Redes - Filosofia e Teologia - 13.pmd

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REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - ES
Diretor: Hugo Scheer
Faculdade Salesiana de Vitória - ES
Diretor Executivo: Prof. Juper Crispino
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
Uma publicação do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória e da
Faculdade Salesiana de Vitória - ES
Coordenador
Paulo Cesar Delboni
[email protected]
Vice-coordenador
Renato Gama
Comissão Editorial
Antônio Vidal Nunes, Hugo Scheer, Paulo Cesar Delboni, Renato Gama e Renato Paganini
Conselho Editorial
Antonio Donizetti Sgarbi (Instituto de Filosofia e Teologia de Vitória - Iftav), Antônio Vidal Nunes
(Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes), Claudia P. C. Murta (Ufes), Edebrande Cavalieri
(Ufes), Franz Helm (Instituto de Teologia das Religiões, St. Gabriel, Viena - Áustria), Geraldo
Caliman (Universidade Católica de Brasília - DF), Giovani Marinot Vedoato (Iftav), Guido Gatti
(Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Jair Miranda de Paiva (Faculdade Salesiana de Vitória ES), Joachim G. Piepke (Faculdade de Filosofia e Teologia St. Augustin - Alemanha), Kelder J. B.
Figueira (Iftav), Mario Toso (Pontifícia Universidade Salesiana - Itália), Renato C. Gama (Iftav),
Tiago Adão Lara (Universidade Federal de Juiz de Fora - MG) e Virgínia A. Carrara (Faculdade
Salesiana de Vitória - ES).
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um astanssch / Si accettano scambi.
Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - IFTAV
Faculdade Salesiana de Vitória - FSV
REDES
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia
a.7 - n.13 - julho/dezembro 2009
Vitória-ES
FILOSOFIA E RELIGIÃO
ISSN 1679-4265
Redes: R
ev
il. Teol.
Rev
ev.. Capix. F
Fil.
Vitória
a.7
n.13
p.1-132
jul./de
z. 2009
jul./dez.
© 2009 - Iftav/FSV
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Revisão geral: Djalma José Vazzoler
Revisão dos abstracts: Jussara Braz da Conceição
Editoração: Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 - [email protected]
Impressão: Gráfica Quatro Irmãos | 27 3326-1555 - [email protected]
Editora: Iftav/FSV
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade Salesiana de Vitória - ES
Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. Ano 7, n. 13 (Jul./Dez. 2009). - Vitória : Iftav / FSV, 2009.
132 p. ; 21,5 cm.
Semestral
ISSN 1679-4265
1. Filosofia - Periódicos. 2. Teologia - Periódicos. I. Instituto de Filosofia e Teologia
da Arquidiocese de Vitória - ES. II. Faculdade Salesiana de Vitória.
CDU 1+2 (05)
Tiragem: 300 exemplares | Periodicidade: Semestral
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 7
CONSIDERAÇÕES PARA UMA RECUPERAÇÃO
DO CORPO NO PENSAMENTO LATINO-AMERICANO
CONTEMPORÂNEO ......................................................................................... 9-31
Considerations for a recovery of the body in the
Contemporaneous Latin American Thought
Horácio Cerutti Guldberg
CORPORALIDAD Y LIBERACIÓN LATINOAMERICANA ................ 33-44
Corporality and Latin American Liberation
Carlos Asselborn, Oscar Pacheco, Gustavo Cruz
O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO: POROSAS
FRONTEIRAS ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA .................................... 45-62
The epistemological naturalism:
Porous Bourdaries Between Philosophy and Science
José Carlos Leite
O MATERIALISMO HUMANISTA DE FEUERBACH
“HOMO HOMINI DEUS EST.” ..................................................................... 63-75
Feuerbach’s Humanist Materialism - “Homo homini deus est.”
Paulo César Delboni
SARTRE E MERLEAU-PONTY: ONTOLOGIA E POLÍTICA ............. 77-89
Sartre and Merleau-Ponty: Ontology and Politics
Jair Miranda de Paiva
A ARTE NO PENSAMENTO HEIDEGGERIANO
UMA REFLEXÃO SOBRE O BELO ........................................................... 91-102
The art in the Heideggerian Thought - A reflection on the fine
Werbson Beltrame Pereira
O CUIDADO DE SI E A PRÁTICA
EDUCATIVA CONTEMPORÂNEA ......................................................... 103-114
The self-care and the contemporaneous educative practice
Arlindo Rodrigues Picoli
PAULO FREIRE: O PROFETA DO HUMANO .................................... 115-126
Paulo Freire: The prophet of the humanEliesér Toretta Zen
REVISTAS EM PERMUTAS ........................................................................ 127-130
NOTA AOS COLABORADORES ............................................................... 131-132
APRESENTAÇÃO
A
Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Redes), fundada
em 2003, de circulação semestral, é fruto de uma parceria
dos cursos de Filosofia da Faculdade Salesiana de Vitória e
Teologia do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória (Iftav). O periódico foi concebido para estimular e difundir a construção do conhecimento filosófico-teológico produzido pelos professores e alunos dos citados cursos, bem como de pesquisadores de outras instituições de ensino e pesquisa. O nome Redes conserva a universalidade dos temas básicos da revista, que são filosofia e teologia. O
conhecimento é aqui pensado como entrelaçamento de significações.
“Rede” traz à tona as ideias de acentrismo, metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, transdisciplinaridade. A Redes busca a coerência
entre a práxis dos cursos de Filosofia e Teologia, além da integração
multidisciplinar com diversas outras áreas do conhecimento, como as
ciências da religião, incluindo aí vários recortes que podem ser feitos
no estudo do fenômeno religioso, destacando-se a antropologia, a comunicação social, a história, a pedagogia, a psicologia e a sociologia.
Paulo Cesar Delboni
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.7, jul./dez. 2009
7
.
CONSIDERAÇÕES PARA UMA RECUPERAÇÃO DO
CORPO NO PENSAMENTO LATINO-AMERICANO
CONTEMPORÂNEO
Para Tutis
Horácio Cerutti Guldberg1
Resumo
A partir de uma perspectiva libertadora latino-americana, o autor busca estabelecer
uma compreensão do corpo, em interlocução com pesquisadores das mais variadas
áreas do saber em uma abordagem interdisciplinar. Busca resgatar a contribuição de
vários autores latino-americanos que se dedicaram ao estudo deste corpo que somos,
que foi assumido de formas diferentes por tradições religiosas e pelo nosso sistema
capitalista. O corpo que somos deve ser considerado não apenas subjetivamente,
mas coletivamente.
Palavras-chave: Corpo. Religião. Libertação. Vital.
O presente trabalho2 tem pretensões muito modestas. Trata-se de aproximarse de maneira apenas provisória e hipotética de algumas, somente algumas,
das modalidades que adotou o pensamento latino-americano para nos
reapropriarmos dos próprios corpos que nos constituem. Certamente assumo
os riscos evidentes e premeditados e até mesmo forço o enfoque em alguns
casos, a fim de trazer água ao meu moinho... Não me arrependo. A necessidade
de nos reconhecermos como seres corporais é urgente. Trata-se de uma questão
secular.
1
2
Catedrático da Universidade Autônoma do México ( Investigador do Centro Coordenador e difusor
de Estudos Latino- Americano e professor da Faculdade Filosofia e Letras)
Agradeço o gentil convite de minhas colegas Maria del Pilar Jimenéz Silva e Norma Delia Durán
Amavizca para dar minha contribuição a este volume coletivo. Por um fraterno convite de Mario
Magallón, li este texto na Conferência Magistral de Inauguração do Colóquio: “Historia, Educación y
cultura en América Latina. Vista desde o espaço interdisciplinar”, em abril de 2005.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.9-31, jul./dez. 2009
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Horácio Cerutti Guldberg
1. Opção pelos corpos...
Quando ia ao templo, este se fazia pequeno para seu corpo.
Não quero dizer com isso que nosso templo seja, na realidade,
pequeno; nem que a formosura de Thamar seja tão abundante
que chame loucamente a atenção, mas sim que o templo e Thamar
não estavam de acordo.
A “opção” ou “escolha” se constitui em um dos conceitos há muito presente na
reflexão contemporânea. Nas formas como esse conceito é assumido ou adotado
remonta até o existencialismo francês; particularmente até Jean Paul Sartre.
Porém, o importante – assim como a pertinência que seria reexaminar esses
antecedentes – é a renovada vigência que ele adquiriu em nossa região geocultural
a partir do final dos anos 60, ou seja, na segunda metade do século passado.
Particularmente no pensamento da libertação e, sobretudo, na reflexão teológica.
É conhecida a expressão nuclear da teologia da libertação: a “opção pelos pobres”.
É importante ressaltar que esta opção, decisão, escolha, posicionamento significa
inicialmente um colocar-se do lado dos pobres, ao preço de assumir todos os
custos de tal atitude. Também é sabido que a hierarquia eclesiástica católica mais
conservadora soube demarcar a radicalidade dessa proposta mediante o acréscimo
de um termo que se conserva até hoje como ingrediente indispensável dessa
expressão, ao ponto de quase confundir-se com ela: opção “preferencialmente”
pelos pobres. Essa preferência auxiliou a não excluir de entrada os pobres e,
inclusive, permitiu em casos extremos seguir militantemente do lado dos ricos e
poderosos. Isto foi criticado oportunamente por Hugo Assmann, que advertiu,
ademais, que por isso mesmo a linguagem não garantia nada. É possível bater
no peito e pronunciar palavras; porém, se as ações não acompanham o discurso,
pouco se pode esperar unicamente das palavras.3
Com toda claridade anotava a dificuldade desse tópico em uma visão retrospectiva Gustavo Gutierrez, certamente na perspectiva teológica.
A palavra “opção” nem sempre tem sido bem interpretada. Como toda
expressão, tem seus limites, mas com ela se quer acentuar o caráter livre e
3
Para um exame mais pormenorizado de suas propostas em relação a estes aspecto remeto ao meu
livro Filosofia de la liberación latinoamericana. p. 128-134. (Existe uma terceira edição corrigida e ampliada
desta obra. México: FCE, 2006).
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.9-31, jul./dez. 2009
Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
comprometedor de uma decisão. Não é algo facultativo, se entendermos por
isto que um cristão pode fazer ou não esta opção pelos pobres, como tão
pouco é facultativo o amor que devemos ter a toda pessoa humana, sem
exceção. Se trata de uma solidariedade profunda e permanente, de uma inserção
cotidiana no mundo do pobre. Por outro lado, a palavra “opção” tampouco
supõe necessariamente que os que a fazem não pertençam ao mundo dos
pobres; assim é em muitos casos, porém convém precisar que os mesmos
pobres devem também essa decisão (GUTIÉRREZ, 1993, p. 309).
Nessas palavras ficam bem amarradas as dimensões teológicas e antropológicas
dessa expressão fundamental.
Em um sentido muito semelhante se expressava Ignacio Ellacuría na mesma
obra coletiva.
A opção preferencial pelos pobres, entendida de modo radical e efetivo, no
sentido de que estes sejam os que dinamicamente tomem a iniciativa, pode,
antes de tudo, transformar a igreja radicalmente e assim constituir-se na chave
e motor de uma utopia cristã como projeto histórico libertador. Tal movimento
se reflete nas formas teóricas e práticas da teologia da libertação, que é em si
mesma um modo de profetismo eficaz para a motivação de uma nova utopia
histórica cristã. Por isso que ela é temida tanto dentro como fora da Igreja
(ELLACURÍA, 1990, p. 401).
Não é agora o momento de detalhar a questão da utopia; contudo, convém
ressaltar que essa se encontra estreitamente unida com a questão da opção.
Tanto no pensamento como em qualquer enfoque secular que se adote.4
A questão da opção não é assunto menor, porque alude de forma central ao
exercício mesmo da liberdade. Para que haja verdadeira opção, escolha, ou
decisão responsável é pertinente contar com alternativas, pelo menos duas.
Por isso, o uso da expressão está permanentemente ameaçado, como se pode
4
Para uma orientação preliminar sobre o tema remeto a alguns de meus trabalhos: De Varia Utópica
(Ensayos de Utopia III). Existe uma segunda edição corrigida desta obra com o título La utopia de
Nuestra América (De varia utopia. Ensayos de Utopia III). Costa Rica: Universidad Nacional, 2007; Presagio
y tópica del descubrimiento (Ensayos de Utopia IV). México: UNAM, 2007; Teoria de la Utopia? In: Oscar
Aguero e Horacio Cerutti Guldeber (editores, Utopia y Nuestra América. Quito: Abya-yala, 1996.
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Horácio Cerutti Guldberg
constatar ad nauseam nos próprios textos. Não é raro encontrar formulações
como a seguinte: não resta outra opção senão... A qual põe em questão a
própria possibilidade da opção, na medida em que aparece como uma decisão
forçada ou inapelável. Desde o ponto de vista teológico, o assunto tem seu
fundamento, porque, como disse Gutierrez, não é uma questão “facultativa”,
pois Deus estabeleceu o mandamento. A pessoa é livre de aceitá-lo ou não.
Porém, no caso de recusa, mal se pode seguir identificando-se como cristão.
Em todo caso, nas filosofias para libertação se debateu o assunto, ainda que
as ambiguidades não fossem de todo superadas. O caso mais expressivo, talvez,
é o da proposta de uma opção restrita aos setores médios, também conhecidos
como classe média ou pequena burguesia, considerada como o único segmento
social com capacidade de optar. Dado que, não sendo ricos nem pobres, os
que a ela pertencem são os únicos em condições de decidir responsavelmente
que lado permanecem.5 Não resta dúvida que uma expectativa como essa
apareceria claramente questionada e impugnada por posicionamentos como
antes mencionados por Gutiérrez. Talvez a maior lucidez e precisão alcançou
a reflexão crítica de Manuel Ignácio Santos
[...] uma opção pelo povo poderia dar-se externamente, desde o espaço acadêmico
e inclusive, da filosofia elaborada no exterior da práxis histórica e política do
povo [...], [a qual] poderia chegar inclusive a pensar a partir do povo, que opta
pelo povo, em seu pensamento, mas que não se constitui mediante uma práxis
que não a própria práxis do povo (GULDBERG, 1983, p. 128-134).
Em um estudo recente, Hector Samour examina com todo cuidado a filosofia
de Ignacio Ellacuría e reconstrói o fio genético de sua gestação. Seu trabalho
tem, entre outros méritos, o de assinalar como o teólogo e filósofo jesuíta
basco salvadorenho elaborou conceitualmente a questão da opção. Ao ponto
de concluir o texto com as sugestivas palavras:
5
Por exemplo, Juan Carlos Scannone escrevia: “Em uma concepção marxista às classes sociais
intermediárias não proletárias, compete um papel meramente auxiliar no processo de libertação. Da
dialética que esboçamos (analéptica) se concluirá o papel ético que cabe a estes grupos sociais (não
dizemos classes), pois, como são grupos convidados para as vantagens do sistema, sua opção livre
para os oprimidos é um gesto moral altamente significativo do homem novo que se pretende instaurar.
Para a libertação não basta que se deem as condições objetivas, mas sim que também são necessárias
as subjetivas” SCANNONE, 1972). Para um tratamento mais detalhado deste ponto remeto a meu
livro Filosofia de la liberación, p. 258-259).
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.9-31, jul./dez. 2009
Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
[...] Ellacuría optou por viver no mundo dos despossuídos e crucificados da
terra, se colocou conscientemente no lugar da realidade histórica onde não
havia alternativas, mas sim opressão, lugar das vítimas despojadas de toda
figura humana, e por ele deu sua própria vida. Neste sentido, não somente
sua filosofia, mas também sua práxis e seu destino nos fazem pensar e podem
ser também uma exortação à ação (SAMOUR, 2002, p. 395).
Não se trata de seguir aqui em detalhe o reiterado e cuidadoso tratamento que
Samour6 dá a esta questão. O que importa ressaltar é o matiz de precisão que
havia estabelecido Ellacuría, conforme evidenciou seu estudo. Matiz que
considero um tanto quanto ignorado na reflexão anterior e posterior ao
assassinato do jesuíta. Enfatiza Samour que, na concepção de Ellacuría
profundamente tecida a partir do magistério de Xavier Zubiri, “[...] para falar
com rigor e seriedade de um futuro não é suficiente chamar assim, a tudo o
que ainda não é, mesmo que se tenha potencial físico para realizá-lo: só é
futuro aquilo que ainda não é, mas cuja realidade esteja no presente dado,
todas as suas possibilidades” (SAMOUR, 2002, p. 75). Eis aqui, in nuce, a
distinção capital entre potência e possibilidade. A primeira em sentido
aristotélico e a segunda em versão zubiriano-ellacuriana. Samour destaca
conclusivamente esta distinção ao afirmar que Ellacuría “[...] entende a realidade
histórica como apropriação e atualização de possibilidades, e não como
desenvolvimento em ato do que em potência já existia desde o princípio da
mesma” (SAMOUR, 2002, p. 204). Por isso a ação humana inclui o triplo
caráter de agente, ator e autor. Absolutiza-se de forma excludente uma dessas
três dimensões em detrimento das outras, desarticula-se e desfigura-se o
humano. Por isso adverte Samour:
[...] ao exagerar de modo absoluto o caráter de agente cai-se em uma visão
naturalista [...] que reduz a vida humana ao mero movimento de potências
[...] ao absolutizar o caráter de ator, surge o ceticismo e as diversas formas de
fatalismo [...]. Aqui se situa a passividade dos oprimidos que tomam o dado
como real [...]. Finalmente, ao exacerbar o caráter de autor chega-se ao idealismo
6
Praticamente todo seu texto está dedicado a examinar o assunto. O qual me faz insistir com Samour,
na ideia que foi um leitmotiv fundamental de Ellacuría. Contudo, não é demais citar alguns dos lugares
onde o tratamento está explícito: Cf. por exemplo, p. 23,68, 73, 75, 77, 85, 90, 92, 99, 101, 102, 103,
112, 116, 143, 149, 162, 204-205, 284, 299, 302, 304, 320, 330-331, 336, 387.
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Horácio Cerutti Guldberg
de liberdade, porquanto se deixam de lado os condicionamentos reais e
materiais de seu exercício [...] (SAMOUR, 2002, p. 77-78, grifos meus).
Por isso pode-se considerar tese forte a seguinte afirmação: “[...] a opção
humana é absoluta enquanto opção, mas não é absoluta quanto ao conteúdo
dessa opção, que é sempre bem determinado e de certa forma determinante
da ação humana. A opção não é a de liberdade absoluta, mas aquela realizada
entre possibilidades reais e muito precisas” (SAMOUR, 2002, p. 204). Em
uma nota de rodapé está condensada a contribuição fundamental de Zubiri
a esta concepção. Vale a pena apontá-la aqui na forma como a explicita
Samour: “O homem em virtude de ser abertura não está ‘em baixo de’ suas
propriedades, mas sim, ‘por cima’ delas, posto que as apropria por opção
(SAMOUR, 2002, p. 143, nota 243). “Em sua virtude eu diria que neste
sentido não é hypo-keimenon, mas sim hyper-keimenon. A práxis dos indivíduos
é, portanto, opcional” (SAMOUR, 2002, p. 149, grifos do autor). É um “fazer
opcional de caráter quase-criador” (SAMOUR, 2002, p. 162). Por isso, citando
Ellacuría, confirma que
[...] na concepção ellacuriana o conceito que define primariamente o histórico
é o conceito de possibilidade, ou melhor, de possibilidades: “Entendemos,
aqui, por formalmente histórico aquilo que possa ser atualmente real em virtude
de uma opção, seja esta posta por um sujeito individual para si ou para os
outros, seja por um sujeito social. Há história sempre que há atualização de
possibilidades – e não atuação de potenciais – mediante uma opção”
(SAMOUR, 2002, p. 330).
Valem estas considerações iniciais para sugerir a força da argumentação de
Ellacuría, muito bem destacada e, cabe aqui dizer, reforçada pela interpretação
inteligente de Samour.
Sobre o ponto acaba por insistir Pedro Casaldáliga em uma “Carta aberta ao
Hermano Romero”, com relação a mais um aniversário de seu assassinato.
Contigo, dizia o mestre mártir Ellacuría, “Deus passou por El Salvador”, por
todo nosso mundo. E o teólogo de fronteira José Maria Vigil fez de ti três
profundas afirmações, que são mais que verdades para crer, desafios de
urgência para se assumir:
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.9-31, jul./dez. 2009
Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
“Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres e da teologia de libertação.
“Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com o Estado.
“Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres com a Igreja Institucional”.7
Mais adiante terá que ser matizado, porém nos serviremos, para concluir este
destaque, de forte teor teológico de uma afirmação de Moisés Fuentes em um
artigo recente: “[...] forjada em uma tradição que considera os prazeres eróticos
– tanto no aspecto sentimental quanto carnal – um pecado, assim como, o
corpo como origem das baixas paixões e da perdição do espírito, a religião
cristã tem procurado evitar o erótico no livro que fundamenta: a Bíblia”
(ABURTO, 2005, p. 95).8
2. Os corpos que somos....
O que hoje se sabe é que no estado inicial da pura matéria
potencialmente ativas que não se esgotavam a pura corporeidade
nem a forma da realidade que corresponde a pura corporeidade.
(SAMOUR, 2002, p. 136-137).
Um dos primeiros estudos a chamar a atenção para a importância do corpo na
filosofia em Nossa América foi Arturo Rico Bovio. Em duas obras decisivas
para o início desta discussão desenvolveu a tese central de que não temos, mas
que somos corpo. Seu primeiro trabalho partiu de uma reconsideração da obra
clássica de Maurice Merleau-Ponty, Fenomenología de la percepción. Rico Bovio a leu
desde a parte que trata de nossa situação cultural e histórico-social, e isto lhe
permitiu abrir um caminho de investigação bastante fecundo (RICO BOVIO,
1990).9 Mais adiante o seu peculiar enfoque redundou em uma obra muito bem
reconhecida e de amplo espectro sobre o direito desde uma perspectiva corporal.
Com uma linguagem tão rigorosa quanto acessível, construiu uma filosofia do
7
8
9
Em ALAI-AMLATINA. 31-03-2005. Convém lembrar que isto já se dava nos tempos de Bento XVI.
A leitura deste trabalho me levou ao poema de Mejía Sánchez, do qual selecionei o fragmento que
figura como epígrafe desta seção de nossa reflexão.
Não deixa de surpreender, por isso mesmo, que realizem trabalhos sobre o mesmo campo de reflexão
muitos anos depois, sem que haja referência a seus trabalhos. Quando lidos retrospectivamente se
aprecia a imensa contribuição que se efetuou. Cf. por exemplo, Lopes Sáenz, 2004.
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Horácio Cerutti Guldberg
direito a partir de uma definição do corpo que merece ser considerada em toda
sua fecundidade conceitual. Sob sua aparente simplicidade enunciativa escondese uma riqueza significativa de sentidos. “Definirei ‘corpo’, portanto, como a
totalidade articulada de um ser, neste caso o humano, no conjunto de seus
aspectos visíveis e invisíveis; perceptíveis ou unicamente inferidos por meios
indiretos” (RICO BOBIO, 2000, p. 80). A trajetória do experimentado poeta se
unia, assim, à do conhecimento filosófico para produzir um enfoque que deu de
si tudo o que podia oferecer. Rico Bovio trabalha agora no desenvolvimento
destas potencialidades de sua proposta teórica.
Por sua vez, em um trabalho recente, Norma Durán estabeleceu com força e
pertinência as diferenças entre o dualismo ocidental (e suas desvantagens) e a
concepção unitária oriental. Esta, segundo ele, permite avançar para uma tríade:
razão, intuição e corpo. A percepção aparece assim reconceitualizada ou vazada
em novos marcos de considerações ou matrizes significativas. A percepção
tem o primado, porém não em inimizade com a razão, na medida em que o
corpo se constitui no “lugar” de onde ambas as faculdades se sintetizariam,
ao ponto de uma não poder dar-se sem a outra (AMAVIZCA, 2004, p. 142).
O acontecimento, por assim dizer, das energias cobre o círculo que
metaforicamente (e talvez não tão metaforicamente) passa pelas seguintes
etapas-símbolos-instâncias: fogo, metal, madeira, terra, água.10 Durán trabalha
agora nas consequências desta guinada na concepção antropológica para a
medicina.11 Uma amostra visível desse respeito aos corpos que somos é a
ajuda internacional dos médicos cubanos. Uma parte de sua trajetória tem
sido reconhecida com esmero no diário de viagem de Enrique Ubieta, que se
estrutura como uma reflexão profunda e responsável sobre nossa história e
nossos saberes atuais (UBICA GÓMEZ, 2002). O caminhar dessas brigadas
médicas ao lado dos povos abre instâncias de um futuro sonhado.
No questionamento radical das ambições reducionistas exageradas do
pensamento hegemônico pretensiosamente único, Maria Arcelia Gonzalez
10
11
Em um de seus enunciados se expressa assim: “[...] o fogo funde o metal, o metal corta a madeira; a
madeira penetra na terra, a terra absorve a água e, por último, a água apaga o fogo” (AMAVIZCA, 2004,
p. 93).
A preocupação pela saúde coletiva é estendida. Cf. por exemplo, Machado, 1999. Não é um dado menor
o fato de que a Revolução Bolivariana da Venezuela tenha como ponto de partida a saúde da população.
16
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
Butron estriba na dimensão corporal para reivindicar a satisfação de necessidades
sempre postergadas. Assim, anota com toda eloquência: “É fundamental
considerar a corporeidade como fonte de critérios para uma ética solidária, os
corpos viventes como fonte de critério têm que prevalecer para enfrentar uma
lógica de mercado totalizante e todas as suas mediações” (BUTRON, 2002, p.
58). Colocam-se deste modo as bases de uma ética respeitosa às necessidades
dos corpos que somos, frente a uma sociedade em que o consumismo faz perder
de vista as necessidades básicas e, muito mais, as necessidades essenciais. Uma
sociedade que não vacila em postular vigência de direitos e em fazer vista grossa
frente (mercado de corpos) ao tráfico de órgãos (partes dos corpos),
particularmente de crianças.12
Somos corpos não só individualmente como coletivamente e isto implica uma
série de considerações segundo as quais as dimensões institucionais devem
ser consideradas. Contudo, sempre será esse corpo que sou, o que padece ou
o que se alegra. Assim se evidencia o horror da tortura como mecanismo
central da violência estrutural, do terrorismo de Estado aplicado copiosamente
durante períodos críticos de nossa história recente e nunca abandonado como
recurso de “governabilidade”. Com o esforço que significou transformar sua
experiência pessoal em colaboração conceitual na busca de sentido e, na falta
de sentido da ação coletiva, destacou Pilar Calveiro a propósito da repressão
na Argentina durante a chamada “guerra suja”: “Sem corpo, não há tortura...
Em seu estudo aponta um dado, cuja importância é impossível exagerar: a
responsabilidade do ocorrido não foi somente dos militares, seus principais
protagonistas. Também a sociedade em seu conjunto deve assumir a parte de
sua responsabilidade” (CALVEIRO, 2002, p. 279). O que nos previne contra
as idealizações apressadas da, atualmente denominada, “sociedade civil”.
Recentemente, em consonância com seus estudos sobre comunicação,
democracia e utopia na Nossa América, Manuel Corral tem explorado a dimensão
da corporeidade. Em um trabalho inédito dirigido especialmente aos jovens, a
partir da convicção de que “a estrutura do corpo humano está geneticamente
programada para a comunicação”, assinala: “Escrevo sobre alguns elementos
12
Ainda quando finalizava seu trabalho, Jose Carlos García Ramírez teve a gentileza de me passar o seu
trabalho Corporalidad y derecho humanos em Karl Marx (RAMÍREZ, 1995).
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Horácio Cerutti Guldberg
que poderiam se chamar somatográficos; somente o suficiente para falar de
sensações perceptivas necessárias para uma comunicação realmente humana, e
para gozar e desfrutar da produção e da recepção da arte” (CORRAL, 2003).
Sobre isto se deleita o texto que esperamos ser publicado em breve. Somos
corpos e corpos comunicados ou comunicáveis. Abertos em direção a uma
interação sem a qual a vida é simplesmente inviável.13
Nesse veio educativo da percepção artística, justamente por prestar atenção à
corporeidade, parece-me que o já falecido amigo uruguaio Don Roberto Ares
Pons pôde visualizar e apreciar, de modo muito sugestivo e audaz, a obra
pictórica de um clássico. Onde outros só viram a dor provocada pela morte,
ele soube ver o surgimento da vida no parto, e suas repercussões na
reivindicação da carne, suposta até de fato na Eucaristia dos católicos. A obra
de Greco recobra assim toda sua sugestiva carnalidade provocativa para desejarnos, em linhas sem desperdício, uma hipótese de trabalho certamente sedutora:
Se os quadros de pintores que expressam essa vivência religiosa, como os do
Greco, apresentam essa qualidade visceral e essas analogias orgânicas, é porque
toda a religiosidade hispânica, e particularmente sua vertente mística, se
distingue por seu afã de envolver, em uma mesma operação redentora, o
espírito e a carne (PONS, 2000).14
Essa tese de Ares Pons matiza, talvez por levar em conta com mais vigor a
tradição íbero-americana, as considerações de Moisés Fuentes mencionadas
anteriormente ao final do primeiro destaque que fizemos.
O corpo que somos, da criança, do jovem, do ancião, do negro, do indígena, da
mulher etc., cada um destes aspectos mereceria um tratamento aparte.15 Porém,
convém talvez concentrarmos no caso do corpo sexuado, para sugerir algumas
13
14
15
Nesta veia artística convém levar em consideração a escultura “corporal” (me parece pertinente o
termo) do costarriquenho Jorge Jimémez Dredia. Cf. Deredia, 2004. A edição ilustrada é belíssima.
Devo o acesso a este texto que é pertinente discutir com detalhes em outro lugar, a Tatiana Serrano.
Também pode estar plena de corporeidade a pintura, como mostra em uma magnífica edição Francesca
Gargallo (GARGALLO, 2004). Agradeço à autora o acesso ao texto.
Neste texto reuniu seus trabalhos como redator na Gazeta da UNAm, durante os seu anos de exílio no
México. Como não lembrá-lo agora, quando o Uruguai caminha por estradas esperançosas que tanto o
teria alegrado!
Por exemplo, o texto já clássico de Alfredo López Austin (AUSTIN, 1989).
18
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
linhas de reflexão fecundas. De forma clara o assinala Francesca Gargallo em
um texto decisivo para compreender o pensamento feminista em Nossa América:
[...] para mim o caos é algo positivo, e por vez inevitável. O caos, segundo
Pitágoras, é o contra-ponto do cosmos, que não é senão o caos delimitado,
medido, arbitrariamente convertido em algo previsível; e se relaciona com a
noite, com os números pares, com as mulheres. Quando quero pensar em
algo agradável penso no sangue menstrual que desordena até as dietas dos
nutricionistas mais estudados, a noite que engendra, os-as hermafroditas que
lutam para que se deixem mutilar convertendo-os a um dos sexos socialmente
reconhecidos, a larva quando baixa sobre cidades contaminadas e devolve
seus nutrientes à terra que queima, o movimento feminista enquanto diz as
diferentes culturas que aprisionam as mulheres em seus sistemas de parentescos
masculinos: “suas medidas e até seu sistema de medição não servem porque
aprendemos a reconhecer-nos umas às outras”. Em outras palavras, penso
em algo caótico para o sistema taxonômico que sustenta as lógicas de domínio
(GARGALLO, 2004).
Somente o desembaraço permite ir abrindo espaços, com grandes dificuldades,
no exercício da linguagem acostumado à inércia machista e patriarcal
(GABORIT, 2000). E depois acrescenta, relembrando a cubana Aralia Lopes
Gonzáles, que “[...] o feminismo não é um discurso hegemônico, pois tem
tantas correntes quanto as que podem surgir das experiências dos corpos
sexuados na construção das individualidades” (GABORIT, 2000). Para concluir,
em relação ao que vínhamos esboçando neste trabalho, assinalando que “[...]
em meados do século XX as escritoras latino-americanas começaram a
manifestar massivamete que seus escritos estavam determinados pelos seus
corpos e pelo lugar que estes tinham na história familiar, nacional e continental”
(GABORIT, 2000). Esta referência à literatura abre também um campo de
exploração riquíssimo. Somente quis ressaltar aqui um exemplo de literatura
escrita por um homem, porém, desde a corporeidade rural mexicana,
justamente do meados do século XX. Nos contos reunidos sob o título Céfero,
Xavier Vargas Pardo ilustrou no início dos anos 60 a linguagem trazida da
corporeidade do campesino mexicano. Ao ponto que talvez não houvesse
conto nem linguagem sem essas reinteradas referências corporais quase
obsessivas, ainda que esse conto fosse por demais eloquente (PARDOS, 2002).
