PAULO DINIZ: PRECONCEITO ESTÉTICO NO PAÍS DA “CORDIALIDADE” Luciano Rodrigues Lima Professor do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da UNEB Professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBa “Não era músico. Nem cantor. Era um compositor popular.” Paulo Diniz SOBRE ESTE TEXTO Este trabalho não possui as características clássicas de um artigo acadêmico-científico. Prefiro denominar, precariamente, este tipo de texto de narrativa cultural, pois, ao lado de dados objetivos pesquisados e referenciados, encontram-se aspectos subjetivos e marcas da cultura do meio social do próprio autor, narrados pela ótica pessoal. Em janeiro de 2010, completou setenta anos Paulo Diniz. Mas a juventude atual não sabe quem é Paulo Diniz. Podem até confundi-lo com algum jogador de futebol, ou ator da Globo. É como, para um norte-americano, não saber quem foi Ray Charles, James Brown, ou quem é Lionel Ritchie. O apagamento radical da figura de Paulo Diniz da história recente da cultura brasileira merece a reflexão que faremos neste breve artigonarrativa, pelo viés da crítica cultural. O AMBIENTE MUSICAL BRASILEIRO DOS ANOS SESSENTA E SETENTA: O OLHAR OBSERVADOR DE UM PROVINCIANO ALIENADO Não sou a pessoa mais indicada para descrever o cenário musical dos anos sessenta e setenta, no Brasil, embora tivesse vivido intensamente aquelas décadas, atento a tudo que acontecia. O local de fala deste narrador é o subúrbio, a periferia, o interior do Nordeste. Tinha uma predileção (e uma certa alienação) por música estrangeira, pelos conjuntos ingleses que existiram antes, durante e logo após os Beatles (e não exatamente os Beatles, pois me pareciam algo óbvio), como The Animals, The Who, The Rolling Stones, Yes e Deep Purple, dentre outros, e pela música negra norteamericana, de artistas como Jimmy Hendrix, Aretha Franklin e Sly and the Family Stone (Como exemplo máximo dessa alienação, quando completei dezoito anos, arrendei o filme Woodstock e o exibi por duas noites em um cinema da cidade em que eu morava, com lotação máxima. “Três dias de paz e amor”, dizia o material publicitário do filme, mas a partir daí a cidade declarou guerra contra mim). Mas, no Brasil, havia os Mutantes, com suas guitarras distorcidas que chamaram a minha atenção para o Tropicalismo. Também já era capaz de perceber e apreciar a sofisticação em arranjos como o de Juliana, executado por Antonio Adolfo e a Brazuca, nos festivais da canção, e o piano de Cesar Camargo Mariano nos acompanhamentos de Elis Regina. Já conhecia um pouco de Mário e Oswald de Andrade, de leituras intuitivas em bibliotecas públicas, e pude entender, parcialmente, o alcance da proposta estética contida no trabalho de Caetano, Gil, Torquato, Capinan, Tom Zé e os Mutantes (frequentemente, comenta-se o Tropicalismo negligenciando a importância dos Mutantes, músicos e arranjadores que deram o personalidade sonora ao Tropicalismo, e, em um movimento musical, identidade sonora é muita coisa). Repito, foi a guitarra estridente dos mutantes no arranjo para Procissão, de Gil, que me fez perceber a novidade musical que era o Tropicalismo, e não as letras das músicas, a performance no palco, a atitude política ou o conceito estético. Isto em nada diminui a dimensão e a importância da abertura estética contida no tropicalismo, ao contrário, a amplifica: considero o Tropicalismo a anunciação – e o alardeamento – da pós-modernidade no Brasil, o que não significa que já sejamos pós-modernos. SAMBA ESQUEMA NOVO, DE JORGE BEN, OU O FIM DA MODERNIDADE NA MÚSICA BRASILEIRA A década de setenta foi a última da música popular como virtuosi. Explico: antes, gravar um disco era para poucos e era necessário “ter voz”, se cantor, ou “ser bom”, se músico. Só alguém destacado da medianidade (salvo casos raros de mediocridade apadrinhada, logo desancados pela crítica musical) poderia gravar um LP (Long Play, que significa disco de vinil de longa duração, geralmente com doze faixas musicais). Exemplifico, retroagindo mais sete anos, com o LP Samba esquema novo, de Jorge Ben. Lançado em 1963, pela Phillips. O disco tinha arranjos do maestro Gaya, e do Trio Luiz Carlos Vinhas, dentre outros. O Sax foi tocado por Meireles (de Meireles e os Copa Cinco, performance que ficou célebre pela introdução com sotaque de jazz, em Mas que nada ), com Do Um Romão na bateria (diziam ser um dos melhores bateristas do mundo, à época), e Toninho no piano. A noção de que a música popular tinha que ser produzida e cantada