Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes [Projeto 3x3: Fricções entre Teatro e Performance] Relatório Final de Iniciação Científica CNPq 2011/2012 Otávio Oscar Nunes do Nascimento Professor Orientador: Antonio Carlos Araújo Silva Departamento de Artes Cênicas ECA/USP Agosto de 2012 Otávio Oscar Nunes do Nascimento PROJETO 3X3: Fricções entre Teatro e Performance Relatório Final de Iniciação Científica apresentada ao Programa de Iniciação Científica RUSP/PIBIC/CNPq da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Área de concentração: Artes Cênicas Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Araujo Silva São Paulo Escola de Comunicações e Artes / USP 2012 2 RESUMO O Projeto 3x3 tem como objetivo a experimentação teórico-prática das possibilidades de inter-relação entre o teatro e a performance art, utilizando o espaço urbano como “lugar”. O método de trabalho consiste no processo de criação – junto a um grupo de performers convidados, onde o pesquisador funciona como uma espécie de coordenador/diretor – de três experimentos cênicos realizados em espaços públicos (praças, ruas, parques, etc.) que tenham como norte, cada um, a fricção de um elemento da performance art e uma peça canônica da literatura dramática. A pesquisa pretende investigar relações de choque entre elementos que distinguem as duas linguagens, produzindo reflexões a partir dos experimentos práticos. Palavras-chave: Performance e Teatro; Teatro Performativo; Teatro em Espaços Urbanos; Intervenção Urbana ABSTRACT The 3x3 project has as purpose the theorical and practical experimentation of the interrelation possibilities between theatre and performance art, using the urban space as ¨site¨. The study approach consists in the creative process with a group of invited performers and the researcher, who acts as a kind of coordinator/director. Moreover, there are three scenical experiments which happen at public spaces (squares, streets, pedestrianized streets and so on). Each of these experimentations is aimed at the friction between performance art and a canonic dramatic text. The research intends to analyze the differences between these two languages, as well as, to produce reflections based on these practical exercises. Keywords: Performance and Theatre; Performative Theatre; Theatre in Urban Spaces; Urban Intervention 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................5 Do percurso e das motivações Do processo de investigação: objetivos e metodologias Da escolha pelo espaço urbano A estrutura do trabalho CAPÍTULO 1...............................................................................................10 Apontamentos acerca da performance art Teatro Performativo CAPÍTULO 2...............................................................................................19 Experimento Nº 1 // Corpo Performativo X Édipo-Rei CAPÍTULO 3..............................................................................................32 Experimento Nº 2 // Ação e Representação X Hamlet CAPÌTULO 4...............................................................................................49 Experimento Nº 3 // Performatividade do Espectador X As Três Irmãs CONCLUSÃO.............................................................................................63 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................67 4 INTRODUÇÃO Do percurso e das motivações As motivações que levaram ao interesse pelo estudo acerca da performatividade aconteceram a partir de felizes acasos e intuições, quase de forma magnética – sem que fosse previamente planejada ou pré-concebida. O primeiro contato com a linguagem da performance art foi proporcionado através de artistas da minha cidade natal (Macapá-AP), em especial por uma amiga de longa data que ingressou no curso de Artes Plásticas da UNIFAP (Universidade Federal do Amapá) e descobriu o gosto por ela. Um fato notável para ser mencionado foi a performance que esta fez junto a outros dois amigos no interior da universidade, na qual realizavam uma série de ações envolvendo carne bovina crua, nudez, exibição explícita de vídeos pornôs, numa espécie de ritualização macabra e um tanto quanto insalubre. Aquela performance havia causado furor dentro da universidade, que poucas vezes havia se deparado com tal grau de radicalidade e vanguardismo – atente-se ao fato de que a cidade de Macapá ainda hoje vivencia o processo de proliferação e consolidação daquilo que denominamos “arte contemporânea”. Os estudantes envolvidos na performance foram estigmatizados e processados administrativamente pela universidade. Diante da repercussão daquela ação, minha reação foi a de comemorar junto a eles o choque que aquela performance havia provocado, entretanto, aquilo tudo ainda me parecia um tanto quanto “puramente provocativo”, apenas gerando repulsa e estranhamento, sem levar a atitudes mais “positivas” de reflexão ou crítica. Hoje em dia não penso mais dessa mesma forma, mas descubro que aquilo que me pareceu “faltar” na performance, aquele incômodo causado pelo desejo de “também” aproximar os espectadores ainda permanece. No âmbito do curso de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, no qual ingressei no ano de 2008 para formação enquanto diretor teatral, entrei em contato com diversas linhas de pesquisa envolvendo teatro, num percurso de afinidades que teve como ponto comum, desde seu início, o desejo por uma prática teatral politicamente engajada, que fugisse à lógica do entretenimento banal e da reiteração ideológica de valores dominantes 5 No âmbito das disciplinas específicas pertencentes à grade curricular do curso de direção teatral, através de influências de colegas e professores ligados à performance, fui entrando em contato com essa linguagem e, intuitivamente, incorporando-as aos experimentos cênicos em direção. Durante essas experiências, não houve da minha parte ou mesmo dos atores, nenhum tipo de aprofundamento ou verticalização do estudo acerca da performance. As características performativas surgiam “espontaneamente” no interior dos improvisos e das propostas de cenas. Nesse momento do percurso, junto aos colegas de trabalho que se tornaram mais próximos, fundamos o grupo de teatro “BANDO_”, no exato momento em que realizávamos, sob a minha direção, um experimento de site specific dentro da sede abandonada do DCE da USP. Na trajetória de dois anos do grupo, neste e em todos os outros trabalhos, as características de performatividade foram surgindo através da prática, não por um desejo “puramente estético” de experimentação, mas sim por um desejo político de incorporação do espectador na ação. Além disso, nos interessávamos pela investigação daquilo que Josette Feral nomeia como “estética do choque” – ou seja, uma cena onde o espectador seria golpeado por uma inesperada inserção de “realidade”, que o tiraria de um lugar confortável e convencional durante a recepção da obra. Essa linha de trabalho, que espontaneamente se aproximou da performance art por afinidades políticas, chegou a um ponto onde era necessário um aprofundamento histórico, prático e teórico, onde pudesse sair do terreno da intuição para adentrar de fato numa pesquisa, sem perder, obviamente, seu caráter intuitivo e espontâneo. Foi nesse exato momento que surgiu a provocação de Antonio Araujo, orientador deste projeto, para que os estudantes da turma de direção teatral buscassem caminhos de pesquisa que pudessem se desenvolver enquanto possíveis investigações em nível artístico, intelectual e/ou acadêmico. Desta provocação nasce o mote para o Projeto 3x3, com o intuito de realizar uma investigação acerca das possibilidades de relação entre o teatro e a performance art. 6 Do processo de investigação: objetivos e metodologias O objetivo desse projeto de pesquisa é a experimentação teórico-prática das possibilidades de inter-relação entre o teatro e a performance art. O método de trabalho consiste no processo de criação de três Experimentos Cênicos (cenas/performances/intervenções) realizados em espaços públicos (praças, ruas, calçadões, etc.) que tenham como norte, cada um, a fricção de um elemento da performance art e um texto canônico da literatura dramática. Os três elementos escolhidos foram 1) Corpo performativo; 2) Ação X Representação; 3) Performatividade do Espectador. Tais elementos foram respectivamente “friccionados” com os seguintes textos teatrais: A) Édipo-Rei, de Sófocles; B) Hamlet, de William Shakespeare e C) As Três Irmãs, de Anton Tchekhov; que são representantes, respectivamente, da tragédia grega, da tragédia elisabetana e do drama. A escolha de tais obras se baseou no fato de elas se constituírem como textos teatrais canônicos – que se tornaram matérias textuais modelares para o teatro em diferentes épocas – capazes, portanto, de potencializar essa “fricção”, uma vez que os elementos da performance art entrariam em choque direto com a estrutura cênica e dramatúrgica daqueles. Tantos os estudos teóricos como os Experimentos Cênicos serviram de base para esta reflexão escrita, que busca tecer observações acerca das relações entre performatividade e teatro a partir das práticas realizadas, tendo como foco os três elementos escolhidos e as possibilidades políticas e conceituais de cada um deles. Os doze meses de pesquisa consistiram em três fases. A primeira fase se configurou em um mês de estudo teórico preliminar sobre performance art e teatro performativo, com vistas a reforçar o pensamento teórico que embasou os experimentos da segunda fase e a reflexão final desenvolvida na terceira fase. A segunda fase consistiu na realização dos Experimentos Cênicos e aconteceu junto a um grupo de performers convidados, onde o pesquisador atuou como uma espécie de coordenador/diretor, conduzindo e orientando as práticas. 7 A terceira fase, logo após a realização dos três Experimentos, consistiu em dois meses para a escritura do relatório final, cujo teor é uma reflexão que reúne os estudos teóricos e a experiência adquirida pelas práticas desenvolvidas ao longo da pesquisa. Da escolha pelo espaço urbano A escolha do espaço urbano foi motivada pelo desejo de estudo acerca da potência das ações artísticas inseridas nos fluxos cotidianos da cidade. Todos os encontros, exercícios e experimentos do Projeto 3x3 se deram em ruas, calçadas, praças e parques de São Paulo. Para nossa investigação, o espaço público funcionou como “meio de cultura” para os experimentos de fricção entre teatro e performance. Esse termo, retirado da biologia, pode assim der definido: Os meios de cultura (preparações sólidas, líquidas ou semi-sólidas que contêm todos os nutrientes necessários para o crescimento de microrganismos) são utilizados com a finalidade de cultivar e manter microrganismos viáveis no laboratório. Os meios de cultura devem ter na sua composição, os nutrientes indispensáveis ao crescimento do organismo em questão, sob forma assimilável e em concentração não inibitória do crescimento.1 Preservamos desse termo a ideia de utilizar a cidade não apenas como um local onde a performance se instala, enquanto mera cenografia ou pano de fundo, mas enquanto “nutriente” para a ação artística, segundo uma dinâmica de incorporação: a ação incorporada ao espaço e o espaço incorporado na ação. Esta concepção do espaço urbano não apenas como mero local ou “cenário”, mas como “nutriente” contém afinidades com as formulações de André Carreira acerca das práticas do Teatro de Invasão. Em seu texto “A cidade como dramaturgia no teatro de invasão”, Carreira afirma: A partir de práticas invasoras, isto é, do exercício de criação de espetáculos de rua que abordam o espaço da cidade não como cenografia, mas como dramaturgia, se constituiu um olhar que repensa o procedimento cênico de montagem no teatro de rua. A premissa desta pesquisa está apoiada na proposição de que a cidade e seus fluxos conformam uma base dramatúrgica2 1 Retirado do site “e-escola”. In http://www.e-escola.pt/topico.asp?id=312. Acessado em 19 de Julho de 2012 2 CARREIRA, 2008, p. 67 8 No Projeto 3x3 a dramaturgia – “aqui compreendida como a define Eugênio Barba, uma tessitura de ações podendo ou não incluir a palavra” 3 – é fruto do jogo entre o texto, os performers e a cidade, que em nossa concepção é também considerada como outra “performer” O ambiente urbano, portanto, aqui será entendido como o local onde esse diálogo experimental, através das linguagens do teatro e da performance, acontecerá incorporando as dinâmicas e fluxos da cidade. A estrutura deste texto Este texto é dividido em quatro capítulos. No capítulo um, realizamos uma abordagem inicial sobre a performance art e discutimos brevemente as noções de performatividade, teatralidade e teatro performativo conforme o pensamento da teatróloga franco-canadense Josette Féral. No capítulo 2, 3 e 4 abordamos os Experimentos Cênicos que representam o objeto de nossa investigação. Cada um deles é dividido em três partes: uma descreve o processo criativo, outra o experimento em si e a terceira dedica-se a reflexões e observações a partir da prática. 3 FABIAO, 2008, p. 237 9 CAPÍTULO 1 Apontamentos acerca da performance art A partir das décadas de 60 e 70 diversas manifestações artísticas inéditas e de caráter excepcional começaram a surgir na Europa e nos Estados Unidos sob o nome de performance art. Essas manifestações tinham traços em comum – principalmente na relação entre corpo, estética e política – e traziam em sua essência uma ruptura com as formas socialmente aceitas da arte. Constituíram-se em uma espécie de “complicação cultural” que gerou ações e reações até hoje presentes na arte contemporânea. Há poucos dias atrás, durante a escrita deste relatório, duas reportagens sobre a atualidade e importância da performance na arte contemporânea circularam pela principal rede social da internet. Ambas apresentavam a inauguração da “The Tanks” – nova ala da galeria Tate Modern, de Londres – dedicada exclusivamente para ações artísticas de “live art”. Em entrevista, o diretor da galeria afirmou: "Isto não é um museu, não é uma galeria, não é um teatro. Isto é algo diferente (...). A abertura da The Tanks nos permite oferecer um espaço diferente em nossa programação, para que a performance, o som, as imagens em movimento e a participação possam ter tanto peso quanto tudo o mais que fazemos”4 Como consequência dessa notícia, mas também se referindo ao lançamento de um documentário sobre Marina Abramovic5 – a artista performativa mais prestigiada e famosa do mundo - Adrian Serle, no artigo “Como a arte performática passou a dominar” diz: A arte performática já não parece uma atração secundária nas galerias, um adendo à experiência do museu. (...) A proliferação da performance nos museus tem muito a ver tanto com a arte em si quanto com a mudança no papel dessas instituições, além das demandas de um público que deseja a sentir influente, envolvido e participativo. (...) 4 “Galeria Tate Modern, em Londres, abre espaço dedicado à ‘live art’”. Por Li-mei Hoang. Agência de notícias Reuters. Retirado do site http://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRSPE86F04220120716. Acessado em 23/07/2012. 5 O documentário em questão chama-se The Artist is Present (A Artista Está Presente), dirigido por Matthew Akers. EUA, 2012. 10 Queremos ser espectadores ativos, ao invés de passivos. Talvez isso seja apenas uma moda, mas suspeito que não. 6 Desde seu período efervescente, há cerca de 50 anos atrás, tais manifestações sempre ofereceram uma série de dificuldades para aqueles que tentaram defini-la, seja pelo seu caráter radicalmente experimental, seja por abranger um campo híbrido de linguagens artísticas ou ainda por sua incomum relação com a vida social. Em seu texto “Porque a performance deve resistir às definições”, Lúcio Agra defende que essa característica da performance – a dificuldade de definição – não deve ser encarada enquanto um problema, mas sim como uma atitude ativa de fuga das classificações. “Por que deveríamos abrir mão desta conquista que é dispormos de um modo de dizer/fazer/pensar em arte que resiste às definições?” 