Roberto Lobato Corrêa Região e Organização Espacial 7ª Edição Editora Ática São Paulo 2000 Sumário 1. Introdução 2. As correntes do pensamento geográfico o determinismo ambiental o possibilismo o método regional A nova geografia A geografia crítica 3. Região: um conceito complexo Região natural e determinismo ambiental Possibilismo e região Nova geografia, classes e região Região e geografia crítica Região, ação e controle 4. Organização espacial Organização espacial: uma conceituação Organização espacial: capital e Estado Organização espacial: reflexo social Organização espacial e reprodução Estrutura, processo, função e forma Espaço e movimentos sociais urbanos 5. Vocabulário crítico 6. Bibliografia comentada Referencia bibliográfica de rodapé 1 Introdução O propósito deste estudo é introduzir o estudante de geografia em dois conceitos fundamentais: o de região e o de organização espacial. Eles também são considerados por outras ciências sociais como a sociologia e a economia, mas não têm nestas a relevância adquirida na geografia. Ao longo da história da geografia, têm se situado no centro da discussão sobre o seu objeto, e erigidos na prática como os conceitos de maior importância. Outros conceitos podem ser considerados, a nosso ver, de menor importância, tais como posição geográfica e sítio. Os conceitos de região e de organização espacial são básicos para se compreender o caráter distinto da geografia no âmbito das ciências sociais, indicando a via geográfica de conhecimento da sociedade, quer dizer, das relações entre natureza e história. A discussão destes termos, por outro lado, pressupõe que se tenha uma certa informação da evolução do pensamento geográfico desde, pelo menos, o final do século XIX, quando a geografia assume o caráter de disciplina acadêmica, dotada de um processo de mudança de paradigmas que se insere no bojo da história. O presente estudo compõe-se de três partes. A primeira delas procura situar o leitor em termos de como se pensa a geografia nesse espaço de tempo. Esta parte tem o caráter de introdução às outras duas, procurando colocar em evidência os modelos geográficos básicos, dentro dos quais se discutem os conceitos de região e de organização espacial. Assim, não se trata da apresentação das correntes de pensamento geográfico de per si, pois elas têm como foco os dois conceitos-chave de que estamos tratando. Para este assunto de vital importância na formação do geógrafo e do professor de geografia, sugerimos que se leia o livro de Antonio Carlos Robert Moraes (1981). A "Bibliografia comentada" cobre, por outro lado, a história do pensamento geográfico com certa profundidade. A segunda parte aborda os diversos conceitos de região, enquanto a terceira apresenta a questão da organização espacial. Constituem o centro deste estudo. Ao final, muitas questões terão sido levantadas e ficarão sem respostas. Em parte esta é a nossa intenção. E tem como finalidade o aprofundamento das discussões sobre os conceitos de região e organização espacial. 2 As correntes do pensamento geográfico No nosso entender, as principais correntes de pensamento geográfico ou paradigmas da geografia são os seguintes: o determinismo ambiental, o possibilismo, o método regional, a nova geografia e a geografia crítica. Foram formalmente explicitadas a partir do final do século XIX, constituindo uma seqüência histórica de incorporações de práticas teóricas, empíricas e políticas que, não excluindo nenhuma delas, apresenta a cada momento um ou dois padrões dominantes. Assim, o determinismo ambiental e, menos ainda, o possibilismo não desapareceram totalmente, mas perderam o destaque, sobretudo o determinismo ambiental. Por outro lado, a geografia crítica é o último modelo a ser incorporado, passando a coexistir conflitivamente com os outros, principalmente a nova geografia. Estas tendências estão fundamentadas, de um modo, na consideração da geografia como um saber calcado em uma das três abordagens: o estudo das relações homem/meio, o de áreas e os locacionais. Adicionalmente, tem sido adotada uma combinação de duas ou três das abordagens acima referidas. De outro, as correntes fundamentam-se em diferentes métodos de apreensão da realidade. Entre eles, destaca-se o positivismo, quer na sua versão clássica, quer na do positivismo lógico. O materialismo histórico e a dialética marxista, que dão base ao segmento mais importante da geografia crítica, são métodos de incorporação recente à geografia. Subjacente a todos os paradigmas há um denominador comum: a geografia tem suas raízes na busca e no entendimento da diferenciação de lugares, regiões, países e continentes, resultante das relações entre os homens e entre estes' e a natureza. Não houvesse diferenciação de áreas, para usar uma expressão consagrada, certamente a geografia não teria surgido. Estamos falando, pois, do cerne da geografia, ainda que o seu significado não tenha sido sempre o mesmo. Os conceitos de região e organização espacial estão vinculados a esta idéia básica em geografia. o determinismo ambiental A geografia emerge como uma disciplina acadêmica a partir de 1870. Até então, e desde a Antigüidade, a geografia compunha um saber totalizante, não desvinculado da filosofia, das ciências da natureza e da matemática. Com Varenius no século XVII, Kant no XVIII, e Humboldt e Ritter já na primeira metade do XIX, a geografia vai gradativamente configurando um conhecimento específico, sem contudo perder de vez a visão globalizante da realidade. As últimas décadas do século XIX caracterizam-se por dois processos que são extremamente importantes para a história do homem e da geografia. De um lado, o capitalismo passa a apresentar uma progressiva concentração de capitais, gerando poderosas corporações monopolistas e uma nova expansão territorial. Inaugura-se a sua fase imperialista. O outro processo, que se vincula ao primeiro, é o da fragmentação do saber universal em várias disciplinas. Assim, criam-se departamentos de geografia nas universidades européias e, mais tarde, nas norte-americanas, conforme aponta, entre outros, Brian Hudson1. Foi o determinismo ambiental o primeiro paradigma a caracterizar a geografia que emerge no final do século XIX, com a passagem do capitalismo concorrencial para uma fase monopolista e imperialista. Seus defensores afirmam que as condições naturais, especialmente as climáticas, e dentro delas a variação da temperatura ao longo das estações do ano, determinam o comportamento do homem, interferindo na sua capacidade de progredir. Cresceriam aqueles países ou povos que estivessem localizados em áreas climáticas mais propícias. Fundamentando a tese do determinismo ambiental, estavam as teorias naturalistas de Lamarck sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos e as de Darwin sobre a sobrevivência e a adaptação dos indivíduos mais bem dotados em face do meio natural. Estas teorias foram adotadas pelas ciências sociais, que viam nelas a possibilidade de explicar a sociedade através de mecanismos que ocorrem na natureza. Foi Herbert Spencer, filósofo inglês do século XIX, o grande defensor das idéias naturalistas nas ciências sociais. Na geografia, no entanto, as idéias deterministas tiveram no geógrafo alemão Frederic Ratzel seu grande organizador e divulgador, ainda que ele não tivesse sido o expoente máximo. A formação básica de Ratzel passou pela zoologia, geologia e anatomia comparada; foi aluno de Haeckel, o fundador da ecologia, que o introduziu no darwinismo. No entanto, seu determinismo ambiental foi amenizado pela influência humanista de Ritter, Criou, desta forma, a geografia humana, denominada por ele de antropogeografia e marcada pelas idéias oriundas das ciências naturais. Nos Estados Unidos e, em menor escala, na Inglaterra, o determinismo imprimiu-se profundamente no nascimento da geografia. O primeiro dos países passava, no final do século passado e início deste, por uma fase de afirmação nacional, em que se justificava o progresso através das riquezas naturais. Ellen Semple, discípula de Ratzel, discorre sobre as influências das condições geográficas (configuração da costa, padrão dos rios, cadeias de montanhas, climas etc.) na história norte-americana. A Inglaterra tornara-se, nesse momento, a grande metrópole imperialista. O determinismo ambiental justificava a expansão territorial através da criação de colônias de exploração no continente africano, e de povoamento em regiões temperadas, a serem ocupadas pelo excedente demográfico britânico e europeu. Na realidade, o determinismo ambiental configura uma ideologia, a das classes sociais, países ou povos vencedores, que incorporam as pretensas virtudes e efetivam as admitidas potencialidades do meio natural onde vivem. Justificam, assim, o sucesso, o poder, o desenvolvimento, a expansão e o domínio. Não é de estranhar, pois, que na Grécia da Antigüidade se atribuíssem às características do clima mediterrâneo o progresso e o poderio de seu povo em face dos asiáticos que viviam em áreas caracterizadas pela invariabilidade anual das temperaturas. Muito mais tarde, no final do século XIX, seriam outras as características climáticas consideradas como favoráveis ao crescimento intra e extraterritorial. Transformava-se assim em natural, portanto fora do controle humano, uma situação que é econômica e social, histórica portanto, denominada imperialismo. Estabeleceu-se uma relação causal entre o comportamento humano e a natureza, na qual esta aparece como elemento de determinação. As expressões fator geográfico e condições geográficas, entendidas como clima, relevo, vegetação etc., são heranças do discurso ideológico determinista. Outra delas, particularmente relevante para nós, é a região natural. Voltaremos a ela em breve. Ratzel, por sua vez engajado no projeto de expansão alemã, legou-nos o conceito de espaço vital, quer dizer, o território que representaria o equilíbrio entre a população ali residente e os recursos disponíveis para as suas necessidades, definindo e relacionando, deste modo, as possibilidades de progresso e as demandas territoriais. O espaço vital está implicitamente contido na organização espacial, delimitando, no campo do capitalismo, parte da superfície da terra organizada pelo capital e pelo Estado capitalista, extensão que se tornou necessária à reprodução do mesmo. Em linguagem organicista, espaço vital equivale à expressão espaço do capital. o possibilismo Em reação ao determinismo ambiental surge, na França no final do século XIX, na Alemanha no começo do XX e nos Estados Unidos na década de 20, um outro paradigma da geografia, o possibilismo. À semelhança do determinismo ambiental, a visão possibilista focaliza as relações entre o homem e o meio natural, mas não o faz considerando a natureza determinante do comportamento humano. A reação ao determinismo ambiental, mais forte na França, tem como motivação externa a situação de confronto entre ela e a Alemanha. O possibilismo, francês em sua origem, opõe-se ao determinismo ambiental germânico. Esta oposição fundamenta-se nas diferenças entre os dois países. Ao contrário da Alemanha, unificada em 1871, a França já era França há muito tempo. Lá a revolução burguesa tinha se dado de modo mais completo, extirpando os resquícios feudais, ainda existentes na Alemanha. Esta chega tardiamente à corrida colonial, enquanto a França dispunha, então, de um vasto império; os interesses expansionistas alemães voltaram-se, em grande parte, para a própria Europa. Acrescente-se ao quadro a luta de classes, que assumia formas mais acirradas na França, a exemplo da Comuna de Paris. Neste contexto, a geografia francesa teria de cumprir simultaneamente vários papéis: a) Desmascarar o expansionismo germânico – criticando o conceito de espaço vital – sem, no entanto, inviabilizar intelectualmente o colonialismo francês; b) Abolir qualquer forma de determinação, da natureza ou não, adotando a idéia de que a ação humana é marcada pela contingência; c) Enfatizar a fixidez das obras do homem, criadas através de um longo processo de transformação da natureza; assim os elementos mais estáveis, solidamente implantados na paisagem, são ressaltados, não se privilegiando os mais recentes, resultantes de transformações que podem colocar em risco a estabilidade e o equilíbrio, alcançados anteriormente. Daí a ênfase no estudo dos sítios predominantemente rurais. No plano interno à geografia, havia a reação a ela ter sido definida por uma relação de causa e efeito – a natureza determinando a ação humana - e não por um objeto empiricamente identificável. Pensou-se, então, na paisagem como uma criação humana, elaborada ao longo do tempo, sendo a paisagem natural transformada em cultural ou geográfica. Na realidade, para Vidal de Ia Blache, o mestre do possibilismo, as relações entre o homem e a natureza eram bastante complexas. A natureza foi considerada como fornecedora de possibilidades para que o homem a modificasse: o homem é o principal agente geográfico. Vidal de Ia Blache redefine o conceito de gênero de vida herdado do determinismo, conforme aponta Paul Claval (1974): trata-se não mais de uma conseqüência inevitável da natureza, mas de um acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes, que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponíveis tal como Moraes (1981) a ele se refere. Os gêneros de vida pensados anteriormente exprimiam uma situação de equilíbrio entre população e os recursos naturais. Uma paisagem geográfica enquadraria, na verdade, a área de ocorrência de' uma forma de vida. A paisagem geográfica tem, ainda, uma extensão territorial e limites razoavelmente identificáveis. Nestes termos, a região é a expressão espacial da ocorrência de uma mesma paisagem geográfica. O objeto da geografia possibilista é, portanto, a região, e a geografia confunde-se, então, com a geografia regional. Enquanto formas criadas pelo homem sobre a superfície da Terra, a paisagem poderia ser considerada sinônimo de organização espacial? Primeiramente, lembre-se de que este conceito não foi cogitado pela geografia vidaliana. Em segundo lugar, no nosso entender, o conceito de paisagem - campos agrícolas dispostos pelas encostas suaves de um vale, florestas nas íngremes, caminhos entre os campos e ao longo do rio onde se localizam os núcleos de povoamento etc. - aproxima-se do de organização espacial que adotamos neste estudo. No entanto, o conceito de paisagem apresenta uma limitação dada pela ênfase em um aspecto exterior, derivado de sua apreensão via método empírico-indutivo. Por outro lado, o conceito de paisagem, que acaba se confundindo com o de região, está associado à visão de uni cidade, isto é, de um fenômeno que ocorre uma única vez, sem se repetir. O conceito de organização espacial é, para nós, mais abrangente e rico que o de paisagem. o método regional A método regional consiste no terceiro paradigma da geografia, opondose ao determinismo ambiental e ao possibilismo. Nele, a diferenciação de áreas não é vista a partir das relações entre o homem e a natureza, mas sim da integração de fenômenos heterogêneos em uma dada porção da superfície da Terra. O método regional focaliza assim o estudo de áreas, erigindo não uma relação causal ou a paisagem regional, mas a sua diferenciação de per si como objeto da geografia. O método regional tem merecido atenção de geógrafos desde pelo menos o século XVIII, com Varenius. O filósofo Kant e o geógrafo Carl Ritter, respectivamente no final do século XVIII e na primeira metade do XIX, ampliaram as bases dos estudos de área. No final do século passado, Richthofen estabelece o conceito de corologia (integração de fenômenos heterogêneos sobre uma dada área), desenvolvido mais tarde por Alfred Hettner. Contudo, a geografia do final do século passado e início deste vivenciava a disputa entre as correntes determinista e possibilista, não se valorizando o método regional. Apenas a partir dos anos 40, e nos Estados Unidos sobretudo, a tradição de estudos de área assume expressão. No centro da valorização do método regional está o geógrafo norte-americano Hartshorne2. Com ele, o novo paradigma ganha outra dimensão. No plano externo, o método regional evidencia a necessidade de produzir uma geografia regional, ou seja, um conhecimento sintético sobre diferentes áreas da superfície da Terra. Preocupação antiga, derivada da expansão mercantilista dos séculos XVI e XVII, aparecia, então, como resultado da demanda das grandes corporações e dos aparelhos de Estado. No plano interno, registra a procura de uma identidade para a geografia, que se obteria não a partir de um objeto próprio, mas através de um método exclusivo. Resumindo, diferenciação de áreas passa a se considerar o resultado do método geográfico e, simultaneamente, o objeto da geografia. Para Hartshorne, o cerne da geografia é a regional que, como vimos, busca a integração entre fenômenos heterogêneos em seções do espaço terrestre. Estes fenômenos apresentam um significado geográfico, isto é, contribuem para a diferenciação de áreas. Da integração destes - estudados sistematicamente pelas outras ciências -, surge a geografia como uma ciência de síntese. Em sua proposição, Hartshorne não adota a região