111 Revista Filosofia Capital Vol. 9, (2014) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 UMA NOVA CONCEPÇÃO DE VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA A NEW REAL DESIGN AS CORRESPONDENCE DONATO, Cláudio1 RESUMO A relação entre Ser e Tempo e A questão da técnica é a relação entre o martelar do martelo e o pensar calculador do homem gestéltico, em correspondência ao apelo da técnica. Esta constatação abre novas perspectivas e nos coloca diante de um novo modo de pensar a verdade por correspondência, não no sentido lógico, mas no sentido ontológico. Qual a relação entre Gestell e Ereignis? O Dasein humano corresponde ao apelo da técnica, e ao corresponder realiza o evento apropriador que, fenomenologicamente, é uma verdade. Palavras-Chave: Correspondência; Comprometimento; Verdade; Técnica. ABSTRACT The relationship between Being and Time and The question of technique is the relationship between the hammer and the hammer think the calculator gestéltico man, in correspondence to the technique of appeal. This finding opens up new perspectives and presents us with a new way of thinking the truth by correspondence, not in the logical sense, but in the ontological sense. What is the relationship between Gestell and Ereignis? The human Dasein corresponds to the technique of appeal, and the match performs grabber event that phenomenologically is true. Keywords: Correspondence; Commitment; Truth; Art. 1 Mestrando em Filosofia (Ontologia e Fenomenologia) – Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista da CAPES. Áreas de reflexão e pesquisa: Metafísica, Ontologia, Fenomenologia, Hermenêutica. E-mail: [email protected]. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 112 Revista Filosofia Capital Vol. 9, (2014) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 Introdução Aristóteles, no segundo livro do Organon, chamado Da Interpretação (Περὶ ἑρμηνειας), elabora o que se entendeu por verdade, deste aquele tempo grego. Em suma, para Aristóteles a verdade não está simplesmente no enunciado, nem está somente na coisa enunciada, mas está na correspondência do enunciado com a coisa enunciada. A verdade estaria, assim, no pensamento dito na linguagem. Mas somente isto por si só não dá conta da totalidade da verdade; é necessário, antes, uma correspondência adequada entre enunciado e coisa. Para se confirmar ou verificar um enunciado, no entanto, não basta dizer que se trata de um enunciado verdadeiro; mas é preciso encontrar a verdade dita no enunciado. Esta verdade está presente na coisa (ente) ou na ação (práxis). Ou seja, a verdade da proposição depende da verdade da coisa ou ação, ou de sua existência verdadeira. O enunciado, deste modo, depende inexoravelmente de uma realidade. A tese, defendida aqui, de que Heidegger inaugura uma nova modalidade de verdade como correspondência, não deve, no entanto, ser entendida como uma “acusação” à Heidegger, que poderia ser tomado como aquilo a que ele sempre criticou: um metafísico. No sentido tradicional do termo metafísico, certamente de Heidegger isto não poderia ser dito. No entanto, se metafísico for sinônimo de filósofo, sem dúvida a identidade de confirma. A verdade como correspondência no sentido metafísico tradicional é entendida em termos de uma lógica ou epistemologia. No sentido a que me refiro aqui, verdade por correspondência tem um sentido profundamente ontológico-fenomenológico. Trata-se da ontologia fundamental da modernidade (Neuzeit), cujo espírito que paira sobre homens e deuses chama-se técnica. Em sua essência, a acontecência da técnica carrega a dupla significatividade do conceito Gestell-Ereignis: a verdade maquínica como acontecimento da maquinação. O evento apropriador (Ereignis) da técnica (Gestell2) como verdade é um apelo que tem como correspondente o ser humano, no modo de pensar gestéltico3 ou calculador. No que a técnica exige ou apela pela determinação algorítmica do cálculo, o homem corresponde, simplesmente calculando ou agindo racionalmente. Em termos metafísicos, a modernidade revela-se verdadeira a partir de sua essencialização mais radical. Esse evento, cujas origens remontam à antiga Grécia, recebe o nome de técnica. A verdade da técnica é uma verdade como acontecimento, como evento apropriador (Ereignis). Heidegger indica um duplo perigo em relação a este evento. Em termos ontológicos, há perigo porque, sendo a verdade do ser exatamente o seu esquecimento, todo o pensar reduz-se ao cálculo. O esquecimento do ser, no entanto, é também parte da história do ser, e por isso mesmo é uma verdade. O pensamento representativo calculador expressa esse esquecimento e, ao fazê-lo, não questiona o perigo por trás da desenfreada superprodução. Sem a reflexão filosófica ou outra saída para o pensamento, o ser-aí (Dasein) se converte em representante incontornável do apelo gestéltico. Em termos ônticos, o perigo imanentemente estabelecido é o de extinção da própria humanidade: a bomba atômica é o exemplo máximo desse perigo. Correlato à bomba, como mal supremo, é o sistema de extermínio engendrado pelo partido nazista. A realização da essência da técnica, no entanto, consiste numa verdade por 2 A essência da técnica, Gestell, significa maquinação. 3 Adjetivo derivado de Gestell, para dar o sentido originário de forma, conformidade e adequação. Características essenciais da técnica racionalizante. