” no saco
plástico não estava morto ou ferido.
O performer estava “entregue” aos perigos reais do fluxo urbano, sem aquela espécie
de “proteção” que as expressões artísticas, identificáveis enquanto tais, têm quando instaladas
nas ruas23.
23
Claro que essa proteção é bastante relativa e depende de uma série de condições – no caso de São Paulo,
principalmente com a questão das “autorizações” - mas via de regra, os artistas quase sempre gozam de
determinada tolerância para suas expressões, uma vez que estão encaixados num universo “ficcional” e não
“real”, e portanto, aparentemente não oferecem “perigo”.
28
Da mesma forma que no programa “De quem é a culpa?” a ação exigiu tenacidade
para ser realizada, uma vez que o risco era um fator constante. Houve, por exemplo, um
momento de perigo iminente, quando o performer estava vendado e quase foi atropelado por
um veículo oficial que trafegava pela via de pedestres.
CORPO PERFORMATIVO
Algumas descobertas merecem ser apontadas aqui. A primeira remete às primeiras
sensações experimentadas ao se iniciar um projeto artístico que envolva o espaço da rua. A
sensação do vento no rosto, a liberdade de um “palco” infinito para ações cujos limites podem
ou não serem previstos. A rua é um lugar que traz novas dimensões para quem se aventura por
ela para fazer arte.
A primeira sensação é a de, repentinamente, se observar aqueles espaços públicos com
novos olhares, com uma percepção mais aguçada que a de um simples transeunte. A matériaprima está viva e pulsante na cidade, basta abrir os poros para senti-la.
A performance é capaz de tornar quase infinitos os limites espaciais, gerando novas
possibilidades de presença do corpo no espaço, chegando a “lugares” ainda não explorados.
Isto que faz com que nos aventuremos a experimentar, cada vez mais, essas “fronteiras” –
cada um da sua maneira, seja de forma tímida ou ousada.
Diferente da caixa cênica, a rua dificilmente traz conforto e segurança a quem a
experimenta. Assim, uma outra qualidade de presença é acionada. Não se pode ignorar os
fluxos, os acontecimentos, os perigos, as inconveniências, os barulhos, as autoridades, a
sujeira e toda a imprevisibilidade do espaço público. A instância do risco, da qual Fabião vai
falar em seu texto, é assim presentificada.
Por outro lado, a rua também oferece menos limites aos “espectadores”- que com seus
corpos geram afetos capazes de modificar a ação do artista. O corpo performativo e seu
roteiro de ação estão sempre por um fio: tudo pode mudar de uma hora para outra, de forma
positiva ou negativa.
A presença do corpo em estado artístico-performativo na rua contém em si algo de
contrassenso. Um passeio pelos espaços de grande circulação das metrópoles nos permite
observar algumas características recorrentes para os artistas cênicos: o entretenimento (como
29
no caso dos shows de música popular e dos comediantes de rua), o exótico (como no caso dos
índios peruanos que tocam seus instrumentos regionais e vendem seus CD’s), o virtuosismo
(malabares, estátuas vivas, acrobatas...) e o próprio teatro de rua tradicional, que faz da rua,
palco, e estabelece um espaço de convenção teatral mais ou menos estabilizado. Todas essas
características criaram, historicamente, um padrão para a arte de rua já estabelecido no
repertório de usos do espaço urbano.
A performance, ao propositalmente explodir as fronteiras dessas convenções – através
de um corpo-a-corpo sem mediações e recheado de incertezas – provoca uma dificuldade de
leitura ao espectador-transeunte da rua. Isso não significa que ela esteja totalmente alheio a
esses padrões, afinal, a tendência dos espectadores é a de buscar, de alguma forma, “encaixar”
o acontecimento dentro de algumas dessas “prateleiras” do já conhecido. É comum ouvir as
pessoas se perguntando umas às outras, ou mesmo abordando o performer diretamente com a
questão: “É teatro?”. Essa é uma pergunta-chave para nós que buscamos, de fato, fomentar
uma dúvida que gere estranheza, um deslocamento perceptivo que se intensifique e que abra
caminho para a reflexão acerca do que a ação artística busca questionar ou discutir.
É nesse lugar de contrassenso, dúvida e estranheza “produtiva” que o Projeto 3x3
investiu com vigor suas energias, acreditando que as zonas de “fronteira” podem gerar
alterações na percepção que tornem a performance/cena impactante e transformadora.
Assim, acionar um corpo em estado de performance, no seio do espaço urbano, é criar
desordem, desvio e provocação, na medida em que essa ideia de “corpo-problema” foge às
regras de utilização da rua e às instâncias de submissão, domesticação e normatização das
dinâmicas corporais que são impostas de forma direta e indireta na cidade.
O corpo performativo questiona o status do corpo organizado, racionalizado, produtivo
e eficiente, na medida em que apresenta e põe em ação direta um novo status para o corpo e,
desta forma, para as suas relações com o espaço e com os outros corpos.
Ao transfigurar o corpo-utilitário em corpo-signo – em contato direto com a vida – o
performer gera uma possibilidade de ação artística num campo onde as ideias podem, de
repente, se tornarem perigosas – uma vez que está para além de uma arte inofensiva e
pacífica. A performance coloca as normatizações e limites impostos sobre os corpos em
estado de instabilidade.
30
Nesse sentido, Fabião vai falar da potência da performance de criar dissonâncias,
desmecanização e “complicação cultural”. A performance, através do corpo e de sua
capacidade de afeto, busca gerar “experiência”, entendida aqui no sentido de risco, perigo,
prova e transformação: “Se o performer investiga a potência dramatúrgica do corpo é para
disseminar reflexão e experimentação sobre a corporeidade do mundo, das relações, do
pensamento”24.
Ao nos relacionarmos com o texto de Sófocles durante a construção de “Metrópole
Edipiana”, fomos buscando questões em Édipo-Rei que pudessem gerar fagulhas e
inquietações para serem colocadas em ação através do corpo. Como resultado, gerou-se uma
nova forma – herege, dessacralizante, despretensiosa e livre – de se lidar com a matéria
literária do tragediógrafo grego.
Ao se friccionar as “ferramentas” da performance a um “conteúdo” dramático,
notamos a dissolução de diversos fatores que estão ancorados nas convenções teatrais: o corpo
do performer enquanto alicerce de um personagem coerente, o roteiro de ações enquanto
“unidade”, o discurso que vem ancorado em uma narrativa com começo-meio-fim, e a ideia
de que a peça é um todo completo e autônomo.
“Metrópole Edipiana” buscou friccionar as questões de Sófocles com a atualidade,
colocando-as em nosso contexto e criando uma obra de arte que não tem um sentido
independente: as performances só completam o seu sentido em diálogo direto com o espaço
urbano e com os espectadores, incluindo-os (não apenas como voyeurs, mas como
acionadores/colaboradores) na própria ação artística.
Dessa forma, portanto, o corpo performativo é encarado como uma ferramenta
essencialmente relacional, buscando colocar a obra “em situação” e ativá-la dentro (e não à
parte) da vida.
24
FABIÃO, 2008, p. 238
31
CAPÍTULO 3
Experimento Nº 2 // Ação e Representação X Hamlet
O processo de investigação sobre o experimento nº 2 iniciou-se no Largo de Pinheiros.
O “palco”: uma estranha paisagem árida, cheia de tapumes, barulhos de construção e aquela
movimentação acelerada, em típico ritmo paulistano. A primeira impressão dos performers foi
a de “como esse lugar mudou!”. De fato, após a chegada da estação Faria Lima, integrante da
novíssima linha amarela do metrô, o Largo de Pinheiros mudou radicalmente seu caráter.
Como um lugar de convergência dos trabalhadores de diversas partes da cidade – devido ao
fato de muitas linhas de ônibus que vão até cidades da região metropolitana terem seu ponto
inicial ali – o lugar era point de lazer após o expediente, com seus botecos, prostíbulos e
boites. Todas as casas e estabelecimentos tinham um caráter popular, com preços acessíveis e
intensa movimentação. Com a aproximação da chegada do metrô diversas obras de
reurbanização foram realizadas, mais faixas de rua foram abertas e muitos edifícios foram
demolidos. Uma imensa obra se localizava bem ao lado da saída da estação: um mega-edifício
comercial onde se via uma placa “Em breve aqui um grande empreendimento”.
O ponto de encontro era uma espécie de “praça-que-não-é-praça”, um grande calçadão
que parece propositalmente não ser feito para ser habitado por seres vivos. Sem nenhuma
árvore ou banco, a “praça” deixa um recado: “Este é um local de passagem apenas. Atravesse
rapidamente”.
Para esta nova fase do processo, lemos um texto que falava sobre o Teatro Invisível de
Augusto Boal.
No Teatro Invisível cada peça tem como um texto escrito, que será modificado para se
adaptar às intervenções dos espect-atores. Atores devem interpretar personagens, como se
tivessem em um teatro tradicional. O tema deve ser empolgante e polêmico, que prenda a
atenção desses espect-atores. Quando o espetáculo estiver pronto, será representado num
setting que não é teatro e para espectadores que não sabem que são espectadores. A partir
32
das intervenções dos espect-atores, a peça passa a ser improvisada, e mudar os rumos do
script previamente construído25
Em nossa interpretação, esta ferramenta teatral é um bom exemplo de hibridismo entre
teatro, performance e intervenção urbana, além de trazer em si a particularidade de jogar com
as categorias de ação e representação, uma vez que, para que seja eficaz, necessita que os
“espect-atores” acreditem que a cena é “real”
Foi pedido aos performers que eles elaborassem uma cena de Teatro Invisível,
buscando instaurar veracidade e acionando alguma temática polêmica, que envolvesse as
pessoas que estivessem próximas ao local do acontecimento.
A cena elaborada foi a seguinte: duas pessoas com máscaras de proteção, luvas e uma
caixa de lenços umedecidos perfumados ficavam em frente à calçada de uma igreja
“higienizando” os transeuntes. Ou seja: sem qualquer permissão, eles passavam os lenços
umedecidos nos braços das pessoas e pediam que elas continuassem o processo de limpeza,
alegando que era preciso deixar o lugar “mais limpo e higienizado” a partir de agora.