Como o objeto da geografia. Para ele, importante é o método de identificar as diferenciações de área, que resultam de uma integração única de fenômenos heterogêneos. Diz ele em seu clássico estudo de 1939: o objeto da geografia regional é unicamente o caráter variável da superfície da Terra - uma unidade que só pode ser dividida arbitrariamente em partes, as quais, em qualquer nível da divisão, são como as partes temporais da história, únicas em suas características3. A região, para Hartshorne, não passa de uma área mostrando a sua unicidade, resultado de uma integração de natureza única de fenômenos heterogêneos. O conceito de organização espacial também não é cogitado pelo método regional. Para tanto, pressupõe-se pensar a priori na existência de uma lógica em ação, resultante da efetivação de regras ou leis de natureza social. Ora, a proposição hartshorniana não admite a existência de outras leis além da unicidade do caráter integrativo dos fenômenos sobre a superfície da Terra. Deste modo, as contribuições do paradigma do método regional para os conceitos de região e de organização espacial são, em si mesmas, muito limitadas. Iriam suscitar, no entanto, enorme crítica, na qual aquilo que nos interessa é considerado de modo privilegiado. A nova geografia Após a 2ª Guerra Mundial, verifica-se uma nova fase de expansão capitalista. Ela se dá no contexto da recuperação econômica da Europa e da "guerra fria", envolvendo maior concentração de capital e progresso técnico, resultando na ampliação das grandes corporações já existentes. Esta expansão defronta-se, ainda, com o desmantelamento dos impérios coloniais, sobretudo a partir dos anos 60. Não se trata mais de uma expansão marcada pela conquista territorial, como ocorreu no final do século passado; ela se dá de outra maneira e traz enormes conseqüências, afetando tanto a organização social como as formas espaciais criadas pelo homem. Uma nova divisão social e territorial do trabalho é posta em ação, envolvendo introdução e difusão de novas culturas, industrialização, urbanização e outras relações espaciais. As regiões elaboradas anteriormente à guerra são desfeitas, ao mesmo tempo que a ação humana, sob a égide do grande capital, destrói e constrói novas formas espaciais, reproduzindo outras: rodovias, ferrovias, represas, novos espaços urbanos, extensos campos agrícolas despovoados e percorridos por modernos tratores, shopping centers etc. Trata-se de uma mudança tanto no conteúdo como nos limites regionais, ou seja, no arranjo espacial criado pelo homem. Estas transformações inviabilizariam os paradigmas tradicionais da geografia - o determinismo ambiental, o possibilismo e o método regional -, suscitando um novo, calcado em uma abordagem locacional: o espaço alterado resulta de um agregado de decisões locacionais. A geografia que surge em meados da década de 50, conhecida como nova geografia, tem um papel ideológico a ser cumprido. É preciso justificar a expansão capitalista, escamotear as transformações que afetaram os gêneros de vida e paisagens solidamente estabelecidas, assim como dar esperanças aos "deserdados da terra", acenando com a perspectiva de desenvolvimento a curto e médio prazo: o subdesenvolvimento é encarado como uma etapa necessária, superada em pouco tempo. A teoria dos pólos de desenvolvimento é um dos melhores exemplos desta ideologia. A nova geografia nasce simultaneamente na Suécia, na Inglaterra e nos Estados Unidos, neste último país como uma ferrenha crítica à geografia hartshorniana. Adota uma postura pragmática que se associa à difusão do sistema de planejamento do Estado capitalista, e o positivismo lógico como método de apreensão do real, assumindo assim uma pretensa neutralidade científica. Ao contrário do paradigma possibilista e da geografia hartshorniana, a nova procura leis ou regularidades empíricas sob a forma de padrões espaciais. O emprego de técnicas estatísticas, dotadas de maior ou menor grau de sofisticação - média, desvio-padrão, coeficiente de correlação, análise fatorial, cadeia de Markov etc. -, a utilização da geometria, exemplificada com a teoria dos grafos, o uso de modelos normativos, a adoção de certas analogias com as ciências da natureza e o emprego de princípios da economia burguesa caracterizam o arsenal de regras e princípios adotados por ela. É conhecida também como geografia teorética ou geografia quantitativa. A nova geografia considera a região um caso particular de classificação, tal como se procede nas ciências naturais. E toda discussão sobre região no seu âmbito corresponde a uma crítica aos conceitos derivados do determinismo ambiental e do possibilismo. O conceito de organização espacial tem todas as condições para aparecer na nova geografia. Pois o rápido processo de mudança locacional que se verifica no pós-guerra, afetando o arranjo sobre a superfície da Terra das formas criadas pelo homem, e envolvendo vultosos recursos, suscita a questão da eficiência máxima de cada localização rearranjada. Eficiência máxima, naturalmente, na ótica do capital. Desenvolve-se o conceito de organização espacial entendido como padrão espacial resultante de decisões locacionais, privilegiando as formas e os movimentos sobre a superfície da Terra (interação espacial)4. Surge também na França, onde, a nosso ver, estava latente no pensamento vidaliano. Mas não dentro da nova geografia, tal como era definida nos países anglo--saxões e na Suécia, e sim numa geografia econômica e aplicada, em cujo centro situa-se Pierre George e a política de aménagement du territoire 5. A geografia crítica O debate interno à geografia prossegue durante as décadas de 70 e 80. A nova geografia e os paradigmas tradicionais são submetidos a severa crítica por parte de uma geografia nascida de novas circunstâncias que passam a caracterizar o capitalismo. Trata-se da geografia crítica, cujo vetor mais significativo é aquele calcado no materialismo histórico e na dialética marxista. As origens de uma geografia crítica, que não só contestasse o pensamento dominante, mas tivesse também a intenção de participar de um processo de transformação da sociedade, situam-se no final do século XIX. Trata-se da geografia proposta pelos anarquistas Élisée Reclus e Piotr Kropotkin. Ela não fez escola, submergida pela geografia "oficial", vinculada aos interesses dominantes. A partir da segunda metade da década de 60, verifica-se nos países de capitalismo avançado o agravamento de tensões sociais, originado por crise de desemprego, habitação, envolvendo ainda questões raciais. Simultaneamente, em vários países do Terceiro Mundo, surgem movimentos nacionalistas e de libertação. O que se pensava até então em termos de geografia não satisfaz, isto é, não mascara mais a dramática realidade. Os modelos normativos e as teorias de desenvolvimento foram reduzidos ao que efetivamente são: discursos ideológicos, no melhor dos casos empregados por pesquisadores ingênuos e bem intencionados. Uma geografia crítica começa a se esboçar, congregando geógrafos de mentes abertas, que tinham se dedicado à nova geografia, como William Bunge e David Harvey, ou que tinham uma posição política de esquerda na geografia herdeira das tradições vidalianas, a exemplo de Yves Lacoste. Esta visão crítica é aceita sob reservas pelo Estado capitalista, na medida cm que este não pode desempenhar seu papel de controle, apoiado em informações provenientes de seu serviço de propaganda. Vários são os periódicos que focalizam criticamente a geografia: Antipode, Newsletter (Union of Socialist Geographers), Hérodote, Espace Temps e Espace et Luttes. Adicionalmente, em numerosos outros periódicos, há contribuições de geógrafos críticos. No caso do Brasil, a geografia crítica nasce no final da década de 70, cujo marco foi o 3° Encontro Nacional de Geógrafos, realizado em 'julho de 1978 em Fortaleza, sob os auspícios da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Além das acirradas críticas aos paradigmas que a precederam, as contribuições da geografia crítica, ainda em curso, são numerosas. Dizem respeito à reinterpretação, com base na teoria marxista, de aspectos que tinham sido abordados pela nova geografia. Assim, reexamina-se questão da Jornada de trabalho, da terra urbana, da habitação, dos transportes regionais e da localização industrial. A geografia crítica descobre o Estado e os demais agentes da organização espacial: os proprietários fundiários, os industriais, os incorporadores imobiliários etc. A questão das relações entre o homem e a natureza, central no temário do determinismo ambiental e do possibilismo, é também repensada à luz do marxismo. O tema da região, questão clássica na história do pensamento geográfico, é retomado pela geografia crítica. Neste sentido, uma tentativa de conceituação de região será feita mais adiante procurando entendê-la por uma visão dialética. Entre os avanços realizados pela geografia crítica estão aqueles associados à questão da organização espacial, herdada basicamente da nova geografia. Trata-se, no caso, de ir além da descrição de padrões espaciais, procurando-se ver as relações dialéticas entre formas espaciais e os processos históricos que modelam os grupos sociais. Na discussão do conceito de organização espacial, a contribuição dos geógrafos brasileiros tem sido muito importante. Assim, por exemplo, considera-se a teoria marxista do valor como base para se empreender uma análise espacial, conforme o fazem Antonio CarIos Robert Maraes e WanderIey Messias da Costa (1984). Outra contribuição é a de Milton Santos com o conceito de formação sócio-espacial, onde a organização espacial constitui parte integrante de uma dada sociedade. Milton Santos (1978) levanta ainda a polêmica questão da organização espacial como instância da sociedade. A discussão que empreenderemos sobre este conceito estará fundamentalmente baseada na geografia crítica. 3 Região: um conceito complexo O termo região não apenas faz parte do linguajar do homem comum, como também é dos mais tradicionais em geografia. Tanto num como noutro caso, o conceito de região está ligado à noção fundamental de diferenciação de área, quer dizer, à aceitação da idéia de que a superfície da Terra é constituída por áreas diferentes entre si. A utilização do termo entre os geógrafos, no entanto, não se faz de modo harmônico: ele é muito complexo. Queremos dizer que há diferentes conceituaçães de região. Cada uma delas tem um significado próprio e se insere dentro de uma das correntes do pensamento geográfico. Isto quer dizer que, quando falamos em região, implicitamente, mas de preferência de modo explícito, estamos nos remetendo a uma das correntes já identificadas anteriormente. Dois pontos devem ser abordados nesta introdução e ambos se referem ao nosso posicionamento. Primeiramente, achamos que a região deve ser vista como um conceito intelectualmente produzido. Partimos da realidade, claro, mas a submetemos à nossa elaboração crítica, na seqüência, procurando ir além da sua apreensão em bases puramente sensoriais. Procuramos captar a gênese, a evolução e o significado do objeto, a região. Em segundo lugar, queremos deixar claro que todos os conceitos de região podem ser utilizados pelos geógrafos. Afinal todos eles são meios para se conhecer a realidade, quer num aspecto espacial específico, quer numa dimensão totalizante: no entanto, é necessário que explicitemos o que estamos querendo e tenhamos um quadro territorial adequado aos nossos propósitos. Nesta parte iremos ver os principais conceitos de região, ou seja, o de região natural, o de região geográfica de Vidal de Ia Blache e o de região como classe de área, já tradicionalmente estabelecidos. Tentaremos conceituá-la sob o ângulo do materialismo histórico, onde, acreditamos, não está solidamente estabelecida. Finalmente, discutiremos a questão da região como um instrumento de ação e controle dentro de uma sociedade de classes. Região natural e determinismo ambiental No final do século XIX, e durante as duas primeiras décadas deste, quando a ciência geográfica foi impulsionada pela expansão imperialista, sendo o determinismo ambiental uma de suas principais correntes de pensamento, um dos conceitos dominantes foi o de região natural, saído diretamente do determinismo ambiental. A região natural é entendida como uma parte da superfície da Terra, dimensionada segundo escalas territoriais diversificadas, e caracterizadas pela uniformidade resultante da combinação ou integração em área dos elementos da natureza: o clima, a vegetação, o relevo, a geologia e outros adicionais que diferenciariam ainda mais cada uma destas partes. Em outras palavras, uma região natural é um ecossistema onde seus elementos acham-se integrados e são interagentes. É preciso deixar claro que a idéia de combinação ou integração em área de elementos diversos é muito importante para o conceito de região visto sob o paradigma do determinismo ambiental (e para outros também). Um mapa com a distribuição espacial dos tipos climáticos de Koppen, por exemplo, não se refere a uma combinação ou integração abrangendo elementos heterogêneos da natureza. Trata-se de uma divisão apoiada na temperatura e na precipitação, com as quais Koppen estabeleceu suas regiões climáticas. A região natural é mais complexa. Ao contrário, a divisão regional proposta por Herbertson 1 está apoiada no conceito de região natural. É uma divisão clássica, que ainda hoje exerce influência no ensino da geografia na escola secundária. Herbertson, com base no clima e no relevo, e considerando a vegetação, divide a superfície da Terra em 6 tipos e 15 subtipos, que não apresentam contigüidade espacial, e 57 regiões naturais, distintas dos primeiros por apresentarem esta contigüidade. Os 6 tipos são os seguintes: polar, temperada fria, temperada quente, tropical, montanhosa subtropical, e terras baixas e úmidas equatoriais. Sobre a proposição de Herbertson convém ressaltar três aspectos. Em primeiro lugar, as regiões naturais propostas constituem uma base para estudos sistemáticos, como se infere do título de seu artigo. Isto significa, na realidade, que o referido autor procurava um quadro territorial adequado para pensar a geografia segundo a concepção ambientalista, isto é, onde se pudesse estudar e compreender as relações homem/ natureza, admitindo-se que nas regiões naturais estas seriam mais evidentes, mais perceptíveis: nelas se poderia ver mais claramente o papel determinante da natureza sobre o homem. Neste sentido, as regiões naturais configuram, de fato, um ponto de partida, e não de chegada, ou coroamento, no quadro territorial que engloba o conhecimento a respeito das diversas áreas diferenciadas da superfície da Terra. É nestes termos que o geógrafo americano Charles Dryer, em 1915, aceita a idéia de que as regiões naturais devam ser um meio para se compreender as relações homem/natureza, que aparecem diretamente, segundo ele, através da vida econômica, para cada um dos estágios de cultura. Em segundo lugar, o clima aparece, em Herbertson, Dryer e outros, como o elemento fundamental da natureza. Não resta dúvida de que a variação espacial dos tipos de clima é um dado importante para se compreender a diferenciação da ocupação humana sobre a superfície da Terra, porém no ambientalismo o clima passa a ser considerado, como já se viu, fator determinante sobre o homem e, em muitos casos de modo explícito, sobre sua história. O clima é utilizado como justificativa para o colonialismo em suas diversas formas (colônias de povoamento e de exploração) e o racismo, duas das múltiplas e interligadas facetas do imperialismo. Muito sintomático é o fato de Dryer referir-se às regiões econômicas como sendo determinadas pela natureza: justifica-se assim, em última instância, a superioridade natural das regiões e dos países desenvolvidos, que teriam uma natureza mais pródiga. O trecho a seguir, tirado de Herbertson, elucida os dois aspectos acima mencionados: Através da compreensão da história da mesma raça em duas diferentes regiões, ou de um conjunto de raças na mesma região, seria possível chegar a algum conhecimento do efeito invariável de um tipo de meio sobre seus habitantes 2. Em terceiro lugar, convém lembrar que à época em que o conceito de região natural desfrutava de prestígio não se podia mais falar em área da superfície da Terra que, em algum grau, não tivesse sofrido ação humana e alterado o seu meio natural, a primeira natureza. Muito especialmente na Inglaterra do tempo de Herbertson. Isto, contudo, não tira a importância do conceito, principalmente para os interessados no estudo sistemático dos diferentes ecossistemas ou regiões naturais modificadas pelo homem ao longo da história, uma abordagem que não foi considerada pelos geógrafos deterministas quando as estudaram. Mesmo para um geógrafo francês como Camille Vallaux, de um país onde o determinismo ambiental não fez carreira, as regiões naturais e as humanas conciliam-se quando consideradas em termos de grandes regiões da superfície da Terra, como aquelas da floresta equatorial, das zonas desérticas, mediterrâneas, temperadas e polares. Nestes amplos quadros naturais, caracterizados por uma enorme estabilidade quando