O mito do(s) Pan-africanismo(s) O riginário da América, o PanAfricanismo constituiu-se inicialmente como simples manifestação de solidariedade fraterna entre todos os africanos, entendidos de modo lato como os africanos e as gentes de ascendência africana naturais das Antilhas britânicas e dos EUA excluindo os europeus nascidos em África e que, a prazo, a partir da década de 50, transformar-se-ia (1955) em instrumento para a tentativa de edificação, sob a égide de Kwame Nkrumah, dos “Estados Unidos da África”. Contudo uma análise mais rigorosa permite identificar três correntes distintas neste movimento, bem como três etapas no seu processo evolutivo. Pan-africanismo e orgulho rácico AS IDEOLOGIAS “PAN...” O pan-africanismo está longe de ser a única forma de representação simbólica de um totalidade, assente ora na etnia, ora na raça, ora na religião... Ao longo da história destes últimos séculos, diversas outras ideologias se manifestaram, reivindicando o reconhecimento de um “todo” que, para ser forte, se afirma unido. A mais antiga será porventura o pan-americanismo, com raízes na ambição de Simón Bolivar de unir os Estados americanos saídos da colonização espanhola. Esse bloco continental nunca chegou a existir, mas algumas experiências regionais ensaiaram formas de unidade (por exemplo, em 1819 constituiu-se a Grã-Colômbia, que só duraria até 1830, desagregando-se na Venezuela, Colômbia e Equador). O pan-americanismo teve também uma expressão vinda do Norte, celebrizada na frase do presidente Monroe em 1823: “A América para os americanos”, significando a rejeição da interferência das potências europeias nos assuntos do Novo Mundo. O séc. XIX assistiu à emergência de fenómenos análogos. O pan-germanismo procurava a união de todos os alemães espalhados pelos diversos países da Europa central e oriental, enquanto o pan-eslavismo preconizava uma espécie de busca de nacionalidade única para todos os povos eslavos (com um sentido por vezes de pendor anti-ocidental ou antigermânico). E, à sua maneira, o sionismo judaico coloca-se na mesma tradição de unir o que está disperso. Já no séc. XX ocorreram diversas formas de pan-arabismo ou de pan-islamismo. Se a queda do Império Otomano após 1914-18 desperta as ambições árabes de unificação dos territórios desse império, foi mais tarde o nasserismo do Egipto o grande motor do pan-arabismo moderno, aliás seguido pelo Partidos Baas da Síria e do Iraque, daí resultando algumas tentativas de unificação de Estados como embrião para construir a unidade árabe (tentativas sempre efémeras, com as de união entre o Iraque e a Jordânia em 1958, ou entre o Egipto e a Síria – a República Árabe Unida, que chegou a durar três anos, entre 1958 e 1961 – e as uniões mais teóricas que práticas entre a Líbia, o Egipto e a Síria). Por seu lado, o pan-islamismo visava ideais românticos de união de todo o mundo islâmico, encontrando algum eco na revolução iraniana de Khomeini. Marcus Mosiah Garvey (Saint Ann’s Bay, 17 mar um governo provisório de África e um sua prisão por fraude nos EUA estiolaram de Agosto de 1887 – Londres, 10 de Junho exército constituído pela Legião Universal o projecto, bem como o movimento. No Uma primeira corrente, a do orgulho de 1940) que fundou em 1920 a UNIA – Africana, as Enfermeiras da Cruz Negra entanto, as ideias de Garvey – que viria a rácico, ao qual corresponde igualmente a Associação Universal para o Progresso dos Universal, o Corpo Motorizado Pan-Africa- falecer em 1940 em Londres – persistiram primeira etapa do movimento, traduziu-se Negros, e que pretendia aglutinar todos no, o Corpo Juvenil e o Corpo Volante da e colheram a simpatia dos negros norte- na tentativa de líderes e escritores africa- os negros em uma só nação e advogando África Negra. O movimento de M. A. Garvey americanos e de alguns dos líderes africa- nos naturais das Antilhas e dos Estados a “redenção” pelo regresso a África com defendeu, sem sucesso, a ideia de fazer nos como Kwame Nkrumah do Gana, que Unidos de erguer moralmente os negros da o movimento norte-americano “back to “retornar” a África, concretamente para a lhe expressou publicamente gratidão pelo diáspora e de África, destacando-se nelas Africa”, contrapondo ao poder branco um Libéria, trinta mil famílias negras. Contu- papel desempenhado e pela manutenção dois grandes líderes: um negro da Jamaica, poder negro. Inclusivamente chegou a for- do, a falência financeira do movimento e a daquele ideal original. Garvey versus Du Bois OS ESTADOS UNIDOS DE ÁFRICA Em 1 de Fevereiro de 2009 a comunicação social noticiava as declarações do Presidente tanzaniano Jakaya Kikwete, anunciando que a Cimeira da União Africana que acabava de se realizar em Adis Abeba tinha decidido a criação dos “Estados Unidos de África”, dotando o Continente de um governo próprio (similar ao da União Europeia), com autoridade e meios orçamentais para exercer a sua função. E é fácil chegarem até nós posições de dirigentes africanos a proclamarem a necessidade de integração política do Continente. Já o célebre