Discutindo sobre os efeitos da performance, chegamos à conclusão de que havíamos
caído novamente muito próximo da performance art e nos afastado da proposta de Augusto
Boal.
O Teatro Invisível pensa um “roteiro”, que é programado previamente, envolvendo
uma ação dramática e a configuração de persona(gen)s. O espectador, portanto, é voyeur de
um acontecimento aparentemente “real” que não o envolve diretamente, mas coabita no
tempo e espaço, assim, tornando-o capaz de intervir.
No encontro seguinte, que aconteceu nas imediações do Terminal Lapa, observamos
um calçadão completamente diferente do anterior. Recheado de bancos e árvores, o lugar era
agradável para se passar alguns momentos de ócio e também para se instalar barraquinhas de
vender bugigangas. Uma pluralidade de tipos habitava o espaço: mendigos, trabalhadores
tirando um cochilo, meninos de rua, jogadores de dominó, casais tomando sorvete, estudantes
cabulando aula e pessoas esperando por alguém que sairia do terminal.
25
BRADSHAW, Lala. Augusto Boal: a experiência brasileira do improviso à serviço do questionamento psicopolítico-social. Retirado do site: http://portalimprovisando.com/2009/11/15/augusto-boal-a-experienciabrasileira-do-improviso-a-servico-do-questionamento-psico-socio-politico. Acessado em 10/09/2012
33
Naquele local realizamos uma investigação: identificar e observar os traços de
teatralidade invisível presente no cotidiano da rua, atentando às personagens, “máscaras” e
ficções que eram acionadas. Foi indicado também que se buscasse analisar se aquela ação
“teatral” era proposital ou não e, em caso positivo, tentar levantar hipóteses sobre os seus
objetivos.
Alguns casos levantados chamaram nossa atenção:
1) Ao redor de uma mesa de papelão, um homem realiza um jogo clássico: esconder
uma bolinha embaixo de uma das três forminhas de empada, misturar de forma rápida as três
e pedir para que as pessoas apostem em qual das três a bolinha está. Valores altos são
apostados. Uma mulher (depois se descobre que, na verdade, era uma “atriz” que fazia parte
do esquema de aposta) ganha diversas vezes. Quem vê acredita que o homem que está girando
as forminhas não é tão habilidoso, deixando com que a bolinha “sem querer” apareça. O jogo,
assim, torna-se muito atraente, pois parece fácil vencer e as quantias são boas. Outro homem,
desta vez alguém da multidão que assiste, entra no jogo. O homem que embaralha as
forminhas, na verdade, é bem ágil. O homem que apostou seu dinheiro fica confuso e perde
quatro rodadas seguidas. Um prejuízo e tanto.
2) Na frente de uma loja abarrotada de sandálias femininas de diversas cores vivas, um
forró animado toca num amplificador em volume estrondoso. Um homem, com aquele típico
registro vocal da profissão, um tanto “televisivo”, anuncia de forma atraente a promoção de
“melissinhas”: um produto genérico (réplicas) de uma grife de calçados que custa caro. Ele
interage e “brinca” com as clientes. A loja está lotada.
3) Na calçada uma moça jovem e bonita aborda os transeuntes, buscando angariar
apoiadores para uma fundação filantrópica bem conhecida. Ela é uma “atravessadora de
barreiras”: barreiras entre desconhecidos que circulam na cidade de São Paulo, sem tecer
relações. Ela usa, como estratégia, a simpatia. Quebra a barreira sorrindo e pede, com carinho:
“Posso falar com você um minuto?”. Muitas recusas, mas também várias conquistas.
Esses três casos foram interpretados como “propositais”, no sentido de que são
estratégias conscientes para se conseguir algum objetivo. Analisando tais objetivos,
percebemos que essas operações de teatralização funcionam como estratégias de atração.
Colocaram-se duas questões para serem pensadas em longo prazo: como seria fazer
uma intervenção usando essas estratégias de atração, mas subvertendo-as para fins artísticos?
34
Como seria criar uma performance onde o mote não fosse o estranhamento e sim a
“sedução”?
O passo seguinte foi ler Hamlet, nosso texto-base, no Parque da Luz. O objetivo da
leitura era ser itinerante e se incorporar às estruturas espaciais presentes no parque, uma
leitura dramática que também se configurasse como performance/intervenção urbana.
Depois da leitura, foi proposto aos performers que eles escolhessem uma personagem
da peça para que a “performassem” inseridos nos fluxos da rua. Essa nova abordagem de
trabalho sobre o texto teatral tinha como intenção a busca por uma relação mais aprofundada
com o material dramatúrgico, do que havia sido vivenciado no experimento nº 1.
A escolha pelo trabalho sobre as personagens também se relaciona ao mote desse
módulo do trabalho: as relações entre ação e representação – neste caso: ação como elemento
da performatividade e representação como da teatralidade.
A experimentação proposta, portanto, buscou trabalhar com essa fricção: o
personagem, componente teatral por excelência, inserido no contexto performativo de uma
intervenção urbana.
Criadas essas personas e seus programas cênicos, a etapa seguinte foi “jogá-las” (no
sentido de jogo) no espaço urbano. Escolhemos o Largo Treze, no bairro Santo Amaro, para
uma primeira tentativa.
O calçadão do Largo é movimentado e repleto de transeuntes. Observando o espaço
notamos que ali estava sendo “performado” um show de humor: um homem travestido de
forma tosca realizava a dublagem de uma música brega. Havia uitas pessoas ao redor dele.
No meio do show, uma moça jovem com olheiras enormes e maquiagem borrada,
vestida com terno e fumando um cigarro, cruza a multidão, “cortando” caminho em meio aos
espectadores. Tratava-se da persona “Ofélia-Tempo” (Raquel Morales), uma proposta de
releitura contemporânea para a Ofélia de Shakespeare.
O programa cênico apresentava uma trajetória definida em três etapas, que se
deslocava pelos espaços e era repetida diversas vezes:
1) “Trabalho”: andar rápido, como se estivesse atrasada; energia pesada, postura e
expressão carregadas; stress da cidade; movimentos mecânicos; fumar de forma compulsiva;
35
trajetória em linhas e ângulos retos; quase trombar nos outros transeuntes; 2) “Zen”: No meio
de um lugar de passagem (no caso, no centro do calçadão) a performer se despia do paletó e
da calça e sentava-se no chão em posição de meditação; fechava os olhos e começava a
meditar; 3) “Marionete”: com o terno, a calça, a bolsa e um guarda chuva, a performer
realizava desenhos antropomórficos no chão, colocando as roupas em diversas posições.
A primeira etapa era mais efêmera: os transeuntes a viam apenas como um flash. A
performer chamava a atenção por onde passava, mas sua ação era extremamente ágil e não
permitia tempo de fruição ou contemplação. Pelas observações que fizemos a rapidez com
que a imagem era mantida sob os olhos dos transeuntes fazia com que a maioria das pessoas
não entendesse se se tratava de uma atriz ou de uma pessoa “real”.
A segunda etapa teve uma repercussão curiosa: ao se deparar com uma pessoa
meditando em pleno calçadão, a maioria das pessoas passava sem parar, apesar de terem a
curiosidade aguçada no breve momento que por ali se deslocavam. Entretanto, alguns se
detiveram e ficaram observando parados durante um tempo, aparentemente na expectativa de
que algo acontecesse – talvez alguma ação teatral? Essa expectativa era quebrada logo em
seguida, pois a performer, ao se aperceber dos observadores, abria os olhos e dialogava
naturalmente com eles, afirmando que sua ação era espontânea, justificada pela necessidade
de relaxamento diante da correria do dia a dia, inclusive convidando-os para se juntarem a ela.
O terceiro momento, por ter um viés “artístico mais assumido, conseguiu angariar um
público de espectadores espontâneos. A ação ganhou uma delimitação de espaço de cena com
uma sutil separação entre “palco” e “plateia”, naquela formação típica da “galeria de arte”,
onde o público, parado e a certa distância, assiste/frui.
A segunda persona “performada” no Largo Treze foi “Gertrudes-Mendiga”. O choque
entre nobreza/poder e podridão/decadência era o gatilho para esta ação. O performer Luís
Garcia, usando um vestido vermelho e cinza que foi desenhado e costurado por ele mesmo,
perambulou pelo calçadão à procura de Hamlet, interagindo com os transeuntes homens
através de diálogos que colocavam eles no papel do filho procurado. “Hamlet, vamos voltar
para a Dinamarca. Não fui eu quem matou seu pai. Acredita em mim?”. À resposta negativa
do público diante do pedido para que assumisse o papel de Hamlet, ela respondia “Pára de
mentir! Assume o seu papel Hamlet!”.
36
Além de portar o vestido, o performer usava saltos plataformas, tinha a boca tingida
com anilina preta e bebia em grandes goles uma garrafa com cachaça. Nesse dia, o sol estava
quente e a temperatura alta; à medida que os goles iam se somando, o performer ia entrando
num estado de embriaguez “real” que se misturava a um expressivo toque de loucura no
registro de atuação. Ao caminhar com os saltos plataforma, ele se desequilibrava e caía no
chão, construindo uma trajetória espacial desgovernada e cheia de solavancos.
A repercussão desta ação naquele ambiente foi curiosa. Coincidentemente, aquele dia
era uma sexta-feira treze (justamente no Largo Treze!) e, devido a isso, muitas pessoas
acreditavam que o performer fosse algum mendigo alucinado, alguém “tomado por espírito”
ou que se tratava de uma daquelas “pegadinhas”, onde uma câmera escondida filma a reação
das pessoas à uma figura ou situação embaraçadora. Alguns chegaram a fugir daquela figura,
não sabemos se por medo ou por brincadeira.
De qualquer forma, o estado cada vez mais grotesco do performer durante a ação
gerou repulsa de praticamente todos os transeuntes, que corriam, maldiziam ou se mostravam
indiferentes à sua presença. Isso tudo contrastava com o texto que estava sendo improvisado,
o qual falava sobre reinos, guardas, príncipe, coroa, entre outros assuntos retirados da peça.
A ação gerou um considerável distúrbio no calçadão do Largo Treze, pois além de
invadir o “espaço” dos transeuntes, interrompendo seu percurso, o performer gritava em altos
brados por Hamlet, claramente incomodando a aparente “ordem” daquele lugar (que é apenas
aparente, pois o fluxo do calçadão é totalmente caótico).
