OPINIÃO | EXTRA Opinião Ricardo Mendes Música e EDUCAÇÃO Parte II No mês passado, falei sobre a crise cultural e educacional em nosso estado. Como disse, os culpados são absolutamente todos os envolvidos com a produção cultural. Eu incluído... Vamos dissecar agora a culpa de cada uma das partes, sem rancores ou partidarismos... V ou pedir praticamente o impossível: ao invés de se defender, ficar chateada ou ofendida, cada parte deveria analisar a sua parcela de culpa e ver se realmente está dando a sua contribuição para o desenvolvimento da cultura ou se apenas vê a cultura como mais um mercado a ser explorado. O que tento fazer não é acusação e sim uma proposição à reflexão. Conforme foi citado no artigo anterior, os culpados são, sem ordem de importância e em ordem alfabética: os comerciantes de música, os contratantes, o estado, a imprensa escrita, os músicos, o público, as rádios e a televisão. Se não esqueci ninguém, absolutamente todo mundo envolvido de alguma maneira com a música, incluindo eu. Hoje é a vez dos comerciantes de música e dos contratantes. 42 www.backstage.com.br COMERCIANTES DE MÚSICA Quem são eles? São todas as pessoas que revendem a produção cultural e inclusive os meios para a produção também. Em um português menos formal, são os distribuidores, lojistas atacadistas e varejistas e estes não são diferentes de qualquer outra empresa. O seu objetivo principal é o lucro. Porém, acredito que em qualquer sistema capitalista desenvolvido, e não selvagem, existe um equilíbrio entre o lucro e o serviço bem prestado. E esse serviço não é só ao cliente, mas à sociedade também. As margens de lucro em culturas menos desenvolvidas costumam ser maiores do que em culturas mais desenvolvidas. Ou seja, um lojista de uma cultura mais desenvolvida se contenta com uma margem de lucro de talvez 20%, ou algo do tipo. Já em uma cultura menos desenvolvida, alguns lojistas vêem o cliente como um otário a ser escalpelado e não admitem margens de lucro abaixo de 100%. Vamos analisar alguns casos. Uma banda grava um CD, item que está cada vez mais difícil de vender devido à circulação de downloads gratuitos na Internet. Mas, mesmo assim, ela grava e tenta distribuir nas lojas de CDs, que estão praticamente em extinção (a maior cadeia de lojas de CDs do estado se transformou em loja de instrumentos musicais). Primeiramente já é uma enorme dificuldade de conseguir que o lojista se interesse, pois a banda que ainda não é famosa não vai vender tantos álbuns (ou DVDs) quanto a EXTRA |OPINIÃO Ivete Sangalo. Então, para que se dar ao trabalho de colocar o CD na prateleira, no estoque, fazer controle, etc? Este também é mais um ponto cultural, ou até educacional. Não existe o conceito de se trabalhar para prestar o serviço para o cliente se a remuneração não for imediata, e muito menos ainda de se trabalhar para oferecer uma gama variada de títulos, mesmo que vários deles vendam pouco. O lojista deveria ter uma obrigação ética e social de não ter somente títulos “best-seller” em seu acervo, mas também de ajudar a fazer circular a diversidade cultural. O lojista pode argumentar: mas os CDs dessas bandas não vendem e não dão lucro... Esse é o ponto crucial. Não existe o pensamento em se trabalhar em prol da cultura. Quando um lojista bota títulos menos procurados, ele realmente não está trabalhando para ganhar dinheiro e sim para colaborar com o fortalecimento da cultura. Isso deveria ser o papel real do que juridicamente chamam de “razão social” de uma empresa. Se uma empresa lucra vendendo títulos culturais de artistas famosos, é justo que ela retribua à sociedade dando a oportunidade de artistas menos famosos veicularem o seu trabalho, e eventualmente, de até venderem alguma coisa. E isso não representaria menos lucro para estas empresas, apenas um pouco mais de trabalho. Trabalho para fortalecer a diversidade cultural de um país, estado, cidade... Quando uma banda independente vai a uma loja de CDs é normal o lojis- ta não se interessar muito e, quando se interessa, coloca uma margem de lucro de 100% em cima do CD da banda. Isso torna o CD de uma banda desconhecida relativamente caro. Uma maneira bem comum de se fazer isso é a loja “ajudar” o artista prensando o CD dele. A loja manda fazer 1.000 CDs, dá 500 para o artista e fica com os outros 500 que vende sem prestar contas. A matemática é simples e perversa: o artista gasta em média R$ 10 mil reais para gravar o disco. O lojista gasta em média R$ 3 mil reias para prensar o disco. O