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 113 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 correspondência no sentido de uma adequação iniciada há muito tempo, pelo homem. E somente por esta origem humana da técnica já somos culpados (Schuld) e estamos, por isso, comprometidos (Verschulden) com esse evento e seu desenvolvimento. Estamos comprometidos, portanto, com esse ser que nós mesmos não somos originariamente, mas que iniciamos uma vez e cujos desdobramentos se tornaram incalculáveis, apesar do cálculo; e cujas proporções se tornaram gigantescas, em essência nem além nem sob direção do fazer humano. O que foi gerado pelo humano foi gerado por um saber, daí nosso comprometimento: estamos comprometidos porque sabemos o que fizemos. E este saber colocou em obra no mundo, forças desconhecidas e invisíveis da natureza, cuja essência não conhecemos em seu mistério, mas manipulamos em sua invisibilidade, como se fossem coisas visíveis. Ao tornarmos visível o invisível ficamos sem lugar no mundo onde esconder, por exemplo, o lixo atômico. Nem há um lugar fora do mundo onde caiba os resíduos do perigo engendrado pela técnica e por nós mesmos, em correspondência. Apenas aparentemente, a manipulação de material atômico (ou subatômico) para fins medicinais tem em si um propósito e um princípio bons. Mas em essência, o princípio que gera a bomba e cura o câncer é o mesmo princípio invisível e “indivisível” do átomo. O que antes era considerado indivisível (átomo) hoje é o princípio da divisibilidade absoluta: destruição e extinção. O questionamento da técnica em sua Verdade: comprometimento e correspondência Tudo o que é essencial, não somente o essencial da técnica moderna, em todos os lugares, se mantém oculto por mais tempo. Não obstante, permanece referido a seu imperar enquanto o que antecede a Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. tudo: o que é primordial. […] Aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final (HEIDEGGER, 2007, p. 386). É no fim que se vislumbra o primeiro começo, a origem. Heidegger reconhece a antecedência cronológica e, portanto, historiográfica da ciência exata da natureza (teoria física) em relação à técnica moderna. Mas o elemento técnico já naquele momento se instalava, subsistindo, como Gestell. A ciência exata é historiograficamente anterior à moderna técnica, mas, historicamente é posterior; posto que a técnica, em sua essência, a precede. Justamente porque é a técnica que impera como o primordial. O primordial é anterior. Assim, a física já guardava a essência da técnica e já preparava “o recolher que desafia no desabrigar requerente”: a própria técnica (HEIDEGGER, 2007, p. 386). A técnica nos provoca e, assim, nos convoca. A técnica se apropria do tempo e do ser humano na provocação que apela por correspondência. Corresponder ao apelo é, ao mesmo tempo, realizar e ser realizado pela técnica. Ou seja, ao corresponder ao apelo gestéltico, o ser-aí se realiza enquanto ser humano e realiza a destinação histórica: a própria técnica como evento apropriador. Há, assim, um comprometimento entre seraí e técnica. Para compreendermos o que nomeio aqui como comprometimento, estabeleço a comparação que considero definitiva entre Ser e Tempo e A Questão da Técnica: [...] O martelar não somente não sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. [...] (HEIDEGGER, 2006b, p. 117). O martelar se apropria do martelo (ente intramundano) pré-tematicamente, como ser e sentido do martelo; do mesmo modo, também a técnica, como evento Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 114 Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 apropriador se apropria préconscientemente, da nossa época e, em correspondência, do ser humano. O ser humano é o martelo de que o martelar gestéltico se apropriou. E somente houve esta apropriação porque, na essência, o ser humano corresponde a esse apelo, de modo que “uma adequação mais perfeita não seria possível”. Da incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual podemos extrair a exata noção do que o pensador da Floresta Negra chamou de apropriação e comprometimento. Só há apropriação porque, de algum modo, há uma correspondência, na correspondência comprometem-se “causa” e “efeito”. Não é óbvia, no entanto, a relação entre o martelar e o calcular. O martelar é um modo de ser de um ente simplesmente dado; já o calcular é um modo de pensar de um ser que não se torna nunca, do ponto de vista existencial, simplesmente dado. É esse comprometimento que chamo verdade por correspondência em sentido ontológico. Ou seja, a im-posição gestéltica provoca e convoca o homem para que ele, a partir desse fundamento ontológico-epocal, se reafirme como animal racional, arrazoando a si mesmo e a todo ente. A esse enquadramento – apelo da Gestell – André Duarte chama de dispositivo: É nesse sentido que a técnica moderna, pensada essencialmente, não é um mero fazer ou agir humanos. Antes, pelo contrário, as ações humanas na época da técnica são uma resposta ao dispositivo (Gestell), o qual não não se confunde com qualquer objeto tecnológico particular, mas constitui o horizonte do desocultamento no qual agimos e orientamos nossos projetos em nossa época (DUARTE, 2010, p. 150). Nesta nova concepção de verdade por correspondência, a “identidade desigual” demarca a relação entre homem e ser e, mais primordialmente, entre Gestell