comparados à história do homem, o referido autor admite que os efeitos das condições naturais sobre o ser humano sejam significativos, traduzidos, em cada uma dessas grandes regiões, por modelos próprios de ação dos que nelas habitam. Daí a coincidência, nesta escala territorial, entre regiões naturais e humanas. Estamos frente a uma forma amenizada, filtrada, de determinismo ambiental, não considerado de modo absoluto. Esta visão é, ainda, marcada pelo possibilismo: abaixo das grandes regiões definidas pela natureza, vêm as menores caracterizadas por elementos de ordem humana, marcados pela instabilidade e capazes de provocar mudanças no conteúdo e nos limites regIonais. O conceito de região natural foi introduzido no Brasil, via influência francesa, por Delgado de Carvalho em 1913. É dentro da ótica acima exposta que Fábio Guimarães3 admitia a sua utilização no Brasil, visando uma divisão de caráter prático e duradouro, que possibilitasse a comparação de dados estatísticos ao longo do tempo. Guimarães, aceitando a identificação das regiões naturais propostas por Delgado de Carvalho, considera as seguintes grandes regiões naturais: norte, nordeste, leste, sul e centro-oeste. Estas unidades regionais maiores foram divididas em regiões, sendo estas, por sua vez, subdivididas em zonas fisiográficas, caracterizadas por elementos de ordem humana. Possibilismo e região O possibilismo considera de modo diferente a questão da região. Não é a região natural, e sua influência sobre o homem, que domina o temário dos geógrafos possibilistas. É, sem dúvida, uma região humana vista na forma da geografia regional que se torna seu próprio objeto. A região considerada é concebida como sendo, por excelência, a região geográfica. Assim, os conceitos de região natural e região geográfica, tal como esta será definida, são distintos, tanto no que se refere às suas bases empíricas, como aos seus propósitos. Reagindo ao determinismo ambiental, o possibilismo considera a evolução das relações entre o homem e a natureza, que, ao longo da história, passam de uma adaptação humana a uma ação modeladora, pela qual o homem com sua cultura cria uma paisagem e um gênero de vida, ambos próprios e peculiares a cada porção da superfície da Terra. Com diferenças em maior ou menor grau, estas idéias aparecem na França no final do século passado com Paul Vidal de Ia Blache, na Alemanha da primeira década deste século com Otto Schlüter, e nos Estados Unidos, em 1925, com Carl Sauer, que se inspirou nos dois mencionados autores. Em todos os três casos trata-se da mesma reação ao determinismo ambiental e ao seu correspondente conceito de região natural. A região geográfica abrange uma paisagem e sua extensão territorial, onde se entrelaçam de modo harmonioso componentes humanos e natureza. A idéia de harmonia, de equilíbrio, evidente analogia organicista que Vidal de Ia Blache adota, constitui o resultado de um longo processo de evolução, de maturação da região, onde muitas obras do homem fixaram-se, ao mesmo tempo com grande força de permanência e incorporadas sem contradições ao quadro final da ação humana sobre a natureza. Região e paisagem são conceitos equivalentes ou associados, podendose igualar, na geografia possibilista, geografia regional ao estudo da paisagem. E esta equivalência tem apoio lingüístico: em francês paysage (paisagem) vem de pays (pequena região homogênea); em alemão a palavra landschaft tem dois sentidos: paisagem e extensão de um território que se caracteriza por apresentar aspecto mais ou menos homogêneo; em inglês landscape designa paisagem, e Sauer usou o termo como sinônimo de região. A região geográfica assim concebida é considerada uma entidade concreta, palpável, um dado com vida, supondo portanto uma evolução e um estágio de equilíbrio. Neste raciocínio, chegar-se-ia à conclusão de que a região poderia desaparecer. Sendo assim, o papel do geógrafo é o de reconhecê-la, descrevê-la e explicá-la, isto é, tornar claros os seus limites, seus elementos constituintes combinados entre si e os processos de sua formação e evolução. Neste aspecto, a região geográfica dos possibilistas não se diferenciava da região natural. No processo de reconhecimento, descrição e explicação dessa unidade concreta, o geógrafo evidenciava a individualidade da região, sua personalidade, sua singularidade, aquela combinação de fenômenos naturais e humanos que não se repetiria. A concretude e individualidade de cada região são ainda reconhecidas pela sua população e as das regiões vizinhas; isto se explica pelo fato de cada região possuir um nome próprio único, que todos conhecem a partir de uma vivência plenamente integrada à região: pays de Caux,pays de Ia Brie, Agreste, Brejo, Campanha Gaúcha etc. A região geográfica definida por Vidal de Ia Blache e seus discípulos tem seus limites determinados por diversos componentes: uma fronteira pode ser o clima, outra o solo, outra ainda a vegetação. O que importa é que na região haja uma combinação específica da diversidade, uma paisagem que. acabe conferindo singularidade àquela região. Não se trata de um corte mais ou menos arbitrário na distribuição desigual de um determinado elemento sobre a superfície da Terra. Os esquemas a seguir, apoiados em Yves Lacoste (1976), exemplificam a questão dos limites e da individualidade da região. As figuras 1a a 1d indicam a divisão de um mesmo segmento de terra de acordo com quatro elementos. Cada um deles apresenta uma diferencialidade espacial, inerente à sua própria natureza. Figura 1 Da sua superposição, formam-se 10 regiões, cada uma marcada pela combinação singular dos 4 elementos considerados: assim, há apenas uma única região ACEG e uma única outra denominada ACFG conforme aparece na figura 1e. O conceito vidaliano de região recebeu inúmeras críticas de Lacoste e de Claval. O primeiro dos geógrafos franceses comenta que na escolha dos elementos que se combinam há uma seletividade que considera apenas os antigos, de longa duração, desprezando os elementos de origem recente. Isto significa que, implicitamente, concebe-se a região como uma entidade acabada, concluída. Ademais, a concepção vidaliana impõe um único modo de se pensar a divisão da superfície da Terra, esquecendo a diferencialidade espacial de cada elemento (ver figura 1a a 1d), e o fato de que outros segmentos do espaço podem ser mais úteis. A concepção vidaliana de região implica uma postura empirista, na medida em que ela é vista como algo dado, auto-evidente. Finalmente, a idéia de harmonia não é adequada às sociedades estrutura das em classes sociais. Claval, por sua vez, lembra o fato de que, por não haver um critério sistemático para se identificar regiões, os resultados obtidos indicam a sua diversidade, às vezes constituindo uma realidade natural, mas na maioria dos casos condicionada histórica e economicamente. Era difícil teorizar sobre o assunto, especialmente porque não se admitia a aplicação dos procedimentos de utilização geral. Por outro lado, constatou-se que os elementos humanos passavam a adquirir maior importância que os naturais no processo de gerar as regiões geográficas. Atingia-se o paradigma possibilista, fundado nas relações entre o homem e a natureza e expresso na região geográfica. Na verdade, estudos regionais focalizados em temas específicos começaram a surgir na geografia regional francesa. No Brasil, conforme já se indicou, as zonas fisiográficas, a despeito do nome, foram fundamentadas no conceito de região geográfica de Vidal de Ia Blache: sua aplicabilidade se deu na medida em que formaram bases territoriais agregadas, através das quais foram divulgados os resultados dos recenseamentos de 1950 e 1960. Já as regiões homogêneas, através das quais se divulgaram os resultados dos recenseamentos de 1970 e 1980, constituem uma tentativa de atualização das zonas fisiográficas, adotando-se implicitamente o essencial das idéias vidalianas, apesar dos casos de exceção (áreas metropolitanas) e do discurso eminentemente indicador do paradigma da nova geografia. Nova geografia, classes e região A nova geografia, fundamentada no positivismo lógico, tem a sua própria versão de região, que se opõe àquelas associadas aos paradigmas do determinismo ambiental e do possibilismo. A região, neste novo contexto, é definida como um conjunto de lugares onde as diferenças internas entre esses lugares são menores que as existentes entre eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares. As similaridades e diferenças entre lugares são definidas através de uma mensuração na qual se utilizam técnicas estatísticas descritivas como o desviopadrão, o coeficiente de variação e a análise de agrupamento. Em outras palavras, é a técnica estatística que permite revelar as regiões de uma dada porção da superfície da Terra. Nesse sentido, definir regiões passa a ser um problema de aplicação eficiente de estatística: considerando-se os mesmos território, propósitos e técnica estatística, duas divisões regionais deverão apresentar os mesmos resultados, independentemente de terem sido feitas por dois pesquisadores distintos. A divisão regional assim concebida pressupõe uma objetividade máxima, implicando a ausência de subjetividade por parte do pesquisador. A figura 2 procura exemplificar uma divisão regional hipotética: o território foi dividido em três regiões, e em cada uma delas as diferenças internas são muito pequenas, quando se pensa nelas em comparação às outras regiões. Se as regiões são definidas estatisticamente, isto significa que não se atribui a elas nenhuma base empírica prévia. São os propósitos de cada pesquisador que norteiam os critérios a serem selecionados para uma divisão regional. Se a intenção é definir regiões climáticas, utilizam-se então informações pertinentes ao clima; no caso de elas serem agrícolas, fontes relacionadas seriam usadas. Ao contrário da região vidaliana, a da nova geografia não é considerada uma entidade concreta, e sim uma criação intelectual balizada por propósitos especificados, tal como aponta Grigg6. Na ampla possibilidade de aparecimento dos propósitos de divisão regional, há dois enfoques que não se excluem mutuamente. O primeiro considera as regiões simples, ou então complexas. No caso das regiões simples, estamos considerando uma divisão regional de acordo com um único critério ou variável, originando regiões segundo, por exemplo, o nível de renda da população, da criação de bovinos ou de tipos de solos. No segundo caso, levamos em conta muitos critérios ou variáveis (usualmente reduzidas a umas poucas através de uma técnica estatística mais sofisticada, a análise fatorial). Um exemplo de divisão regional complexa é a divisão de um país em regiões econômicas, envolvendo, entre outras, variáveis como a densidade demográfica, a renda da população, a produção agropecuária e industrial e a urbanização. O segundo enfoque visa as regiões homogêneas, ou então funcionais. Trata-se de uma visão dicotomizada, que perde aquela característica de integralidade que a região natural e a vidaliana passavam. Cada uma dessas duas regiões pode ser focalizada como simples ou complexa. Por região homogênea, estamos nos referindo à unidade agregada de áreas, descrita pela invariabilidade (estatisticamente considerada) de características analisadas,estáticas, sem movimento no tempo e no espaço: a densidade de população, a produção agropecuária, os níveis de renda da população, os tipos de clima e as já mencionadas regiões naturais. Um pays, tal como Vidal de Ia Blache o define, seria uma região homogênea complexa, quando pensada em termos da nova geografia. Para este paradigma, a região-síntese seria um dos muitos possíveis casos de divisão regional. As regiões funcionais, apesar da inadequação do termo, são definidas de acordo com o movimento de pessoas, mercadorias, informações, decisões e idéias sobre a superfície da Terra. Identificam-se, assim, regiões de tráfego rodoviário, fluxos telefônicos ou matérias-primas industriais, migrações diárias para o trabalho, influência comercial das cidades etc. Convém frisar que as regiões homogêneas e funcionais tendem a ser mutuamente excludentes no mundo capitalista, pois dizem respeito a fenômenos que se comportam, cada um deles, com espacialidade própria. Verifica-se, como já vimos, que os propósitos dos pesquisadores, em termos acadêmicos, ou de vinculação explícita ao sistema de planejamento, são diretamente proporcionais às possibilidades de se estabelecerem divisões regionais. Mais ainda, para qualquer fenômeno que necessariamente tenha uma expressão espacial é possível o estabelecimento de uma divisão regional: deste modo, pode-se dar conta, no plano descritivo e classificatório, daquela diferencialidade espacial de que nos fala Yves Lacoste. Na nova geografia, o conceito de sistema de regiões (já estabelecido muitos anos atrás por geógrafos "tradicionais" como Unstead) está calcado explicitamente nos princípios da classificação, tal como se adota nas ciências da natureza, como a botânica. A analogia com as ciências naturais, uma das marcas do positivismo lógico, aparece claramente quando a nova geografia estabelece o conceito de região. Bunge7 estabelece explicitamente a comparação entre termos regionais e termos classificatórios, termos de duas linguagens diferentes. Vejamos alguns exemplos: Termos regionais a) Região uniforme b) Sistema regional c) Região definida com um único aspecto d) Região definida com aspectos múltiplos e) Lugar f) Elementos da geografia g) Geografia regional h) Core da região i) Limite regional j) Escala Termos classificatórios a) Classe de área b) Sistema classificatório c) Classificação com uma única categoria d) Classificação com mais de uma categoria e) Indivíduo f) Características diferenciadoras g) Atenção focalizada em classes de área h) Indivíduos modais e indivíduos similares i) Intervalo de classe j) Número de classes de área Deste modo, a região torna-se uma classe de área constituída por diversos indivíduos similares entre si. Várias classes de área organizam-se em um sistema classificatório. Tal sistema pode ser concebido de dois modos: através da divisão lógica e do agrupamento. Vejamos cada um deles. A divisão lógica é uma classificação caracterizada pela divisão sucessiva do todo (superfície da Terra ou de um país, por exemplo) em partes. Dedutiva, de cima para baixo, pressupõe que o pesquisador já tenha uma visão do todo e queira, analiticamente, chegar a identificar, através de critérios selecionados, as partes componentes do todo, os indivíduos (lugares). A figura 3 esquematiza a divisão lógica. O todo, representado pela letra A, é subdividido em duas classes (regiões), que têm em comum o fato de apresentarem a característica A, e de diferenciação entre elas as características x e y. A classe (região) Ax subdivide-se em outras duas: Axa e Axb. Convém frisar que a divisão lógica tem sido muito pouco empregada na nova geografia, porque esta fundamentou o conhecimento da realidade a partir de uma' trajetória ascendente, do indivíduo para o todo, pelo segundo dos modos referidos, o agrupamento. Contudo, um exemplo clássico do uso da divisão lógica é o das regiões naturais de Herbertson. O agrupamento ou classificação indutiva caracteriza-se pelo fato de partir-se do indivíduo (lugar, município) e, progressivamente, por agregação, que implica a perda de detalhes ou generalização crescente, chegar-se ao todo. O procedimento por sínteses sucessivas, ao contrário da divisão lógica, não pressupõe conhecimento prévio do todo, que pode ser obtido indutivamente,agregando-se, pouco a pouco, o conhecimento sobre as partes. A figura 4 representa um esquema de agrupamento. Existem, no exemplo, 8 indivíduos que constituem o agrupamento mais inferior, de 1ª ordem. Possuindo características comuns, são agrupados em 4 classes de áreas ou agrupamento de 2ª ordem, que por sua vez agrupam-se em 2 classes de 3ª ordem. No passo seguinte, chega-se ao todo. Os dois modos de se estabelecer um sistema regional ou uma hierarquia de regiões apresentam ainda uma diferença fundamental, ressaltada aqui para que se tenha clareza das condições de um ou de outro modo a ser adotado. A divisão lógica, na medida em que é um procedimento de trajetória descendente, procura diferenciações entre os lugares, enquanto o agrupamento, ascendente, procura regularidades. E diferenciações e regularidades são meios complementares de se conhecer a realidade. Do processo de divisão regional emerge a questão de se definir tipos, e uma tipologia, ou regiões. Os tipos caracterizam-se pelos seus atributos específicos, não implicando a existência de contigüidade espacial, tal como Herbertson definiu os quadros naturais: o tipo polar, como se sabe, ocorre tanto no hemisfério sul como no norte. A região, por outro lado, a par de sua especificidade, pede seqüência no espaço, A figura 5 procura esclarecer esta questão. Indica ela 5 tipos dos quais 2 ocorrem, cada um, em 3 áreas distintas e não contíguas espacialmente: ao total há 9 regiões. Como vimos, no processo de divisão regional pode-se definir uma tipologia, tal como fizeram Herbertson e Koppen, ou se chegar a uma segmentação da superfície da Terra em regiões. No primeiro