7 , é a pergunta que formula, apresentando para isso algumas razões para deixarmos que esse “privilégio da indefinição” continue a ser uma das riquezas da performance: “o caráter de expansão da linguagem, sobretudo atualmente; a sua “natural” resistência à apreensão cognitiva racionalista, a sua amplificação geográfica, a sua reverberação em vários contextos (ela mesma sendo um), sua congenialidade a outras formas emergentes de invenção artística que resultam de misturas e apropriações de formas tradicionais ou sucatas culturais, a sua predileção pelo evento efêmero, precário, dificilmente apreensível, a sua resistência às clássicas ordens identitárias, o seu caráter de proximidade ao subalterno, sua expansão em lugares antes ignotos, sua formulação em uma temporalidade espiralada (sem a teleológica perspectiva de um progresso linear-ascendente), a amplitude de seu campo de pesquisa, sua ilógica, sua predileção pelo paradoxo, o experimental.”8 Apesar de essas diversas razões serem apresentadas como uma defesa para a não definição da performance, todas elas representam características, ênfases, aproximações, “devires” e tangenciamentos acerca dessa linguagem. Para nossa investigação, convém nos aproximarmos um pouco dessas “tangentes” do conceito de performance.9 6 “Como a arte performática passou a dominar”. Por Adrian Serle. Publicado na Folha de São Paulo em 18/07/2012. Retirado do site http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1121999-como-a-arte-performaticapassou-a-dominar.shtml. Acesso em 23/07/2012 7 AGRA, 2011. Pg 17 8 IDEM, Pg 17 9 É importante que se diga aqui que os estudos que se apresentam nesse texto se referem apenas às pesquisas acerca da performance enquanto manifestação artística, sem entrar no campo do Performance Studies de 11 Renato Cohen, pioneiro dos estudos da performance no Brasil, escreve acerca do que pensa ser um mínimo denominador comum da performance. Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para um plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. (...) podemos entender a performance como uma função do espaço e do tempo (...) algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local10 Portanto, a performance é, antes de tudo, uma arte pertencente ao domínio das artes cênicas, pois elas acontecem no presente (em determinado espaço e tempo, ao vivo). Poderíamos encontrar trabalhos que são considerados performances mas que fogem a essa “regra”, como as fotoperformances de Cindy Shermann ou as videoperformances de Maya Deren. Entretanto, esses mesmos trabalhos mantém outras características “tangentes” da performance que os fazem pertencer a essa forma. Em nossa investigação, manteremos uma filiação à conceituação de Renato Cohen, porém, atentando ao fato de que o conceito de performance art sempre será capaz de abarcar ações desviantes de qualquer delimitação que se faça – o que não significa que não devamos fazer o esforço de tentar encontrar pontos recorrentes ou tecer abordagens aproximativas. Assim, elencamos a seguir aquilo que chamamos de “ênfases” da performance art, entendida aqui enquanto fenômeno artístico pertencente ao domínio do cênico. I) ÊNFASE NO PRESENTE Uma das principais marcas da performance é a característica de “evento”, algo que acontece no momento presente, em simultaneidade temporal e espacial entre performer e espectadores. Isso é, obviamente, uma característica básica de qualquer evento cênico. Entretanto, a performance busca enfatizar e radicalizar o presente através de suas ações, buscando interferir no aqui e agora de sua execução. Richard Schechner, que investiga a ideia de performance em diversas esferas (social, política, artística, esportes, rituais, cotidiano, etc), em uma perspectiva multidisciplinar. 10 COHEN, 2007. Pg 28 12 II) NAVEGAR NAS FRONTEIRAS ENTRE ARTE E VIDA Os artistas da performance art lançam mão de certos procedimentos e práticas que tensionam os limites entre realidade e ficção, entre vida e arte, de forma a borrar as fronteiras que as convenções artísticas estabelecem entre um e outro. Essas práticas muitas vezes realizam um embate “cru” entre arte e sociedade, rejeitando a necessidade de balizas institucionais e comportamentais para a “fruição” artística. Muitas vezes, inclusice, não é possível fruir, mas apenas reagir. Dessa tensão nascem questões que se colocam além do enquadramento puramente estético, podendo esbarrar em limites, muitas vezes perigosos e arriscados. Nas palavras de Leandro Acácio: Tal aproximação entre arte e vida procura ver a primeira em relação direta com a segunda. Por isso, podemos dizer que se trata de um desmoronamento das fronteiras, que, trazido para o mundo contemporâneo, possibilita uma nova visão da arte como também uma nova visão da vida.11 III) RUPTURA COM AS CONVENÇÕES DA ARTE / EXPLORAÇÃO DOS LIMITES ENTRE A ARTE E A NÃO-ARTE Enquanto arte de fronteira, a performance realiza um contínuo movimento de ruptura com as convenções artísticas e com as formas socialmente aceitas de arte. Fazer performance muitas vezes também é sinônimo de alargar ou extrapolar os limites acerca do que é considerado arte, estabelecendo oposições aos paradigmas em vigor. A prática da performance nos anos 60 e 70 provocou, conforme já mencionado, focos de “complicação cultural”. Isso ocorreu por meio de suas práticas contínuas de ruptura, capazes de gerar relações incomuns com a vida social. 11 ACACIO, 2011, p. 22-3 13 Bia Medeiros12, ao discutir sobre o trabalho de seu grupo (Corpos Informáticos), que realiza uma “arte que pouco se inquieta de sua permanência, tal como a performance”13, vai usar dois conceitos iluminadores sobre essa postura da performance diante das convenções estabelecidas na arte: sinais nomadizantes e sinais normatizantes. o sinal nomadizante é o instante singular, inevitável e irrepetível. Deste distinguimos a arte como tentativa de ordenar uma visão já dada do mundo – sinais noRmatizantes- da arte como um meio de tornar perceptível uma dimensão poética. Sinais nomadizantes são sinais que produzem uma espécie de cesura, onde a espacialidade e a temporalidade anterior se tornam alteradas; uma tensão imediata e modificadora, arrebatamento, nocaute, desesclarecer momentâneo, questionamento obsceno, perturbador, reflexos perplexos, pausas, desconstruções, mas não no sentido de destruir, pois se desconstrói compondo. Inegável força que nos arranca da mesmice e nos relança no processo. Trata-se de revelações, e estas afirmam a potência de transfiguração dos lugares-comuns, desestabilizam os sinais noRmatizantes. (...) o sinal nomadizante caminha para a destruição dessa maneira de experienciar a vida. A arte não se subjuga a nada de exterior a ela, a nenhuma das coisas que se encontram na nossa frente.14 IV) MULTI-DISCIPLINARIDADE / HIBRIDISMO Os artistas da performance criam experiências cênicas sem demarcações de território, onde o apagamento das fronteiras entre os diferentes domínios artísticos são fator determinante. Subvertendo a ideia de fronteira, a performance tem uma lógica desterradora, capaz de lançar mão de ferramentas, estratégias, mídias e suportes dos mais diversos campos e de incorporar ao seu repertório manifestações as mais díspares possíveis. Nesse sentido, quando se busca, por exemplo, classificar um performer, se torna quase impossível dizer se ele é dançarino, pintor, escultor, músico, ator, etc. Essa “babel” das artes não se origina de uma migração de artistas que não encontram espaço nas suas linguagens, mas, pelo contrário, se origina da busca 12 Maria Beatriz Medeiros é professora e pesquisadora da Universidade de Brasília e também coordena o grupo de performance Corpos Informáticos. 13 AZAMBUJA; MARTINS; MEDEIROS, 2008, p. 1888 14 Ibidem, p. 1888-9 14 intensa, de uma arte integrativa, uma arte total, que escape das delimitações disciplinares15 V) ÊNFASE NO PROCESSO (NÃO NO PRODUTO) A performance busca retirar a arte dos lugares habituais de consumo, dos circuitos institucionais, se afastando da lógica do “produto” artístico e da canonização da ideia de “obra de arte”, com o intuito de insistir no aspecto processual do trabalho. O que os artistas tentam mostrar não é o produto final e, sim, o processo, buscando “reinstituir a presença”. A obra, muitas vezes, é o próprio processo de criação, e vice-versa. VI) BUSCA PELA PRODUÇÃO DE EXPERIÊNCIA A ênfase no processo em detrimento do produto gera uma tendência a construir as ações performativas enquanto geradoras de “experiência”. Eleonora Fabião coloca os “programas” da performance enquanto “ativadores de experiência”. Longe de um exercício, prática preparatória para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma. Em Do Ritual ao Teatro, o antropologista Victor Turner entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo “experiência” e esclarece: etimologicamente a palavra inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma. As escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, oscilam entre um sopro e um renascimento.16 Na performance, portanto, o mais importante não é o que a obra busca significar ou simbolizar, mas sim a travessia da experiência, que transcende a possibilidade e o esforço de interpretação e produção de significado, indo além da pura reflexão ou interpretação racional. Assim, escapa também à demanda da teoria e da crítica estética tradicional de “compreender” a obra de arte. Em geral, a materialidade das ações e a corporeidade do performer dominam os 15 COHEN, 2007, p. 50 16 FABIÃO, 2008, p. 3 15 atributos do “entendimento” (no sentido tradicional), numa atitude de resistência à obra definitiva. Outras características que também nos interessam na performance art são: o corpo performativo; o status da ação na performance e o lugar do espectador. Entretanto, esses três aspectos serão discutidos e aprofundados nos próximos capítulos, uma vez que foram os elementos escolhidos para a realização dos experimentos práticos de fricção entre teatro e performance. Agora que discutimos alguns aspectos que consideramos essenciais para esta investigação acerca da performatividade, discutiremos sobre as questões que envolvem o cruzamento entre o teatro e a performance à luz das discussões de Josette Féral sobre o Teatro Performativo. Teatralidade e Performatividade: conceitos opostos? Inicialmente, a performance art, no contexto em que se encontrava a arte nos anos 60 e 70, se colocava enquanto contraponto assumido ao teatro praticado na época – principalmente no que se refere ao espaço teatral, à “representação” e aos modos de produção do teatro. Esses artistas buscavam superar os limites que o teatro convencional colocou para si mesmo, por “recusarem separar a arte de sua inscrição no real”17 e assim procuraram concretizar, através de suas experiências, o desejo de “turbinar a relação do cidadão com a pólis: (...) des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo”18. A performance art surge portanto com o desejo político de agir concreta e diretamente sobre o mundo através de suas ações artísticas. Josette Féral vai falar de uma “desconfiança recíproca” entre o teatro e a performance, evocando o teórico americano Michael Fried, em seu ensaio “Arte e Objetividade”, escrito no calor da década de 60: 17 FERAL, 2008, p.199 18 FABIÃO, 2008, p 237 16 A arte degenera à medida em que se aproxima do teatro” ou ainda “O sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, começa crescentemente a depender de sua capacidade de negar o teatro19 Apesar deste contraponto inicial que os diferenciou, nenhuma arte sofreu tanta influência da performance como o teatro, absorvendo, da década de 60 em diante, diversas características peculiares à performance art. Por essa razão, Féral vai discutir as experiências teatrais contemporâneas a partir de um operador conceitual que denomina de “Teatro Performativo”, pesquisando nas obras de artistas e grupos de teatro as características que os diferenciam do teatro convencional e os aproximam da performance. Em seu estudo acerca do teatro performativo, Féral, através de uma análise atenta às diversas experiências teatrais contemporâneas, vai atualizar e discutir alguns conceitos paradigmáticos da teoria teatral, relacionando-os à ideia de performatividade. Féral afirma que qualquer performance ou peça contém em si elementos de teatralidade e performatividade, diferindo-se apenas quanto aos graus de intensidade com que cada um deles se materializa numa obra cênica. Ao discutir o conceito de teatralidade, Féral vai afirmar que não se pode considerá-lo enquanto um dado empírico, qualidade, ou uma categoria universal e imutável – mas sim determinado pela relação entre o olhar do espectador, a intenção de se fazer teatro, as convenções sociais, a representação e a ação construída sobre a cena. Tanto a teatralidade como a performatividade são elementos relacionais: devem ser observados a partir dos aspectos sociais, culturais, éticos e políticos de uma época ou mesmo a partir da situação específica que envolve artistas e público, da forma como ela é vista e dos meios pelos quais é mostrada. Baseada nisso, Féral vai discutir o conceito de teatralidade a partir da ideia de um “acordo” entre artista e espectador. Ele implica necessariamente num jogo, onde as regras e 19 FERAL, 2009, p. 197-8 apud FRIED, Michael. Art and objecthood. In Artforum 5. Nova York, 1967 17 convenções criam o espaço de representação, o “enquadramento” teatral no qual ambos vão jogar. Segundo tal visão, o ator é considerado o “produtor” da teatralidade, enquanto o olhar do espectador apropria-se desse “fazer” do ator, tendo consciência da intenção da execução do ato teatral e do enquadramento ficcional. Esse olhar solicita a instauração de um “espaço outro” que se torna o “espaço do outro” – espaço virtual, espaço de criação – que, por sua vez, dá lugar diferenciado aos sujeitos atuantes e ao surgimento da ficção.20 Aqui, portanto, a teatralidade é vista como um “processo” e não como uma qualidade intrínseca a uma ação cênica. Da mesma forma a performatividade, que enfatiza, dentro desse sistema de relações, as características aproximativas da performance art que descrevemos anteriormente. Para este trabalho, gostaríamos de adotar essa visão de Josette Féral como parâmetro de análise e discussão acerca das fricções entre teatro e performance que se concretizaram nos experimentos cênicos que realizamos. 