e Ereignis. Na diferença ontológica fundamental reside a demora rememorativa do perigo e, em correspondência, da própria salvação (Rettung): é neste lugar de perigosalvação que o pensamento rememorativo da lembrança ou memória do ser tem sua vez: Apenas ali onde surge o maior perigo, torna-se possível pensar o próprio perigo em sua essência e, assim, instaurar uma relação livre com o próprio ser, um deixar ser que não vise a planejar e esquadrinhar tudo o que é: pensar verdadeiramente a técnica em sua essência é, portanto, responder a um apelo liberador, restituindo-se a correspondência [originária]4 rompida entre homem e ser. Nesse sentido, o Gestell seria um “negativo fotográfico”5 do Ereignis, do acontecimentoapropriador que designa a identidade desigual entre homem e ser, deixando entrever o prelúdio de outro começo. Esse outro começo não significará o abandona da tecnologia, mas demarcará uma nova relação pensante e rememorativa para com o modo de descobrimento técnico do ser dos entes e, talvez, venha a permitir uma nova relação para com os próprios instrumentos tecnológicos (DUARTE, 2010, p. 157). Nesse horizonte técnico, correspondemos, em primeiro lugar e originariamente no modo da adesão ou escuta ao apelo e, a posteriori, senão a fortiori, correspondemos logicamente, ao afirmarmos de modo radical a supremacia do traço antropológico fundamental: a racionalidade ou, mais propriamente, a lógica e a epistemologia: tudo pode e deve ser conhecido. A causalidade perde seu caráter originário e é pensada em seu aspecto instrumental, ou seja, apenas a partir dos efeitos planejados, calculados e controlados. O homem é sempre uma verdade 4 5 Grifo meu. Conforme Seminário de Le Thor, de Heidegger. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 115 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 correspondente e intermitente entre a verdade e a não-verdade. De outro modo não haveria o nexo ôntico-ontológico. É nessa intermitência que ora se afirma homem ora se afirma Dasein. Um homem, no entanto, nem sempre é Dasein, mas Dasein é sempre homem. O lugar do ente chamado homem é o lugar incontornável do ser simplesmente dado. Paradoxalmente, o homem não pode ser tomado como um ser simplesmente dado ou um manual ou um instrumento, pois o homem é o ente desse ser que nós mesmos somos. O homem é, portanto, um ser “mais que simplesmente dado”. Mas onde se situa o homem, em sua existencialidade? Na dobra entre Gestell e Ereignis se situa o homem, pensado originariamente, como Dasein. Sua determinação antropológica normalmente se adere com mais facilidade à Gestell, por seu apelo arrazoador, raciocinativo. Se se fosse possível separar Gestell de Ereignis, poderíamos dizer que o homem está para a Gestell, assim como o Dasein está para o Ereignis. No entanto, é na diferença ontológica entre Gestell e Ereignis que se situa o Dasein. A situação (Befintlichkeit) do Dasein em relação a Gestell e Ereginis não pode ser pensada simplesmente em termos de uma causalidade. Se assim fosse teríamos de reconhecer o Dasein simplesmente como um mero meio, segundo o qual a Verdade como evento apropriador (Ereignis) se realizaria enquanto Gestell. Heidegger, no entanto, pensa outro tipo de explicação para o que se entende tradicionalmente por causalidade, no sentido de se buscar um fim ou um objetivo. O fim é o início da coisa criada, é o seu télos, na interpretação de Heidegger. A causa é entendida como um comprometimento entre o que primeiro causou e que, no presente mantém o “efeito”. As causas se mantém causando no télos, na articulação entre as causas do ente, que o deixam situar no mundo. Na situação de mundo comprometem-se mutuamente Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. presente, passado e futuro. É esse o mesmo sentido da explicação em Ser e Tempo sobre nossa dívida com o tempo. Somos “culpados” por existir, simplesmente porque existimos. À medida que existimos, estamos comprometidos com o que nos causa e com o que causamos. Somos culpados por existir, pois estamos comprometidos com nós mesmos. Esse comprometimento se amplia quando, convocados pela Gestell, correspondemos ao seu apelo, simplesmente calculando. Essa correspondência já é uma “cumplicidade”, um comprometimento. “O comprometimento tem o traço fundamental desse deixar situar (An-lassen) no sentido de um tal deixar situar”. (HEIDEGGER, 2007, p. 379). É nessa situação que o nãopresente se presenta, se produz como poiesis. “A physis é inclusive poiesis no mais alto sentido” (p. 379), pois é autopoiética (HEIDEGGER, 2007, p. 377-380). Na sua origem, a técnica mais antiga, entendida como techne, já pertence à poiesis. Tanto techne como episteme são modos de desabrigar, e “ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. Significam ter um bom conhecimento de algo, ter uma boa compreensão de algo. O conhecer dá explicação e, enquanto tal, é um desabrigar” (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Também a técnica moderna é um desabrigar, mas não no sentido da técnica manual mais antiga, como um desabrigar da poiesis. A técnica mais antiga tinha o sentido poiético em harmonia com a physis, que deixava desabrigar a produção como cultivo. A physis transformada em natureza, determinada pela ciência exata, é então, um desabrigar que desafia o cultivo como produção. Assim, não se trata mais de um cultivo propriamente, mas de uma provocação que transmuda a physis em natureza e, nesse sentido, provoca à produção, tendo o ser humano como medium desse processo. A técnica provoca e convoca homem e natureza. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 116 Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poiesis. O desabrigar imperante da técnica moderna é um desafiar <Herausfordern> que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices giram, na verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da corrente de ar para armazená-la (HEIDEGGER, 2007, p. 381). No que o antigo camponês cuidava e resguardava6, a moderna técnica desafia, desabriga e reserva em estoques. “O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). O produzir da poiesis, segundo Heidegger, leva o que está oculto ao seu desocultamento. O processo poiético é, portanto, alethéico. Alétheia significa desvelar. E o que se mostra no desvelamento é a verdade. A verdade como representação é o ocultamento da verdade como alétheia. Do mesmo modo, a técnica pensada como meio para fins é um encobrimento do seu ser que, encoberto, permanece não-questionado. A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Mas se o desabrigar da técnica não é uma determinação antropológica, qual o papel do homem nesse jogo? O papel do humano é o papel da representação e da correspondência a um apelo. É da “natureza”7 do homem o corresponder e o representar. É esse o mesmo sentido, de correspondência, que Heidegger ilustra com o exemplo do “funcionário da técnica”. Está o homem a serviço da técnica quando a apoia fervorosamente e também quando a nega absolutamente. Negar ou aceitar são ambas atitudes cegas, correlatas das concepções de mundo e das ideologias em geral. A técnica em sua essência não é realizada pelo homem simplesmente, pelo contrário, ao corresponder ao apelo gestéltico é a técnica que efetua o homem. O homem nem perfaz nem efetua a técnica. Mas essa armação (Gestell) é um modo de desabrigar, é alétheia, e, assim, torna verdadeira a moderna ciência da natureza, desabrigada da physis e entendida agora como representação, como natureza. Objetivada como natureza, tornada objeto para um sujeito, ela corresponde à “postura requerente do homem”, que funda a ciência exata da natureza. […] Seu modo de representar põe a natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo. A física moderna não é, por isso, física experimental porque coloca em ação aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário: porque a física põe a natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia (HEIDEGGER, 2007, p. 385). Heidegger reconhece que a ciência exata da natureza, em termos historiográficos, é anterior ao advento da técnica moderna, mas somente em termos 7 6 Resguardar significa guardar com cuidado. Natureza não no sentido de essência, mas como um dos modos de ser humano. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 117 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 historiográficos. Em termos históricos8, a teoria física da natureza se mostra como uma preparação para a essência da técnica. Ainda que a historiografia relate os fatos objetivamente registrados no tempo, na origem da essência da técnica moderna, como toda essência, deve ser entendida no horizonte da temporalidade e da historicidade, conforme os parágrafos 72 e subsequentes de Ser e Tempo: A análise da historicidade da presença [Dasein] busca mostrar que esse ente não é “temporal” porque “se encontra na história”, mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque, no fundo de seu ser, é temporal. (HEIDEGGER, 2006b, p. 468). O essencial, segundo Heidegger, é aquilo que a tudo antecede do ponto de vista da historicidade e, portanto, de relevância histórica. O que é primordial a um ente se revela como sua essência. Mesmo que sua preparação a anteceda – como toda preparação – do ponto de vista cronológico. Por esse motivo, “aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final” (HEIDEGGER, 2007, p. 386). Sem pensarmos esse início ou origem, não questionaremos de modo radical as bases da técnica. Não questionada em suas bases a técnica moderna é entendida como “ciência da natureza aplicada”. Somente no questionamento ou problematização da técnica é que sua essência se revelará para nós. A técnica, como já foi esclarecido, não está além de um fazer humano, embora não seja dirigida pelo homem. O desabrigar da armação “não acontece somente no homem e, decididamente, não por ele”. (HEIDEGGER, 2007, p. 387). Esta ambiguidade é comum a toda essência. O homem guia e é guiado pela técnica. 8 Para melhores esclarecimentos sobre a diferença entre historiografia (Historie) e historicidade ou história (Geschichte), vide os parágrafos 72 a 77 de Ser e Tempo. Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. Heidegger afirma que a essência da técnica é ambígua, da mesma forma que a essência de todas as demais atividades humanas o são, porque fecha e, ao mesmo tempo, revela. (Como? O pensador não deixa claro: será porque essa essência cria condições de refletir sobre a verdade a respeito de nosso modo de ser?). Porém, a armação (Gestell) carrega consigo um risco muito maior, quando pensamos a forma e o tipo de exigência que nos coloca. A reificação que ela promove pode levar ao completo esquecimento da essência da verdade, que é abertura tanto quanto fechamento, e, no limite, à supressão do próprio ser humano. (RÜDIGER, 2006, p. 148). Um dos perigos da vigência da técnica, do ponto de vista ônticoontológico, é a permanência e de seu modo típico de pensar, de abrangência algorítimica e cibernética. A técnica tem um modo próprio de pensar. O homem apenas corresponde a esse modo de pensar, de modo que, de fato, não é o homem quem pensa a técnica, mas é a técnica o que pensa o homem gestéltico. Assim desafiado, o homem responde a apropriação e transforma-se, também ele, em martelo. Entendida como abertura ontológica, a essência da técnica reúne o ente na totalidade, inclusive o homem, num único monolito. Nessa reunião, tanto homem como natureza são disponibilizados como reserva de recursos: recursos naturais e “recursos humanos”. Indistintos, homem e natureza reina a indiferença. Não havendo mais diferença, busca-se o que há de comum e, portanto, subsistente em cada coisa. [...] foi somente sob o impacto desafiador da técnica moderna, pensada em sua essência como nova forma de desocultar, como nova clareira do ser, que a natureza e a natureza humana puderam ser fixadas ontologicamente como itens do fundo de reserva subsistente (Bestand), permanecendo disponíveis para serem Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 118 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 tecnologicamente manipuladas, criadas ou destruídas, como o atestam a engenharia genética e as inúmeras formas de destruição violenta de massas humanas. Essa clareira em que os entes agora aparecem não pode ser pensada como originada das ações humanas, nem pode ser controlada pelo homem, visto que ele não pode regular, controlar ou deter o horizonte do desocultamento no qual ele se encontra agora lançado. (DUARTE, 2010, p. 152). A comunidade homem-natureza retira do mortal a sua singularidade e, junto com ela, o fator poiético, para juntar tudo no laboratório único do cientista. Lá mesmo, onde todo o mistério é banido. Onde todo mistério é o ainda-não... O ainda não-ser simplesmente dado. Ainda-não descoberto pela ciência, de modo explicativo e didático. Ora, mas é mistério recusado a própria abertura para o ser. Pensar a memória (Andenken) do ser é sempre pensar o mistério de ser. Nessa nova forma de pensar, no modo rememorativomeditativo-comemorativo (Andenken), a técnica em sua essência não é negada, nem afirmada, nem desafiada: Trata-se aí de uma relação não frontal, que não desafia o desocultamento técnico, mas que atinge por meio de uma distorção hermenêutica que visa a extrair as consequências liberadoras do próprio advento da técnica. Heidegger mesmo enfatiza que, pensada em sua essência, a técnica moderna mostra ser profundamente ambígua, pois guarda consigo tanto o extremo perigo quando o poder da salvação. Pensá-la em sua ambiguidade misteriosa é pensá-la em seu caráter historial, como um envio que requer a participação do homem, entendido como aquele que consente em ser empregado para resguardar e proteger a essência da verdade, isto é, o mistério de um modo de desocultar. (DUARTE, 2010, p. 158). Será que se demorarmos no perigo Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. extremo da técnica, poderemos vislumbrar a possibilidade de um recomeço do pensar? Não um recomeço do mesmo, mas um recomeço de uma nova forma de pensamento que comemore a lembrança do ser, há muito esquecido? A meditação do ser é o que guarda a memória (Andenken) do ser: no pensamento meditativo, rememoramos e, assim, comemoramos o ser. E este modo de pensar rememorativomeditativo é uma possível saída poiética para o pensamento, um possível recomeço para o pensar. No aberto existencial e historial a clareira (Lichtung) torna possível o evento (Ereignis) como técnica (Gestell) e torna possível também a sua superação. Nessa superação pelo pensar, não se afirma, nem se nega, nem se desafia: mas abre nossa existência do acontecer do ser. Pensar a essência da técnica (Gestell) parece agora insuficiente. É preciso pensar a essência da Gestell. A essência da essência, ou seja, a verdade: Ereignis. Para o filósofo de Ser e Tempo, somos conduzidos (Geschick) ser-historialmente por um destino. No entanto esse envio histórico é também um desabrigar, é poiesis. E, assim, retornamos ao início, no solo do qual, frente ao niilismo do encobrimento do ser, pode, no perigo, crescer também a salvação. Que perguntas, agora que voltamos ao início, devemos nos colocar? Que possíveis saídas surgem “onde floresce o perigo”? Gestell-Ereignis: verdade, perigo e salvação A essência (Wesen) da técnica é um acontecer, cuja verdade chamamos Ereignis. Assim, Gestell é verdadeira como Ereignis (evento-apropriador): no sentido da positividade apeladora (Gestell) em relação à negatividade epocal (EreignisSeinsgeschichte). Ereignis é a Lichtung (clareira) ser-historial; a clareira que antes, em Ser e Tempo, Heidegger atribuía ao aberto da existência. O que a clareira Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 119 Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 mostra, agora, é o próprio evento (Ereignis) como verdade. A verdade da modernidade é, essencialmente um modo de se trazer os entes ao desoculto. Essa verdade é serhistorialmente chamada Gestell (armação): a essência da técnica. Gestell é um modo de desvelamento da verdade epocal. Essa verdade (Ereignis) é desvelada ao modo da Gestell, mas se meditarmos ou demorarmonos na Andenken