apenas pelos melhores, envolvia a noção de que isto integrava a evolução histórica e contínua da canção popular para melhor. Tal noção é típica do projeto da modernidade civilizatória européia. O disco de Jorge Ben “emplacou” cerca de três ou quatro sucessos nacionais simultâneos (não existem mais os sucessos musicais nacionais, isto é, uma música tocar dezenas de vezes por dia em todas as rádios do Brasil, por até cinco meses, como Quero que vá tudo pro inferno, de Roberto Carlos etc) pois, atualmente, cada tribo canta suas próprias músicas. Este é um dos aspectos culturais que distinguem a modernidade da pós-modernidade: a fragmentação cultural. O que significa, culturalmente, o sucesso em quase todas as classes sociais (havia pessoas que sequer tinham acesso ao rádio) de um repertório e um estilo musical como aquele contido em Samba esquema novo? Talvez represente uma contradição, à brasileira. Em um país com tamanha diversidade cultural e musical, um disco sofisticado, com toques de jazz, bossa nova e samba, com sotaque e gosto bem cariocas, cantado por quase todos os brasileiros, de norte a sul. Havia, então, uma manipulação e uma imposição cultural do Rio e São Paulo sobre o resto do Brasil bem maior do que atualmente. O fortalecimento das culturas locais é, também, uma característica do cenário cultural pós-moderno. Estes são alguns dos ângulos do sucesso do disco de Jorge Ben. O que mais interessa nesta narrativa, entretanto, é a qualidade musical de Samba esquema novo, como exemplo de uma era. Se tinha sofisticação, como podia ser para todos? Se havia sido gravado para fazer sucesso, com letras simples, um ritmo contagiante e dançante, lançando uma nova modalidade de samba, por que fizeram arranjos tão sofisticados, com baixo acústico? Em parte, isso se explica pelo fato de terem as gravadoras seus próprios arranjadores, os quais decidiam como a música seria gravada. Não eram os intérpretes jovens, que quase nunca liam e muito menos escreviam partituras, que assinavam os arranjos. Esses arranjadores eram grandes músicos e faziam harmonias sempre complexas, como Radamés Gnattali, Gilson Peranzzetta, Hugo Bellard, César Camargo Mariano, Antônio Adolfo e muitos outros. Somente a riqueza cultural e a musicalidade do Brasil pode explicar o resto. A partir da década de 80, o movimento punk na Inglaterra ( Ramones, The Clash, Malcolm MacLaren and the Sex Pistols) abriu espaço para que qualquer pessoa pudesse gravar um disco, mesmo sem tocar ou cantar bem. Sem os punks não teríamos Renato Russo e o Legião Urbana ou os Paralamas do Sucesso, os quais quase nada sabiam de harmonia e nada tinham de “raiz” popular, mas eram a expressão de toda uma nova geração de jovens nascidos e criados em apartamentos. O movimento punk revoluciona o conceito de arte como um produto bem acabado dos anos 70 e é também uma reação contra os excessos do rock progressivo e sinfônico, grandiloquente, das grandes bandas dos anos 70. O punk operou uma revolução musical através de uma radical simplificação dos arranjos, da idéia de afinação (a bossa-nova, apesar de Desafinado, de Jobim, era muito afinada, explorando as dissonâncias e as síncopes do ritmo) e questionamento da noção de “bom gosto musical”. Pode-se perceber, aí, indícios da chegada do Pós-Moderno na música popular. Fredric Jameson tenta explicar, no seu livro Postmodernism or, the Cultural Logic of Late Capitalism, o que ocorreu com a arte nesse período histórico recente. Nesse ínterim houve, segundo ele, uma mudança cultural, a qual não vê mais com bons olhos e desconsidera uma arte elitista e anti-social, como o modernismo ortodoxo preconizava. A QUESTÃO DO BOM OU MAU GOSTO SOB O PONTO DE VISTA “PÓSMODERNO” As aspas em “pós-moderno” se devem ao fato de eu não ter certeza se tenho condições de definir o pós-moderno esteticamente, ou se se pode falar de pós-modernidade no Brasil, no sentido concebido por Fredric Jameson, por exemplo. O mercado consumidor e seus direitos de escolher o que bem lhe aprouver, a consideração das diferenças culturais de cada comunidade produtora e consumidora de objetos e produtos artísticos e culturais, a inclusão (sem hierarquia) dos diversos estilos musicais das grandes metrópolis multi e interculturais no amplo e impreciso rótulo de world music são fatores que revolucionaram a música a partir dos anos oitenta. Embora alguns críticos, observadores e comentaristas lamentem a queda da “qualidade” na produção musical da atualidade (arranjos, letras, interpretação, melodias