20 ACACIO, 2011, p. 40 18 CAPÍTULO 2 Experimento Nº 1 // Corpo Performativo X Édipo-Rei Os primeiros passos de nossa investigação buscaram experimentar relações entre corpo, performance e espaço urbano. Essa primeira abordagem se deu através daquilo que chamamos de “Exercícios Preparatórios” e “Práticas Nômades”. Apesar do forte interesse por parte deles e de alguma experiência anterior, praticamente todos os performers convidados para esse trabalho prático não vinham da área da performance ou da intervenção urbana, mas sim do teatro. Além disso, apresentavam formações diversas, adquiridas em diferentes escolas. Isso gerou a necessidade da formação de um vocabulário comum acerca das ações performativas. Através das Práticas Nômades realizamos cada encontro em uma localidade diferente da região metropolitana, na busca pela exploração de diversas facetas de uma cidade tão plural como São Paulo. Através dessa dinâmica, descobrimos aspectos característicos de cada região: a frieza e a pressa do calçadão do Centro, o clima descontraído e aconchegante do agitado comércio do bairro da Liberdade, o clima interiorano e o calor humano do Rio Pequeno, a elegante indiferença dos transeuntes da Avenida Paulista, entre outros. Os Exercícios Preparatórios consistiram numa série de práticas que buscavam exercitar as relações criativas entre os performers e o espaço urbano. Todos eles foram realizados, desde o início, em ruas, praças e calçadas. Isso fazia com que se desviasse bastante do próprio significado de “pré-paração” - uma vez que aos olhos de quem é “espectador” (os transeuntes, os habitantes, etc.), o que se realiza não é um ensaio ou treinamento, mas uma ação. Na rua, o “ensaio” já é performance. Os atores não iriam preparar-se: a própria experiência em sua imprevisibilidade e frescor era o exercício. Para embasar esse estudo coletivo sobre o corpo foram escolhidos dois artigos: Performance e teatro: Poéticas e Políticas da cena contemporânea, de Eleonora Fabião, onde existe um trecho especialmente voltado para a discussão do corpo no âmbito da performance; 19 e Corpografias Urbanas, de Paola Berenstein, onde a autora trata da experiência corporal na cidade. Para este primeiro momento, a observação, vivência e imersão no ambiente urbano fizeram-se necessárias, na medida em que o entendimento de suas dinâmicas é essencial para que se procurem as brechas nas quais a cena urbana pode habitar. Partindo disso, um dos principais exercícios práticos realizados – que foi chamado de “Investigação sobre corpos” - consistia em observar, seguir discretamente e experimentar “imitar” os corpos que transitavam por aquele determinado espaço público. Foram colocadas as seguintes perguntas: Qual o objetivo deste corpo? Quais são suas relações com os outros corpos? Quais relações ele estabelece com o espaço da cidade? Essa investigação era uma tentativa de traçar aquilo que Paola Berenstein chama de “Corpografias Urbanas” – a cidade presentificada e expressa no corpo de quem a vivencia. Segundo a autora, é possível decifrar as corpografias através do estudo dos movimentos, dos gestos e dos padrões corporais de ação, na tentativa de, através dos corpos, conhecermos a cidade e a rede de interações que ela compõe. Esse estudo dos corpos e das corpografias foram também embasados na discussão que Eleonora Fabião realiza acerca da ideia de “corpo relacional”. O marco da performance – talvez seu diferencial mais claro – é a afirmação acentuada do corpo enquanto suporte e tema da ação artística. Não foi a toa que escolhemos este “elemento” como o primeiro a ser trabalhado e pesquisado neste projeto. A autora lança mão de Deleuze e Espinosa para discutir filosoficamente e conceitualmente o status do corpo na performance. Segundo ela, o corpo é definido pelos afetos que ele é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. A artisticidade do corpo performativo está justamente em sua capacidade de mobilizar esses afetos através do gesto performativo; De evidenciar o status de corpo enquanto movimento e mobilidade; De agir de forma incisiva contra o pensamento que entende o corpo enquanto forma rígida e imutável; E, por fim, de lutar contra a domesticação e submissão dos corpos e das relações. Resumindo, o corpo como potência sempre em transformação. Resumindo, trata-se de uma visão do corpo como potência sempre em transformação. Nesse sentido, Fabião vai tratar da capacidade excepcional da performance em criar dissonâncias, risco, desmecanização e “complicação cultural”. Isso por meio da 20 desestabilização de convenções e limites, valendo-se do corpo como o principal suporte de desvio. Através do corpo e de sua capacidade de afetar e ser afetado, ela busca gerar “experiência” – no sentido de risco, perigo, prova e transformação: “Se o performer investiga a potência dramatúrgica do corpo é para disseminar reflexão e experimentação sobre a corporeidade do mundo, das relações, do pensamento”21. Nossa ideia, então, foi realizar um processo criativo onde essas discussões sobre o corpo pudessem estar presentes. Começamos o trabalho sobre Édipo-Rei através de leituras, debates e conversas, procurando relacionar a pesquisa anterior sobre o meio urbano e corpografias com os elementos acerca do mito de Édipo. As discussões desembocaram numa reflexão sobre o papel do indivíduo contemporâneo e a “culpa” acerca dos problemas sociais que a cidade, mais especificamente a metrópole, expressa através de suas contradições extremamente aguçadas. Como forma de trabalho sobre o texto, para este primeiro momento de criação junto ao grupo, achamos interessante que cada performer tivesse a chance de realizar uma experimentação individual – uma vez que os exercícios anteriores haviam sido realizados em grupo e desejávamos, como forma de entrosamento criativo, observar as diferentes visões que cada um teria sobre o mesmo tema. Foi proposto, então, que cada performer realizasse um “programa cênico” (cena/performance/intervenção) cuja base de criação fosse a tríade CORPO/CIDADE/ÉDIPO. O método de fricção escolhido foi a “livre inspiração”. Os performers tinham um mote: o estudo do corpo performativo e das corpografias urbanas. O que foi proposto enquanto processo para a criação de seus experimentos foi buscar, tematicamente, questões no texto de Édipo-Rei que pudessem gerar fagulhas e inquietações que foram colocadas em ação através da “ferramenta” do corpo performativo. Esses programas foram “apresentados” nas imediações da Praça da Sé. As reverberações destes na movimentada praça nos deixaram entusiasmados e, em seguida, ao discutirmos sobre como trabalharíamos em um experimento único para todos, decidimos que a individualidade das performances eram interessantes enquanto conjunto. 21 FABIÃO, 2008, p. 238 21 Portanto, o Experimento N° 1 configurou-se enquanto uma “Teia de Performances Simultâneas”, onde cada um re-performou sua criação. O espaço escolhido foi o Largo São Bento. Apesar de habitarem o mesmo espaço e estabelecerem diversas formas de contato e convivência entre eles, formando uma intervenção cênica ocupou parcialmente o Largo São Bento, os três programas funcionavam de forma autônoma e independente. Por essa razão, trataremos as ações dessa “Teia” uma a uma, discutindo suas reverberações e as reflexões que provocaram. EXPERIMENTO Nº 1 – METRÓPOLE EDIPIANA “DE QUEM É A CULPA?” - por Karina Fuji Neste programa a performer criou uma mandala, feita com recortes de revistas e jornais, na qual havia diversas manchetes onde estavam estampadas palavras que remetiam à crise econômica mundial, desastres ambientais, denúncias de corrupção, violência, crimes, revoltas e rebeliões, entre outros. Próxima a essa mandala, a performer se cobria com uma mistura de argila e areia que, à medida que secava, remetia ao concreto das calçadas e prédios. Figura 1 – Programa Cênico “De quem é a culpa?” Logo depois, amarrava um espelho na parte de trás da cabeça onde havia a frase “DE QUEM É A CULPA?” e se sentava em cima da mandala, onde havia outro espelho de mesmo tamanho em que ela podia observar, com a cabeça entre as pernas, o próprio rosto. Depois de um tempo assim, a performer tem esse outro espelho amarrado contra o rosto (com a face espelhada para dentro) e realiza uma caminhada pelas imediações. A inspiração da performance surgiu do desejo de traçar paralelos com a peste que assola a cidade de Tebas em Édipo-Rei. A peça inicia com um problema de ordem pública: os cidadãos se dirigem ao palácio do rei para suplicar que este livre a cidade da doença que os 22 assola. Édipo vai em busca da resolução do enigma que, segundo o oráculo, é responsabilidade de apenas uma pessoa: o assassino do antigo rei. Ao procurar o “culpado”, ao final Édipo descobre que o “culpado” é ele próprio. Com isto em mente, a performer buscou as manchetes alarmantes sobre as “pestes” que assolam o mundo contemporâneo. E através da materialidade do reflexo do espelho almejava provocar o público a se perguntar se a “culpa” por esses problemas está realmente nos “outros” ou em nós mesmos – por nosso individualismo, indiferença e passividade enquanto cidadãos. Dos três programas apresentados, esse foi o que mais se aproximou das características da linguagem da performance art em seu sentido, digamos, mais “restrito”. A performer se apropriou dos estímulos de Édipo-Rei propondo uma recriação livre através de um típico programa de performance: ação metodicamente calculada e programada, que segue os passos que foram traçados anteriormente. A ação trouxe ainda fortes traços daquilo que chamamos corpo performativo. Na performance art são recorrentes ações que trabalham o corpo enquanto objeto manipulável. O artista “o explora, o manipula, o cobre, o descobre, o pinta, o fixa, muda-o de lugar, o corta, o isola, lhe fala como um objeto que lhe é estranho”.22 Essa visão do corpo nutre relações diretas com a body art, vertente das artes performativas que toma o corpo como meio de expressão e/ou matéria para a realização dos trabalhos, interessada em ressaltar aspectos da corporeidade e da presença física e real dos performers, transfigurando o corpo em corpo-objeto ou em corpo-plástico. Em “De quem é a culpa?” a performer lança mão de concentração e tenacidade para realizar seu programa, tendo somente a ação concreta, corporal, como elemento de comunicação com a cidade e os espectadores. Os signos do discurso artístico são puramente visuais e sinestésicos, a presença da própria performer é enfatizada, sem nenhuma mediação através de personagens ou máscaras. Essa exposição da artista, somada ao fato de que esta não buscava chamar a atenção ou atrair espectadores, mas somente focar-se na sequência de suas ações, gerava uma postura de 22 ACACIO, 2011 apud FÉRAL, Josette. “Performance et Théâtralité: le sujet démystifié” (“Performance e Teatralidade: o sujeito desmistificado”) 23 recusa à espetacularização que deixava os transeuntes intrigados e curiosos, uma vez que sua atuação se desviava do que estes estavam acostumados a presenciar. Figura 2 – Programa Cênico “Lady Jo & Lady Casta” “LADY JO & LADY CASTA” – Luís Garcia e Raquel Morales Em “Lady Jo & Lady Casta”, os performers encarnaram figuras femininas que representavam arquétipos de mulheres da alta sociedade, vestidas em tons de rosa e lilás, e levando a tiracolo um pônei rosa-choque de madeira e pelúcia. A ação consistia em realizar uma deambulação pelos arredores, em estado de total porosidade com o meio urbano, se incorporando aos fluxos e acontecimentos que ocorriam ao redor. No caso da Praça da Sé, a performance encontrou diversas possibilidades de interação, uma vez que gerou uma espécie de “fagocitose” em relação a outras performances ali presentes, fossem elas religiosas, musicais, teatrais e até mesmo “terapêuticas”, como era o caso de um projeto que buscava realizar uma pequena “terapia psicanalítica” em plena praça pública. Lady Jo & Lady Casta eram inspiradas em figuras públicas, como Lady Di, a exprincesa da Inglaterra – remetendo-a diretamente à figura de Jocasta, de Édipo-Rei – enquanto mulher de um homem de grandes poderes que também se interessa pelos infortúnios de seu povo. Junto a isso se mesclava o arquétipo da mulher evengélica e moralista, a idéia de eugenia e higienização social (que contrastava com a situação de contato direto com moradores de rua, desempregados, bêbados, entre outros), um jogo feito com desenhos de giz no chão onde se brincava com a idéia de apropriação privada de espaços coletivos e, também, o registro espetacular/televisivo de figuras da alta sociedade que “descem” em meio ao povo para realizar uma troca superficial, em geral de cunho assistencialista. 24 Outro dado interessante da ação foi que ambos os performers saíam de suas casas já vestidos com as roupas das “personagens”, o que tornava a performance um acontecimento desde esse momento – sem começo e fim determinados – e a interação se dando por todos os locais nos quais eles transitavam. Os pontos altos de interação e intervenção foram num protesto que estava acontecendo dentro do metrô, onde um grupo de mulheres estava realizando uma campanha acerca do dia internacional do combate à violência contra a mulher, e Lady Casta deu um depoimento discursando a favor do tema. Outro momento ocorreu dentro de um Shopping Center, onde as figuras foram assediadas pelos consumidores, que “entraram na brincadeira” irreverente junto com os performers. Com essa ação, criou-se uma reação provocativa em relação ao texto de Sófocles. Em Édipo-Rei, o povo é encarado pela família real como vítima, um coro de assolados pela peste que aparentemente nada pode fazer contra seu destino de sofrimento, recorrendo a seu rei para que este resolva os seus problemas. O rei, por sua vez, encarado como herói solucionador, se coloca à frente da busca pela causa dos males da população, alienando-os do papel de agentes de sua transformação e da superação de seus males. O paralelo entre esse quadro e os dias atuais se mostrou claro e os performers escolheram as figuras das primeiras-damas como forma de mostrar o lado também perverso dessa relação, aquele que busca atenuar contradições e aparentar preocupação das figuras que estão no poder em relação às massas, por meio de um viés “maternal”, diretamente relacionado à piedade e à solidariedade. Essa estratégia é essencial dentro na manutenção do status quo, pois busca aparar as arestas de autoridade e dominação, maquiando, através de atributos ditos “femininos”, as verdadeiras faces dessa estrutura. É fácil notar essas estratégias em ação através do assistencialismo, do marketing social, do voluntariado, entre outras. Tais artifícios são uma resposta do sistema às pressões que os movimentos sociais impõem ao exigir uma sociedade mais igualitária. Eles oferecem soluções parciais e falsas por um lado e, por outro, mantêm em pleno funcionamento as estruturas que geram a desigualdade e a dominação. 25 Quanto ao papel da performatividade, ao contrário do programa em “DE QUEM É A CULPA?”, “Lady Jo & Lady Casta” se aproximou mais da linguagem do teatro, por delinear personagens, se utilizar de figurinos e instaurar a ficcionalidade. Por outro lado, o programa performando não pode ser encarado enquanto teatro, no sentido convencional. A ação se aproximou bastante das práticas do happening, uma modalidade de ação cênica que valoriza o espontâneo, o improviso, a presença, a dissolução da separação entre atores e espectadores e o espaço não convencional de atuação – funcionando como uma espécie de “evento teatral sem trama”. Tais acontecimentos apresentam estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As improvisações conduzem a cena - ritmada pelas ideias de acaso e espontaneidade - em contextos e espaços variados. O happening ocorre em tempo real, como o teatro, mas recusa as convenções teatrais. Esta é uma categoria interessante para nossa investigação, pois se configura como uma modalidade de fricção entre o teatro e a performance, nutrindo fortes semelhanças com as atuais práticas do teatro performativo. Em “Lady Jo & Lady Casta” era marcante a presença das “personagens” criadas pelos performers, entretanto, a ação não estava pré-definida, acontecendo de acordo com os fluxos improvisacionais. O papel do corpo, nesse caso, funcionava de forma dual: tanto como teatro, através das “máscaras” criadas pelos performers – a postura, os gestos, as maneiras de tocar e ser tocado, o jeito de sentar e andar que remetiam à figura da “socialite” – quanto como performance: através da ação no presente, aberta aos fluxos, imersa no ambiente, arriscando-se para fora dos limites ficcionais e se colocando em situações “reais” que escapavam às convenções de uma teatralidade segura e isolada de um palco. 26 Figura 3 – Programa Cênico “Gentrificação”- Experimento Cênico nº 1 – “Metrópole Edipiana”. Performer: Henrique Lima. Foto: Otávio Oscar “GENTRIFICAÇÃO” – Henrique Lima Em “Gentrificação”, o performer, vestido com um terno, realizava, na primeira parte, uma série de movimentos e ações de ocupação dos espaços públicos com o corpo coberto por um saco plástico preto, de forma que sua identidade não estivesse revelada a maior parte do tempo. Os movimentos, a forma do corpo e os locais escolhidos trabalhavam com a idéia de invisibilidade e anonimato, e o saco de lixo remetia à imagem de pessoas descartadas e esquecidas. A cor preta, em sua simbologia, reforçava a tragicidade da ação ao associar tudo isso a uma sensação de luto, trevas, falta de esperança, angústia e fim. Nos momentos de imobilidade do performer, deitado à beira das calçadas ou encostado em alguma parede, tornava-se evidente a imagem de um cadáver que havia sido apenas coberto e, logo em seguida, esquecido. No segundo momento da performance um novo material entrava em cena substituindo o saco de lixo preto: o papel higiênico. Nesse caso, tal elemento servia para que o performer pudesse enrolar sua cabeça e ombros num claro desejo de privação da visão. O agudo contraste entre preto e branco trazia à tona, então, a ideia de higienização, ironicamente associado à perda da visão e à autocegueira. Logo após se vendar, o performer deixava o estado corporal de abandono e morte e fazia uma caminhada cega pelos arredores do calçadão até finalizar a sua ação. Essa performance inspirava-se no tema da “cegueira voluntária”. Em Édipo-Rei, durante a busca pelo assassino de Laio, Édipo traça um caminho voluntário para a descoberta de si mesmo enquanto o elemento causador dos males sociais, morais e religiosos de Tebas. Metaforicamente, Édipo viveu cego durante todos os anos de prosperidade em que esteve em Tebas, ao se tornar o homem mais rico e poderoso da cidade. É revelador e irônico notar que 27 somente ao final, ao enxergar a verdade, Édipo fure os próprios olhos para que nunca mais veja os males que causou. O espaço da cidade permite que vejamos, em todos os cantos, as diversas doenças e misérias do tecido urbano. Como solução para essa “poluição visual”, governantes e dirigentes criam políticas que buscam afastar da vista o lado indesejável do sistema que vivemos, marcado pela gentrificação, elitização, repressão, especulação imobiliária, entre outros. Entre elas, por exemplo, aparecem os mecanismos de higienização, medidas que não resolvem o problema em sua essência, mas somente os “retira de vista”. Isto posto, o performer buscou estabelecer um paralelo entre a “auto-cegueira” de Édipo e tais políticas, vistas aqui como uma espécie de cegueira. A ação de Henrique Lima funcionou como uma espécie de instalação móvel: o performer criou imagens utilizando dois materiais simples (o plástico preto e o papel branco) que se movimentavam e se instalavam em diferentes pontos do espaço. Essa ação minimalista e silenciosa transitava entre a visibilidade e a invisibilidade e, por não instaurar um espaço de fruição, passou despercebida pela maioria das pessoas. O performer poderia facilmente ser confundido com algum morador de rua, mendigo ou louco. Essa fronteira entre ficção e realidade, arte e cotidiano, ação real e representação, inscrita no espaço urbano, representou um risco real para o performer. Justamente por remeter ao alvo das políticas higienistas, em muitos momentos ele poderia facilmente ter sido abordado pelas autoridades responsáveis. Na verdade, isso ocorreu, num determinado momento em que um policial se aproximou para checar se o corpo “embrulhado” no saco plástico não estava morto ou ferido. O performer estava “entregue” aos perigos reais do fluxo urbano, sem aquela espécie de “proteção” que as expressões artísticas, identificáveis enquanto tais, têm quando instaladas nas ruas23. 