Plano de Lagos de Abril de 1980 – que significou um marco simbólico para a estratégia do desenvolvimento africano – defendia uma comunidade económica continental a caminho da união política. No princípio da década seguinte, em Abuja, na Nigéria, foi perspectivada a criação, até ao final do século, da CEPA – Comunidade Económica Pan-Africana – que nunca foi realidade consistente mas que abriu caminho para o reforço das organizações regionais. A união política subsistia como sonho, que mais tarde se adivinhava em surdina no processo de transformação da OUA em UA, porventura por influência do Coronel Khadafi, conhecido apóstolo da unidade, seja árabe, seja africana. Hoje em dia a argumentação aparece até reforçada quanto à necessidade de integração, uma integração tanto mais urgente quanto o fenómeno da globalização obriga a África a unir-se para participar activamente na gestão dos assuntos mundiais. Dir-se-ia que o ideal pan-africano mantém actualidade. Pura retórica? Afirmações de nostálgicos radicais? Sintoma da fraqueza de um conti- JANUS 2010 anuário de relações exteriores nente em busca de novas energias? A verdade é que persiste o mito do pan-africanismo, ora mobilizador de iniciativas políticas, ora encarado com desdém pelos cépticos. Como é sabido, esse mito pan-africano tem mais de um século de história. As suas origens, curiosamente, vêm do outro lado do Atlântico e parecem seguir uma rota inversa à da escravatura africana: são afroamericanos e caribenhos os primeiros a formular o ideal pan-africano, é dessa diáspora africana que vem o sonho da unidade do continente. Mais: da unidade de todos os negros. Com efeito, os primeiros antecedentes de pan-africanismo têm uma marca acentuadamente racista e preconizam o retorno de todos os negros ao seu continente de origem, refazendo em sentido contrário o caminho dos escravos, sendo a Libéria o primeiro embrião desse retorno destinado a alastrar de modo a conter a “civilização negra”. Esses antecedentes observam-se em Alexander Crummel (1819-1898), afro-americano e pastor protestante formado em Cambridge, que formulou antes de qualquer outro estas teorias, seguido pelo antilhano E. W. Blyden (1832-1912), ambos liberianos de adopção (deve recordar-se que a Libéria é independente desde 1847 e que se constituiu pelo retorno a África de escravos negro-americanos libertos). Cf. ALMEIDA, Érica Reis de, - “O pan-africanismo e a formação da OUA”. In Revista geo-paisagem, ano 6, n.º 12. 2007. Disponível em http://www.feth.ggf.br/África.htm, (consultado em 22/12/2009). O outro líder desta corrente de panafricanismo rácico e que chegou a ser designado de “sionismo negro”, por via da identificação deste ideal com o do povo judeu de retorno à Palestina, seria o escritor e historiador afro-americano natural do Massachusetts, William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), o qual rejeitou a ênfase dada por Garvey à raça negra como factor evidenciador de uma consciência comum, insistindo, e por via deste facto, acompanhando as questões fracturantes da agenda política interna dos EUA no que concerne aos direitos civis, na ideia da igualdade de direitos para os povos de ascendência africana espalhados pelo mundo, incluindo obviamente os negros africanos. Neste sentido Du Bois integra aquela que podemos designar como a segunda corrente do Pan-Africanismo, a corrente política, e em conjunto com o político senegalês Blaise Meio século de independências africanas Fernando Amorim* Diagne seria o responsável pela convocação As ideias e os factos partir de 1957, na sequência da indepen- REDESENHAR AS FRONTEIRAS AFRICANAS? dência do Gana, para uma nova etapa – a da I.ª Conferência Pan-Africana em Paris, em 1918, com o objectivo imediato de impedir a distribuição das antigas colónias alemãs entre as potências aliadas que saíram vitoriosas do conflito. Nos quinze anos seguintes Du Bois continuou a promover conferências similares, em Londres, Lisboa 3.1.2 O reagrupamento de países como modo de evitar a balcanização de África e como tentativa de superar o artificialismo das fronteiras herdades da colonização tem persistido na imaginação de alguns, à margem de qualquer solução realista. A título de curiosidade, pode referir-se o mapa de África redesenhado pelo jurista queniano Makau wa Mutua, publicado no Boston Globe de 22 de Setembro de 1994 e transcrito por Denis-Clair Lambert em “Les catastrophes africaines”. Cf. Mondesfrancophones.com (revue mondiale des francophonies). terceira – caracterizada pela procura e construção de pontes de associação ou mesmo unificação que só a constituição de Estados sem nações parecia, aparentemente, possibilitar, dando assim corpo a tentativas hegemónicas de alguns líderes – conferência do movimento pan-africano africanos como Nkrumah, de construção da liberdade para a África Oriental, Central de um super-Estado africano que pudesse afirmar-se como potência continental e e Meridional – e Nova Iorque, nas quais neARGÉLIA gros da América e das Antilhas tiveram um papel preponderante (Santos, 