Uma consequência interessante disso foi que a performance tornou explícita, de forma
agressiva e contundente, as figuras do mendigo e do louco, ambas indesejáveis dentro do
sistema de relações do espaço urbano – que busca, através de mecanismos diretos e indiretos,
torná-los invisíveis, emudecidos, excluídos e ignorados.
O terceiro programa cênico – “A Merchant do Fantasma” – foi inspirado na aparição
do fantasma do pai de Hamlet, que acontece logo no início da peça. A performer Karina Fuji
se inspirou na investigação ocorrida nas imediações do Terminal Lapa, onde levantamos a
hipótese de utilizar as estratégias “teatrais” de atração, especificamente aquela do vendedor
das “melissinhas”, que chamava as clientes através do microfone. Não coincidentemente, no
Largo Treze também havia diversas lojas onde os vendedores se utilizavam da mesma
estratégia.
37
A ação, portanto, consistia numa tenda improvisada, feita com um grande pano preto
amarrado em algumas placas, numa das esquinas do calçadão. A performer convidou um dos
colegas (Henrique Lima) para que se colocasse dentro da tenda munido de pequenos recortes
de papel com citações de diversos autores (como Rosa Luxemburgo) e frases retiradas do
Hamlet de Shakespeare. A performer ficava do lado de fora, equipada com um daqueles
pequenos amplificadores de voz que se prende na cintura, encarnando a figura da vendedora
que está anunciando, convidando os transeuntes para visitarem a tenda, onde teriam um
encontro com “a verdade”.
Ao entrar na tenda, os transeuntes se deparavam com a figura do outro performer e
recebiam um dos bilhetes. Na saída, a anunciante pedia para que as pessoas compartilhassem
no microfone qual frase elas haviam recebido, estimulando-as a refletir sobre o seu conteúdo.
O mistério envolvendo a tenda gerou bastante curiosidade dos passantes, que
aparentemente se aproximavam com o intuito de descobrir do que se tratava aquele estranho
acontecimento. A ação suscitava diversas dúvidas: a impressão inicial era de que se vendia
algo, afinal o espaço do calçadão é inteiramente voltado para se fazer compras. Entretanto,
havia uma vendedora, mas não havia um “produto”. A performer fazia questão de dizer que a
consulta na tenda era gratuita e aberta a todos. Talvez uma estratégia de marketing? Uma
amostra grátis de algum produto?
Outra impressão marcante era a de que a tenda fosse uma “pegadinha” da TV, uma vez
que do lado de fora não era possível ver o que acontecia lá dentro e isso gerava muitas
desconfianças. Somente os mais corajosos ou mais curiosos realmente se arriscavam a
participar. Houve um breve momento onde a ação começou a ter espectadores, que assistiam
às pessoas entravam na tenda, aguardando seu retorno.
Nos encontros seguintes mantivemos a mesma dinâmica de experimentação acerca dos
personagens da peça. Dessa vez nas imediações da Estação Santana do metrô, foram
“performadas” duas novas figuras que foram incorporadas experimento final.
O “Coveiro” (criação de Raquel Morales) foi inspirado nas figuras dos coveiros da
Cena I, do Ato V, de Hamlet. Segundo a própria performer, trabalhar com essa figura veio do
desejo de jogar com o tema da morte e com personagens “do povo”, que são pouco presentes
na peça.
38
Vestida com macacão, touca e galochas (que a tornavam bastante masculinizada), ela
perambulava pelas ruas e calçadas segurando nas mãos uma imitação de crânio humano
(como referência direta ao crânio encontrado pelos coveiros da peça durante a cena).
As ações iam se sucedendo de forma improvisada, com destaque para o momento onde
a performer, caminhando e murmurando no “ouvido” do crânio, se deparou com uma senhora
espírita que criticou sua ação de “evocar” a morte daquela forma, alertando-a sobre o perigo
que aquilo representava. Outro momento interessante foi quando a performer resolveu se
juntar a alguns moradores de rua que estavam sob um viaduto, indagando-os sobre a morte e
sobre
como
esta
se
concretiza
de
maneira
diferenciada para ricos e pobres.
A performance era realizada de forma sutil,
sem nada que chamasse atenção para qualquer tipo
de teatralidade. A performer mantinha a ação
enquanto um gesto
“mínimo”, sem qualquer
grandiloquência. O estranhamento de sua ação só
ocorria diante dos transeuntes mais atentos e
sensíveis a ela.
No relato que ela
fez logo
após
o
Figura 4 – Performer Raquel Morales.
Experimentação sobre Hamlet. Imediações
do Metrô Santana. Foto: Otávio Oscar
experimento, chamou atenção o fato de que, para as
pessoas com quem ela estabeleceu contato, parecia pouco importar se ela era atriz ou não.
Para elas o relevante era a própria ação (uma performance que tanto poderia ser artística ou
“real”), ao qual estas reagiam sem necessariamente jogar/“embarcar” em nenhum tipo de
ficcionalidade.
Outra figura que surgiu foi “Ofélia-Aleijada” (Luís Garcia), onde o performer, vestido
com um “look” de inspiração neo-gótica (rosto pintado de branco, vestido preto, jaqueta de
couro, meia listrada e salto alto), caminhava de muletas pelos arredores da estação, simulando
que o salto alto era a sua “deficiência”. A ideia da performance era fazer uma crítica ao
impacto do “ideal de beleza feminino” no processo de construção da identidade da mulher.
Ele misturou a isso uma ridicularização da personagem Ofélia, que, não levada “a sério” pelo
performer, foi transformada numa adolescente problemática e sofredora, que sai por aí
perguntando pelo seu namorado, o príncipe Hamlet, enquanto se desequilibra e tropeça.
39
Sob esse viés irônico (quase iconoclasta diante do respeito que o texto parece exigir),
o performer pretendeu revelar a personagem Ofélia enquanto uma figura de identidade
precária, sujeita aos diversos ditames advindos de seu pai, irmão, da família real e, inclusive,
do próprio Hamlet. Nesta visão, o suicídio de Ofélia pode ser interpretado como consequência
do vazio gerado pela perda das figuras aos quais ela se manteve dependente através do seu
papel social enquanto filha, mulher e jovem.
A escolha pela estética neo-gótica, que junta estetização do sofrimento a um colorido
juvenil e a um comportamento infantilizado, tornava a personagem mais ridícula e risível.
Apesar de o performer ter buscado não delimitar um espaço de ficção na cidade, uma
vez que a própria perambulação fazia com que fosse impossível estabelecer um local de
fruição para o eventual “público”, era inevitável que o percebessem enquanto um “ator”,
graças à sua caracterização – tanto no sentido de estar travestido como por seu figurino e
maquiagem estranhados.
Devido a isso, a interação com os
transeuntes ocorria com estes “entrando no
jogo” do performer ou não. Fato é que, como
aquele era um espaço de passagem, a maioria
das pessoas o ignorava, aparentemente sem a
mínima paciência ou disposição para fruir
“arte” naquele momento. Aos que entravam no
jogo, a brincadeira se dava em chave cômica.
Figura 5 – Performer Luís Garcia. Experimentação
sobre Hamlet. Foto: Otávio Oscar
Uma das mulheres com o qual ele conversou
chegou a relacionar a procura pelo príncipe
com a chegada do príncipe Harry (da Inglaterra) ao Brasil, notícia presente em quase todos os
jornais e programas de TV naquela semana.
A performance acabava tendo impacto maior pela força da imagem e da ação que se
oferecia aos olhos dos transeuntes, colocando o risível da caracterização em contraste com o
sofrimento da ação de estar “deficiente”.
Na continuidade do trabalho surgiu também a performance “Ofélia no Hiato”,
experimentada por Karina Fuji, na Praça Silvio Romero (próximo ao metrô Tatuapé). Nesta
ação, a performer, de vestido branco, interagia com alguns senhores idosos que ocupavam
40
mesinhas de concreto da praça para jogar dominó. Primeiramente ela lhes apresentava uma
carta de amor (a carta que Hamlet escreve para Ofélia, retirada da peça de Shakespeare),
pedindo para que algum deles a lesse. Ela indagava se ele a amava de verdade e dirigia essa
pergunta aos senhores presentes, agindo e reagindo de acordo com os feedbacks que recebia.
Aos poucos, essa Ofélia ia enlouquecendo e revelando que havia sido abandonada por
Hamlet, misturando a isso a lembrança da morte de seu pai. No auge de sua loucura, Ofélia
“surtava”, atirando moedas para todos os lados, improvisando um texto que falava sobre as
relações escusas entre o amor, a morte e o dinheiro. Em seguida, cantava uma música suave e
colocava na cabeça uma coroa de flores brancas, jogando sobre si uma água avermelhada
contida num balde, que manchava a brancura do vestido e, assim, simulava a sua morte.
Encerrada
essa
fase
de
experimentações, partimos para a
construção do Experimento nº 2.
Decidimos, então, – para além do
que havia ocorrido no Experimento
nº1 – ir em direção a relações mais
próximas com o teatro e tornar o
trabalho sobre Hamlet algo mais
linear, com uma trajetória definida.
O método escolhido para
isso foi a elaboração de um roteiro,
Figura 6 – Performer Karina Fuji. Experimentação sobre Hamlet.
Praça Silvio Romero (Tatuapé). Foto: Otávio Oscar
onde os programas experimentados
foram “costurados” como uma espécie de patchwork26, construindo uma trajetória itinerante.
Para além da simples junção das cenas, foram pensadas concatenações entre uma e outra,
além de também um trabalho dramatúrgico que lapidaria o material bruto e aperfeiçoaria as
propostas. O espaço escolhido foi o Parque da Luz, retomando a ideia de ocupação espacial
presente na leitura-intervenção que tínhamos realizado anteriormente lá.
26
O patchwork é uma técnica artesanal que constrói mantas, tapetes, capas de almofadas, etc. através da
costura ou emenda de diversos retalhos ou pedaços de tecido (“patch” = remendo), formando com a
diversidade de pedaços um novo “todo” com desenhos e composições.