e capacidade de renovação estética), isto não se configura como algo negativo, mas como nova condição, uma nova ordem das coisas, isto é, a inclusão da música do outro, aquela que estava soterrada sob tarjas negativas como “brega”, “caipira”, “primitiva”, “alienada”,“comercial”etc. Penso que o painel musical brasileiro, atualmente, é bem mais representativo da diversidade cultural do país do que nas décadas de sessenta e setenta. Isto significa uma espécie de democratização estética, com consequências que incomodam os defensores de uma música hegemônica da classe média urbana e letrada, aquilo que foi estropiadamente denominado de “música popular brasileira”. (um banquinho, um violão, uma voz a meio-tom, e letras que não extrapolem os limites do gosto estético balizado pelo lirismo doce de Vinicius de Morais, apropriadas para as pessoas da Zona Sul do Rio de Janeiro). O SEGUNDO CANTOR-COMPOSITOR MAIS POPULAR DO BRASIL? Não possuo estatísticas sobre vendagem de discos ou execução das músicas nas rádios, naqueles anos de 1970 e 1971. Acho, também, que em nosso país esses dados não são confiáveis. Mas, como trabalhava em uma emissora de rádio do interior, podia perceber a preferência e os pedidos musicais dos ouvintes. Depois de Roberto Carlos, o artista mais solicitado era Paulo Diniz. Acabara de lançar Quero voltar pra Bahia, disco que conseguiu três sucessos: a faixa título, Piri-Piri, e Ponha um arco-íris na sua moringa, que ele disse, em uma entrevista, ter sido um frase de Paulo Leminski, com quem ele conviveu nos seus tempos do Solar da Fossa, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, lança Paulo Diniz, LP em que consegue dois grandes sucessos nacionais: Pingos de amor e O meu amor chorou. Em 1974, lança O segundo disco intitulado Paulo Diniz, e consagrase com o estrondoso sucesso de José, musicando o poema de Carlos Drummond de Andrade, e Vou me embora. Além desses sucessos Paulo Diniz conseguiu mais alguns sucessos nacionais, como Um chope pra distrair, Viola no paletó e Bahia comigo. Antes da sua fase considerada como “música popular brasileira”, um rótulo precoceituoso para designar e distinguir a música da classe média a partir da época dos festivais e excluir como mau gosto tudo e todos que nela não se enquadrasse estética, racial, ideológica e socialmente, Paulo Diniz tinha sido um cantor de sucesso na “Jovem Guarda”, interpretando canções como “O chorão”, ou a versão de “Western Union”. A “Jovem Guarda” foi (e ainda é), pois em arte nenhum estilo desaparece, mas sim continua infinitamente para dentro dos estilos subsequentes, uma das mais marcantes faces da verdadeira música popular do Brasil, sem aspas. Foi um dos movimentos musicais de maior penetração popular na história da música brasileira e continua viva nas suas transformações, adaptações e assimilações pelos estilos atuais da música popular, quer no adocicado das letras do pagode carioca, nas melodias e no modo de colocação da voz do forró nordestino atual em suas várias vertentes, e mesmo nos arranjos de diversos grupos musicais mais recentes, como A Blitz, Os Titãs, Kid Abelha, Metrô, e tantos outros (Arnaldo Antunes explora criativamente diversos ângulos musicais da Jovem Guarda). Paulo Diniz também integra a história da Jovem Guarda, não não aparece nas comemorações dos trinta anos dessa importante vertente da música nacional. A ORIGINALIDADE E O ISOLAMENTO ESTÉTICO Com uma voz rouca e personalística, um leve sotaque nordestino, quase imperceptível, arranjos bem cuidados e gravações de alta qualidade técnica e sonora, a obra musical de Paulo Diniz parece encontrar-se no limbo, atualmente. O cantor-compositor, preso a uma cadeira de rodas, sobrevive dignamente de pequenos shows. Nada sabemos dos seus direitos autorais, de como sua gravadora, ou a companhia que a sucedeu, (que deve ter lucrado milhões com os seus sucessos) o remunera. Em uma entrevista ao repórter Henrique Nunes, de outubro de 2008, ele fala de sua riquíssima trajetória na música brasileira, sempre associada aos grandes arranjadores e movimentos musicais variados como o samba, a soul music, musíca de consciência negra, e ironiza sutilmente a sua rotulação, em um show realizado em São Paulo, como “brega”. Fala tudo com muita tranquilidade, sem ressentimento aparente (este deve estar bem guardado no fundo do coração, mas, quem sabe, se externado desencadearia represálias imprevisíveis). É curiosa e intrigante a diferença entre Paulo