artista faz a divulgação do disco, o que inclui dar muitas cópias, às vezes chegando à totalidade das 500 que ele dispunha e a loja vende as outras quinhentas. Ou seja, o artista paga a gravação e a www.backstage.com.br 43 OPINIÃO | EXTRA divulgação porque a receita que ele deveria ter com a venda dos seus quinhentos discos é transformada em despesa de divulgação por meio da doação dos mesmos. A loja vende os seus 500 por aproximadamente R$ 15 reais cada cópia. Vamos ao resultado: o artista gasta R$ 10 mil e não ganha nada. A loja gasta R$ 3 mil e, se vender os seus 500 ganha R$ 7.500,00. Quer dizer, uma margem de lucro superior a 100%... Existe o risco de o disco encalhar e não vender as 500 cópias? Sim, é claro que existe. Mas o que eu estou discutindo é a margem de lucro, bem mais alta que a da bolsa de valores que, como qualquer negócio, também apresenta riscos de perda. A relação de gravadoras e lojistas sempre foi tão predatória no que diz respeito à vendagem de discos, que o resultado está aí: as portas se fecharam e ninguém compra mais CDs. Não faz sentido pagar R$ 50 reais em um CD dos Beatles que já se pagou há mais de 40 anos. Entretanto, o raciocínio predatório é de um mecanismo bem simples: “CD não vende mais, mas há uns fanáticos que ainda insistem em ter um disco dos Beatles, então vamos passar a faca neles”. A conseqüência do raciocínio do vendedor de CDs, na qual é “normal” o artista não ganhar nada, leva a um outro raciocínio dos artistas: já que não é para ganhar nada, vou colocar minhas músicas de graça na Internet; pelo menos assim eu divulgo um pouco mais as minhas músicas e tento recuperar o investimento nos shows. Ou seja, a loja de CDs quebra justamente porque ela mesma mostra ao artista que tanto faz vender o CD ou ofertar a música gratuitamente, afinal, ele não vai ganhar nada mesmo... E 44 www.backstage.com.br se a música é dada, quem vai entrar em uma loja para comprar? Quase todas as teorias comerciais convergem para a história da galinha dos ovos de ouro. Por mais incrível que pareça, muitas pessoas ainda preferem abrir a galinha a se contentar com o seu ovo diário. Outro ponto em que podemos constatar a continuidade da relação predatória é na venda dos meios de produção. Vamos analisar o mercado de instrumentos musicais, afinal, as lojas de CD estão se transformando em lojas de instrumentos para sobreviverem ao seu próprio autofagismo, ou Quase todas as teorias comerciais convergem para a história da galinha dos ovos de ouro. Por mais incrível que pareça, muitas pessoas ainda preferem abrir a galinha a se contentar com o seu ovo diário seja, a sua gula era tão grande que comeram a si próprias. Uma questão que não tem como deixar de ser analisada é a oferta de itens, bem parecida com a lógica das lojas de discos. O mais impressionante é que elas apostam no mesmo raciocínio que fez as lojas de discos quebrarem. As lojas não arriscam e apostam mais uma vez nos “best-sellers”, exatamente como faziam quando eram lojas de CDs. No caso de instrumentos musicais, existe uma gama variada de níveis de equipamentos. Existem guitarras, vilões, baixos, teclados de R$ 200 até R$ 14 mil reais. Há amplifica- dores na mesma faixa de variação de preço. Mas raramente vemos algo realmente profissional nas lojas aqui do estado. Existe sim, mas é raro. As lojas investem em séries baratas porque saem mais. Não há o interesse em oferecer tecnologia de ponta, pois isso pode significar um tempo maior para girar o estoque. Alguém pode dizer: “Ah, mas lá na Teodoro Sampaio tem loja de guitarras vintage e equipamentos mais caros...” É verdade, tem sim, mas uma única rua em São Paulo não representa o Brasil inteiro. Outro ponto que se repete é a margem de lucro. Ao fazer uma cotação de um equipamento que nos EUA custava U$ 300,00, o que daria aproximadamente R$ 600,00, fiquei surpreso ao saber que ele me sairia por R$ 1.600,00 aqui em Vitória. Vamos lá: o imposto do governo é de 60%, o que eu acho ridículo, pois instrumentos musicais não são tratados como bem de produção e sim como bens de consumo. Mesmo assim, vamos prosseguir o cálculo: 60% de 600 é igual a 320. 