41
A ação não foi ensaiada, pois como queríamos causar surpresa e, em alguma medida,
tornar a ação inesperada naquele espaço, apenas criamos coletivamente a programação cênica
a partir do roteiro previamente elaborado, determinando os espaços por onde as cenas
aconteceriam.
EXPERIMENTO Nº2 – NOS RASTROS DE HAMLET
O Experimento Cênico se iniciava com um prelúdio: a performer Karina retomou a
persona “Merchant do Fantasma” (figura 8), vestida com uma roupa “lúdica” e uma plaquinha
na mão onde havia escrito “Você tem medo da verdade? Não? Então venha consultar o
Fantasma da Gruta”. Ela distribuía panfletos (Figura 7) por todo o parque, onde se anunciava
que o Fantasma estaria presente às 16hrs naquela pequena gruta ao lado da área de exercícios
físicos.
Durante praticamente toda a primeira parte do roteiro
cênico, a performer Raquel Morales realizava, ao redor de
um dos círculos de grama do Parque, as partes 1 e 2 da
trajetória de Ofélia-tempo. Ela circundava aquela área
durante mais ou menos 30 minutos, provocando a mudança
entre a parte 1 (Trabalho) e 2 (Zen) ao despir partes da roupa
em movimento. A caminhada tinha sua
velocidade
intensificada aos poucos, provocando um estado ofegante na
performer. Terminada a ação de despir o terno e a calça, ela
se sentava numa parte da grama (onde era proibido pisar ou
sentar) e realizava a meditação. Depois de um tempo (ou
Figura 7 – Panfleto distribuído pelo
Parque da Luz
quando era interpelada por algum guarda do parque), ela
retomava o ciclo.
Às 16h, quando o fantasma (o performer Henrique Lima, trajando uma capa preta que
o cobria por inteiro) finalmente chega na Gruta, a “merchant” ficava do lado de fora
convidando os transeuntes para entrar. Lá dentro, recebiam um bilhete onde havia um
aforismo escrito por um autor libertário27, sobre temas como liberdade, rebeldia, resistência,
27
Foram usados autores como Rosa Luxemburgo, Mikail Bakunin, Guy Debord, Ema Goldman, entre outros.
42
corrupção e tirania. Ao sair, as pessoas eram interpeladas
pela performer, que pedia a elas que compartilhassem as
frases que receberam, lendo-as em voz alta.
Nesse momento do experimento, percebeu-se que
a maioria das pessoas não se fixou no local, apenas
recebiam os seus bilhetinhos e entendiam aquilo como
uma ação única, sem esperar uma continuidade. Muitos
que passaram por lá tiveram medo de entrar na gruta,
revelando o quanto o poder da superstição, marcante no
primeiro ato de Hamlet, ainda é muito presente na
sociedade contemporânea.
Terminada essa fase, do alto da gruta – onde há
uma espécie de varanda – desce a personagem Gertrudes-
Figura 8 – Experimento Cênico nº 2 –
“Nos Rastros de Hamlet” – performer
Karina Fuji. Foto: Lucas paz
mendiga, que esteve lá desde o início. O dispositivo de
ação do performer era a procura de Gertrudes por Hamlet, da mesma forma como ocorrera no
Largo Treze.
O performer carregava uma garrafa de cachaça e incorporava a embriaguez ao seu
estado de atuação. Durante essa caminhada pela via de pedestres do parque, muitos
comentários eram feitos em voz alta, e um grupo de
mulheres (presume-se que eram prostitutas) se divertiam
com
os
tropeços
e
quedas
de
Gertrudes,
rindo
estrondosamente.
Devido ao fato de o ator estar um registro bêbado e
histérico, a performance foi interpretada por um dos
guardas do parque como “real”, o que fez-lhe abordar o
performer no meio de sua “cena”. O guarda em questão
não havia recebido da administração a notícia de que ali
haveria uma performance que já previamente autorizada.
Seu procedimento padrão era reprimir as iniciativas que
Figura 9 – “Gertrudes-Mendiga” –
Experimento nº 2 – “Nos Rastros de
Hamlet”. Performer Luís Garcia.
Foto: Lucas Paz
perturbassem a ordem e o sossego do parque. O mal
entendido teve que ser imediatamente desfeito, sendo
43
necessário conversar com o guarda para que este não continuasse a tentar interromper a ação.
Gertrudes caminhava até um pequeno coreto, onde “passava a bola” para Ofélia-nohiato (Karina), que conversava com alguns homens sentados nos banquinhos. Ela
desenvolveu seu programa cênico passando pela leitura da carta e o “surto” com as moedas,
até o momento em que, jogando em si mesma a água avermelhada, cai morta.
Depois disso, a cena ficou em estado de suspensão durante muito tempo, em razão da
morte da personagem, intensificada pelo estado performativo da atriz que se entregou à total
imobilidade no chão. Os espectadores que haviam se aproximado no momento do surto
também ficaram em suspensão, esperando o próximo acontecimento. Algumas pessoas que
passaram por perto nesse momento também pararam para descobrir o motivo de tal
aglomeração. Elas viram o corpo “morto” e ficaram intrigadas. Algumas discussões sobre o
caráter do acontecimento (“É teatro?”, / “Ela morreu?”) ocorreram entre o público.
Após essa longa pausa, entra em cena um dos
Coveiros (inspirado no programa cênico realizado nas
imediações do metrô Santana) e aproxima-se do
corpo. Ele aproveita a “deixa”28 de um espectador –
que fez um comentário bem-humorado e de cunho
sexual sobre a atriz imóvel no chão – para “flagrar” de
forma escandalosa uma tentativa de necrofilia (“Que
isso brother? Cê tá dizendo que vai comer o presunto?
Isso
é crime sabia?”). Diante da abordagem
repressora, um rapaz se assusta e sai correndo.
A partir daí, a cena se desenvolve a partir do
problema de como enterrar o corpo morto. O primeiro
coveiro (Luís) dá um assovio e convoca o segundo
coveiro (Raquel, vestida como no programa original).
O diálogo dos dois insinua que a morte da “menina”
Figura 10 – Experimento nº 2 – “Nos Rastros
de Hamlet” – Performers Luís Garcia e
Karina Fuji. Foto: Lucas Paz
foi devido a um procedimento cirúrgico de aborto que havia resultado fatal. A escolha pelo
28
No jargão teatral, “deixa” é a ação ou texto feita por outro ator (ou por alguma passagem do roteiro de
ações) que motiva ou “abre espaço” para a próxima ação.
44
tema dizia respeito à recente polêmica sobre a votação do Superior Tribunal Federal em
relação à legalização do aborto para fetos anencéfalos.
Esse momento do experimento foi o que mais gerou comoção no contexto do parque,
atraindo muitos curiosos, que se aproximaram para assistir à remoção do corpo até o local
onde seria enterrado. Os performers e o público realizaram uma espécie de cortejo, que tinha a
velocidade determinada pela dificuldade dos dois em carregarem o corpo de Ofélia. Durante
praticamente todo o percurso os performers pediam a ajuda do público, que, apesar disso, não
ousava aproximar-se.
O final do cortejo acontecia no playground infantil, uma espécie de piscina de
concreto onde havia areia para brincar. Os coveiros atravessaram um grupo de crianças de
diversas idades e depositaram o corpo de Ofélia ali. Pediram para que as crianças lhes
ajudassem a enterrar a morta. Prontamente, várias delas entraram na “brincadeira”, ajudando a
jogar areia e a enfeitar o “defunto” com folhas de plantas do entorno. Elas ficaram eufóricas
com o jogo e começaram a provocar a performer
morta, tentando quebrar o seu estado de inação.
Terminado o funeral, os coveiros abandonaram
o “corpo morto” e se retiraram. A performer, em total
passividade, ficou à mercê do público. Diante do
assédio das crianças, um homem que havia criado
empatia pela performer passa a protegê-lo, garantindo
que as mesmas não jogassem areia em seu rosto ou a
machucassem.
A ação ficou assim, em estado de suspensão,
até o momento em que a própria performer se
levantou de súbito, assustando as crianças e dando um
ponto final ao experimento.
Figura 11 – Experimento nº 2 – “Nos
Rastros de Hamlet” – Performers Karina
Fuji, Raquel Morales e Luís Garcia. Foto:
Lucas Paz
AÇÃO X REPRESENTAÇÃO
No Experimento nº 2 podemos apontar diversos caminhos para a discussão acerca das
relações entre ação performativa e representação. “Nos Rastros de Hamlet” pode ser
45
interpretado como uma experiência de teatro performativo no espaço urbano, apresentando
características que exploram as fronteiras entre teatralidade e performatividade.
O elemento de jogo escolhido para essa investigação foi o trabalho com os
personagens, uma vez que estes são um dos pontos-chave onde as discussões sobre a
representação ocorrem.
Quando falamos de representação, estamos nos referindo a uma ação cênica onde o
ator imita situações e circunstâncias, num contexto em que há um grau de referencialidade
reconhecível, um processo centrado na ilusão e no traçado ficcional e, em grande parte dos
casos, ao redor da ideia de mimesis.
Em nosso experimento, o trabalho dos atores na construção das ações ocorreu em uma
zona fronteiriça: “naquela região difícil, entre o personagem e o trabalho que o ator faz sobre
si mesmo”29, sendo que, nesse modus operandi, “o que o público experimenta não é nem o
performer nem o papel, mas a relação dos dois. Essa relação é imediata, ela existe apenas no
aqui agora da performance”30.
Na persona Gertrudes-Mendiga, por exemplo, o performer Luís Garcia tinha como
eixo ficcional para sua ação a personagem da peça. Porém, em contraponto a isso, propunha a
ação da procura, a interação ríspida com os transeuntes, a bebida alcoólica que ia alterando
seu estado, as quedas e tropeços e todo o alvoroço e desconforto que aquela figura causava ao
seu redor. Tais ações acabaram se tornando predominantes para a maioria dos espectadores,
justamente por sua crueza e relação imediata com o ambiente.
Antes de qualquer enquadramento ficcional acerca de Hamlet e de sua história, era a
perturbação sensorial e social que o performer provocava que gerava a primeira camada de
percepção.