Diniz, obscuro, esquecido, empobrecido, amedrontado e algumas cantores e cantoras da atual “música popular”. O primeiro com um currículo e uma produção musical que ajudaram a construir a história recente da música brasileira, tendo influenciado diversos intérpretes do seu tempo e posteriores, em vários estilos e ambientes musicais, encontra-se completamente invisibilizado pela mídia. Estes e estas, sem qualquer contribuição relevante à música do país, às vezes com uma simples canção em uma novela da Globo, ocupam um espaço desproporcional na mesma mídia. Quais seriam as razões dessa desproporção, ou desse degredo perpétuo de Paulo Diniz? No presente caso, não existe nem a desculpa de atos indignos, como no episódio da usurpação do espaço artístico do cantor negro Wilson Simonal. Doeu-me profundamente uma passagem do documentário Simonal - Ninguém sabe o duro que dei, com direção de Calvito Leal, Claudio Manoel e Micael Langer, onde Simonal, debiblitado física e psicologicamente, mas moralmente de pé, pois tentava viver de sua arte, aparece ao lado de Waldik Soriano, outro ídolo popular esquecido, fazendo o comercial de um pequeno “mercadinho” do subúrbio. Paulo Diniz sempre foi politicamente correto. Até demais, compondo canções em homenagem a ídolos da classe média, que nunca lhe retribuíram a cortesia. Como se interpreta esse processo de eliminação radical e sistemática da presença de Paulo Diniz na imprensa e na história cultural brasileira? PRECONCEITO ESTÉTICO: DEVORANDO O CORAÇÃO DO OUTRO Os humanos são seres estéticos. Antes mesmo de sermos sociais, políticos, ideológicos e mesmo físicos, somos seres estéticos. O sentido estético está no âmago de tudo, pois perpassa a integridade do ente, aqui no sentido heideggeriano (todos os seres da natureza possuem forte senso estético, no mesmo grau do instinto de sobrevivência. O maior temor dos seres vivos, maior mesmo que o medo da morte – dos humanos, inclusive – é de algo que lhes desfigure a aparência). Excluir esteticamente o outro é devorar-lhe o coração. Assim, a estética está na cultura e no plano fisiológico, também, isto é, no “fora” e no “dentro” do humano. No Brasil, além dos preconceitos social, racial, de opção sexual e de gênero, campeia o preconceito estético. Este tipo de preconceito é cruzado e potencializado com os outros já citados como o racial, o social. Por ser uma das mais importantes manifestações artístico-culturais do nosso povo, a música popular é o seu mais cruento campo de batalha. Paulo Diniz parece ser vítima do preconceito estético. O SOTERRAMENTO DE UM MONUMENTO DA MÚSICA BRASILEIRA Navegando na internet, registro, com alegria, a existência de “fã-clubes” de Raul Seixas, Nelson Gonçalves e Luiz Gonzaga (Jackson do Pandeiro, embora uma unanimidade entre os críticos, não possui, inexplicavelmente, o mesmo espaço). Entretanto, percebo, intrigado, a quase inexistência de fãs organizados de Paulo Diniz. No site Letras.com, que abriga os fã-clubes de diversos artistas, Paulo Diniz possui apenas cinco fãs (acesso ao site em 13 de junho de 2011). Está, também, informado no site: “Este fã-clube é o 2206° mais popular do site em quantidade de membros”. Existiriam 2205 cantorescompositores da música brasileira mais relevantes do que Paulo Diniz? O cantor não possui sequer o seu “site oficial” . Na internet, o termômetro da reputação de qualquer ídolo, Paulo Diniz possui pouquíssimas referências, se comparado aos demais grandes nomes da música brasileira. Paulo Diniz figura na internet como um artista pouco importante. Stuart Hall afirma que a representação na mídia não reproduz o mundo real, mas cria novos significados para os fatos. É como se a mídia criasse os próprios fatos em formato televisivo, radiofônico, cibernético. Nessa distorção produzida pela mídia, geralmente orientada por questões ideológicas, estéticas, culturais e/ou econômicas, encontra-se o “gap”, termo que Hall utiliza para denominar o ponto contraditório por onde deve penetrar a análise crítica do trabalho da mídia. A exclusão da imagem de Paulo Diniz da grande mídia brasileira parece estar ligada aos ditames da ideologia estética. Penso que é impossível separar o ético e o estético. Há uma ética em todo ser constituído esteticamente. A música e o canto de Paulo Diniz sempre estiveram a serviço de uma cultura brasileira plural, integrando elementos da cultura nordestina de influência negra, com influências dos toques da viola e da ritmia do samba. O processo de ocultamento da figura de Paulo