23 Claro que essa proteção é bastante relativa e depende de uma série de condições – no caso de São Paulo, principalmente com a questão das “autorizações” - mas via de regra, os artistas quase sempre gozam de determinada tolerância para suas expressões, uma vez que estão encaixados num universo “ficcional” e não “real”, e portanto, aparentemente não oferecem “perigo”. 28 Da mesma forma que no programa “De quem é a culpa?” a ação exigiu tenacidade para ser realizada, uma vez que o risco era um fator constante. Houve, por exemplo, um momento de perigo iminente, quando o performer estava vendado e quase foi atropelado por um veículo oficial que trafegava pela via de pedestres. CORPO PERFORMATIVO Algumas descobertas merecem ser apontadas aqui. A primeira remete às primeiras sensações experimentadas ao se iniciar um projeto artístico que envolva o espaço da rua. A sensação do vento no rosto, a liberdade de um “palco” infinito para ações cujos limites podem ou não serem previstos. A rua é um lugar que traz novas dimensões para quem se aventura por ela para fazer arte. A primeira sensação é a de, repentinamente, se observar aqueles espaços públicos com novos olhares, com uma percepção mais aguçada que a de um simples transeunte. A matériaprima está viva e pulsante na cidade, basta abrir os poros para senti-la. A performance é capaz de tornar quase infinitos os limites espaciais, gerando novas possibilidades de presença do corpo no espaço, chegando a “lugares” ainda não explorados. Isto que faz com que nos aventuremos a experimentar, cada vez mais, essas “fronteiras” – cada um da sua maneira, seja de forma tímida ou ousada. Diferente da caixa cênica, a rua dificilmente traz conforto e segurança a quem a experimenta. Assim, uma outra qualidade de presença é acionada. Não se pode ignorar os fluxos, os acontecimentos, os perigos, as inconveniências, os barulhos, as autoridades, a sujeira e toda a imprevisibilidade do espaço público. A instância do risco, da qual Fabião vai falar em seu texto, é assim presentificada. Por outro lado, a rua também oferece menos limites aos “espectadores”- que com seus corpos geram afetos capazes de modificar a ação do artista. O corpo performativo e seu roteiro de ação estão sempre por um fio: tudo pode mudar de uma hora para outra, de forma positiva ou negativa. A presença do corpo em estado artístico-performativo na rua contém em si algo de contrassenso. Um passeio pelos espaços de grande circulação das metrópoles nos permite observar algumas características recorrentes para os artistas cênicos: o entretenimento (como 29 no caso dos shows de música popular e dos comediantes de rua), o exótico (como no caso dos índios peruanos que tocam seus instrumentos regionais e vendem seus CD’s), o virtuosismo (malabares, estátuas vivas, acrobatas...) e o próprio teatro de rua tradicional, que faz da rua, palco, e estabelece um espaço de convenção teatral mais ou menos estabilizado. Todas essas características criaram, historicamente, um padrão para a arte de rua já estabelecido no repertório de usos do espaço urbano. A performance, ao propositalmente explodir as fronteiras dessas convenções – através de um corpo-a-corpo sem mediações e recheado de incertezas – provoca uma dificuldade de leitura ao espectador-transeunte da rua. Isso não significa que ela esteja totalmente alheio a esses padrões, afinal, a tendência dos espectadores é a de buscar, de alguma forma, “encaixar” o acontecimento dentro de algumas dessas “prateleiras” do já conhecido. É comum ouvir as pessoas se perguntando umas às outras, ou mesmo abordando o performer diretamente com a questão: “É teatro?”. Essa é uma pergunta-chave para nós que buscamos, de fato, fomentar uma dúvida que gere estranheza, um deslocamento perceptivo que se intensifique e que abra caminho para a reflexão acerca do que a ação artística busca questionar ou discutir. É nesse lugar de contrassenso, dúvida e estranheza “produtiva” que o Projeto 3x3 investiu com vigor suas energias, acreditando que as zonas de “fronteira” podem gerar alterações na percepção que tornem a performance/cena impactante e transformadora. Assim, acionar um corpo em estado de performance, no seio do espaço urbano, é criar desordem, desvio e provocação, na medida em que essa ideia de “corpo-problema” foge às regras de utilização da rua e às instâncias de submissão, domesticação e normatização das dinâmicas corporais que são impostas de forma direta e indireta na cidade. O corpo performativo questiona o status do corpo organizado, racionalizado, produtivo e eficiente, na medida em que apresenta e põe em ação direta um novo status para o corpo e, desta forma, para as suas relações com o espaço e com os outros corpos. Ao transfigurar o corpo-utilitário em corpo-signo – em contato direto com a vida – o performer gera uma possibilidade de ação artística num campo onde as ideias podem, de repente, se tornarem perigosas – uma vez que está para além de uma arte inofensiva e pacífica. A performance coloca as normatizações e limites impostos sobre os corpos em estado de instabilidade. 30 Nesse sentido, Fabião vai falar da potência da performance de criar dissonâncias, desmecanização e “complicação cultural”. A performance, através do corpo e de sua capacidade de afeto, busca gerar “experiência”, entendida aqui no sentido de risco, perigo, prova e transformação: “Se o performer investiga a potência dramatúrgica do corpo é para disseminar reflexão e experimentação sobre a corporeidade do mundo, das relações, do pensamento”24. Ao nos relacionarmos com o texto de Sófocles durante a construção de “Metrópole Edipiana”, fomos buscando questões em Édipo-Rei que pudessem gerar fagulhas e inquietações para serem colocadas em ação através do corpo. Como resultado, gerou-se uma nova forma – herege, dessacralizante, despretensiosa e livre – de se lidar com a matéria literária do tragediógrafo grego. Ao se friccionar as “ferramentas” da performance a um “conteúdo” dramático, notamos a dissolução de diversos fatores que estão ancorados nas convenções teatrais: o corpo do performer enquanto alicerce de um personagem coerente, o roteiro de ações enquanto “unidade”, o discurso que vem ancorado em uma narrativa com começo-meio-fim, e a ideia de que a peça é um todo completo e autônomo. “Metrópole Edipiana” buscou friccionar as questões de Sófocles com a atualidade, colocando-as em nosso contexto e criando uma obra de arte que não tem um sentido independente: as performances só completam o seu sentido em diálogo direto com o espaço urbano e com os espectadores, incluindo-os (não apenas como voyeurs, mas como acionadores/colaboradores) na própria ação artística. Dessa forma, portanto, o corpo performativo é encarado como uma ferramenta essencialmente relacional, buscando colocar a obra “em situação” e ativá-la dentro (e não à parte) da vida. 24 FABIÃO, 2008, p. 238 31 CAPÍTULO 3 Experimento Nº 2 // Ação e Representação X Hamlet O processo de investigação sobre o experimento nº 2 iniciou-se no Largo de Pinheiros. O “palco”: uma estranha paisagem árida, cheia de tapumes, barulhos de construção e aquela movimentação acelerada, em típico ritmo paulistano. A primeira impressão dos performers foi a de “como esse lugar mudou!”. De fato, após a chegada da estação Faria Lima, integrante da novíssima linha amarela do metrô, o Largo de Pinheiros mudou radicalmente seu caráter. Como um lugar de convergência dos trabalhadores de diversas partes da cidade – devido ao fato de muitas linhas de ônibus que vão até cidades da região metropolitana terem seu ponto inicial ali – o lugar era point de lazer após o expediente, com seus botecos, prostíbulos e boites. Todas as casas e estabelecimentos tinham um caráter popular, com preços acessíveis e intensa movimentação. Com a aproximação da chegada do metrô diversas obras de reurbanização foram realizadas, mais faixas de rua foram abertas e muitos edifícios foram demolidos. Uma imensa obra se localizava bem ao lado da saída da estação: um mega-edifício comercial onde se via uma placa “Em breve aqui um grande empreendimento”. O ponto de encontro era uma espécie de “praça-que-não-é-praça”, um grande calçadão que parece propositalmente não ser feito para ser habitado por seres vivos. Sem nenhuma árvore ou banco, a “praça” deixa um recado: “Este é um local de passagem apenas. Atravesse rapidamente”. Para esta nova fase do processo, lemos um texto que falava sobre o Teatro Invisível de Augusto Boal. No Teatro Invisível cada peça tem como um texto escrito, que será modificado para se adaptar às intervenções dos espect-atores. Atores devem interpretar personagens, como se tivessem em um teatro tradicional. O tema deve ser empolgante e polêmico, que prenda a atenção desses espect-atores. Quando o espetáculo estiver pronto, será representado num setting que não é teatro e para espectadores que não sabem que são espectadores. A partir 32 das intervenções dos espect-atores, a peça passa a ser improvisada, e mudar os rumos do script previamente construído25 Em nossa interpretação, esta ferramenta teatral é um bom exemplo de hibridismo entre teatro, performance e intervenção urbana, além de trazer em si a particularidade de jogar com as categorias de ação e representação, uma vez que, para que seja eficaz, necessita que os “espect-atores” acreditem que a cena é “real” Foi pedido aos performers que eles elaborassem uma cena de Teatro Invisível, buscando instaurar veracidade e acionando alguma temática polêmica, que envolvesse as pessoas que estivessem próximas ao local do acontecimento. A cena elaborada foi a seguinte: duas pessoas com máscaras de proteção, luvas e uma caixa de lenços umedecidos perfumados ficavam em frente à calçada de uma igreja “higienizando” os transeuntes. Ou seja: sem qualquer permissão, eles passavam os lenços umedecidos nos braços das pessoas e pediam que elas continuassem o processo de limpeza, alegando que era preciso deixar o lugar “mais limpo e higienizado” a partir de agora. Discutindo sobre os efeitos da performance, chegamos à conclusão de que havíamos caído novamente muito próximo da performance art e nos afastado da proposta de Augusto Boal. O Teatro Invisível pensa um “roteiro”, que é programado previamente, envolvendo uma ação dramática e a configuração de persona(gen)s. O espectador, portanto, é voyeur de um acontecimento aparentemente “real” que não o envolve diretamente, mas coabita no tempo e espaço, assim, tornando-o capaz de intervir. No encontro seguinte, que aconteceu nas imediações do Terminal Lapa, observamos um calçadão completamente diferente do anterior. Recheado de bancos e árvores, o lugar era agradável para se passar alguns momentos de ócio e também para se instalar barraquinhas de vender bugigangas. Uma pluralidade de tipos habitava o espaço: mendigos, trabalhadores tirando um cochilo, meninos de rua, jogadores de dominó, casais tomando sorvete, estudantes cabulando aula e pessoas esperando por alguém que sairia do terminal. 25 BRADSHAW, Lala. Augusto Boal: a experiência brasileira do improviso à serviço do questionamento psicopolítico-social. Retirado do site: http://portalimprovisando.com/2009/11/15/augusto-boal-a-experienciabrasileira-do-improviso-a-servico-do-questionamento-psico-socio-politico. Acessado em 10/09/2012 33 Naquele local realizamos uma investigação: identificar e observar os traços de teatralidade invisível presente no cotidiano da rua, atentando às personagens, “máscaras” e ficções que eram acionadas. Foi indicado também que se buscasse analisar se aquela ação “teatral” era proposital ou não e, em caso positivo, tentar levantar hipóteses sobre os seus objetivos. Alguns casos levantados chamaram nossa atenção: 1) Ao redor de uma mesa de papelão, um homem realiza um jogo clássico: esconder uma bolinha embaixo de uma das três forminhas de empada, misturar de forma rápida as três e pedir para que as pessoas apostem em qual das três a bolinha está. Valores altos são apostados. Uma mulher (depois se descobre que, na verdade, era uma “atriz” que fazia parte do esquema de aposta) ganha diversas vezes. Quem vê acredita que o homem que está girando as forminhas não é tão habilidoso, deixando com que a bolinha “sem querer” apareça. O jogo, assim, torna-se muito atraente, pois parece fácil vencer e as quantias são boas. Outro homem, desta vez alguém da multidão que assiste, entra no jogo. O homem que embaralha as forminhas, na verdade, é bem ágil. O homem que apostou seu dinheiro fica confuso e perde quatro rodadas seguidas. Um prejuízo e tanto. 2) Na frente de uma loja abarrotada de sandálias femininas de diversas cores vivas, um forró animado toca num amplificador em volume estrondoso. Um homem, com aquele típico registro vocal da profissão, um tanto “televisivo”, anuncia de forma atraente a promoção de “melissinhas”: um produto genérico (réplicas) de uma grife de calçados que custa caro. Ele interage e “brinca” com as clientes. A loja está lotada. 3) Na calçada uma moça jovem e bonita aborda os transeuntes, buscando angariar apoiadores para uma fundação filantrópica bem conhecida. Ela é uma “atravessadora de barreiras”: barreiras entre desconhecidos que circulam na cidade de São Paulo, sem tecer relações. Ela usa, como estratégia, a simpatia. Quebra a barreira sorrindo e pede, com carinho: “Posso falar com você um minuto?”. Muitas recusas, mas também várias conquistas. Esses três casos foram interpretados como “propositais”, no sentido de que são estratégias conscientes para se conseguir algum objetivo. Analisando tais objetivos, percebemos que essas operações de teatralização funcionam como estratégias de atração. Colocaram-se duas questões para serem pensadas em longo prazo: como seria fazer uma intervenção usando essas estratégias de atração, mas subvertendo-as para fins artísticos? 