A ênfase, neste caso – e também nos outros – esteve mais na própria ação
performativa em si do que na representação de um personagem, colocando em primeiro plano
a ação cênica “real” – visível, concreta, sensível - e o acontecimento no tempo presente, que
se dá no contexto da ação:
29
SCHECHNER, 2009, p. 334
30
Ibidem, p. 361
46
Um evento [que] ocorre, aqui e agora, de forma individual, imprevisível e irrepetível – o
fugaz “produto” instantâneo de uma combinação e uma combinatória cada vez distintas de
convidados, artistas e fatores espaço-temporais, inclusive da temperatura e de todos os
demais elementos casuais, e ainda das perturbações que formam parte do acontecimento, do
mesmo modo que as ações planejadas e previstas.31
Por outro lado, as personas criadas agiam de acordo com o traçado ficcional, o que
instaurava a teatralidade. Contudo, elas invertiam uma característica fundamental da
ficcionalidade dramática: a referência a um tempo-espaço “outro” (o “presente” da ficção). Os
performers, nesse caso, atuavam exclusivamente no aqui-agora da apresentação, instaurando
a característica de evento típica da performance art.
Para exemplificar nossa afirmação temos a persona “Ofélia-no-Hiato” de Karina Fuji,
que lança mão do universo ficcional da personagem jovem e apaixonada, porém,
simultaneamente, interage com os espectadores no contexto do Parque da Luz. A Ofélia de
Shakespeare foi descolada da referência espaço-temporal da Dinamarca no início da Idade
Moderna para ser imersa em nosso momento atual, atuando a partir dessa combinação
específica de fatores ficcionais e reais.
Outro aspecto digno de nota é a imprevisibilidade, que dominou a cena em muitos
momentos. Um exemplo disso foi a dificuldade que os performers Luís Garcia e Raquel
Morales tiveram para carregar a “defunta” Ofélia até o local do enterro. Durante o
planejamento da ação, os dois não experimentaram carregar o corpo de Karina e, por isso, no
momento de realizá-la, perceberam que não seria tão fácil como supunham: o corpo
totalmente abandonado da performer estava pesado mesmo para ser transportado por duas
pessoas. Isso gerou um desconforto real para os atores em cena.
Devido ao caráter de nossa intervenção no parque, ambos estavam preparados para
situações inesperadas, devendo “segurar a cena” e incorporar qualquer dado concreto ao
traçado ficcional do enterro da personagem. Isso fez com que eles demorassem muito para
chegar até o local da próxima ação, criando uma espécie de cortejo fúnebre com os
espectadores que seguiam o “corpo” lentamente. Outra reação que tiveram foi tentar pedir a
ajuda das pessoas, porém elas apenas observavam a dificuldade deles em carregar o corpo,
sem atender ao pedido de auxilio.
31
WAGNER-LIPPOK, 2010, p. 12
47
Uma série de choques e dissoluções estava em jogo: entre performer e personagem,
entre a Dinamarca e o Parque da Luz, entre o tempo da ficção e o tempo presente, entre ação
programada e ação imprevista, entre realidade e ficcionalidade, entre espaço cênico e espaço
público, entre arte e vida, enfim, entre teatro e performance.
Discutindo sobre o Teatro Performativo, Leandro Acácio aponta para a via de mão
dupla entre ação e representação que é operada nessa “cena de fronteira”:
podemos dizer que, para o performer em cena, a ação passa a ter uma função mais
valorizada como tarefa (‘fazer’) do que como função mimética, interpretativa. O
desempenho do performer é colocado em primeiro plano, em detrimento da interpretação
da personagem, que passa a não ser mais a única fonte das ações. “Seu corpo, seu jogo, suas
competências técnicas são colocadas na frente”. Féral caracteriza a colocação em primeiro
plano da execução das ações como performatividade em ação, mesmo que, na cena
contemporânea, essas funções – função representacional (mimética) e função performativa
– tendam a não se excluir. Por não se excluírem, elas se tornam complementares. Sua
aplicabilidade dependerá do modo como são dosadas e levadas para a cena.32
Acácio reforça a questão sobre a ênfase do teatro performativo no “fazer”. Este é
presente em todo tipo de teatralidade, mas, no teatro convencional, está, digamos, “soterrado”
sob as camadas de ilusão. O ator desaparece para que o personagem possa surgir; e por mais
que cada ator expresse sua individualidade nesta construção, ao fim é o personagem que deve
prevalecer e ser “a única fonte das ações”. O “fazer” é, nestes casos, apenas “interpretar”.
No teatro performativo, outros “fazeres” entram em jogo. Em “Nos Rastros de
Hamlet” destacamos algumas ações performativas que ultrapassavam os limites da
representação: correr em círculo durante muito tempo; “divulgar” a aparição do Fantasma
para os transeuntes do parque; se alcoolizar em cena e instalar em seu corpo um estado de
embriaguez real; provocar seus próprios tropeços e quedas; abordar rispidamente alguns
transeuntes incautos e “golpeá-los” cenicamente, obrigando-os a entrar na ação sem que eles
sequer percebessem que se tratava de uma cena; conversar com senhores idosos sobre a
paixão; carregar um corpo “morto” (com muita dificuldade) e enterrá-lo, entre outras.
32
ACACIO, 2011, p. 58
48
CAPÍTULO 4
Experimento Nº 3 // Performatividade do Espectador X As Três Irmãs
O processo se inicia com dois objetivos traçados: primeiro, a proposta de construir um
experimento mais próximo do texto base, com o objetivo de gerar fricções mais complexas e
arriscadas; segundo, criar coletivamente desde o início – sem passar pelas propostas
individuais (workshops) – através de um processo conjunto todo o tempo.
Desta vez, partimos diretamente para a leitura do texto. O primeiro encontro aconteceu
num espaço fechado, pois a leitura em espaço público (no Experimento nº 2) havia se
mostrado muito dispersa. Diferentemente de Édipo-Rei e Hamlet, a peça de Tchékhov era
pouco conhecida pelo grupo. Nenhum de nós havia de fato a estudado com maior
aprofundamento.
Não é preciso dizer que a estrutura fortemente dramática do texto, um drama, já de
início gerou desconforto acerca de como trabalhar ele na rua. Alguns dos performers, a
princípio, manifestaram desconfiança de que talvez aquela tarefa fosse impossível – até
mesmo entediante.
O processo criativo neste módulo foi marcado pela paciência e determinação para
encarar este desafio que representou, para todos, uma “pedra no sapato”. “Como assim
Tchekhov em espaço urbano?!” foi a pergunta que ouvimos diversas vezes, vinda de colegas e
amigos que souberam da proposta. Junto a esse estranhamento havia também curiosidade,
pelo caráter de novidade que aquilo representava.
Essas e outras provocações nos motivaram bastante, gerando o desejo de explorar um
novo caminho e enfrentar uma matéria-prima que, a princípio, seria resistente ao trabalho com
a performance e com o meio urbano.
O diagnóstico das dificuldades vinha, em grande parte, dos próprios performers. Para a
maioria, a peça de Tchékhov parecia abstrata demais em seus conteúdos, sutil demais em suas
imagens reveladoras e, ao mesmo tempo, enquanto matéria dramatúrgica, com poucas
“frestas” para que um projeto de encenação inovador pudesse quebrar a sua estrutura realista.
49
Pois bem, o desafio estava lançado. E o processo criativo se configurou como
problemático do início ao fim, beirando ao fracasso e à desistência em muitos momentos.
Devido a essa dificuldade, não hesitamos em afirmar que o experimento nº 3 foi onde houve
melhor oportunidade para que as ideias de performance e teatro pudessem de fato ser
observadas numa perspectiva de colisão, choque e fricção.
Os obstáculos que iam aparecendo foram, contudo, percebidos de forma motivadora,
pois davam “pano pra manga” para o estudo das diferenças (e divergências) históricas que
marcaram a ruptura dos artistas da performance art com o teatro, na década de 60.
Cabe uma reflexão sobre o papel modelar de Tchékhov para a tradição teatral
moderna, uma vez que o teatro ocidental (e o cinema, principalmente) estão até hoje
dominados pela hegemonia da estética realista de encenação e pelo modelo do drama.
Stanislavski, por sua vez, é considerado o maior pesquisador e teorizador acerca da
atuação realista e teve em Tchekhov um grande parceiro no campo da dramaturgia, numa
sinergia de pensamento e estética que gerou frutos históricos importantes. Entretanto,
sabemos que parte dessa “tradição” stanislavskiana, impregnada na tradição teatral e
cinematográfica, não é fruto direto de seu legado, mas sim de seus seguidores, que
reinterpretaram seus ensinamentos.
Podemos destacar entre todas essas “releituras” de Stanislavski a escola Actors Studio
(EUA), que se tornou modelo para a indústria cinematográfica mais poderosa e onipresente no
mundo (Hollywood). Tal fato contribuiu de forma decisiva para que a interpretação realista
fosse considerada pela grande maioria do mundo ocidental como o paradigma do que se
entende enquanto atuação.
Releituras de Édipo-Rei e Hamlet são muito comuns no teatro contemporâneo. Essas
peças, em especial a segunda, já foram profanadas, desconstruídas e reconstruídas por
diversos grupos e encenadores que buscaram nesses mitos atualizações e tensões com os
contextos que viveram. Isso ocorre também com As Três Irmãs, porém as dificuldades de
friccioná-la com o universo da performance nos pareceram maiores que as outras duas.
O primeiro dificultador por nós identificado diz respeito ao espaço onde as cenas
acontecem: a peça se passa inteiramente na casa da família que a protagoniza. Apenas o
50
último ato ocorre na área externa – ainda assim, este faz parte da casa. Portanto, como
trabalhar com uma peça tão íntima em um ambiente urbano?
Somado a isso, a peça não contém absolutamente nenhuma dimensão pública –
diferente das tramas políticas envolvendo o reinado e a luta pelo poder, que estão presentes
tanto em Édipo-Rei como em Hamlet. Nestas duas, também estão presentes conflitos
familiares e privados, mas a indissociabilidade entre o ser público e o ser privado de seus
protagonistas está encarnada cenicamente através do cruzamento dessas esferas. Portanto,
como transportar o universo privado de As Três Irmãs para o espaço público? Essa pergunta
se tornou de fato bastante provocativa, pois não se tratava apenas de uma questão espacial,
mas também dramatúrgica.
