DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Dildo Pereira Brasil* Resumo: As escolas, professores e especialistas ocupam-se em discutir e deliberar sobre se a filosofia deve ser ensinada em forma de disciplina, uma entre as outras, ou se deve estar embutida nas disciplinas já existentes na matriz curricular. Essa é uma ação equivocada, pois, apropria filosofia nos remete a investigações mais radicais e mais abrangentes. É necessário saber se a filosofia é ou não necessária ao ser humano. Se a alma humana necessita de filosofia para realizar o processo de hominização. Para tanto o primeiro a ser feito é conhecer bem os conceitos utilizados. Porém, é necessário ter em conta que conhecer o conceito filosofia não é filosofar. Assim como, conhecer o conceito educação não é educar. Ao refletirmos sobre o ensino da filosofia somos remetidos à questão: quem necessita mais da filosofia, os alunos ou os professores? Palavras-chave: filosofia, educação, filosofia da educação, formação de professores. Problematizando o tema Sugiro que não se ensine filosofia aos jovens e adolescentes nas escolas e instituições de ensino fundamental e médio. E por que não? Hão de perguntar, em uníssono, os leitores e leitoras. Então, digo-lhes eu, num sorriso que nos une neste início de diálogo: vamos devagar. Primeiro devo apressar-me em dizer-lhes que não sou contra a existência da filosofia nas escolas. Ao contrário, acho que num sistema educativo disciplinar e, mais que isso, multidisciplinar, esta deve ser uma das disciplinas que não podem faltar ao festim. Deve estar presente nas escolas de todos os níveis e graus. Por isso é que dediquei parte do meu precioso tempo participando das lutas pela implantação desta disciplina no currículo do ensino médio do Estado de São Paulo nos anos 80 e, mais tarde, neste início de terceiro milênio da era cristã, apoiei a * Graduado em Filosofia, Teologia e Pedagogia, mestre em Ciências da Religião pela UMESP e doutorando em Educação pela USP. Professor titular na Universidade do Grande ABC. Contatos: [email protected]. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 176 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO aprovação da lei 11.684/ 2008, de 02 de junho de 2008, que a torna obrigatória no ensino médio em todo o território nacional. Concordo com a adoção desta disciplina no currículo escolar, tanto nas escolas públicas quanto particulares. Porém, vejo a prática atual do ensino da filosofia nas escolas como uma ação equivocada. E, por estar equivocada, torna-se improdutiva. Para falar em linguagem própria do capitalismo ocidental. E, por ser improdutiva, faz-se, obrigatoriamente, por muitos, incompreendida e indesejada. O equívoco começa já na concepção de filosofia e do ensino de filosofia que habita a cabeça das autoridades e especialistas que montam e sugerem os programas estaduais. Depois este equívoco repete-se nos professores e professoras que, em sala de aula, ministram as aulas de filosofia. A proposta de programa fornecida pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo é risível brincadeira. Era assim nos anos oitenta e não mudou nesta primeira década do novo milênio. Teria o autor da presente reflexão sugestão alternativa? Hão de perguntar os que conseguiram ler-me até aqui. É o que vou tentar apresentar nas páginas que seguem. Aqueles e aquelas que conseguirem chegar ao fim do texto poderão constatar o que tenho a sugerir. Constatarão que é uma proposta inacabada e aberta, pois, não passa, no presente texto, de uma conversa inicial sobre o assunto. Estou propondo que apenas incitemos (incitar, criar vontade, despertar o desejo) os adolescentes e jovens a pensar. Pensar o que? Pensar o mundo, a vida, o ser humano e as relações que este estabelece com o mundo e com seus semelhantes. Incitar à curiosidade. Incentivar a fazer perguntas. Todas as perguntas que lhes vierem à cabeça. Perguntar às autoridades, aos especialistas, aos adultos de todos os níveis e classes, aos lideres políticos e religiosos, aos seus pares. E, principalmente aos formadores da opinião pública, professores e comunicadores das mass media. Não falo em criar curiosidade, pois esta já a possuem Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 177 de sobra, as crianças, adolescentes e jovens. É, antes, incentivá-los a partilhar essas curiosidades, a buscar respostas para suas