caso, estamos considerando os fenômenos na visão do que se convencionou denominar de geografia sistemática; no outro, da geografia regional. Um último aspecto deve ser considerado. Na nova geografia não existe, como na hartshorniana, um método regional, e sim estudos nos quais as regiões formam classificações espadas. Em outras palavras, identificam-se padrões espaciais de fenômenos vistos estaticamente ou em movimento. Neste sentido, a região adquire, junto à sua inexistência como entidade concreta, o sentido de padrão espacial. A geografia regional, por sua vez, não tem o propósito de reconhecer uma síntese, como em Vidal de Ia Blache, nem de procurar pela singularidade de cada área, como em Hartshorne. Os estudos de geografia regional ou de área são realizados dentro de propósitos preestabelecidos. A partir de uma referência teórica, como a das localidades centrais ou a do uso agrícola da terra, ou de um suposto problema, como o do desenvolvimento regional, estuda-se um segmento da superfície da Terra. Isto quer dizer que a área é vista como laboratório de estudos sistemáticos, realimentando os referenciais teóricos que estes formulam. Assim, na nova geografia, estudos sistemáticos e de área não se distinguem entre si: mais do que uma complementação, eles são, em última instância, a mesma coisa. No Brasil, a nova geografia desenvolveu-se nos Departamentos de Geografia de Rio Claro e de Estudos Geográficos do IBGE; aí surgiram os estudos de tipologia e divisão regional dentro da concepção em pauta. Sobre o assunto consultem-se os periódicos Boletim de geografia teorética e Geografia, editados em Rio Claro, e a Revista brasileira de geografia, editada pelo IBGE, especialmente os números referentes à década de 70. Região e geografia crítica Dentro do questionamento à geografia tradicional e à nova geografia, aparece durante a década de 70 uma geografia crítica, que traz consigo a necessidade de se repensar o conceito de região. Assim, discute-se a postura empirista que caracteriza as definições vidaliana e da nova geografia. Lacoste, por exemplo, refere-se à concepção vidaliana de região como sendo um "conceito-obstáculo", que nega outras possibilidades de se dividir a superfície da Terra; por outro lado, as classes de área da nova geografia podem acabar constituindo-se em um exercício acadêmico sofisticado. Deste posicionamento crítico fazem parte também geógrafos brasileiros. Assim, entre outros, Aluízio Duarte8 comenta que, a partir do materialismo histórico e da dialética marxista, diversos pesquisadores introduziram, na década de 70, novos conceitos visando uma definição de região. Assim, consideram-se o conceito de região e o tema regional sob uma articulação dos modos de produção, como faz Lipietz; através das conexões entre classes sociais e acumulação capitalista, conforme é o caso de VilIeneuve; por meio das relações entre o Estado e a sociedade local, mostradas por Dulong; ou então, introduzindo a dimensão política, conexão de Chico de Oliveira ao fazer a elegia do Nordeste brasileiro. Duarte tem suas proposições sobre a região: para ele, é uma dimensão espacial das especificidades sociais em uma totalidade espaço-social, capaz de opor resistência à homogeneização da sociedade e do espaço pelo capital monopolístico e hegemônico .... Para ele, se não há uma elite regional capaz de opor a aludida resistência, então não existe região. Regiões são espaços em que existe uma sociedade que realmente dirige e organiza aquele espaço. Esta conceituação tem, a nosso ver, o defeito de considerar região uma situação que no capitalismo monopolista de hoje é cada vez mais inexistente. As regiões tenderiam, assim, a desaparecer. Ou seja, não haveria mais diferenciação de áreas. Acreditamos que, adotando-se esta visão, perder-se-ia um conceito que tem a vantagem de permitir que nos localizemos nos diferentes níveis em que a superfície da Terra pode ser dividida. E, sobretudo, achamos que qualquer conceito pode ser repensado. No caso, sem que se perca sua aplicabilidade universal. O que segue é uma tentativa de inserir o conceito de região dentro de um quadro teórico amplo, que permita dar conta da diversidade da superfície da Terra sob a ação humana ao longo do tempo. Este quadro consiste na lei do desenvolvimento desigual e combinado proposto por Trotsky. A lei do desenvolvimento desigual e combinado expressa particularmente uma das leis da dialética, a da interpenetração dos contrários. Refere-se ao fato de ser cada aspecto da realidade constituído de dois processos que se acham relacionados e interpenetrados, apesar de serem diferentes e opostos. A contradição que daí decorre é característica imanente à realidade e o elemento motor de sua transformação. Na lei que nos interessa, os dois processos são, primeiro o da desigualdade e, depois, o da combinação. Permite que se considere as diferenciações resultantes da presença de fenômenos originados em tempos históricos diferentes coexistindo no tempo presente. . .e no espaço. Esta lei tem uma dimensão espacial, que se verifica através do processo de regionalização, ou seja, de diferenciação de áreas. Dois aspectos devem ser considerados, tendo em vista a compreensão das conexões entre a lei em pauta e o conceito de região que dela surge. O primeiro deles se refere à gênese e à difusão do processo de regionalização, e o segundo aos mecanismos nos quais o processo realiza-se. Ambos estão interligados. Em relação ao primeiro aspecto, é conveniente notar que a diferenciação de áreas vincula-se à história do homem, não se verificando de uma vez e para sempre. Tem uma gênese encontrada nas comunidades primitivas indiferenciadas, que implicava uma semelhança do espaço enquanto resultado da ação humana. Estas sociedades originárias tiveram, ao longo do tempo e do espaço, um desenvolvimento diferenciado, isto é, os processos internos de diferenciação e a difusão dos processos de mudança deram-se de modo desigual9. Assim, o aparecimento da divisão social do trabalho, da propriedade da terra, dos meios e das técnicas de produção, das classes sociais e suas lutas, tudo isto se deu com enorme distância em termos espaço-temporais, levando a uma diferenciação intra e intergrupos. Do mesmo modo, a difusão dos processos de mudança fez-se desigualmente, reforçando a diferenciação de áreas. As desigualdades que aparecem caracterizam-se pela combinação de aspectos distintos dos diversos momentos da história do homem. Isto resulta no aparecimento de grupos também distintos ocupando específicas parcelas da superfície da Terra, e aí imprimindo suas próprias marcas, a paisagem, que nada mais é que uma expressão de seus modos de vida. Uma vez iniciada a difusão do processo de regionalização, de diferenciação de áreas, via contatos comerciais, migrações e conquistas, esta assume ritmos distintos, isto é, duração e intensidade que variam. Em determinados momentos e áreas, a regionalização dá-se com maior rapidez e profundidade: a diferenciação de áreas é aí mais notável. Simultaneamente, em outras áreas não ocorre este processo ou ele é extremamente lento. Tomemos um exemplo para esclarecer este ponto: a partir da década de 30, o Paraná vê-se sob um intenso processo de regionalização, que prossegue nas décadas subseqüentes, originando o aparecimento, entre outras regiões, daquelas que se convencionou denominar de norte velho, norte novo e norte novíssimo. Na década de 80, esta distinção não tem a mesma expressão que tinha, pois os mecanismos que geraram a diferenciação regional foram alterados em sua concretude, e uma nova regionalização põe-se em marcha. Ao mesmo tempo, na década de 30 e seguintes, a vastíssima área da Amazônia brasileira apresentava-se pouco diferenciada: a diversificação interna começa a se tornar sensível a partir de 1970, quando, impulsionada do exterior, verifica-se a penetração desigual do capital e de correntes migratórias. Este processo de diferenciação estende-se pela década de 80 e certamente prosseguirá pelos próximos decênios. Em relação ao segundo aspecto, vinculado aos mecanismos utilizados pelo processo de regionalização, vale lembrar que, na medida em que a história do homem acontece, marcada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela dinâmica da sociedade de classes e de suas lutas, o processo de regionalização torna-se mais complexo. Por complexidade entendemos o fato de o processo de regionalização retalhar ainda mais o espaço ocupado pelo homem em numerosas regiões e, concomitantemente, integrá-las. É no modo de produção capitalista que o processo de regionalização se acentua, marcado pela simultaneidade dos processos de diferenciação e integração, verificada dentro da progressiva mundialização da economia a partir do século XV. Sob a égide do capital, os mecanismos de diferenciação de áreas tornam-se mais nítidos, quais sejam: a) a divisão territorial do trabalho, que define o que será produzido aqui e ali; b) o desenvolvimento dos meios e a combinação das relações e técnicas de produção de produção originadas em momentos distintos da história, que definem o como se realizará a produção; c) a ação do Estado e da ideologia que se especializa desigualmente, garantindo novos modos de vida e a pretensa perpetuação deles; d) a ampla articulação, através dos progressivamente mais rápidos e eficientes meios de comunicação, entre as regiões criadas ou transformadas pelo e para o capital. A lei do desenvolvimento desigual e combinado traduz-se, assim, no processo de regionalização que diferencia não só países entre si como, em cada um deles, suas partes componentes, originando regiões desigualmente desenvolvidas mas articuladas. Sob o capitalismo queremos crer que a noção de combinação deve ser explicitamente referida não apenas à coexistência no mesmo território de diferentes modos de vida, mas também à articulação espacial destes territórios. A região pode ser vista como um resultado da lei do desenvolvimento desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela associação de relações de produção distintas. Estes dois aspectos vão traduzir-se tanto em uma paisagem como em uma problemática, ambas específicas de cada região, problemática que tem como pano de fundo a natureza específica dos embates que se estabelecem entre as elites regionais e o capital externo à região e dos conflitos entre as diferentes classes que compõem a região. Os conflitos oriundos dos embates entre interesses internos, bem como entre interesses internos e externos, podem gerar uma desintegração da região, que se exprimirá na sua paisagem. Tendo isto em vista, pode-se dizer que a região é considerada uma entidade concreta, resultado de múltiplas determinações, ou seja, da efetivação dos mecanismos de regionalização sobre um quadro territorial já previamente ocupado, caracterizado por uma natureza já transformada, heranças culturais e materiais e determinada estrutura social e seus conflitos. A região assim definida assemelha-se em vários aspectos à vidaliana, podendo em muitos casos ser idêntica nos seus limites. Conceitualmente, no entanto, não é a mesma região, pois as diferenças vistas são numerosas. Ela não tem nada da preconizada harmonia, não é única no sentido vidaliano ou hartshorniano, mas particular, ou seja, é a especificação de uma totalidade da qual faz parte através de uma articulação que é ao mesmo tempo funcional e espacial. Ou, em outras palavras, é a realização de um processo geral, universal, em um quadro territorial menor, onde se combinam o geral - o modo dominante de produção, o capitalismo, elemento uniformizador - e o particular - as determinações já efetivadas, elemento de diferenciação. Neste sentido, concordamos com Duarte quando afirma que a região é uma dimensão espacial das especificidades sociais em uma totalidade espaço-social. Uma observação considerando o futuro impõe-se: se o processo de regionalização está em marcha, assim como a história do homem, como pensar na existência de regiões sob o socialismo? Acreditamos, com base na lei do desenvolvimento desigual e combinado, que, neste caso, o processo de regionalização terá seu curso, refazendo regiões ou áreas diferenciadas. Por quê? Os recursos naturais e os socialmente produzidos, como estradas, fábricas e redes urbanas, estão desigualmente desenvolvidos sobre a superfície da Terra, sendo difícil conceber-se, no modo de pensar influenciado pelas práticas capitalistas, que no socialismo a questão da escassez e da localização seletiva desses recursos tenha sido resolvida. Sob ação de que mecanismos? Certamente, e nos limites do nosso raciocínio, sob a influência de uma nova divisão do trabalho, motivada por razões técnicas. Não é mais admissível esta região – que poderá ter até outra denominação - exercer um meio de controle sobre o homem que, na história, seguiu um caminho que o conduziu a uma sociedade sem classes, sem dominação. Região, ação e controle O conceito de região tem sido largamente empregado para fins de ação e controle. Mais precisamente, no decorrer da prática política e econômica de uma sociedade de classes, que por sua própria natureza implica a existência de formas diversas de controle exercido pela classe dominante, utilizam-se o conceito de diferenciação de área e as subseqüentes divisões regionais, visando ação e controle sobre territórios militarmente conquistados ou sob a dependência político-administrativa e econômica de uma classe dominante. Ao se definir uma região para fins de ação e controle, considera-se, alternativamente: o conceito de região natural, tal como foi definido anteriormente; o de região geográfica nos termos propostos, entre outros, por Vidal de Ia Blache; e uma área vista por um aspecto ao qual se atribui relevância, como uma determinada produção, um suposto problema social, a gravitação em torno de uma cidade dotada de funções regionais, ou pertinente a uma mesma bacia hidrográfica. Pode ainda, na realidade, abranger uma combinação das alternativas mencionadas. Assim, as diferentes conceituações de região estão presentes na prática territorial das classes dominantes. Como os demais conceitos geográficos, o conceito de região não está desvinculado de uma ação que é a um tempo social e espacial. A ação e controle sobre uma determinada área quer garantir, em última análise, a reprodução da sociedade de classes, com uma dominante, que se localiza fora ou no interior da área submetida à divisão regional ou, como se refere a literatura, à regionalização. Esta distinção parte da aceitação explícita ou implícita da diferenciação de áreas ao longo da história. A sua ratificação ou retificação se dá a cada momento, conforme os interesses e os conflitos dominantes de cada época. São eles que, por outro lado, levam as unidades territoriais de ação e controle, as regiões, a serem organizadas de modos diferentes: de um lado, a partir de um governo de nível hierárquico inferior ao do núcleo de dominação; de outro, de um mais ou menos complexo sistema de planejamento especializado. Ambos cumprindo o papel de ação e controle. Neste exemplo, o Estado, surgido dentro do modo de produção dominante, é o agente da regionalização. A Antigüidade fornece-nos exemplos da criação de regiões em um contexto de conquista territorial. Tanto o império romano como o persa, estavam divididos em regiões ou unidades territoriais de ação e controle. Regia e satrápia são denominações que designam essas unidades. As satrápias do império persa eram governadas pelos sátrapas, os "olhos e ouvidos do rei"; a palavra região vem do latim regia, que por sua vez deriva do verbo regere, isto é, governar, reinar. No feudalismo, a regionalização, vista como forma de ação e controle, tinha sua expressão nas marcas, nos ducados e nos condados, governados, respectivamente, por marqueses, duques e condes. No capitalismo, as regiões de planejamento são unidades territoriais através das quais um discurso da recuperação e desenvolvimento é aplicado. Trata-se, na verdade, do emprego, em um dado território, de uma ideologia que tenta restabelecer o equilíbrio rompido com o processo de desenvolvimento. Este discurso esquece, ou a ele não interessa ver, que no capitalismo as desigualdades regionais constituem, mais do que em outros modos de produção, um elemento fundamental de organização social. Em muitos casos, a ação decorrente do planejamento regional proporcionou um relativo progresso e uma maior integração da região ao modo de produção capitalista, quer dizer, a região sob intervenção planejadora passa a ficar sob maior controle do capital e de seus proprietários. Um exemplo famoso encontra-se na bacia do rio Tennessee, onde atuou o TVA (Tennessee Valley Authority), um organismo federal que visava a recuperação daquela área social e economicamente deprimida do território norte- americano. Inspirou outros que se apoiaram na concepção da bacia hidrográfica como região de planejamento: o caso da Comissão do Vale do São Francisco no nordeste brasileiro é exemplar. O da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) é outro exemplo de região de planejamento bastante conhecido. Aqui, trata-se de um território definido sobretudo por limites político--administrativos, os quais encerram problemas sociais e econômicos comuns. Já no caso da Amazônia, a ação da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), antecessora da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), faz-se territorialmente em uma região natural. Contudo, é notório que no sistema de planejamento desenvolveu-se a concepção de existência da cidade, sobretudo do centro metropolitano, o foco irradiador do desenvolvimento: ali se concentravam as forças motrizes do progresso - a indústria e as elites, além -dos necessários serviços de apoio. Logo após a l.a Guerra Mundial, na Inglaterra, na área de planejamento urbano e regional (Town Planning Act), sugeriu-se a revisão das províncias com base na influência das grandes cidades: Bristol, Birmingham, Leeds, Manchester etc. A concepção em pauta iria ganhar maior expressão a partir da década de 50, quando o capitalismo entra em nova fase de expansão e as teorias de desenvolvimento regional são criadas. É o caso dos pólos de desenvolvimento de François Perroux, do crescimento polarizado de lohn Friedmann, além da teoria das localidades centrais de Walter Christaller, que, na verdade, é retomada. Ao mesmo tempo, são revistos ou criados conjuntos de modelos e noções associados: da regra ordem e tamanho de cidades, dos centros dinamizadores, das cidades de porte médio e da difusão de inovações. A região de planejamento, isto é, um território de ação e controle, tem seu apogeu nas décadas de 60 e 70. Este é o caso brasileiro: entre 1964 e 1977/78, sobretudo, numerosos estudos almejando a definição de regiões de planejamento foram realizados, seja a nível federal e macrorregional, seja a nível estadual. É muito significativo que a força aparente que teve este conceito fosse concomitante ao estado de autoritarismo que caracterizou a vida brasileira e ao relativamente forte poder da tecnocracia em detrimento do Congresso. A pouca eficiência das regiões de planejamento enquanto via de redenção para as condições de vida da maioria da população ali residente (afinal de contas, elas eram sobretudo um discurso ideológico que servia para encobrir os interesses das classes dominantes regionais e do capital externo) e a retomada da vida democrática, com maior participação de vários segmentos da sociedade, geraram um esvaziamento da sua própria aplicabilidade. A história dirá até quando a região de planejamento capitalista será um meio de se exercer ação e controle sobre a maioria da população. 