desse evento, será possível o surgimento de uma nova via para o ser e para o pensar e, consequentemente, para se pensar a verdade do ser. Como podemos relacionar verdades essenciais de modo livre? Ou seja, como “abrir nossa existência” para a essência da técnica, sem nos submetermos inexoravelmente a ela? É possível ainda uma escolha? Poderíamos empregar os objetos técnicos e, simultaneamente, em seu uso próprio, mantermo-nos livres em relação a eles, de modo que pudéssemos abrir mão deles a qualquer momento. Poderíamos tomar os objetos técnicos e usá-los como eles devem ser tomados. Ao mesmo tempo, poderíamos deixá-los repousar como algo que não se infiltra no que nos é mais íntimo e próprio. Podemos dizer “sim” ao uso inevitável dos objetos técnicos, e podemos simultaneamente dizer “não”, na medida em que os impedimos de nos reclamar de maneira exclusiva, deformando, confundindo e, por fim, desolando nossa essência. (HEIDEGGER (Gelassenheit), apud Duarte, 2010, p. 154). Na essência do ser-aí está a abertura exclusiva para pensar o ser. O ser se pensa na serenidade. Essa postura de serenidade (Gelassenheit) é a maneira como Heidegger pensa o modo Andenken de pensar: o pensamento da lembrança (memória) do ser: rememorativo-meditativo. Somente esse modo de pensar pode iluminar e ser iluminado pela Ereignis. Nesse sentido, Ereignis é o próprio destino se realizando como acontecer do ser. Esse acontecimento não é outro que a própria Gestell. A tarefa do pensamento, do novo pensamento, seria exatamente encontrar um outro caminho para pensar o ser, de modo a encontrar, poeticamente, as possibilidades de ser dadas desde sempre, mas somente vislumbradas. Uma livre relação para com a Gestell significa a possibilidade do advento de um novo acontecer, um novo Ereignis, não mais gestéltico, quiçá poético. Se a metafísica ocidental se sustenta sob a égide da razão do homem, ou do homem de razão, sua realização e consumação apontam para a superação do homem antropológico ou, ao menos, seu questionamento. Do mesmo modo que o questionamento da técnica não visa simplesmente sua superação, mas abrir uma “livre relação” essencial entre homem e técnica. “A relação Gestell-Ereignis vem questionar, de modo radical, a metafísica ocidental e sua definição de “homem” que, como se sabe, se mantém à luz da célebre fórmula aristotélica do ζον λογον εχον.”9 (BOLTON, 2006, p.3). É no questionamento desse conceito de homem, no questionamento do homem como animal racional ou dotado de logos (“ζον λογον εχον”), que se situa o pensamento filosófico como tal. Ou seja, pensar filosoficamente é pensar a diferença. A suposta identidade racional ou universalidade daquilo a que chamamos razão, no homem, nada mais é do que um de seus traços – talvez não o fundamental – advindo a partir de algo mais originário: sou racional porque existo temporal e historicamente, e não o contrário. Pensar o homem nesse sentido, é pensá-lo a partir de uma verdade originária (alétheia). Do mesmo modo que a poiésis, a técnica em sua essência é um modo de desocultar e, portanto, é alétheia. No entanto, enquanto o desocultamento poiético deixa aparecer ou leva o oculto ao 9 Tradução livre. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 120 Revista Filosofia Capital Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. ISSN 1982 6613 desoculto, a técnica desafia o oculto. A técnica, então, desafia o oculto a partir do enquadramento da Gestell: todo oculto deve se desocultar a partir desse “paradigma” ou modo específico de desvelamento. Por isso o ente na totalidade deve se adequar a este esquema sempre prévio, que prevê metas e calcula resultados. Tanto os meios quanto os fins (resultados) são igualmente planejados, replanejados e controlados. Esta retroalimentação do sistema tem inspiração cibernética: o que o representante da Gestell pretende é governar a si e ao mundo: ambos subsistentes como estoque e disponibilizados como meios. Ao corresponder ao apelo da Gestell, o homem é desafiado e aceita o desafio de permanecer na essência desse acontecer. Gestell é, portanto, um pôr à mostra, mas em tom desafiante, diferentemente do trazer ao desocultamento da poiésis – um deixar ser o que já se é. Na correspondência ao apelo gestéltico, o próprio homem se coloca, conscientemente ou não, na posição de reserva subsistente: o homem é só mais um recurso natural. enquanto radicalidade, o lugar do existente (Dasein) enquanto tal. Noutras palavras, nessa dobra do “entre” da diferença, é a própria temporalidade e a historicidade que se articulam como o âmbito do genuinamente humano. É nessa abertura fundamental (Ereignis-Gestell) que o ser se apresenta ao homem. Na “linguagem”, ou na fala mais propriamente, o ser seria dito ou se diria pela boca do homem ou do poeta, mais originariamente. Por isso a indicação heideggeriana de uma possível saída poética (poiética) para o pensamento. Porque a poesia ainda seria esse puro pensar no sentido originário da memória (Andenken) do ser, no sentido de um produzir originário. Na memória e rememoração do ser, é o próprio ser que é pro-duzido poieticamente. Um dos melhores caminhos para se chegar à Ereignis é dirigir nossa visão para a essência da Gestell, como uma passagem da metafísica para um outro pensamento (…) Gestell (o dispositivo, como unidade reunidora de todos os modos de stellen, do “pôr”) é o acabamento e consumação da metafísica e ao mesmo tempo a preparação desocultante da Ereignis”.11 (HEIDEGGER, M. “Seminario de Le Thor 1969” Editorial Alción, Córdoba, 1995, pág 66. Apud Bolton, 2006, p.6). A relação Gestell-Ereignis: a relação entre perigo e salvação Que relação existe entre a Gestell como essência da técnica moderna e a Ereignis? (…) Este último aparece, pois, como o “negativo fotográfico” do primeiro. Mas o que significa aqui que Ereignis seja, pois, o “negativo fotográfico”? Adverte-se, então, que entre Gestell e Ereignis parece haver uma dobra (un pliegue) (...) 