perguntas e inquietações. Para que, nesta busca, descubram que a maioria delas não tem respostas. Mas que eles próprios descubram isso, no interior e no transcorrer do processo de busca e investigação. E por que fazer apenas isso? Porque nós adultos sabemos que: “O homem, pelo próprio fato de ser Homem, deseja ansiosamente entender-se a si próprio, entender o outro e entender o mundo. Esse anseio faz parte do ser humano.” (Giles,1984, p.VII). Portanto, se é desejo natural do ser humano conhecer-se a si mesmo, ao mundo e ao seu semelhante não é necessário mais que incentivá-lo a vivenciar o seu desejo. A partilhar com outras pessoas essa característica que o faz comungar a mesma cultura e membros da mesma humanidade. Ao lado disso, estou certo de que ensinar e aprender filosofia é muito gostoso. Prazeroso e encantador é navegar por estas revoltas e misteriosas águas. Aventura radical agita e faz crescer a adrenalina, sem respeitar idade, gênero ou classe social. Não para todos, penso eu. Mas para aquela parcela, certamente não muito grande, dos que conseguem ver e sentir o mundo a partir das lentes da razão. A partir do olhar investigador e insatisfeito com os dados da trivialidade. Por isso a sugestão é que os professores, não os adolescentes, de todas as áreas do saber, de todas as disciplinas escolares, tenham contato com a filosofia desde a formação inicial. Que estudem e aprendam, de forma efetiva e intensa, as bases elementares da investigação filosófica. E, somente depois deste contato preliminar, depois de serem iniciados nos segredos da investigação filosófica, aqueles e aquelas que se sentirem tocados pelos mistérios da reflexão radical, rigorosa e de conjunto, isto é, somente os/as que forem picados pela venenosa mosca do saber profundo, como nos Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 178 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO dizia a Professora Raquel no curso de graduação, a estes e estas sejam oferecidas todas as possibilidades e condições de aprender e praticar a busca radical da verdade radical. Ao encaminhar por estas veredas a reflexão sobre a relação entre a filosofia e a educação, estou supondo que a filosofia, o saber filosófico, o hábito do pensar reflexivo, faz falta muito mais aos professores que aos alunos. Minha conclusão, provisória e despretensiosa, é que, se o professor pensa, sente e age filosoficamente, seus alunos certamente perceberão nele aquele misterioso, obscuro e contagiante, convite ao pensar fora da mesmice, ao “voar fora das asas” (Manoel de Barros), ao romper as cadeias que o cercam. Mesmice conformista que caracteriza e enjaula a grande maioria dos que atuam no interior das escolas. Os alunos e alunas do professor reflexivo ouvirão, nas ações do educador, um tentador e irresistível convite para sair do senso comum. Para romper as rotinas e estruturas da instituição escolar. Como aconteceu com o professor de literatura no filme “sociedade dos poetas mortos”. Sei que, ao propor isso, estarei remando contra a maré e contradizendo os ensinamentos e proposta do professor Mathew Lipman. Porém, minha intenção é refletir sobre o que parece mais funcional e eficiente na construção do homem brasileiro deste início de terceiro milênio. Estou tentando descobrir o que traria a filosofia para a vida e as ações dos jovens, adolescentes e crianças. Uma vez que as outras tentativas não tem mostrado a eficiência esperada. A reflexão que apresento a seguir quero plantá-la no fértil terreno dos diálogos de Platão. Certamente a adubarei com outros ingredientes adquiridos em outros pensadores e épocas, mas o primeiro torrão escolhido para fincar suas raízes foi um diálogo da juventude de Platão: o Láques (ou sobre a coragem). Diálogo no qual Platão Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 179 investiga sobre o que deve ser ensinado aos jovens para que se tornem homens de verdade e não envergonhem a família e a cidade em que nasceram. O tema é a educação dos moços e a peça apresenta cinco personagens: Lisímaco, Melésias, Nícias, Láques e Sócrates. Na trama Lisímaco e Melésias convidam a Nícias e Láques para assistirem ao show de um lutador com armas. A esta arte dá-se o nome de hoplomaquia. O objetivo de Lisímaco e Melésias, que convidam aos outros dois, Nícias e Láques, é discutir sobre a educação dos filhos. Não somente dos seus filhos, mas, também, de