Helio Gallardo supôs mostrar essa dimensão da corporeidade na obra de Juan
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Horácio Cerutti Guldberg
Rulfo, culminando em uma reflexão que coloca em questão de modo radical a
mistificação da identidade mestiça (PARDOS, 1993).
No tratado da literatura é irresistível a referência ao estupendo estudo que sobre
a obra de Corin Tellado produziu Maria Tereza Gonazáles Garcia. É esclarecedor
seu prólogo, que Gustavo Bueno destacou com rigor habitual, ao afirmar: “A
perspectiva de Corin Tellado não é, segundo isto, estritamente naturalista, porém
tão pouco é a perspectiva do realismo fantástico, posto que as normas éticas e
morais não são simples ilusões, mas sim componentes efetivos e ainda etológicos
das condutas dos sujeitos de uma determinada” (BUENO, 1998, p. 20)16 espécie.
Buenos trabalha com noções bem precisas de ética e moral:
Em certas ocasiões as normas éticas e as morais são incompatíveis e entram em
conflitos: as normas éticas são aquelas que estão talhadas a nível dos sujeito
corpóreos e individuais (ethos = caráter individual), enquanto as normas morais
(mos = costumes) são aquelas que estão talhadas a nível dos sujeitos operatórios
que são membros de um grupo (uma horda, uma banda, uma família, uma
classe social). O princípio das normas éticas é o princípio da preservação à vida
corpórea dos indivíduos enquanto tais (não só do eu); o delito ético supremo é
impedir a vida a outro ou a si mesmo. O princípio das normas morais é o da
preservação da existência do grupo com tal, e este princípio moral do grupo
requer o sacrifício das inclinações, inclusive da vida do sujeito corpóreo (pulchrum
est pro pátria mori) (BUENO, 1998, p. 19, grifos do autor).
Na busca da constituição da subjetividade que fará possível o capitalismo e sua
lógica da morte, León Rozitchner remonta a questão até o cristianismo de
Agostinho.
Cremos que o cristianismo, com seu desprezo radical pelo gozo sensível da
vida, é a premissa do capitalismo, sem o qual este não teria existido. Posto
que para que haja um sistema onde paulatina todas as qualidades humanas,
até as mais pessoais, adquiram um preço quantitativo como “mercadoria” –
forma generalizada na valorização do existente – foi necessário produzir
primeiro homens adequados ao sistema em um nível diferente ao da mera
economia (ROZITCHINER, 1997, p. 10).
16
Agradeço a Gustavo Sánchez o acesso a este trabalho.
20
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
Por isto, assinala que
[...] se requereu primeiro que o corpo da mãe genitora, com cuja imagem
cada homem anima ainda o seu, fora excluído da Virgem como corpo de
vida. Esta negação teve que penetrar, para ser eficaz, até o inconsciente. Por
isso o corpo da mãe virgem é a primeira máquina social abstrata produtora de
corpos chamados para a morte. [...]. Em sua economia libidinal teológica o
santo nos proporia, desde muito tempo, a inversão originária, mas prisioneira
para acumular capital sagrado: “mediante o economizar em carne podeis
inverter em espírito” (ROZITCHINER, 1997, p. 10).
O cristianismo aparece assim radicalizado em relação a seus antecedentes
semitas. “[...] a nova exigência é somente uma, que anulemos todo gozo do
corpo [...]” (ROZITCHINER, 1997, p. 10). A figura incestuosa de Agostinho
resulta assim plenamente significativa desse homem que se recusa aos prazeres
e que servirá de base a um capitalismo antivida.
A decisão fundamental de “ser ou não ser” espiritual do cristianismo, em
Agostinho, se reduz ao problema de fornicar ou não fornicar. Não é uma
alegoria nem um símbolo; se trata da realidade mais imediata, simples e corporal
de seus órgãos sexuais, as posturas dos corpos, os declives sinuosos das curvas,
a visibilidade dos úmidos buracos e fazem vibrar ao desejo, e o deslizar secreto
e silencioso dos untuosos fluidos seminais e vaginais – e talvez também dos
anais (ROZITCHINER, 1997, p. 290).
Não resta dúvida, a premissa sempre permanece clara, inclusive para Agostinho:
“[...] o pensamento que surge do corpo não pode ser suporte da vida; para suportar
uma vida sempre se necessita do corpo” (ROZITCHINER, 1997, p. 192).
Porém, foi um teólogo protestante brasileiro quem levou a questão a limites
insuspeitos. Nos anos 80 Rubem Alves, um dos fundadores da Teologia da
Libertação, meditava na encarnação, no alimento corporal para o corpo (forma
de antropofagia ritual) e, sobretudo, na chave da fé cristã: a crença na ressurreição
dos corpos, do corpo de cada um, do corpo que sou (ALVES, 1982). Aqui é
onde a fé se coloca de verdade à prova e onde se alcança a visibilidade do alcance
da promessa divina. Em um estudo cuidadoso e sugestivo, Leopoldo CervanteOrtiz explorou por numerosos ângulos o enfoque de Alves. Vale a pena recordar
aqui um pequeno fragmento da teopoética de Alves reproduzida no indispensável
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estudo já mencionado: “Uma questão que posteriormente ficaria, ou tornou
muito importante para mim é a questão do corpo. Compreendi que todas as
lutas que fazem têm como a única finalidade fazer com que o corpo seja feliz”.
Não tem absolutamente nada no mundo mais importante que o corpo. Se nós
fazemos revolução, a única finalidade da revolução é permitir que os corpos
não tenham dor, que os corpos não tenham medo, que possam dormir em
paz, que possam trabalhar em paz, que possam crer no amor, que possam ter
seus filhos. Que possam viver o futuro sem temores e sem angústias.
Então, meu pensamento sobre Deus se transformou realmente em um pensamento sobre a liberação do corpo. Ademais para o cristianismo, o mais alto
símbolo religioso que existe é o símbolo da ressurreição do corpo. Ressurreição
do corpo significa pelo menos duas coisas: liberdade e dignidade. São para mim
os mais altos valores da religião cristã (CERVANTE-ORTIZ, 2003, p. 168).17
Contudo, recentemente três jovens professores do Centro de Estudos
Filosóficos e Teológicos dos Claretianos em Córdoba, Argentina, têm
radicalizado a questão. O corpo aparece concebido como propriedade privada.
O sistema fomenta, assim, uma sedução opressiva, que atua por medo e procura
cooptar a fonte de todo poder: o desejo. O corpo é limite e possibilidade do
poder e só se pode rebaixá-lo por doação. Porém, para a lógica dominante no
sistema capitalista o dom alucinado é a propriedade. Por isso, quando “os
lobos têm medo de perder suas propriedades reclamam ética” (ASSELBON
et al., 2005).18 Com lucidez crítica estes três colegas reclamam uma política
não eticista, mas sim esteticista. Que torne possível o gozo, o prazer, a doação
e a plenitude corporal humana; a recuperação, em suma, da sensibilidade.19
Como antecipamos na epígrafe deste momento de nossa reflexão, temos que ter
cuidado. A corporeidade não esgota o assunto. Ainda que pareça ficar claro, sem
17
18
19
De uma entrevista editada no México em 1984, por Leopoldo Cervantes-Ortiz. Carlos Mandragón
teve a gentileza de colocar ao meu alcance tanto este texto como o anteriormente citado.
Tive acesso a texto inédito por gentileza dos autores.
Aqui, enfrentar o sacrifício estéril se impõe. Examinei o problema da poesia guerrilheira na região há
muitos anos. Remeto ao meu “El discurso político centroamericano” (GULDEBERG, 1989, p. 91119). Existe uma segunda edição corrigida destra obra em Costa Rica (cf. Nota 6). Para o tema do
sacrifício e suas consequências no corporativismo mexicano (extensivo, mutatis mutandi, em boa medida
a toda região latino-americana). (Cf. PASTOR, 2004).
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
levá-la em consideração não se tem discussão que se sustente. Frei Betto, em um
texto pleno de erudição científica, convida-nos a transitar as “veredas que conduzem das estrelas à subjetividade” (CHRISTO, 1999, p. 42). Ele se atreve a introduzir o amor na física. E não em sentido metafórico, mas de forma literal.
De certo modo, o que sustenta o átomo é uma questão de amor [...]. Como os
amantes, os átomos, a energia do calor se unem quando estão excitados, isto
porque se aquecem ou porque alguma outra substância química atrai um deles.
Ao ser absorvido pelos átomos, a energia do calor da excitação modifica a coroa
de eletros que circunda o núcleo e propicia a união dos átomos, que forma um
molécula. Uma gravidez em plena lua de mel!!!. (CHRISTO, 1999, p. 126).
A vida, então, se aperfeiçoaria mediante a associação de níveis que depois se
empenhariam em se dissociar com dualismo aberrante. “Quando a vida se
aperfeiçoou há dois milhões de anos, a estrutura biológica associou sexo a
ternura, e celebrou, com os primeiros mamíferos, o surgimento da educação”
(CHRISTO, 1999, p. 179). A insinuação é clara. Talvez tenhamos tempo de
nos educarmos para chegarmos a atingir nossa plenitude.
Em um texto finalmente sugestivo, Hugo Aréchiga supôs colocar ao alcance
de um amplo público interessado na questão certas chaves da vida. Uma vida
que não pode entender-se sem certos equilíbrios.
Esta tendência ao equilíbrio levou Claude Bernard (1813-1878) a afirmar que
“a constância dos meios internos é condição da vida livre e independente”
[...] O conjunto das ações fisiológicas que levam a manutenção da constância
proposta por Bernard foi caracterizada por Walter Cannon (1871-1954), em
1926, como homeostase (ARÉCHIGA, 2001, p. 43).20
Por extensão, o termo homeostase teve aceitação em diferentes níveis de análise:
físico, químico e social, como assinalará muito bem Aréchiga (2001, p. 47). Pois
bem, como esta pretendida “constância” das funções corporais foi questionada,
[...] se chegou então a propor a substituição do termo homeostase pelo de
“homeorrese”, em alusão a que a constante é, pelo contrário, o fluxo de energia
20
Sirva a ocasião para render merecidas homenagens ao colega prematuramente desaparecido e com o
qual compartilhamos sugestivas sessões na comissão Dictaminadora do CEIICH.
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de matéria. É no momento reconhecido que nossas funções biológicas, longe
de permacerem constantes ao longo de toda vida, manifestam espontaneamente
grandes modificações [...] (ARÉCHIGA, 2001, p. 46).
Não é o caso de entrar neste momento em outros detalhes; porém, é importante
ressaltar que esta noção de “constância” faz parte de um certo paradigma, que
inclui também, por um lado, o que aqui expressa Aréchiga:
Dois acontecimentos ressonantes da medicina experimental durante o século
passado foram o descobrimento da imunidade, que levou à produção da vacinas
e antitoxinas, e o dos fagócitos, que evidenciou a existência das células
especializadas em destruição das celulares estranhas ou inativação de moléculas
invasoras. Algumas das células do sistema imunológico, como são os glóbulos
brancos, atuam na circulação sanguínea (ARÉCHIGA, 2001, p. 39).
Com esse aspecto podemos relacionar outro muito importante, que vem a
confirmar o que esse autor ressalta em sua comunicação: “Com o tempo se
estabeleceu que através do sangue cada célula pode estar em comunicação
com todas as demais” (ARÉCHIGA, 2001, p. 51). Em todos os níveis é válida
a afirmação de que “a vida é um processo contínuo de intercomunicação”
(ARÉCHIGA, 2001, p. 53). Aréchiga remete esse assunto a outro trabalho,
incluindo-o no mesmo volume coletivo, que complementa e completa de
maneira muito pertinente sua contribuição. Nele Marcelino Cereijido mostra
o modo como a morte passou a ser concebida como parte da vida mediante o
exame da apoptose ou morte geneticamente programada. Tal exame permite
sugerir as vantagens da morte. Por isso conclui de maneira contundente:
É obvio então que até há vinte anos a morte era um sucesso “extravital”, de que
vinha a interromper uma vida que se considerava potencialmente eterna e da
qual não fazia parte. Hoje, ao contrário, a ciência evidencia que se trata de um
mecanismo fundamental da vida, impressa no mais íntimo de nossos genes, sem
a qual a evolução não teria chegado a produzir a vida humana, nem nosso
organismo estaria corretamente desenvolvido e tampouco realizaríamos cultura
(CEREIJIDO, Muerte y vida. p. 130. In: RUDOMIN; GRAF, Norma B., 2001,
grifos do autor).21
21
Não é o caso de entrar aqui na distinção entre civilização e cultura, porém o autor havia afirmado na
mesma página em linhas acima: “[...] uma das vantagens mais evidentes que oferece a morte é ter
provocado a civilização do ser humano”.
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Esta contundência está baseada, como o mesmo Cereijido afirma, na noção
de apoptose. E sobre isto ele ressalta com todo cuidado:
A apoptose não é um desordenamento celular, mas sim, pelo contrário, se trata
de uma cuidadosa desarticulação de estruturas, divisão de enzimas, liberação de
substâncias, com as quais a célula vai se autodelimitando. Os genes apópticos
que provam essas mudanças se expressam sequencialmente e em seus últimos
passos instruem inclusive a formação de substâncias que atraem aos macrófagos
e provocam que estes a devorarem e não fique nenhum resto das células suicidas.
Desta forma estes passos são tão numerosos, complexos e delicados, que podem
falhar, o que pode possibilitar toda uma frondosa patologia, devido a essa falta
de morte que deveria ter ocorrido, ou que ocorreu fora de tempo, que todavia
está por estudar-se. O que sem dúvida esclarecerá o mecanismo das muitas
enfermidades já conhecidas porém cujas causas ainda se ignoram.
Hoje o arsenal experimental da biologia tem técnicas que permitem silenciar
especificamente um gene determinado quando anula a função de um gene
determinado. Quando se anula a função de um gene a morte celular programa,
não se consegue a vida eterna, mas sim provoca a aparição de tumores e certas
monstruosidades. De modo que, como conclusão destas considerações, podemos
afirmar que a morte celular programada é um mecanismo fundamental, graças
ao qual os organismos se constroem corretamente (CEREIJIDO, 2001, p. 119).
Concluindo, podemos citar:
Nesse tempo teve a comprovação de algo que já se havia observado antes. Ao
contrário do que ocorre com o trabalho meramente físico, aquece onde entra
em ação o espírito, resulta mais fácil, rápido e leve à medida que um vai
aumentando as horas de trabalho. Dir-se-ia que o espírito rende mais e com
menor esforço quando mais se exige. Mais ainda: pareceria que fora necessário
castigar e fatigar o corpo para que a alma lance o resto de sua potência criadora.
Assim me convenci de que o pior inimigo de todo criador é a preguiça
(MUÑOZ, 1971, p. 78).22
De forma rápida, pude realizar algumas leituras e compartilhar reflexões surgidas
com elas. Fica para mim a ideia de que levar a sério o corpo que somos exige
22
Agradeço a Nestor Medina o acesso a este texto.
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recolocarmos o sentido da razão, da ética e da política. Porém, com uma prioritária
preocupação epistemológica indeclinável. Não trato de concluir nada. Mas apenas
insisto em sugerir algumas vias de indagações disponíveis.
Este desejo está escrito com um certo humor em um dos melhores livros de
filosofia que li – como reza sua epífrafe emprestada de Epicuro: “É preciso
sorrir e ao mesmo tempo filosofar” (MALIANDI, 2003). Em relação a isto
assinala Ricardo Maliandi:
Não: A grande pergunta não é a pergunta “o que fazer”, ainda que seja o
mesmo Zeus que a faz. Não é (ou, para ser mais preciso, não é meramente) a
pergunta ética. Nem tampouco é a pergunta metafísica (aquela do “por que é
o ente e não o nada”). A Grande Pergunta tem que conter todas as perguntas
filosóficas; porém também tem de conter nossos interesses para com a nossa
morte individual e para com a possibilidade de extinção da espécie humana.
Tem que ser uma pergunta apocalíptica: a pergunta que haveríamos de fazer
se já estivéssemos nos segundos finais, antes que o mundo se vá totalmente à
merda, a pergunta que poderiam realizar os que não estivessem horrorizados
por usar a palavra “merda” neste contexto (MALIANDI, 2003, p. 100-101).
Fica assim aberto, desde a linguagem mesma, o imenso âmbito da transgressão
correlata da proibição. Impõe-se aqui a reflexão clássica de Georges Bataille
(1887-1962) em O erotismo. Nessa obra, escrita durante a segunda guerra e
concluída em 1957, Bataille desenvolveu brilhantemente a dialética entre
proibição e transgressão. Ainda que a reflexão não seja relacionada ao nosso
tema, não resisto em reproduzir algumas de suas pertinentes ideias: as mais
provocativas, para nos desviarmos um pouco de nosso itinerário reflexivo.
O que o ato de amor e sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida
ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo sucede com a
convulsão erótica: libera uns órgãos pletóricos cujos jogos se realizam às cegas,
mas além da vontade reflexiva dos amantes. A essa vontade reflexiva sucedem
os movimentos animais embebecidos de sangue. Uma violência, que a razão
deixa de controlar, anima esses órgãos, os faz tender ao estouro, e subitamente
estoura a alegria dos corações ao se desejar levar pelo rebaixamento dessa
tormenta. O movimento da carne excede um limite em ausência da vontade. A
carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência. A carne é o inimigo
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
nato daqueles a quem atormenta a proibição do cristianismo; porém se, como
creio, existe uma proibição vaga e global que se opõe, sob forma que depende
do tempo e do lugar à liberdade sexual, então a carne é expressão de um retorno
dessa liberdade ameaçada (BATAILLE, 2002, p. 97-98).
O enfoque dialético se renova e se reintera ao longo da reflexão de modo
sugestivo.
Em geral não acabamos por compreender o caráter erótico, ou mais
simplesmente transgressor, do matrimônio, porque a palavra matrimônio
designa por sua vez a etapa e o estado. Estamos acostumados esquecer o
movimento para considerar somente o estado [...]. O mais grave é que o hábito,
frequentemente, apaga a intensidade e que o matrimônio implica costumes
[...]. Porém tem que se descuidar da expansão da vida sexual. Sem uma secreta
compreensão dos corpos, que somente com o tempo se estabelece, a união é
furtiva e superficial, não pode organizar-se, seu movimento é quase animal,
demasiado rápido e o prazer esperado habitualmente torna-se obstáculo. Não
há dúvida que o gosto pelo contrário é doentio e somente conduz à frustração
renovada. O hábito, pelo contrário, tem o poder de produzir o que a
impaciência reconhece (BATAILLE, 2002, p. 157).
A propósito de sua crítica cuidadosamente matizada às várias formas de viver
e pensar o cristianismo, Bataille ressaltava o trabalho como condição de
transgressão, com o qual ficamos de novo lançados à cotidianidade de nossa
situação histórica presente em toda sua pressão e angustiosa carência de rumos.
“A razão é não ter espaço para a desordem [....]”, pelo fato de que comporta o
rebaixamento para um mundo organizado, a transgressão é o princípio de
uma desordem organizada. Da organização, com a qual haviam concordado
os que a praticam, vem o seu caráter organizado. Esta organização fundada
no trabalho se fundamenta, por sua vez, na descontinuidade do ser. “O mundo
organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são um só e único
mundo” (BATAILLE, 2002, p. 125).
Santa Úrsula Xitla, 20 de abril de 2005.
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Considerações para uma recuperação do corpo no pensamento latino-americano contemporâneo
CONSIDERATIONS FOR A RECOVERY OF THE BODY IN THE
CONTEMPORANEOUS LATIN AMERICAN THOUGHT
Abstract
From a Latin American liberating perspective, the author seeks to set a comprehension
of the body, in interlocution with researchers of the most varied areas of knowledge in
an interdisciplinary approach. It aims to salvage the contribution of several Latin American
authors who dedicated themselves to the study of this body that we are, which was taken
of different ways by religious traditions and by our capitalist system. The body we are
must be considered not only subjectively but collectively.
Key words: Body. Religion. Liberation. Vital.
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31
.
CORPORALIDAD Y LIBERACIÓN
LATINOAMERICANA
Carlos Asselborn, Oscar Pacheco, Gustavo Cruz*
Resumen
En el artículo se exponen nuestras reflexiones filosóficas sobre la corporalidad y la
liberación. Primero se enuncian los supuestos fundamentales de los que partimos,
en particular sobre la liberación y la dominación. En segundo lugar exponemos
nuestras hipótesis de trabajo sobre los modos en que la dominación capitalista opera
sobre la corporalidad, el deseo y el gusto. Por último, exponemos algunas lecturas de
filósofos latinoamericanos que nos permiten profundizar sobre la cuestión de la
corporalidad y la liberación latinoamericana.
Palabras-claves: Corporalidad. Liberación. Deseo. Política.
El texto tiene por objetivo presentar nuestro proyecto de investigación iniciado
en 1999. Está estructurado en tres partes: 1) supuestos fundamentales, 2)
hipótesis de trabajo, 3) estado de la cuestión en el pensamiento latinoamericano.
1. Supuestos fundamentales
1.
*
La liberación supone una tradición liberacionista, que significa: 1) los
movimientos políticos, sociales y culturales orientados por el deseo de
emancipación; y las experiencias eclesiales, como las comunidades eclesiales
de base (C.E.Bs.), en América Latina; y 2) la reflexión teórica crítica que
Carlos Asselborn es Licenciado en Filosofía y actual docente en la Universidad Católica de Córdoba
(Argentina) y el Centro de Estudios Filosóficos y Teológicos (Córdoba). Oscar Pacheco es Licenciado
en Filosofía y actual docente en la Universidad Católica de Córdoba y el Centro de Estudios Filosóficos
y Teológicos (Córdoba). Gustavo Cruz es Licenciado en Filosofía y Maestro en Estudios
Latinoamericanos, actualmente realiza su doctorado en la Universidad Nacional Autónoma de México.
Los tres son miembros fundadores de la Cooperativa Filosófica “Pensamiento del Sur” (CórdobaArgentina). El presente texto forma parte de la obra Liberación, Estética y Política en prensa. Agradecemos
a Horacio Cerutti Guldberg el estímulo que nos da para seguir pensando y haciendo.
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Asselborn Carlos, Pacheco Oscar e Cruz Gustavo
comprende la sociología de la dependencia, la pedagogía del oprimido, la
filosofía y la teología de la liberación y cierta literatura latinoamericana.
2.
Entendemos por liberación un proceso de reapropiación de la corporalidad
según la lógica de la donación. Esto supone una crítica a toda concepción
idealista de la liberación que niega su materialidad y la dimensión colectiva
del cuerpo. Por tanto creemos necesario situar el proceso de liberación
bajo el paradigma de la corporalidad, problematizando el paradigma de la
conciencia, sin que esto signifique la negación de la misma. La liberación
bajo el paradigma de la conciencia no logra dar cuenta de cómo operan los
sistemas de opresión que no recurren simplemente a la conciencia, sino a la
cooptación de la corporalidad, colonizando la sensibilidad y domesticando
el deseo.
3.
El capitalismo neoliberal se alimenta a través de seducciones opresivas. Actúa
ofreciendo algo, pero esto ofrecido no es donación, sino que lo prometido
debe ser merecido. Las seducciones opresivas ofrecen el mejor y único de
los mundos. Para poder acceder hay que sacrificar el cuerpo
(HINKELAMMERT, 1993). La dominación se afinca en el auto-control
de la corporalidad constituyéndose en un poder reactivo. Esto produce
políticas de sacrificialidad de las mayorías y éticas del autosacrificio. Esto
supone explicitar los modos en que la opresión opera en el deseo, el placer,
la sensibilidad; siendo uno de los modos típicos de opresión el miedo, hasta
del propio cuerpo. Postulamos que el deseo en el hombre es omnipotente.
Es el deseo de vivir bien, y ahí radican los problemas. Para nosotros el
deseo de vivir bien se historifica en el deseo de liberación. En el deseo se
afinca la utopía, entendida como criticidad al poder establecido y también
como patología del todo o nada (RICOEUR, 2000, p. 349-360). Cuando el
deseo es cooptado su omnipotencia se domestica y la utopía deviene en
opio: la (contra) utopía de la propiedad calma el deseo de vivir y lo pervierte
en sacrificio y confort. El sistema de opresión es eficaz en su cometido en
la medida que coopta la fuente de poder: el deseo.
4.
La relación entre deseo – cuerpo es ambigua. El cuerpo concebido bajo la
lógica de la propiedad limita la omnipotencia del deseo, negando los procesos
de liberación. Cuando el cuerpo sigue la lógica de la donación, se potencia
el proceso de liberación. La seducción opresiva ofrece un proceso de pseudo-
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Corporalidad y liberación latinoamericana
liberación que identifica libertad con acumulación bajo el régimen de
propiedad. El sistema de opresión pervierte desde la seducción. El don
alucinado es la propiedad. El placer adquiere la forma del placer dominio y
del placer dolor.
5.
En la lógica de la dominación el poder se constituye en la expropiación. La
seducción opresiva produce y actúa por el miedo. La propiedad siempre
puede ser arrebatada por otro lobo, así cómo éste lobo miedoso arrebató la
suya. El miedo es funcional al sistema porque paraliza el poder del deseo y
lo resitúa desde la dinámica de la opresión. El miedo instala la sensación de
inseguridad a perder lo expropiado. Entonces se reclama seguridad. Una
ideología de la seguridad es un discurso de la violencia, pues demoniza a
quien se adjudica ser el principio de la violencia. “Demonio” es el terrorista,
el extranjero, el piquetero.
6.
Cuando los lobos tienen miedo por sus propiedades reclaman ética. Sus
intelectuales orgánicos (del capitalismo) saben que la lógica de la acumulación
(que es la lógica del deseo pervertido) no tiene fin por tanto reclaman ética;
reflexión desde la conciencia para negar la lógica de donación. La
construcción moderna de la conciencia intenta frenar la dinámica del deseo
que se afinca en el cuerpo. Por esto el cuerpo protesta, se rebela y se presenta
como la posibilidad de elaborar una conciencia desde la donación. Cuando
no alcanza con ética, alcanza con fuerza policial.
2. Hipótesis de trabajo
•
Los sistemas de opresión recurren a la cooptación de la corporalidad, y a
su vez producen discursos éticos que reclaman concientización (etización
de la vida).
•
La liberación bajo el modelo de la conciencia, en el pensamiento de la
liberación latinoamericana, no da cuenta de un ámbito fundamental del
sujeto, la corporalidad. O bien la asume, pero con una impronta ética
(DUSSEL, 1998), que sospechamos corre el riesgo de quedar entrampada
en una etización de la vida. La conciencia sin corporalidad deriva en
impotencia histórica. La corporalidad sin crítica deviene en potencia ciega.
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•
Por lo tanto la eficacia histórica de la liberación supone la descolonización
del deseo, la reapropiación de la corporalidad, que no es posible solo desde
la crítica de la conciencia.
3. Estado de la cuestión en el pensamiento latinoamericano
Para dar cuenta de las hipótesis enunciadas nos situamos en la tradición del
pensamiento latinoamericano con el objetivo de indagar la relevancia de la
corporalidad en relación a la opresión y la liberación. Constatamos que se está
operando un giro hacia la corporalidad en el pensamiento latinoamericano
contemporáneo, del que da cuenta H. Cerutti Guldberg, quien estimuló nuestra
investigación (CERUTTI GULDBERG, 2005 p. 14-27). Para iniciar el rastreo
de la corporalidad en el pensamiento latinoamericano realizamos tres lecturas
que consideramos significativas para la cuestión. Presentamos a continuación
un sucinto comentario de los mismos.
3.1 La adherencia corporal del opresor en el oprimido: Paulo Freire
Freire, en Pedagogía del Oprimido, parte desde un planteo dialéctico: existe
opresores y oprimidos. Esta situación no posee un carácter ontológico (Hegel)
sino histórico. Lo ontológico para Freire es la humanización. El hombre está
llamado, como ser inconcluso, a un proceso colectivo permanente de liberación.
Esta es su vocación. Ahora bien, dicho proceso es negado, distorsionado por
el proyecto histórico de la opresión, de la dominación.
¿Quién puede quebrar el proceso de dominación?. La debilidad de los
oprimidos. Sólo los oprimidos pueden liberarse a sí mismos y a los opresores.
¿Cuáles son las dificultades a superar por los oprimidos por las cuales se justifica
una pedagogía que enfrente las mismas?.
Las sintetizamos en cuatro:
• El desconocer que se vive inmerso en una realidad de opresión.
• El no saberse oprimido.
• El tener como “testimonio de humanidad al opresor”.
• El miedo a la libertad.
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Corporalidad y liberación latinoamericana
Se puede comenzar por cualquiera de las cuatro, pues están relacionadas, y
son parte de un estado de conciencia dormida e inmersa en la realidad de
opresión. La pedagogía del oprimido intenta despertar dicha conciencia, para
que reconozca al opresor, se reconozca oprimida y genere un proceso de lucha
por la liberación. Nos vamos a detener en la tercera dificultad: el tener como
“testimonio de humanidad” al opresor. Freire sostiene:
“Los oprimidos, en vez de buscar la liberación en la lucha y a través de ella,
tienden a ser opresores también o subopresores. Su ideal es, realmente ser
hombres, pero para ellos ser hombres, en la contradicción en que siempre
estuvieron y cuya superación no tiene clara, equivale a ser opresores. Estos
son sus testimonios de humanidad” (FREIRE, 1999, p. 35).
Esto explica la ausencia de lucha por parte de los oprimidos. Hay una “aberración”
en la contradicción. Los oprimidos quieren ser como los opresores. Por tanto
en vez de negarlos los afirman identificándose con ellos.
Freire utiliza un término que nos interesa sobremanera: “adherido”. Esta
adherencia dificulta la tarea de la conciencia (FREIRE, 1999, p. 36).
Antes de avanzar en este concepto dos palabras con respeto al reconocimiento
de la realidad opresora y al reconocerse como oprimidos que son las que,
creemos, más desarrolla Freire, sintetizadas en “asumir la palabra” y la “acción
como praxis de liberación”.
La conciencia si quiere ser crítica y liberadora debe transitar por tres momentos:
inmersión ingenua – emersión – inmersión crítica.
La inmersión ingenua es aquella propia del oprimido que no reconoce la realidad
de opresión. Ésta funciona como una fuerza de inmersión de la conciencia.
La conciencia ingenua entiende la dominación como parte de la naturaleza
(está presente la dialéctica naturaleza – cultura). El oprimido cree que la historia,
en vez de ser el resultado de la acción del hombre, repite los tiempos de la
naturaleza (conciencia mítica o mágica) (FREIRE, 1999. p. 57).
La conciencia comienza a emerger cuando comprende la capacidad transformadora de los hombres en un proceso colectivo y que el proyecto de dominación
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Asselborn Carlos, Pacheco Oscar e Cruz Gustavo
puede ser quebrado. La emersión para que sea real, debe insertarse críticamente
en la realidad para transformarla, es praxis en donde palabra y acción configuran
la conciencia crítica.
No es nuestro objetivo analizar la propuesta pedagógica de Freire, pero creemos
que la teoría de acción cultural dialógica que desarrolla acentúa este despertar
de la conciencia de mítica a crítica a través de la reapropiación de la palabra y
la praxis.
Retomamos esta afirmación de Freire: “Los oprimidos asumen una postura
que llamamos de “adherencia” al opresor. En esta circunstancias, no llegan a
“admirarlo”, lo que lo llevaría a objetivarlo, a descubrirlo fuera de sí” (FREIRE,
1999, p 35).
Esta adherencia es un freno al proceso de la conciencia, no permite la
objetivación, sacarlo fuera de sí y mirarse. La adherencia hace referencia a una
lógica de la superficie, es como tener “pegado” a la piel, alojado en nuestra
sensibilidad, en nuestra corporalidad al opresor. Existe otro término utilizado
por Freire “introyección” que alude a otra lógica de la profundidad en donde
nos parece más adecuado el uso de la conciencia como modo de conjurar al
opresor. Pero si el opresor esta alojado en nuestra sensibilidad, en nuestra modos de sentir
y desear ¿la conciencia no se muestra impotente en esta superficie?.
“Por otro lado existe, en cierto momento de la experiencia existencial de los
oprimidos, una atracción irresistible por el opresor. Por sus patrones de vida.
Participar de estos patrones constituye una aspiración incontenible. En su enajenación quieren a toda costa, parecerse al opresor, imitarlo, seguirlo. Esto se
verifica, sobre todo, en los oprimidos de los estratos medios, cuyo anhelo es
llegar a ser iguales al “hombre ilustre” de la denominada “clase superior” (FREIRE, 1999, p. 58). En los oprimidos ocurre una suerte de cooptación de sus deseos, una colonización de sus gustos por parte del opresor. Los mecanismos de
opresión se instalan no sólo en nuestra razón, sino incluso en los estados emocionales. Freire afirma que los campesinos son “dependientes emocionales”, no pueden expresar lo que les pasa, ni sus estados de ánimo (FREIRE, 1999, p. 61).