10(BOLTON, 2006, p.2). Nessa dobra ou diferença ontológica fundamental entre Gestell e Ereignis reside o próprio homem, entendido como ser-aí (Dasein). (BOLTON, 2006, p. 2). É, portanto, no não-lugar da diferença radical, enquanto diferença e 10 Tradução livre. Somente pensando o evento de modo radical é que se pode reconhecer um recomeço. Se a técnica é o resultado último do projeto metafísico, ou a consumação da metafísica como tal, então, no limiar desse acontecimento historial pode-se vislumbrar a novidade do pensar. Esse novo modo de pensar é indicado pela consumação da técnica como acontecimento. No entanto, essa consumação tem um duplo sentido: um sentido de perigo e um sentido de salvação. A salvação não tem um sentido soteriológico, mas um sentido 11 Tradução livre. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 121 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 fenomenológico, ou seja, a salvação em relação à técnica significa deixar sua essência florescer, crescer, de modo a tornar possível, a partir desse reconhecimento, dizermos “não” à técnica. “Sim” e “não” devem ser possibilidades simultâneas não excludentes quando se relaciona livremente com a essência de um ente. Uma livre relação com a essência da técnica (Gestell) significa: o pensamento técnico é de fato abrangente, mas não é e nem pode ser o único modo de pensar. A partir disso podemos dizer “sim” e “não” à técnica. Para Heidegger, a própria destinação da Gestell colocou o homem em “perigo”. Em que consistiria, pois, este “perigo”? Nem mais nem menos do que o homem desvie a visão e interprete todo o desvelado somente à luz da Gestell. Assim, o perigo que traz a técnica moderna é, precisamente, que este modo de desocultar se enraíze no homem como o único possível. 12(BOLTON, 2006, p.8). O que a Gestell oculta, ao apelar e desafiar o homem é exatamente o outro modo de desvelamento, mais originário: a poiética. No entanto, não há garantias de que a superação do modo gestéltico de pensar seja substituído por um modo originário antigo, como o poiético. Isso, aliás, seria negar toda a abertura e liberdade da Ereignis. Não se pode prever qual será o recomeço do pensar. É por esse motivo que Heidegger chama de trânsito esse momento moderno. Ereignis é essencialmente a diferença ontológica, radicalmente pensada como pura negatividade. No fundo, Ereignis “doa” Alétheia: Ereignis é o íntimo brilho (salvador) da Gestell. Esse íntimo e último brilho é a possibilidade de recomeço do pensar. Este evento (Ereignis) pensado ontologicamente, nunca acontece como uma presença ou um ser simplesmente dado, nem mesmo como um ente; seu 12 Tradução livre. Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. acontecimento se dá como verdade. É a verdade da técnica, ou seja, Gestell, que abriga a “salvação” da própria técnica. O que significa salvar? “Salvar” é: recolher na essência, para assim primeiramente trazer a essência a seu autêntico aparecer. Se a essência da técnica, a armação, é o extremo perigo e se a palavra de Hölderlin diz ao mesmo tempo algo de verdadeiro, então o domínio da armação não pode se esgotar em apenas obstruir todo brilhar de cada desabrigar e todo aparecer da verdade. (HEIDEGGER, 2007, p. 17). Abrir nossa existência (Dasein) para a essência da técnica significa reconhecê-la em sua essência como Ereignis, como verdade. Ereignis é o “negativo fotográfico” da Gestell, a partir do qual “revela-se” sua verdade. O homem gestéltico, enquanto apropriado pela Gestell, oculta e encobre sua existência (Dasein) enquanto lugar da escuta. Dasein escuta o silêncio da radical diferença ontológica: Ereignis. No que o Dasein, também fundado em pura negatividade (serpara-a-morte) reconhece a sigética da Eregnis, o ser humano corresponde ao apelo da Gestell: simplesmente calculando e correspondendo. Noutras palavras, somos humanos, neste sentido gestéltico, quando somos animais racionais. Mas esta correspondência também é uma verdade, é Ereignis. O homem está lançado, assim, “entre o destinante e o destinado, entre Ereignis e a Gestell”. (BOLTON, 2006, p. 14). O texto Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), ao questionar a técnica como evento do Seyn, mantém ainda aberto o caminho ao novo começo do pensamento ocidental, mas esse recomeço é somente vislumbrado pelo pensamento, uma vez que já está ser-historialmente, diga-se destinalmente, decidido. Em sintonia com o pensamento de Heidegger, posso dizer: o fim do questionamento da técnica, bem Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 122 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 6, (2011) - Edição Especial: Concepções acerca da Verdade: […]. como o recomeço são, ambos, um destino: Los Aportes preguntan en una vía que recién se abre a través del tránsito al otro comienzo, en el que ahora ingresa en pensar