todos os moços da cidade. Em especial os filhos dos amigos mais próximos. Neste aspecto a questão que os move é: o que os moços precisam aprender e em que devem exercitar-se para que se tornem homens de verdade (p. 98, 179d – Platão, no diálogo Láques). Após o espetáculo, ao começarem a discussão sobre a educação dos moços, Láques se diz satisfeito com o convite, mas lembra a Lisímaco e aos outros dois que a pessoa mais indicada, por ser a mais habilitada entre eles, para discutir o assunto em pauta é Sócrates. Que, inclusive, se faz presente no local. Os outros concordam e, imediatamente, propõe à Sócrates o problema a ser discutido, investigado, estudado e, assim o integram ao grupo e à discussão. Sócrates, com habilidade e método próprios de mestre, limpa o terreno conduzindo a discussão para a questão da educação, não dos moços, mas do ser humano. Tira, assim, o foco da discussão da arte da hoplomaquia. Uma vez que essa arte é apenas um meio e não o fim que buscam com a discussão em curso. O que querem e buscam saber é o que deve ser ensinado aos seus filhos e a todos os moços da cidade. Portanto, é isso que devem buscar. Ao final do texto, ou da discussão, concluem que é a virtude que deve ser ensinada aos jovens. É nessa arte que devem se exercitar os moços e todos os cidadãos de Atenas. A dúvida que resta é se a virtude Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 180 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO (Areté) pode ou não ser ensinada. E, mais que isso, caso possa ser ensinada, quem está apto a ensiná-la. Essa belíssima peça de Platão, escrita quando seu autor ainda era jovem, isto é, antes dos 40 anos de idade, termina com a convicção dos adultos, que se ocupam ali de discutir a educação dos moços, de que eles próprios devem se exercitar na arte da virtude. Antes de pretender ensiná-la aos jovens. Voltando à discussão da qual nos ocupamos na presente reflexão, podemos perceber que, quando se trata de pensar e deliberar sobre a Educação, ou sobre a Filosofia e seu ensino, parece-me que costumeiramente nos deparamos com uma situação muito parecida com a descrita por Platão. Situação que consiste no seguinte: adultos e especialistas, se pré-ocupam e, muitas vezes, se ocupam em discutir e deliberar sobre o que ensinar às jovens gerações. Aos moços. No entanto, por não terem entre eles um Sócrates que os aconselhe e os conduza no reto refletir sobre a educação do homem, ou, em outras palavras, por não terem clara e consistente proposta de Paidéia para os dias atuais, se perdem nos emaranhados do dilema e não conseguem encontrar o caminho que os levaria à melhor educação dos jovens. Então, ficam sem sair do lugar em que começaram. Ansiosos, mas perdidos. Sem rumo ou rumando para direção outra, que não os levará jamais à educação que procuram e precisam. Muitas vezes ficam entregues à inércia. Algumas vezes paralisados. Frustrados, quase sempre. Eis porque a busca que devemos empreender não é se a filosofia deve ou não ser ensinada em forma de disciplina, como campo específico e separado do conhecimento. Se, ensinada à parte nas escolas, deve compor-se deste ou daquele conjunto de conteúdos e servir-se do método X ou Y. Nem mesmo se, ao invés de ser ensinada Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 181 como disciplina, uma entre as demais, a filosofia se fazer presente nas escolas de modo subliminar. Isto é, a educação deve estar, em si mesma, prenhe da filosofia. A questão da qual devemos nos ocupar é saber se o jovem, o adolescente, a criança ou mesmo o adulto precisa de filosofia. Nossa investigação deve buscar saber se a filosofia faz bem ou mal ao ser humano. Se a alma humana precisa da filosofia. Para empreender essa investigação é necessário saber, antes, o que é filosofia e, também, o que é educação. Sem compreender os conceitos não se pode investigar sobre suas funções na vida humana. Conceituar o objeto da nossa reflexão Talvez o que falta às escolas é considerar, em seus planos e estratégias de ação, o que é e qual a função da filosofia na vida do ser humano. Quem discute a educação e os componentes curriculares, geralmente não consideram a reflexão filosófica como parte significativa do agir educativo. E não o fazem por desconhecerem o que afirmou Giles ao escrever que: Sócrates, que é considerado o modelo da atitude de filosofar, nos mostra