De nuestra lectura de Freire creemos, se desprende la necesidad de ampliar las
estrategias de liberación. No negamos la importancia del proceso de
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Corporalidad y liberación latinoamericana
conscientización, del diálogo liberador y de la praxis; pero el opresor está
instalado en nuestros modos de sentir y desear. Por tanto es preciso inaugurar
un proceso de liberación en éstos ámbitos (la corporalidad, los modos de
desear, la sensibilidad) como modos de desalojar al opresor.
3.2 Las fronteras del cuerpo: Arturo Rico Bovio
En Las fronteras del cuerpo: crítica a la corporeidad (1990), de Arturo Rico Bovio,
encontramos un antecedente que tematiza la corporalidad como cuestión
fundamental para la liberación. En el capitulo 4, Crítica de la corporeidad
latinoamericana, propone una revolución del cuerpo para Latinoamérica, necesaria
en tanto el cuerpo en y del latinoamericano esta alienado pues ha sido reducido
a una extensión corporal de otros pueblos, a lo que se añade la falsa interpretación
del cuerpo humano que otorga el mundo occidental y legitima la opresión.
Rico Bovio es optimista sobre la revolución latinoamericana en tanto se puede
partir de las necesidades naturales del hombre, pues las masas latinoamericanas
carecen de lo indispensable en el orden biogénico, y eso las convierte en
potencialmente revolucionarias. En cambio los estados del norte rico se hallan
en sobreabundancia de satisfactores, y el desarrollo socio-económico no es
garantía de una congruencia entre cultura y cuerpo natural. De ahí que su
filosofía de la corporeidad intenta abrir una intensa crítica sobre el cuerpo
desde Latinoamérica.
Su optimismo deriva del evolucionismo, que no es totalmente compartido
por nosotros y del que tendremos que dar cuenta críticamente. Rico Bovio es
deudor de la filosofía de la historia marxista y del evolucionismo. Inicia un
nuevo derrotero para el filosofar a partir de la conferencia de Fabio Lozano,
“El cuerpo una realidad alienada” (1982).1 En la noción de cuerpo encuentra
la pieza justa para articular una teoría de las necesidades, una axiología y
antropología del espacio, en vínculo con la liberación latinoamericana.
La pretensión de su obra es reformular la idea del hombre para fundar un
sólido sistema axiológico ante lo que considera la gran crisis cultural de
1
Ponencia de Fabio Lozano en el II Congreso internacional de filosofía latinoamericana (Bogotá, 1982)
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occidente. Su hipótesis es que los problemas de la época quizá se deban a la
incomprensión del cuerpo humano. Para buscar una solución suficiente hará
uso del evolucionismo (para dar cuenta del origen del hombre) y la filosofía de la
liberación (en tanto propone conocer para transformar las condiciones de
vida).
Para Rico Bovio las filosofías del cuerpo relevantes en occidente son las de K.
Marx, F. Nietzsche, G. Marcel, J.P. Sartre y la fundamental fenomenología de
Merleau-Ponty. A partir de la fenomenología amplía la concepción del cuerpo
con la biología y la antropología, proponiendo que el hombre “está”
conformado por “capas” corporales: fisicoquímica – biológica – psíquica. Pero el
hombre no tiene cuerpo, sino que es cuerpo, determinado en tres niveles de
organización: el bio-génico, el socio-génico y el noo-génico. La explicación de los tres
niveles es el núcleo de la obra. A partir de cada nivel elabora un esbozo de
teoría de los sistemas socioculturales, la estructura del estado y una
epistemología acorde a cada nivel corporal. Propone una interesante teoría de
las valencias y las necesidades corporales.
De los trece postulados de su filosofía de la corporeidad nos interesa tomar
nota de cinco que anteceden y orientan a nuestros planteos: a) la explotación
es causada por la manipulación de la satisfacción de las necesidades corporales
del otro, no por la propiedad privada, aunque ésta ha sido el medio más
poderoso para manejar las necesidades; b) las vías de control del cuerpo acuden
a ideologías que fragmentarizan al cuerpo o descorporalizan al hombre; c) la
interpretación cultural del cuerpo se forma paralelamente con las condiciones
materiales de la vida. El cambio de interpretación se da cuando las necesidades
insatisfechas por el sistema suscitan la toma de conciencia de ellas; d) la lucha
de clases se puede traducir en que una parte mayoritaria de la población se ha
convertido en extensión corporal de otra minoría; y e) una filosofía del cuerpo
supone una crítica al falocratismo cultural donde la mujer es una extensión
erótica del cuerpo del varón.
Consideramos que la obra de Rico Bovio es un antecedente crítico fundamental
para nuestra investigación. Su trabajo posterior se dirige hacia una teoría del
derecho a partir de la corporalidad que no nos ocupa (RICO BOVIO, 2000).
La teoría de las necesidades corporales propuesta, desde la perspectiva marxista,
nos abre un camino interesante de profundización.
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Corporalidad y liberación latinoamericana
3.3 La corporalidad negada en las víctimas: Enrique Dussel
En su obra Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión
(DUSSEL, 1998) Enrique Dussel pretende demostrar el olvido y la negación
de la corporalidad por parte de las éticas contemporáneas. Su objetivo es
fundamentar una “Ética de la liberación” desde la producción, reproducción y
desarrollo de la vida, de la corporalidad.
En la introducción propone una nueva lectura de la historia mundial de las eticidades
crítica de la periodización ideológica que los centros hegemónicos hacen de la
historia mundial. En la primera parte expone los fundamentos necesarios,
pero no suficientes de una ética crítica: el momento material (cap 1); formal
(cap 2) y el de la factibilidad (cap 3). En la segunda parte expone el trabajo
crítico de la ética, es decir, aquellos principios que guían la ética crítica como
fuente de prácticas liberadoras; a saber: la crítica ética del sistema vigente desde
las víctimas (cap 4); la validez antihegemónica de la comunidad de las víctimas
(cap 5) y el principio liberación (cap 6).
Dussel criticará aquellas normas, sistemas, microfísica del poder “buenos” ya
que por contradicción radical (o negatividad material) causan de manera no
intencional víctimas, efectos de dicho “bien”. Si el punto de partida es la víctima,
aquel “bien” es el “mal”, por ser causante de víctimas2, por lo que la crítica
ético-material inaugurará el pensamiento negativo.
A Dussel le interesa la Ética, pero “de la liberación”, por esto parte de la
víctima oprimida y excluida. La víctima es víctima porque su corporalidad es
negada por los sistemas vigentes. Por esta razón la corporalidad será el criterio
y principio material ético, definido como la producción, reproducción y desarrollo de
la vida de cada sujeto. Es un criterio material y negativo en el momento en que
irrumpe la víctima, ya que en ella aparece con toda su fuerza la negación de la
corporalidad. Desde esta negación, previa toma de conciencia, nace la crítica
ética, que desenmascara al sistema vigente como no-ético, y posibilita procesos
de liberación desde las víctimas. Por lo tanto:
2
Analiza los planteos de: Marx, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamín, Nietzsche, Freud y Lévinas.
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Asselborn Carlos, Pacheco Oscar e Cruz Gustavo
1.
La ética se ocupa de la vida, que es la cuestión del «contenido», de la
existencia de la corporalidad de un ser viviente. Cuando la imposibilidad
de la vida se convierte en la norma del acto o del sistema, la ética debe
transformarse en ética crítica.
2.
Toda ética crítica debe operar y partir de la dignidad de la víctima que
sufre por la opresión de un acto, institución o sistema que la niega. La
crítica ética debe ser proferida desde el discernimiento mediado por la
comunidad de víctimas, la que desenmascara al sistema vigente como noético. A esto Dussel llama “validez antihegemónica” ligada al criterio
intersubjetivo de validez, pero desde las víctimas.
3.
La ética, entonces, trata de la vida, de la praxis de liberación que intenta la
producción y desarrollo de la vida. Esta praxis de liberación debe ser factible.
Desde las víctimas, este criterio y principio lo llamará “Principio liberación”.
Es indudable que Dussel parte de la corporalidad “negada” para fundamentar
una Ética de la Liberación. Pero no hay crítica si no hay conciencia de dicha
negación. Sólo la conciencia de la negación de la corporalidad permitirá la
crítica y la búsqueda de mediaciones para su liberación. Éste es el punto de
arranque fuerte de toda crítica: la relación que se produce entre la negación de
la corporalidad, expresada en el sufrimiento de las víctimas y la toma de
conciencia de dicha negatividad.
Esta toma de conciencia de la negación de la corporalidad inicia el movimiento
de la crítica. Movimiento superador de las pulsiones conservadoras de la sola
reproducción que buscan la seguridad y estabilidad (pulsiones de muerte y de
auto-conservación):
“Para el conservador-dominador, todo pasado fue mejor, porque funda el
presente donde el dominador “puede vivir”. Para las víctimas el futuro es el
tiempo de la esperanza; debe luchar para estar mejor, porque en el presente
sufre la negación, en la que no es posible vivir. La crítica es el comienzo de la
lucha”.3
3
Analiza los planteos de: Marx, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamín, Nietzsche, Freud y Lévinas,
p. 376.
42
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Corporalidad y liberación latinoamericana
Conclusión
De las tres lecturas realizadas constatamos que hay aproximaciones y esbozos
de una filosofía de la corporalidad en relación a la liberación. La adherencia
corporal de la opresión, analizada por Freire pero no profundizada, deja camino
abierto para nuevas desarrollos. La propuesta de Rico Bovio asume la
centralidad del cuerpo para realizar una filosofía de la liberación desde
Latinoamérica; aunque no profundiza en el análisis de cómo operan los
mecanismos de opresión desde la corporalidad. Por último Dussel realiza un
trabajo arquitectónico que conjuga erudición e intencionalidad liberadora con
un punto de partida corporal desde las víctimas. Deja elaborada una ética que
parece dar cuenta suficientemente de la corporalidad en perspectiva liberadora.
No estamos en condiciones de realizar una crítica a la obra del autor, pero no
es nuestro interés sostener la liberación en una perspectiva ética, sino política.
Queda por tarea reconstruir la categoría de corporalidad en relación a la
subjetividad, el deseo, el placer, el miedo y el poder para replantear así la relación
sujeto-sociedad y proponer una nueva categoría de liberación. Nuestra
perspectiva es crítica a la ética, por tanto pretendemos realizar una crítica de
los discursos éticos que provienen de dos ámbitos: el eclesial y el empresarial.
Preguntaremos por la función de dichos discursos en el proceso de
democratización de la sociedad argentina en el periodo de 1995 al 2002.
Por último nos proponemos indagar sobre el vínculo entre cuerpo y política
en algunos movimientos históricos, que entendemos son significativos en
términos de potencialidad política: 1) Cuerpo y desaparición: Hijos y Madres
de Plaza de Mayo, 2) Cuerpo y movimientos indígenas, 3) Cuerpo y feminismo.
Una política del cuerpo da temor a templos teológicos y también filosóficos.
Los templos controlan cuerpos cuando sus discursos legitiman políticas de
opresión. Los cuerpos sin propiedad y en la intemperie señalan políticas de
liberación: cínicos para una edad de la exclusión y la globalización ANDRÉS
ROIG, 2002).
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Asselborn Carlos, Pacheco Oscar e Cruz Gustavo
Referências
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RICOEUR, P. Del texto a la acción., Buenos Aires: FCE, 2000. p. 349-360.
CORPORALITY AND LATIN AMERICAN LIBERATION
Abstract
In this article our philosophical reflections on corporality and liberation are exposed.
Firstly it is enunciated the supposed fundaments from which we started, in particular on
the liberation and the domination. Secondly we will expose our hipothesis of the work
on the ways that the capitalist domination operates on the corporality, the desire and the
taste. Lastly, we will expose some readings of Latin American philosophers which enable
us to go deep on the topic of the corporality and the Latin American liberation.
Key words: Corporality. Liberation. Desire. Politics.
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O NATURALISMO EPISTEMOLÓGICO: POROSAS
FRONTEIRAS ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA
José Carlos Leite*
Filosofia não é uma disciplina que forneça, fora do âmbito da
ciência, uma resposta a todos os problemas não resolvidos da
humanidade (Gerard Fourez).
Resumo
O texto aborda o naturalismo epistemológico – abordagem filosófica que emerge
com força na filosofia na segunda metade do século XX –, faz a crítica das correntes
afiliadas ao que se denomina concepção frege-wittgensteineana: corrente filosófica ligada à
epistemologia que tentou reduzir toda a riqueza afeta à problemática epistemológica
a questões lógicas, de análise conceitual ou de gramática. Apresenta ainda a emergência
de concepções ou orientações teóricas que se contrapõem à eugenia epistêmica levada
a cabo pelos precursores do Círculo de Viena. O naturalismo epistemológico pode
ser definido como um pensamento que reivindica a reconciliação ou a reaproximação
da filosofia com a ciência, rompendo assim a rígida fronteira que separou estas áreas
da cultura já nos albores da modernidade.
Palavras-chave: Naturalismo. Hibridismo. Eugenia. Assepsia metodológica.
Introdução
Este texto1 resulta de reflexões e debates ocorridos no ano de 2003 por ocasião
da execução do projeto de pesquisa desenvolvido no Departamento de Filosofia,
vinculado à linha de pesquisa filosófica da Ciência e Epistemologia.2 Chegamos
*
1
2
Professor do Departamento de Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea da UFMT.
O texto que segue tomou por base as notas que serviram para a comunicação apresentada no III
Simpósio Nacional de Filosofia e que abordou o tema “A Natureza do conhecimento – contribuições dos
séculos XIX e XX”, em maio de 2004, em Curitiba-PR. Posteriormente estas notas foram revistas e
apresentadas novamente na 1ª Semana de Filosofia, UFMT, Cuiabá, em novembro de 2004.
O projeto “Novas abordagens ônticas e epistêmicas – redefinições e emergências” encerrou suas
atividades em agosto de 2003. Dele participaram também as docentes Josita C. da R. Priante e Maurília
V. L. do Amaral, bem como as alunas de graduação do curso de filosofia Simoy Jin e Karine Krewer
(bolsistas do CNPq no Programa de Iniciação Científica - PIBIC).
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José Carlos Leite
ao seu tema geral – o naturalismo epistemológico e o papel deste para o
enriquecimento da filosofia, notadamente a epistemologia, na segunda metade
do século XX – por meio da publicação do Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência (CLE), da UNICAMP, intitulada Cadernos de História e Filosofia
da Ciência, que, em seu oitavo volume, debruçou-se sobre a temática do naturalismo
epistemológico (ÉVORA; ABRANTES, 1998). O volume referido contém quatro
ricos ensaios, precedidos de uma apresentação de Paulo Abrantes, historiador e
epistemólogo da ciência. Três destes ensaios defendem a pertinência do chamado
naturalismo epistemológico, e um quarto questiona a validade desta abordagem
epistemológica, posicionando-se “contra a epistemologia naturalizada”. Assim,
grande parte do texto que segue inspira-se nessa publicação, de modo especial
no primeiro ensaio, denominado O retorno dos naturalistas, do filósofo norteamericano Philip Kitcher (In: ÉVORA; ABRANTES, 1998).3
O subtema “as fronteiras porosas entre filosofia e ciência” adveio de
aproximações do pensamento do filósofo da ciência Michel Serres –
especialmente de sua obra intitulada Filosofia mestiça, na qual advoga misturas,
hibridizações, entre filosofia e ciência.
O tema deste texto – o naturalismo epistemológico – “invade” a filosofia –
especialmente uma de suas subáreas, a epistemologia – na segunda metade do
século XX. Ele emerge na história da filosofia, pode-se dizer, como resposta
ou reação àquilo que Richard Rorty chamou de “o retorno a Kant” (CAPONI,
1999, p. 19), ou seja, um movimento produzido na Alemanha depois de 1860
e que basicamente defendia a autonomia da filosofia frente às ciências e a tese
de que aquela teria um conjunto de problemas que lhe são próprios, diferindose, pois, dos da ciência.
Esse movimento de “retorno a Kant” denomino-o aqui de re-edição de tentativas
de eugenia4 para a filosofia. Este movimento atingirá seu ápice com a entrada em
cena do chamado Círculo de Viena (décadas de 30 e 40 do século passado).
3
4
Originalmente publicado in Philosophical Review (p. 55-111).
A eugenia é a “ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça
humana” (HOLANDA, 1982). Parece que tal prática existe desde os tempos em que os humanos
iniciaram a domesticação de animais e manipulação de plantas. Na literatura ela já aparece em escritos
de Platão. Este propôs a prática da eugenia tanto em seu sentido literal (ver A Republica, livro V, 459ae) quanto em sentido figurado. A expulsão dos poetas da cidade, propugnada por Platão, poderia ser
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
Assim, esse retorno a Kant ou esta tentativa de eugenia ou assepsia filosófica
buscava basicamente demarcar fronteiras entre estas duas grandes áreas da
cultura do ocidente: Filosofia e Ciência. Notadamente duas subdisciplinas das
ciências: a psicologia e a biologia. Esta, de modo particular, invadiu o terreno
da filosofia após a publicação, em 1859, de A origem das espécies (DARWIN).
Esta obra teve um grande impacto nos meios intelectuais. Sua influência –
pela polêmica que despertou em torno do conceito evolução – não se restringiu
apenas ao âmbito das ciências; afetou (como ainda afeta) a Teologia e a Filosofia.
O Círculo de Viena – o contexto histórico de sua emergência
Como sabem os estudiosos da história da filosofia do período que compreende
a segunda metade do século XIX e primeira do século XX, as proposições
geradas no âmbito do Circulo de Viena tiveram sua inspiração inicial em
Gottlob Frege (1839-1914)5 e em Bertrand Russell (1872-1970). As ideias destes
autores amadureceram nas duas primeiras décadas do século XX, consolidandose ou tornando-se um corpo teórico mais robusto com o Círculo de Viena.
Os filósofos do Círculo iriam popularizar o “primeiro” Wittgenstein ao final
da década de 20 e início da década de 30 do século passado. O “primeiro”
Wittgenstein é o autor do Tractatus lógico-philosophicus, publicado em 1921. Ele
foi aluno de Russell6, em Cambridge, no início do século XX.
As proposições do Círculo de Viena floresceram, sobretudo, no pós-guerra,
especialmente nos países anglo-saxônicos. A repercussão desses estudos
ultrapassou a Europa, e, no Brasil, a Unicamp foi o lócus em que as proposições
do Círculo tiveram melhores acolhidas (BARBOSA, 2001, p. 19-34).
5
6
vista também como uma espécie de eugenia (sentido figurado). Parece ser lícito afirmar que Platão
teve a intenção de “purificação da filosofia” ao buscar colocá-la fora da influência das artes. Estas, no
seu entender, meramente imitavam ou reproduziam a “verdadeira” realidade. Realidade irreprodutível
ou inimitável para ele, uma vez que ela se situava no plano de uma idealidade transcendente.
Pode-se dizer que também Kant teria posto em prática uma espécie de eugenia para a filosofia, ao
buscar definir ou delimitar campos específicos para a metafísica e para a ciência, conforme veremos.
A influência de Frege veio através de sua obra Os fundamentos da matemática, publicada em 1884.
Na obra Retratos de memória Russell relata as circunstâncias em que conheceu Wittgenstein, em 1913, e
como sua opinião veio influenciar Wittgenstein em sua escolha profissional: abriu mão dos estudos
ligados à aeronáutica para se dedicar à filosofia (Bertrand Russell, Col Pensadores, 1979, v. 5).
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José Carlos Leite
As discussões do Círculo voltaram-se particularmente para a análise da
linguagem, bem como visaram estabelecer o estatuto das proposições científicas
(LAROUSSE). Assim, o conteúdo filosófico gerado no Círculo constituía-se
de “um misto de análise conceitual e de reconstrutivismo lógico” (ABRANTES,
1998, p. 10).
Com o Círculo, predominou então o que Kitcher, no ensaio O retorno dos
naturalistas (já referido acima), vai denominar de epistemologia pós-fregeana e
pós-wittgensteineana. Tal epistemologia caracterizou-se por “uma concepção
de trabalho filosófico que o isola das ciências” (KITCHER. In: ÉVORA;
ABRANTES, 1998). Tal concepção é francamente antipsicologista e se
caracteriza por uma metodologia apriorística; daí o “retorno a Kant” aludido por
Richard Rorty. O mundo empírico, fenomênico, é afastado das preocupações
dos neopositivistas – outro nome que comumente atribui-se aos afiliados ao
Círculo de Viena.
Desse modo, é lícito afirmar que O retorno dos naturalistas – de que fala Kitcher
– foi motivado pelo aparecimento e pela consolidação das proposições dos
filósofos da linguagem, abrigados no Círculo de Viena. Como já referido, tais
proposições se espalharam para além da Europa, sobretudo para a América.
A ascensão do nazismo (e a perseguição movida por este aos judeus) levou
muitos dos membros do Círculo (de ascendência judaica) a se refugiarem na
América.
Assim, a força que o Círculo de Viena teve na Europa – e nos EUA, especialmente
–, fez com que se retardasse uma aproximação que se ensaiava entre filosofia e
ciência ao final do século XX, tanto no velho quanto no novo continente,
conforme será visto à frente.
Lembrando mais uma vez: a separação entre a Filosofia e a Ciência havia se
estabelecido, sobretudo, pela indicação de Kant em sua obra, hoje clássica,
Crítica da razão pura. Vale lembrar que esta obra influenciou sobremaneira o
modo de produzir conhecimento durante todo o século XIX. Foi considerada
por Charles Peirce a obra filosófica mais influente desse século. Nela o filósofo
de Königsberg indicava que o conhecimento válido – ou conhecimento que
aspirava ao status de ciência – era aquele que operava a partir de objetos dados
à sensibilidade. Isto é consequência de sua conhecida separação ontológica,
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
ou seja, de sua divisão da realidade em numênica e fenomênica. Ou seja, Ciência,
como passaram a entender os modernos – sobretudo Galileu, Newton e,
especialmente, Kant –, se produz sob esta condição: separação (assepsia) de
objetos. Por isso, a partir da instauração da modernidade, à Ciência coube a
investigação do mundo empírico (fenomênico); à Filosofia restou tão somente
a especulação do chamado mundo noumênico – seres ou realidades que não são
dados à sensibilidade, que não se manifestam aos sentidos.
Retomando o Círculo de Viena: este foi propiciado pela chamada “virada
linguística”. Tal virada foi facilitada pela aproximação de Carnap (um dos
principais integrantes do Círculo de Viena) da obra do lógico e matemático
Bertrand Russell. Isto ocorre no início da década de 20, época em que se dá a
publicação do Tractatus, conforme visto.
Carnap havia sido aluno de Frege (de quem falaremos mais à frente) antes da
Primeira Guerra Mundial. Este procurou – seguindo as indicações de Kant –
demarcar os campos de atuação da Filosofia e da Ciência, sobretudo no que
tange à teoria do conhecimento ou à epistemologia.
Assim, o Círculo, além da filiação ao pensamento de Frege e Wittgenstein, é
também caudatário da obra de Bertrand Russel. Por isso, o desenvolvimento
da epistemologia e da teoria da cognição – ou do conhecimento – operada no
âmbito do Círculo será marcado por forte viés da lógica, sobretudo da lógicamatemática. Isto tem como consequência uma produção teórica em que um
viés quase obsessivo pela precisão vai predominar. Este viés é uma clara herança
de Russel, que, como Frege, era lógico e matemático. Conforme já assinalado,
esta herança retroage a Kant. E talvez mesmo a Descartes (século XVII), que
havia indicado um método para o conhecimento filosófico ou científico no
qual a tônica da separação, que se dava por via da análise, estava bem explícita.
Mas não vamos retroagir tanto na história da filosofia, mesmo sabendo que a
instauração da modernidade remonta a Descartes. Fiquemos no final do século
XIX, com Frege. Este diz explicitamente em Os fundamentos da aritmética7: “Fui
7
Obra que buscava encontrar os “fundamentos lógicos gerais”, o conceito, para o conhecimento do
número. Esta busca está explícita em seu subtítulo: “uma investigação lógico-matemática sobre o
conceito de número”.
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obrigado a ocupar-me um pouco com psicologia, ainda que somente para
repelir sua invasão na matemática” (FREGE, 1980, p. 203). Como bom cartesiano
que era, Frege prossegue em sua asséptica metodologia recomendando que
“deve-se separar precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo”
(FREGE, 1980, p. 204).
Trago aqui algumas proposições do Tractatus.
4.111 - A filosofia não é uma das ciências naturais.
4.112 - O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos.
4.1121 - A psicologia não é mais aparentada com a filosofia que qualquer
outra ciência natural.
4.1122 - A teoria darwinina não tem mais a ver com a filosofia que qualquer outra
hipótese da ciência natural.8
Estas proposições, ao que me parece, não são somente uma herança fregeana
(presente em Os fundamentos da aritmética – obra de Frege escrita em 1884) no
pensamento do chamado “primeiro” Wittgenstein. Elas são, acima de tudo, uma
manifestação explícita contra “intrusões da psicologia ou da biologia” que se
faziam presentes nas epistemologias desenvolvidas em séculos anteriores.9
Wittgenstein (ver item 4.11 do Tractatus), defendera que “a totalidade das
proposições verdadeiras é a ciência natural inteira”. Ao que parece, Wittgenstein
postulava que a ciência natural inteira (ou conhecimento sobre o mundo ou sobre
a realidade) se faz por meio da totalidade das proposições verdadeiras. Bastam as
proposições. Elas são suficientes. Não se faz necessário confrontar tais
proposições com a realidade. Chamo mais uma vez a atenção para o cuidado
que o autor do Tractatus teve – assim como já o fizera Frege – para chegar ao seu
objetivo: instaurar ou reinstaurar uma eugenia, uma assepsia metodológica: separação
entre Filosofia e Ciência.
8
9
Kitcher (op cit, p. 29-30) apresenta estas proposições – extraídas para demonstrar a rejeição ou a
recusa explícita de Wittgenstein às ciências empíricas.
Kornblith, Hilary no ensaio denominado Naturalismo metafísico e epistemológico – publicado na coleção
do CLE, referido no início do texto, diz que autores como “Descartes, Locke, Kant, Marx, Reichenbach
e inúmeros outros procuraram mostrar que suas ideias harmonizaram-se bem com o melhor da ciência
disponível em seu tempo”.
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
Nota-se nestas proposições uma clara reação àquilo que Ernest Haeckel (18341819) propunha havia cerca de meio século, ou que Charles Peirce, lógico e
pragmatista norte-americano, formulara em tempos que precederam
imediatamente a publicação do Tractatus de Wittgenstien: a composição entre
Filosofia e Ciência(s) natural(s) para explicar a realidade. Falaremos de Haeckel
e Peirce e suas contribuições para a epistemologia mais à frente.
O retorno dos naturalistas
O retorno dos naturalistas de que nos fala Philip Kitcher no ensaio referido no
início deste artigo pode ser visto como uma reação às proposições do Círculo
de Viena. E por que retorno? Já apontamos. Porque uma “filosofia naturalista”
já estivera presente na história do pensamento antes da ascensão seja do
pensamento de Frege, seja de Russel, do primeiro Wittgenstein, ou do Círculo de
Viena (especialmente com Carnap). Uma filosofia naturalizada seria uma
modalidade do fazer filosófico que não prescinde da(s) ciência(s), mas, pelo
contrário, recorre às contribuições dela(s) para seu exercício.
Para Ernest Nagel, que escreveu, em 1961, The structure of science, o naturalismo
é comprometido com duas teses: na primeira há uma clara rejeição do
sobrenaturalismo, como se pode ver pelo que segue: “Na concepção dos
processos naturais [...] não há lugar para a operação de forças incorpóreas,
nenhum lugar para um espírito imaterial dirigindo o curso dos eventos, nenhum
lugar para a sobrevivência da personalidade após a corrupção do corpo que a
exibe” (NAGEL apud ÉVORA; ABRANTES, 1998).
Decorrente desta tese, conforme Abrantes (1998, p. 11), há também seu
compromisso com uma posição materialista, qual seja, “a posição teórica que
postula a primazia existencial e causal da matéria organizada na ordem executiva
da natureza”. Tal posição, contudo, não deve implicar qualquer forma de
reducionismo ou eliminativismo, uma vez que Nagel admitia a “emergência
de formas novas na evolução física e biológica”. Numa segunda tese Nagel
associa ao naturalismo a “pluralidade e variedade manifesta das coisas, de suas
qualidades e funções”. O conteúdo desta tese, ainda conforme Abrantes (1998,
p. 12), entra em rota de colisão com o postulado de “que haveria uma
‘substância homogênea e transempírica’, de uma realidade última”.
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Assim, para Ernest Nagel, as teses do naturalismo “não são defendidas a priori:
a ‘verdade do naturalismo’ enquanto verdade filosófica estaria respaldada por
evidências colhidas através do ‘método da ciência empírica moderna’”. E
conclui que tal método seria o único aceito para decidir a respeito de “asserções
cognitivas”. Há uma diversidade de naturalismos: substantivo, moderado, estendido
e seperestendido.
Para Goldman (1998), um dos ensaístas do volume 8 de Cadernos de História e
Filosofia da Ciência (referido no início deste texto), as posições naturalistas
substantivas seriam “aquelas que invocam processos físico-causais do agente
epistêmico, ou talvez relações que se estabeleçam entre o agente cognitivo e
seu meio-ambiente”. Vale notar que, para Goldman, tais posições substantivas
não são aplicadas diretamente à filosofia em geral, mas a uma de suas subáreas:
a epistemologia. Por sua vez, o não-naturalismo epistêmico substantivo – contrastando
com o enunciado acima – assevera que este:
É tipificado pela concepção de que o conhecimento, a justificação, e a
racionalidade surgem, primeiramente, das relações evidenciais entre sentenças
ou proposições, assunto de natureza abstrata que pode ser estudado pela lógica
e pela teoria da probabilidade, ao invés de pelo estudo dos sistemas biológico
ou psicológico no mundo natural (físico) (GOLDMAM, 1998, p. 110).
Nota-se que o não-naturalismo epistêmico seria a filosofia típica engendrada
pelo Círculo de Viena. Quanto ao naturalismo moderado, podemos conjecturar
que haveria traços dele na Grécia antiga, entre os pré-socráticos. Por exemplo,
em Empédocles, com sua teoria dos elementos: terra, fogo, ar e água; em
Demócrito de Abdera, com sua teoria do átomo. E pode-se falar também de
um naturalismo moderado em Aristóteles. Lembro que o estagirita é considerado
o primeiro zoólogo. Importante assinalar que, para este discípulo de Platão, as
formas – diferentes das de seu mestre – necessitavam de um mundo empírico
para se manifestar. Assim, as formas aristotélicas já não eram portadoras da
pureza, da assepsia do mundo fenomênico, com postulado por Platão.
Conforme já assinalado anteriormente, o naturalismo epistemológico
moderado já se manifestara na filosofia moderna: ele esteve presente em autores
como Descartes, Locke, Leibniz, Kant, Marx, Reichenbach... Assim, o
naturalismo – em sua versão moderada – não é filho apenas dos séculos XVII
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
e XVIII.10 É ao final do século XVIII, lembrando mais uma vez, que ocorre a
grande ruptura: Filosofia e Ciência tomam caminhos diferentes.
Passo agora ao naturalismo superestendido. Ao tratar desta modalidade de
naturalismo, prolongarei um pouco mais a exposição. Penso que isto constitui
um argumento aceitável, uma vez que ela (a modalidade) é quem vai fornecer
os elementos que justificam a inexistência de fronteiras entre Filosofia e Ciência.
O naturalismo superestendido surge ao final do século XIX e início do século XX.
Traços dele podem ser encontrados na América do Norte, com John Dewey
(1859-1952) e Charles S Peirce (1839-1914), e na Alemanha, com Ernest
Haeckel. Este último, menos conhecido nos círculos filosóficos, é considerado o
formulador de uma disciplina segundo a qual a mistura de elementos, especulação
teórica e experimentação, se faz presente. Estou me referindo à ecologia.