34 Como seria criar uma performance onde o mote não fosse o estranhamento e sim a “sedução”? O passo seguinte foi ler Hamlet, nosso texto-base, no Parque da Luz. O objetivo da leitura era ser itinerante e se incorporar às estruturas espaciais presentes no parque, uma leitura dramática que também se configurasse como performance/intervenção urbana. Depois da leitura, foi proposto aos performers que eles escolhessem uma personagem da peça para que a “performassem” inseridos nos fluxos da rua. Essa nova abordagem de trabalho sobre o texto teatral tinha como intenção a busca por uma relação mais aprofundada com o material dramatúrgico, do que havia sido vivenciado no experimento nº 1. A escolha pelo trabalho sobre as personagens também se relaciona ao mote desse módulo do trabalho: as relações entre ação e representação – neste caso: ação como elemento da performatividade e representação como da teatralidade. A experimentação proposta, portanto, buscou trabalhar com essa fricção: o personagem, componente teatral por excelência, inserido no contexto performativo de uma intervenção urbana. Criadas essas personas e seus programas cênicos, a etapa seguinte foi “jogá-las” (no sentido de jogo) no espaço urbano. Escolhemos o Largo Treze, no bairro Santo Amaro, para uma primeira tentativa. O calçadão do Largo é movimentado e repleto de transeuntes. Observando o espaço notamos que ali estava sendo “performado” um show de humor: um homem travestido de forma tosca realizava a dublagem de uma música brega. Havia uitas pessoas ao redor dele. No meio do show, uma moça jovem com olheiras enormes e maquiagem borrada, vestida com terno e fumando um cigarro, cruza a multidão, “cortando” caminho em meio aos espectadores. Tratava-se da persona “Ofélia-Tempo” (Raquel Morales), uma proposta de releitura contemporânea para a Ofélia de Shakespeare. O programa cênico apresentava uma trajetória definida em três etapas, que se deslocava pelos espaços e era repetida diversas vezes: 1) “Trabalho”: andar rápido, como se estivesse atrasada; energia pesada, postura e expressão carregadas; stress da cidade; movimentos mecânicos; fumar de forma compulsiva; 35 trajetória em linhas e ângulos retos; quase trombar nos outros transeuntes; 2) “Zen”: No meio de um lugar de passagem (no caso, no centro do calçadão) a performer se despia do paletó e da calça e sentava-se no chão em posição de meditação; fechava os olhos e começava a meditar; 3) “Marionete”: com o terno, a calça, a bolsa e um guarda chuva, a performer realizava desenhos antropomórficos no chão, colocando as roupas em diversas posições. A primeira etapa era mais efêmera: os transeuntes a viam apenas como um flash. A performer chamava a atenção por onde passava, mas sua ação era extremamente ágil e não permitia tempo de fruição ou contemplação. Pelas observações que fizemos a rapidez com que a imagem era mantida sob os olhos dos transeuntes fazia com que a maioria das pessoas não entendesse se se tratava de uma atriz ou de uma pessoa “real”. A segunda etapa teve uma repercussão curiosa: ao se deparar com uma pessoa meditando em pleno calçadão, a maioria das pessoas passava sem parar, apesar de terem a curiosidade aguçada no breve momento que por ali se deslocavam. Entretanto, alguns se detiveram e ficaram observando parados durante um tempo, aparentemente na expectativa de que algo acontecesse – talvez alguma ação teatral? Essa expectativa era quebrada logo em seguida, pois a performer, ao se aperceber dos observadores, abria os olhos e dialogava naturalmente com eles, afirmando que sua ação era espontânea, justificada pela necessidade de relaxamento diante da correria do dia a dia, inclusive convidando-os para se juntarem a ela. O terceiro momento, por ter um viés “artístico mais assumido, conseguiu angariar um público de espectadores espontâneos. A ação ganhou uma delimitação de espaço de cena com uma sutil separação entre “palco” e “plateia”, naquela formação típica da “galeria de arte”, onde o público, parado e a certa distância, assiste/frui. A segunda persona “performada” no Largo Treze foi “Gertrudes-Mendiga”. O choque entre nobreza/poder e podridão/decadência era o gatilho para esta ação. O performer Luís Garcia, usando um vestido vermelho e cinza que foi desenhado e costurado por ele mesmo, perambulou pelo calçadão à procura de Hamlet, interagindo com os transeuntes homens através de diálogos que colocavam eles no papel do filho procurado. “Hamlet, vamos voltar para a Dinamarca. Não fui eu quem matou seu pai. Acredita em mim?”. À resposta negativa do público diante do pedido para que assumisse o papel de Hamlet, ela respondia “Pára de mentir! Assume o seu papel Hamlet!”. 36 Além de portar o vestido, o performer usava saltos plataformas, tinha a boca tingida com anilina preta e bebia em grandes goles uma garrafa com cachaça. Nesse dia, o sol estava quente e a temperatura alta; à medida que os goles iam se somando, o performer ia entrando num estado de embriaguez “real” que se misturava a um expressivo toque de loucura no registro de atuação. Ao caminhar com os saltos plataforma, ele se desequilibrava e caía no chão, construindo uma trajetória espacial desgovernada e cheia de solavancos. A repercussão desta ação naquele ambiente foi curiosa. Coincidentemente, aquele dia era uma sexta-feira treze (justamente no Largo Treze!) e, devido a isso, muitas pessoas acreditavam que o performer fosse algum mendigo alucinado, alguém “tomado por espírito” ou que se tratava de uma daquelas “pegadinhas”, onde uma câmera escondida filma a reação das pessoas à uma figura ou situação embaraçadora. Alguns chegaram a fugir daquela figura, não sabemos se por medo ou por brincadeira. De qualquer forma, o estado cada vez mais grotesco do performer durante a ação gerou repulsa de praticamente todos os transeuntes, que corriam, maldiziam ou se mostravam indiferentes à sua presença. Isso tudo contrastava com o texto que estava sendo improvisado, o qual falava sobre reinos, guardas, príncipe, coroa, entre outros assuntos retirados da peça. A ação gerou um considerável distúrbio no calçadão do Largo Treze, pois além de invadir o “espaço” dos transeuntes, interrompendo seu percurso, o performer gritava em altos brados por Hamlet, claramente incomodando a aparente “ordem” daquele lugar (que é apenas aparente, pois o fluxo do calçadão é totalmente caótico). Uma consequência interessante disso foi que a performance tornou explícita, de forma agressiva e contundente, as figuras do mendigo e do louco, ambas indesejáveis dentro do sistema de relações do espaço urbano – que busca, através de mecanismos diretos e indiretos, torná-los invisíveis, emudecidos, excluídos e ignorados. O terceiro programa cênico – “A Merchant do Fantasma” – foi inspirado na aparição do fantasma do pai de Hamlet, que acontece logo no início da peça. A performer Karina Fuji se inspirou na investigação ocorrida nas imediações do Terminal Lapa, onde levantamos a hipótese de utilizar as estratégias “teatrais” de atração, especificamente aquela do vendedor das “melissinhas”, que chamava as clientes através do microfone. Não coincidentemente, no Largo Treze também havia diversas lojas onde os vendedores se utilizavam da mesma estratégia. 37 A ação, portanto, consistia numa tenda improvisada, feita com um grande pano preto amarrado em algumas placas, numa das esquinas do calçadão. A performer convidou um dos colegas (Henrique Lima) para que se colocasse dentro da tenda munido de pequenos recortes de papel com citações de diversos autores (como Rosa Luxemburgo) e frases retiradas do Hamlet de Shakespeare. A performer ficava do lado de fora, equipada com um daqueles pequenos amplificadores de voz que se prende na cintura, encarnando a figura da vendedora que está anunciando, convidando os transeuntes para visitarem a tenda, onde teriam um encontro com “a verdade”. Ao entrar na tenda, os transeuntes se deparavam com a figura do outro performer e recebiam um dos bilhetes. Na saída, a anunciante pedia para que as pessoas compartilhassem no microfone qual frase elas haviam recebido, estimulando-as a refletir sobre o seu conteúdo. O mistério envolvendo a tenda gerou bastante curiosidade dos passantes, que aparentemente se aproximavam com o intuito de descobrir do que se tratava aquele estranho acontecimento. A ação suscitava diversas dúvidas: a impressão inicial era de que se vendia algo, afinal o espaço do calçadão é inteiramente voltado para se fazer compras. Entretanto, havia uma vendedora, mas não havia um “produto”. A performer fazia questão de dizer que a consulta na tenda era gratuita e aberta a todos. Talvez uma estratégia de marketing? Uma amostra grátis de algum produto? Outra impressão marcante era a de que a tenda fosse uma “pegadinha” da TV, uma vez que do lado de fora não era possível ver o que acontecia lá dentro e isso gerava muitas desconfianças. Somente os mais corajosos ou mais curiosos realmente se arriscavam a participar. Houve um breve momento onde a ação começou a ter espectadores, que assistiam às pessoas entravam na tenda, aguardando seu retorno. Nos encontros seguintes mantivemos a mesma dinâmica de experimentação acerca dos personagens da peça. Dessa vez nas imediações da Estação Santana do metrô, foram “performadas” duas novas figuras que foram incorporadas experimento final. O “Coveiro” (criação de Raquel Morales) foi inspirado nas figuras dos coveiros da Cena I, do Ato V, de Hamlet. Segundo a própria performer, trabalhar com essa figura veio do desejo de jogar com o tema da morte e com personagens “do povo”, que são pouco presentes na peça. 38 Vestida com macacão, touca e galochas (que a tornavam bastante masculinizada), ela perambulava pelas ruas e calçadas segurando nas mãos uma imitação de crânio humano (como referência direta ao crânio encontrado pelos coveiros da peça durante a cena). As ações iam se sucedendo de forma improvisada, com destaque para o momento onde a performer, caminhando e murmurando no “ouvido” do crânio, se deparou com uma senhora espírita que criticou sua ação de “evocar” a morte daquela forma, alertando-a sobre o perigo que aquilo representava. Outro momento interessante foi quando a performer resolveu se juntar a alguns moradores de rua que estavam sob um viaduto, indagando-os sobre a morte e sobre como esta se concretiza de maneira diferenciada para ricos e pobres. A performance era realizada de forma sutil, sem nada que chamasse atenção para qualquer tipo de teatralidade. A performer mantinha a ação enquanto um gesto “mínimo”, sem qualquer grandiloquência. O estranhamento de sua ação só ocorria diante dos transeuntes mais atentos e sensíveis a ela. No relato que ela fez logo após o Figura 4 – Performer Raquel Morales. Experimentação sobre Hamlet. Imediações do Metrô Santana. Foto: Otávio Oscar experimento, chamou atenção o fato de que, para as pessoas com quem ela estabeleceu contato, parecia pouco importar se ela era atriz ou não. Para elas o relevante era a própria ação (uma performance que tanto poderia ser artística ou “real”), ao qual estas reagiam sem necessariamente jogar/“embarcar” em nenhum tipo de ficcionalidade. Outra figura que surgiu foi “Ofélia-Aleijada” (Luís Garcia), onde o performer, vestido com um “look” de inspiração neo-gótica (rosto pintado de branco, vestido preto, jaqueta de couro, meia listrada e salto alto), caminhava de muletas pelos arredores da estação, simulando que o salto alto era a sua “deficiência”. A ideia da performance era fazer uma crítica ao impacto do “ideal de beleza feminino” no processo de construção da identidade da mulher. Ele misturou a isso uma ridicularização da personagem Ofélia, que, não levada “a sério” pelo performer, foi transformada numa adolescente problemática e sofredora, que sai por aí perguntando pelo seu namorado, o príncipe Hamlet, enquanto se desequilibra e tropeça. 39 Sob esse viés irônico (quase iconoclasta diante do respeito que o texto parece exigir), o performer pretendeu revelar a personagem Ofélia enquanto uma figura de identidade precária, sujeita aos diversos ditames advindos de seu pai, irmão, da família real e, inclusive, do próprio Hamlet. Nesta visão, o suicídio de Ofélia pode ser interpretado como consequência do vazio gerado pela perda das figuras aos quais ela se manteve dependente através do seu papel social enquanto filha, mulher e jovem. A escolha pela estética neo-gótica, que junta estetização do sofrimento a um colorido juvenil e a um comportamento infantilizado, tornava a personagem mais ridícula e risível. Apesar de o performer ter buscado não delimitar um espaço de ficção na cidade, uma vez que a própria perambulação fazia com que fosse impossível estabelecer um local de fruição para o eventual “público”, era inevitável que o percebessem enquanto um “ator”, graças à sua caracterização – tanto no sentido de estar travestido como por seu figurino e maquiagem estranhados. Devido a isso, a interação com os transeuntes ocorria com estes “entrando no jogo” do performer ou não. Fato é que, como aquele era um espaço de passagem, a maioria das pessoas o ignorava, aparentemente sem a mínima paciência ou disposição para fruir “arte” naquele momento. Aos que entravam no jogo, a brincadeira se dava em chave cômica. Figura 5 – Performer Luís Garcia. Experimentação sobre Hamlet. Foto: Otávio Oscar Uma das mulheres com o qual ele conversou chegou a relacionar a procura pelo príncipe com a chegada do príncipe Harry (da Inglaterra) ao Brasil, notícia presente em quase todos os jornais e programas de TV naquela semana. A performance acabava tendo impacto maior pela força da imagem e da ação que se oferecia aos olhos dos transeuntes, colocando o risível da caracterização em contraste com o sofrimento da ação de estar “deficiente”. Na continuidade do trabalho surgiu também a performance “Ofélia no Hiato”, experimentada por Karina Fuji, na Praça Silvio Romero (próximo ao metrô Tatuapé). Nesta ação, a performer, de vestido branco, interagia com alguns senhores idosos que ocupavam 40 mesinhas de concreto da praça para jogar dominó. Primeiramente ela lhes apresentava uma carta de amor (a carta que Hamlet escreve para Ofélia, retirada da peça de Shakespeare), pedindo para que algum deles a lesse. Ela indagava se ele a amava de verdade e dirigia essa pergunta aos senhores presentes, agindo e reagindo de acordo com os feedbacks que recebia. Aos poucos, essa Ofélia ia enlouquecendo e revelando que havia sido abandonada por Hamlet, misturando a isso a lembrança da morte de seu pai. No auge de sua loucura, Ofélia “surtava”, atirando moedas para todos os lados, improvisando um texto que falava sobre as relações escusas entre o amor, a morte e o dinheiro. Em seguida, cantava uma música suave e colocava na cabeça uma coroa de flores brancas, jogando sobre si uma água avermelhada contida num balde, que manchava a brancura do vestido e, assim, simulava a sua morte. Encerrada essa fase de experimentações, partimos para a construção do Experimento nº 2. Decidimos, então, – para além do que havia ocorrido no Experimento nº1 – ir em direção a relações mais próximas com o teatro e tornar o trabalho sobre Hamlet algo mais linear, com uma trajetória definida. O método escolhido para isso foi a elaboração de um roteiro, Figura 6 – Performer Karina Fuji. Experimentação sobre Hamlet. Praça Silvio Romero (Tatuapé). Foto: Otávio Oscar onde os programas experimentados foram “costurados” como uma espécie de patchwork26, construindo uma trajetória itinerante. Para além da simples junção das cenas, foram pensadas concatenações entre uma e outra, além de também um trabalho dramatúrgico que lapidaria o material bruto e aperfeiçoaria as propostas. O espaço escolhido foi o Parque da Luz, retomando a ideia de ocupação espacial presente na leitura-intervenção que tínhamos realizado anteriormente lá. 26 O patchwork é uma técnica artesanal que constrói mantas, tapetes, capas de almofadas, etc. através da costura ou emenda de diversos retalhos ou pedaços de tecido (“patch” = remendo), formando com a diversidade de pedaços um novo “todo” com desenhos e composições. 41 A ação não foi ensaiada, pois como queríamos causar surpresa e, em alguma medida, tornar a ação inesperada naquele espaço, apenas criamos coletivamente a programação cênica a partir do roteiro previamente elaborado, determinando os espaços por onde as cenas aconteceriam. EXPERIMENTO Nº2 – NOS RASTROS DE HAMLET O Experimento Cênico se iniciava com um prelúdio: a performer Karina retomou a persona “Merchant do Fantasma” (figura 8), vestida com uma roupa “lúdica” e uma plaquinha na mão onde havia escrito “Você tem medo da verdade? Não? Então venha consultar o Fantasma da Gruta”. Ela distribuía panfletos (Figura 7) por todo o parque, onde se anunciava que o Fantasma estaria presente às 16hrs naquela pequena gruta ao lado da área de exercícios físicos. Durante praticamente toda a primeira parte do roteiro cênico, a performer Raquel Morales realizava, ao redor de um dos círculos de grama do Parque, as partes 1 e 2 da trajetória de Ofélia-tempo. Ela circundava aquela área durante mais ou menos 30 minutos, provocando a mudança entre a parte 1 (Trabalho) e 2 (Zen) ao despir partes da roupa em movimento. A caminhada tinha sua velocidade intensificada aos poucos, provocando um estado ofegante na performer. Terminada a ação de despir o terno e a calça, ela se sentava numa parte da grama (onde era proibido pisar ou sentar) e realizava a meditação. Depois de um tempo (ou Figura 7 – Panfleto distribuído pelo Parque da Luz quando era interpelada por algum guarda do parque), ela retomava o ciclo. Às 16h, quando o fantasma (o performer Henrique Lima, trajando uma capa preta que o cobria por inteiro) finalmente chega na Gruta, a “merchant” ficava do lado de fora convidando os transeuntes para entrar. Lá dentro, recebiam um bilhete onde havia um aforismo escrito por um autor libertário27, sobre temas como liberdade, rebeldia, resistência, 27 Foram usados autores como Rosa Luxemburgo, Mikail Bakunin, Guy Debord, Ema Goldman, entre outros. 