que o ato de filosofar e o ato de viver são inseparáveis. Este filósofo também nos ensina que a atitude de filosofar só pode começar quando reconhecemos que nada sabemos. É apenas nestas condições que aprenderemos a ‘amar a sabedoria’ (Filo-sofia), atitude que coincide com o próprio sentido etimológico da palavra filosofia. (Giles, 1984, p. 3). Penso que a discussão sobre se a filosofia dever ou não ser ensinada em sala de aula como disciplina, como as outras disciplinas, é, na verdade, mais uma destas falsas questões que se nos são impostas pelas circunstancias conjunturais e ideológicas do momento. É uma falácia gestada e nascida nas entranhas das artimanhas da cultura Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO 182 moderna e positivista que leva-nos, obrigatoriamente, a equívocos que nos desviam dos caminhos que nos conduziriam à educação hominizadora. Equívocos que nos fazem andar em circulo sem chegar a lugar algum. Como faz o cachorro quando, acossado pelas pulgas, põe-se a correr desesperado atrás do próprio rabo. Por isso convenço-me cada vez mais de que o que falta à educação escolar brasileira, principalmente aos especialistas em educação e às universidades onde geralmente atuam, é o efetivo exercício proposto por Platão, neste e outros diálogos, em especial os aporéticos, a saber: verificar com rigor e profundidade científicos o que deve ser ensinado aos jovens. No entanto, é necessário ter em conta que, conforme nos adverte Sócrates “presentemente temos em vista determinado conhecimento em que está em causa a alma dos rapazes” (pag. 105, 185d). O que traduzido para os dias e linguagem atuais, poderia ser expresso da seguinte forma: devemos ter em conta que ao discutirmos sobre educação escolar e seus conteúdos o que temos em vista é aquele ou aqueles conhecimentos nos quais possa se ancorar a alma das jovens gerações, o futuro da nossa sociedade, da nossa cultura e até mesmo da humanidade e do planeta. Portanto, ao discutirmos a educação, estamos discutindo e deliberando sobre a alma e os caminhos possibilitados às novas gerações. Os conhecimentos oferecidos pelas escolas, sob o binômio conteúdo-método, vão abrir os caminhos e preparar a alma dos jovens para o processo de hominização. E deve, obrigatoriamente, dizer respeito ao serhomem, isto é, à alma e à razão humanas, no mundo e com o mundo, na história que este homem constrói, cria e recria, enquanto vive e convive com os outros homens e com a natureza. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 183 E não podemos furtar-nos em afirmar que os conhecimentos fornecidos pela escola, de todos os níveis, devem estar envoltos na investigação filosófica. Pois, educar é ensinar a pensar. Ensinar a pensar como gente e membro deste grupo ou cultura. Educar é criar nos jovens o hábito de espantar-se com as coisas que o cercam, com as rotinas e costumes do cotidiano. Educar é ensinar o olhar crítico sobre o mundo e tudo que nele há e acontece. Eis a tarefa da educação na qual não pode estar ausente a filosofia, o olhar investigativo que ela proporciona, pois, como sugere Giles, Provocada pelo ‘espanto’ original, a filosofia nos incita e nos desafia a manter um constante contato com todos os fatos e todas as experiências, numa atitude radical de olhar crítico, e com esse radicalismo, numa verdadeira renúncia. É com essa atitude que a filosofia alcança alguns dos momentos mais ricos da realidade, onde o sentido reside e se revela. (Giles, 1984, p.6). Clareando um pouco mais o que ficou dito acima, podemos dizer que educar é termo que deve ser compreendido em suas raízes semânticas e epistemológicas. Lembrando, com isso, que educar vem do verbo latino educere e significa tirar o sujeito de um lugar e fazê-lo chegar, por meio do aprendizado de novos conhecimentos, a outro lugar. Ou seja, educar é tirar alguém de um ponto X e conduzi-lo a um ponto Y (o método a ser utilizado para essa transposição é outra conversa, faz parte de outro capitulo, do qual não nos ocuparemos no presente texto). Esse movimento faz-se mais completo e significativo e efetivamente mais transformador quando o sujeito em questão é autor do movimento que realiza. Educar é criar autonomia. Independência e coragem de agir. Mesmo, e talvez principalmente, em meio às adversidades. Esse é o papel da razão e do saber elaborado a que se chama ciência. E mais especificamente