Primeiramente discorrerei sobre o pragmatismo norte-americano, com foco no
pensamento de Peirce. O referido “retorno a Kant” bem como a citada virada
linguística – buscando reintroduzir a “eugenia” na filosofia, ao tentar separá-la
das ciências empíricas – vieram eclipsar uma aproximação que se ensaiava, em
solo norte-americano, entre a Filosofia e a Ciência. Tal aproximação foi propiciada
pelo pragmatismo norte-americano ao final do século XIX e início do século
XX, especialmente com os filósofos Jonh Dewey (1859-1952) e Charles Peirce
(1839-1914). Tanto o “retorno a Kant” quanto a “virada linguística” retardaram
a tentativa de reaproximar estas duas áreas da cultura – Filosofia e Ciências(s) –
, pelo menos até 1950, quando o naturalismo epistemológico emerge ou reaparece
com muita pujança na cena filosófica. Define-se, geralmente, por pragmatismo
a concepção segundo a qual “as coisas são aquilo que elas possam fazer”. Ou
seja, não postula qualquer entidade abstrata para fazer ou operar o e no mundo.
Influenciado por Darwin, o pragmatismo nasceu e floresceu nos EUA. Entre
seus principais representantes constam William James, John Dewey e Charles
Peirce. Dewey, por exemplo, ao assinalar a influência do darwinismo na filosofia,
postulou a necessidade de encarar o sujeito epistêmico como estando “em
10
O século XVII foi chamado por Meleau-Ponty de “o século de ouro”, por ter sido um “momento
privilegiado” e por se ter acreditado que o “conhecimento da natureza e da metafísica encontraram
um fundamento comum” (CHAUÍ, Apresentação do pensamento de Pascal, p. 12 - Col. Pensadores).
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interação ativa com o meio ambiente, respondendo adaptativamente a este
último, bem como uma concepção de mente como sendo uma emergência de
processos naturais (apud ABRANTES, 1998, p. 9). Sua epistemologia, assinala
ainda Abrantes, pressupõe ou leva em consideração a “continuidade natural”
entre o homem e os outros animais.
Conforme Abrantes, Dewey vai fazer uma contundente defesa do que chamou
de “método empírico” para a filosofia. Na avaliação deste filósofo norteamericano é exatamente no afastamento do empirismo que se localizam “as
mazelas da filosofia”. Isto levou a filosofia “a hipostasiar uma substância
imutável como realidade abstrata, eivada de categorias do pensamento”
(ABRANTES, 1998, p. 8-9).
Nesta modalidade atuou ainda outro pragmatista, Charles Peirce (1839-1914),
especialmente ao indicar que não devemos prescindir do mundo fenomênico
para o conhecimento. Sua obra – com cerca de 90 mil páginas – é marcada
pela defesa da ideia de que “a filosofia deve abandonar todas as formas de
misticismo e unir-se à ciência” (PEIRCE, 1980, c. 8). Ele resumiu assim sua
obra: “[...] minha filosofia pode ser descrita como a tentativa que um físico
desenvolve no sentido de fazer conjectura acerca da constituição do universo,
utilizando métodos científicos e recorrendo à ajuda de tudo quanto os filósofos
anteriores fizeram” (PEIRCE, 1980, p. 114). E prossegue.
Apoiarei minhas proposições com os argumentos que puder. Prova
demonstrativa não entra em cogitação. As demonstrações dos metafísicos são
fantasias. O que de melhor se pode fazer é fornecer uma hipótese nãodesprovida de probabilidade, dentro da linha geral do crescimento das ideias
científicas, e capaz de ser verificada ou refutada por observadores futuros
(PEIRCE, 1980, p. 114).
Apesar da imagem que herdamos de Peirce, de um matemático, lógico ou de
semioticista, suas formulações teóricas não remetem apenas ao universo de
números e figuras geométricas, ao campo da lógica ou ao mundo dos signos
(aquilo que se coloca no lugar de outrem). Suas teorias remetem ao que ele
denominou de verdades positivas. Ao estabelecer uma divisão da Ciência, que para
ele era tripartite: – Matemática, Filosofia e Ideoscopia, ou Ciências Especiais
tais como a Física, Química, Biologia –, Peirce diz que a Filosofia “lida com
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
verdades positivas” e “de fato satisfaz-se com observações tais como as que são
pertinentes à experiência normal e diária de todo homem, e no mais das vezes,
em toda hora consciente de sua vida” (IBRI, 1992, p. 3). Recomendava para os
estudantes de filosofia:
[...] fique entendido que o que temos a fazer enquanto estudantes de filosofia
é simplesmente abrir os olhos do espírito e olhar bem os fenômenos e dizer
quais suas características, quer o fenômeno seja externo, quer pertença a um
sonho, ou a uma ideia geral e abstrata da ciência (PEIRCE, 1980, p. 17).
Sua lógica foi desenvolvida em interface com a ciência positiva (ou com as
Ciências Especiais, para usar a nomeclatura peirceana) e o conduziu a
descobertas desconcertantes, que chocam com os estudos que se enveredam
pelas trilhas de sua semiótica – esta entendida como uma “lógica expandida”.
Dizia ele que esta lógica não prescinde do mundo empírico para suas asserções.
O próprio Peirce ficou embaraçado com suas descobertas e assim se expressou:
Devido ao meu tratamento da Lógica como uma ciência, à maneira das ciências
físicas, nas quais fui treinado, fazendo estudos especiais, minuciosos, exatos e
checados pela experiência, e devido ao fato de que a Lógica havia sido
raramente assim estudada, as descobertas me chegaram num tal fluxo a ponto
de me embaraçar (PEIRCE apud SANTAELLA, 1992, p. 68).
Vê-se, na citação, como filosofia (ou uma de suas subáreas, a lógica) e ciência
empírica estão miscigenadas. Há aí uma explícita indicação de mestiçagem entre
filosofia e ciência empírica. A colheita das proposições disseminadas pelos
herdeiros de Frege e Wittgenstein foi o afastamento da chamada experiência primeira,
na qual o sujeito e o objeto do conhecimento – o mundo empírico – estão
intrinsecamente unidos. A experiência primeira referida passa a ser então julgada
como “aparente” pela tradição filosófica. Isto levou os processos do conhecer a
se afastarem do mundo e a se refugiarem em um sujeito cognoscente ávido por
uma realidade última – e que se faz abstrata no dizer de Abrantes –, fugindo,
assim, das “impressões”, das “assinaturas” do mundo. Estas foram julgadas como
empirismo ingênuo (naife) pelos críticos do empirismo, e, como tal, não passariam
de meras aparências ou meras subjetividades que deveriam ser desconsideradas,
ou mesmo desprezadas. E passaram a ser encaradas como “meros conjuntos de
‘impressões’ ontologicamente inferiores’” quando comparados a uma “realidade
essencial, última”, conforme Abrantes (ABRANTES, 1998, p. 9).
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José Carlos Leite
É buscando recuperar o valor heurístico da chamada experiência primeira que
Peirce preceitua:
Fique entendido que o que temos a fazer enquanto estudantes de fenomenologia
é simplesmente abrir os olhos do espírito e olhar bem os fenômenos e dizer
quais suas características, quer o fenômeno seja externo, quer pertença a um
sonho, ou uma ideia geral e abstrata da ciência (PEIRCE, 1980, p 17).
Assim, em sua fenomenologia, que vai alimentar sua semiótica, esta entendida
como lógica, não há somente espaço, mas ela é condição para o conhecimento.
Este, para Peirce, se dá na forma de signos (aquilo que remete ao mundo). Na
obra do comentador de Peirce, Ivo Ibri Assad, denominada de Kósmos noetós,
Peirce é visto por um viés naturalista. Esse viés ou esta perspectiva é a que
Ibri busca ressaltar em Peirce. Ibri o faz tentando recuperar a face naturalista
da lógica por ele formulada.11 Essa leitura não coincide com aquela que
comentadores deste filósofo americano têm feito desde sua morte, no início
do século XX. Santaella Braga, em sua obra A assinatura das coisas, assim como
Ibri, em Kósmos noetós, apontou as causas das leituras enviesadas da obra de
Peirce feitas seja por semioticistas, seja por filósofos. Santaella Braga defende
que a obra de Peirce é como uma teia: caso toque um de seus fios, toda a
trama é afetada. Sua obra é sistêmica; e como tal deve ser vista, estudada ou
lida. A teoria da realidade de Peirce recupera inclusive modos de ver a realidade
que se perderam na modernidade (BRAGA, 1992 e IBRI, 1992).
Saltando para o velho continente, passo agora à contribuição que deu Ernest
Haeckel12 ao naturalismo superestendido. Haeckel (1834-1919) – zoólogo e colega
de Frege na Universidade de Iena – foi quem deu “prosseguimento à tradição
de recorrer à ciência para discutir as grandes questões epistemológicas e éticas”
11
12
Peirce, em muitos circuitos acadêmicos, continua sendo encarado como um filósofo da linguagem, ou
como um lógico. No meu entender, ele, na verdade, é uma espécie de arlequim - usando uma metáfora
de M. Serres, presente na obra Filosofia mestiça – do conhecimento, ao misturar diferentes elementos
para compor, tecer uma nova epistemologia e ontologia. Sua lógica foi o que tem sido toda lógica:
ferramenta ou instrumento para pensar o ser, a realidade.
As informações sobre Haeckel foram obtidas nos seguintes endereços eletrônicos:
http://www.ucmp.berkeley.edu/history/haeckel.html e http://www.geocities.com/~esabio/
ontogenia.htm (Acessos em 25/09/2009). Sua obra mais importante é Morfologia geral dos organismos,
de 1866. Nesta obra estão presentes as ideias de Haeckel, que serão apresentadas a seguir.
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
(KITCHER, 1992, p. 27).13 Kitcher aponta que a denominação naturalismo
superestendido se dá em contraponto ou em oposição à versão do “naturalismo
comedido”, lançada por filósofos como Descartes, Locke, Liebniz, Hume, Kant
e Mill (KITCHER, 1992, p. 28).
Com que problema Haeckel se deparou? O problema da forma, questão que
já fora tratada pela tradição filosófica e científica. Na filosofia, tratada por
Aristóteles e pelos naturphilosophen (filósofos naturais) do final do século XVIII
e início do XIX; na biologia, pelos chamados pré-formacionistas, que também
viveram na era moderna.
Aristóteles havia postulado que “os embriões dos animais parecem virtualmente
informes no início. Ele estava inclinado a acreditar que o crescimento ocorre
em três estágios distintos, durante cada um dos quais uma nova forma é impressa
a partir do exterior no embrião” (GEOCITIES). Os chamados naturphilosophen
– que eram não apenas filósofos, mas também cientistas e mesmo poetas – já
viam o mundo não como algo pré-formado ou estático, mas como “um processo
dinâmico de mudanças constantes e progressivas”. E, de acordo com eles,
O homem era o maior e o mais avançado dos seres sobre a terra, meta em
direção à qual toda a Natureza se empenhou e com a qual ela é unificada.
Uma vez que a Natureza opera através de leis universais e uniformes,
afirmavam eles, o homem tem que representar o estágio mais avançado de
um desenvolvimento orgânico compartilhado por todas as criaturas. Todos
os organismos inferiores, concluíram os Naturphilosophen, eram apenas
aproximações parciais do homem e o homem, o estágio final em processo de
perfeição. Dessa maneira, à medida que o ser humano passa de embrião a
recém-nascido, ele deve percorrer todos os estágios mais baixos para alcançar
o mais alto, enquanto que os animais inferiores se detêm em um estado de
desenvolvimento interrompido (GEOCITIES).
13
Este autor lembra que “muitos filósofos anglo-americanos consideram Iena um santuário por ali ter
sido o berço da filosofia contemporânea”. Aponta ainda que Haeckel “haveria de ficar surpreso se
pudesse vir a saber que um dos seus relativamente mais obscuros colegas colaborou para a destruição
dessa tradição”.
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José Carlos Leite
Estas ideias dos filósofos naturais emergem para contrapor às dos chamados
pensadores preformacionistas. Como o termo indica, eram pensadores que
defendiam que num novo organismo a forma já é pré-dada, pré-formada. Assim,
para eles,
Desde a concepção [o organismo já], contém sua forma adulta completa, que
se desenvolve no decorrer do tempo. Assim sendo, o embrião humano, desde
o comecinho, tem um par de braços, pernas, pulmões, olhos, orelhas, e assim
por diante, só que em versões primitivas. Nenhuma figura ou forma necessita
ser imposta por condições exteriores. Tudo já está ali, simplesmente
aguardando o crescimento (GEOCITIES).
O preformacionismo – que remonta a Aristóteles – como teoria biológica foi
abandonado (ENCICLOPÉDIA, 1998); entrou em declínio quando emergiram
na cultura do ocidente as ideias dos filósofos da natureza referidos, bem como
sua defesa de que os seres não resultam de algo já “pré-formado ou estático”,
mas de “um processo dinâmico pautado por mudanças constantes e
progressivas”. Em sua obra clássica, Morfologia geral dos organismos (publicada
pela primeira vez em 1866), Haeckel deparou com as seguintes questões: “As
espécies mantêm-se essencialmente as mesmas, no decorrer do tempo, ou
elas mudam? Como um organismo cresce de embrião a adulto?” Em outras
palavras: como um organismo passa de sua forma embrionária à de adulto?
A resposta por ele encontrada entrou em rota de colisão com a dos filósofos
naturais.
Essas duas perguntas distintas parecem encontrar uma solução mútua na teoria
segundo a qual “a ontogenia recapitula a filogenia”. Trocando em miúdos, a
ideia é que a história do desenvolvimento de um organismo (sua ontogenia)
repete o desenvolvimento evolucionário de sua espécie (filogenia). Isto é, se
os peixes e os macacos estiverem incluídos entre os ancestrais evolutivos dos
seres humanos, então, em pontos diferentes de seu crescimento, o embrião
humano vai se parecer com um peixe adulto e com um macaco adulto.14
14
A essa formulação denominou-se de “lei biogenética”. A frase “a ontogenia recapitula a filogenia”
data de uma publicação de Heckel no Quaterly Journal of Microscopical Science, de 1872 (GEOCITIES).
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
A versão evolutiva hackeana foi inspirada na obra A origem das espécies (de 1859),
de Darwin (de 1859). Ela foi traduzida para o alemão em 1860. As ideias de
Haeckel relacionadas à forma (do organismo) foram superadas, durante o século
XX, por outros biólogos. No entanto, sua contribuição considerada mais
relevante refere-se à ecologia. Mas não falaremos dela aqui, uma vez que os
princípios do pensamento ecológico são, hoje, sobejamente conhecidos: os
da interdependência entre todos os seres vivos e seu ambiente.
Conclusão
Para finalizar, apenas queremos reafirmar algumas ideias apresentadas ao longo
do texto. Primeiro, um lembrete de Quine: “Para prover a filosofia com um
fundamento adequado” deve-se torná-la contínua com as ciências. 15
Fundamento este que também os positivistas e neopositivistas buscaram, mas
erraram em sua tentativa pelo fato de adotarem um método a priori. Tal método,
continuando com Quine, obteve sucesso “somente em isolar a teorização
filosófica dos resultados científicos e dos métodos científicos que estes mesmos
positivistas tanto respeitavam” (QUINE apud KORNBLITH, 1998).
Em segundo lugar: conforme já assinalado,
A ideia de que a filosofia deva ser, de modo algum, baseada nas ciências não é
nova, e na verdade, deu origem a um grupo extraordinariamente diverso de
ideias filosóficas. Descartes, Locke, Leibniz, Kant, Marx Reichembach, e
inúmeros outros procuraram mostrar que suas ideias harmonizavam-se bem
com o melhor das ciências disponível de seu tempo. Na avaliação de todos [dos
filósofos referidos acima] esta atitude em prol da ciência resultou,
frequentemente, em concepções muito enganosas (KRONBLITH, 1998, p. 169).
Mas sabemos a que nos conduziu o pensamento desses filósofos: a um
racionalismo radical ou a um iluminismo ofuscante. Muitas vezes as luzes dos
séculos XVIII e XIX têm contribuído mais para nos cegar do que para nos
iluminar, conforme já assinalamos em outro texto (LEITE, 2001).
15
Hilary Quine apud Kornblith, 1988: 168-9.
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Parece que hoje, mais do que ontem, tem-se a necessidade de encontrar uma
saída, uma forma de compor filosofia e ciência. A tentativa de isolar o que não
pode ser isolado fracassou mais uma vez. Por isso, talvez uma saída seja os
filósofos se revestirem de mais modéstia e não tentar, por meio de concepções
a priori, ditar para a ciência os seus caminhos, ou o que ela deva ser, conforme
Kornblith (1998, p. 169).
Toda tentativa de trabalhar isoladamente parece fadada ao fracasso. Não se
pode ignorar o outro. Ainda que este seja o inferno, como postulou Sartre. Não
sei se podemos continuar a postular uma assepsia radical para a filosofia. Falase da falência das abordagens estritamente disciplinares e rastro de cegueiras
que estas provocam no Ocidente. Ao que parece, a multiplicidade de disciplinas
é filha da separação entre filosofia e ciência. Ela emerge na história do Ocidente
logo após Kant. Mas os saberes – e os fazeres decorrentes – gerados pela
multiplicidade disciplinar já não conseguem lidar com a nova ontologia
possibilitada pela ciência contemporânea. O mundo, o cosmo, a realidade, é
um ser sistêmico, orgânico. A assepsia e a eugenia radicais fracassarão de vez no
Ocidente? Estará a razão com os puristas, com os eugenistas ou com os que
defendem o naturalismo epistemológico? Não se pode responder. Somente o
tempo, a História, julgará.
Para encerrar, assinalo que o presente texto, ao tratar do naturalismo epistemológico, quer somar-se a outras contribuições interdisciplinares que hoje,
fartamente, circulam pelo mundo acadêmico. E, por último, não poderia deixar
de mencionar aqui a obra de Bruno Latour intitulada Jamais fomos modernos, que é
emblemática de como não poderia haver “um retorno a Kant”, uma vez que a
separação estrita entre filosofia e ciência, na ótica de Latour, jamais ocorreu. E,
nessa mesma ótica, ao invés de assepsias e eugenias, o que está a predominar são os
híbridos, as misturas, a miscigenação; enfim, mestiçagens de toda ordem, como
asseverou Michel Serres. Talvez o que nos resta é assumir tais mestiçagens,
miscigenações... e passar a conviver com elas. Por que não?
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O Naturalismo Epistemológico: porosas fronteiras entre Filosofia e Ciência
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.45-62, jul./dez. 2009
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José Carlos Leite
SERRES, Michel. Filosofia mestiça: Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1993. Título original: Le tiers instruit.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus lógico-philosophicus. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2001.
Webgrafia
Bibliografia e pensamento científico de Haeckel
Disponível em http://www.ucmp.berkeley.edu/history/haeckel.html. Acesso em: 25 de
set. de 2009.
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Disponível em: <http://www.geocities.com/~esabio/ontogenia.htm>. Acesso em: 25
de set. de 2009.
Endereço eletrônico: [email protected]
THE EPISTEMOLOGICAL NATURALISM: POROUS BOUNDARIES
BETWEEN PHILOSOPHY AND SCIENCE
Abstract
The text deals with the epistemological naturalism – philosophical approach which arises
meaningfully in the philosophy in the second half of the twentieth century – makes
criticism of the affiliated trends to which is named frege-wittgensteinean conception: philosophical
trend connected to the epistemology that tried to reduce all the wealth submitted to the
epistemological issues to logic topics, of conceptual analysis or of grammar. The text
also presents the emergency of conceptions or theoretical orientations which oppose
themselves to the epistemic eugenics accomplished by the predecessors of the Vienna
Circle. The epistemological naturalism can be defined as a thought which claims the
reconciliation or the restoration of the philosophy with the science, thus breaking the
strict boundary which separates those areas of culture already in the dawns of modernity.
Key words: Naturalism. Hybridism. Eugenics. Methodological asepsis.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.45-62, jul./dez. 2009
O MATERIALISMO HUMANISTA DE FEUERBACH
“Homo homini deus est.”
Paulo César Delboni*
Resumo
Neste artigo pretendemos demonstrar que o ateísmo de Feuerbach é mais humanista
que ateu. O que importa realmente é o homem. O ateísmo, a negação de Deus, é
apenas o pressuposto do humanismo, da afirmação do homem. É preciso negar
Deus para afirmar o homem. Homo homini deus est. Consideramos o materialismo
humanista de Feuerbach em sua obra principal A essência do cristianismo. Nela
Feuerbach afirma que a teologia e a religião são pura antropologia. Não é Deus
quem cria o homem, mas o homem quem cria Deus. Deus não existe em si e por
si, isto é, como sujeito. Deus é um objeto, um predicado humano. Alienado, o
homem projeta Deus fora de si mesmo; hipostasia em um ser supremo aquilo que
ele é em essência. A consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o
homem tem de si mesmo. Deus rouba do homem sua humanidade. Deus é a essência
mesma do homem, idealizada, posta fora do homem. Em Deus está o próprio
homem. A filosofia de Feuerbach reclama a libertação e emancipação do homem
prisioneiro da religião.
Palavras-chave: Feuerbach. Religião. Materialismo. Ateísmo. Humanismo.
Introdução
Podemos definir a filosofa de Feuerbach como a filosofia da crítica religiosa. A
crítica da religião formulada por Feuerbach representa a substituição do Absoluto
(Deus ou Ideia de Hegel) pelo homem real, prático, que já não é um predicado
do Espírito, mas sim um ser histórico, verdadeiro sujeito. A crítica da religião é
desenvolvida por Feuerbach em suas principais obras: A essência do cristianismo
(1841), Princípios da filosofia do futuro (1843), A essência da religião (1845) e Teogonia
(1857). No entanto, Feuerbach formula, de maneira mais sistemática e radical,
*
Professor e coordenador do curso de filosofia da Faculdade Salesiana de Vitória. Mestre em filosofia
pela Pontificia Universitá Gregoriana (Roma). Coordenador da revista REDES.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.63-75, jul./dez. 2009
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Paulo César Delboni
peremptória, sua crítica à religião e ao cristianismo em A essência do cristianismo.1
Publicada em 1841, A essência do cristianismo é, indubitavelmente, sua obra mais
famosa e polêmica. Nela o autor faz o giro antropocêntrico e materialista de sua
filosofia. Neste contexto, podemos afirmar que a obra se tornou um texto clássico
da filosofia da religião. Pode-se afirmar que Feuerbach é o pai da crítica
contemporânea da religião. A tese de fundo desta obra é a redução da teologia e
da religião à antropologia. O segredo da teologia é explicado pela antropologia,
pois a teologia há muito se tornou uma antropologia, sendo a antropologia sua
essência. No prefacio à primeira edição escreve Feuerbach: “Na verdade o que
será demonstrado neste livro de modo por assim dizer a priori, isto é, que o
segredo da teologia é a antroplologia, já foi comprovado. A teologia já de há
muito tempo transformou-se em atroplogia” (FEUERBACH, 2007, p. 14). O
verdadeiro significado da teologia consiste na antropologia. Portanto, Deus é o
homem, o homem é Deus. O homem é o ponto de partida e de chegada da
nova filosofia. Deus é destronado para que o homem ocupe o seu lugar, pois o
homem é deus de si e para si mesmo.
Feuerbach aceita a unidade de infinito e finito. No entanto, ao contrário de
Hegel, considera que o infinito é o homem e não o absoluto. Em A essência do
cristianismo, ele afirma, contrariando Hegel, que o fundamento da verdadeira
filosofia não é pôr o finito no infinito, mas o infinito no finito. Disto resulta
que a tarefa epocal da filosofia não é provar que o homem é produzido por
Deus, mas ao contrário, que Deus é uma produção do homem. Não foi a ideia
(Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a ideia (Deus).
A crítica de Feuerbach à religião e ao cristianismo constitui um estudo da
origem da ideia de Deus e dos seus atributos. A ideia de Deus tem o caráter da
hipostatização, ou seja, o homem projeta todas as suas qualidades positivas
em um ser divino e faz dela uma realidade positiva. Diante de um ser perfeito
o homem se sente esmagado, um nada.
1
Feuerbach escreveu A essência do cristianismo dividindo-a em Introdução, Parte Primeira e Parte Segunda.
Os dois capítulos da introdução expõem a tese de fundo da obra, ou seja, que a religião é uma
imagem e essa imagem é fruto de uma “patologia psíquica”, fruto da alienação do homem de si
mesmo, de sua essência projetada em um outro, transcendente. A primeira grande parte é intitulada
“A essência verdadeira”, isto é, essência antropológica da religião, e a segunda, “A essência falsa”, ou
seja, essência teológica da religião. Na primeira parte, descoberta a essência verdadeira da religião, o
divino é reduzido ao humano, ou seja, há uma divinização do homem. Na segunda parte, descoberta
a essência falsa da religião, da incompatibilidade da teologia com o homem, Feuerbach exige o
cancelamento da alienação religiosa.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.63-75, jul./dez. 2009
O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
1. Crítica à religião
Toda a crítica à religião é baseada no método genético-crítico, que consiste em
perguntar como e onde surge a religião. Já nas primeiras páginas de A essência
do cristianismo Feuerbach fundamenta a origem da religião na diferença entre o
homem e o animal. Os homens possuem religião, os animais não. A diferença
essencial entre o homem e o animal está na consciência do homem.
A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal. Os
animais não têm religião. Mas qual é exata diferença essencial entre o homem
e o animal? A resposta mais simples e mais comum, também mais popular a
esta pergunta, é: a consciência (FEUERBACH, 2007, p. 37).
Baseado em uma concepção materialista, Feuerbach assenta a religião na mera
imanência da temporalidade terrena. O conteúdo da religião, todo ele, não
passa de determinações humanas. As consequências imediatas da redução da
religião ao plano antropológico incidem diretamente em uma concepção
humanista, materialista e imanentista.
Para Feuerbach, a religião é a essência imediata do ser humano. No entanto,
ele reduz os atributos divinos da teologia a atributos humanos. Sua filosofia é
uma tentativa de transformar a teologia de Hegel em uma antropologia baseada
no mesmo princípio, ou seja, na unidade de finito e infinito. Como expoente
da esquerda hegeliana, Feuerbach defende a ideia de que a religião não é razão,
e sim representação. Ele irá criticar as abstrações hegelianas em defesa do
homem concreto; irá criticar a fé cristã em defesa de uma metafísica imanentista.
Feuerbach distancia-se de Hegel ao eleger o homem concreto como sua
prioridade, e não a idéia de humanidade.
A fortiori, o homem é quem cria Deus, e não o contrário. O pensamento filosófico
deve interessar-se por este homem como um todo, aqui e agora, e não somente
pela razão que o compõe. Deve abraçar a religião enquanto fato humano,
considerando este homem em estreita sintonia com outros homens, com sua
espécie. Assim:
A crítica de religião levada a cabo por Feuerbach e sua aplicação à filosofia
idealista de Hegel, em seu conjunto, representam a substituição do Absoluto
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.63-75, jul./dez. 2009
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Paulo César Delboni
(Deus ou Ideia) pelo homem real, que para Feuerbach já não é, propriamente,
um predicado do Espírito, mas sim um ente real, verdadeiramente sujeito,
que, sem deixar de ser natureza, é também espírito (VÁSQUEZ, 1986, p. 91).
Mas, afinal, o que é o homem na concepção feuerbachiana? Para conhecer quem
é o homem, diz Feuerbach, basta conhecer seu Deus. O Deus do homem é sua
própria humanidade suprimida. Materialista como é, afirma que tanto a religião
quanto Deus nada mais são do que uma projeção da intimidade da essência do
homem hipostasiada fora de si mesmo. Assim sendo, a teologia é pura
antropologia, pois o homem deposita em Deus o que lhe pertence. Feuerbach
interpreta as necessidades e anseios do homem face à religião como sendo o
homem um ser dependente e frágil, uma vez que ela – a religião – lhe serve
como alívio frente às angústias, à dor e ao sofrimento da existência, que a natureza
somente provoca e não alivia.
O homem é dependente da natureza para existir. A natureza é sentida como
necessidade. É neste momento que surge a necessidade da religião, opondose entre o querer e o poder, o pensamento e o ser. Diante da natureza, o
homem sente-se limitado e finito. A religião é porta-voz da onipotência e da
infinitude de Deus, que se doa ao homem. Os desejos do homem estariam
assim representados enquanto possibilidade na figura de Deus, que é a
representação imaginária da realização de todos os desejos humanos, superando
os limites que a natureza lhe impõe.
É interessante notar que Feuerbach desloca a divindade de um Deus externo
ao homem para o interior do próprio homem. Ele é Deus de si mesmo: “Homo
homini deus est”. Deus é então a consciência que o homem tem de si mesmo, de
seu ser expurgado. Disto decorre que a perfeição divina nada mais é do que o
desejo do homem de ser perfeito. Deus é a consciência que o homem tem de
si enquanto um ser imperfeito. Os predicados divinos, como o amor, a
perfeição, a bondade, atribuídos a Deus, deveriam voltar-se para o próprio
homem. Feuerbach reclama para o homem as qualidades divinas.
Na defesa do homem contra Deus, Feuerbach sanciona que a religião é a mais
pura ilusão que o homem cria para si mesmo. Ao mesmo tempo que oferece
um sentido de vida para o homem no além, nega o sentido de sua existência
terrena. A religião, ao impor ao homem suas limitações e imperfeições, acaba
por distanciá-lo dele mesmo, exteriorizando a própria divindade.
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O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
Para Feuerbach, o hegelianismo, que na sua dialética parte do infinito e volta
ao infinito através do finito, não passa de um pseudomisticismo, uma aplicação
dos processos filosóficos a matéria teológica. A elevação do pensamento
humano à dignidade do Absoluto constituía uma tentativa de alienação, uma
espécie de traição do humano. Agora era mister reconduzir à solidez da terra
firme esta filosofia que se perdia nas nuvens. Foi pensando assim que Feuerbach
atirou-se a um materialismo humanista radical. A realidade única não é o
Espírito, senão a Natureza, isto é, a matéria que sentimos. Em vez do monismo
do pensamento, o monismo da matéria. Existência real outra coisa não é senão
existência material, sensível.
Para ele, um Deus pessoal e transcendente é uma ilusão criada pelo homem,
que projeta fora de si os melhores atributos de sua natureza. A verdade, a
ordem, o amor, as tendências profundas, as aspirações mais ardentes, numa
palavra, atributos próprios da essência humana, os homens os personificam
num absoluto transcendente, construindo, assim, a noção da divindade. Não
é, pois, Deus quem cria o homem; é o homem quem cria a Deus.
No humanismo materialista de Feuerbach, em Deus se reúnem, hipostasiados,
todos os predicados essenciais da espécie humana, todos os valores inerentes
ao homem que lhe são necessários, mas que o simples indivíduo não consegue
realizar plenamente na precariedade de sua vida. Deus é, assim, uma projeção
ilusória, uma apoteose inconsciente da natureza humana.
Assim, o homem cria a Deus como uma ficção e, ao criá-lo como ficção, o cria
alienando-o de si, de sua essência. Consequentemente aliena o que há de melhor
em si mesmo. A religião desposa assim o homem da sua própria natureza. O
homem desvaloriza-se, porque transfere sua essência para fora de si, a um outrem
que não é ele mesmo. Alienado de sua essência, o homem projeta-se para um
além-quimérico, onde a sua imaginação mítica projetou uma ficção. Pela religião
explica-se a alienação, pela qual a humanidade se torna como que estranha, alheia
a si mesma, desumanizada, incapaz de realizar a plenitude do ser para si. São
nestes termos que Feuerbach revela sua hostilidade à religião.
O materialismo de Feuerbach é, portanto, um materialismo radical, contrário a
toda metafísica, que desconhece os valores do espírito e não vê na realidade
humana senão matéria. É um ateísmo intolerante, para o qual Deus é uma
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Paulo César Delboni
projeção da consciência humana, e a religião, uma ilusão e alienação da
humanidade. A religião é simplesmente produto humano. Disto decorre um
humanismo estreito, sem Deus, fechado num terrenismo absoluto, plenamente
bastante a si mesmo.
2. A redução antropológica da teologia
Em A essência do cristianismo, Feuerbach evidencia por várias vezes que o conceito
de Deus é apenas uma projeção do homem. Nas circunstâncias em que o
homem se sente pequeno, débil, fraco, incapaz, que não consegue satisfazer
suas necessidades, pela imaginação autocria Deus. Deus é apenas e tão somente
a projeção daquilo que o homem é em sua essência. Na verdade, Deus é pura
ilusão e imaginação, uma projeção que o homem faz de si mesmo. Feuerbach
é peremptório ao sacralizar as propriedades humanas, dizendo que as
propriedades de Deus são as do homem: homo homini Deus est.
De acordo com Feuerbach, o cristianismo separou do homem seus predicados
mais essenciais e os atribuiu a um ser divino, Deus. Deste modo, Deus
configura-se como verdadeiro sujeito do qual o homem depende, sendo dele
um mero objeto. A essência humana se encontra agora separada do homem
real. O homem finito tornou-se criatura de sua própria essência hipostasiada
ou substantivada em ser divino criado por ele mesmo.