600 + 320 = 960. Menos custo e impostos: 1.600 – 960 = 640. Ou seja, o lojista/distribuidor/importador está ganhando R$ 640 a mais. Ainda é uma margem acima de 100%. Igual a dos CDs. Veja o quadro numérico que reflete exatamente o contrário do que seria o certo: a produção cultural não é incentivada e sim taxada! O aparelho custa na loja dos EUA R$ 600,00. Se comprar do fabricante, com certeza é mais barato... O governo ganha R$ 320 em cima. O lojista/ distribuidor ganha R$ 640 em cima. Alguém pode dizer: “Mas o produto é importado dos EUA...” Ok. Refaço a pergunta com outro exemplo: uma caixa de som que nos EUA cus- OPINIÃO | EXTRA ta R$ 650, aqui custa R$ 1.300,00. Só um detalhe: a caixa não é americana. É japonesa. A mesma caixa que sai do Japão e chega nos EUA a R$ 650, no Brasil chega a R$ 1.300,00... Isso mostra matematicamente o quanto a cultura é incentivada nestas terras tanto pelo governo quanto pelos comerciantes de música. Não é à toa que o mercado cultural dos “gringos” é bem mais forte. A margem de lucros e impostos é bem menor por lá... O que se deveria entender é que os fabricantes estão um pouco mais avançados do que os comerciantes. Os fabricantes já perceberam que sem ídolos eles não vendem instrumentos. Isso criou a figura do “endorser”, que é um músico de renome que faz um contrato com o fabricante para usar exclusivamente determinada marca. O iniciante, que admira este artista e que o tem como ídolo, quer ser igual a ele, ter o mesmo som dele, e conseqüentemente quer ter o mesmo equipamento/instrumento que ele. Sem o ídolo, o fabricante não vende e, obviamente, o lojista também não. A pergunta básica: se lojista/distribuidor/importador também dependem da figura do artista para que a mercadoria que comercializam circule, não seria justo que contribuíssem para o fortalecimento da cultura ao invés de só lucrarem com ela. Se cada vez está menos compensatório produzir cultura, menos artistas realmente expressivos aparecerão no futuro, teremos menos ídolos e menos mercadoria musical será vendida. Exatamente como aconteceu com as lojas de CDs... Como os comerciantes de música podem contribuir com o fortalecimento da cultura? Diminuir a sua margem de lucro e pressionar o governo para di46 www.backstage.com.br minuir a sua também. Podem adicionalmente pressionar politicamente para a aprovação de música como matéria obrigatória nas escolas. Com certeza, se isso acontecesse, teria mais gente comprando material musical. CONTRATANTES Quem são eles? São todas as pessoas que revendem a produção cultural sob a forma de eventos. É a pessoa ou a organização que contrata os artistas para se apresentarem. Sem os contratantes, com certeza, teríamos uma atividade cultural menor, pois estes Não é à toa que o mercado cultural dos “gringos” é bem mais forte. A margem de lucros e impostos é bem menor por lá... profissionais possuem um espírito empreendedor e criam eventos em que os artistas podem se expor. Entretanto, essa série de artigos não é para ficar rasgando seda e elogiando e sim para dissecar a parcela de culpa de cada parte envolvida no processo. O problema dos contratantes é exatamente o mesmo problema de todas as outras as partes envolvidas no processo da produção cultural: a educação. Mas, como assim? Primeiramente, não vamos entender como conceito de educação aulas de dó-ré-mi na escolinha. Educação abrange todo um universo que vai do jardim de in- fância ao doutorado. É claro que existem contratantes super sérios, honestos e profissionais, porém, essa não é a regra do mercado. Muitos são realmente desonestos e já entram em uma negociação com a intenção de não cumprir o que estão acordando, não têm o menor conhecimento, nem superficial sobre arte ou então são, na melhor das hipóteses, aventureiros irresponsáveis que fazem eventos sem o menor planejamento, contando com a renda da bilheteria de um evento que eles mesmos não divulgaram porque ia custar um pouco mais caro... Os processos são incrivelmente repetidos em várias circunstâncias. Um ponto crucial, que se estende em uma discussão muito maior do que o mercado cultural, é a crise ética. Um contratante adulto já foi uma criança e teve que ir para a escola. Lá ele teve aula de filosofia, ética, moral e cívica ou de organização social política brasileira? Não. Essas disciplinas foram retiradas da grade de matérias obrigatórias. Essa pessoa já está na situação de depender exclusivamente da educação dos pais para a formação do caráter, a noção do que é certo ou errado, o que é lícito ou ilícito... Ou seja, o estado simplesmente se esquivou da responsabilidade de, junto com os pais, formar o caráter do cidadão. É óbvio que, além das disciplinas que envolvem a ética, foram retiradas também as que envolvem as artes. Se todas as crianças tivessem arte como disciplina obrigatória, mesmo as que não seguissem na profissão saberiam