4 Organização espacial Na discussão sobre a natureza da geografia, a questão mais central, persistente e polêmica é a de seu objeto. Está presente em Ratzel, Vidal de Ia Blache, Hartshorne, na nova geografia e na geografia crítica. O objeto é a paisagem, a região, o espaço? Ou será outra coisa? Acreditamos que para se responder a esta pergunta há que se discutir antes o que é uma ciência social, pelo menos no que diz respeito ao seu objeto. A história, a antropologia, a economia, a geografia e a sociologia, entre outras ciências sociais, estudam a sociedade. Esta é muito complexa, multifacetada, sendo constituída por elementos como as classes sociais, as artes, a cidade, o campo, o Estado, os partidos políticos, as religiões etc. Os numerosos componentes da sociedade estão articulados, imbricados de tal modo, que se fala de uma totalidade social, cuja complexidade abarca as contradições internas e o movimento de transformação. Assim, torna-se difícil a compreensão da sociedade a partir de uma única ciência social concreta, capaz de analisar detalhadamente todos os seus elementos, bem como as suas possíveis articulações. Dada a dificuldade de se estudar a totalidade social em sua abrangência, verifica-se uma divisão do saber, originando diferentes ramos. É preciso, no entanto, deixar claro que não estamos falando de uma compartimentação positivista, onde cada ciência tem seu próprio objeto, achando-se separada das outras. No caso, as ramificações têm um objeto comum, a sociedade, analisada à luz de uma mesma teoria, fundamentada no materialismo histórico. O objeto da geografia é a sociedade, e não a paisagem, a região, o espaço ou outra coisa qualquer. A análise da sociedade, no entanto, é feita a partir de diversos ângulos. A história, a antropologia, a economia, a geografia e a sociologia estudam-na nesta perspectiva: o mesmo objeto é estudado, ou seja, objetivado, diferentemente. É esta objetivação que as distingue entre si. Como a geografia objetiva o estudo da sociedade? Ou seja, qual é a objetivação da geografia que, sem deixar de ser uma ciência social, distinguese da história, antropologia, economia e sociologia, todas elas também ciências sociais? O longo processo de organização e reorganização da sociedade deu-se concomitantemente à transformação da natureza primitiva em campos, cidades, estradas de ferro, minas, voçorocas, parques nacionais, shopping centers etc. Estas obras do homem são as suas marcas apresentando um determinado padrão de localização que é próprio a cada sociedade. Organizadas espacialmente, constituem o espaço do homem, a organização espacial da sociedade ou, simplesmente, o espaço geográfico. A objetivação do estudo da sociedade pela geografia faz-se através de sua organização espacial, enquanto as outras ciências sociais concretas estudam-na através de outras objetivações. Resumindo, o objeto da geografia é, portanto, a sociedade, e a geografia viabiliza o seu estudo pela sua organização espacial. Em outras palavras, a geografia representa um modo particular de se estudar a sociedade. Mas a organização espacial configura apenas uma objetivação, o modo geográfico de se ver a totalidade social? É isto mas, ao mesmo tempo, expressa um fenômeno da sociedade. Neste sentido, a organização espacial é também um objeto, uma materialidade social. Como materialidade, a organização espacial é uma dimensão da totalidade social construída pelo homem ao fazer a sua própria história. Ela é, no processo de transformação da sociedade, modificada ou congelada e, por sua vez, também modifica e congela. A organização espacial é a própria sociedade espacializada. A organização espacial, enquanto objetivação e materialidade social, só muito recentemente tem merecido uma atenção explícita, a nível teórico, por parte dos geógrafos. A nossa intenção é resgatar o que é importante neste conceito-chave para a geografia e a sociedade. Estamos, evidentemente, longe de esgotar o assunto. Consideraremos, em termos de organização espacial, os seguintes tópicos: uma proposição conceitual; suas ligações com o capital e o Estado; vista como reflexo social; sua condição para o futuro; estrutura, processo, função e forma, ou seja, suas categorias de análise e suas relações com os movimentos sociais urbanos. Estes temas não são mutuamente excludentes. Ao contrário, complementam-se. Organização espacial e percepção, organização e comportamento espacial, espaço, sentimento e simbolismo não serão abordados no presente trabalho. Organização espacial: uma conceituação A partir das necessidades do homem em termos de fome, sede e frio, verifica-se uma ação de intervenção na natureza. De caráter social, envolvendo um trabalho organizado coletivamente, implica uma certa divisão do trabalho e a definição do quê, quanto e como será a produção. E ainda de que jeito reparti-Ia. Surgem então relações sociais que têm sua essência na produção. É no trabalho social que os homens estabelecem relações entre si e, a partir destas, com a natureza. A intervenção na natureza foi, em um primeiro momento, marcada pelo extrativismo, passando em seguida por um progressivo processo de transformação, incorporando a natureza ao cotidiano do homem como meios de subsistência e de produção, ou seja, alimentos, tecidos, móveis, cerâmica e ferramentas. Fala-se, assim, da natureza primitiva transformada em segunda natureza, para empregar uma expressão de Marx. Os campos cultivados, os caminhos, os moinhos e as casas, entre outros, são exemplos de segunda natureza. Estes objetos fixos ou formas dispostas espacialmente (formas espaciais) estão distribuídos e/ou organizados sobre a superfície da Terra de acordo com alguma lógica. O conjunto de todas essas formas configura a organização espacial da sociedade. A organização espacial é a segunda natureza, ou seja, a natureza primitiva transformada pelo trabalho social. É conveniente esclarecer que a expressão organização espacial possui, a nosso ver, vários sinônimos: estrutura territorial, configuração espacial, formação espacial, arranjo espacial, espaço geográfico, espaço social, espaço socialmente produzido ou, simplesmente, espaço. Dizer que cada uma delas corresponde a uma específica visão de mundo e, ainda, que uma é melhor que a outra constitui, a nosso ver, falsas assertivas, de natureza formal e maniqueísta. Vejamos agora dois pontos fundamentais para que se possa prosseguir. Primeiramente, convém considerar que, se durante o processo de produção não se pensar na sua continuidade, sua própria reprodução, este cessará quando se finalizar a operação iniciada. É necessário que se criem no próprio processo de produção as condições de sua reprodução; sendo assim, o processo de produção é também de reprodução. Um grupo social tem a mesma necessidade; caso contrário, teríamos o absurdo do mesmo durar apenas o período de uma geração. A reprodução dos grupos sociais faz-se através de muitos meios. A transmissão do saber, formalizada ou não, constitui um. Outro, e dos mais importantes, é a organização espacial. Ao fixar no solo os seus objetos, frutos do trabalho social e vinculados às suas necessidades, um grupo possibilita que as atividades desempenhadas por estes alcancem um período de tempo mais ou menos longo, repetindo, reproduzindo as mesmas. Nestas condições, o grupo social se reproduz, porque a reprodução das atividades ligadas às suas necessidades viabiliza o próprio. A organização espacial, ou seja, o conjunto de objetos criados pelo homem e dispostos sobre a superfície da Terra, é assim um meio de vida no presente (produção), mas também uma condição para o futuro (reprodução). Em segundo lugar, a organização espacial é, como já vimos, expressão da produção material do homem, resultado de seu trabalho social. Como tal, refletirá as características do grupo que a criou. Em uma sociedade de classes, a organização espacial refletirá tanto a natureza classista da produção e do consumo de bens materiais, como o controle exercido sobre as relações entre as classes sociais que emergiram das relações sociais ligadas à produção. Coraggio10 fornece-nos um conjunto de reflexões sobre a organização espacial no capitalismo. Segundo Coraggio, o caráter repetitivo das operações de produção, circulação, consumo, controle e decisão implicam que se tenha: a) uma localização fixa no espaço dos meios de produção, circulação, consumo, controle e decisão; b) fluxos de força de trabalho e matérias-primas para o local em que cada operação se realiza, de bens para as áreas de consumo, e de realimentação destas para as áreas de direção e controle. As localizações fixas e os fluxos resultam cristalizações constituídas por: c) localizações pontuais ou em áreas dos meios necessários às operações de produção, como fábricas, minas e campos; d) localizações pontuais ou lineares dos meios de circulação como rodovias, dutos, fios telegráficos, terminais e armazéns; e) localizações pontuais ou áreas dos meios de vida consumidos individual ou coletivamente, como habitação; f) localizações pontuais dos elementos do sistema de controle e decisão, de natureza financeira, política e ideológica. Aparecem então padrões locacionais relativos às operações econômicas e ao sistema de controle e decisão. Tais padrões, como se pode notar na linguagem de pontos, linhas e áreas, referem-se à representação da organização espacial através de mapas de escalas médias ou pequenas - por exemplo, 1:100.000, 1:500.000, 1:1.000.000 ou mesmo 1:5.000.000, se pensarmos em termos de Brasil. Os padrões espaciais resultantes dizem respeito: a) à dispersão ou concentração espacial da indústria; b) às áreas rurais especializadas; c) aos centros de transportes; d) aos centros administrativos, universitários, religiosos etc.; e) às localidades centrais; f) às áreas residenciais intra-urbanas socialmente diferenciadas (isto implica uma mudança para uma escala maior, por exemplo, 1:50.000 ou 1:25.000); g) aos parques nacionais (reconstituição da natureza primitiva) etc. A organização espacial é assim constituída pelo conjunto das inúmeras cristalizações criadas pelo trabalho social. A sociedade concreta cria seu espaço geográfico para nele se realizar e reproduzir, para ela própria se repetir. Para isto, cria formas duradouras que se cristalizam sobre a superfície da Terra. Caso contrário, insistimos, a sociedade se extinguiria. O quadro a seguir, baseado em Coraggio e em M.Buch-Hanson e B. Nielsen 2, procura sistematizar a cadeia de relações entre objetos, atividades, elementos materiais, cristalizações e organizações espaciais específicas, que originam a global, capitalista. A organização espacial global resulta da superposição de diferentes organizações espaciais específicas, como o quadro procura mostrar. Para cada uma delas existe pelo menos uma proposição teórica, via de regra acrítica, que procura dar conta da espacialização de um dos aspectos da totalidade social. Assim, entre outras, foram elaboradas teorias: a da localização industrial, a do uso agrícola, a do uso urbano, a das localidades centrais ou a da evolução da rede de transportes. Mas esta é uma outra história, além dos propósitos deste trabalho. As relações entre as organizações espaciais específicas e a globalidade destas podem ser vistas a partir de uma metáfora sugerida por Ruy Moreira, apud Milton Santos (1982). Imagine um ginásio esportivo polivalente. A quadra está organizada para ali realizarem-se jogos de vôlei, basquete e futebol de salão. Para cada esporte (atividade), a quadra (superfície da Terra) tem um zoneamento específico (regiões), áreas limitadas por linhas onde há certas restrições ou penalidades. Para cada jogo, há regras (leis, códigos morais) e um juiz (aparelho repressor). Cada jogador (agente realizador de uma atividade) tem uma posição dentro da quadra (localização da atividade) e há caminhos a serem percorridos pelo jogador e a bola (fluxos, materiais ou não). Em outras palavras, para cada esporte existe uma organização espacial específica. Na quadra polivalente, no entanto, cada modalidade é praticada de uma vez, não sendo possível a sua prática simultânea. A organização espacial global, ao contrário, consiste na simultaneidade das específicas. Como se na quadra polivalente estivessem sendo praticados ao mesmo tempo os três mencionados esportes. Para que esta globalidade da organização espacial se verifique torna-se necessário um certo nível de compatibilidade entre os agentes modeladores da organização espacial. Isto acontece quer através da ação coordenadora e repressora do Estado via planejamento territorial, quer através da aliança de interesses das grandes corporações capitalistas, que são capazes de organizar o espaço, ao menos parcialmente, segundo seus interesses. Quando estes se concretizam, induzem outros agentes a utilizarem as suas mesmas formas espaciais. Assim, exemplificando, um corredor de exportação aberto ou melhorado em função dos poderosos interesses vinculados à soja, como ocorre no sul do Brasil, também é utilizado para outros fins e por outros agentes. Uma outra forma espacial, a cidade, criada para cumprir determinadas atividades, pode também servir a outras. Há, na realidade, no processo de ajuste entre agentes e atividades, o aparecimento de um mecanismo de natureza econômica que é denominado de economias de aglomeração: várias atividades juntas beneficiam-se mutuamente umas das outras pela escala que criam, ao se utilizarem das mesmas formas espaciais. Neste sentido, podemos afirmar que as economias de aglomeração, na medida em que viabilizam o sucesso das atividades, são economias locacionais para a reprodução. Os fenômenos de concentração espacial que decorrem deste mecanismo têm a vantagem de minimizar a complexidade da organização' espacial global. Não fossem as economias de aglomeração, a dispersão, e não a concordância locacional, caracterizaria sobremodo a organização espacial, pois em princípio cada atividade tem suas próprias regras locacionais, a sua organização espacial específica. Organização espacial: capital e Estado A organização espacial é o resultado do trabalho humano acumulado ao longo do tempo. No capitalismo, este trabalho realiza-se sob o comando do capital, quer dizer, dos diferentes proprietários dos diversos tipos de capital. Também é realizado através da ação do Estado capitalista. Isto quer dizer que o capital e seu Estado são os agentes da organização do espaço. Daí falar-se em espaço do capital. A ação do capital não se verifica de modo uniforme, quer em termos temporais ou espaciais. Há uma diferenciação espaço-temporal nos investimentos de capital. A seqüência de idéias a seguir relaciona-se a esta distinção: a) A própria dinâmica contraditória da acumulação capitalista que, em função dos conflitos