A tese de fundo de A essência do cristianismo é a redução da teologia e da religião à
antropologia. Feuerbach reduz o cristianismo a uma simples criação da
consciência humana. O segredo da teologia pode ser explicado pela antropologia.
A teologia tem como pano de fundo a antropologia, sendo esta a essência daquela.
Desde o prólogo propõe-se como objetivo a inversão total do cristianismo,
reduzindo a teologia à antropologia, mostrando que todos os predicados
atribuídos a Deus se referem ao homem. Feuerbach está convencido de que a
teologia se identifica com a antropologia, a essência de Deus com a essência
humana. O ponto de partida e o princípio de sua demonstração centra-se na
concepção singular de homem e religião (ZILLES, 2007, p. 102).
Feuerbach está convicto de que o homem não é um ser abstrato, mas real. Aos
seus olhos aparece não a ideia de humanidade, mas do homem real. Sua filosofia
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O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
consiste em negar o idealismo, com o argumento de que o mundo é real; em
negar o teísmo, pois, segundo ele, não é Deus que cria o homem, mas é o homem
que cria Deus. A consciência de Deus é autoconsciência do homem, e
conhecimento de Deus é autoconhecimento do homem. “A consciência de Deus
é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o
conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e
vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa”
(FEUERBACH, 2007, p. 44).
Aqui, unidade entre o finito e o infinito se realiza no homem. O homem,
quando põe suas qualidades, aspirações e desejos fora de si, em um ser divino,
perde-se a si mesmo. Fica claro que a religião é uma criação fantasiosa do
homem. A religião consiste na relação do homem com sua essência projetada
em Deus. A religião é fato puramente humano. Portanto, todas as qualidades
do ser divino são qualidades do ser humano.
O que faz Feuerbach? Substitui o Deus da transcendência pela divindade
terrena, o homem imanente. A divindade continua a existir. Porém, não é
mais Deus, mas o próprio homem se tornou divino. Feuerbach substitui o
teísmo pelo antropoteísmo. Invertendo o papel de Deus e do homem,
Feuerbach destrona Deus e diviniza o homem.
O homem, ao projetar seu ser fora de si mesmo, através da religião, torna-se
objeto de um ser metamorfoseado em sujeito, ou seja, Deus. De sujeito a objeto,
o homem transfere para Deus aquilo que se encontra nele próprio. Praticando o
ato religioso, o homem cindiu-se de si mesmo, pondo-se diante de Deus como
um ser menos. Afirmar a existência de Deus é negar a existência do homem.
A existência de um Deus transcendente é puramente uma projeção humana.
Como o homem não consegue satisfazer suas necessidades imediatas, pela
imaginação cria um ser absoluto, Deus. Deus é apenas a projeção ou o reflexo
que o homem tem de si mesmo. É meramente uma ilusão da consciência
humana.
O homem considera Deus como um ser superior e oposto a si mesmo. Entre
Deus e o homem há um extremo. Enquanto os atributos de Deus são
absolutamente positivos, o homem encarna a pura negatividade.
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Paulo César Delboni
A religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um
ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus
é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito;
Deus é eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente;
Deus é santo, o homem é pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o
unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é o unicamente
negativo, o cerne de todas as nulidades (FEUERBACH, 2007, p. 63).
As representações e essências atribuídas a Deus não são mais do que representações
da imanência humana. Da mesma forma, aquilo que no imaginário humano paira
no céu, existe como realidade indubitável aqui na terra. Feuerbach, em estreita
concordância com sua concepção humanista e materialista, afirma que não é Deus
– ser abstrato – quem cria o homem – ser concreto –, mas é o homem quem cria
Deus. Deus é uma projeção ilusória, fruto da fantasia humana. Deus não existe
por si, como sujeito, mas sim como objeto; é somente um predicado.
Segundo Adolfo Sánchez Vásquez, a crítica de Feuerbach à religião pode ser
descrita em três níveis:
a) o sujeito é ativo e com sua atividade cria o objeto; b) o objeto é um produto
seu, mas, no entanto, o sujeito não se reconhece nele, lhe é estranho, alheio;
c) o objeto obtém um poder que por si não tem e se volta contra o sujeito,
domina-o, convertendo-o em seu predicado (VASQUEZ, 1986, p. 92).
O ateísmo humanista de Feuerbach é mais humanista que ateu. O que importa
realmente é o homem. O ateísmo, a negação de Deus, é apenas o pressuposto
do humanismo, da afirmação do homem.
3. A consciência religiosa
Feuerbach interpreta o fenômeno religioso como uma carência da consciência
do homem de si mesmo. Essa carência é a base da religião, em que o homem
como ente religioso aliena sua própria essência. Essa fase religiosa é representada
como a essência infantil da humanidade, já que este homem (infantil) adora sua
própria essência sem reconhecê-la como tal. Feuerbach salienta que entre o
humano e o divino não há uma oposição de fato, real, mas sim ilusória. A
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O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
contradição fundamental está no homem, porque não há uma essência religiosa.
A religião é uma abstração das limitações da vida humana, corporal. Não há
qualidades em si na vida divina.
O homem infantil é um ser finito e limitado. O erro do homem religioso é
criar um ser espiritual e, portanto, abstrato. O homem religioso tende a recusar
ser um homem finito e determinado. Daí cria um ser divino com qualidades
infinitas e ilimitadas. O que ele atribui a um ser divino são as qualidades de sua
própria essência, orientando-se por uma certa contemplação que o anima e o
determina de fora.
O mistério dos atributos divinos encontra-se, portanto, no mistério do próprio
homem, em sua essência infinitamente diversa e determinável. É preciso notar
que o materialismo de Feuerbach, negando a existência de Deus, faz do homem
um ser infinito, mas pleno de determinações. Destarte, a religião é concebida
como uma cisão no homem. Este paradoxo entre o ser divino e o ser do
homem determina a cisão da essência humana. Existindo a religião, a essência
do homem está fora dele mesmo. Ela é expressa ocultamente através da religião.
Na religião se encontra o conteúdo humano objetivado.
Feuerbach interpreta a essência do mundo religioso como um processo que
consiste na objetivação/abstração da essência do mundo humano real aqui e
agora. Deste modo, o segredo da religião é o procedimento segundo o qual o
homem objetiva sua essência e se faz objeto deste ser objetivado. O ente divino
se transforma em sujeito; o homem em objeto. Quanto mais humano for
Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade,
porque Deus é em si e por si o seu ser exteriorizado.
A infantilidade do homem religioso está em fundamentar sua essência humana
em um ser divino, de modo que o homem passe a depender do ser divino para
humanizar-se. Ainda nesta dimensão subjetiva, Feuerbach trabalha com as
faculdades da imaginação, da razão e da sensibilidade. Para o homem religioso,
o ser divino é algo em que ele crê, algo que está entre uma existência sensível
e uma existência pensada, ou seja, racional. No pensar de Feuerbach, há um
paradoxo quando intuímos que de certo modo Deus se constitui em um ser
divino que pode ser experimentado pelas faculdades sensitivas, faltando, porém,
todas as determinações da sensibilidade. O ser divino não pode situar-se na
existência humana empírica que os sentidos são capazes de experimentar. Deus
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faz parte de uma existência formal, exterior, independente das intenções
humanas. Essa dimensão formal é a imaginação. Fora e além dos sentidos está
a imaginação. É a fantasia que permite tal ilusão de poder a mente humana
relacionar um ser sensível a um outro não-sensível. É por isso que Feuerbach
qualifica esse homem religioso de infantil, pois ele vive ainda pela dimensão
da fantasia e da imaginação.
O horizonte antropológico de Feuerbach é a humanização do homem. Para que
o homem se humanize e supere este estado infantil é preciso que compreenda
sua própria natureza. O homem é determinado por sua essência. No entanto,
sua essência lhe tem sido imposta do exterior como essência alienada. A real
essência do homem lhe é desconhecida, pois está projetada fora de si. No fundo,
o homem se contempla fora de si, personifica-se no ser divino.
É nesse sentido que Feuerbach pensa a dimensão subjetiva como uma dimensão
não resolvida pelo homem religioso. A faculdade da imaginação atua no mundo
subjetivo criando um suposto mundo objetivo. Cria-se, dessa forma, uma
verdade da imaginação, produzindo efeitos que não são reais. O homem como
ente religioso se pensa como objeto de um objeto: perde o fundamento e sua
condição de sujeito real.
Diante deste quadro, Feuerbach conclui que a religião desumaniza o homem.
O homem desnaturaliza-se na religião. A ideia de que o homem é dependente
de um ser divino leva-o à crença de que ele só é humano pela religião. A crítica
ideológica da religião anseia uma nova consciência humana, uma vida mais
real e imanente. A crítica à religião representa, de fato, uma crítica ao poder da
ilusão e da ideologia. Todo conteúdo humano que se diz realizar-se através da
religião é aparente e ilusório.
Assim Feuerbach pode concluir:
Demonstramos que o conteúdo e o objeto da religião é totalmente humano,
demonstramos que o mistério da teologia é a antropologia, que a essência divina
é a humana. Mas a religião não tem a consciência da humanidade do seu
conteúdo. [...] a mudança necessária da historia é, portanto, esta confissão aberta,
de que a consciência de Deus nada mais é que a consciência gênero, que o
homem pode e deve se elevar acima das limitações da sua individualidade ou
personalidade, mas não acima das leis, das qualidades essenciais do seu gênero,
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O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
que o homem não pode pensar, pressentir, imaginar, sentir, crer, querer, amar e
adorar como essência absoluta, divina, a não ser a essência humana. [...] a religião
é a primeira consciência de si mesmo do homem. As religiões são sagradas
exatamente por que são as tradições da primeira consciência. Mas o que é para
a religião o primeiro, Deus, é em si, como foi demonstrado, quanto à verdade o
segundo, pois ele é somente a essência objetiva do homem, e o que é para ela o
segundo, o homem, deve, portanto, ser estabelecido e pronunciado como o
primeiro... Homo Homini Deus est – este é o supremo princípio prático –, este é o
ponto de transição da história universal (FEUERBACH, 2007, p. 267).
Conclusão
Feuerbach lançou os princípios de uma religião segundo a qual o ente divino é
o próprio homem. O homem deve abandonar sua crença em um ser
transcendente e agarrar-se em um ser divino que não é outro senão ele mesmo.
Não há outro ser absoluto e divino senão o próprio homem. “Homo homini
Deus est”. O homem é Deus porque o homem é Deus para o homem. Pari
passu, o homem é o começo, o centro e fim da religião.
Em Feuerbach, dado seu materialismo humanista, tanto a ideia de Deus como
a de Espírito são reduzidas a produtos da ignorância e fantasia da consciência
religiosa humana. No trono onde se assentava Deus transcendente que agora
é pulverizado na esfera imanente, se assentou o homem destituído de espírito
e de transcendência.
Antropologicamente, na concepção de Feuerbach, Deus não existe. Negando
Deus, afirma a existência do homem. Seu ateísmo consiste na inversão. Então,
Deus existe. O homem é Deus. É uma antropologia humanista. O homem é
Deus, Deus é o próprio homem. Por isso, diz ele, a consciência de Deus é a
consciência que o homem tem de si mesmo. O lugar de Deus passa então a
pertencer inteiramente ao homem.
Do ponto de vista da crítica religiosa, Feuerbach é importante não porque
proclamou que Deus não existe, mas porque conferiu ao homem o papel de
sujeito da reflexão filosófica. Fora de si mesmo, Deus é um produto do desejo
do homem. A representação de Deus é uma quimera da imaginação do homem,
que teme assumir sua própria condição de ser ele mesmo em si mesmo. Feuerbach
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Paulo César Delboni
crê que é mister ao homem destruir esta sua criação fantasiosa para redescobrir
sua essência posta fora de si em outrem que comumente o homem religioso
denomina Deus.
É possível ao homem recuperar sua essência perdida. Tomando consciência de
que o objeto religioso é um ente ilusório, uma mera projeção do sujeito, sendo o
ser supra-humano sua objetivação, o homem pode recobrar o que havia posto
fora de si no ser ilusório, reconquistando, assim, sua essência humana.
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Endereço eletrônico: [email protected]
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O materialismo humanista de Feuerbach - “homo homini deus est”
FEUERBACH’S HUMANIST MATERIALISM
“Homo homini deus est.”
Abstract
In this article we intend to show that Feuerbach’s atheism is more humanist than atheist.
Man is what really matters. The atheism, the refusal of God, is only the presupposition
of the humanism, of the affirmation of man. It is needed to deny God to affirm man.
Homo homini deus est. We consider Feuerbach’s humanist materialism in his main work The
essence of christianism. In it Feuerbach affirms that the theology and the religion are pure
anthropology. It is not God who creates man, but man who creates God. God does not
exist in himself or for himself, that is to say, as subject. God is an object, a human quality.
Alienated, man projects God out of himself; hypostatizes in a supreme being what he is
in essence. The awareness that man has of God is the awareness that man has of himself.
God steals from man his humanity. God is the own man’s essence, idealized, taken out of
man. In God is the own man. Feuerbach’s philosophy demands the liberation and
emancipation of man prisoner of the religion.
Key words: Feuerbach. Religion. Materialism. Atheism. Humanism.
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SARTRE E MERLEAU-PONTY:
ONTOLOGIA E POLÍTICA
Jair Miranda de Paiva*
Resumo
O artigo1 sustenta a hipótese de que, no fundo da divergência e ruptura que se tornou
célebre entre os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, encontra-se a ontologia do outro
esboçada em obras capitais dos dois pensadores, respectivamente, O ser e o nada e
Fenomenologia da percepção.
Palavras-chave: Ontologia. Intersubjetividade. Política.
1. Um pouco de história
Era uma vez dois amigos. Decidiram-se pela mesma carreira; filósofos, estudaram
na mesma escola superior. Em comum terão uma amiga, que será escritora,
pensadora, feminista e, o que é mais apaixonante, ousará ser mulher, numa época
em que a mulher mal conquistara, em poucos países, o direito ao voto.
Os dois amigos nasceram na abertura do “breve século XX”, no dizer do
historiador Eric Hobsbawm: um, Jean-Paul Sartre, em 1905, o outro, Maurice
Merleau-Ponty, em 1908. Breve, porém, denso, o século verá eclodir a
Revolução Russa, a ascensão do nazi-fascismo, a bomba atômica, duas
sangrentas Guerras Mundiais, que mostrarão o poder de destruição da
tecnologia, colocando em questão o próprio conceito de civilização.2
*
1
2
Doutorando em Educação pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).
Texto reelaborado de comunicação oral proferida no Sarau filosófico do curso de Filosofia da Faculdade
Salesiana de Vitória, ES, em 09/05/06, com a temática: “A liberdade em Jean-Paul Sartre”.
Um filme retrata essa passagem do século XIX ao XX na Europa: Shine – o despertar de um século.
Tendo como fio condutor a história de uma família judia, na Tchecoslováquia, desde o Império
Austro-Húngaro, passando pelos movimentos socialistas, Primeira e Segunda Guerra, Nazismo,
imposição do comunismo e queda do “socialismo real” no Leste, o filme é um mergulho tocante e
dramático no passado recente.
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Jair Miranda de Paiva
Durante a invasão da França, militarão juntos na resistência francesa contra o
ocupante nazista. Em plena guerra, aquele que será laureado, anos depois (1964),
com o Prêmio Nobel de Literatura (que recusará, coerente com sua filosofia da
liberdade), publica aquela que será considerada uma das maiores obras filosóficas
do século XX: O ser e o nada (1943). Dois anos após, virá a lume, desta vez de
Maurice Merleau-Ponty, o denso monumento de análise e percuciência das
relações entre “consciência e mundo”: Fenomenologia da percepção (1945). Na obra,
já observamos um diálogo com a obra recém-lançada pelo pensador e amigo.
No entanto, os ventos da história os levarão a direções, senão contrárias, ao
menos de latitudes distantes, passando por um rompimento dramático, numa
época em que intelectuais “mestres-pensadores” ainda eram chamados a opinar
sobre a realidade, pois que se discutiam ideias na praça, nas redações de jornais
e nos “cafés”.
Nossos personagens, Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), ladeados pela não menos importante Simone de Beauvoir (19081986), tratam de questões que ainda guardam sua atualidade. Desde as finas
análises fenomenológicas da subjetividade, da percepção, do corpo e da
sexualidade feitas por Merleau-Ponty, até as relações entre existencialismo,
liberdade e história levadas a cabo por Sartre, vemos em tempo real as oscilações
entre os ideais revolucionários que Sartre, como nenhum outro, encarnou para
sua época e as finas reflexões de Merleau-Ponty sobre os limites do real à luta
política e partidária.
Embora datados, tais debates guardam ressonâncias para nossa atualidade,
pois o tema que subjaz refere-se às relações, nem sempre amistosas, entre os
filósofos e a política, entendida como a arena dos negócios humanos na pólis.
Relações tensas, desde A república de Platão, que vaticinou: os problemas da
Cidade teriam solução se os filósofos se tornassem reis (isto é: governassem)
ou os reis se pusessem a filosofar.
A liberdade carrega uma carga histórica e semântica da qual não devemos
ingenuamente nos aproximar. Se pudermos aceitar com Walter Benjamin que
todo documento histórico é um documento de barbárie, concluiremos que
muito dessa barbárie foi cometida em nome da liberdade: “libertar” a Terra
Santa era a motivação dos cruzados; “libertar” o operário das necessidades foi
o motivo da era stalinista; “libertar” o Iraque do ditador Saddam Hussein
justificou a invasão e ocupação do país pelo exército norte-americano.
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
Procuraremos fazer uma breve análise da ruptura havida entre Sartre e MerleauPonty e dos motivos filosóficos explícitos e subjacentes a ela. De modo breve
e esquemático, pretendemos demonstrar que, desde a ontologia fenomenológica
levada a cabo nas obras citadas, já estão dados os nós da discórdia futura,
centrada na relação diversa que ambas veem entre filosofia e política – na
linguagem de Sartre, entre Filosofia (ou Literatura) e engajamento, na de
Merleau-Ponty, entre o Filósofo e a Cidade.3
2. A liberdade na história
O ano é 1953. Plena Guerra Fria.4 Lutas pela libertação de colônias francesas,
holandesas, portuguesas e espanholas. Tentáculos dos dois gigantes atômicos
(EUA e URSS) pelo mundo. Na União Soviética, morre Stálin, e Kruchev abre
os arquivos de seus crimes. Na Coreia, trava-se a guerra da independência, que
culminará com a divisão dos países: Coreia do Norte, comunista, apoiada pela
URSS, Coreia do Sul, apoiada pelos EUA. Em Berlim Oriental, tanques da Grande
Mãe Rússia sufocam protestos contra o comunismo local, precedente para a
invasão da Hungria, em 1956, que ensaiava um regime comunista democrático.
O Laos se torna independente da França, enquanto o Vietnã luta pela
independência. Nos EUA, “caça às bruxas”: o macarthismo espiona ou leva à
prisão políticos, pessoas comuns e até artistas por suposto apoio ao comunismo.
Do lado americano, teremos a década do “baby boom” ou explosão do sonho
americano: natalidade, consumo e crescimento em alta. Exporta-se o “american
way of life” através do cinema, da música e de produtos industrializados. Na
3
4
Na lição inaugural no Colégio de França, em 1952, Merleau-Ponty analisará essas relações a partir da
condenação de Sócrates. A aula foi publicada com o título “Elogio da Filosofia”. Lisboa: Guimarães
Editores, s.d.
Notemos que a expressão “Guerra Fria” referir-se-á às relações entre EUA x URSS de então. No
restante do mundo, teremos uma “guerra quente”, inclusive com o patrocínio direto e lucro certo
dos dois países (armas, bombas, tanques, influência). Sobre isso ver DELACAMPAGNE: “A guerra
dita ‘fria’ não será fria em todos os lugares. Matará muito nos países em desenvolvimento, por ocasião
de conflitos locais, geograficamente limitados, de resultado incerto – e que não servirão para nada.
Para nada, a não ser para manter a pressão, por um lado, e, por outro, para acabar de arruinar os
países em questão, privando-os dos meios de efetuar sua arrancada econômica. Garantia de paz e de
segurança para uma Europa cortada em dois pedaços, a guerra fria será uma verdadeira tragédia para
o resto do globo, entregue a absurdas rivalidades políticas, à miséria e à ditadura” (1997, p. 187).
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Jair Miranda de Paiva
França, efervescência cultural e social, artística e literária, com a atuação
proeminente de Camus e de Sartre (dramaturgo, romancista, diretor, editor).
O existencialismo torna-se estilo de vida: subjetividade, situação, projeto,
transcendência, liberdade são conceitos discutidos nos cafés parisienses. Sartre
tem o mérito de fazer a filosofia sair da torre de marfim e falar a língua comum,
direta, vivida, além de exprimir em inúmeros romances e peças de teatro
conceitos filosóficos antes restritos a especialistas.
Onde estarão, nesse momento, as sementes da ruptura? Na posição de Sartre
em relação aos comunistas, a princípio marcada por uma rejeição explícita até a
aceitação incondicional do Partido Comunista Francês (PCF), visto como
vanguarda do proletariado, conforme o modelo stalinista, engessado, doutrinário.
O estopim: em 28 de abril de 1953, um protesto contra a guerra da Coreia,
durante a visita do general americano Ridgway a Paris, leva à prisão o secretário
geral do PCF. Para a semana seguinte (4 de maio) é convocada uma greve geral,
que não consegue a adesão esperada. Sartre, da Itália, escreverá o artigo (primeiro
de uma série) “os comunistas e a paz”, convocando toda a esquerda à defesa
incondicional do Partido. Sartre parte da conclamação de Marx no Manifesto
Comunista a que os operários se organizem num Partido revolucionário. Como
o PCF é esse partido, sem ele, afirma, os trabalhadores existirão apenas como
massa amorfa, alienada, identificando o Partido e sua burocracia com o
proletariado. Ao contrário, Merleau-Ponty analisará os fatos como indicativos
de uma crise da ideia da revolução, com a ascensão do modelo bolchevique e stalinista,
em que se identifica o proletariado com o partido, cujos interesses sufocarão as
diferenças e oposições. Merleau-Ponty lembra que em Marx o desenvolvimento
da consciência de classe passa pela práxis revolucionária tecida através de
mediações dialéticas entre a subjetividade e as condições objetivas.
Sartre passa de um anticomunismo confesso (1943, quando escreve O ser e o
nada) à defesa incondicional do comunismo (1953) para, logo a seguir, quando a
URSS invade a Tchecoslováquia (1956), romper novamente com o PCF. Como
observa Marilena Chauí: “Nas cartas que separará os amigos, Sartre cobra de
Merleau-Ponty não se engajar verdadeiramente. Merleau-Ponty cobra de Sartre
a entrega a um engajamento às cegas, que o deixa ao sabor dos acontecimentos”
(CHAUÍ, 1994, p. 5). Ou ainda: “Sartre viveu a alegria inflamada da incoerência.
Merleau-Ponty, um pensamento coerente, capaz de modificar-se, mas não para
satisfazer as circunstâncias” (CHAUÍ, 1994, p. 11).
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
As cartas trocadas entre ambos mostram a divergência entre os dois filósofos.
E, como observa o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro, “lendo-as [...]
sentimo-nos tentados a dar razão a Merleau-Ponty” (RIBEIRO, 1994, p. 12),
pois Sartre cobra do amigo posição política, desde que seja a sua, censura-o na
revista que fundaram, recusando a publicação de artigo que discorda de suas
ideias.
Nesse contexto de tensão política, em que se cruzam acontecimentos mundiais,
locais e escolhas pessoais, é que podemos entender o texto de Merleau-Ponty
“Sartre e o ultra-bolchevismo”, marco da ruptura definitiva entre os dois
filósofos, incluído no livro “As aventuras da dialética”.
3. Sartre e o ultrabolchevismo
Na tradução para o português (2006), o ensaio Sartre e o ultrabolchevismo, de
Merleau-Ponty, não é breve (quase 200 páginas), num texto circular, carregado,
analiticamente denso, em que notamos o empenho de Merleau-Ponty em pensar
a história e seu sentido.
Para Merleau-Ponty, a filosofia marxista (entenda-se: aquela de posse do Partido
Comunista) crê exprimir o peso do social deslocando a dialética para o objeto,
respondendo à adversidade pelo terror, “exercido em nome de uma verdade
oculta, ou então pelo oportunismo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 121).
Merleau-Ponty reconhece com Trotsky, “[...] que o curso das coisas talvez viesse
a recolocar em questão a tese marxista do proletariado como classe dirigente e a
do socialismo como herdeiro do capitalismo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.
121), o que os comunistas não aceitam. Tornada ponto de honra, a dialética é
declarada mais necessária quando está em xeque, justificando que o social,
“segunda natureza”, deve ser regido também pela técnica de engenharia social,
para o qual o problema do sentido deve ser relegado para mais tarde: “O sentido
virá mais tarde, Deus sabe como” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 122). Tratase de erguer as bases do Estado comunista (russo, chinês), “que [...] provocará
por si só suas consequências [...] veremos a dialética brotar e florir, enquanto o
Estado fenecerá” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 122). No entanto, observa
Merleau-Ponty, tudo estaria bem se para isso o regime não tivesse erguido um
aparato de repressão e privilégios, mostrando uma face da história feita, e
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instalando a dialética no futuro, quando as condições materiais tiverem sido
dadas. Ora, “não acreditar mais na dialética e remetê-la ao futuro é a mesma
coisa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 122). Torna-se ideologia justificadora do
comunismo realmente praticado.
Merleau-Ponty mostra, na sequência em que analisa os ensaios de Sartre “Os
comunistas e a paz”, que este, ao defender o comunismo, o faz, segundo suas
próprias palavras, “raciocinando a partir de meus princípios e não dos deles”
(2006, p. 124). Ao mesmo tempo em que constata o fracasso da dialética,
Sartre toma a história como “resultado imediato de nossas vontades, e, quanto ao
resto, uma opacidade impenetrável” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 124, grifo
nosso). Nesse extremo subjetivismo e objetivismo um ponto é comum: o
social deixa de ter um sentido próprio, só pode ser modificado por uma criação
pura, seja em nome de um saber teórico, seja do saber do Partido, “porque,
numa história que é um caos, qualquer coisa é melhor do que aquilo que existe,
a ação do Partido não está sujeita aos critérios de sentido” (MERLEAUPONTY, 2006, p. 124). Conclui acidamente Merleau-Ponty: “A filosofia do
objeto puro e a do sujeito puro são igualmente terroristas” (2006, p. 124).
Merleau-Ponty reclama um complemento à justificação do comunismo por
Sartre. Caso contrário, fecha-se o debate, não se admite restrição ou nuance, o
comunismo se torna “[...] a única alternativa consequente de criar por completo
uma sociedade onde aqueles que não são nada se tornam homens [...]
empreendimento heróico que não tolera nenhuma espécie de condição ou
restrição” (2006, 128), caminho do cerceamento da oposição política.
Ao justificar o comunismo pela negação da dialética e da filosofia da história,
Merleau-Ponty indaga se tal concepção voluntarista se sustenta. Em síntese, as análises
de Sartre não convencem Merleau-Ponty por três motivos: 1 - A concepção do
comunismo por Sartre caracteriza-se pela negação da dialética e da filosofia da história,
instalando sua efetivação no desconhecido; 2- Se se aceita tal empreendimento,
teremos que o comunismo é apenas um empreendimento diferente, refratário à discussão
ou correção; 3- Por ser sem critérios, ou tirá-los de si mesmo, o comunismo “só
pode obter daqueles que não optam por ela uma simpatia reticente, uma presença
ausente” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 129). Tal concepção prejudica a
convivência com o diferente (o não-comunista), ao invés de colaborar com ela.
Pois, como dirá à frente, “a eliminação das minorias está em germe desde o
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
nascimento do Partido proletário” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 140). Ou
ainda: “Não se pode planejar recriar a história apenas por meio da ação pura,
sem cumplicidade externa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 185).
4. Ontologia sartreana: “o inferno são os outros”
Como foi dito, partimos da hipótese de que o fundamento da questão do
engajamento político do filósofo, que irá separar os dois pensadores, já está
presente na ontologia que cada um dos dois pensadores já havia elaborado:
Sartre, em O ser e o nada, Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção.
Onde está o nó da questão? Ora, no empreendimento sartreano de uma
“ontologia fenomenológica” (subtítulo de sua obra), um papel de destaque cabe
ao outro. Na III parte de O ser e o nada intitulada “O Para-Outro”, Sartre se verá
diante da questão de ter que justificar o outro diante de minha liberdade. “O
outro é, por princípio, aquele que me olha”, dirá Sartre (SARTRE, 2000, p. 332).
Essa experiência de ser olhado é ser “de súbito atingido em meu ser”, é ver
surgir “modificações essenciais em minhas estruturas – modificações que posso
captar e determinar conceitualmente por meio do cogito reflexivo” (SARTRE,
2000, p. 335), revelando-me, em primeiro lugar, a vergonha como experiência
fundamental como experiência subjetiva ao olhar do outro, o medo (sentimento
de estar em perigo diante do outro), o orgulho (ser-aí para-o-outro), o
reconhecimento de minha escravidão (alienação de minhas possibilidades diante
do outro) (SARTRE, 2000, p. 344). No entanto, precisa Sartre, o outro não é
objeto (SARTRE, 2000, p. 345), experimento-o “[...] concretamente como sujeito
livre e consciente [...]” (SARTRE, 2000, p. 348). E é também livre: “O outro é
esse eu-mesmo do qual nada me separa [...] exceto sua pura e total liberdade, ou
seja, esta indeterminação de si-mesmo que somente ele tem-de-ser para e por
si” (SARTRE, 2000, p. 348).
Porém, ao analisar a relação do Para-si (sujeito, eu) com o Outro Para-si (outro
eu), Sartre partirá do conflito: “Tudo que vale para mim vale para o outro.
Enquanto tento livrar-me do domínio do outro, o outro tenta livrar-se do meu;
enquanto procuro subjugar o outro, o outro procura me subjugar” (SARTRE,
2000, p. 454). Trata-se de relações moventes, não unilaterais, afirma Sartre,
concluindo: “O conflito é o sentido originário do ser-Para-outro” (SARTRE, 2000, p.
454, grifo nosso).
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Aprofundando mais essa relação, Sartre tomará distância em relação a
Heidegger, que faz, em Ser e tempo, do ser-com (Mitsein) um existencial do Dasein
(característica essencial do homem). Aprofundará a crítica que já esboçara no
início da terceira parte (SARTRE, 2000, p. 319-326).
A partir do paralelismo entre gramática e pensamento: “‘Nós’ pode ser sujeito e
[...] plural do ‘eu’” (SARTRE, 2000, p. 512), começa Sartre. “No ‘nós’ sujeito
ninguém é objeto. O nós encerra uma pluralidade de subjetividades que se
reconhecem mutuamente como tais” (SARTRE, 2000, p. 512). No entanto, é
um reconhecimento tácito, não explicitado teoricamente (“não-tético”), como
consequência de uma ação ou percepção comum. E Sartre exemplifica: na varanda
do restaurante, enquanto olho para fora e outros me olham, sou objeto para
outro e outros são objetos para mim. Se acontece um acidente, porém, ocorre o
Nós: as rivalidades e os conflitos desaparecem “[...] e as consciências que
fornecem a matéria do nós são precisamente as de todos os consumidores: nós
olhamos, nós tomamos partido” (SARTRE, 2000, p. 513).
No entanto, dirá Sartre, este “nós” não pode ser o fundamento de nossa
experiência do outro, pois “o ser-para-outro precede e fundamenta o ser-como-outro” (SARTRE, 2000, p. 514), ou seja, “o nós é uma certa experiência
particular que se produz, em casos especiais, sobre o fundamento do serpara-Outro em geral” (SARTRE, 2000, p. 514). Daí Sartre afirmar que nas
duas modalidades “Nós-objeto” e “Nós-sujeito” sou objeto: no primeiro caso
– “eles me olham” –, sou objeto para outro, alienado; no segundo – “eles nos
olham” –, estou numa comunidade de eus, também alienada.
No dizer lapidar de Borheim: “O sentido profundo da análise de Sartre é que a
relação sujeito-sujeito não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto;
no fundo, ele pensa a relação do para-si com o para-si a partir da relação do
para-si com o em-si” (BORNHEIM, 2003, p. 93).
5. Merleau-Ponty: o mundo comum
Como se coloca, na Fenomenologia da percepção, a questão do outro e da liberdade?