da filosofia. Do pensar filosófico. Da práxis reflexiva. Pois, praticar a reflexão filosófica é vivenciar as relações humanas como espaço de construção do homem e do mundo. É ter consciência de que é nas relações que o homem estabelece com o mundo e no mundo Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO 184 que se constroem os valores que se tornam referenciais para o viver e o agir humanos. Viver este que é, essencial e necessariamente, busca constante e incansável da felicidade, seja esta realidade vivida ou apenas sonho, desejo e esperança ainda não concretizada. Filosofia Não podemos duvidar de que o viver humano para se realizar humanamente necessita da filosofia. Pois, a reflexão filosófica nasceu para humanizar o viver praticado pelo homem na história. É propósito da filosofia humanizar o homem na história, enquanto este constrói a história e, também, fazer humana a própria historia deste homem, das sociedades e das culturas. Neste aspecto a história deve ser tida como o útero onde se gesta as sociedades e as relações que as caracterizam e as particularizam. Como afirma Severino: [...] a tarefa fundamental da filosofia é eminentemente antropológica. Isso significa dizer que o objeto central da reflexão filosófica é a própria condição do homem em sua integralidade no contexto histórico. Isto é, ela se propõe a explicitar a possível significação da existência da humanidade, não se apoiando em referências abstratas, mas nas suas condições reais, no mundo natural e sociocultural, dentro do tempo histórico. (Severino, 1994, p. 36). O que falta ao homem comum, mesmo quando se trata do homem moderno, deste tempo das comunicações e da informática, é ter essa consciência reclamada por Severino. É conhecer-se a si mesmo, como recomendava a inscrição do Pórtico do Templo de Delfos. Proporcionar ao ser humano esse saber, a todos os membros da sociedade, é tarefa primeira da filosofia e do pensar filosófico. Foi para isso que a filosofia foi criada. A filosofia nasceu da guerra entre Eros e Thanatos. E desde o início de sua existência cerrou fileira com Eros. Ficou inarredável do lado do deus da vida. No Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 185 entanto, nem sempre conseguiu fornecer as ferramentas necessárias à vitória do deus da vida e do prazer. Porém, hoje, mais que outrora, está convocada a cumprir o seu papel original: gerar vida e prazer. Possibilitar o gozo e a alegria aos que alcançam o privilégio de poder praticá-la. Nietzsche, Freud e Hannah Arendt, entre outros, nos legaram belíssimas reflexões sobre a função do pensar profundo e reflexivo. Indicaram os caminhos por onde deve trilhar o fazer filosófico e a filosofia. Estes pensadores não negaram a filosofia. Negaram a má e perniciosa filosofia. A falsa filosofia. Foi isso que fez, também, Karl Marx. Todos eles pensaram o mundo, o homem, a vida e as relações humanas a partir da filosofia e viram que a filosofia é necessária. Indispensável. Não qualquer pensar que apenas se pareça com filosofia e, se faz facilmente passar por filosofia. Mas a filosofia radical, que vai às raízes da existência humana. Filosofia que desperta o homem para o prazer de viver e criar. Criar criativo e re-criativo que se dá nas relações com o mundo e com os outros homens e, proporciona os prazeres que a arte de criar e imaginar o que ainda não existe oferece, obrigatoriamente, a quem se dispõe a brincar de criador. Essa filosofia mostra ao homem que ele é, por excelência, criador e criativo. O homem nasceu para o prazer, as brincadeiras, a festa e o gozo. Por isso é brincador: Homo Ludens. Criar é lúdico e prazeroso. É brincadeira que dá prazer e enleva a alma, tanto de quem cria quanto de quem contempla o brincar e a obra que resulta do brincar criativo. Brincar é humano e humaniza. Por isso é que o homem simples brinca, ri, canta e dança o tempo todo. Não percebe isso o homem moderno, filho da sociedade industrializada, pois, criou para si outra concepção de mundo e da vida. Petrificou e desumanizou a razão. Porém, com isso perdeu-se de si mesmo, desviou-se do processo Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 186 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO de hominização. Tomou outra direção e desumanizou-se. Deixou de ser Homo Volens, pois, perdeu a liberdade humana, deixou de ter vontade própria e desvirtuou o amor. Por isso