O papel primordial que o diálogo exerce na estrutura dramática do texto de Tchékhov
também foi identificado como outro dificultador. No drama, o diálogo intersubjetivo (entre
personagens) é motor exclusivo da dinâmica interna da peça, que é fechada e completa em si
mesma e, de acordo com Szondi, “absolutizada”. No caso de Tchékhov, a dramaturgia parece
apontar para essa importância do diálogo, ainda que, muitas vezes, o mais importante
encontra-se no subtexto das falas.
Em nosso caso, o diálogo acabou se tornando o ponto de contato com o público, sendo
utilizado como ferramenta para friccionar a ideia de performatividade do espectador com o
texto teatral.
A partir da leitura do texto, partimos para as experimentações práticas. Como um dos
objetivos do processo era trabalhar os programas cênicos de forma mais grupal, a proposta foi
realizar uma improvisação onde cada performer escolhesse uma personagem da peça para
“colocar em situação” e interagir com os outros atuadores, no espaço urbano.
51
O primeiro local escolhido foi o Largo do Arouche, onde o mote escolhido para a
primeira experimentação foi um acontecimento dramático: a comemoração do aniversário de
Irina, evento que marca o início da peça. Uma das indicações dada aos performers era de que
eles buscassem envolver os espectadores (os
habitantes do local naquele momento). Outra
diretiva foi que ficassem juntos o tempo todo,
improvisando sempre em grupo.
O exercício se desenrolou de forma difícil
e arrastada: os elementos do jogo (personagem,
relação com o espectador e entre os outros
personagens)
criaram
uma
complexidade
excessiva, o que “travou” o improviso.
Entretanto, em meio às dificuldades,
algumas experiências interessantes emergiram: o
diálogo, não mais exclusivo dos atores, mas
compartilhado
compartilhamento
com
o
da
festa,
público;
os
no
performers
compraram um bolo de aniversário e o ofereceram
aos transeuntes, convidando-os a festejar junto, o
engajamento dos passantes nas discussões sobre o
tema do trabalho, muito presente em As Três
Irmãs e, por fim, o tema do retorno ao lugar de
origem, fértil para uma cidade repleta de
Figura 12 – Improviso sobre As Três Irmãs.
Performer Raquel Morales. Largo do Arouche.
Foto: Otávio Oscar
imigrantes como São Paulo.
Esses elementos foram identificados e decidimos desenvolver o experimento a partir
deles. A proposta seguinte foi assumir o piquenique de aniversário como mote da ação. Foi
determinado um personagem para cada performer, na seguinte distribuição: as irmãs Irina
(Karina), Macha (Raquel) e Olga (Marília) e o irmão delas, Andrei (Henrique). A escolha pelo
trabalho aprofundado de cada ator sobre um único personagem, nos aproximava ainda mais
das convenções teatrais para, dessa forma, aumentar o atrito na fricção entre teatro e
performance.
52
Assim, no calçadão de Osasco (próximo à estação da CPTM), ocupamos uma área da
calçada com um piquenique completo: toalha no chão, comidas e bebidas. Os performers
estavam vestidos de forma chique e simulavam pessoas “refinadas”.
As
comidas
e
bebidas
funcionaram como uma espécie de
“atrativo” para os transeuntes. Irina e as
irmãs convidavam quem passasse para
participar da comemoração e se servir do
que estavam oferecendo.
No meio dessa interação, que se
dava
“pelo
conversavam
Figura 13 – Improviso sobre As Três Irmãs. Performers
Henrique Lima, Karina Fuji, Marília Contini e Raquel
Morales. Calçadão de Osasco. Foto: Otávio Oscar
diversos
estômago”,
com
o
assuntos
as
público
irmãs
sobre
previamente
combinados. Trabalho e casamento eram
os dois principais.
Apesar de estarem mais seguros para realizar o improviso, houve uma dificuldade em
manter os espectadores no piquenique por muito tempo. A maioria se aproximava,
parabenizava Irina, servia-se de algo e, logo depois, seguia seu caminho. Apenas em um
momento, onde houve um aglomerado mais significativo de pessoas ao redor do piquenique, é
que houve a chance de se desenvolver um diálogo mais longo sobre os temas planejados e de
“deixar ver” as personagens de forma mais aprofundada.
As hipóteses para esta não permanência no local da ação têm a ver com o próprio
caráter do espaço, que não deixava as pessoas à vontade para se sentar ou ali permanecerem.
A impressão que tivemos era de que estava “inscrita” no registro corporal daquelas pessoas
uma “proibição” sobre o uso daquele local enquanto um lugar para relaxar. Já estava
naturalizado o uso puramente “viário” do calçadão que, mesmo sendo espaço “público”, tem
como único fim o fluxo de pessoas e mercadorias. Qualquer atitude fora desse padrão seria
vista com desconfiança.
Diante desse quadro, poderíamos até dizer que a performance agiu de forma
subversiva, ao propor uma dinâmica pouco usual de ocupação do espaço. Entretanto, como a
53
“cena” se configurou enquanto um piquenique familiar, onde os participantes estavam
vestidos de forma chique, os transeuntes pareciam acreditar que apenas aquela apropriação
privada – para aquelas pessoas (os performers) - era permitida.
Diante da falta de permanência do público na festa da família, o que prejudicou nossos
objetivos, nos víamos diante de outro “fracasso”: nem metade do que havia sido elaborado
pelos performers teve a chance de ser explorado; o entrosamento coletivo do grupo ainda não
estava suficientemente apurado para permitir um bom “desempenho” do roteiro e do
improviso; e, por fim, as camadas mais profundas do texto de Tchekhov – sem as quais as
situações dramáticas se tornam esvaziadas – encontravam-se pouco exploradas.
Diante disso, resolvemos encaminhar os ensaios seguintes para uma espécie de
“retiro”, onde deixaríamos momentaneamente o work-in-progress performativo no espaço
urbano para dedicar um tempo, em “sala de ensaio”, ao estudo mais aprofundado dos
personagens, das situações, dos temas e à uma elaboração mais minuciosa do programa cênico
do Experimento nº 3.
Neste período, discutimos coletivamente sobre a peça, analisando a sua estrutura de
ações, a transformação sofrida pelos personagens em cada ato e também sobre os possíveis
sentidos gerais do texto.
De fato, o tempo de estudo que fora planejado para esse experimento mostrou-se
insuficiente. A tessitura dramática de Tchékhov não deve ser analisada de forma panorâmica,
pois parece exigir um “dissecamento” minucioso das palavras, das pausas, dos gestos, enfim,
das sutilezas que uma visão generalista não permite abarcar.
A Édipo-Rei e Hamlet também caberia tal afirmação, entretanto, admitimos que a
estrutura mitológica, com seu enredo básico (existentes anteriormente à dramaturgia),
facilitou uma visão mais abrangente de sua trama e a consequente recriação inspirada neles.
O clima cotidiano e aparentemente banal de uma casa de família, repleta de amigos e
conhecidos que orbitam ao seu redor, apresenta seu reverso nas revelações que vão se dando
nos subtextos – exigindo um esforço de leitura não esquemático.
O enredo de As Três Irmãs apresenta um acontecimento principal em cada ato: no Ato
I, o aniversário; no Ato II, a festa de carnaval que é cancelada; no Ato III, o incêndio; e no
54
Ato IV, a retirada da tropa do exército da cidade. Porém, todos eles estão repletos de
pequenos acontecimentos, o que faz com que, para quem lança um olhar despercebido, a peça
possa soar tediosa, fraca ou mesmo sem ação. As situações dramáticas parecem esvaziadas,
parciais, sem grandes efeitos ou reviravoltas. Isso difere de Hamlet e Édipo, onde os lances
dramáticos e os conflitos se desenrolam de forma a intensificar a narrativa até seu desfecho –
nos dois casos, sangrentos.
Tchékhov parece recusar os grandes acontecimentos, trabalhando num “anti-clímax”
constante, de forma que as ações relevantes sejam de fato aquelas interiores ou imanentes,
numa espécie de arqueologia cênica da alma humana no que ela tem de mais profundo.
Como resultado dessa passagem pela sala de ensaio, elaboramos um roteiro básico,
uma visão mais esquemática e simples que permitiu o improviso e a interação com os
espectadores. Escolhemos como espaço de experimentação o Parque da Juventude, onde
haveria uma probabilidade maior do público se sentir à vontade para participar do piquenique
e permanecer por mais tempo no local da ação.
Outra escolha foi relativa ao “cenário”: diferente dos outros dois experimentos, que
eram móveis, o experimento nº 3 – “Três Irmãs”, aconteceu tendo como base um ponto fixo,
uma árvore, onde as irmãs instalaram a sua “casa”. A intenção era criar uma “ponte” maior
com a peça, pois as performers simulavam estarem recepcionando o público como convidados
para a festa de aniversário. A árvore também foi escolhida por sua simbologia como metáfora
da família e também da ideia de enraizamento, que remete à permanência dos irmãos na
cidade.
A princípio planejamos que as irmãs estariam com os pés enterrados o tempo todo da
ação, sem poder caminhar pelo espaço, enquanto Andrei permaneceria no alto da árvore.
Entretanto, essa ideia, quando realizada na prática, se provou ineficiente para atrair o público,
pois era preciso um pouco mais de “movimento” para que as pessoas notassem a ação, se
aproximassem e desejassem permanecer junto à cena.
Como durante os ensaios e experimentações as personagens foram atualizadas para
nosso contexto e interpretadas de forma realista, o público, na maioria das vezes, acreditava
naquela festa de aniversário como um acontecimento “real”. Apesar de essa ideia parecer
interessante a princípio – na medida em que explorava os limites entre ficção e realidade – a
55
ausência de um “enquadramento” teatral fazia com que os espectadores não se preocupassem
em “ler” os acontecimentos e as ações, na medida em que eles se camuflavam enquanto
cotidianos, apesar de “excêntricos”.
O “enquadramento”, nesse caso, era importante pois, sem ele, não se poderia enxergar
a intenção artística da ação. Assim, resolvemos esse problema acentuando a teatralidade da
performance, através de figurinos mais estranhados, de uma atuação mais teatralizada e do
tratamento cenográfico feito na árvore.
A seguir, descreveremos o resultado final do Experimento nº 3.