Antes, uma palavra acerca dessa grande obra. Escrita sob a influência de Husserl
e Heidegger, não deixa, no entanto, de dialogar com Hegel, Marx, Freud e
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
Sartre, além das ciências humanas. Tentando encontrar um caminho, à luz da
fenomenologia husserliana, entre o idealismo intelectualista e o empirismo
positivista, Merleau-Ponty tem por objetivo, a partir da percepção e do corpo,
esclarecer a relação consciência-mundo. Nesse contexto, daremos relevo ao
IV capítulo da III parte, intitulado “Outrem e o mundo humano” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 463-490). Como aparece aí a questão do outro e da liberdade?
Merleau-Ponty começa observando que vivemos num mundo cultural: estou
entrelaçado não apenas à natureza, mas também rodeado de estradas, igrejas,
fábricas, plantações, uma colher, utensílios. Cada um desses objetos traz a
marca da ação humana, cada um exala um ar de humanidade: “A civilização da
qual eu participo existe para mim com evidência nos utensílios que ela se
fornece” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 465). No caso de uma civilização
desconhecida ou pretérita, vários modos de ser podem ser descobertos nas
ruínas ou instrumentos quebrados. Ainda que ambíguo, o mundo cultural dessa
sociedade desaparecida está ali para ser conhecido. O mundo cultural não
existe na forma neutra de um “se”: viveu-se assim, serviram-se desse utensílio...
O pronome indefinido é apenas uma fórmula de dizer um Eu, primeira pessoa.
Consequentemente, “concebo por analogia a espécie de homem que ali viveu”
(MERLEAU-PONTY, 1994, p. 466). Analogia com minha experiência, com a
própria experiência cultural de viver em torno de outros homens:
No final das contas, as ações dos outros seriam sempre compreendidas pelas
minhas; o “se” ou “nós” pelo Eu. Mas a questão está justamente aqui: como a
palavra Eu pode colocar-se no plural, com se pode formar uma ideia geral do
Eu, como posso falar de um outro Eu que não o meu, como posso saber que
existem outros Eus [...] (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 466).
A questão é mais radical: como um objeto no espaço – o corpo de outrem –
pode se tornar uma existência e, inversamente, “como uma intenção, um
pensamento, um projeto podem separar-se do sujeito pessoal e tornar-se
visíveis fora dele em seu corpo, no ambiente que ele se constrói” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 467)?
Qual é a resposta do “pensamento objetivo” (científico, sobretudo a partir de
Descartes)? Para o pensamento objetivo, o outro “representa dificuldade e
escândalo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 467). Se se pensa o mundo como
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relações objetivas e funcionais, o corpo conforme a anatomia ou a fisiologia,
isto é, junção de órgãos e processos em terceira pessoa, então o corpo, meu e
do outro, nada mais é que parte do mundo objetivo; ele também é “objeto
diante da consciência que o pensa ou o constitui, os homens e eu mesmo
enquanto ser empírico somo apenas mecanismos que se movem por molas
[...]” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 467-468). Para o pensamento objetivo,
existem apenas dois modos de existir: o ser-em-si, objeto no espaço, e o serpara-si, consciência. No entanto, aí reside um paradoxo: diante de mim, a
outra consciência seria um si, mas existiria no modo de para si, exigindo, para
que eu possa pensá-la, que existisse sob duas formas: em si situado diante de
mim, para si como consciência. Conclui assim Merleau-Ponty: “Portanto, no
pensamento objetivo não há lugar para outrem e para uma pluralidade de
consciências” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 468).
No entanto, Merleau-Ponty dá um passo para além do pensamento objetivo,
do qual aprendemos a tomar distância pela fenomenologia: “Meu corpo e o
mundo não são mais objetos coordenados um ao outro por relações funcionais
do gênero daquelas que a física estabelece” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.
468). Ao contrário, o fenômeno da percepção mostra que as coisas existem
numa implicação real com meu corpo, objetos existem e estão diante de mim,
eu os percebo. A explicação fisiológica é secundária em relação à percepção.
Não se podem separar, na percepção, as sensações (imagens psíquicas) como
visões descontínuas sucessivas que dependem da “inspeção do espírito” (a
expressão é de Descartes, nas Meditações), para que o objeto exista para além
da perspectiva em que aparece. As perspectivas e a percepção mostram “nossa
inerência às coisas” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 469). Consequentemente,
pergunta Merleau-Ponty: “por que os outros corpos que percebo não seriam,
reciprocamente, habitados por consciências? Se minha consciência tem um
corpo, por que os outros corpos não ‘teriam’ consciência?” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 470).
Uma transformação é pedida: concebendo em novas bases o fenômeno da
consciência, não mais como um puro ser-para-si, “mas como uma consciência
perceptiva, como o sujeito de um comportamento, como ser no mundo da
existência, [pois é] somente assim [...] as antinomias do pensamento objetivo
desaparecem” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 470-471). Por esse itinerário, o
conhecimento de outrem é possível: “Se o corpo de outrem não é um objeto
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
para mim, nem o meu para ele, se eles são comportamentos, a posição de
outrem não me reduz à condição de objeto em seu campo [...] ou vice-versa”
(MERLEAU-PONTY, 1994, p. 472). O mesmo vale para o cogito, o pensamento,
razão. O outro não está encerrado em minha perspectiva de mundo, “porque
esta mesma perspectiva não tem limites definidos [...] ela escorrega
espontaneamente na perspectiva de outrem e porque elas são ambas recolhidas
em um só mundo do qual participamos todos enquanto sujeitos anônimos da
percepção” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 473).
Do mesmo modo, na experiência da linguagem e do diálogo Merleau-Ponty
vê uma outra afirmação da comunicação das consciências: pelo diálogo
estabelecemos um terreno comum, “meu pensamento e o seu formam um só
tecido [...] eles se inserem em uma operação comum da qual nenhum de nós é
o criador. Existe ali um ser a dois [...] nós somos, um para o outro, colaboradores
em uma reciprocidade perfeita” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 474-475).
Outro argumento utilizado por Merleau-Ponty refere-se à vida das crianças: a
percepção de outrem só é problema para os adultos, observa. A criança vive
num mundo que ela acredita evidente para si e para todos os que a cercam,
não tem consciência de si e dos outros como sujeitos privados, “ela não suspeita
que nós todos e ela mesma estejamos limitados a um certo ponto de vista
sobre o mundo [...]. Ela não tem a ciência dos pontos de vista” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 475). Os homens não são cabeças vazias dirigidas a um
mundo único, mesmo os sonhos permanecem no quarto, mesmo o pensamento
não é distinto da fala. Merleau-Ponty refere-se aqui a Piaget, para o qual a
criança atinge o cogito aos 12 anos, a consciência de si descobrindo-se como
consciência intelectual, podendo efetuar juízos objetivos. Afirma MerleauPonty: “Piaget conduz a criança até a idade da razão como se os pensamentos
do adulto se bastassem e suprimissem todas as contradições” (MERLEAUPONTY, 1994, p. 476). Mas para Merleau-Ponty as crianças devem ter razão
contra Piaget e contra os adultos, e “os pensamentos bárbaros da primeira
idade [devem permanecer] sob os pensamentos como um saber adquirido
indispensável, se é que deve haver para o adulto um mundo único e
intersubjetivo” (MERLEAU-PONTY, 1994, 476).
Mas por que essa afirmação, poderíamos nos perguntar, se a razão não é destino
maior do homem, como aprendemos desde Aristóteles, para quem o “bios
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teoretikós” (vida contemplativa, do pensamento) é a forma de vida superior?
É que para Merleau-Ponty, abaixo da consciência teórica de meus juízos
racionais, existe “a certeza primordial de tocar o próprio ser”, pois “antes de
toda tomada de posição voluntária”, eu já me encontro “situado em um mundo
intersubjetivo” (MERLEAU-PONTY, 1994, 476).
Enfim, no dizer do autor da Fenomenologia da percepção:
Com o cogito começa a luta das consciências das quais cada uma, como diz
Hegel, persegue a morte da outra. Para que a luta possa recomeçar, para que
cada consciência possa presumir as presenças alheias que ela nega, é preciso
que elas tenham um terreno comum e que se recordem de sua coexistência
pacífica no mundo da criança (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 476).
Concluindo...
Assim, a ontologia que Sartre constrói em O ser e o nada presencia a relação
sujeito-sujeito tornar-se relação sujeito-objeto, ao passo que em Merleau-Ponty,
na Fenomenologia da percepção, a relação se encaminha ou se volta, como seu
fundo originário, para uma ontologia da coexistência, de sujeito-objeto para
sujeito-sujeito, solo fundante do confronto das consciências, o “terreno
comum” da dialética que inaugurará a história da consciência na liberdade,
conforme Hegel. Desta ontologia pudemos acompanhar os desdobramentos
que dividirão os dois pensadores na política e na história.
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Sartre e Merleau-Ponty: ontologia e política
Referências
BORNHEIM, G. Sartre: metafísica e existencialismo. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
CHAUÍ, M. A era existencialista. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 14 de agosto de 1994,
p. 5.
______. O futuro de Sartre era fixo. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 14 de agosto de
1994, p. 11.
DELACAMPAGNE, C. História da filosofia no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1997.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. Elogia da filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, s.d.
RIBEIRO, R. J. Engajamento e excomunhão. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 14 de
agosto de 1994, p. 12.
SARTRE, J.P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 8. ed. Petrópolis: Vozes,
2000.
SARTRE AND MERLEAU-PONTY: ONTOLOGY AND POLITICS
Abstract
The article asserts the hypothesis that, at the core of the divergence and rupture which
became celebrated between the philosophers Sartre and Merleau-Ponty, confronts the
ontology of the other outlined in capital works of the two thinkers, respectively, The being
and the nothing and Phenomenology of perception.
Key words: Ontology. Inter subjectivity. Politics.
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A ARTE NO PENSAMENTO HEIDEGGERIANO
Uma reflexão sobre o belo
Werbson Beltrame Pereira*
Resumo
Em meio aos aspectos discursivos do pensamento contemporâneo sobre a questão
da estética, torna-se relevante a reflexão feita pelo filósofo alemão Martin Heidegger
em seu livro A origem da obra de arte. Em sua análise, este filósofo discursa a respeito
da essência da arte e suas implicações com o conceito de verdade e liberdade. Sendo
assim, face ao pensamento heideggeriano, o tema aqui proposto para discussão tem
por objetivo central esclarecer o que este pensador entende por obra de arte e sua
essência, chegando, assim, ao conceito de verdade e suas decorrências e a outro
considerável conceito em seu pensamento, a liberdade.
Palavras-chave: Essência. Estética. Arte. Verdade. Liberdade.
Introdução
Os estudos feitos por Heidegger a respeito da estética1, que resultaram na
produção de seus escritos A essência da obra de arte, inserem no diálogo
contemporâneo uma constitucional contribuição para o pensamento filosófico,
suas nuanças e assimilação conceitual.
Heidegger, em seus escritos, buscando uma reflexão sobre o que é a arte,
encontra-se diante de outras grandes questões: Qual é a origem da obra de arte?
Teria esta uma essência? É possível identificar na arte implicações com o conceito
*
1
Graduado em filosofia pela Faculdade Salesiana de Vitória e aluno do Curso de Teologia do Instituto
de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória.
Sua origem vem do grego, “aisthesis”, que significa “faculdade de sentir” ou “compreensão pelos
sentidos”, em que os sentidos referidos são: visão, audição, tato, olfato e paladar. Ainda neste objetivo,
ressaltamos que a palavra aisthesis tem a mesma origem da palavra aistheticon, que significa “o que
sensibiliza”, ou seja, que afeta os sentidos. Em um significado contemporâneo, traz em si este conceito
uma reflexão enquanto o “estudo do belo”, que inclui o estudo de obras de arte e as questões que
envolvem o gosto. É percebível, portanto, talvez não de uma maneira mais adequada, que a palavra
“estética” quer dimensionar e abranger a pessoa que é sensibilizada por algo que a afetou e que gerou
nela algum tipo de sentimento.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.91-102, jul./dez. 2009
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Werbson Beltrame Pereira
de verdade e liberdade? O que é o belo? Na tentativa de responder de forma
satisfatória seus questionamentos, Heidegger iniciou uma sistemática pesquisa,
que o conduziu às estruturas basilares do pensamento grego, anterior ao
pensamento de Sócrates e Platão, embora ele não tivesse deixado de dialogar
com estes últimos.
1. A manifestação do Ser
Nos primeiros passos de sua pesquisa, Heidegger discorre sobre as distintas
formas de produção: a física e a humana. Buscando uma exemplificação na
distinção entre tais produções, Heidegger exemplifica: uma árvore produz por
si mesma o fruto, mas não produz por si mesma uma porta, uma mesa ou uma
cadeira; para isto, é necessária a ação humana, em outras palavras, a intervenção
humana. Aquilo que não nasce por si mesmo, mas tem a intervenção do outro é
chamado pelos gregos de teknè.
Consequentemente, a physis e a teknè são dois modos possíveis de produção da
phoesis (Dichtung). A teknè é uma modalidade do saber segundo a qual este é
operado por quem entende e sabe do assunto e, por isso, produz. Será nesta
forma de produção que o não-vigente daquilo que está oculto surge para o
desencobrimento, fazendo assim aparecer o que antes não aparecia. Toda
produção que manifesta o que estava encoberto é phoesis (dinâmica de
aparecimento que manifesta a realidade desencobrindo o ente), isto é, o que
se realiza, o que aparece. Em poucas palavras, denomina-se produção física a
que é produzida por si mesma e teknè a produzida pelo ser humano.
Com o advento da modernidade e, consequentemente, da ciência e da
tecnologia, Heidegger refere a necessidade da distinção entre a produção da
ciência e a da técnica com relação à produção artística. E para tal empenho
utiliza-se dos recursos da língua alemã, distinguindo a produção em três formas:
produção científica, como propor (vorstellen); produção tecnológica, como
compor (gestellen); produção artística, como expor (ausstellen); as quais ele chamou
de modalidades criativas. Assim, segundo Heidegger, a arte expõe o real no
modo de sua liberdade, ou seja, a arte é o “por-se” em obra da verdade.
Antagonicamente tanto à preposição objetivante como à composição
exploradora que visam dominar o ente, este “por-se” que a arte produz na
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.91-102, jul./dez. 2009
A arte no pensamento heideggeriano: uma reflexão sobre o belo
modalidade de phoesis expõe o Ser, iluminando-o em sua clareira. Segundo
Heidegger, é próprio da arte a manifestação do Ser: o desencobrimento. Tal
desencobrimento não mostra o ente determinado como a produção da ciência
e da técnica moderna, mas sim a própria abertura do Ser. Para exemplificar
seu pensamente Heidegger analisa uma conhecida obra do artista Van Gogh:
“Os sapatos da camponesa:
Elijamos un conocido cuadro de Van Gogh, que pintó más de una vez tales
zapatos. Pero ¿qué tanto hay que ver en estos? Todo el mundo sabe lo que
constituye un sapato. Si no se precisamente de unos zuecos o unas alpargatas,
ahí están la suela y la pala de cuero, unidas entre si por custuras y clavos.
Según para lo que sirva, para trabajar en el campo o para bailar, son distintos
el material y la forma. Estas indicaciones perfectamente justas no hacen más
que explicar la que ya sabemos (HEIDEGGER, 1997, p. 58).
2. O re-descobrir da arte e a fundamentação no Ser
A arte possui algo além daquilo que o homem está habituado a enxergar em
seu cotidiano através da correspondência da matéria com a forma. Uma leitura
usual possibilita dizer apenas que na obra de Van Gogh encontram-se os sapatos
de uma camponesa, e nada mais. O “não perceber nada a mais” num par de
sapatos revela a limitação de tal compreensão diante de suas próprias estruturas
fundantes, das quais foram geradas as dicotomias entre sujeito e objeto.
Sendo assim, Heidegger vai afirmar que na obra de arte a verdade está em obra
e não em apenas algo simplesmente dado. A arte não nos dá a conhecer apenas
o ente enquanto tal no singular, mas nos conduz ao desencobrimento do ente
no seu todo; assim, todo ente se torna mais ente. Perceber que a obscura boca
dos sapatos da camponesa e o desgaste de seu interior podem revelar a fadiga
dos passos do trabalhador que percorre em sua lenta marcha os rasgos da terra
trabalhada ilumina o ente resguardado em suas propriedades aos simples olhares
despercebidos. O por-se em obra no modo de desencobrimento se dará diante
do ente que repousa em si mesmo.
Desta forma, o encobrimento do Ser é clareado como algo que é posto à clareira
do fogo, pois, “como um raio, o fogo conduz, supervisiona e sobrevém
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antecipadamente ao todo. Perpassa iluminando, de antemão, o todo, uma vez
que aquilo para onde o olho lança o seu olhar em sua juntura, des-envolvendoo [...]” (HEIDEGGER, 2002, p. 173). A luz assim configurada proporciona o
seu aparecer na obra. E esta forma de aparecer é o Belo em sua serenidade, e
esta beleza é o modo enquanto verdade em seu des-encobrimento que vigora.
Afirmando que a arte é o “por-se” em obra da verdade, Heidegger não tem o
objetivo de dizer que a arte apresenta corretamente um ente particular, mas
sim que o próprio Ser2 faz as coisas serem o que elas são se mostrando na
obra de arte ao mesmo tempo em que se oculta. Neste sentido, a arte
proporciona uma clarificação não deste ou daquele ente, mas da totalidade
dos entes; assim, na arte todo ente se torna mais ente. No pensamente
heideggeriano, a beleza de uma obra não está em ser agradável aos sentidos,
no prazer estético, mas, antes, em promover a vigência da verdade, na
experiência de ser uma operação ontológica.
En el estar ahí del templo acontece la verdad. Esto no significa que en él algo
esté representado o reproducido correctamente, sino que el ente en totalidad
es llevado a la desocultación y tenido en ella. Tener significa resguardar. En el
cuadro de Van Gogh acontece la verdad. Esto no significa que en él se haya
pintado correctamente algo que existe, sino que al manifestarse el ser útil de
los zapatos, alcanza el ente en totalidad, el mondo y la tierra en su juedo
recíproco, logra la desocultación (HEIDEGGER, 1997, p. 89).
O produzir artístico, caracterizado por Heidegger como “expor”, “apresentar”,
“por para fora”, constitui a exibição do que é mais apropriado ao ente que
mediante ela aparece, o mostrar em seu próprio Ser que vai de encontro a
2
O sentido do Ser, nesse momento apresentado no texto, está em ressonância com o pensamento
heideggeriano após seu deslocamento da problemática imediata de existência humana (pelos críticos
classificado de primeiro Heidegger) em sua obra “Ser e Tempo” em caminho do universo da linguagem,
diferente tanto da linguagem científica, que constitui a realidade como objeto, quanto da linguagem
técnica, que, segundo Heidegger, modifica a realidade para aproveitar-se dela. Assim como vai expressar
Marilena Chauí em sua consultoria no livro Heidegger (coleções “Os pensadores” publicação de 2005),
uma das contribuições fundamentais do pensamento heideggeriano está na afirmação de que: “O Ser
habita antes a linguagem poética e criadora, na qual se pode comemorá-lo, isto é, lembrá-lo
conjuntamente, a fim de não cair em esquecimento (p. 10). Se elevar até o Ser, jamais seria conhecêlo pela análise, explicá-lo na linguagem científica; seria, antes, habitar nele através da poesia.
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A arte no pensamento heideggeriano: uma reflexão sobre o belo
uma teoria do real ou de sua disponibilidade, cujas produções provêm de um
agente concebido como causa da ação, em que tais produções estes não
respeitam a propriedade do que é produzido, propondo e compondo
antecipadamente o que deve ser posto. Ao contrário disto, o expor da arte é
um deixar ser da verdade, um abandono ao seu acontecimento que revela o
que o ente é nele mesmo em sua totalidade.
El intento de concebir lo cósico de la obra com ayuda de los conceptos de
cosa acostumbrados fracasso. No sólo porque estos conceptos non captan lo
cósico, sino porque con la pregunta acerca de su cimiento de cosa hemos
forzando la obra a entrar en un preconcepto que nos ha obstruído el acceso
al ser obra da obra. No se puede decidir, en general, acerca de lo cósico de la
obra hasta no haber mostrado claramente el reposar en sí de la obra
(HEIDEGGER, 1997, p. 68).
O homem, por viver em uma época científico-tecnológica, na qual a realidade
é concebida através do projeto causa e efeito (sujeito e objeto), tem, de um
modo geral, a tendência de achar que o artista é o agente da obra de arte. A
investida do pensamento heideggeriano nesse momento de reflexão resumese na apresentação de um procedimento necessário que se tem que manter
iluminado visivelmente diante daqueles intentos (científicos e tecnológicos),
que transladam consigo, mais uma vez, os abusos de suas interpretações
habituais e simplistas em face dos assuntos de ressonância maior e que estão
além de seus meros métodos e formas de produção.
3. O que é a arte afinal?
Notadamente, a visão heideggeriana diante de tal constatação busca desfazer
esta compreensão habitual de que a obra tem origem no artista e em sua
atividade produtiva. Este pensador lembra que só há artista pela sua obra, e só
existe a obra porque existe o artista, ou seja, o artista é a origem da obra e a
obra é a origem do artista, em uma reciprocidade. Ele assim explica:
El artista es el origen de la obra. La obra es el origen del artista. Ninguno es
sin el outro. Sin embargo, ninguno de los dos es por sí solo el sostén del
outro, pues el artista y la obra son cada uno em sí y en su recíproca relación,
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por virtud de um tercero, que es o primordial, a saber, a arte, al cual el artista
y la obra deben su nombre. Tan necessariamente como el artista es el origen
de la obra, de modo distinto a como ésta lo es del artista, tan ciertamente es el
arte el origem, de modo aún distinto del artista y sobre todo de la obra
(HEIDEGGER, 1997, p. 37).
Mas é a arte algo? O que é a arte? Qual é a sua essência? Nós só podemos ver o
que é a arte onde ele se efetiva: nas obras de arte e nos artistas. Todavia, se um
quadro de Van Gogh é tão artístico como uma sinfonia de Chopin3 ou uma
escultura de Michelangelo, vai refletir Heidegger, a arte não se restringe nem à
obra nem ao artista, mas estende à essência da arte, sobre a qual se alicerça tanto
a obra quanto o artista.
[...] es poner en la obra la verdad. En esta proposición se oculta una ambiguedad
esencial, con arreglo a la cual la verdade es el objeto del poner. Pero, aquí,
sujeito y objeto son nombres inadecuados. Impidem precisamente pensar esta
esencia ambígua, una tarea que ya no pertence a esta consideración. El arte es
histórico y como tal es la contemplación creadora de la verdad en la obra. El
arte acontece como Poesía (HEIDEGGER, 1997, p. 177).
Quanto ao sentido da frase de Heidegger “[...] a arte é o ‘por-se’ em obra da
verdade”, o pensamento deve direcionar-se a dois possíveis aspectos de sua
construção, no sentido de que tanto a arte pode ser compreendida como o
sujeito da frase: – a arte põe em obra a verdade –, quanto ao contrário: – a
verdade se põe em obra na arte. A arte se funda na verdade, sendo a verdade o
fundamento da arte. Essas duas possibilidades de sentido da frase de Heidegger
não constituem uma ambiguidade; antes, visam indicar que a relação entre
arte e a verdade se constitui numa dinâmica circular, em que um engendra o
outro em uma reciprocidade fundamental.
Progressivamente caminhando, é possível encontrar no pensamento heideggeriano
a iluminação necessária para clarear a ingenuidade dos que pensavam a arte como
simples reprodução do existente em concordância com o ente. A arte possui algo
3
Frédéric Chopin, músico nascido em Zelazowa Wola, Mazóvia – Polônia. Chopin teve grande influência
de Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart. Este último, com uma figura física débil,
como relata seus biógrafos, se revelou como uma força artística, moral e psíquica imensuráveis.
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A arte no pensamento heideggeriano: uma reflexão sobre o belo
além de uma mera reprodução, pois ela está em circularidade com a essência geral
das coisas, pondo-se em obra da verdade dos entes, em que:
Este ente sale al estado de no ocultación de su ser. El estado de no ocultación
de los entes es lo que llamaban los griegos alethéia. Nosotros decimos “verdad”
y no pensamos mucho al decir esta palabra. Si lo que pasa en la obra es un
hacer en ella un acontecer de la verdad. En la obra de arte se ha puesto en
operación la verdad del ente (HEIDEGGER, 1997, p. 63).
Palmilhando a caminhada desenvolvida por Heidegger, torna-se emergente
em seu pensamento a sinonimidade entre arte e verdade, pois estas são as
mesmas coisas: a criação que desencobre e assim mostra o que se oculta: phoesis.
Arte e verdade constituem o acontecimento original da abertura do Ser através
do qual o ente se mostra em sua possibilidade mais plena e apropriada.
Esse acontecimento, a descoberta, não significa a apreensão de um ente
particular ou determinação de uma realidade efetiva, mas uma compreensão
do que torna possível o real aparecer em sua totalidade. A arte corresponde
ao iluminar que faz aparecer em sua abertura.
O ente que carrega o título de pre-sença se iluminou. A luz que constitui a
luminosidade da presença não é uma força ou fonte ôntica simplesmente dada
de uma clareza cintilante que, por vezes, ocorre neste ente. Antes de toda
interpretação “temporal”, determinou-se como cura o que ilumina
essencialmente esse ente, isto é, aquilo que o torna “aberto” e também “claro”
para si mesmo [...]. E é esta luminosidade que possibilita toda iluminação e
esclarecimento, toda percepção, visão e posse de alguma coisa (HEIDEGGER,
2002, p. 150).
Uma obra de arte não expressa simplesmente o que nela se nos afigura à
primeira vista, Em “Os sapatos da camponesa” de Van Gogh, por exemplo, o
artista não quer representar simplesmente um par de sapatos que existem em
verdade, como também não quer reproduzir a essência geral de um sapato de
camponês, porém em suas possibilidades a verdade está ali em operação.
É neste sentido que Heidegger afirma que a arte é uma abertura por onde a
verdade se põe em obra. Consequentemente, a verdade é o desencobrimento
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no qual a arte acontece. Essa circularidade entre arte e verdade constitui a
dinâmica mais própria da relação do homem com o mundo. Antes de haver
uma separação entre o sujeito e objeto, a arte instaura a necessidade possível,
ou a possibilidade necessária e aberta no próprio acontecimento da verdade.
O que orienta o que deve ser feito não é o artista em resolução dependente só
de sua vontade, mas o próprio elemento da arte, o seu material, a terra.4
Heidegger vai indicar que o artista, ao utilizar o material, não o gasta; ao
contrário, liberta-o para si mesmo em sua totalidade:
En verdad el escultor se sirve de la piedra, así como el albaòil la maneja a su
manera. Pero el escultor no gasta la piedra. Esto sólo sucede em cierto modo
cuando la obra fracassa. También el pintor se sirve del colorante, pero de manera
que no se gasta el color, sino haciéndolo lucir. También el poeta se sirve de la
palabra, pero no como los que hablan y escriben habitualmente, gastando las
palabras, sino de manera que la palabra se hace y queda como uma palabra [...].
El estabalecimiento de un mundo y la hechura de la tierra son dos rasgos
esenciales en el ser-obra de la obra. Pero pertencen juntos a la unidad del ser de
la obra. Buscamos esta unidad cuando reflexionamos en el estar en si de la obra
y procuramos expressar aquel oculto y único reposo del descansar en si
(HEIDEGGER, 1997, p. 79).
A obra de arte se põe na medida em que ela se repõe no elemento da terra. A
obra se repõe no que é mais próprio da pedra, da madeira, do metal, da cor,
do som, da palavra. A obra se repõe na terra, fazendo com que esta se exponha
na obra. Ao contrário de gastar o material com que a obra é feita, a arte faz
com que ele surja pela primeira vez diante do aberto da obra. Na obra de arte,
La roca llega a soportar y a reposar, y así llega a ser por primera vez roca; el
metal llega a brilhar y a centellar, los colores a lucir, el sonido a sonar, la
palabra a la dicción. Todo esto sobresale cuando la obra se retrae a lo macizo
4
O conceito de terra, aqui empregado em simbiose com o pensamento heideggeriano, está relacionado
com o “lugar que faz nascer”. Lugar este que foi chamado temporariamente pelos gregos de Phisis.
Na interpretação e ao mesmo tempo em uma visão mais profunda do pensamento de Heidegger tal
conceito alcançará, em sintonia com os gregos, uma outra dimensão, querendo assim expressar o
lugar onde o homem faz sua morada, seu modo de habitar.
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A arte no pensamento heideggeriano: uma reflexão sobre o belo
y o pesado de la piedra, en lo firme y flexible de la madera, en lo duro y
resplandeciente del bronce, en la luminosidad y la fuerza nominativa de la
palabra (HEIDEGGER, 1997, p. 76).
O brilho dos minerais da terra e suas diversas tonalidades são des-cobertos aos
atrativos do sol em seu reluzir e iluminar, apresentando em seus movimentos o
amanhecer. Apresentam-se assim em uma reciprocidade de encantamentos.
Coesivamente, na criação artística, em sua produção como exposição, não há
nem a subjetividade do homem nem a objetividade da coisa, pois na obra de
arte não há sujeito ou objeto, mas um acontecimento apropriante. Ao simples
olhar, a obra de arte é em verdade uma obra confeccionada com seus adornos,
porém ela não se resume a uma mera coisa, mas diz algo além de si, e ao mesmo
tempo surpreende, revelando algo distinto de si em sua beleza.
A arte é o “por-se” em obra da verdade, porque expõe a abertura na qual o
ente se desencobre em sua totalidade. Antes de ser uma ação de um agente, a
criação artística põe o homem e o mundo num acontecimento de reciprocidade,
no qual a realidade se mostra apropriadamente, uma vez que, no pensamento
heideggeriano, é na autêntica arte que o artista encontra-se em contemplação
da sua obra, percebendo algo indiferente, ao qual não consegue expressar um
juízo de valor, quase como uma passagem que se destrói a si mesma no criar,
revelando-se na passagem para o ser-obra da obra.
4. O lugar do artista e o clarear da verdade
Entre a reciprocidade da arte e o artista, Heidegger se questiona: qual seria
então o papel do artista? Se na obra está em obra de arte, está em produção
um acontecimento da verdade, a criação do artista deve consistir não em um
fazer, mas, antes, em um deixar a obra vir-a-ser obra. Esse é o sentido da
produção como exposição, é um deixar-se repousar no ser que mostra o ente
nele mesmo, porque no ser da obra, em sua abertura, a obra de arte se põe em
obra de um acontecer além de si mesma.
Para poder lograrlo se necessitaría arrancar la obra de todas las relaciones que
tiene con lo que no es ella misma, para dejarla descansar sola por sí y sobre sí.
Ahí se dirige ya la más própria intención del artista; la obra debe ser abandonada
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a su puro reposar en sí misma. Precisamente en el arte grande, y aquí sólo se
habla de éste, el artista queda ante la obra como algo indiferente, casi como
un conducto a la producción, que se destruye a sí mismo, una vez creada la
obra (HEIDEGGER, 1997, p. 68).
A arte compreendida como o “por-se” em obra da verdade perfaz o que
Heidegger compreende como liberdade, pois a essência da liberdade dialogada
com a essência da verdade manifesta como um iluminar, um expor do ente em
seu caráter de desencoberto. Assim, o conceito de verdade5 se ilumina como
liberdade. Assim compreendida, como deixar ser do ente, a liberdade realiza a
essência da verdade em sua dimensão de poesia sob forma de desvelamento do
ente.
O manifesto ao qual se conforma a enunciação apresentativa, enquanto lhe é
conforme, é o ente assim como se manifesta para e por um comportamento
aberto. A liberdade em face do que se revela no seio do aberto deixa que cada
ente seja o ente que é. A liberdade se revela então como o deixar-ser do ente
(HEIDEGGER, 2005, p. 161).
Heidegger denuncia a permanência e interpretação do conceito de liberdade
através da inalcançável conformidade do senso comum, de outro vértice, a
liberdade aqui pensada é o deixar o ente ser o que é e como ele é uma exposição
que o mostra em sua mais própria perfeição: “[...] o abandono ao desvelamento
do ente como tal” (HEIDEGGER, 2005, p. 162), pois essa relação entre verdade
e liberdade posta em construção na obra de arte expõe o ente desencoberto em
sua totalidade e sua unidade expressa no repousar sobre si mesmo.
Heidegger indica que a exposição real do artístico, no modo de sua liberdade,
é o que pode vir a superar a decadência do desencobrimento promovido tanto
pela preposição objetivante da ciência (a verdade como adequação do juízo à
coisa), quanto pela composição exploradora da técnica (a verdade como garantia
da disponibilidade e eficácia). A decadência dessas produções põe em ambas
o esquecimento do Ser em prol da dominação do ente.