a educação que queremos deve reconduzir esse homem ao caminho da hominização, ao encontro com a vida, com a natureza e com a harmonia que deve caracterizar suas relações com os outros homens, seus semelhantes. Mas a educação precisa saber que esse reconduzir o homem ao processo de hominização deve dar-se via lúdico, pelas veredas do brincar, da festa, do jogo e da alegria. O amor, o desejo e, principalmente a liberdade não podem faltar ao homem e ao processo de hominização. A tudo isso podemos chamar, nas pegadas de Rubem Alves, Prazer. Não deixar que o homem perca as características de Volens e Ludens é, também, tarefa da filosofia, para isso ela foi criada na Grécia Antiga. Conforme Giles, com o nascimento do processo de filosofar O homem desprendeu-se das explicações míticas da realidade para se ater tão-somente ao caminho aberto pelas luzes da razão. Este é o último critério admissível para se entender uma realidade aberta e observável por todos aqueles que se derem ao esforço de percorrer esse caminho. (Giles, 1984, p.VII). Perplexo diante do próprio eu, do outro eu e do mundo, o homem sente-se incitado a procurar explicações para estas três realidades e tudo que a elas se relacionam. E nada, nenhuma dificuldade o impede de estar sempre em busca de explicações e conhecimentos que desvelem, para ele, os mistérios do mundo e da vida. Que o ajude a compreender os segredos da sua própria existência. É nessa busca que o homem aprende. Cria e acumula conhecimentos que, transmitidos às novas gerações, são chamados de cultura. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 187 Educação A educação é, por sua vez, o processo de fazer homem a todos os homens de uma determinada época e lugar. É pela educação que os jovens se integram à sociedade já estabelecida e estruturada antes deles nascerem (Durkheim). Mas para que esse processo não se faça descaminho e desvirtue o processo de humanização, para que o homem não se perca neste caminhar é necessário que os sujeitos da sociedade, da cultura em que vivem e agem, neste momento e nestas circunstancias dadas, tenham consciência de que são seres humanos de verdade, e são chamados a agir e pensar neste lugar, tempo e circunstâncias em que se encontram, eles e a vida que produzem coletivamente. Concordo com Giles quando afirma que o processo educativo implica o cruzamento, o conflito e, mais que isso, exige colaboração entre fatores relacionados com as diversas dimensões da pessoa humana, tais como: a afetiva, a ética, a técnica, a intelectual, a corpórea, entre outras. Estou de acordo, principalmente, com sua afirmação de que “educar é alcançar a pessoa naquilo que lhe é mais específico, no seu ser-humano, isto é, na sua intelectualidade, na sua afetividade, nos seus hábitos, para levá-la à realização de um ideal.” (Giles, 1983, p. 27). Neste aspecto não é redundância retomar aqui o que dissemos acima sobre o termo educar. A palavra educar vem do verbo latino educere e significa tirar o sujeito de um lugar e possibilitar que chegue, por meio do aprendizado de novos conhecimentos, a outro lugar. Então, temos que educar é a ação de deslocar alguém de um ponto X a um ponto Y. O que se dá, obrigatoriamente, por meio de um método utilizado para que essa transposição possa ser realizada. Esse movimento ganha maior significado e Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 188 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO importância quando o sujeito que faz o deslocamento é, ele próprio, autor do movimento que realiza. Mesmo que o deslocamento, movimento resultante da educação, não possa ser realização solitária, obra individual, é necessário que o sujeito tenha efetiva participação no processo. Seja ativo, isto é, o educando deve fazer-se parceiro dos que promovem e dirigem o processo educativo. No processo de aquisição e construção do conhecimento. Por conhecimento cabe entender aqui a capacidade do espírito humano para explicitar, para construir um sentido para todos os elementos e aspectos da experiência vivida dos homens. E o faz estabelecendo nexos entre esses elementos, nexos esses que satisfazem exigências internas da própria subjetividade, que se expressa basicamente como reduplicação simbólica de todos esses elementos. Por isso mesmo, a prática mediante a qual o homem vai construindo sua existência e sua essência não é uma prática