reconhecer a boa arte, e ainda mais: reconhecer o quão difícil é fazer arte bem feita e valorizar isso. Aonde eu quero chegar: uma criança que não OPINIÃO | EXTRA recebe educação moral e artística pode se tornar um contratante adulto sem muita noção do que é justo ou não em um mercado cultural. Da mesma maneira que o governo, por meio de impostos sobre instrumentos musicais, por exemplo, enxerga a produção cultural como um lazer, o contratante faz a mesma coisa. Veja a lógica cultural (ou melhor, anti-cultural): se o governo vê que o instrumento musical é para brincar, então não pode ter imposto reduzido como bem de produção. O que leva ao contratante ter o seguinte pensamento: música é brincadeira. A bandinha vem aqui tocar no meu bar, dou umas cervejas para eles e eles ainda “tiram” uma onda com os amigos... Em alguns casos contratantes se sentem até magoados quando a banda pergunta pelo cachê, pois afinal ele estava proporcionando uma noite tão agradável para a banda, permitindo que ela tocasse e ainda dando umas cervejas no final... Nesse mês mesmo, uma banda de certo renome no Brasil veio tocar na minha cidade e o contratante teve uma relação totalmente dúbia e ficou em cima do muro entre o profissionalismo e o amadorismo e o evento não deu lucro, provavelmente prejuízo. Ele contratou a tal banda pagando o cachê dela, afinal essa banda toca na MTV e nas rádios. Pagou o cachê, alugou som, hotel, etc... Tudo certinho. Mas ele procurou as bandas locais para abrir o show, pois um evento hoje tem que ter mais de uma banda para as pessoas consumirem mais, e, de qualquer maneira, os shows hoje em dia raramente têm mais de uma hora e meia. Um evento que dure uma hora e meia é muito pouco, afinal o público não sai somente para ver o show. Nos shows 48 www.backstage.com.br eles bebem, paqueram, namoram, encontram os amigos, etc... Ou seja, o evento tem que ter no mínimo umas quatro horas para valer o ingresso, especialmente com o público jovem. Conclusão: mesmo contratando a tal banda famosa, o contratante precisa de outra banda de menor porte para alongar o evento. Se ele foi profissional com a banda famosa, é de se esperar que ele também seja com a banda menos famosa... Trocadilhos à parte, a “banda não toca assim”... O contratante procurou uma banda local que tinha já algum nome e a ban- Os contratantes já descobriram há tempos que as bandas topam tocar de graça, mas uns mais antenados e modernos estão descobrindo um novo mercado: as bandas que pagam para tocar da pediu um cachê bem baixo, realmente muito baixo, mas a resposta foi: “vocês vão ABRIR o show da banda famosa que está na MTV, o show vai estar lotado, vai ter muita gente e seria interessante para vocês tocarem, mesmo de graça... Não tem dinheiro nem para o transporte nem para pagar os custos da equipe técnica”. Matemática básica: se o show vai estar lotado, por que não pagar o cachezinho da banda? Possibilidade A: ele está blefando sobre o show lotado. Não tem certeza se o evento vai dar certo e quer arriscar o mínimo possível. Possibilidade B: ele está falando a verdade, sabe que o evento vai dar certo e usa do sonho das bandas menores para aumentar sua margem de lucro. Qual das duas hipóteses é a menos pior? No caso da A ele chama a banda para ser sócia no prejuízo, mas não no lucro caso o evento dê certo. Se ele tem medo de não dar certo, acha que é arriscado, por que não propõe ao invés de cachê, uma porcentagem da bilheteria? No caso da B, as únicas palavras que me vêm à cabeça para definir tal situação são: “ratazanagem” (não tem no dicionário. É uma mistura de ratazana com sacanagem) e covardia. E o pior é o argumento, totalmente verdadeiro, que eles usam: se você não quiser, tem um monte de banda que quer. Um recado para você, banda, que se acha mais esperta porque aceitou tocar de graça e pegou o lugar da outra que tentou cobrar: recentemente uma produtora de eventos em SP fez um evento com uma banda americana de pouca expressão e precisava de duas bandas para abrir o show. A produtora estava COBRANDO dois mil reais da banda que quisesse ser a primeira banda da noite com “direito” a tocar 30 minutos. A segunda banda poderia tocar 40 minutos pela módica quantia de três mil reais. Os contratantes já descobriram há tempos que as bandas topam tocar de graça, mas uns mais antenados e modernos estão descobrindo um novo mercado: as bandas que pagam para tocar. Drogas leves levam às pesadas. Delitos leves levam aos crimes graves, e tocar de graça leva a pagar para tocar.