5
Neste sentido, a verdade, no pensamento heideggeriano, não mais se encontra fora do mundo, num
lugar inacessível ao homem; ao contrário, ela pode estar diante de todos estes, no aparente mutismo
de uma obra de arte, esperando ser contemplada para que, enfim, possa se revelar.
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A arte no pensamento heideggeriano: uma reflexão sobre o belo
A tentativa preponderante elaborada por tais métodos, tanto por parte da
ciência como das técnicas modernas, não foi saudável, uma vez que estes
visaram dispor incondicionalmente da realidade, produzindo assim um real
estabelecido previamente, seja pela objetividade, seja pela disponibilidade, no
qual o homem não mais experimenta a sua modalidade mais própria de ser
exposto no acontecimento de sua presença: abertura, clareira, desencobrimento;
e assim, infelizmente, esquece o Ser.
Conclusão
Torna-se altamente concebível neste momento o fracasso das interpretações
científicas e tecnológicas em sua maneira simplista de pensar o ente como
“legítima” correspondência a algo existencial. Eis a grande dificuldade de tais
interpretações ao tentarem, sem muito êxito, transportar as estruturas das
preposições e das coisas. O que fizeram foi não muito mais que por em gênesis
um ressentimento infindável diante de suas próprias estruturas metodológicas
de pensamento, fadadas ao fracasso face ao ente que nunca se deixa capturar.
A arte no pensamento heideggeriano sempre apontará para um salto sobre a
racionalidade, perfilhando assim um caminho em direção às mais belas dimensões
humanas que são perpassadas pelos sublimes sentimentos, pois a “[...] a arte
permite brotar a verdade. A arte brota como contemplação que instaura na obra
a verdade do ente. O que significa a palavra origem é que algo brota, em um
salto que funda, da fonte da essência do ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 118).
Diante da constatação do esquecimento do Ser, o pensamento de Heidegger
recoloca a questão do Ser a fim de nos lembrar que, embora não se deva
desconhecer os méritos científicos e tecnológicos da modernidade, é preciso
afirmar que é poeticamente que o homem se relaciona, é poeticamente que ele
expõe sua arte, é poeticamente que ele desencobre a verdade, é poeticamente
que os homens manifestam sua liberdade e, enfim, é poeticamente que o homem
habita a terra.
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Werbson Beltrame Pereira
Referências
HEIDEGGER, Martin. Arte y poesia. trad. Samuel Ramos. 8 ed. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1997.
______. Heráclito: a origem do pensamento ocidental. Lógica: a doutrina heraclítica do
logos. trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
______. Ser e Tempo. trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Parte 2. 10 ed. São Paulo:
Vozes, 2002.
______. Sobre a essência da verdade. In: Heidegger. trad. Ernildo Stein. São Paulo:
Nova Cultural, 2005 (Os pensadores).
______. Vida e obra. In: Heidegger. trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005
(Os pensadores).
Endereço eletrônico: [email protected]
THE ART IN THE HEIDEGGERIAN THOUGHT
A reflection on the fine
Abstract
Among the discursive aspects of the contemporary thought concerning the issue of the
aesthetics, it becomes relevant the reflection made by the German philosopher Martin
Heidegger in his book The origin of the work of art. In his analysis, this philosopher discourses
about the essence of the art and its implications with the concept f truth and liberty. So,
before the heideggerian thought, the theme here proposed for discussion has a central
aim to inform what this thinker understands as work of art and its essence, thus, achieving
the concept of truth and its courses and the other considerable concept in his thought,
the liberty.
Key words: Essence. Aesthetics. Art. Truth. Liberty.
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O CUIDADO DE SI E A PRÁTICA
EDUCATIVA CONTEMPORÂNEA
Arlindo Rodrigues Picoli*
Resumo
Este ensaio procura reabilitar as pesquisas sobre o cuidado de si (epiméleia heautoû) de
Michel Foucault, principalmente a partir de um de seus últimos cursos no Collège de
France: em 1982, sobre A hermenêutica do sujeito. Efetuamos uma investigação
especulativa baseada no estudo e em experiências interpretativas dos textos. O centro
de nossa investigação está relacionado à evolução do cuidado de si no momento
socrático. Nossa teoria parte do princípio de que a perspectiva foucauldiana sobre o
cuidado de si contribui para renovar nosso pensamento sobre alguns problemas da
educação contemporânea, particularmente no que diz respeito à constituição das
subjetividades presentes nas relações entre os diversos atores envolvidos nos processos
educacionais.
Palavras-chave: Cuidado si. Educação. Foucault.
Introdução
Apoiado em algumas ideias de Michel Foucault, pretendo contrapor o termo
subjetividade àqueles outros que indicam a existência de um sujeito, ou eu interior,
que determina suas próprias escolhas, responsabilizando-se por elas, tendo como
base sua autonomia e liberdade essencial. Diferente do sujeito cartesiano, que
desde si afirma a existência do mundo, ou do sujeito kantiano, que se apresenta
como consciência cognitiva determinante dos juízos de si mesmo e do universo,
na subjetividade proposta por Foucault salta aos olhos não a identidade do sujeito,
mas a sua diversidade e mudança. A subjetividade não justifica o mundo, constituise a partir dele. Revela o homem não como um ser passivo frente às várias
formas de poder, mas como um ser capaz de exercê-lo, possibilitando resistências
e mudanças. Estas ideias têm sérias repercussões na atualidade, à medida que
*
Professor de Filosofia e Educação da Faculdade Salesiana de Vitória (FSV).
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.103-114, jul./dez. 2009
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Arlindo Rodrigues Picoli
destronam o eu, apresentam-no como uma construção ou produção de várias
relações, inclusive daquelas que ocorrem na aprendizagem. Assim, podemos
pensar a escola como mais uma, dentre outras possibilidades de exercício de
poder, capaz de conservar ou transformar discursos. Neste ensaio apresentarei
um resultado parcial do que procuro, ou seja, elementos capazes de contribuir
para uma renovação nos modos de ser na prática profissional. O ponto de partida
será a ética foucauldiana, entendida em função do que ele chama de ‘‘cuidado de
si’’. Propõe uma problematização sobre as relações entre poder e saber no ensino
que se traduza em diferentes formas de experimentar, fazer e criar.
1. O cuidado de si e o conheça-te a ti mesmo
Na obra A hermenêutica do sujeito, Foucault nos convida a pensar na noção do
“cuidado de si mesmo”, que para os gregos era epiméleia heautoû, e para os latinos,
cura sui.1 Ele nos lembra que desde há muito tempo, sempre que pensamos as
relações entre sujeito e verdade e também o conhecimento do sujeito por ele
mesmo, nos deparamos com uma outra máxima grega: gnôthi seautón: “conhecete a ti mesmo”. Entretanto, adverte-nos desde já que “o que estava prescrito
nesta fórmula não era o conhecimento de si, nem como fundamento da moral,
nem como princípio de uma relação com os deuses” (FOUCAULT, 2004, p. 5).
O “conhece-te a ti mesmo” era um dos três preceitos endereçados a quem tentava
consultar o oráculo de Delfos, consagrado ao Deus Apolo.2 Mas quando o
“conhece-te a ti mesmo” surge na filosofia, precisamente com Sócrates, é uma
1
2
Literalmente, cuidado de si. Em latim cura se refere a uma série de coisas distintas, mas que mantém
o sentido de “cuidar”: cuidado e diligência, mas também direção, encargo, administração, cuidados
de um doente, tratamento, trabalho, obra de espírito, obra literária, livro, causa de cuidado, inquietação,
cuidados de amor, tormentos de amor, amor, guarda, guardador, vigia (FERREIRA, s. d., p. 315)
Foucault nos apresenta a interpretação de 1901 feita por Roscher, para quem os três preceitos eram
regras bem práticas e condições que possibilitavam a arte de obter a resposta de um deus. Assim, o
medèn ágan (nada em demasia) tinha o objetivo prático de refinar e reduzir as questões; os engýe (cauções)
eram um lembrete para que os consulentes não fizessem promessas que não pudessem cumprir; e o
gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) era um exame de si mesmo, necessário no processo de identificar
o que realmente precisava perguntar, para não perguntar em demasia. Segundo Foucault, Defragas,
em 1954, diz que os três preceitos délficos são ordens destinadas à prudência, sendo o nada em
demasia direcionado às esperanças e à condução própria; as cauções, uma prevenção da generosidade
excessiva; e o conhece-te a ti mesmo, uma lembrança da condição limitada do homem mortal frente
a um deus (FOUCAULT, 2004, p. 6).
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O cuidado de si e a prática educativa contemporânea
aplicação particular de uma regra mais geral: o “cuidado de si”. Sócrates é o
encarregado pelos deuses de lembrar e incentivar os homens a se ocuparem e se
cuidarem de si mesmos. Ao fazer isto, ele abre mão de uma série de coisas
consideradas vantajosas, como fortuna e cargos de poder, e, agindo assim, pela
primeira vez desperta os cidadãos de Atenas de um profundo sono (FOUCAULT,
2004, p. 7-11).
Mas não foi só em Sócrates que o “cuidado de si” adquiriu importância
fundamental; esta incitação ressurge também na cultura helenística e na romana,
no epicurismo, no cinismo e no estoicismo, representando um acontecimento
extremamente importante na história do pensamento.
[...] o desafio que toda história do pensamento deve suscitar, está precisamente
em apreender o momento em que um fenômeno cultural, de dimensões
determinadas, pode efetivamente constituir, na história do pensamento, um
momento decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de
ser de sujeito moderno (FOUCAULT, 2004, p. 13).
Esta busca empreendida por Foucault de um princípio tão antigo como o
“cuidado de si” pode contribuir, e muito, para entender o sujeito moderno, a
história da subjetividade e suas práticas. Assim, apesar dos múltiplos sentidos
que marcaram a epiméleia heuautoû, até a ponto de justificar a libertação do
matrimônio e o consequente ascetismo cristão, três pontos característicos e
gerais a serem lembrados do “cuidado de si” são: atitude, atenção interior e
ação transformadora.
O trabalho empreendido a partir daí surge de questões relativas ao porquê de
a história da filosofia ter privilegiado o “conheça a ti mesmo” em detrimento
do “cuidado de si”.
Surpreendentemente, ocupar-se consigo mesmo produziu, nos primeiros
séculos do cristianismo, regras morais mais severas, devendo este rigor ser
atribuído não aos cristãos, mas aos estóicos, cínicos e epicuristas.
As várias reformulações do “cuidado de si” como práticas filosóficas ou
espirituais, na Antiguidade sempre tiveram um valor positivo, remetendo-nos a
uma moral afirmativa. Pode ser que este deter-se sobre si mesmo nos pareça
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hoje um tanto egoísta, seja como “uma espécie de desafio e de bravata, uma
vontade de ruptura ética, uma espécie de dandismo3 moral, afirmação-desafio
de um estádio estético e individual intransponível” (FOUCAULT, 2004, p. 16),
seja como um recuo triste e melancólico, decorrente da decepção no lidar com a
moral coletiva, e no decorrente conformismo com uma volta a si mesmo. Mas
não é disso que se trata.
De uma forma paradoxal, as regras rígidas de um ocupar-se consigo mesmo
foram adaptadas a contextos diferentes, como na visão cristã de renúncia de
si mesmo, ou modernamente na preocupação com os outros, de maneira
classista de inspiração marxista ou no nacionalismo moderno. Apesar disto
também ter contribuído para a ocultação histórica do “cuidado de si”, é nas
relações com a verdade, precisamente sob a influência cartesiana, que ocorre
uma exaltação do “conheça-te a ti mesmo” em detrimento do “cuidado de
si”. Descartes coloca no conhecimento de si, ou seja, na certeza da própria
existência, o único início inquestionável para a verdade.
Foucault faz uma distinção entre a filosofia e a espiritualidade que ajudar a pensar
a separação entre o cuidado e o conhecimento. A filosofia seria uma determinada
maneira de pensar, “uma forma de pensamento que se interroga sobre o que
permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta
determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade”
(FOUCAULT, 2004, p. 19). Já a espiritualidade não estará preocupada com o
conhecimento, mas com uma série de práticas e experiências que constituem o
sujeito, que fazem o sujeito ser.
Em primeiro lugar, na sua relação com a verdade, a espiritualidade não concebe
o homem desde já como capaz de acessar a verdade: para ter a verdade, o
3
Embora o “dandismo” inicialmente se refira a uma forma de protesto, em que a roupa é usada como
um símbolo de uma postura ideológica aristocrática em oposição aos valores burgueses, e que depois
Baudelaire dará um contorno intelectual e artístico que se sustenta em si mesmo, ou seja a arte pela
arte, “o dandismo encarna, para Foucault, a ascese da modernidade, caracterizada não só mediante a
relação heróica com o presente, mas também mediante a relação consigo mesmo. O dandismo como
‘elaboração ascética de si’ apresenta um homem moderno que se recusa definir-se através de uma
hermenêutica do desejo. Embora Foucault ressalte que para Baudelaire esta elaboração ascética aconteça
unicamente na arte, ele utiliza o dandismo como uma ponte para uma possível atualização da estética
da existência” (ORTEGA, 1999, p. 101).
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O cuidado de si e a prática educativa contemporânea
sujeito tem que se transformar. Em segundo lugar, esta modificação do sujeito,
esta conversão, assume muitas maneiras, mas, de forma geral, ela provoca um
movimento que muda o sujeito, altera sua condição, provocando uma ascensão,
que traz até ele a luz da verdade. Foucault chama esta transformação de
movimento do eros. Outra maneira transformadora do sujeito é o trabalho,
uma longa elaboração de si pela ascese. “Eros e askésis são, creio, as duas grandes
formas com que, na espiritualidade ocidental, concebemos as modalidades
segundo as quais o sujeito deve ser transformado para, finalmente, tornar-se
sujeito capaz de verdade” (FOUCAULT, 2004, p. 20).
Ao efetuar estes procedimentos, o sujeito, no seu contato com a verdade,
recebe um “efeito de retorno”, provoca em si uma transfiguração, uma
completude sentida como paz e tranquilidade.
Durante a Antiguidade as práticas espirituais e o acesso à verdade estiveram
sempre ligados. Mesmo na gnose o ato do conhecimento é repleto de práticas
espirituais secretas. Sendo assim, a epiméleia heautoû, o cuidado de si, as regras
espirituais transformadoras, sempre foram condições para se chegar à verdade,
isto com a compreensível exceção de Aristóteles, já que ele será o grande
inspirador da filosofia e da ciência moderna.
A história da verdade encontra sua modernidade no “momento cartesiano”,
quando se torna aceitável pensar que somente o conhecimento proporciona o
acesso à verdade sem a necessidade de uma transformação do sujeito. Sendo
assim, as condições para acesso à verdade não serão mais de ordem espiritual.
Serão condições intrínsecas, que surgirão do interior do conhecimento, regras
objetivas e formais, que o próprio conhecimento deverá seguir para chegar à
verdade: “condições formais, condições objetivas, regras formais do método,
estrutura do objeto a conhecer” (FOUCAULT, 2004, p. 22). Outras condições
serão extrínsecas, a loucura será um impedimento, e o acesso aos estudos e os
ajustes morais relacionados à pesquisa se tornarão fundamentais para encontrar
a verdade.
Quando a verdade entra em sua modernidade, já não lhe caberá beneficiar ou
recompensar o sujeito, e o resultado disto será um acúmulo histórico de
conhecimento, como observamos nas instituições de ensino modernas, ou
algum outro benefício psicológico ou mesmo social. “[...] a idade moderna
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das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o
sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas a verdade, tal como ela é, não
é capaz de salvar o sujeito” (FOUCAULT, 2004, p. 24).
Entretanto, Foucault esclarece que este momento moderno das relações entre
sujeito e verdade não se refere a uma data ou pessoa. O processo do abandono
do trabalho espiritual sobre si mesmo como condição para a verdade se deu
muito antes e não diz respeito à ciência. A ciência de então mantinha a ideia de
práticas espirituais transformadoras do sujeito, como podemos observar na
alquimia. Por mais contraditório que pareça, encontramos na teologia os
princípios que possibilitaram o desprendimento da filosofia do “cuidado de si”.
A teologia cristã é construída sobre uma fé de características universais e sobre
um sujeito capaz de conhecer, inspirado pelo seu modelo e criador: Deus.
Mesmo depois de Descartes não houve uma ruptura definitiva com o “cuidado
de si”, e podemos encontrar traços da necessidade de transformação do sujeito
em Espinosa, Kant, Hegel, Shelling, Shopenhauer, Nietzsche, Husserl,
Heidegger e até em Hegel. E tanto na psicanálise como no marxismo a epiméleia
heuautoû é encontrada no centro destes saberes, apesar de nenhuma das duas
ter assumido claramente as condições espirituais de acesso à verdade. Somente
com Lacan a relação entre sujeito e verdade volta a ser colocada novamente.
2. O “cuidado de si” no Primeiro Alcibíades
Uma série de práticas presentes na Grécia arcaica, e também numa série de
diferentes civilizações, muito antes de Sócrates, garantiam o acesso do sujeito
à verdade: purificação, concentração da alma, retiro em si mesmo e resistência
às dores ou tentações que viessem. O pitagorismo trabalhou muitas destas
práticas, como na purificação para o sonho, no qual encontramos práticas
preparatórias para o contato com o mundo divino, mundo da verdade, como
era entendido o sonho. Esta purificação podia ser através de músicas, perfumes
ou ainda do exame de consciência; ao lembrarmos de nossas faltas cometidas
durante o dia, delas nos livramos. Outro exemplo seriam as técnicas de
provação, como aquelas em que, após praticar uma série extenuante de
exercícios, se recusa uma refeição farta colocada à nossa frente enquanto se
medita sobre ela. Como relatado em O banquete, Sócrates dominava a anakhóresis,
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O cuidado de si e a prática educativa contemporânea
prática do retiro em si mesmo, e também da resistência. Andava descalço sobre
o gelo com mais facilidade do que seus companheiros o faziam calçados, e
podia manter-se imóvel durante todo um dia e uma noite.
Apesar de Foucault localizar no Primeiro Alcibíades o surgimento do “cuidado
de si” na filosofia, ele já impregnava havia muito tempo a cultura grega. Os
espartanos já usavam o “ocupar-se consigo mesmo” como justificativa para
não cultivarem suas próprias terras. Ocupar-se consigo mesmo era um privilégio
político, econômico e social e não dizia respeito à filosofia.
Sócrates só decide aproximar-se de Alcibíades porque percebe que este não se
contenta mais em desfrutar de sua beleza, riqueza e influência, mas quer se
tornar um político, quer “transformar o privilégio de status, a primazia estatutária
em governo dos outros” (FOUCAULT, 2004, p. 44). Sócrates diz que Alcibíades
deve aplicar seu espírito sobre si mesmo; para ser um político, ele deve saber as
qualidades que possui. Deve pensar nos seus rivais de dentro de Atenas e também
nos de fora da cidade, espartanos e persas. Tanto os rivais espartanos como os
persas tiveram uma educação melhor que a de Alcibíades, pois este ficou aos
cuidados de um escravo ignorante: um pedagogo. Conhecendo-se a si mesmo
prudentemente, ele pode, segundo Sócrates, perceber sua inferioridade não só
na educação, mas também na riqueza e na incapacidade de ter um saber, uma
tékhne que compense estas diferenças. No diálogo que trava com Sócrates,
Alcebíades percebe que não é capaz de definir o que seria o bom governo da
cidade; admite ser possível que tenha vivido em estado de ignorância. E é neste
momento que Sócrates o anima dizendo que, se ele não tivesse percebido isto
em sua juventude e fosse fazer essa descoberta somente com 50 anos ou mais,
não seria nada fácil tomar-se a si mesmo em cuidado: epimelethênai sautou. Procura,
pois, persuadi-lo de que está na idade certa para essa aprendizagem.
No Primeiro Alcibíades Foucault destaca quatro características do “cuidado de
si”. Primeiro, partindo de um privilégio, “ocupar-se consigo mesmo” é condição
para governar os outros. Segundo, o “cuidado de si mesmo” pode compensar a
insuficiência na educação pedagógica dada por seu pedagogo, e também da
educação erótica, devido ao tipo de interesse dos amantes de Alcibíades, que, ao
desfrutarem de sua beleza, não o incentivaram a cuidar de si mesmo. Em terceiro,
ele está na idade correta, pois agora não está mais na mão do pedagogo e, por
ter atingido determinada idade, seus amantes se desinteressaram por ele. Aqui o
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“cuidado de si” é “uma necessidade de jovens numa relação entre eles e seu
mestre, ou entre eles e seus amantes, ou entre eles e seu mestre e amante”
(FOUCAULT, 2004, p. 49). E, em quarto, a ignorância do objeto. Alcibíades
não sabe o objetivo e o fim da concórdia dos cidadãos como atividade política.
Por não saber o que é o bom governo, precisa “cuidar de si mesmo”.
Vemos então surgir, a partir do “cuidado de si”, duas questões; a primeira, que
diz respeito ao sujeito, é: o que é o si mesmo? E a segunda: qual é a tékne para
um bom governo? “Qual o eu de que devo ocupar-me a fim de poder, como
convém, ocupar-me com os outros a quem devo governar?” (FOUCAULT,
2004, p. 51). Resumindo as duas perguntas: o que é o si mesmo, e o que é o
cuidado necessário para governar os outros?
Podemos distinguir na arte da sapataria os instrumentos, como o cutelo, e o
sapateiro, o mesmo se dando na música, em que estabelecemos distinção entre
a cítara e seu músico. E quando, porém, agitamos a mãos? Aí temos as mãos e
aquele que se serve delas: o sujeito. O corpo não pode servir-se do corpo. O
elemento que se serve das mãos, dos olhos, da linguagem e de todo o corpo
só pode ser a alma. Servir-se este que, em grego khrêsthai/khrêsis, indica um
comportamento, uma atitude, relações com os outros e consigo mesmo, que
não é, todavia, instrumental nem substancial, mas transcendente o subjetivo.
Quando concebemos a alma enquanto sujeito, o “cuidado de si” passa a
distinguir-se em três outros tipos de atividades. Primeiramente Foucault fala
do médico: quando o médico adoece e aplica sobre si sua arte médica, podemos
dizer que ele se ocupa consigo mesmo? A resposta é não, pois ele estará se
ocupando com o corpo, e não com o si mesmo da alma. A segunda atividade
é a economia. Quando um proprietário ocupa-se de suas posses, seus bens e
sua família, ele está se ocupando consigo mesmo? Não, ele está se ocupando
com o que é dele e não com ele mesmo. Os pretendentes de Alcibíades
ocupavam-se com o próprio Alcibíades? Da mesma forma, não; eles estavam
ocupados com a beleza do corpo dele. Na verdade, quem cuida de Alcibíades
é Sócrates, pois este cuida de sua alma. Sócrates é mais que um professor, é
mais que um pedagogo, é o mestre da epiméleia heuatoû, pois:
Diferente do professor, ele não cuida de ensinar aptidões e capacidades a
quem ele guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer sobre os outros,
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O cuidado de si e a prática educativa contemporânea
etc. O mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e
que, no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a possibilidade de cuidar
do cuidado que o discípulo tem de si próprio (FOUCAULT, 2004, p. 73).
É impossível não ver na diferenciação que Sócrates faz entre si mesmo e os
professores sofistas na Apologia de Sócrates uma analogia com o discurso
educativo contemporâneo focado nas habilidades e competências. O preço
desta instrumentalização da aprendizagem é a perda do interesse pelas questões
éticas constitutivas do sujeito e que provocam efeitos em todas as áreas de
conhecimento.
Sendo assim, o que é o eu com o qual é preciso ocupar-se? A alma. O que é
ocupar-se consigo mesmo, o que é o “cuidado de si”? É conhecer a si mesmo,
gnôthi seautón. Foucault nos diz que o aparecimento desta referência no Primeiro
Alcibíades ao conheça a si mesmo é totalmente diferente de outras duas anteriores.
Enquanto na primeira surge como prudência, para que Alcibíades relacione suas
ambições com suas capacidades, para que ele perceba suas limitações e enxergue
a importância em ocupar-se consigo mesmo, na segunda surge para responder
quem é o si mesmo com que se deve ocupar. E finalmente agora ele surge de
maneira direta e decisiva para dizer que o “cuidado de si” é o conhecimento de
si mesmo. E este momento afetará toda a cultura greco-romana. A partir deste
momento surge a justificativa para o “cuidado de si”, para que todas as práticas
espirituais sejam organizadas em torno do conheça a ti mesmo.
E como devemos nos conhecer? Para chegar a esta resposta partimos do
exemplo do olho e do espelho. Quando nos vemos no olho de alguém,
semelhante a nós, nos vemos a nós mesmos. Mas este si mesmo que se vê não
é graças ao olho, e sim à visão, visão que também é encontrada no olho do
outro. Para ver-se, a alma precisa se voltar para um elemento de sua própria
natureza. E qual é a natureza da alma? O pensamento e o saber. Sendo divinos
o pensamento e o saber, a alma deve voltar-se para o divino para conhecer-se
a si mesma, e receber a sabedoria, sophrosýne. Assim, a alma conhecerá a diferença
entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, e saberá governar a cidade.
No final do diálogo, Alcibíades compromete-se a ocupar-se com a justiça,
pois ocupar-se consigo mesmo é equivalente a ocupar-se com a justiça, já que
tudo surgiu a partir da preocupação em se tornar um bom governante.
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3. Cuidado de si e produção de subjetividades
O sujeito se produz num determinado momento histórico de duas formas
bem distintas, como conservação ou como transformação das maneiras de
existir. Na medida em que aceita o que é dito sobre e para ele, sofre um
assujeitamento, muitas vezes capaz de tornar sua própria vontade equivalente ao
discurso externo. Mas quando faz uma experiência de si mesmo, possibilita
uma emancipação dos mecanismos de dominação expressos como verdade.
Ao contrário da sujeição, a subjetividade se identifica com a subjetivação,
abrindo a possibilidade de existências singulares ao ocupar-se consigo mesmo.
Na dimensão da subjetividade, não se trata apenas de conhecer-se, mas de
desencadear todo um processo de mudança capaz de criar um sentido e um
significado autorreferente para si mesmo.
Se a experiência surge num vazio resultante da tensão entre as diversas áreas do
saber, as regras de conduta e a possibilidade de subjetivação, a formação
profissional deve ser o local privilegiado para o “cuidado de si”. O nosso grande
problema é que a maioria dos profissionais de educação e, para além deles, a
maioria dos funcionários que se colocam hierarquicamente como fiscalizadores
do ensino, permanece presa à perspectiva da recognição de conteúdos,
privilegiando o conhecimento dito científico, universal e impessoal, e raramente
de si mesmo. Quase nunca encontramos nas instituições de ensino superior
uma relação de cuidado como a de Sócrates e Alcibíades, muito embora ela
permaneça como possibilidade. Entretanto, a amizade que se estabelece entre
alunos e professores é ainda hoje, como na Antiguidade, uma condição para a
produção cuidadosa de subjetividades. Uma vez que a maior parte das disciplinas
se encontra comprometida com um currículo fixado e “assujeitador” dos alunos
aos conhecimentos tidos como necessários para sua vida profissional e social, a
crítica filosófica aparece como uma possibilidade de retorno do “cuidado de si”.
Se não perdermos isto de vista, não podemos permitir que a filosofia seja
ancorada apenas na história dela tampouco estagnada no conhecimento que o
homem tem de si mesmo, mas sua função principal deve ser a de possibilitar a
alunos e professores a experiência de si mesmos.
Deixemos de lado o modelo dos profissionais autoforjados na sociedade de
controle atual, reprodutores de habilidades e capacidades, para nos
transformarmos em mestres, focalizados na potencialidade particular de nós
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O cuidado de si e a prática educativa contemporânea
mesmos e também dos outros. Mas, para possibilitar o “cuidado de si” nos
noutros, o profissional da educação precisa, antes, “ocupar-se consigo mesmo”.
É urgente reorientar a formação dos professores.
Trabalhado devidamente, o “cuidado de si” pode servir como resistência às
formas contemporâneas e paradoxais do narcisismo globalizado, já que é na
relação com os outros que nos construímos, como nos lembra o editor de A
hermenêutica do sujeito: “O sujeito, descoberto no cuidado, é totalmente o contrário
de um indivíduo isolado: é um cidadão do mundo” (FOUCAULT, 2004, p. 652).
O discurso do Primeiro Alcibíades pode ser atualizado de maneira a mostrar
o “cuidado de si” como condição para cuidar dos outros, em suas várias esferas
políticas e sociais. Isto não significa apenas jogar conforme as regras políticas
vigentes; pelo contrário, indica a necessidade de encontrar outros caminhos,
novas formas de participação.
Numa perspectiva libertadora, precisamos abandonar o conceito de um sujeito
fixo e autônomo. Precisamos questionar constantemente o porquê e o como
estamos nos tornando o que somos. Para isto proponho pensar em nossa
infância como uma metáfora para o novo, para o desconhecido, para o espanto
e para a invenção de si mesmo, tal como Platão eternizou em O banquete. Nossa
alma é, desde sempre, como uma criança recém-nascida: néos aeì gignómenos.4
Nascemos a cada instante; somos sempre as mais novas possibilidades de ser.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
4
“O Discurso que Sócrates profere sobre o amor no Banquete, ouvido de uma mulher, Diótima de
Mantinéia, alerta que ainda que dissermos que as pessoas são as mesmas desde que nascem até morrerem,
na verdade se gera uma nova pessoa (ou uma criança) a cada momento” (KOHAN, 2003, p. 35).
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.103-114, jul./dez. 2009
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Arlindo Rodrigues Picoli
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
Referências
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
ORTEGA, Francisco. Amizade e estética de existência em Foucault. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1999.
PESSOA, Fernando. A criança que fui chora na estrada. Disponível em: <http://
www.eurooscar.com/poesoutros/pessoa3.htm >. Acesso em: 06 ago. 2006.
PLATÃO. Alcibíades I e II. Lisboa: Editorial Inquérito, S.d.
KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte. Autêntica.
2003.
THE SELF-CARE AND THE CONTEMPORANEOUS EDUCATIVE PRACTICE
Abstract
This essay seeks to reinstate the researches on the self-care (epiméleia heautoû) of Michel
Foucault, mainly from one of his last courses at the Collège de France: in 1982, about The
hermeneutics of the subject. We have made a speculative investigation based on the study and
on interpretative experiences of the texts. The center of our investigation is related to
the self-care in the Socratic period. Our theory asserts that the foucauldian perspective
about the self-care contributes to renew our thought about some problems of the
contemporaneous education, particularly in what concerns the constitution of the
subjectivities present in the relations among the several actors involved in educational
processes.
Key words: Self-care. Education. Foucault.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.103-114, jul./dez. 2009
PAULO FREIRE: O PROFETA DO HUMANO
Eliesér Toretta Zen*
Pensar no amanhã é fazer profecia, mas o profeta não é um velho
de barbas longas e brancas, de olhos abertos e vivos, de cajado na
mão, pouco preocupado com suas vestes, discutindo palavras
alucinadas. Pelo contrário, o profeta é o que, fundado no que vive,
no que vê, no que percebe [...] fala, quase adivinhando, na verdade,
intuindo, do que pode ocorrer nesta ou naquela dimensão da
experiência histórico-social (Paulo Freire).
Resumo
O artigo faz uma breve memória sobre a vida, a obra e o pensamento de Paulo
Freire, relacionando-os com a educação de jovens e adultos. Tendo como base a
proposta de educação defendida por Freire, o artigo busca refletir sobre os processos
de exclusão social e de desumanização na sociedade brasileira. Por fim, postula uma
educação crítica que contribua para potencializar um processo educativo humanizador
que supere o processo de exclusão social inerente ao capitalismo.
Palavras-chave: Paulo Freire. Educação. Exclusão social. Humanização.
Introdução
Em 2007 fizemos memória dos 10 anos da morte de um dos maiores educadores
que o Brasil e o mundo conheceram: Paulo Freire. Podemos nos indagar: que
contribuições a vida, a obra e o pensamento de Freire oferecem para pensarmos
a Educação de Jovens e Adultos? Que importância tem Paulo Freire no atual
*
Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Especialista
em Filosofia Contemporânea e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo –
UFES. Professor de Filosofia, Sociologia e Metodologia de Projetos no PROEJA. Leciona a disciplina
Bases Sociofilosóficas da Educação nos cursos superiores de Licenciatura em Química e Licenciatura
em Matemática do Instituto Federal do Espírito Santo – IFES. Professor do Curso de Pós-Graduação
(Especialização Proeja) do IFES, onde leciona as disciplinas: “Fundamentos Filosóficos e Sociológicos
da Educação Profissional e Tecnológica” e “Fundamentos Filosóficos e Sociológicos da Educação
de Jovens e Adultos”.