EXPERIMENTO Nº 3 – TRÊS IRMÃS
O local escolhido para ação foi um
árvore próxima ao prédio da administração do
Parque da Juventude. A apresentação aconteceu
num domingo ensolarado, com o parque lotado
de pessoas que buscavam um momento de lazer.
A árvore estava “paramentada” com
diversos objetos que remetiam à casa das três
irmãs, além de portar enfeites da festa de
aniversário de Irina. No contexto por nós criado,
Figura 14 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs” –
Performers Karina Fuji, Marília Contini e Raquel
Morales. Foto: Otávio Oscar
as personagens eram filhos de brasileiros
nascidos na França. Moscou, do original, foi trocada por Paris. Essa adaptação tinha por
objetivo oferecer ao público uma referência menos distante, próxima ao senso comum
brasileiro, que entende Paris como símbolo da elegância e do refinamento, um lugar
“perfeito” em comparação ao Brasil.
Em nossa versão, as irmãs, assim como em Tchékhov, se referem a Paris como um
passado feliz e como um futuro de esperanças, o que faz com que o presente seja um lugar de
insatisfação e desconforto. A referência à sua cidade natal foi recorrente durante toda a
performance.
56
Como início da ação, as três
irmãs davam uma volta pelo parque
convidando diversas pessoas para
comemorar,
junto
com
elas,
o
aniversário de Irina, indicando o local
exato onde a festa iria ocorrer. As
performers estavam caracterizadas de
Figura 15 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”.
Foto: Otávio Oscar
forma extracotidiana: Karina trajava
um vestido branco que parecia quase
uma fantasia, com luvas e óculos escuros; Raquel usava um casaco preto que cobria o corpo
inteiro, uns saltos vermelhos, um óculos escuros, uma boina francesa, além de fumava um
cachimbo; Marília vestia uma roupa com a qual parecia voltar do trabalho, uma saia preta reta
e uma camisa de alfaiataria.
Após essa peregrinação pelo parque, as irmãs voltavam para a árvore e iniciavam a
recepção aos convidados. Naquele dia, havia um senhor coreano tocando trompete no parque
e nós o convidamos para ficar próximo a nós, se integrando, assim, à performance, já que
poderia tocar música para a festa.
A aglomeração inicial de pessoas
atraiu muitas outras que por ali estavam, e o
mote da festa foi bastante atrativo. Olga
cumpria a função de servir os convidados
com comidas e bebidas, enquanto Irina e
Macha conversavam com o público sobre
os temas “trabalho” e “casamento”. Nesse
primeiro momento a ação era livre e o
diálogo com as pessoas do público definia
Figura 16 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”.
Foto: Otávio Oscar
os rumos.
O roteiro de ações foi dividido em três partes esquemáticas:
I)
Aniversário de Irina = As irmãs recebem o público. Atmosfera: Comemoração
- Irina: conversa sobre o trabalho, revelando que vai começar um emprego
novo em breve / Olga: servir bem, recepcionar / Macha: conversa sobre o
57
casamento, sobre o tédio / Andrei: escreve incessantemente. Descarta diversos
papéis com fúria.
II)
Decadência = O clima de descontração da festa é substituído pela exposição
das angústias das irmãs. Atmosfera: ansiedade/descontrole - Irina: começa a
trabalhar, manipulando diversos componentes eletrônicos / Olga: corrige
provas e recebe ligações a todo momento. Tenta administrar a crise das outras
irmãs / Macha: na tentativa de ficar mais bonita, se maquia e, aos poucos, vai
borrando e manchando o rosto, tornando-se cada vez mais grotesca / Andrei:
realiza apostas, deixa cair diversas notas falsas de dinheiro.
III)
Solidão = As irmãs ficam abandonadas. Atmosfera: Reclusão. Irina: Começa a
falar sem parar sobre Paris, veste uma roupa “de vovó” e se encolhe num canto
da árvore / Olga: Veste a roupa de diretora da escola e fica quieta, realizando
suas tarefas / Macha: inicia o ato tentando incendiar a casa, é contida, cava um
buraco no chão e enterra os pés.
A
apresentação
teve
dois
momentos contrastantes. A primeira
parte, festiva, onde os performers e o
público
encontravam-se
em
estado
comemorativo, o que acarretou com que
a performance tivesse grande adesão. Já
a segunda e terceira partes, onde as
ações se tornaram mais “estranhas”,
essa adesão se perdia gradualmente. Se
a primeira parte era mais livre, o que
Figura 17 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”.
Foto: Otávio Oscar
facilitava a improvisação, as outras duas
ofereciam grandes dificuldades na relação com o público, uma vez que eram mais “fechadas”,
encapsuladas nelas mesmas.
58
PERFORMATIVIDADE DO ESPECTADOR EM “TRÊS IRMÃS”
O Experimento nº 3 foi aquele que mais intensificou a fricção entre o teatro e a
performatividade. Justamente devido a isso, o processo criativo e a apresentação acabaram se
tornando bastante problemáticos, na medida em que houve uma série de dificuldades em
cruzar a estrutura dramática do enredo tchekhoviana com as características performativas que
nos propúnhamos experimentar.
O texto se mostrou extremamente resistente ao jogo performativo, como se
apresentasse uma severa rejeição ao espaço urbano. Talvez fosse necessário um tempo maior
de experimentação e ferramentas alternativas de trabalho para que conseguíssemos efetivar
plenamente a proposta.
Mesmo sendo um experimento “problema”, Três Irmãs apontou interessantes
caminhos para o cruzamento teatro-performance, especialmente no que se refere ao mote da
performatividade do espectador.
Esse conceito foi por nós experimentado através daquilo que chamamos dramaturgia
relacional. Havia um roteiro cênico - um “programa” preestabelecido, mas este foi construído
de forma flexível e inacabada, para que pudesse ser “completado” a partir da interação e
participação do público.
Assim, apesar de a trajetória das personagens estarem previamente determinadas, o
caminho, a “travessia”, só poderia se dar com os espectadores, parte essencial para o
acontecimento cênico.
Além disso, o diálogo, principal motor do drama convencional, aqui foi desviado do
eixo intraficcional para o extraficcional, na busca por um deslocamento perceptivo do
espectador, que deixria de ser voyeur passivo de um presente ficcional (o presente do drama)
para ser integrado a um presente “real”. Essa operação, em nosso caso, buscou amalgamar o
aqui/agora do drama (universo de Tchekhov) ao aqui/agora do acontecimento.
Pensamos que essa tensão entre o real e o representado foi o que nos gerou uma série
de dificuldades na execução do experimento, pois a concatenação de ambos é complexa e
exige uma estratégia eficiente para a interação com o público, para que os elementos sejam
arranjados de forma a se permitir uma boa fluidez da trajetória pré-estabelecida.
59
Em Três Irmãs, não houve a configuração de uma estrutura cênica fixa e ensaiada, mas
sim de um processo cênico, pensado como acontecimento único capaz de amplificar o aspecto
lúdico do texto de Tchékhov. Segundo Josette Féral essa característica processual, que gera
resultados e consequências que não podem ser previstos, instaura um “risco real para o
performer”.
Derrida será o primeiro a prolongar esta noção introduzindo nela um fator importante, o de
sucesso ou malogro [grifo nosso]. (...) ele afirmará que a obra, para ser realmente
performativa, pode ou não atingir os objetivos visados. A reflexão de Derrida marca um
redirecionamento na evolução do conceito de performatividade na medida em que ele
afirma que a ação contida no enunciado performativo pode ou não ser efetiva [grifo nosso].
Portanto, na medida em que essa observação se torna um real princípio inerente à própria
natureza dessa categoria de locução, o “valor do risco”, “o malogro” tornam-se
constitutivos da performatividade e devem ser considerados como lei.33
Esse “malogro” também se relaciona com a questão da expectativa nutrida pelo
público frente às convenções teatrais. Tomemos, como exemplo, a reação da mãe de uma das
performers que, convidada para assistir ao trabalho, se manifestou bastante decepcionada com
o que foi apresentado. Segundo ela, aquilo não era arte, muito menos teatro34.
Aparentemente, as características performativas de nosso experimento geraram uma
“frustração” em relação a suas expectativas do que deveria ser “arte”, uma vez que decidimos
justamente dispensá-las, na tentativa de arriscar novas possibilidades cênicas.
Com a mudança de papéis promovida pelo entorno performativo colapsam, com frequência,
convenções “estabelecidas”: deste modo, o espectador “tradicional” confia na perfeição
elaborada da obra de arte que o espera e a que ele está disposto a admirar. Ele se alegra de
antemão com a ideia de ir ver a peça, a encenação, “o Hamlet”, que lhe será oferecido por
um determinado – e conhecido – ator. Ele é o verdadeiro rei e diante dos seus olhos se
desenrolam os acontecimentos, entre outros, arquivados na forma de “papéis” reconhecíveis
e reutilizáveis. (...) As demandas consumistas de um público aristocrático-burguês
refestelado em sua poltrona são afrontadas pelo performativo no mesmo modo como
desaparecem as oposições dicotômicas entre ator e espectador ou entre “papel social” e
“privado”.35
33
34
FERAL, 2008, p. 223
É interessante notar que, ao classificar o fenômeno como não-arte, a mãe de nossa colega evidencia a
hegemonia de um padrão para a arte, que é justamente uma das convenções que a performance art busca
combater.
35
WAGNER-LIPPOK, 2010, p. 11
60
A dissolução das oposições entre performers e espectadores, no nosso caso, não foram
totalmente abolidas, na medida em que havia uma condução da ação realizada pelos atores.
Afinal, ainda havia um roteiro, mesmo que básico, a ser seguido. De fato, os espectadores do
parque se sentiram à vontade para “entrar no jogo”, o que provocou um constante
atravessamento de fronteiras entre os dois lados da ação artística.
Os performers utilizaram, como ferramenta principal de atração do público a criação
de laços afetivos. Através da estratégia de receber o público em sua “casa”, eles buscavam
“fazer amizade” com as pessoas que se aproximavam, perguntando-lhes o nome, oferecendolhes comida e bebida e conversando sobre assuntos cotidianos.