Diniz pode conter, também, o entrecruzamento de elementos da discriminação regional, racial e estética. O entrecruzamento desses componentes potencializa o preconceito estético. Pela teoria de Stuart Hall, a idéia de que não existiu o cantor-compositor Paulo Diniz, ou que existiu apenas um artista pouco importante para a música popular do Brasil, é o significado produzido pela mídia. Para reverter isto, é necessário que fãs, pesquisadores e pessoas do mundo midiático trabalhem no sentido de resgatar a dimensão e a importância real de Paulo Diniz, isto é, um processo de engajamento e militância cultural, com a participação da mídia. DA CORDIALIDADE À CRUELDADE Esta breve narrativa cultural não resulta de nenhum ressentimento, sentimentalismo ou anacronismo histórico, isto é, a tentativa de corrigir a história, a partir do ponto de vista contemporâneo. Os objetivos aqui são, tão somente, comentar a passagem da música brasileira para a “pós-modernidade” e questionar a manipulação do valor histórico dos ídolos musicais do povo brasileiro, demonstrando como se constrói discursivamente a história da música brasileira, unilateralmente, pelos que possuem voz e acesso à cultura letrada. Se observarmos atentamente o papel reservado aos negros nos filmes nacionais até a década de 70, veremos que, geralmente, eles eram retratados como figuras risíveis, ou dóceis, em papéis ridículos e secundários, contrastando em tudo com o protagonismo dos galãs e heroínas brancas. Estes eram, também, os papéis reservados para os negros, em todos os setores do mundo da vida, no Brasil. Negros como Paulo César, jogador de futebol, e Wilson Simonal eram considerados “boçais”, pois emitiam opinião publicamente e pareciam estar seguros. Paulo Diniz, aparentemente, não se enquadra no estereótipo lançado às duas personalidades citadas, fruto do preconceito. Tampouco, como dissemos acima, jamais cometeu qualquer desvio do politicamente correto, na sua vida pública, ou privada, que se tenha notícia. Sua música, rica e culturalmente diversificada, sua postura consciente quanto à situação do negro na sociedade brasileira e a sua noção da importância da música soul para a auto-estima dos afrobrasileiros deveriam estar coladas à sua reputação. Às vezes a razão de grandes fatos sociais pode encontrar-se em um detalhe. A estética da classe média só admite a entrada da arte do outro se esse produto artístico passar pelo processo de estetização. Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro somente são assimilados pela classe média se processados por Caetano, Gil, Lenine, isto é, através de uma tranformação para um estilo “progressive”, isto é, a música de raiz acrescida de informações de uma estética mais complexa, embora não necessariamente superior. A música de Paulo Diniz sempre transitou na fronteira entre a cultura de massa e a música de classe média, embora seu prestígio sempre tenha sido maior nas classes populares. Isto, talvez, tenha colocado Paulo Diniz para fora da condição de “tutelado”, isto é, aquele verdadeiro artista popular que é “descoberto” e apresentado à classe média, como uma curiosidade, como Cartola. Se os arranjos das músicas de Paulo Diniz já continham complexidade suficiente, isto teria dificultado o processo de “tutela”, pelos “descobridores” musicais da classe média. Isto explicaria a quase inexistência de regravações dos trabalhos de Paulo Diniz, (exceto pelo Kid Abelha) mas não o seu desaparecimento quase completo. De onde partiu, então, e como ganhou corpo a idéia da sua deportação da história da música brasileira, se nem ao menos uma desculpa havia para isso? Uma condenação sem acusação, como no Processo, de Kafka? O quanto devemos a Paulo Diniz, o qual nos ajudou a suportar e vencer a mediocridade dos anos da ditadura, com sua arte alegre e, ao mesmo tempo, original e profunda, pois é sobretudo verdadeira? Ainda haveria tempo de reparar a rasura do nome de Paulo Diniz da nossa história? Ou devemos deixar as coisas como estão e mudarmos, de vez, o bordão desgastado da “cordialidade” para a crueldade brasileira? Não interessaria, ao autor deste escrito, veicular aqui uma conotação de “denúncia”. Trata-se mais de uma constatação e uma consternação. Tampouco adiantaria questionar, aqui, pessoas, instituições: questiono, sim, a cultura e a estética de classe média no Brasil, que ainda pratica a “reserva de vagas” para seus filhos, netos e apadrinhados na sua historiografia provinciana. Para incluí-los, alguém tem que sair.