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.115-126, jul./dez. 2009
115
Eliesér Toretta Zen
momento histórico, em que o processo de desumanização dos seres humanos
aumenta de forma assustadora e avassaladora? Nesse sentido, esse pequeno artigo
traz a memória de alguns momentos da vida de Paulo Freire. Destaco alguns
momentos e ideias da vida e obra de Paulo Freire que considero fundamentais
para fertilizar nosso ser e fazer pedagógico como professores(as) da Educação
de Jovens e Adultos comprometidos com uma educação humanizadora.
Filho de Joaquim Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire, dona de casa,
Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife.
Paulo Freire aprendeu a ler com os pais, à sombra das árvores do quintal da casa
em que nasceu. Sua alfabetização partiu de suas próprias palavras, palavras de
sua infância, palavras de sua prática como criança, de sua experiência vivida.
Pode-se afirmar que Freire teve uma infância feliz. Mas conheceu muito cedo o
significado da fome e da miséria. Tinha oito anos quando se fizeram sentir,
também no Nordeste, os reflexos da crise econômica de 1929. A crise obrigaria
a família Freire a mudar-se, dois anos depois, para Jaboatão, a 18 km de Recife,
onde parecia ser menos difícil sobreviver. Paulo tinha 13 anos quando perdeu o
pai. Teve uma infância pobre, estudou de favor o antigo secundário e o préjurídico em uma escola particular. Pouco depois se tornou professor de português
do mesmo colégio da rede particular de Recife, onde se formou bacharel de
direito em 1947. Antes de terminar a faculdade, abriu um escritório de advocacia
com mais dois amigos. Desgostoso, foi trabalhar no SESI-PE, vindo a conhecer
Anísio Teixeira e outros educadores.
O pensamento de Paulo Freire e sua teoria do conhecimento deve ser entendido
no contexto do Nordeste brasileiro, onde, no início da década de 1960, metade
de seus 30 milhões de habitantes vivia na “cultura do silêncio”, como ele dizia,
isto é, eram analfabetos. Era preciso “dar-lhes a palavra” para que “transitassem”
para a participação na construção de um Brasil que fosse dono de seu próprio
destino e superasse o colonialismo. As primeiras experiências do método
começaram na cidade de Angicos (RN) em 1963, quando 300 trabalhadores
rurais foram alfabetizados em 45 dias.
A partir dessa prática, criou o método que o tornaria conhecido no mundo,
fundado no princípio de que o processo educativo deve partir da realidade
que circunda o educando. Não basta saber ler que “Eva viu a uva”, diz ele. É
preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social,
quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.
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REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.115-126, jul./dez. 2009
Paulo Freire: o profeta do humano
Paulo Freire foi exilado pelo golpe militar de 1964, porque a Campanha Nacional
de Alfabetização no Governo de João Goulart, da qual participava, estava
conscientizando imensas massas populares que incomodavam as elites
conservadoras brasileiras. Passou 75 dias na prisão, acusado de “subversivo e
ignorante”. Depois de passar alguns dias na Bolívia, foi para o Chile, onde viveu
de 1964 a 1969 e pôde participar de importantes reformas, conduzidas pelo
governo democrata-cristão Eduardo Frei, recém-eleito com o apoio da Frente
de Ação Popular de esquerda.
Na década de 70 assessorou vários países da África, recém-libertada da
colonização europeia, auxiliando-os na implementação de seus sistemas de
educação. Sobre uma dessas experiências foi escrita uma das obras mais
importantes de Freire, que é Cartas à Guiné Bissau (1977). Paulo Freire assimilou
a cultura africana pelo contato direto com o povo e com seus intelectuais, como
Amilcar Cabral e Julius Nyerere. Voltou pela primeira vez ao Brasil em 1979 e
definitivamente em 1980 com o desejo de “reaprendê-lo”. O contato com a
situação concreta da classe trabalhadora brasileira deu um vigor novo ao seu
pensamento.
Esse breve relato de alguns fatos da vida de Paulo Freire nos ajuda a pensar na
estreita relação entre seu pensamento e sua vida. Podemos nos perguntar: qual é
a atualidade do pensamento de Freire? Qual é o legado que deixou para nós
educadores por meio de suas obras? Como o seu pensamento e sua prática nos
ajudam a pensar e construir um outro mundo possível, novas relações econômicas
e humanas, em que o centro seja o ser humano, e não o capital, uma sociedade
onde possamos reconhecer-nos como seres que são, acima de tudo, humanos,
solidários e fraternos? Como seu pensamento pedagógico nos ajuda a pensar
um processo educativo que respeite os saberes, a cultura e a identidade dos
jovens e adultos?
1. A Pedagogia humanizadora de Paulo Freire
e a Educação de Jovens e Adultos (EJA)
Penso que estamos vivendo como protagonistas e como partícipes de tempos
de extrema atualidade do pensamento de Freire, não somente porque se escreverá
ou se pesquisará mais sobre sua obra, mas porque a realidade social e cultural
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que alimentou seu pensar e sua prática está tão viva hoje quanto nas décadas em
que ele e tantos outros educadores tentaram responder teórica e pedagogicamente
às interrogações que a realidade lhes propunha. Eis a riqueza de seu pensamento:
olhar para a realidade com sensibilidade humana e pedagógica e entender a
dramaticidade das questões de seu tempo. Na obra Pedagogia do oprimido (1987,
p. 29) Freire afirma:
Mais uma vez os homens [e mulheres], desafiados pela dramaticidade da hora
atual, se propõem a si mesmos como problema... Se fazem problema a eles
mesmos... O problema de sua humanização, apesar de sempre dever haver
sido, de um ponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje,
caráter iniludível (FREIRE, 1987, p. 29).
Este me parece ser o núcleo fundamental do pensamento e da prática de Paulo
Freire enquanto educador: vincular todo ato educativo, toda teoria pedagógica,
em sintonia com o problema da humanização/desumanização dos seres
humanos. A barbárie e os processos de exclusão social que estamos vivendo
nos dias atuais nos dizem da importância e atualidade do pensamento de Freire.
Sua pedagogia se articula numa sensibilidade amorosa para com os excluídos,
para com a dramaticidade de suas existências, para com os processos
humanizadores-desumanizadores da exclusão e da opressão. O centro a partir
do qual se irradia o processo de humanização-desumanização dos seres
humanos está na sua própria inconclusão. Assim afirma Freire (1996 p. 58):
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como
processo permanente [de humanização]. Mulheres e homens se tornaram
educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. É também na
inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento
permanente de procura que se alicerça [o processo de humanização] (FREIRE,
1996, grifo nosso).
Considerando a mútua e indissociável relação entre a educação e o processo
de humanização, Paulo Freire distinguiu duas concepções opostas com relação
à prática educativa: a concepção “bancária” e a concepção “problematizadora”.
Na concepção bancária, o educador é o quem sabe, e os educandos, os que
não sabem; o educador é o que pensa, e os educandos, os pensados; o educador
é o que diz a palavra, e os educandos, os que escutam docilmente; o educador
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escolhe o conteúdo programático, e os educandos jamais são ouvidos nessa
escolha, tendo de se acomodar a ela; e, finalmente, o educador é o sujeito do
processo, enquanto os educandos são meros objetos. Na concepção bancária
o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que nada sabem. Portanto,
a educação bancária tem por finalidade manter a divisão entre os que sabem e
os que não sabem, entre oprimidos e opressores. Ela nega a dialogicidade e
contribui para o processo de desumanização do ser humano.
A educação problematizadora (humanizadora) funda-se numa relação dialógicodialética entre educador e educando, em que ambos aprendem juntos. O diálogo
é, portanto, uma exigência existencial que possibilita a comunicação e permite
ultrapassar o imediatamente vivido. É no reconhecimento mútuo entre
educador e educando, entre um saber de experiência feito e vivido, que ambos,
educador e educando, se tornam sujeitos e protagonistas de sua educação e
humanização. Conforme Gadotti (2007), podemos sintetizar a proposta de
educação de Freire em três momentos dialéticos e interdisciplinarmente
entrelaçados: a investigação temática, pela qual os sujeitos do processo educativo
(jovens e adultos) buscam, no universo vocabular do aluno e da sociedade
onde este vive, as palavras e temas centrais de sua biografia; a tematização, pela
qual esses sujeitos codificam e decodificam esses temas; ambos buscam o seu
significado social, tomando, assim, consciência do mundo vivido; e a
problematização, na qual os alunos buscam superar uma primeira visão mágica e
evoluir para uma visão crítica, partindo para a transformação do contexto
vivido.
Voltando à pergunta inicial: que contribuições a vida, a obra e o pensamento
de Paulo Freire oferecem para pensarmos a educação de jovens e adultos numa
perspectiva humanizadora, ou seja, numa perspectiva que almeje superar as
condições de exclusão postas pela sociedade capitalista? Respondo que o
pensamento de Freire nos ajuda a construir uma práxis educativa que considere
os jovens e adultos em processo de educação como protagonistas, como
sujeitos de sua história. Sujeitos que são capazes de construírem-se e fazeremse humanos. Sim, pois estamos em tempos de brutal desumanização, em que
o humano se desumaniza, em que a barbárie e a miséria aumentam, em que a
opressão e a exclusão se alastram como uma epidemia. Basta vermos (com a
mente e o coração) os brutais processos de desumanização de milhões de
seres humanos que invadem as cidades, as favelas, as ruas e o campo.
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2. A exclusão social: um desafio para
a educação de jovens e adultos
Uma das primeiras manifestações desse processo de exclusão social e de
degradação humana é o individualismo, cada vez mais difuso, que se vai
impondo como mentalidade subjacente ao comportamento das pessoas nas
relações sociais. Segundo Oliveira (1993), cresce a cada dia a ideologia
individualista1, que afirma ser o ser humano um indivíduo atomizado, marcado
por inúmeros interesses e impulsos, que precisam ser satisfeitos. Tudo o que
está além do indivíduo só tem sentido à medida que, de algum modo, vem
responder a seus desejos. Portanto, a sociabilidade legitima-se utilitariamente,
de tal sorte que a sociedade emerge como associação mecânica de indivíduos
para a consecução de seus fins individuais.2
A convivência da miséria e da pobreza aponta para o escândalo moral, que
emerge como fruto de um novo éthos social, aquele que faz do cultivo da própria
individualidade o valor supremo. No plano da economia isso significa uma
organização da produção que se dá não em função da satisfação das
necessidades humanas, mas da valorização do capital, o que, em útima análise,
implica lucro de alguns e socialmente se traduz na iníqua forma de repartição
da riqueza socialmente produzida e na disparidade das oportunidades de fruição
de todos os benefícios materiais e culturais. O individualismo cada vez mais
acentuado produz em muitos insensibilidade ao abismo que separa uma
multidão de miseráveis de uma minoria opulenta. Individualismo é “antônimo”
de humano. Apodrece na raiz e contamina na fonte a possibilidade da vida em
comum. É essa mesma ideologia individualista que culpabiliza as vítimas do
desemprego, da pobreza e da fome no Brasil e no mundo.
1
2
Sobre a análise do individualismo sugiro a leitura da obra: A era do vazio: ensaio sobre o individualismo
contemporâneo de autoria do filósofo Gilles Lipovetsky. A obra focaliza o enfraquecimento da
sociedade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da era do consumo de massa e a emergência
de um modo de socialização e de individualização inédita, numa ruptura com o que foi instituído a
partir dos séculos XVII e XVIII.
Aqui está o horizonte em que se situam as modernas teorias do contrato social. Ver C.B. MacPherson,
A teoria política do individualismo possessivo. De Hobbes a Locke, Rio de Janeiro, 1979. R. Sennet, O
declínio do homem público. As tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. H.Arendt, Condition de l’homme
moderne, Paris, 1983.
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Paulo Freire: o profeta do humano
Superar essa lógica individualista numa perspectiva da solidariedade na formação
de jovens e adultos é uma tarefa urgente que se impõe a nós educadores
comprometidos com a transformação da sociedade. Conforme Freire (1987),
encontramo-nos numa sociedade marcada pelo avanço das inovações
tecnológicas e pela abundância da produção do sistema capitalista, mas,
contraditoriamente, essa mesma sociedade com seu projeto de desenvolvimento
exclui jovens e adultos do exercício de cidadania, pois gera grandes desigualdades
sociais, preconceitos, fome, miséria, analfabetismo e desemprego. Assim, declara
que é necessário irmos além das sociedades cujas estruturas oprimem e excluem.
De um lado, reconhece a existência de opressores e oprimidos enquanto classes
sociais, e se posiciona claramente a favor da transformação das condições de
existência dos excluídos de qualquer poder econômico, social e político que
explora e oprime e, de outro, enfatiza a importância do desenvolvimento cultural
e humano dos excluídos na luta por uma sociedade mais igualitária. Nessa direção,
confirmamos que a questão central é a educação. Esta, mesmo possuindo limites,
pode contribuir para a transformação da sociedade e da existência humana dos
dominados e excluídos. A educação, então, é vista como uma atividade política,
dialógica e de respeito ao próximo, no esforço de libertação e de enriquecimento
cultural e humano.
Segundo dados do relatório do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) de 2006, dois bilhões de pessoas no planeta vivem
abaixo da linha da pobreza em situação de absoluta miséria e mais de 1 bilhão
sobrevive sem água potável. Como afirma Abramovay (2002) a situação de
vulnerabilidade social3 se apresenta como uma característica distintiva da realidade
social no final dos anos 90 na América Latina. Os dados do CEPAL no final
dos anos 90, afirmavam que a pobreza na América Latina afetava 35% dos
domicílios, enquanto a indigência ou a pobreza extrema alcançava a 14% (CEPAL,
2000). Nesse contexto, preocupa o fato de que os jovens e adultos compõem
um grupo particular de indivíduos vulneráveis à situação de pobreza na região.
3
Os primeiros trabalhos fundamentados na perspectiva da vulnerabilidade social foram motivados
pela preocupação de abordar de forma mais integral e completa não somente o fenômeno da pobreza,
mas também as diversas modalidades de desigualdade social. O conceito de vulnerabilidade social
precisa ser discutido em termos da referência aos processos de desigualdade e de exclusão próprios
da lógica capitalista, e não como formas de discriminação que culpabilizam as “vítimas”.
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Para Santos (2000), os países subdesenvolvidos, principalmente o Brasil,
conheceram pelo menos três formas de pobreza e, paralelamente, três formas
de dívida social no último meio século. A primeira seria a pobreza acidental, às
vezes residual ou sazonal, produzida em certos momentos do ano; em segundo
lugar, a pobreza marginal, produzida pelo processo econômico da divisão do
trabalho, internacional ou interna; e, por último, a pobreza estrutural, que de um
ponto de vista moral e político equivale a uma dívida social. De acordo com
Santos (2000):
... a pobreza estrutural torna-se globalizada, presente em toda parte no mundo.
Há uma disseminação planetária e uma produção globalizada da pobreza. Essa
produção maciça da pobreza aparece como um fenômeno banal. Uma das
grandes diferenças do ponto de vista ético é que a pobreza de agora surge,
impõe-se e explica-se como algo natural e inevitável. Mas é uma pobreza
produzida politicamente pelas empresas e instituições globais. Estas, de um
lado, pagam para criar soluções localizadas, parcializadas, segmentadas, como
é o caso do Banco Mundial, que, em diferentes partes do mundo, financia
programas de atenção aos pobres, querendo passar a impressão de se interessar
pelos desvalidos, quando, estruturalmente, é o grande produtor da pobreza.
De acordo com a PNAD/2006, o número de pessoas em condições de extrema
pobreza (com renda domiciliar per capita inferior a um quarto de salário mínimo)
é hoje de 21,7 milhões em todo o Brasil. A taxa de desemprego é de 8,4% da
população economicamente ativa, e o grau de informalidade é de 55,1% do
total de trabalhadores ocupados em 2006. Segundo Coelho (2008), as
desigualdades educacionais constituem ao lado da pobreza uma das formas de
exclusão social no Brasil. O ensino fundamental (nove anos de escolaridade),
etapa caracterizada pelo direito de todos à educação, garantido pela Constituição
Federal, ainda não é alcançado por cerca de 65,9 milhões de brasileiros de 15
anos ou mais. Apenas 26,8 milhões haviam concluído a educação básica (11
anos ou mais de estudo), cerca de 19,6% do total da população do País. Da
população economicamente ativa, 10 milhões de brasileiros maiores de 14 anos
e integrados à atividade produtiva são identificados como analfabetos ou
subescolarizados.
Considerando esse contexto de exclusão em que vive grande parte da população
brasileira, em especial jovens e adultos, concordamos com Freire (1996) que a
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Paulo Freire: o profeta do humano
finalidade da educação deve ser a libertação: a educação deve visar à libertação
da opressão e da injustiça, contribuindo para a transformação da realidade que
hoje experimentamos para uma mais humana, a fim de que os indivíduos sejam
reconhecidos como sujeitos da história, e não como objetos. A educação deve
possibilitar a leitura crítica do mundo, o que implica a denúncia da realidade
opressiva e da alienação desumanizadora, cooperando para o anúncio da
dignidade do homem e de uma realidade mais justa e democrática. Assim, a
educação, no caso específico, a educação de jovens e adultos no Instituto Federal
do Espírito Santo (IFES), deve possibilitar que as pessoas (jovens e adultos) se
indignem com os problemas da miséria, da fome, da saúde e do desemprego,
apreendendo essa realidade criticamente para transformá-la, e não simplesmente
para preparar, como querem os neoliberais, os jovens e adultos para se curvarem
à lógica do capital, buscando um emprego no mercado de trabalho. Nesses
termos, o avanço do capitalismo demanda cada vez mais que a educação contribua
para que os jovens e adultos compreendam criticamente o mundo; requer ainda
que essa educação concorra para a formação de pessoas (consciências) não
adaptadas a um mundo (à hegemonia do ideário neoliberal) que impede os
indivíduos de se humanizarem, conscientes do seu “eu”, a fim de se tornarem
seres de transformação e, portanto, protagonistas da história. A educação deve
ser radical, no sentido defendido por Marx, quer dizer, ir à raiz das coisas. Isso
significa que não devemos escamotear a realidade ou simplesmente dizer que
está sendo assim porque vivemos sob uma ética do mercado, que desumaniza as
pessoas e as forçam a oprimir e explorar. Ao contrário, ir à raiz das coisas é
desvelar, com uma postura teórica, técnica, política e ética, os nexos dos
problemas do sistema socioeconômico capitalista e lutar para sua superação.
Considerações finais
No desenvolvimento do artigo buscou-se explicitar alguns dados que revelam a
perversidade da exclusão social provocada e agravada pelo desenvolvimento do
capitalismo no Brasil. De acordo com Coelho (2008, p. 86), o que ocorre no
Brasil é uma síntese de mediações do tecido estrutural de subdesenvolvimento e
da associação subordinada aos centros hegemônicos do capital, em que a própria
atividade educativa e o desenvolvimento da tecnologia servem aos interesses do
capital nacional e transnacional, e não à melhoria da qualidade de vida da
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população. Se, por um lado, a humanidade alcançou um nível de desenvolvimento
científico e tecnológico nunca visto antes, por outro, a ciência não está a serviço
da humanização do ser humano, e sim a serviço do capital. As relações entre
trabalho, educação e emprego são partes das contradições sociais, cujo centro é
o trabalho produtor de mercadorias e cuja força motriz é a exigência da produção
de valor excedente, nas novas condições sociais do capitalismo, sob o comando
financeiro e organizacional da ciência e da tecnologia (CASTRO, 2004, p. 85).
Atacam-se, funcionalmente, manifestações da pobreza, enquanto estruturalmente
se cria a pobreza ao âmbito mundial.4 E isso ocorre com a colaboração passiva
ou ativa dos governos nacionais e dos organismos internacionais. Do ponto de
vista ético, não devemos e não podemos aceitar sem questionar esse processo
de naturalização das desigualdades e da degradação das condições mínimas de
existência dos seres humanos. O fato de tanto a pobreza quanto o desemprego
serem considerados por muitos (os ideólogos neoliberais) como “naturais”,
inerentes ao processo econômico e produtivo, é uma falácia que precisa ser
desmitificada. A economia em seu sentido etimológico (do grego, oikos nomos)
quer dizer “normas da casa”. As normas são modificadas sempre que a casa
não consegue mais abrigar todos os seus habitantes. Nesse sentido, Bertolt Brecht
em seu poema nos ajuda a pensar um outro mundo possível: “Nós vos pedimos
com insistência: nunca digam: isso é natural! Diante dos acontecimentos de
cada dia. Numa época em que reina a confusão. Em que corre sangue. Em que
o arbitrário tem força de lei. Em que a humanidade se desumaniza. Não digam
nunca: isso é natural! A fim de que nada passe por ser imutável!”
Enquanto educadores comprometidos com a humanização dos seres humanos,
não devemos aceitar o discurso cínico de que o capitalismo é o fim da história,
tampouco a falácia do neoliberalismo de que a pobreza, o desemprego e a exclusão
4
Nesse sentido vale a pena conferir o discurso de Fidel Castro na conferência da FAO, onde atacou as
verdadeiras raízes do problema. Seguem aqui alguns trechos de seu discurso: “[...] são o capitalismo,
o neoliberalismo, as leis de um mercado selvagem, a dívida externa, o subdesenvolvimento e o
intercâmbio desigual que matam tantas pessoas no mundo. [...]. Por que continuam sendo produzidas
armas sofisticadas depois do fim da Guerra Fria? Por que somar a isso políticas criminosas, bloqueios
absurdos que incluem alimentos e medicamentos para matar povos inteiros de fome e de doenças?
Por que são gastos US$ 700 bilhões por ano em despesas militares e não é investida uma parte desse
montante para combater a fome? Os sinos que soam por aqueles que morrem hoje, amanhã soarão
pela humanidade inteira que não quis, não soube e não conseguiu ser sábia para se salvar” (Cf. Folha
de São Paulo, 17/11/96, p. 1-8).
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Paulo Freire: o profeta do humano
no mundo é uma fatalidade. Decretar a morte do horizonte histórico e utópico
equivale a afirmar a morte da esperança como dimensão inerente ao ser humano.
Nesse sentido, a vida, o pensamento e a práxis educativa de Paulo Freire nos
motivam a repensar o nosso fazer pedagógico, procurando potencializar a
dimensão utópica de todo ato educativo humanizador. Utopia não no sentido
do “nunca será”, de algo irrealizável. Para Freire a utopia não é idealismo; é a
dialetização dos atos de denunciar e anunciar (profeticamente); é o ato de
denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar novas relações entre os seres
humanos, tendo por base a dignidade humana. Por esta razão, utopia é também
compromisso histórico com a humanização dos seres humanos.
Como afirmava Freire, temos o dever ético de lutar por uma educação
democrática e dialógica, que respeite a linguagem, a cultura e a história de vida
dos educandos, na qual professores e estudantes, conjuntamente, ressignifiquem
a realidade histórica que os cerca, discutindo-a criticamente, sem jamais
desvincular os conteúdos da vida cotidiana. Nessa perspectiva, a educação, mesmo
possuindo limites, pode contribuir para a formação de cidadãos críticos, na
medida em que denuncia e anuncia os processos de opressão e exclusão,
despertando os jovens e adultos para a necessária transformação social.
Enquanto vivermos em “tempos de cólera”, de exclusão, miséria, desemprego,
analfabetismo, violência, preconceitos e negação da humanidade do ser humano,
enquanto houver um mínimo de sensibilidade humana e de esperança dentro
de nossos corações, Paulo Freire continuará incomodando a teoria e a prática
educativa formal e a informal com seu legado humanizador e sua fé nos homens
e mulheres como sujeitos da história e construtores de um mundo humano e
fraterno.
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Eliesér Toretta Zen
Referências
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e da precaridade na sociedade colocada ao serviço da economia. Perspectiva, v. 22, n.1, p.
79-92, jan./jun. 2004.
COELHO, Maria Inês de Matos. Identidades e formação nos percursos de vida de jovens
e adultos trabalhadores: desafios ao Proeja. In: Revista Brasileira da Educação Profissional e
Tecnológica. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica.
Brasília: MEC, SETEC, v. 1, n. 1, jun. 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a paixão de ensinar. São Paulo:
Publisher Brasil, 2007.
______. Convite à leitura de Paulo Freire. 2. ed. São Paulo: Scipione, 1991.
MIRIAM, Abramovay. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios
para políticas públicas. Brasília: UNESCO, BID, 2002.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Desafios éticos da globalização. São Paulo: Paulinas, 2001.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
Endereço eletrônico: [email protected][email protected]
PAULO FREIRE: THE PROPHET OF THE HUMAN
Abstract
The article makes a brief memory about Paulo Freire’s life, work and thought, relating
them with the education of youth and adults. Having as basis the proposal of education
defended by Freire, the article seeks to reflect on the processes of social exclusion and of
dehumanization in the Brazilian society. Eventually it postulates a critical education that
can contribute to potentialize a humanizer educative process which can overcome the
process of social exclusion inherent to the capitalism.
Key words: Paulo Freire. Education. Social exclusion. Humanization.
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REVISTAS EM PERMUTAS NACIONAIS
Título – Local – Periodicidade
1.
Analytica: Revista de Filosofia da UFRJ – Semestral
2.
Atualidade Teológica: Revista do Departamento de Teologia da PUCRio – Bimestral
3.
Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista –
Semestral
4.
Revista de Catequese: UNISAL – Trimestral
5.
Cognitio: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
6.
Coletânea: Revista de Filosofia e Teologia Faculd. de S. Bento – RJ. –
Semestral
7.
Direito: Revista da Faculdade de Direito de Cachoeiro do ItapemerimES – Semestral
8.
Espaços: Revista de Teologia do Instituto S. Paulo de Estudo Superior –
Semestral
9.
Estudos Teológicos: Inst. Ecumênico em Teologia Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil – Semestral
10. Horizonte Teológico: Inst. Santo Tomás de Aquino – ISTA – Semestral
11. Hypnos: Revista de Filosofia da PUCSP – Semestral
12. Kriterion: Revista de Filosofia da UFMG – Semestral
13. Razão e fé: Revista Inter e Transdisciplinar de Teologia. Filosofia e
Bioética – Semestral
14. Rhema: Revista de Filosofia e Teologia do ITASA – MG – Quadrimestral
15. Religião & Cultura: Revista do Departamento de Teologia e Ciências
da Religião da PUCSP -Semestral
16. Repensar: Revista de Filosofia e Teologia do Inst. Paulo VI – RJ –
Semestral
17. Revista de Ciências da Educação: UNISAL – Semestral
18. Revista Dominicana de Teologia: EDT – Semestral
19. Revista Filosofia da PUCPR – Semestral
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.127-130, jul./dez. 2009
127
Revistas em Permutas
20. Revista Litterarius: FAPAS RS – Semestral
21. Sapientía Crucís: Revista Filosófico-Teológica – Anápolis – GO –
Anualmente
22. Scientia: Revista Interdisciplinar do Centro Univ. Vila Velha ES –
Semestral
23. Theós: Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de
Campinas – Semestral
24. TQ: Teologia em Questãoda Faculdade Dehoniana SP – Semestral
25. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da UNESP – Semestral
26. Veritas: Revista de Filosofia da PUCRS – Trimestral
27. Via Teológica: Faculdade Teológica Batista do Paraná – Semestral
REVISTA EM PERMUTA INTERNACIONAL
Título – Local – Periodicidade
1.
Stromata: Revista Filosofia y Teologia Universidad Del Salvador –
Argentina – Semestral
REVISTAS NACIONAIS – ASSINATURA
Título – Periodicidade
1.
Caros Amigos – Mensal
2.
Concilium – Bimestral
3.
Estudos Bíblicos – Trimestral
4.
Família Cristã – Mensal
5.
Grande Sinal – Bimestral
6.
Mundo e missão – Mensal
7.
Perspectiva Teológica – Quadrimestral
8.
REB – Revista Eclesiástica Brasileira – Trimestral
9.
Revista de Liturgia – Bimestral
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Revistas em Permutas
10. Revista de Cultura Teológica – Trimestral
11. Revista Vitória – Bimestral
12. RIBLA – Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana – Trimestral
13. SEDOC – Bimestral
14. Tempo e presença – Bimestral
15. Revista de Koinoina – Bimestral
16. Síntese – Quadrimestral
CADERNOS
Título – Periodicidade
1.
Cadernos Adenauer – Bimestral
REVISTAS INTERNACIONAIS – ASSINATURAS
Título – Local – Periodicidade
1.
Bíblica: Editrice Pontifício Instituto Bíblico – Roma – Bimestral
2.
Christus: Revista de Teología y Ciências Humanas – México – Bimestral
3.
Diakonia: Internationale Zeitschrift für die Práxis der Kirche – Bimestral
4.
Diakonia: Província Centroamericana de la Companía de Jesús Centro
Ignaciano de Centroamérica – El Salvador – Trimestral
5.
Família et Vita: Pontificium Consilium pro Família Stato Città Del
Vaticano – Quadrimestral
6.
Il Regno: Bologna – Quinzenal
7.
Journal for the Study of the Old Testament – Trimestral
8.
Journal for the Study of The New Testament – Trimestral
9.
Medellín: Teologia y pastoral para américa latina – Colombia – Trimestral
10. Misiones extranjeras – Madrid – Bimestral
11. Moralia: Revista de ciências Morales Instituto Superior de Ciências
Morales – Madrid – Trimestral
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129
Revistas em Permutas
12. Recherches de Science Religiuse – França – Trimestral
13. Revista de Espiritualidad – Madrid – Trimestral
14. Revista Mensaje – Santiago – Trimestral
15. Revue Biblique – L’école Biblique et Archéologique Française –
França – Trimestral
16. Revue d’Histoire Ecclésiatique – França – Trimestral
17. Reseña Bíblica – Asociación Bíblica Española – Trimestral
18. Spiritus: Revue d’ expériences et recherches missionnaires – França –
Trimestral
130
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NOTA AOS COLABORADORES
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direito a três exemplares da revista.
1.
A Revista REDES publica artigos e resenhas, assim como reedita trabalhos clássicos e documentos históricos relacionados à temática da revista.
Os artigos e resenhas devem ser inéditos e não podem ser simultaneamente submetidos a outro periódico.
2.
Podem ser submetidos trabalhos redigidos em Português ou Espanhol.
3.
Os originais devem ser enviados ao Diretor da revista em três vias impressas, das quais uma com identificação de autor e duas sem identificação, e
uma cópia em arquivo eletrônico com identificação de autor(es) e título do
trabalho. Os originais devem ser acompanhados de cartas submetendo o
trabalho para publicação, e de uma folha à parte, em caráter de obrigatoriedade, contendo informações completas sobre o(s) autor(es): nome, vínculo institucional, endereço para correspondência, telefone, fax e correio
eletrônico. De tais informações somente o endereço eletrônico será divulgado na publicação.
4.
Os trabalhos devem ser digitados em espaço um e meio, com margens de
3 cm na margem superior e esquerda e 2 cm na margem inferior e direita,
e apresentados em papel tamanho A4, impresso em um único lado e com
páginas numeradas. Os artigos não devem ultrapassar 40 páginas (cerca
de 10.000 palavras) e as resenhas não devem exceder 10 páginas (2.500
palavras).
REDES - Revista Capixaba de Filosofia e Teologia, Vitória, a.7, n.13, p.131-132, jul./dez. 2009
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Nota aos Colaboradores
5.
Preferentemente o texto deve ser editado no formato Word, obedecendo às
seguintes recomendações:
– Utilização da fonte Times New Romam, corpo 12 para o título, corpo 11
para o texto corrido e corpo 10 para as citações bibliográficas destacadas e notas de rodapé;
– Deve ter alinhamento justificado e os parágrafos formatados com recuo
especial na primeira linha, valendo também para as notas de rodapé;
6.
Os artigos submetidos ao Conselho Editorial devem conter resumo em
português e abstract em inglês, com no máximo 150 palavras cada; até 5
palavras-chave, também em português e em inglês.
7.
Citações devem ser abreviadas no corpo do texto (sobrenome do autor,
ano da publicação e, quando for o caso, página) e completas as referencias
ao final do texto, segundo as NBR 6022:2003 e NBR 6023:2002 da ABNT
– Associação Brasileira de Normas Técnicas. As notas de rodapé devem
restringir-se a notas explicativas.
8.
Os trabalhos devem ser remetidos para:
– Secretaria do Instituto de Filosofia e
Teologia da Arquidiocese de Vitória (IFTAV).
Rua Cosme Rolim, 5 - Cidade Alta, Vitória ES - 29015-050.
Telefone e fax do Iftav: [27] 3223-1829 / [27] 3322-6795.
– Caixa Postal 010-224. Vitória ES. 29001-970
– Endereço eletrônico: [email protected]
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