entre capital e trabalho e da concorrência dos capitalistas, gerou, a partir das últimas décadas do século XIX, um processo de centralização e concentração do mesmo envolvendo inicialmente as empresas industriais e depois os bancos, surgindo daí o capital financeiro, conforme mostra Lênin 12. Este processo origina-se a partir de um determinado momento, sendo, portanto, de natureza histórica. b) A centralização e a concentração do capital têm uma expressão espacial que é a sua internacionalização, o que Lênin denominou imperialismo. Este não se dá, contudo, por igual: a superfície da Terra apresenta uma natureza primitiva e uma segunda natureza que oferecem atrativos diferenciados para o capital, que procura os lugares onde a sua remuneração é maior. E note-se que o valor de um lugar para o capital pode mudar com o tempo. c) O Estado capitalista tem progressivamente investido mais e mais, contribuindo para a organização do espaço. Este crescente papel do Estado na organização espacial está ligado às necessidades de socialização dos custos necessários à acumulação do grande capital. A este não compensa mais investir em ferrovias, sistemas de energia, habitação popular etc., ou seja, em atividades pouco remuneradoras. Por outro lado, o investimento feito pelo Estado nestes setores pouco rentáveis barateia os custos dos investimentos do capital nos lucrativos. O Estado, em muitos casos, torna-se empresário, diversificando seus investimentos. Esta função que passa a desempenhar interessa ao grande capital, inserindo-se na dinâmica de acumulação capitalista, apesar do discurso de alguns economistas burgueses, segundo o qual, desta maneira, o Estado desvirtua o seu papel. Como se este fosse uma instituição neutra, a-histórica, acima das classes sociais e dos interesses dominantes. d) Ao lado do grande capital, existe ainda aquele que não se ampliou, não se diversificou, nem foi absorvido pelo primeiro. Está presente em todos os setores, e muitas vezes vive à sua sombra, sob a sua dependência, efetivada por subcontratos ou fornecendo matérias-primas e bens intermediários, ou ainda viabilizando o grande capital, no papel de distribuidor varejista. Insere-se, portanto, no processo de acumulação capitalista. Aí encaixa-se também o denominado setor informal. O grande capital, o Estado e o pequeno capital, cada um destes agentes da organização espacial possui uma estratégia de ação que lhe é aparentemente específica, e que inclui uma dimensão espacial. A grande corporação capitalista pode, primeiramente, tomar decisões de investimento em um ou outro setor e/ou lugar a partir de estudos de viabilidade técnica que o pequeno capitalista não está capacitado a fazer. Por outro lado, a grande corporação possui uma escala interna de operações de ordem tal que prescinde da presença de outras atividades. As restrições locacionais que a afetam são mínimas. Podem criar ou induzir à criação de uma série de vantagens na sua própria escala ou investir no poder de pressão junto ao Estado: quantos prefeitos, deputados, senadores e ministros não estão, nos países capitalistas, direta ou indiretamente vinculados a uma ou mais corporações? Sendo assim, a grande corporação pode implantar um estabelecimento fabril de porte considerável em uma pequena cidade, fechando ou não um outro localizado em área metropolitana. Pode ainda criar um enclave em localidades despovoadas ou desprovidas de infra-estrutura, fixando, além da fábrica, um núcleo urbano onde tudo está sob seu controle: as habitações, os serviços de educação e saúde, a polícia etc. São os casos de João Monlevade, criada pela Companhia Siderúrgica Belga-Mineira, em Minas Gerais, de Carajás, pelo "projeto" Carajás ou de Monte Dourado, pelo Jarí, as duas no Pará. Nestas cidades, a grande corporação disporá de uma força de trabalho cativa e sob controle. Ela pode, ainda, dispersar a fabricação das partes componentes de um produto final em vários países, de modo a minimizar possíveis problemas de nacionalização. A grande corporação espalha a sua força de trabalho em cidades próximas ao parque fabril. Neste caso, a intenção é dificultar possíveis conflitos trabalhistas. Induz o Estado a instalar toda a infra-estrutura técnica, bem como os conjuntos habitacionais necessários, criando, respectivamente, distritos industriais e áreas residenciais. Ao introduzirem um novo produto agrícola e a modernização tecnológica em uma área rural, as grandes corporações podem, direta ou indiretamente, alterar sua estrutura agrária: concentração fundiária, mudança nas relações de produção com uma nova força de trabalho constituída por bóias-frias, emigração do excedente demográfico etc. Aceleram, ainda, o processo de exaustão dos solos e, em relação às cidades da área, alteram as suas funções, pela diminuição da população de sua área de influência e pelo novo modelo de demanda rural. As grandes corpo rações criam, desse modo, não apenas uma organização espacial própria, como inserem-se em uma prévia, alterando-a parcial ou totalmente, de acordo com seus interesses. Fala-se, assim, repita-se, do espaço do capital. Vejamos alguns exemplos concretos. Um deles é dado pela corporação multinacional Bunge y Bom. No Brasil, atua nos setores de óleos vegetais, farinha de trigo, rações, adubos, produtos químicos, tecidos, cimento, seguros etc., através de empresas como Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro S.A.), Samrig (S.A. Moinho Rio Grandense), Moinho Fluminense S.A. Indústrias Gerais, S.A. Moinho Santista Indústrias Gerais, Quimbrasil (Química Industrial Brasileira S.A.), Serrana S.A. de Mineração, Tintas Coral S.A., Fábrica de Tecidos Tatuapé S.A., Santista Indústria Têxtil do Nordeste S.A., Cimbage (Cimento, Mineração Bagé S.A.) e Vera Cruz Seguradora S.A., entre outras, em um total de aproximadamente 20 empresas, algumas das quais, como a Sanbra, possuindo numerosos estabelecimentos filiais. A corporação emprega milhares de pessoas e manipula anualmente outras tantas toneladas de matérias-primas e produtos acabados. Atuando em todo o território nacional, a Bunge y Bom atribui a cada uma de suas áreas ou pontos um papel diferenciado, segundo suas possibilidades e os interesses da corporação. A divisão territorial do trabalho é assim influenciada por ela, que tem, por sua vez, a sua própria organização espacial: escritórios nacionais, regionais e locais, usinas de beneficiamento, depósitos, minas e fábricas. É o caso, também, da Companhia de Cigarros Souza Cruz, do grupo British American Tobacco, que possui fábricas em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Uberlândia, Salvador, Recife e Belém. Cada uma controla um certo número de depósitos atacadistas localizados em centros de expressão regional. Dos numerosos centros atacadistas faz-se a distribuição de cigarros pelas cidades, vilas e povoa:dos da região de influência do centro atacadista. Assim, cobrindo todo o território nacional, existe uma rede urbana da Souza Cruz. Como ela também participa indiretamente na produção de fumo no sul do Brasil, acaba interferindo na organização das áreas produtoras daquele produto. Considere-se agora o grupo Bradesco, que possui mais de 1.500 agências bancárias em todo o país. Tem também a sua própria rede urbana, que é, na verdade, uma rede de drenagem, de acumulação de capital a ser investido desigualmente pelo território nacional, como, por exemplo, em dezenas de milhares de hectares de terra na Amazônia. Ao lado da grande corporação ou mesmo da empresa moderna, de menor ou maior porte, atua ainda, particularmente nos países subdesenvolvidos, um enorme conjunto de atividades, muitas vezes de natureza familiar, que não se utilizam do crédito nem -movimentam recursos vultosos. Em vários casos, empregam como matéria-prima produtos usados e não cumprem ou não têm nenhuma formalidade, quer administrativa, quer vinculada ao mercado (atividades informais). Santos13 as denomina circuito inferior da economia, em oposição às formais, pertencentes ao superior, ou seja, o circuito moderno. Estas atividades do circuito inferior não são independentes das outras, mas um meio através do qual o processo de acumulação capitalista pode incluir um setor que não é atrativo para a grande empresa. Além do mais, garante determinado nível de subsistência para uma população aparentemente marginalizada que não teria emprego fixo nas atividades modernas. Os biscateiros, os ambulantes, as diversas oficinas de reparação semiclandestinas e as pequenas unidades de produção de sucedâneos de produtos conhecidos são formas do circuito inferior. Santos argumenta que, em áreas rurais pobres, a esfera de influência dos pequenos centros urbanos é constituída sobretudo pela atuação das atividades do circuito inferior: o poder aquisitivo desta população não permite o consumo de produtos do circuito superior. As feiras do nordeste, forma de mercado periódico, são exemplos típicos das atividades informais. Por ter a sua ação vinculada sobretudo às necessidades de acumulação do capital e à conseqüente reprodução social, o Estado age espacialmente de modo desigual, à semelhança da grande corporação. Beneficia certas frações do capital: faz-se presente através de empreiteiras, algumas delas transformadas em grandes empresas. A abertura de estradas, o seu asfaltamento, a cobrança e a transferência espacialmente desigual de impostos, as leis de uso do solo geradoras do zoneamento urbano são, entre outros exemplos, o modo de o Estado capitalista interferir. A par desta performance, o Estado possui uma organização espacial de seus aparelhos repressivo e ideológico: as comarcas, a organização espacial do aparato militar e policial, os distritos educacionais e suas jurisdições e a localização periférica das universidades federais fazem parte dela. Por outro lado, os monumentos aos vencedores das lutas sociais, ao lado do esquecimento total dos vencidos, constituem marcas da ação do Estado na organização espacial. Temos, portanto, dentro dela, uma dimensão econômica extremamente complexa, uma jurídico-política e uma ideológica. Estas três dimensões entre cruzam-se e completam-se. Isto porque a organização espacial é um reflexo e uma condição da sociedade. Organização espacial: reflexo social Produto da ação humana ao longo do tempo, a organização espacial é um reflexo social, "conseqüência do trabalho e da divisão do trabalho", conforme aponta Lefebvre14. É o resultado do trabalho social que transforma diferencialmente a natureza primitiva, criando formas espaciais diversas sobre a superfície da Terra. Como o trabalho social e a sua divisão dão-se em um determinado tipo de sociedade com certo nível de desenvolvimento das forças produtivas e um modo dominante de suas relações, a organização espacial resultante refletirá estas características básicas da sociedade. Refletirá o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção. E como estas últimas vão traduzir-se em classes sociais e seus conflitos, a organização espacial as espelhará. Assim, a existência de estabelecimentos industriais, constituídos de edifícios onde se produz, depósitos, pátios de carga e descarga e áreas para futuras expansões, configura uma organização espacial em escala micro que só aparece a partir do capitalismo. Do mesmo modo que um conjunto dos mesmos, uns ao lado dos outros, separados por vias de tráfego pesado e ruas de uso exclusivo das fábricas que ali se situam, tendo ainda nas proximidades bairros operários. Considerando-se outra escala territorial, o mesmo se pode dizer de um conjunto de cidades industriais próximas umas das outras, como ocorre na área de Campinas, no Estado de São Paulo, ou no vale do Ruhr, na Alemanha. Semelhantemente, a organização espacial de uma propriedade rural no meio-oeste americano do início do século XX difere daquela dos dias de hoje. Um certo grau de autarcia e um menor nível tecnológico implicavam a existência de mais variedade nos cultivos e na criação de animais, bem como em usos distintos das suas edificações. José Lins do Rego, ao romancear a história da organização sócioespacial da zona da mata paraibana nos romances Menino de engenho, Bangüê, Fogo morto e Usina, entre outros, mostra muito bem como se deram as mudanças de organização espacial a partir das relações de produção - do escravo ao "morador de condição" e ao assalariado - e do desenvolvimento tecnológico - do engenho bangüê à pequena e à grande usina. A cada momento, refletia os dois aspectos. O bangüê, a casa-grande, a senzala, os "partidos" de cana, os cultivos de subsistência e a própria dimensão espacial do estabelecimento produtor de açúcar refletem um estágio da organização da sociedade local. Os amplos canaviais, a imponente usina com sua alta chaminé, as linhas férreas cortando o canavial, a ausência de cultivos de subsistência e a presença de antigos bangüês, agora de fogo morto, caracterizam outro estágio. Fosse José Lins do Rego vivo, certamente prosseguiria o "ciclo da cana" reportando-se, entre outros aspectos, à ocupação canavieira nos tabuleiros, áreas de solos arenosos porém planos, que somente após a década de 60, à custa de enorme investimento tecnológico compensado pelos altos preços do açúcar no mercado internacional, foram incorporados à organização espacial canavieira. Reportar-se-ia ainda às dificuldades, devido aos tratores e à maquinaria pesada, de se utilizar as até então ricas e valorizadas várzeas constituídas de solos argilosos – o massapê -, solos pesados que se transformam em impiedosos lamaçais durante a época das chuvas, o "inverno". Buch-Hanson e Nielsen apresentam, por outro lado, três modelos que descrevem sucintamente a organização de três sociedades. A figura 6a referese à sociedade feudal posterior ao século X, quando se verifica um renascimento do fenômeno urbano. Trata-se de uma organização espacial constituída de células fechadas, pouco articuladas entre si. Cada uma delas apresenta condições de satisfazer à quase totalidade das necessidades de vida da grande maioria da população. No centro localiza-se um burgo, que tem em torno de si um território com aldeias rurais. A economia aldeã era praticamente autárcica, de subsistência, com um mínimo de excedentes, comercializados no burgo com a produção dos artesãos. As ligações entre os burgos, por sua vez, eram extremamente limitadas: não há trocas entre centros semelhantes. Esse padrão celular deve-se ao pequeno desenvolvimento das forças produtivas e à pequena divisão social e territorial do trabalho, tornando os horizontes espaciais extremamente reduzidos. A figura 6b, por sua vez, refere-se à organização espacial da sociedade colonial. Surgida a partir do século XV com a expansão mercantilista européia, caracteriza-se, entre outros aspectos, pela primazia de uma cidade portuária, ponto de escoamento de produtos valorizados na Europa e nos Estados Unidos e de importação de produtos industrializados e sua redistribuição para a hinterlândia. É, também, o centro de controle político e militar da colônia. A rede de cidades e as vias de circulação assumem um padrão dendrítico, à semelhança de um sistema fluvial, em cuja extremidade encontra-se a cidade portuária. Vários países da Ásia, África e América Latina apresentam uma organização espacial semelhante a essa descrita pelo modelo. Finalmente, a figura 6c reporta-se à sociedade capitalista avançada. Como se pode ver, sua organização espacial é mais complexa. Complexidade que se refere aos numerosos centros urbanos e suas hinterlândias e à densa rede que os articula entre si. Esta organização espacial reflete a intrincada divisão social e territorial do trabalho e a conseqüente natureza complementar das atividades de cada lugar. Ao contrário da sociedade colonial, a capitalista avançada está organizada para si mesma, dotada de um poderoso mercado que implica sólidas relações internas e externas. Deste modo, como dizem Buch-Hanson e Nielsen, cada sociedade tem a sua própria geografia, a sua própria organização espacial. Mas o seu caráter de reflexo social não diz respeito apenas ao presente. A organização espacial acumula formas herdadas do passado. Elas tiveram uma gênese vinculada a outros propósitos e permaneceram no presente, porque puderam ser adaptadas às necessidades atuais, que não mudaram substancialmente ao longo do tempo. As formas espaciais herdadas do passado e presentes na organização atual apresentam uma funcionalidade efetiva em termos econômicos ou um valor simbólico que justifica a sua permanência. A estas Milton Santos (1978) denomina rugosidades, um termo da geomorfologia que designa as marcas do passado fixadas no espaço. Sua presença acaba condicionando o nosso cotidiano. Ao se projetar este raciocínio no tempo, pode-se afirmar que o presente condiciona o futuro, ou seja, as formas espaciais presentes têm um importante papel no futuro da sociedade. Organização espacial e reprodução A organização espacial não é somente um reflexo da sociedade. Como vimos, ao ser um reflexo, passa a ser simultaneamente uma condição para o futuro da sociedade, isto é, a reprodução social. Este papel assume enorme importância devido à crescente acumulação de formas espaciais que o capitalismo contemporâneo cria, exemplificada