Esse laço afetivo gerou repercussões curiosas, pois no momento em que as irmãs
vivenciavam sua decadência, muitos buscaram “ajudá-las”, como quando um dos meninos do
público impediu que Macha (Raquel) continuasse a tentativa de incêndio, preocupado com
que ela se machucasse.
Esse envolvimento dos espectadores com a ação, provocado intencionalmente pelos
performers, foi considerado um fator de grande importância em nossa experimentação, pois
parece ser uma estratégia interessante para criar novas formas de recepção e fruição artística,
capazes de diminuir a passividade e intensificar o interesse e a atenção. Como afirma Silvia
Fernandes, ao comentar o livro The transformative Power of performance, de Erika FischerLichte:
O evento envolve performers e espectadores em atmosfera compartilhada e espaço comum
que os enreda, contamina e contém, gerando uma experiência que ultrapassa o simbólico. O
resultado é uma afetação física imediata que, para a ensaísta, causa uma “infecção
emocional” no espectador36
Em Três Irmãs, o terceiro momento não pôde ser concretizado da forma como foi
planejado, pois alguns dos espectadores que haviam comemorado o aniversário na primeira
parte, não permitiram que as irmãs ficassem sozinhas, indo conversar com elas sobre algum
36
FERNANDES, 2011, p. 17 apud FISCHER-LICHTE, Erika. The trasformative Power of performance. New York:
Routledge, 2008
61
assunto. Assim, o final da performance se configurou espontaneamente como uma ação
performer-espectador na ordem de um para um, possibilidade até então não imaginada por
nós37.
37
Na história da performance podemos destacar diversas ações interessantes que envolvem a presença de
apenas um espectador. Como exemplo disso temos o trabalho de Eleonora Fabião onde ela, no centro do Rio
de Janeiro, posicionava duas cadeiras frente a frente, sentava-se numa delas e conversava com as pessoas
exibindo um placa com os dizeres “Converso sobre qualquer assunto”. Ou ainda a performance “The artist is
present”, de Marina Abramovic, onde a artista colocou a si própria como obra/instalação que podia ser
observada pelos visitantes. Abramovic passava todas as horas do dia sentada na cadeira, sem sair, e quando
alguém sentava na sua frente, ela a encarava fixamente, até o momento em que ela saísse.
62
CONCLUSÃO
O processo de investigação do Projeto 3x3 se mostrou muito frutífero na junção entre
criação e pesquisa experimental, buscando estabelecer uma via de mão dupla onde uma
servisse como mola propulsora para a outra.
Ao realizarmos toda a etapa prática do projeto na rua (os exercícios, as
experimentações e os processos criativos de cada experimento), conformamos um laboratório
criativo onde a pesquisa não se dava de forma isolada em sala de ensaio, mas através de uma
dinâmica work-in-progress, onde as fronteiras entre processo e obra não estavam fixadas.
Os textos teatrais passaram por um procedimento tipicamente “antropofágico”:
primeiro nós o “devorávamos”, juntando nesse composto nutritivo o espaço urbano e os
estudos e experimentações sobre performance art. A partir da “digestão” de ambos, os
programas cênicos eram “regurgitados” e experimentados em lugares públicos.
Ao nos relacionarmos com os textos teatrais durante a construção dos experimentos,
fomos elaborando questões dentro deles que pudessem gerar fagulhas e inquietações,
buscando fomentar uma nova potência comunicativa com o público.
Como resultado, gerou-se uma outra forma – herege, dessacralizante, despretensiosa e
livre – de se lidar com a matéria literária oriunda das peças. A performance, aqui, funcionou
como um combustível altamente inflamável para relações não convencionais entre texto
teatral e espaço urbano.
A nossa intenção foi gerar um campo experimental onde tanto o milenar teatro como a
performance art pudessem ser matéria-prima de experimentação na busca por novos
caminhos na forma, na linguagem, no discurso artístico e na inserção destes na vida social.
Os três experimentos apresentados não conformam uma unidade, cada um
apresentou características peculiares de acordo com seus motes criativos. Muitas vezes, os
caminhos experimentados se mostraram obscuros e não sabíamos como lidar com alguns
problemas que surgiram, justamente pelo seu caráter inédito que nos surpreendia e nos
incitava a malabarismos criativos que os solucionassem.
A experimentação, assim, expandiu diversos horizontes criativos acerca das
possibilidades de relação entre teatro e performance inseridos no meio urbano.
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No Experimento nº 1 nos aproximamos da linguagem da performance urbana através
dos Exercícios Preparatórios e criamos uma ação que denominamos “teia” de performances
simultâneas, onde os três programas cênicos que o compunham teciam pontos de contato
entre si ao mesmo tempo em que preservavam sua autonomia.
No Experimento nº 2 criamos um roteiro “patchwork”, fruto da “costura” entre
diversos programas cênicos experimentados e selecionados. Este experimento resultou mais
próximo da noção de teatro performativo, jogando com as fronteiras entre a teatralidade e a
performatividade.
No Experimento nº 3 nos orientamos mais em direção à linguagem teatral, ao construir
um roteiro com uma estrutura mais próxima do drama convencional, a qual, porém, se
mantinha flexível o suficiente para envolver os espectadores na ação – ao que denominamos
dramaturgia relacional.
Em todos esses experimentos as fricções entre teatro e performance não primaram pela
busca por um conceito harmonioso; era a incongruência, a impureza, a imperfeição e o “efeito
Frankenstein” que nos pareceram mais instigantes enquanto abordagem.
Se, por um lado, adotamos o método da fricção, ao final chegamos à conclusão de que,
quando trabalhadas de forma articulada, a teatralidade e a performatividade podem se tornar
complementares, potencializando o interesse e o impacto da ação artística sobre o espectador.
o fato de se colocar o real em cena hoje surge para provocar o espectador, estimulá-lo a ver
o espetáculo de outro jeito, a reagir de outra forma. Para resumir, diria que, se a
performance estava centrada no performer, o teatro hoje está voltado para o espectador.
Está interessado em descobrir como acordar um espectador que está dormindo toda hora.
Não é apenas o intuito de fazê-lo reagir só pelo prazer, mas o de fazê-lo reagir de forma
inteligente, não só pela provocação38
Enquanto a performatividade desarticula convenções, instaura o evento, enfatiza a
presença e transfigura a obra em processo – agindo de forma provocativa sobre o espectador –
a teatralidade cria um enquadramento estético reconhecível aos olhos deste. Esta
complementaridade é capaz de potencializar a passagem da provocação à reflexão.
38
FÉRAL, Josette. Entrevista concedia a Leandro Acácio e Julia Guimarães em São Paulo, novembro de 2010. In
ACACIO, 2011, p. 79-80
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A performatividade, ao provocar curtos-circuitos entre a ficção e a realidade – cria
uma dinâmica perceptiva que foge às regras usuais e propõe uma postura mais envolvente
com a ação. Durante os experimentos, as ações “invadiram” o ambiente urbano, abrindo
espaço para diversas possibilidades de adesão ou não adesão às propostas.
Lançamos mão da performatividade com o objetivo de criar uma relação “crua”,
imediata e não mediada com o cotidiano, minimizando a necessidade de estabelecer pactos de
teatralidade com os habitantes do espaço.
Em muitos momentos, a ação concreta colocada em movimento pelos performers
esbarrava e ultrapassava alguns limites entre arte e vida cotidiana. As consequências disso
foram diversas: alguns se sentiram ofendidos, outros não deram muito atenção, muitos
ignoraram, autoridades interviram, incautos assustaram-se, desocupados se distraíram e
muitos, não se sabe porque, interromperam seus fluxos e pararam para prestar atenção e
acompanhar o trabalho, buscando realizar uma leitura daquele acontecimento.
A dúvida “É teatro?” foi uma constante durante todo o processo de experimentação; as
dinâmicas de visibilidade e invisibilidade da intenção artística oscilaram de acordo com
diversas variáveis, confundindo os espectadores sobre a veracidade daquelas “ocorrências”.
Os performers navegaram numa zona de risco onde a imprevisibilidade e surpresa
eram presenças determinantes, se afastando da condição de um ator confortável em seu
espaço de cena bem delimitado e convencionalmente protegido das influências externas.
As dinâmicas relacionais entre performers, espectadores e espaço urbano eram a
tônica de todos os experimentos, negando qualquer prerrogativa unilateral que fixasse emissor
e receptor em papéis imutáveis. A ação não esteve isolada ou separada do ambiente
circundante: os poros da obra estavam sempre abertos e esta se configurava de forma
processual, no aqui/agora da performance.
A performance art não representa a negação do teatro no sentido estrito, mas a recusa
das convenções artísticas que impediam que a arte fosse capaz de se reinventar, num
momento histórico onde muitos artistas e ativistas políticos afirmavam a necessidade do novo
como potência de transformação do mundo.
Sob o nosso ponto de vista, o sentido atual dessa intenção política ainda existe e, por
mais que a performance não seja mais algo novo, suas questões motivadoras ainda estão
65
presentes no século XXI. Como, por exemplo, na luta contra o mercado monopolizador e
padronizador dos modos de produção da arte e contra a dependência cada vez maior dos
artistas em relação às instituições que, de forma sub-reptícia, tece alianças com setores
empresariais.
Até mesmo a performance art sofre consequências desse processo ao qual negou no
passado: “engolida” pelo circuito oficial da arte, ela perde progressivamente sua radicalidade,
reduz seu poder de combatividade política, se subjuga a padrões institucionais, tornando-se
cada vez mais, mainstream.
Apesar disso, a performance, a nosso ver, preserva ferramentas potenciais de
provocação que ainda são estranhas a uma maioria e podem, ainda, criar desvios ou ilhas de
desordem no status quo.
Realizar ações artísticas de ruptura ainda se mostra uma atitude política válida. Elas,
inclusive, deveriam ser realizadas de forma continuada, estimulando a revolução permanente
dos pensamentos em detrimento da alienação, patrocinada pelos meios de comunicação de
massa.
Nesse sentido, uma proposta que une teatro e performance permite a criação de uma
configuração híbrida, que preserva traços de uma linguagem mais conhecida pelo público –
no caso, o teatro – ao mesmo tempo que, partindo dessa “familiaridade”, abre frestas para
outras linguagens provocativas e menos assimiladas, ativando de forma diferenciada, por
meio dessa fricção, outros níveis de percepção.
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