42 corrupção e tirania. Ao sair, as pessoas eram interpeladas pela performer, que pedia a elas que compartilhassem as frases que receberam, lendo-as em voz alta. Nesse momento do experimento, percebeu-se que a maioria das pessoas não se fixou no local, apenas recebiam os seus bilhetinhos e entendiam aquilo como uma ação única, sem esperar uma continuidade. Muitos que passaram por lá tiveram medo de entrar na gruta, revelando o quanto o poder da superstição, marcante no primeiro ato de Hamlet, ainda é muito presente na sociedade contemporânea. Terminada essa fase, do alto da gruta – onde há uma espécie de varanda – desce a personagem Gertrudes- Figura 8 – Experimento Cênico nº 2 – “Nos Rastros de Hamlet” – performer Karina Fuji. Foto: Lucas paz mendiga, que esteve lá desde o início. O dispositivo de ação do performer era a procura de Gertrudes por Hamlet, da mesma forma como ocorrera no Largo Treze. O performer carregava uma garrafa de cachaça e incorporava a embriaguez ao seu estado de atuação. Durante essa caminhada pela via de pedestres do parque, muitos comentários eram feitos em voz alta, e um grupo de mulheres (presume-se que eram prostitutas) se divertiam com os tropeços e quedas de Gertrudes, rindo estrondosamente. Devido ao fato de o ator estar um registro bêbado e histérico, a performance foi interpretada por um dos guardas do parque como “real”, o que fez-lhe abordar o performer no meio de sua “cena”. O guarda em questão não havia recebido da administração a notícia de que ali haveria uma performance que já previamente autorizada. Seu procedimento padrão era reprimir as iniciativas que Figura 9 – “Gertrudes-Mendiga” – Experimento nº 2 – “Nos Rastros de Hamlet”. Performer Luís Garcia. Foto: Lucas Paz perturbassem a ordem e o sossego do parque. O mal entendido teve que ser imediatamente desfeito, sendo 43 necessário conversar com o guarda para que este não continuasse a tentar interromper a ação. Gertrudes caminhava até um pequeno coreto, onde “passava a bola” para Ofélia-nohiato (Karina), que conversava com alguns homens sentados nos banquinhos. Ela desenvolveu seu programa cênico passando pela leitura da carta e o “surto” com as moedas, até o momento em que, jogando em si mesma a água avermelhada, cai morta. Depois disso, a cena ficou em estado de suspensão durante muito tempo, em razão da morte da personagem, intensificada pelo estado performativo da atriz que se entregou à total imobilidade no chão. Os espectadores que haviam se aproximado no momento do surto também ficaram em suspensão, esperando o próximo acontecimento. Algumas pessoas que passaram por perto nesse momento também pararam para descobrir o motivo de tal aglomeração. Elas viram o corpo “morto” e ficaram intrigadas. Algumas discussões sobre o caráter do acontecimento (“É teatro?”, / “Ela morreu?”) ocorreram entre o público. Após essa longa pausa, entra em cena um dos Coveiros (inspirado no programa cênico realizado nas imediações do metrô Santana) e aproxima-se do corpo. Ele aproveita a “deixa”28 de um espectador – que fez um comentário bem-humorado e de cunho sexual sobre a atriz imóvel no chão – para “flagrar” de forma escandalosa uma tentativa de necrofilia (“Que isso brother? Cê tá dizendo que vai comer o presunto? Isso é crime sabia?”). Diante da abordagem repressora, um rapaz se assusta e sai correndo. A partir daí, a cena se desenvolve a partir do problema de como enterrar o corpo morto. O primeiro coveiro (Luís) dá um assovio e convoca o segundo coveiro (Raquel, vestida como no programa original). O diálogo dos dois insinua que a morte da “menina” Figura 10 – Experimento nº 2 – “Nos Rastros de Hamlet” – Performers Luís Garcia e Karina Fuji. Foto: Lucas Paz foi devido a um procedimento cirúrgico de aborto que havia resultado fatal. A escolha pelo 28 No jargão teatral, “deixa” é a ação ou texto feita por outro ator (ou por alguma passagem do roteiro de ações) que motiva ou “abre espaço” para a próxima ação. 44 tema dizia respeito à recente polêmica sobre a votação do Superior Tribunal Federal em relação à legalização do aborto para fetos anencéfalos. Esse momento do experimento foi o que mais gerou comoção no contexto do parque, atraindo muitos curiosos, que se aproximaram para assistir à remoção do corpo até o local onde seria enterrado. Os performers e o público realizaram uma espécie de cortejo, que tinha a velocidade determinada pela dificuldade dos dois em carregarem o corpo de Ofélia. Durante praticamente todo o percurso os performers pediam a ajuda do público, que, apesar disso, não ousava aproximar-se. O final do cortejo acontecia no playground infantil, uma espécie de piscina de concreto onde havia areia para brincar. Os coveiros atravessaram um grupo de crianças de diversas idades e depositaram o corpo de Ofélia ali. Pediram para que as crianças lhes ajudassem a enterrar a morta. Prontamente, várias delas entraram na “brincadeira”, ajudando a jogar areia e a enfeitar o “defunto” com folhas de plantas do entorno. Elas ficaram eufóricas com o jogo e começaram a provocar a performer morta, tentando quebrar o seu estado de inação. Terminado o funeral, os coveiros abandonaram o “corpo morto” e se retiraram. A performer, em total passividade, ficou à mercê do público. Diante do assédio das crianças, um homem que havia criado empatia pela performer passa a protegê-lo, garantindo que as mesmas não jogassem areia em seu rosto ou a machucassem. A ação ficou assim, em estado de suspensão, até o momento em que a própria performer se levantou de súbito, assustando as crianças e dando um ponto final ao experimento. Figura 11 – Experimento nº 2 – “Nos Rastros de Hamlet” – Performers Karina Fuji, Raquel Morales e Luís Garcia. Foto: Lucas Paz AÇÃO X REPRESENTAÇÃO No Experimento nº 2 podemos apontar diversos caminhos para a discussão acerca das relações entre ação performativa e representação. “Nos Rastros de Hamlet” pode ser 45 interpretado como uma experiência de teatro performativo no espaço urbano, apresentando características que exploram as fronteiras entre teatralidade e performatividade. O elemento de jogo escolhido para essa investigação foi o trabalho com os personagens, uma vez que estes são um dos pontos-chave onde as discussões sobre a representação ocorrem. Quando falamos de representação, estamos nos referindo a uma ação cênica onde o ator imita situações e circunstâncias, num contexto em que há um grau de referencialidade reconhecível, um processo centrado na ilusão e no traçado ficcional e, em grande parte dos casos, ao redor da ideia de mimesis. Em nosso experimento, o trabalho dos atores na construção das ações ocorreu em uma zona fronteiriça: “naquela região difícil, entre o personagem e o trabalho que o ator faz sobre si mesmo”29, sendo que, nesse modus operandi, “o que o público experimenta não é nem o performer nem o papel, mas a relação dos dois. Essa relação é imediata, ela existe apenas no aqui agora da performance”30. Na persona Gertrudes-Mendiga, por exemplo, o performer Luís Garcia tinha como eixo ficcional para sua ação a personagem da peça. Porém, em contraponto a isso, propunha a ação da procura, a interação ríspida com os transeuntes, a bebida alcoólica que ia alterando seu estado, as quedas e tropeços e todo o alvoroço e desconforto que aquela figura causava ao seu redor. Tais ações acabaram se tornando predominantes para a maioria dos espectadores, justamente por sua crueza e relação imediata com o ambiente. Antes de qualquer enquadramento ficcional acerca de Hamlet e de sua história, era a perturbação sensorial e social que o performer provocava que gerava a primeira camada de percepção. A ênfase, neste caso – e também nos outros – esteve mais na própria ação performativa em si do que na representação de um personagem, colocando em primeiro plano a ação cênica “real” – visível, concreta, sensível - e o acontecimento no tempo presente, que se dá no contexto da ação: 29 SCHECHNER, 2009, p. 334 30 Ibidem, p. 361 46 Um evento [que] ocorre, aqui e agora, de forma individual, imprevisível e irrepetível – o fugaz “produto” instantâneo de uma combinação e uma combinatória cada vez distintas de convidados, artistas e fatores espaço-temporais, inclusive da temperatura e de todos os demais elementos casuais, e ainda das perturbações que formam parte do acontecimento, do mesmo modo que as ações planejadas e previstas.31 Por outro lado, as personas criadas agiam de acordo com o traçado ficcional, o que instaurava a teatralidade. Contudo, elas invertiam uma característica fundamental da ficcionalidade dramática: a referência a um tempo-espaço “outro” (o “presente” da ficção). Os performers, nesse caso, atuavam exclusivamente no aqui-agora da apresentação, instaurando a característica de evento típica da performance art. Para exemplificar nossa afirmação temos a persona “Ofélia-no-Hiato” de Karina Fuji, que lança mão do universo ficcional da personagem jovem e apaixonada, porém, simultaneamente, interage com os espectadores no contexto do Parque da Luz. A Ofélia de Shakespeare foi descolada da referência espaço-temporal da Dinamarca no início da Idade Moderna para ser imersa em nosso momento atual, atuando a partir dessa combinação específica de fatores ficcionais e reais. Outro aspecto digno de nota é a imprevisibilidade, que dominou a cena em muitos momentos. Um exemplo disso foi a dificuldade que os performers Luís Garcia e Raquel Morales tiveram para carregar a “defunta” Ofélia até o local do enterro. Durante o planejamento da ação, os dois não experimentaram carregar o corpo de Karina e, por isso, no momento de realizá-la, perceberam que não seria tão fácil como supunham: o corpo totalmente abandonado da performer estava pesado mesmo para ser transportado por duas pessoas. Isso gerou um desconforto real para os atores em cena. Devido ao caráter de nossa intervenção no parque, ambos estavam preparados para situações inesperadas, devendo “segurar a cena” e incorporar qualquer dado concreto ao traçado ficcional do enterro da personagem. Isso fez com que eles demorassem muito para chegar até o local da próxima ação, criando uma espécie de cortejo fúnebre com os espectadores que seguiam o “corpo” lentamente. Outra reação que tiveram foi tentar pedir a ajuda das pessoas, porém elas apenas observavam a dificuldade deles em carregar o corpo, sem atender ao pedido de auxilio. 31 WAGNER-LIPPOK, 2010, p. 12 47 Uma série de choques e dissoluções estava em jogo: entre performer e personagem, entre a Dinamarca e o Parque da Luz, entre o tempo da ficção e o tempo presente, entre ação programada e ação imprevista, entre realidade e ficcionalidade, entre espaço cênico e espaço público, entre arte e vida, enfim, entre teatro e performance. Discutindo sobre o Teatro Performativo, Leandro Acácio aponta para a via de mão dupla entre ação e representação que é operada nessa “cena de fronteira”: podemos dizer que, para o performer em cena, a ação passa a ter uma função mais valorizada como tarefa (‘fazer’) do que como função mimética, interpretativa. O desempenho do performer é colocado em primeiro plano, em detrimento da interpretação da personagem, que passa a não ser mais a única fonte das ações. “Seu corpo, seu jogo, suas competências técnicas são colocadas na frente”. Féral caracteriza a colocação em primeiro plano da execução das ações como performatividade em ação, mesmo que, na cena contemporânea, essas funções – função representacional (mimética) e função performativa – tendam a não se excluir. Por não se excluírem, elas se tornam complementares. Sua aplicabilidade dependerá do modo como são dosadas e levadas para a cena.32 Acácio reforça a questão sobre a ênfase do teatro performativo no “fazer”. Este é presente em todo tipo de teatralidade, mas, no teatro convencional, está, digamos, “soterrado” sob as camadas de ilusão. O ator desaparece para que o personagem possa surgir; e por mais que cada ator expresse sua individualidade nesta construção, ao fim é o personagem que deve prevalecer e ser “a única fonte das ações”. O “fazer” é, nestes casos, apenas “interpretar”. No teatro performativo, outros “fazeres” entram em jogo. Em “Nos Rastros de Hamlet” destacamos algumas ações performativas que ultrapassavam os limites da representação: correr em círculo durante muito tempo; “divulgar” a aparição do Fantasma para os transeuntes do parque; se alcoolizar em cena e instalar em seu corpo um estado de embriaguez real; provocar seus próprios tropeços e quedas; abordar rispidamente alguns transeuntes incautos e “golpeá-los” cenicamente, obrigando-os a entrar na ação sem que eles sequer percebessem que se tratava de uma cena; conversar com senhores idosos sobre a paixão; carregar um corpo “morto” (com muita dificuldade) e enterrá-lo, entre outras. 32 ACACIO, 2011, p. 58 48 CAPÍTULO 4 Experimento Nº 3 // Performatividade do Espectador X As Três Irmãs O processo se inicia com dois objetivos traçados: primeiro, a proposta de construir um experimento mais próximo do texto base, com o objetivo de gerar fricções mais complexas e arriscadas; segundo, criar coletivamente desde o início – sem passar pelas propostas individuais (workshops) – através de um processo conjunto todo o tempo. Desta vez, partimos diretamente para a leitura do texto. O primeiro encontro aconteceu num espaço fechado, pois a leitura em espaço público (no Experimento nº 2) havia se mostrado muito dispersa. Diferentemente de Édipo-Rei e Hamlet, a peça de Tchékhov era pouco conhecida pelo grupo. Nenhum de nós havia de fato a estudado com maior aprofundamento. Não é preciso dizer que a estrutura fortemente dramática do texto, um drama, já de início gerou desconforto acerca de como trabalhar ele na rua. Alguns dos performers, a princípio, manifestaram desconfiança de que talvez aquela tarefa fosse impossível – até mesmo entediante. O processo criativo neste módulo foi marcado pela paciência e determinação para encarar este desafio que representou, para todos, uma “pedra no sapato”. “Como assim Tchekhov em espaço urbano?!” foi a pergunta que ouvimos diversas vezes, vinda de colegas e amigos que souberam da proposta. Junto a esse estranhamento havia também curiosidade, pelo caráter de novidade que aquilo representava. Essas e outras provocações nos motivaram bastante, gerando o desejo de explorar um novo caminho e enfrentar uma matéria-prima que, a princípio, seria resistente ao trabalho com a performance e com o meio urbano. O diagnóstico das dificuldades vinha, em grande parte, dos próprios performers. Para a maioria, a peça de Tchékhov parecia abstrata demais em seus conteúdos, sutil demais em suas imagens reveladoras e, ao mesmo tempo, enquanto matéria dramatúrgica, com poucas “frestas” para que um projeto de encenação inovador pudesse quebrar a sua estrutura realista. 