com a progressiva urbanização da humanidade. Na verdade, segundo Lefebvre, é o papel mais importante da organização espacial: a totalidade do espaço se converte no lugar da reprodução das relações de produção, relações estas que estão no centro da sociedade estruturada em classes sociais. Já vimos anteriormente por que a organização espacial é condição de reprodução. Vejamos agora a questão mais detalhadamente, através de alguns exemplos. A concentração de atividades localizadas em um ponto do território, maximizando a acumulação de capital para as mesmas, condiciona a continuidade deste processo: os complexos industriais e as áreas metropolitanas são exemplos típicos. O mesmo se pode dizer, mudando a escala, das ruas caracterizadas por um único tipo de atividade - comércio de móveis, confecções ou peças e acessórios de veículos. As vantagens advindas da aglomeração induzem à reprodução do padrão espacial preexistente. Os efeitos da ampliação do capital das empresas localizadas no centro da cidade, somados às deseconomias de aglomeração, quer dizer, o congestionamento do tráfego, a ausência de áreas para expansão ou o alto preço da terra, traduzem-se na recriação de novas concentrações de atividades em áreas distantes do centro da cidade e dotadas de algumas vantagens locacionais como uma posição geográfica favorável. Reproduzem-se então concentrações similares às do centro da cidade, através dos subcentros comerciais, como Copacabana, Tijuca e Madureira, na cidade do Rio de Janeiro. Existe, de um lado, um processo de reprodução simples do espaço e, de outro, ampliada. No primeiro caso, um local de concentração de atividades, como o centro da cidade, expande-se vertical ou horizontalmente. Isto se dá pelo aparecimento de novas empresas que são agregadas ao espaço já constituído. No segundo caso, uma nova organização espacial é criada ou alterada pelo aparecimento de subcentros comerciais, cuja forma mais moderna é o shopping center, tais como Barra Shopping, Rio Sul, Ibirapuera, Eldorado, BH Shopping, Iguatemi etc. O shopping center é, na verdade, o resultado da fusão de capitais vinculados primordialmente ao setor financeiro, imobiliário e comercial. Esta reprodução ampliada do espaço é uma expressão espacializada do processo de reprodução ampliada do capital, que se verifica simultaneamente à sua centralização e concentração: os subcentros comerciais cresceram a partir da instalação de filiais de empresas tradicionalmente localizadas no centro da cidade, como as lojas de eletrodomésticos, e a expensas das pequenas empresas comerciais dos bairros; nos shopping centers, só se arrenda o espaço de uma loja para uma empresa que já possua uma cadeia delas. Assim, reprodução ampliada do capital significa, no plano das empresas, uma centralização, mas no plano espacial representa uma descentralização recriadora. O papel da organização espacial como condição para a reprodução social é mais evidente quando se consideram as diferentes classes sociais e suas frações em um meio urbano. É, em grande parte, através da segregação residencial que estas se reproduzem. A origem da segregação residencial remonta ao próprio aparecimento das classes sociais e da cidade, as quais se verificaram ao mesmo tempo, sendo anteriores à emergência do capitalismo. A cidade asteca de Tenochtitlán e a cidade kmer de Angkor Thom, no atual território cambojano, apresentavam uma organização espacial caracterizada pela presença da elite junto ao centro cerimonial e da população pobre na periferia. É no capitalismo, contudo, que a segregação residencial torna-se mais complexa, à medida que se amplia o processo de estruturação das classes sociais e seu fracionamento. Novos modelos espaciais de segregação aparecem impulsionados pelos diferentes agentes da organização espacial urbana: proprietários fundiários, incorporadores imobiliários, industriais, articulados em maior ou menor grau aos bancos, e o Estado. São criadas, assim, periferias de autoconstrução, favelas em áreas alagadiças ou de morros, cortiços, bairros dos diferentes segmentos da classe média e as habitações suntuosas e seletivas dos capitalistas e executivos do capital: os condomínios exclusivos, cercados e sob vigilância de uma polícia particular, são a expressão acabada de uma elite que se impõe. Como a segregação residencial viabiliza a reprodução das classes sociais e suas frações? Pelo fato de as diversas áreas residenciais, diferenciadas entre si, mas razoavelmente homogêneas quando consideradas internamente, configurarem meios distintos para a interação social, da qual os indivíduos derivam seus valores, expectativas, hábitos de consumo e estado de consciência. A partir do bairro enxerga-se a cidade e o mundo. Um bairro e seu sistema de valores estável possibilita maior reprodução do grupo social que ali vive. Afinal de contas, espera-se que nas localidades onde hoje residem os capitalistas esteja sendo forjada a próxima geração dos mesmos, Do mesmo modo, de um bairro de empregados do comércio, de bancos e escritórios, espera-se que saiam os futuros empregados destes setores. Para isto, contribui a localização diferenciada dos serviços de uso coletivo: melhores escolas, hospitais, policiamento, infra-estrutura básica, parques e jardins localizam-se nas áreas residenciais mais nobres, minimizando os custos de reprodução de seus já privilegiados habitantes. E o que falar da periferia das grandes cidades brasileiras, habitada por uma enorme e crescente força de trabalho não-qualificada, que tem parte de seu tempo cotidiano desperdiçado com horas de viagens entre locais de residência e de trabalho? A respeito da reprodução dos moradores da periferia, Chico Buarque de Holanda tem enorme sensibilidade quando em "Pedro pedreiro" escreve: Pedro pedreiro, penseiro Esperando o trem . ....... E a mulher de Pedro esperando um filho Pra esperar também .. ... .. .. . .. Assim, a organização espacial do presente impacta sobre o futuro, adquirindo aquilo que Milton Santos denomina de inércia dinâmica. Estrutura, processo, função e forma Segundo Milton Santos (1985), para se compreender a organização espacial e sua evolução - quer dizer, a evolução da totalidade social espacializada -, torna-se necessário que se interprete a relação dialética entre estrutura, processo, função e forma. Estas são as categorias analíticas que permitem a compreensão da totalidade social em sua espacialização, como os homens organizam sua sociedade no espaço, e como a concepção e o uso que o homem faz do espaço sofrem mudanças. (MILTON SANTOS, 1985, p. 53.) Segundo Santos, forma é o aspecto visível, exterior, de um objeto, referindo-se ainda ao arranjo deles, que passam a constituir um padrão espacial. Uma casa, um bairro, uma cidade e uma rede urbana são formas, formas espaciais de diferentes escalas.Ê conveniente deixar claro que não se pode considerar a forma de per si. Se assim o fizéssemos, cairíamos em uma análise da forma pela forma, atribuindo a ela uma autonomia que não tem. Estaríamos, ainda, deslocando a forma para o âmbito da geometria, a linguagem da forma, caindo em um espacialismo estéril para a compreensão da organização espacial. Por outro lado, se considerássemos que a partir da forma seria possível apreender a realidade em sua essência, incorreríamos em um grave erro. Tratar-se-ia da apreensão de um aspecto da realidade, a sua aparência, incapaz de permitir vê-Ia em sua concretização, porque sua essência aparece nos processos e funções que emanam da estrutura, como se verá. Seria uma pseudoêoncretização, conforme Kosik15. Por sua vez, .a noção de função implica uma tarefa, atividade ou papel a ser desempenhado pelo objeto criado. Assim, este tem um aspecto exterior, visível – a forma - e desempenha uma atividade - a função. Habitar, viver o cotidiano, a vida em suas variadas facetas - trabalho, compras, lazer -, visitar parentes e consumir em outras cidades são algumas das funções associadas, respectivamente, à casa, ao bairro, à cidade e à rede urbana. A relação entre forma e função é, em princípio, direta: uma determinada forma é criada paia desempenhar uma ou várias funções. E não existe função sem a sua forma correspondente. Daí não se poder dissociar forma e função no estudo da organização espacial. Contudo, apenas a consideração da forma e da função não é suficiente para compreendê-la: estaríamos retirando da realidade social a sua natureza histórica, isto é, as características sociais e econômicas e suas transformações. Cairíamos em uma análise espacial de cunho funcionalista. Segundo Santos, o termo estrutura, relativo ao modo como os objetos estão organizados, refere-se não a um padrão espacial, mas à maneira como estão inter-relacionados entre si. Diferentemente da forma, a estrutura não constitui algo que tenha uma exterioridade imediata. Ela é invisível, estando subjacente à forma, uma espécie de matriz onde a forma é gerada. Estrutura é a natureza social e econômica de uma sociedade em um dado momento do tempo. Por sua vez, processo é definido como uma ação que se realiza continuamente, visando um resultado qualquer, implicando tempo e mudança. Os processos acontecem dentro de uma dada estrutura social e econômica e resultam das contradições internas da mesma. Com isto, estamos dizendo que processo é uma estrutura em seu movimento de transformação. Se considerarmos, portanto, apenas as categorias de estrutura e processo, estaremos fazendo uma análise a-espacial, não-geográfica, absolutamente incapaz de captar a organização espacial de uma dada sociedade em um dado momento do tempo ou suas mudanças no mesmo. Considerando apenas a estrutura e 'a forma, desprezando o papel do processo e da função, deixaríamos de lado a mediação (processo e função) entre o que é subjacente (a estrutura social e econômica) e o exteriorizado (a forma espacial). Perde-se a história, os elementos dinâmicos de transformação, que põem a estrutura em marcha, culminando na mudança ou permanência das formas espaciais. Reafirmando, diríamos com Santos: Forma, função, estrutura e processo são quatro termos disjuntivos associados, a empregar segundo um contexto do mundo de todo dia. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, limitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma base teórica e metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade. (MILTON SANTOS, 1985, p. 52.) A partir da estrutura social e econômica, podemos considerar as interrelações entre estrutura, processo, função e forma. Uma dada estrutura social e econômica possui seus processos intrínsecos que demandam funções a serem cristalizadas em formas espaciais. Cessadas as razões que deram origem a elas, podem desaparecer, dando origem a outras. A famosa expressão destruição criadora refere-se à intensidade desta substituição no capitalismo. Contudo, na sociedade capitalista, a força de permanência das formas espaciais tem sido crescente. O fato de muitas das formas construídas transformarem-se em capitais fixos, apresentando ainda determinado nível de remuneração do capital investido, ou então um certo valor para a sociedade, explica a força de inércia que possuem. Ademais, muitas destas formas são dotadas de certa flexibilidade que permite uma adaptação às exigências das novas funções criadas em momentos posteriores à sua criação. Assim, o moderno, a função, e o antigo, a forma, podem estar juntos, ao lado de funções e formas contemporâneas, tornando complexa a organização espacial. Vejamos um exemplo. É comum encontrarem-se áreas caracterizadas por residências deterioradas, os cortiços, próximas ao centro das grandes cidades capitalistas. São residências do século XVIII, XIX ou do início deste, que foram habitadas no passado por famílias de alto status. A partir de um determinado momento, abandonaram a proximidade do centro e foram habitar novas residências construídas em bairros mais distantes do centro da cidade. As antigas residências foram parcialmente substituídas por altos edifícios, transformadas em escritórios ou lojas, ou ainda em cortiços habitados por famílias de baixa renda: cada residência abriga várias famílias, cada uma ocupando uma única peça e tendo em comum o banheiro e a cozinha. A velha forma espacial ganha, com seu novo conteúdo, funções diferenciadas: fornecer residência barata para parte da classe trabalhadora, via de regra constituída de imigrantes, que tem seu mercado de trabalho junto ao centro, e permitir a extração de uma renda para uma parcela dos proprietários dos imóveis deteriorados. Estas funções, por sua vez, resultam de um processo que está no centro da estrutura sócio-econômica capitalista, o de acumulação de capital que, no caso em tela, implica a criação de novos bairros, a extração de uma renda fundiária e o barateamento do custo da força de trabalho e de sua reprodução, através de residências precárias e baratas próximas ao local de trabalho. Na análise da organização espacial, deve-se ter o cuidado de não se iludir pela semelhança das formas espaciais. Formas semelhantes podem ser oriundas de processos distintos, e realizarem funções diferentes. Isto significa que, ao se transpor, por analogia, o conhecimento adquirido sobre uma forma para outra, corre-se o risco de se cometer uma inferência errada. Não resta dúvida de que podemos deduzir, com alguma precisão, as formas que podem emergir de um determinado processo e sua função correspondente. No entanto, o inverso não é verdadeiro. Formas semelhantes oriundas de processos diferentes podem ser criadas em duas estruturas sociais e econômicas distintas, visando, por exemplo, escamotear a realidade. A flexibilidade das formas quanto ao seu uso assim o permite. Mas admitimos que esta questão não está de todo resolvida. A partir da compreensão das relações entre estrutura, processo, função e forma, as categorias analíticas que dão conta da totalidade social em sua espacialização, podem-se, sem receio de cair no empirismo, iniciar o estudo da organização espacial de uma sociedade em um dado momento de sua história pelas suas formas. Espaço e movimentos sociais urbanos A cidade tem-se constituído, ao longo da história, no principal local das lutas sociais. As barricadas de Paris e as greves por toda parte são exemplos destas lutas sociais que se verificam no espaço urbano capitalista, onde estão as fábricas, os proprietários dos meios de produção, os operários, os diferentes setores de classe média e os grupos marginalizados. Elas são a expressão dos conflitos entre capital e trabalho. A consciência da existência de uma organização espacial urbana desigual, caracterizada por uma complexa divisão técnica e social do espaço, associada a uma enorme diferença nas condições de vida dos diversos grupos sociais da cidade, têm gerado, a partir da década de 60, um novo modo de manifestação das lutas sociais. São os denominados movimentos sociais urbanos. A diferenciação na organização espacial da grande cidade latinoamericana é notável. Em relação às áreas residenciais, há bairros aprazíveis e faraônicos, habitados por uma população de alto nível de renda – proprietários dos meios de produção e assalariados regulares e bem-remunerados -, que a par das belas e luxuosas residências, dispõem de uma boa infra-estrutura e serviços adequados: água, esgoto, luz, calçamento, praças, parques, clubes, policiamento, comércio de luxo, os melhores consultórios e clínicas médicas, e excelentes escolas. Estes bairros localizam-se, normalmente, nos setores de amenidades da cidade, em áreas de alto preço da terra. Em oposição a estes bairros, há outros habitados por uma população de baixo nível de renda, constituída por operários não-qualificados, humildes empregados do setor terciário, subempregados e desempregados, que vivem em favelas dispersas pelo espaço urbano, em conjuntos habitacionais construídos pelo Estado, ou em precárias casas autoconstruídas pela própria população em suas horas de repouso e lazer - caracterizando, portanto, um sobretrabalho. Tanto os conjuntos habitacionais como as casas autoconstruídas localizam-se na periferia do espaço urbano, em áreas precariamente dotadas de infra-estrutura e serviços, e de baixo preço da terra. Além destas áreas dispersas ou distantes do centro da cidade, os cortiços existentes nas proximidades do centro abrigam uma determinada parcela da população de baixo nível de renda. Entre uma área e outra, localizam-se os bairros das diferentes frações da classe média. Caracterizam-se por apresentarem aspectos que ora os aproximam dos bairros populares, ora dos ricos. A diferenciação do espaço urbano em termos residenciais tem, como já se viu, o papel de viabilizar a reprodução das diferentes classes e suas frações. Ela é percebida no trajeto para o trabalho, nos locais de residência e de trabalho, nas viagens de compra, visitas e lazer, e nas informações provenientes da enorme profusão dos meios de comunicação. A consciência das diferenciações sócio-espaciais faz com que cada um destes espaços residenciais seja também de reivindicações, específicas ao grupo social que ali reside. Reivindicações que dizem respeito às condições de reprodução de cada grupo social. As exigências assumem uma expressão espacial através