occidental. Esta vía lleva el tránsito a lo abierto de la historia y lo fundamenta como una tal vez mui larga estancia, en cuyo cumplimiento el otro comienzo del pensar permanece siempre sólo lo vislumbrado pero sin embargo ya decidido13 (HEIDEGGER, 2006a. p. 22). O que foi vislumbrado já está para sempre decidido como um destino, porque é uma possibilidade. Esta possibilidade de recomeço da tarefa do pensar não pode ser, contudo, técnica. É necessária uma nova potência para o recomeço, talvez poética, como sugere Heidegger. Sentimos medo das técnicas, medo de sua presença (os negadores da técnica) e de sua supressão (os defensores da técnica). Mas combater o monstro tecnológico é questioná-lo em suas bases quando ele não for mais dócil para nós. Não questionado o monstro da técnica, nós é que nos tornamos dóceis para ele. Conclusão Este signo, como evento, coloca o ente no extremo abandono do ser e irradia ao mesmo tempo a verdade do ser como seu mais íntimo brilho.14 13 Tradução livre: “As Contribuições questionam numa via que recém se abre através do trânsito a outro começo, no que agora ingressa o pensamento ocidental. Esta via leva o trânsito ao aberto da história e o fundamenta como uma talvez muito ampla vigência, em cuja direção o outro começo do pensar permanece sempre somente vislumbrado mas todavia já decidido (HEIDEGGER, 2006a. p. 22). 14 HEIDEGGER, Martin. Aportes a la Filosofia: Acerca del Evento. 2ª. Ed. Buenos Aires: Biblos: Biblioteca Internacional, 2006a, p.328. Quando Heidegger fala do brilho do esquecimento do ser, ele se refere ao brilho da verdade (Alétheia) da Gestell como o próprio evento (Ereignis). Ou seja, a verdade da Gestell como acontecimento se mantém como o íntimo brilho do próprio acontecer técnico: GestellEreignis. Em que, segundo Heidegger, Ereignis é o O perigo e o questionamento a ser levantado é quando o modo de ser simplesmente dado se torna o único modo de ser. Como modo de pensar técnico, somos reféns do impensado; como modo de ser prático (agir) somos reféns do gigantesco. Estamos à mercê da tecno-logia como modo de ser e agir e, correlativamente, como modo de pensar. O incontornável se torna irreversível e inquestionado: o ente da metafísica da presença. A esse fim do questionamento da técnica corresponde o fim do questionamento como tal e representa o triunfo do objeto “evidente” (das ciências) sobre o fenômeno existencial. Em outras palavras, o fim da questão da técnica significa o fim da filosofia, suplantada em seu modo de pensar reflexivo, pelo modo de pensar maquínico: o algoritmo é o novo logos. Mas será que Heidegger tem razão ao dizer que ao “olharmos para o perigo, avistamos o crescimento do que salva”? (HEIDEGGER, 2007, p. 394). Inspirado nos versos de Hölderlin, o filósofo da Floresta Negra indica a esperança em uma possibilidade última, quando tudo o mais sucumbiu ao nada da Gestell: lá mesmo, no mais íntimo “brilho” do niilismo gestéltico há a possibilidade de salvação, de um recomeço do pensar, uma superação, que só se abarca por completo no final. Daí a radicalidade do pensamento filosófico. Radical diz na raiz: pensar a raiz é pensar o ser na sua origem. Paradoxalmente, somente se pensa a origem quando se chega ao fim, no fim vislumbrase o primeiro começo e a sua possível superação. Mas isso é para poucos, nas negativo fotográfico da própria Gestell (vide seminário de Le Thor). Gestell é a “forma” (Wesen) de um acontecer e Ereignis é a verdade desse acontecer. A verdade é pura negatividade, cujo conteúdo é a própria técnica em sua essência. Primordialmente é a Ereignis que funda a Gestell: “O fundador permanece oculto no fundado, como a Ereignis permanece oculta, pois, na Gestell”. (BOLTON, 2006, p. 10). Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Concepções acerca da Verdade: […]. vol. 9, 2014, p. 111-124. 123 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 palavras de Heidegger: para os insólitos. “Esses extraordinários que de tempos em tempos perguntam e, ao perguntar, se colocam na posição mais elevada da alma: a solidão indispensável para pensar a nobreza do ser e dizer sua singularidade”. (HEIDEGGER, 2006a, p. 28). A singularidade do existente humano não pode ser tomada como um ente dentre outros, porque o mortal é o único ente que, em seu ser, experimenta o tempo e pressente a morte: nossa essência. Aos deuses, imortais e imutáveis, resta permanecerem sempre os mesmos, e para sempre. Os deuses são incontornável e irreversivelmente dados. Os deuses são verdades imutáveis e, por este motivo, nunca acontecem; os homens são verdades que acontecem, de tempos em tempos. A esse acontecimento Hannah Arendt chama de natalidade. Mas a verdade sempre inaugural do nascimento carrega consigo o pressentimento de nossa essência singular e finita: a morte. Uma verdade, de fato, nunca é. Nunca é um ente dentre outros. Mas a verdade é sempre um trânsito: Die Seinsfrage ist die Frage nach der Wahrheit des Seyns15. Referências BOLTON, Rodrigo Karmy. Técnica, Hombre, Acontecimiento. (En torno al estatuto pro-ductivo del hombre en M. Heidegger). Novembro, 2006. Disponível em:<http://pt.scribd.com/doc/245314891/K army-Tecnica-HombreAcontecimiento#scribd> Acesso em: fev/2014. DRUCKER, Cláudia. Dostoiévski, Heidegger, Técnica e Ética. Revista Éthic@, Florianópolis, v.3, n.1, p. 61-82, Jun 2004. 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