49 Pois bem, o desafio estava lançado. E o processo criativo se configurou como problemático do início ao fim, beirando ao fracasso e à desistência em muitos momentos. Devido a essa dificuldade, não hesitamos em afirmar que o experimento nº 3 foi onde houve melhor oportunidade para que as ideias de performance e teatro pudessem de fato ser observadas numa perspectiva de colisão, choque e fricção. Os obstáculos que iam aparecendo foram, contudo, percebidos de forma motivadora, pois davam “pano pra manga” para o estudo das diferenças (e divergências) históricas que marcaram a ruptura dos artistas da performance art com o teatro, na década de 60. Cabe uma reflexão sobre o papel modelar de Tchékhov para a tradição teatral moderna, uma vez que o teatro ocidental (e o cinema, principalmente) estão até hoje dominados pela hegemonia da estética realista de encenação e pelo modelo do drama. Stanislavski, por sua vez, é considerado o maior pesquisador e teorizador acerca da atuação realista e teve em Tchekhov um grande parceiro no campo da dramaturgia, numa sinergia de pensamento e estética que gerou frutos históricos importantes. Entretanto, sabemos que parte dessa “tradição” stanislavskiana, impregnada na tradição teatral e cinematográfica, não é fruto direto de seu legado, mas sim de seus seguidores, que reinterpretaram seus ensinamentos. Podemos destacar entre todas essas “releituras” de Stanislavski a escola Actors Studio (EUA), que se tornou modelo para a indústria cinematográfica mais poderosa e onipresente no mundo (Hollywood). Tal fato contribuiu de forma decisiva para que a interpretação realista fosse considerada pela grande maioria do mundo ocidental como o paradigma do que se entende enquanto atuação. Releituras de Édipo-Rei e Hamlet são muito comuns no teatro contemporâneo. Essas peças, em especial a segunda, já foram profanadas, desconstruídas e reconstruídas por diversos grupos e encenadores que buscaram nesses mitos atualizações e tensões com os contextos que viveram. Isso ocorre também com As Três Irmãs, porém as dificuldades de friccioná-la com o universo da performance nos pareceram maiores que as outras duas. O primeiro dificultador por nós identificado diz respeito ao espaço onde as cenas acontecem: a peça se passa inteiramente na casa da família que a protagoniza. Apenas o 50 último ato ocorre na área externa – ainda assim, este faz parte da casa. Portanto, como trabalhar com uma peça tão íntima em um ambiente urbano? Somado a isso, a peça não contém absolutamente nenhuma dimensão pública – diferente das tramas políticas envolvendo o reinado e a luta pelo poder, que estão presentes tanto em Édipo-Rei como em Hamlet. Nestas duas, também estão presentes conflitos familiares e privados, mas a indissociabilidade entre o ser público e o ser privado de seus protagonistas está encarnada cenicamente através do cruzamento dessas esferas. Portanto, como transportar o universo privado de As Três Irmãs para o espaço público? Essa pergunta se tornou de fato bastante provocativa, pois não se tratava apenas de uma questão espacial, mas também dramatúrgica. O papel primordial que o diálogo exerce na estrutura dramática do texto de Tchékhov também foi identificado como outro dificultador. No drama, o diálogo intersubjetivo (entre personagens) é motor exclusivo da dinâmica interna da peça, que é fechada e completa em si mesma e, de acordo com Szondi, “absolutizada”. No caso de Tchékhov, a dramaturgia parece apontar para essa importância do diálogo, ainda que, muitas vezes, o mais importante encontra-se no subtexto das falas. Em nosso caso, o diálogo acabou se tornando o ponto de contato com o público, sendo utilizado como ferramenta para friccionar a ideia de performatividade do espectador com o texto teatral. A partir da leitura do texto, partimos para as experimentações práticas. Como um dos objetivos do processo era trabalhar os programas cênicos de forma mais grupal, a proposta foi realizar uma improvisação onde cada performer escolhesse uma personagem da peça para “colocar em situação” e interagir com os outros atuadores, no espaço urbano. 51 O primeiro local escolhido foi o Largo do Arouche, onde o mote escolhido para a primeira experimentação foi um acontecimento dramático: a comemoração do aniversário de Irina, evento que marca o início da peça. Uma das indicações dada aos performers era de que eles buscassem envolver os espectadores (os habitantes do local naquele momento). Outra diretiva foi que ficassem juntos o tempo todo, improvisando sempre em grupo. O exercício se desenrolou de forma difícil e arrastada: os elementos do jogo (personagem, relação com o espectador e entre os outros personagens) criaram uma complexidade excessiva, o que “travou” o improviso. Entretanto, em meio às dificuldades, algumas experiências interessantes emergiram: o diálogo, não mais exclusivo dos atores, mas compartilhado compartilhamento com o da festa, público; os no performers compraram um bolo de aniversário e o ofereceram aos transeuntes, convidando-os a festejar junto, o engajamento dos passantes nas discussões sobre o tema do trabalho, muito presente em As Três Irmãs e, por fim, o tema do retorno ao lugar de origem, fértil para uma cidade repleta de Figura 12 – Improviso sobre As Três Irmãs. Performer Raquel Morales. Largo do Arouche. Foto: Otávio Oscar imigrantes como São Paulo. Esses elementos foram identificados e decidimos desenvolver o experimento a partir deles. A proposta seguinte foi assumir o piquenique de aniversário como mote da ação. Foi determinado um personagem para cada performer, na seguinte distribuição: as irmãs Irina (Karina), Macha (Raquel) e Olga (Marília) e o irmão delas, Andrei (Henrique). A escolha pelo trabalho aprofundado de cada ator sobre um único personagem, nos aproximava ainda mais das convenções teatrais para, dessa forma, aumentar o atrito na fricção entre teatro e performance. 52 Assim, no calçadão de Osasco (próximo à estação da CPTM), ocupamos uma área da calçada com um piquenique completo: toalha no chão, comidas e bebidas. Os performers estavam vestidos de forma chique e simulavam pessoas “refinadas”. As comidas e bebidas funcionaram como uma espécie de “atrativo” para os transeuntes. Irina e as irmãs convidavam quem passasse para participar da comemoração e se servir do que estavam oferecendo. No meio dessa interação, que se dava “pelo conversavam Figura 13 – Improviso sobre As Três Irmãs. Performers Henrique Lima, Karina Fuji, Marília Contini e Raquel Morales. Calçadão de Osasco. Foto: Otávio Oscar diversos estômago”, com o assuntos as público irmãs sobre previamente combinados. Trabalho e casamento eram os dois principais. Apesar de estarem mais seguros para realizar o improviso, houve uma dificuldade em manter os espectadores no piquenique por muito tempo. A maioria se aproximava, parabenizava Irina, servia-se de algo e, logo depois, seguia seu caminho. Apenas em um momento, onde houve um aglomerado mais significativo de pessoas ao redor do piquenique, é que houve a chance de se desenvolver um diálogo mais longo sobre os temas planejados e de “deixar ver” as personagens de forma mais aprofundada. As hipóteses para esta não permanência no local da ação têm a ver com o próprio caráter do espaço, que não deixava as pessoas à vontade para se sentar ou ali permanecerem. A impressão que tivemos era de que estava “inscrita” no registro corporal daquelas pessoas uma “proibição” sobre o uso daquele local enquanto um lugar para relaxar. Já estava naturalizado o uso puramente “viário” do calçadão que, mesmo sendo espaço “público”, tem como único fim o fluxo de pessoas e mercadorias. Qualquer atitude fora desse padrão seria vista com desconfiança. Diante desse quadro, poderíamos até dizer que a performance agiu de forma subversiva, ao propor uma dinâmica pouco usual de ocupação do espaço. Entretanto, como a 53 “cena” se configurou enquanto um piquenique familiar, onde os participantes estavam vestidos de forma chique, os transeuntes pareciam acreditar que apenas aquela apropriação privada – para aquelas pessoas (os performers) - era permitida. Diante da falta de permanência do público na festa da família, o que prejudicou nossos objetivos, nos víamos diante de outro “fracasso”: nem metade do que havia sido elaborado pelos performers teve a chance de ser explorado; o entrosamento coletivo do grupo ainda não estava suficientemente apurado para permitir um bom “desempenho” do roteiro e do improviso; e, por fim, as camadas mais profundas do texto de Tchekhov – sem as quais as situações dramáticas se tornam esvaziadas – encontravam-se pouco exploradas. Diante disso, resolvemos encaminhar os ensaios seguintes para uma espécie de “retiro”, onde deixaríamos momentaneamente o work-in-progress performativo no espaço urbano para dedicar um tempo, em “sala de ensaio”, ao estudo mais aprofundado dos personagens, das situações, dos temas e à uma elaboração mais minuciosa do programa cênico do Experimento nº 3. Neste período, discutimos coletivamente sobre a peça, analisando a sua estrutura de ações, a transformação sofrida pelos personagens em cada ato e também sobre os possíveis sentidos gerais do texto. De fato, o tempo de estudo que fora planejado para esse experimento mostrou-se insuficiente. A tessitura dramática de Tchékhov não deve ser analisada de forma panorâmica, pois parece exigir um “dissecamento” minucioso das palavras, das pausas, dos gestos, enfim, das sutilezas que uma visão generalista não permite abarcar. A Édipo-Rei e Hamlet também caberia tal afirmação, entretanto, admitimos que a estrutura mitológica, com seu enredo básico (existentes anteriormente à dramaturgia), facilitou uma visão mais abrangente de sua trama e a consequente recriação inspirada neles. O clima cotidiano e aparentemente banal de uma casa de família, repleta de amigos e conhecidos que orbitam ao seu redor, apresenta seu reverso nas revelações que vão se dando nos subtextos – exigindo um esforço de leitura não esquemático. O enredo de As Três Irmãs apresenta um acontecimento principal em cada ato: no Ato I, o aniversário; no Ato II, a festa de carnaval que é cancelada; no Ato III, o incêndio; e no 54 Ato IV, a retirada da tropa do exército da cidade. Porém, todos eles estão repletos de pequenos acontecimentos, o que faz com que, para quem lança um olhar despercebido, a peça possa soar tediosa, fraca ou mesmo sem ação. As situações dramáticas parecem esvaziadas, parciais, sem grandes efeitos ou reviravoltas. Isso difere de Hamlet e Édipo, onde os lances dramáticos e os conflitos se desenrolam de forma a intensificar a narrativa até seu desfecho – nos dois casos, sangrentos. Tchékhov parece recusar os grandes acontecimentos, trabalhando num “anti-clímax” constante, de forma que as ações relevantes sejam de fato aquelas interiores ou imanentes, numa espécie de arqueologia cênica da alma humana no que ela tem de mais profundo. Como resultado dessa passagem pela sala de ensaio, elaboramos um roteiro básico, uma visão mais esquemática e simples que permitiu o improviso e a interação com os espectadores. Escolhemos como espaço de experimentação o Parque da Juventude, onde haveria uma probabilidade maior do público se sentir à vontade para participar do piquenique e permanecer por mais tempo no local da ação. Outra escolha foi relativa ao “cenário”: diferente dos outros dois experimentos, que eram móveis, o experimento nº 3 – “Três Irmãs”, aconteceu tendo como base um ponto fixo, uma árvore, onde as irmãs instalaram a sua “casa”. A intenção era criar uma “ponte” maior com a peça, pois as performers simulavam estarem recepcionando o público como convidados para a festa de aniversário. A árvore também foi escolhida por sua simbologia como metáfora da família e também da ideia de enraizamento, que remete à permanência dos irmãos na cidade. A princípio planejamos que as irmãs estariam com os pés enterrados o tempo todo da ação, sem poder caminhar pelo espaço, enquanto Andrei permaneceria no alto da árvore. Entretanto, essa ideia, quando realizada na prática, se provou ineficiente para atrair o público, pois era preciso um pouco mais de “movimento” para que as pessoas notassem a ação, se aproximassem e desejassem permanecer junto à cena. Como durante os ensaios e experimentações as personagens foram atualizadas para nosso contexto e interpretadas de forma realista, o público, na maioria das vezes, acreditava naquela festa de aniversário como um acontecimento “real”. Apesar de essa ideia parecer interessante a princípio – na medida em que explorava os limites entre ficção e realidade – a 55 ausência de um “enquadramento” teatral fazia com que os espectadores não se preocupassem em “ler” os acontecimentos e as ações, na medida em que eles se camuflavam enquanto cotidianos, apesar de “excêntricos”. O “enquadramento”, nesse caso, era importante pois, sem ele, não se poderia enxergar a intenção artística da ação. Assim, resolvemos esse problema acentuando a teatralidade da performance, através de figurinos mais estranhados, de uma atuação mais teatralizada e do tratamento cenográfico feito na árvore. A seguir, descreveremos o resultado final do Experimento nº 3. EXPERIMENTO Nº 3 – TRÊS IRMÃS O local escolhido para ação foi um árvore próxima ao prédio da administração do Parque da Juventude. A apresentação aconteceu num domingo ensolarado, com o parque lotado de pessoas que buscavam um momento de lazer. A árvore estava “paramentada” com diversos objetos que remetiam à casa das três irmãs, além de portar enfeites da festa de aniversário de Irina. No contexto por nós criado, Figura 14 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs” – Performers Karina Fuji, Marília Contini e Raquel Morales. Foto: Otávio Oscar as personagens eram filhos de brasileiros nascidos na França. Moscou, do original, foi trocada por Paris. Essa adaptação tinha por objetivo oferecer ao público uma referência menos distante, próxima ao senso comum brasileiro, que entende Paris como símbolo da elegância e do refinamento, um lugar “perfeito” em comparação ao Brasil. Em nossa versão, as irmãs, assim como em Tchékhov, se referem a Paris como um passado feliz e como um futuro de esperanças, o que faz com que o presente seja um lugar de insatisfação e desconforto. A referência à sua cidade natal foi recorrente durante toda a performance. 56 Como início da ação, as três irmãs davam uma volta pelo parque convidando diversas pessoas para comemorar, junto com elas, o aniversário de Irina, indicando o local exato onde a festa iria ocorrer. As performers estavam caracterizadas de Figura 15 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”. Foto: Otávio Oscar forma extracotidiana: Karina trajava um vestido branco que parecia quase uma fantasia, com luvas e óculos escuros; Raquel usava um casaco preto que cobria o corpo inteiro, uns saltos vermelhos, um óculos escuros, uma boina francesa, além de fumava um cachimbo; Marília vestia uma roupa com a qual parecia voltar do trabalho, uma saia preta reta e uma camisa de alfaiataria. Após essa peregrinação pelo parque, as irmãs voltavam para a árvore e iniciavam a recepção aos convidados. Naquele dia, havia um senhor coreano tocando trompete no parque e nós o convidamos para ficar próximo a nós, se integrando, assim, à performance, já que poderia tocar música para a festa. A aglomeração inicial de pessoas atraiu muitas outras que por ali estavam, e o mote da festa foi bastante atrativo. Olga cumpria a função de servir os convidados com comidas e bebidas, enquanto Irina e Macha conversavam com o público sobre os temas “trabalho” e “casamento”. Nesse primeiro momento a ação era livre e o diálogo com as pessoas do público definia Figura 16 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”. Foto: Otávio Oscar os rumos. O roteiro de ações foi dividido em três partes esquemáticas: I) Aniversário de Irina = As irmãs recebem o público. Atmosfera: Comemoração - Irina: conversa sobre o trabalho, revelando que vai começar um emprego novo em breve / Olga: servir bem, recepcionar / Macha: conversa sobre o 57 casamento, sobre o tédio / Andrei: escreve incessantemente. Descarta diversos papéis com fúria. II) Decadência = O clima de descontração da festa é substituído pela exposição das angústias das irmãs. Atmosfera: ansiedade/descontrole - Irina: começa a trabalhar, manipulando diversos componentes eletrônicos / Olga: corrige provas e recebe ligações a todo momento. Tenta administrar a crise das outras irmãs / Macha: na tentativa de ficar mais bonita, se maquia e, aos poucos, vai borrando e manchando o rosto, tornando-se cada vez mais grotesca / Andrei: realiza apostas, deixa cair diversas notas falsas de dinheiro. III) Solidão = As irmãs ficam abandonadas. Atmosfera: Reclusão. Irina: Começa a falar sem parar sobre Paris, veste uma roupa “de vovó” e se encolhe num canto da árvore / Olga: Veste a roupa de diretora da escola e fica quieta, realizando suas tarefas / Macha: inicia o ato tentando incendiar a casa, é contida, cava um buraco no chão e enterra os pés. A apresentação teve dois momentos contrastantes. A primeira parte, festiva, onde os performers e o público encontravam-se em estado comemorativo, o que acarretou com que a performance tivesse grande adesão. Já a segunda e terceira partes, onde as ações se tornaram mais “estranhas”, essa adesão se perdia gradualmente. Se a primeira parte era mais livre, o que Figura 17 – Experimento nº 3 – “Três Irmãs”. Foto: Otávio Oscar facilitava a improvisação, as outras duas ofereciam grandes dificuldades na relação com o público, uma vez que eram mais “fechadas”, encapsuladas nelas mesmas. 