dos movimentos sociais urbanos que se manifestam, não nos locais de trabalho, com as greves, mas nos bairros, nos locais de reprodução das classes sociais e suas frações. As reivindicações dizem respeito ao direito a uma habitação decente, ao acesso aos vários equipamentos de consumo coletivo como água e esgoto, ao direito de permanecer no local da residência e não ser transferido compulsoriamente, ou seja, reivindicações pelo "direito à cidade". As associações de moradores são os agentes através dos quais a mobilização reivindicatória é processada. Os movimentos sociais urbanos têm como origem as contradições específicas da problemática urbana, que são, de um lado, aquelas entre as necessidades coletivas de equipamentos como habitação, transporte, saúde e cultura, e, ainda pensando em espaço, as contradições aparecem não apenas no suporte da habitação, mas também na localização relativa face ao mercado de trabalho, e, de outro lado, a lógica capitalista, que torna pouco rentável a produção destes equipamentos pelo capital privado. A contradição entre o modo individual de apropriação das condições de vida e o coletivo. de gestão é, por sua vez, dificultada pela natureza privada e pulverizada dos agentes econômicos, cujos interesses não se referem a todo o conjunto do espaço urbano. No contexto das contradições acima referidas, o Estado encarrega-se de prover os equipamentos de consumo coletivo para todo o espaço urbano. No entanto, como o Estado é também o elemento de legitimação da classe dominante, sua atuação enquanto provedor tende, por um lado, a reforçar as áreas residenciais nobres, e por outro, a viabilizar o sucesso de novas implantações produtivas do grande capital, através, por exemplo, da criação de distritos industriais. Isto significa que a sua atuação não se realiza de modo uniforme no espaço urbano, atuação que se traduziria nos investimentos em água e esgoto, na criação de uma completa infra-estrutura para implantações industriais, na produção de novos espaços urbanizáveis, na abertura de vias de grande densidade de tráfego, na instalação de áreas de lazer, na renovação urbana, na construção de conjuntos habitacionais, mas também na expulsão de moradores e permissividade na proliferação de loteamentos populares sem infra-estrutura. Aos olhos da população de baixo nível de renda, o Estado representa uma instituição que não cumpre seus deveres, não atende às crescentes necessidades coletivas de certas áreas da cidade, visto até como um adversário que procura romper modos de vida enraizados em certos locais. Os movimentos sociais urbanos têm como alvo o Estado e não os proprietários dos meios de produção. Acreditamos com Lojkine16 que os movimentos sociais urbanos possam assumir um papel significativo nas transformações da sociedade e de sua organização espacial, quando duas questões, ambas associadas ao espaço geográfico, forem esclarecidas e resolvidas. Primeiramente, quando for desmoronada a barreira ideológica que isola o mundo da produção do da reprodução. Quando ficar claro que as questões que emergem nos locais de trabalho e nos de residência são, no fundo, uma única questão, desdobrada em termos espaciais pelo capitalismo e sua organização. Afinal de contas o efeito das horas de trabalho não-remunerado, centro da mais-valia e da acumulação de capital, é sentido mesmo nos locais de residência, esquecidos dos investimentos em equip,amentos de consumo coletivo por um Estado a serviço de interesses que não são os dos habitantes das periferias de autoconstrução, dos distantes e precários conjuntos habitacionais, das favelas e dos cortiços. Em segundo lugar, quando os movimentos sociais urbanos ultrapassarem a escala local, do bairro e da cidade, e se inserirem em uma escala nacional, que abranja as questões da fábrica e do bairro. Ou seja, quando ficar clara a idéia de unidade da totalidade sócio-espacial. Caso contrário, os movimentos sociais urbanos, expressão da espacialização da organização social, estarão destinados a se esvaziarem, na medida em que as reivindicações feitas forem atendidas no todo ou em parte. Não é com "remendos" (água, calçamento, posto de saúde etc.) na organização espacial que se resolverá a questão das desigualdades sociais. É preciso que a organização social mude para que, em seus aspectos mais essenciais, a organização espacial possa também mudar. Mudar a partir da prática daquele que assumirá o papel de agente de seu próprio destino e modelador de seu espaço: o homem novo, de uma sociedade sem classes sociais. 5 Vocabulário crítico Complexo industrial: trata-se de um conjunto de indústrias espacialmente concentradas e interligadas por fluxos de matérias-primas e bens intermediários (peças e componentes que serão incorporados a um produto final). Em muitos casos, a ligação entre as indústrias dá-se também pela coparticipação acionária das empresas industriais. Em um complexo industrial, exemplo de economias de aglomeração, há indústrias de bens de capital, como a metalurgia e a química pesada, de consumo durável, como os eletrodomésticos, e não-durável, como os tecidos sintéticos. A área metropolitana de São Paulo e o vale do Ruhr são exemplos de complexos industriais. Difusão de inovações: trata-se do espraiamento de idéias ou artefatos novos. Em geografia, fala-se da difusão espacial de inovações, ou seja, consideram-se os caminhos percorridos e a rapidez do percurso, conduzidos por agentes inovadores. O conceito de modernização está associado à idéia de difusão de inovações. O conceito em pauta aparece em Ratzel, é largamente adotado pelos geógrafos culturais e, mais tarde, pela nova geografia. A teoria da difusão espacial de inovações considera a difusão por contágio, à semelhança de uma mancha de óleo espalhando-se, a difusão hierárquica, através da rede de cidades, e a difusão espacialmente salteada, que passa por cima de áreas que não são afetadas pela inovação. Hinterlândia: significa área subordinada economicamente a um centro urbano. Emprega-se a palavra referindo-se a áreas de influência de uma cidade como Belo Horizonte, Montes Claros ou Januária, e também no sentido de um amplo território colonial sob o domínio de uma metrópole ultramarina. Ideologia: a acepção adotada é a de ocultação da realidade ou falsa consciência, e não a comum, de um conjunto de idéias políticas, econômicas ou sociais: para isto deve-se empregar a palavra ideário. Um ideário, contudo, pode ser visto como sendo uma ideologia. A noção de ideologia adotada é proveniente de Marx e Engels e tem como pano de fundo a existência de classes sociais antagônicas e a dominação de uma classe sobre as demais: a sustentação da classe dominante faz-se pela ideologia, através dos aparelhos ideológicos de Estado (escola, família etc.), e pela repressão, através dos aparelhos repressivos de Estado (polícia, leis etc.). Ver sobre o assunto o livro de Marilena Chauí, O que é ideologia. Localidade central: expressão criada em 1933 pelo geógrafo alemão Walter Christaller para designar um lugar de venda de produtos industrializados e de prestação de serviços educacionais, de saúde, bancários etc. Uma cidade comercial servindo a uma zona rural e a cidades menores (ver Hinterlândia) é uma localidade central. A teoria das localidades centrais aborda a organização espacial desses lugares, organização que inclui a hierarquia entre eles. Paradigma: entendido como visão de mundo adotada e compartilhada por uma determinada comunidade científica. Tem sentido mais amplo que teoria porque representa um conjunto de crenças e valores. Ou seja, as lentes através das quais uma comunidade científica enxerga o mundo real e, explícita ou implicitamente, antevê o futuro. Thomas S. Kuhn dá esta acepção ao termo, em seu livro The Structure of Scientific Revolution. Mais tarde, ele próprio redenominou-o de matriz disciplinária. Posição geográfica: refere-se à localização relativa de uma forma espacial criada pelo homem, fábrica, mina ou cidade, face ao acesso aos recursos naturais e/ou ao mercado consumidor. Uma posição geográfica favorável é aquela que tem efeitos positivos, segundo o que se espera do desempenho das funções que a forma espacial realiza: para cada forma espacial - hospital, usina siderúrgica ou cidade comercial - há uma posição geográfica favorável. É conveniente notar que o valor atribuído a uma posição geográfica de determinada forma espacial pode ser alterado a partir de mudanças tecnológicas ou nas relações de produção. Um conceito complementar ao de posição geográfica é o de sítio, que se refere à localização absoluta de uma forma geográfica: em um terraço fluvial, em terrenos coluviais etc. A posição geográfica implica, geralmente, considerar uma forma espacial à luz de uma pequena escala (1:500.000, por exemplo), enquanto o sítio em uma grande (1:2.000, por exemplo). Regra da ordem e tamanho de cidades: modelo desenvolvido por G. K. Zipf onde se considera que existe uma relação entre o tamanho de uma cidade e a sua posição ou ordem no âmbito das cidades de um país. Para Zipf, a maior cidade teria tamanho 1, a segunda 1/2, a terceira 1/3, a quarta 1/4 e a cidade n o tamanho l/n. Este padrão indicaria um estado de equilíbrio no processo de desenvolvimento social e espacial, não sendo a maior cidade várias vezes maior que a segunda do país, caso este que originaria uma cidade primaz. 6 Bibliografia comentada CHRISTOFOLETTAI,ntonio, org. Perspectivas da geografia.São Paulo, DIFEL, 1982. Coletânea de artigos relativos às várias correntes do pensamento geográfico, incluindo a geografia humanística e a visão idealista em geografia, correntes recentes, posteriores à nova geografia, e que neste trabalho não foram consideradas. Inclui um artigo clássico de Paul Vidal de Ia Blache sobre a natureza da geografia. CLAVAL,Paul. Evolución de Ia geografia humana. Barcelona, Oikos-Tau, 1974. Esse livro trata da história do pensamento geográfico desde o aparecimento do determinismo ambiental até à nova geografia, constituindo-se em obra de referência básica. HARTSHORNER, Richard. Propósitos e natureza da geografia. (Trad. Thomaz Newlands Neto). São Paulo, HUCITEC, 1978. Trata-se da segunda grande obra de Hartshorne, constituindo-se em uma réplica aos críticos de sua grande obra The Nature of Geography de 1939. Neste livro, Hartshorne ratifica a defesa da geografia e do método regional, do caráter único dos lugares, e da impossibilidade de elaboração de leis em geografia. HARVEY,David. Explanation in Geography. London, Edward Arnold, 1969. É o mais importante livro sobre a nova geografia, fornecendo suas bases filosóficas e metodológicas. É de fundamental importância para quem quiser aprofundar-se na questão da transposição do positivismo lógico e da teoria dos sistemas para a geografia. JAMES,Preston E. A Possible Worlds; a History of Geographic Ideas. New York, The Odyssey Press, 1972. Uma das maisabrangentes obras, ainda que descritiva, sobre a história do pensamento geográfico, sendo fonte de consulta obrigatória a respeito de períodos, autores e "escolas nacionais" de geografia. Estende-se da Antigüidade Clássica ao início da década de 70. Inclui vastíssima bibliografia e um útil índice comentado de geógrafos de todo o mundo. LACOSTE,Yves. A geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976. Este livro tece uma crítica à geografia dos professores e ao caráter ideológico, de um modo geral, da geografia. Trata-se de uma das mais profundas críticas à escola vidaliana de geografia, pondo em questão, entre outros aspectos, o conceito de região. MEGALE,Januário Francisco, org. Max. Sorre. São Paulo, Ática, 1984. (Col. Grandes Cientistas Sociais, 46.) Coletânea de artigos e capítulos de livros do geógrafo francês Maximilien Sorre. Faz parte da Coleção Grandes Cientistas Sociais que incluirá, entre outras, aquelas relativas a Humboldt, Ritter, Ratzel, Vidal de Ia Blache e Sauer. É indispensável a sua leitura, pois trata-se de uma ida às fontes, de se ler o que os grandes nomes da geografia escreveram. MORAES,Antonio Carlos Robert. Geografia – pequena história critica. São Paulo, HUCITEC, 1981. Trabalho de natureza crítica sobre a história do pensamento geográfico; estende-se de Humboldt e Ritter à geografia crítica. Extremamente útil para aqueles que queiram situar a geografia histórica e geograficamente. ------ & COSTA,Wanderley Messias da. Geografia crítica: a valorização do espaço. São Paulo, HUCITEC, 1984. Este livro é extremamente importante porque procura repensar o "temário geográfico à luz do materialismo histórico e dialético". A questão do espaço, vista a partir da teoria do valor, é o tema central do livro: os autores apresentam e discutem os conceitos de valor no e do espaço. MOREIRA,Ruy. O que é geografia. São Paulo, Brasiliense, 1981. Pequeno e rico trabalho sobre a geografia vista de um ângulo crítico. Contém uma história da geografia, discutindo ainda a questão do espaço. ------, org. Geografia, teoria e critica: o saber posto em questão. Petrópolis, Vozes, 1982. Coletânea de artigos de geógrafos brasileiros abordando a geografia a partir de uma visão crítica. O livro está dividido em duas partes, a primeira fazendo a crítica teórica, e a segunda a releitura da sociedade. Contém o artigo de Ruy Moreira "A geografia serve para desvendar máscaras sociais", contribuição básica para se pensar a organização espacial. ------,o movimento operário e a questão cidade-campo no Brasil; estudo sobre sociedade e espaço. Petrópolis, Vozes, 1985. Estudo sobre as relações entre a organização espacial e a sociedade brasileira. O primeiro capítulo é particularmente relevante para uma iniciação crítica sobre o conceito de organização espacial. QUAINI,Massimo. Marxismo e geografia. Trad. Liliana Laganá Fernandes. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. Este livro aborda as relações entre o marxismo e a geografia, sendo uma fonte de reflexão centrada no eixo natureza-história. SANTOS,Milton. Por uma geografia nova; da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo, HUCITEC, 1978. Trata-se de obra fundamental para a "renovação crítica" da geografia. A primeira parte aborda criticamente a história da geografia, e a segunda discute a questão do espaço, que para o autor constitui uma instância da sociedade. A terceira parte é uma proposta de geografia crítica. ------, Espaço e sociedade. Petrópolis, Vozes, 1979. Conjunto de ensaios em que o autor aborda as relações entre espaço e sociedade, privilegiando, de certo modo, os países subdesenvolvidos. Contém, entre outros, o artigo "Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como método", de fundamental importância para se compreender a natureza da organização espacial. ------, org. Novos rumos da geografia brasileira. São Paulo, HUCITEC, 1982. Coletânea de artigos de geógrafos brasileiros tratando criticamente questões geográficas, tanto no plano teórico como considerando o espaço brasileiro. Contém, entre outros, os artigos de Manuel Correia de Andrade, "O pensamento geográfico e a realidade brasileira", e o de Ruy Moreira, "Repensando a geografia", outro artigo importante para a compreensão da organização espacial. ------. Espaço e método. São Paulo, Nobel, 1985. Conjunto de ensaios escritos em sua quase totalidade na década de 80, abordando a natureza e o conceito de espaço. Os elementos do espaço, suas categorias de análise, a dimensão temporal e os sistemas espaciais no Terceiro Mundo, e as relações entre espaço e capital, são alguns dos temas abordados. SODRÉ,Nelson Werneck. Introdução à geografia: geografia e ideologia. Petrópolis, Vozes, 1976. Estudo crítico sobre a história da geografia desde a Antigüidade até a geopolítica dos anos 30. Referência Bibliográfica de Rodapé 1HERBERTSON,A. J. The Major Natural Regions: An Essay in Systematic Geography. Geograpllical fOI/mal, march, 1905. 2 HERBERTSON,A. J Op. cit., p. 309. 3 Divisão regional do Brasil. Revista brasileira de geografia, 3(2), 1941. 4ABLER, R.; ADAMS, 1. S. e GOULD, P. Spatial Organization; The Geographer's View of the World. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1971. 5LABASSE,Jean. L'organization de 1'espace; éléments de géographie volontaire. Paris, Rermann, 1966. 6 GRIGG, David. Regiões, modelos e classes. Boletim geográfico.234, 1973. 7BUNGE, WiJliam. Gerrymandering, Geography and Grouping. The Geographical Review, 56 (2), 1966. 8 Regionalização; considerações metodológicas. Boletim de geografia teorética, 10 (20), 1980. 9 RIBEIRO,Darcy. O processo civilizatório. Petrópolis, Vozes. 1979. 10CORAGGIO,José Luís. Considerações teórico-metodológicas sobre as formas sociais da organização do espaço e suas tendências na América Latina. Planejamento, Salvador, 7 (1), 1979. 11 BUCH-HANSON, M. e NIELSEN, B. Marxist Geography ando the Concept of Territorial Structure. Antipode, 9 (2), 1977. 12LENIN, V. I. U. Imperialismo; fase superior do capitalismo, São Paulo, Global, 1979. 13 SANTOS,Milton. O espaço dividido. Rio de Janeiro, Francisco Alves. 1978. 14 LEFEBVRE, Henri. Espada y Palitica. Barcelona, Península, 1976. 15KOSIK,Karel. Dia/ética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1969. 16LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1981.