mecânica, instintiva, transitiva, como ocorre nos outros seguimentos da natureza. Ela é sempre dirigida por uma intencionalidade, por um sentido que estabelece seus fins, seus objetivos, suas referências. (Severino, 1996, p. 12). Filosofia da educação Neste aspecto a filosofia precisa pensar a educação e deliberar sobre o que ensinar aos jovens e como deve ser o processo de aprendizagem. Para tanto deve ter em conta o conceito ou concepção de homem mais adequado ao futuro que almejamos. À sociedade que imaginamos ser mais humana e mais prazerosa que a atual. Então temos algumas opções. Seria o homem concebido pelo capitalismo: egoísta, individualista, consumista, materialista e imediatista? (puxa quantos ‘istas’ neste homem concebido e produzido pelo capitalismo!!!!). Ou seria o homem concebido pelo socialismo: cooperativo, socialista, solidário, submisso às ordens do estado? Acima de tudo, o homem que vive no e para o estado. Quem sabe seria o homem concebido pelos medievais: religioso por excelência, dependente da vontade do Deus cristão e submetido Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 189 à nobreza parasita e extravagante. Talvez o homem primitivo que caça e pesca e se alimenta dos frutos da natureza. Sem o uso do ferro e das tecnologias que o inclui, vive em harmonia com a natureza, mas dela dependente em tudo e para tudo. Sem muita criatividade e sem conquistas significativas. Precisamos, com urgência, pensar o homem que é necessário construir para que a raça humana possa viver em harmonia com o semelhante e com a natureza. Falando em linguagem atual, para que o planeta possa sobreviver. Sabendo quem é e como é este homem que queremos e de que precisamos, nós e o planeta, então, podemos deliberar que educação será capaz de construí-lo. Pois é esta a tarefa da educação: construir o homem e o mundo que este vai habitar. Considerações finais Se o pensar filosófico exige que os conceitos sejam conhecidos supõe que, sendo ferramenta importante, devem ser conhecidos para que sejam bem utilizados. Também na educação, os conceitos devem ser conhecidos. Educar exige que se saiba o que é educação. Pois conhecendo o conceito sabe-se em que consiste o ato de educar e para que se educa. Aqui como lá o conceito é ferramenta importante e indispensável ao ofício do educador. Assim como não dá para fazer filosofia ou filosofar sem saber o que é filosofia e em que consiste o filosofar. Não se pode educar sem saber o que é e em que consiste a ação educativa. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO 190 Porém, atentemos para um dado fundamental: saber o que é filosofia não é filosofar. Da mesma forma que saber o que é educação, conhecer o conceito educação, não é educar. Educar e dar aulas dessa ou daquela disciplina são duas coisas diferentes e distintas. Ter o conhecimento, o domínio de uma determinada área do saber elaborado e saber ensinar a outrem esses conhecimentos é uma coisa. Educar é outra coisa. São coisas distintas e ações que podem perfeitamente se dar separadamente, uma não supõe a outra. Neste aspecto, devemos ter em conta que pode-se dar aulas dessa ou daquela disciplina sem educar o aluno (isso é visível nas escolas e no processo educativo atuais). Da mesma forma que pode-se educar sem dar aulas disso ou daquilo. Isso ocorre constantemente, em diversos ambientes e situações. É tarefa da filosofia provocar, promover e convidar à análise dos conceitos. Por seu turno é tarefa da universidade provocar, promover e convidar ao pensar, à reflexão filosófica, ao conhecimento da realidade, das coisas e do mundo onde elas se alojam. Para que a filosofia cumpra a sua tarefa é necessário que a universidade se ocupe em cumprir a dela. Como fazer isso? Sugiro que, no caso da educação, a tarefa da universidade seja cumprida via formação dos professores. Desta forma a universidade estaria capacitando os professores para provocar, promover e incitar os alunos dos ensinos médio e fundamental, e até mesmo do infantil, a refletirem filosoficamente. Capacitados os professores, estes fornecerão aos alunos as condições, técnicas, materiais e pedagógicas, para realizarem investigações filosóficas. Fazendo cumprir, assim, o papel da escola que é, em todos os níveis e graus, colocar todos os alunos, de todas as idades, em contato com o pensar reflexivo e com a investigação filosófica. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 191 Para realizar essa tarefa é necessário que os professores estejam capacitados e sintam-se, ética e ideologicamente, incumbidos dessa tarefa. É necessário que tenham disposição para assim agirem. Mas também é necessário que se sintam competentes e encontrem significado na ação que desenvolvem. A universidade é o lugar, por excelência e por princípio, da capacitação dos professores. É função social e cultural da universidade, desde sua origem mais remota, preparar aqueles e aquelas que vão educar as crianças, jovens e adolescentes, para inserirem-se na sociedade da maneira mais adequada ao tempo e às exigências próprias da sociedade em que nasceram. Pode o leitor mais exigente alegar que as universidades brasileiras dos dias atuais não fizeram seu dever, não cumpriram sua obrigação, ao não prepararem bem os professores nos cursos de graduação. Pois bem, estamos de acordo com essa alegação. Porém, a saída é simples, conhecida e lucrativa. Se não o fez, não cumpriu sua função e seu dever como deveria ter cumprido nos cursos de graduação, na formação inicial, pois que o faça na modalidade de formação continuada, permanente, em serviço. Há muito espaço para essa modalidade de formação de professores. Há também experiências acontecendo em todo o Brasil e no exterior. Não nos deixemos cair na ilusão de pensar que a formação continuada soluciona o problema da má formação dos professores. Ao contrário, se mal interpretada, pode até servir como mecanismo de preservação e continuidade da prática das universidades e das condições dos professores. Neste aspecto o que disse Darcy Ribeiro do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Erradicação do Analfabetismo) vale para a Formação Continuada de Professores. Pois, ao tentar reparar um erro, acaba reproduzindo o erro cometido ou ampliando-o. O problema deve ser resolvido é na raiz. Lá onde ele é Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 192 DA RELAÇÃO [ERÓTICA] ENTRE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO gerado e nasce, isto é, na formação inicial. É necessário que as universidades comecem a formar bem os professores para que não mais necessitem consertar o erro via formação continuada. Assim a formação continuada passará a ter outro papel, função mais nobre e significativa, na vida profissional dos professores: será um instrumento de atualização e ampliação dos conhecimentos e métodos, e não formação básica. Para isso a presença mais ampla e mais intensa da filosofia nos cursos de licenciatura deve ser exigência, qualquer que seja a licenciatura. Também os gestores da educação devem ser preparados para pensarem e agirem reflexivamente. O gestor deve, obrigatoriamente, gostar de filosofia e promover o pensar filosófico junto aos seus professores, seus comandados. Deve convidá-los à parceria na ação educativa, conduzi-los à ação reflexiva junto aos alunos. Para isso é necessário que estejam preparados, capacitados e bem formados na arte e na técnica de pensar filosoficamente. O gestor deve administrar, não apenas a dimensão burocrática da escola, como acontece atualmente, mas também e principalmente a dimensão pedagógica, educativa e formativa dos alunos e professores. É necessário que o gestor seja competente para agir, pensar e sentir humanamente. Assim ele/ela poderá, efetivamente, educar pessoas, alunos, professores, funcionários e familiares, para uma sociedade mais humana e humanizante. A ação de um gestor competente e disposto a educar será como sugere Paulo Freire, uma ação amorante e libertadora. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010 REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 193 Referências bibliográficas GILES, Thomas Ransom. O que é filosofar? São Paulo: EPU, 1984. ____________________. Filosofia da Educação. São Paulo: EPU, 1983. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1985. SEVERINO, Antonio Joaquim. O Pedagogo no terceiro milênio: enfrentando os desafios postos pelas tramas do saber, do fazer e do poder. In: Estudos e Documentos, volume 36, páginas 11 – 15, (1996), São Paulo: FE.USP, 1996. _____________________. Filosofia da Educação: construindo a cidadania. São Paulo: FTD, 1994. PANSARELLI, Daniel (Org.). Curso (In)completo de filosofia. São Bernardo do Campo – SP: UMESP, 2010. Revista Páginas de Filosofia, v.2, n.1, p. 175-193, jan/jun 2010