58 PERFORMATIVIDADE DO ESPECTADOR EM “TRÊS IRMÃS” O Experimento nº 3 foi aquele que mais intensificou a fricção entre o teatro e a performatividade. Justamente devido a isso, o processo criativo e a apresentação acabaram se tornando bastante problemáticos, na medida em que houve uma série de dificuldades em cruzar a estrutura dramática do enredo tchekhoviana com as características performativas que nos propúnhamos experimentar. O texto se mostrou extremamente resistente ao jogo performativo, como se apresentasse uma severa rejeição ao espaço urbano. Talvez fosse necessário um tempo maior de experimentação e ferramentas alternativas de trabalho para que conseguíssemos efetivar plenamente a proposta. Mesmo sendo um experimento “problema”, Três Irmãs apontou interessantes caminhos para o cruzamento teatro-performance, especialmente no que se refere ao mote da performatividade do espectador. Esse conceito foi por nós experimentado através daquilo que chamamos dramaturgia relacional. Havia um roteiro cênico - um “programa” preestabelecido, mas este foi construído de forma flexível e inacabada, para que pudesse ser “completado” a partir da interação e participação do público. Assim, apesar de a trajetória das personagens estarem previamente determinadas, o caminho, a “travessia”, só poderia se dar com os espectadores, parte essencial para o acontecimento cênico. Além disso, o diálogo, principal motor do drama convencional, aqui foi desviado do eixo intraficcional para o extraficcional, na busca por um deslocamento perceptivo do espectador, que deixria de ser voyeur passivo de um presente ficcional (o presente do drama) para ser integrado a um presente “real”. Essa operação, em nosso caso, buscou amalgamar o aqui/agora do drama (universo de Tchekhov) ao aqui/agora do acontecimento. Pensamos que essa tensão entre o real e o representado foi o que nos gerou uma série de dificuldades na execução do experimento, pois a concatenação de ambos é complexa e exige uma estratégia eficiente para a interação com o público, para que os elementos sejam arranjados de forma a se permitir uma boa fluidez da trajetória pré-estabelecida. 59 Em Três Irmãs, não houve a configuração de uma estrutura cênica fixa e ensaiada, mas sim de um processo cênico, pensado como acontecimento único capaz de amplificar o aspecto lúdico do texto de Tchékhov. Segundo Josette Féral essa característica processual, que gera resultados e consequências que não podem ser previstos, instaura um “risco real para o performer”. Derrida será o primeiro a prolongar esta noção introduzindo nela um fator importante, o de sucesso ou malogro [grifo nosso]. (...) ele afirmará que a obra, para ser realmente performativa, pode ou não atingir os objetivos visados. A reflexão de Derrida marca um redirecionamento na evolução do conceito de performatividade na medida em que ele afirma que a ação contida no enunciado performativo pode ou não ser efetiva [grifo nosso]. Portanto, na medida em que essa observação se torna um real princípio inerente à própria natureza dessa categoria de locução, o “valor do risco”, “o malogro” tornam-se constitutivos da performatividade e devem ser considerados como lei.33 Esse “malogro” também se relaciona com a questão da expectativa nutrida pelo público frente às convenções teatrais. Tomemos, como exemplo, a reação da mãe de uma das performers que, convidada para assistir ao trabalho, se manifestou bastante decepcionada com o que foi apresentado. Segundo ela, aquilo não era arte, muito menos teatro34. Aparentemente, as características performativas de nosso experimento geraram uma “frustração” em relação a suas expectativas do que deveria ser “arte”, uma vez que decidimos justamente dispensá-las, na tentativa de arriscar novas possibilidades cênicas. Com a mudança de papéis promovida pelo entorno performativo colapsam, com frequência, convenções “estabelecidas”: deste modo, o espectador “tradicional” confia na perfeição elaborada da obra de arte que o espera e a que ele está disposto a admirar. Ele se alegra de antemão com a ideia de ir ver a peça, a encenação, “o Hamlet”, que lhe será oferecido por um determinado – e conhecido – ator. Ele é o verdadeiro rei e diante dos seus olhos se desenrolam os acontecimentos, entre outros, arquivados na forma de “papéis” reconhecíveis e reutilizáveis. (...) As demandas consumistas de um público aristocrático-burguês refestelado em sua poltrona são afrontadas pelo performativo no mesmo modo como desaparecem as oposições dicotômicas entre ator e espectador ou entre “papel social” e “privado”.35 33 34 FERAL, 2008, p. 223 É interessante notar que, ao classificar o fenômeno como não-arte, a mãe de nossa colega evidencia a hegemonia de um padrão para a arte, que é justamente uma das convenções que a performance art busca combater. 35 WAGNER-LIPPOK, 2010, p. 11 60 A dissolução das oposições entre performers e espectadores, no nosso caso, não foram totalmente abolidas, na medida em que havia uma condução da ação realizada pelos atores. Afinal, ainda havia um roteiro, mesmo que básico, a ser seguido. De fato, os espectadores do parque se sentiram à vontade para “entrar no jogo”, o que provocou um constante atravessamento de fronteiras entre os dois lados da ação artística. Os performers utilizaram, como ferramenta principal de atração do público a criação de laços afetivos. Através da estratégia de receber o público em sua “casa”, eles buscavam “fazer amizade” com as pessoas que se aproximavam, perguntando-lhes o nome, oferecendolhes comida e bebida e conversando sobre assuntos cotidianos. Esse laço afetivo gerou repercussões curiosas, pois no momento em que as irmãs vivenciavam sua decadência, muitos buscaram “ajudá-las”, como quando um dos meninos do público impediu que Macha (Raquel) continuasse a tentativa de incêndio, preocupado com que ela se machucasse. Esse envolvimento dos espectadores com a ação, provocado intencionalmente pelos performers, foi considerado um fator de grande importância em nossa experimentação, pois parece ser uma estratégia interessante para criar novas formas de recepção e fruição artística, capazes de diminuir a passividade e intensificar o interesse e a atenção. Como afirma Silvia Fernandes, ao comentar o livro The transformative Power of performance, de Erika FischerLichte: O evento envolve performers e espectadores em atmosfera compartilhada e espaço comum que os enreda, contamina e contém, gerando uma experiência que ultrapassa o simbólico. O resultado é uma afetação física imediata que, para a ensaísta, causa uma “infecção emocional” no espectador36 Em Três Irmãs, o terceiro momento não pôde ser concretizado da forma como foi planejado, pois alguns dos espectadores que haviam comemorado o aniversário na primeira parte, não permitiram que as irmãs ficassem sozinhas, indo conversar com elas sobre algum 36 FERNANDES, 2011, p. 17 apud FISCHER-LICHTE, Erika. The trasformative Power of performance. New York: Routledge, 2008 61 assunto. Assim, o final da performance se configurou espontaneamente como uma ação performer-espectador na ordem de um para um, possibilidade até então não imaginada por nós37. 37 Na história da performance podemos destacar diversas ações interessantes que envolvem a presença de apenas um espectador. Como exemplo disso temos o trabalho de Eleonora Fabião onde ela, no centro do Rio de Janeiro, posicionava duas cadeiras frente a frente, sentava-se numa delas e conversava com as pessoas exibindo um placa com os dizeres “Converso sobre qualquer assunto”. Ou ainda a performance “The artist is present”, de Marina Abramovic, onde a artista colocou a si própria como obra/instalação que podia ser observada pelos visitantes. Abramovic passava todas as horas do dia sentada na cadeira, sem sair, e quando alguém sentava na sua frente, ela a encarava fixamente, até o momento em que ela saísse. 62 CONCLUSÃO O processo de investigação do Projeto 3x3 se mostrou muito frutífero na junção entre criação e pesquisa experimental, buscando estabelecer uma via de mão dupla onde uma servisse como mola propulsora para a outra. Ao realizarmos toda a etapa prática do projeto na rua (os exercícios, as experimentações e os processos criativos de cada experimento), conformamos um laboratório criativo onde a pesquisa não se dava de forma isolada em sala de ensaio, mas através de uma dinâmica work-in-progress, onde as fronteiras entre processo e obra não estavam fixadas. Os textos teatrais passaram por um procedimento tipicamente “antropofágico”: primeiro nós o “devorávamos”, juntando nesse composto nutritivo o espaço urbano e os estudos e experimentações sobre performance art. A partir da “digestão” de ambos, os programas cênicos eram “regurgitados” e experimentados em lugares públicos. Ao nos relacionarmos com os textos teatrais durante a construção dos experimentos, fomos elaborando questões dentro deles que pudessem gerar fagulhas e inquietações, buscando fomentar uma nova potência comunicativa com o público. Como resultado, gerou-se uma outra forma – herege, dessacralizante, despretensiosa e livre – de se lidar com a matéria literária oriunda das peças. A performance, aqui, funcionou como um combustível altamente inflamável para relações não convencionais entre texto teatral e espaço urbano. A nossa intenção foi gerar um campo experimental onde tanto o milenar teatro como a performance art pudessem ser matéria-prima de experimentação na busca por novos caminhos na forma, na linguagem, no discurso artístico e na inserção destes na vida social. Os três experimentos apresentados não conformam uma unidade, cada um apresentou características peculiares de acordo com seus motes criativos. Muitas vezes, os caminhos experimentados se mostraram obscuros e não sabíamos como lidar com alguns problemas que surgiram, justamente pelo seu caráter inédito que nos surpreendia e nos incitava a malabarismos criativos que os solucionassem. A experimentação, assim, expandiu diversos horizontes criativos acerca das possibilidades de relação entre teatro e performance inseridos no meio urbano. 63 No Experimento nº 1 nos aproximamos da linguagem da performance urbana através dos Exercícios Preparatórios e criamos uma ação que denominamos “teia” de performances simultâneas, onde os três programas cênicos que o compunham teciam pontos de contato entre si ao mesmo tempo em que preservavam sua autonomia. No Experimento nº 2 criamos um roteiro “patchwork”, fruto da “costura” entre diversos programas cênicos experimentados e selecionados. Este experimento resultou mais próximo da noção de teatro performativo, jogando com as fronteiras entre a teatralidade e a performatividade. No Experimento nº 3 nos orientamos mais em direção à linguagem teatral, ao construir um roteiro com uma estrutura mais próxima do drama convencional, a qual, porém, se mantinha flexível o suficiente para envolver os espectadores na ação – ao que denominamos dramaturgia relacional. Em todos esses experimentos as fricções entre teatro e performance não primaram pela busca por um conceito harmonioso; era a incongruência, a impureza, a imperfeição e o “efeito Frankenstein” que nos pareceram mais instigantes enquanto abordagem. Se, por um lado, adotamos o método da fricção, ao final chegamos à conclusão de que, quando trabalhadas de forma articulada, a teatralidade e a performatividade podem se tornar complementares, potencializando o interesse e o impacto da ação artística sobre o espectador. o fato de se colocar o real em cena hoje surge para provocar o espectador, estimulá-lo a ver o espetáculo de outro jeito, a reagir de outra forma. Para resumir, diria que, se a performance estava centrada no performer, o teatro hoje está voltado para o espectador. Está interessado em descobrir como acordar um espectador que está dormindo toda hora. Não é apenas o intuito de fazê-lo reagir só pelo prazer, mas o de fazê-lo reagir de forma inteligente, não só pela provocação38 Enquanto a performatividade desarticula convenções, instaura o evento, enfatiza a presença e transfigura a obra em processo – agindo de forma provocativa sobre o espectador – a teatralidade cria um enquadramento estético reconhecível aos olhos deste. Esta complementaridade é capaz de potencializar a passagem da provocação à reflexão. 38 FÉRAL, Josette. Entrevista concedia a Leandro Acácio e Julia Guimarães em São Paulo, novembro de 2010. In ACACIO, 2011, p. 79-80 64 A performatividade, ao provocar curtos-circuitos entre a ficção e a realidade – cria uma dinâmica perceptiva que foge às regras usuais e propõe uma postura mais envolvente com a ação. Durante os experimentos, as ações “invadiram” o ambiente urbano, abrindo espaço para diversas possibilidades de adesão ou não adesão às propostas. Lançamos mão da performatividade com o objetivo de criar uma relação “crua”, imediata e não mediada com o cotidiano, minimizando a necessidade de estabelecer pactos de teatralidade com os habitantes do espaço. Em muitos momentos, a ação concreta colocada em movimento pelos performers esbarrava e ultrapassava alguns limites entre arte e vida cotidiana. As consequências disso foram diversas: alguns se sentiram ofendidos, outros não deram muito atenção, muitos ignoraram, autoridades interviram, incautos assustaram-se, desocupados se distraíram e muitos, não se sabe porque, interromperam seus fluxos e pararam para prestar atenção e acompanhar o trabalho, buscando realizar uma leitura daquele acontecimento. A dúvida “É teatro?” foi uma constante durante todo o processo de experimentação; as dinâmicas de visibilidade e invisibilidade da intenção artística oscilaram de acordo com diversas variáveis, confundindo os espectadores sobre a veracidade daquelas “ocorrências”. Os performers navegaram numa zona de risco onde a imprevisibilidade e surpresa eram presenças determinantes, se afastando da condição de um ator confortável em seu espaço de cena bem delimitado e convencionalmente protegido das influências externas. As dinâmicas relacionais entre performers, espectadores e espaço urbano eram a tônica de todos os experimentos, negando qualquer prerrogativa unilateral que fixasse emissor e receptor em papéis imutáveis. A ação não esteve isolada ou separada do ambiente circundante: os poros da obra estavam sempre abertos e esta se configurava de forma processual, no aqui/agora da performance. A performance art não representa a negação do teatro no sentido estrito, mas a recusa das convenções artísticas que impediam que a arte fosse capaz de se reinventar, num momento histórico onde muitos artistas e ativistas políticos afirmavam a necessidade do novo como potência de transformação do mundo. Sob o nosso ponto de vista, o sentido atual dessa intenção política ainda existe e, por mais que a performance não seja mais algo novo, suas questões motivadoras ainda estão 65 presentes no século XXI. Como, por exemplo, na luta contra o mercado monopolizador e padronizador dos modos de produção da arte e contra a dependência cada vez maior dos artistas em relação às instituições que, de forma sub-reptícia, tece alianças com setores empresariais. Até mesmo a performance art sofre consequências desse processo ao qual negou no passado: “engolida” pelo circuito oficial da arte, ela perde progressivamente sua radicalidade, reduz seu poder de combatividade política, se subjuga a padrões institucionais, tornando-se cada vez mais, mainstream. Apesar disso, a performance, a nosso ver, preserva ferramentas potenciais de provocação que ainda são estranhas a uma maioria e podem, ainda, criar desvios ou ilhas de desordem no status quo. Realizar ações artísticas de ruptura ainda se mostra uma atitude política válida. Elas, inclusive, deveriam ser realizadas de forma continuada, estimulando a revolução permanente dos pensamentos em detrimento da alienação, patrocinada pelos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, uma proposta que une teatro e performance permite a criação de uma configuração híbrida, que preserva traços de uma linguagem mais conhecida pelo público – no caso, o teatro – ao mesmo tempo que, partindo dessa “familiaridade”, abre frestas para outras linguagens provocativas e menos assimiladas, ativando de forma diferenciada, por meio dessa fricção, outros níveis de percepção. 66 BIBLIOGRAFIA ACACIO, Leandro Geraldo da Silva. O Teatro Performativo: a construção de um operador conceitual. Dissertação de Mestrado. UFMG, 2011. AGRA, Lúcio. “Porque a Performance deve resistir às definições”. 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