1969:61-69). interlocutor mundial. Por essa altura o LÍBIA termo Pan-Africanismo evoluiu para um SARA conceito mais territorial, continental e lato, BENIM Segunda etapa e Pan-africanismo político A segunda etapa do Pan-Africanismo ficou EGIPTO abrangendo árabes, berberes e povos do Norte de África, mas passou objectivamen- MALI te também a excluir os negros do Novo ETIÓPIA GANA Mundo, excepto quanto à manutenção SOMÁLIA marcada pelo movimento pela independência nacional dos territórios coloniais como fundamentais passaram naquela data a CONGO caracterizar a agenda do Pan-Africanismo: NÚBIA antecâmara de processos de unificação de laços meramente fraternais. Três eixos a libertação completa do continente política de vários Estados. É fortemente influenciada pela segunda corrente, a do do domínio colonial e europeu onde o ANGOLA Pan-Africanismo político, tendo como mesmo persistisse; a construção de uma política africana comum nas relações com principais representantes H. Sylvester-WilliaKISIWINI ms, G. Padmore e W. E. B. Du Bois, este KUSINI último a fazer a transição de um “sionismo as potências mundiais e restantes Estados; a promoção da unidade intracontinental. negro” para um pan-africanismo político. Esta agenda foi objecto de discussão no de- Importa realçar que em 1945 tinha lugar em curso das conferências patrocinadas pelos Manchester, Reino Unido, a 5.ª Conferência Estados africanos recém-independentes, Pan-Africana, a primeira em que os delegados africanos suplantaram em número Kusini = expressão suaili que significa o Sul. Fonte: LAMBERT, Denis-Clair (2009) - “Les catastrophes africaines”. In Mondesfrancophones.com (revue mondiale des francophonies). Disponível em http://mondesfrancophones.com/espaces/afriques/les-catastrophes-africaines realizadas em Acra, no Gana, em Abril de 1958; em Adis Abeba, na Etiópia, em Junho de 1960; e por delegados dos movimentos os delegados negros norte-americanos e a discussão centrou-se no desenvolvimento do “sionismo negro” e do Pan-Africanismo étnico, quando mesmo, nalguns casos, na independentistas e de libertação (em Acra, de planos práticos e exequíveis de obtenção intelectual (… a 3.ª corrente, que será recusa do multirracialismo. Tendo êxito na em Dezembro de 1958; em Tunes, em da autonomia política através do recurso a analisada em texto distinto), assimilando recusa da tradicional imagem unitária do Janeiro de 1960 e no Cairo, em Março de movimentos de resistência pacífica e pela destas correntes todos os argumentos que continente construída em torno de um con- 1961) que constituíram a Conferência dos organização de partidos políticos de massas. potenciassem a sua força e êxito, o apelo ceito de inferioridade africana e servindo- Povos Africanos (AAPC). ■ Nesta conferência desempenharam papel sentimental da primeira; e o optimismo e lhe de contraponto nacionalista unificador de relevo Kwame Nkrumah (1909-1972) esperança da terceira, o Pan-Africanismo continental, por défice de nacionalismo da Costa do Ouro, ulteriormente Gana, político representa já uma reivindicação estadual que, na verdade constituía o seu os representantes da corrente do Pan- concreta de promoção social e política elo fraco (Lopes, 2010), serviu também Africanismo político, com destaque para que viria a adquirir diferentes matizes na como fonte de afirmação dos novos Estados o jornalista de Trinidad George Padmore América e em África, ganhando no segundo que – equívoco original – proclamaram ab (1903-1959), que mais tarde seria o continente um carácter étnico exclusivista initio a inviolabilidade das suas fronteiras conselheiro de Nkrumah para os assuntos – “África para os africanos” – que excluía as herdadas do colonialismo. africanos, Peter Milliard, da Guiana Inglesa, restantes comunidades dela naturais e que o escritor negro sul-africano Peter Abrahams anuncia, por esta via, a doutrina anticolo- e W. E. B. Du Bois, que acabaria mais tarde nialista que emergiria na Conferência de por fixar residência e naturalizar-se ganês, Bandung e culminaria nos diferentes pro- e falecer em Acra em 27 de Agosto de 1963 cessos de descolonização maioritariamente Alcançadas maioritariamente as indepen- (Santos, 1969). Para além das influências assentes na radicalização do argumento dências, o Pan-Africanismo evoluiu, a Terceira etapa: o mito da unificação continental * com Luís Moita Referências LOPES, C. (2010) – “Políticas e novos cânones do pensamento africano”. In Janus 2010. MATTOSO, J. (1986) – A Formação da Nacionalidade. Lisboa: INCM, p. 7 MIRANDA, J. (1983) – “Nação”. In Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 13, col. 1641-1642. SANTOS, Eduardo dos (1969) – “As conferências do movimento pan-africano da liberdade para a África Oriental, Central e Meridional (P.A.F.E.C.S.A.)”. In Ultramar. Ano IX, n.º 35/36 (1.º e 2.º semestres de 1969), p. 61- 91. TELES, I. Galvão (1971) – “Conceito de Nação: a Nação Portuguesa”. In O Direito, p. 83 e ss.; CAETANO, M. (1967) – Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, p. 467 e ss. 105