UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO E DOUTORADO EM MÚSICA “ENQUANTO ESTE NOVO TREM ATRAVESSA O LITORAL CENTRAL”: PLATINIDAD, POÉTICAS DO DESLOCAMENTO E (DES)CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NA CANÇÃO POPULAR URBANA DE CAMPO GRANDE, MS ÁLVARO SIMÕES CORRÊA NEDER RIO DE JANEIRO, 2011 “ENQUANTO ESTE NOVO TREM ATRAVESSA O LITORAL CENTRAL”: PLATINIDAD, POÉTICAS DO DESLOCAMENTO E (DES)CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NA CANÇÃO POPULAR URBANA DE CAMPO GRANDE, MATO GROSSO DO SUL por ÁLVARO SIMÕES CORRÊA NEDER Tese submetida ao Programa de PósGraduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor, sob a orientação da Professora Drª. Elizabeth Travassos. Rio de Janeiro, 2011 N371 Neder, Álvaro Simões Corrêa. “Enquanto este novo trem atravessa o Litoral Central”: platinidad, poéticas do deslocamento e (des)construção identitária na canção popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul / Álvaro Simões Corrêa Neder, 2011. 2v. ; 30 cm + 1 DVD Orientador: Elizabeth Travassos. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. 1. Música popular - Mato Grosso do Sul - História. 2. Mato Grosso do Sul - Música - Influências latino- americanas. 3. Etnomusicologia. 4. Pósestruturalismo. I. Travassos, Elizabeth. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. III.Título. CDD – 781.63098171 AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, a minha companheira Cristianne, por seu apoio nos muitos momentos difíceis atravessados durante a feitura desta tese, e por sua alegria e bom humor na comemoração dos muitos momentos felizes vividos também neste longo período. Agradeço a minha orientadora, Elizabeth Travassos, e aos professores Samuel Araújo, Silvio Augusto Merhy e Gilberto Luiz Alves, por seu prolongado envolvimento com esta pesquisa, sua doação generosa de tempo para a leitura e suas aprofundadas reflexões, que muito beneficiaram o trabalho como um todo. Agradeço aos funcionários técnico-administrativos do PPGM da Unirio, em especial o Sr. Secretário Aristides Antônio Domingos Filho, que, com sua experiência e conhecimento, muito contribuiu para minimizar os percalços administrativos do percurso acadêmico. Aos meus entrevistados, músicos, compositores, professores, jornalistas e todos os interessados na música e cultura de Mato Grosso do Sul, agradeço por terem partilhado comigo suas reflexões e criações. Aos meus colegas, obrigado pelos momentos de camaradagem e companheirismo. i NEDER, Alvaro S. C. “Enquanto este novo trem atravessa o Litoral Central”: Platinidad, poéticas do deslocamento e (des)construção identitária na canção popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 2011. Tese (Doutorado em Música) – Programa de PósGraduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. RESUMO A suposta “identidade cultural” do Mato Grosso do Sul é definida na atualidade por meio de símbolos rurais como a música “regional” e o Pantanal. Esta identidade é apresentada como “natural” por discursos verbais e musicais que pretendem ser a expressão de uma essência sulmato-grossense. Esta tese partiu da constatação de que, ao contrário, tanto sua música popular urbana – profundamente influenciada por músicas e culturas do Paraguai (polca paraguaia), Argentina (chamamé) e Bolívia – quanto o Pantanal eram, ainda há poucas décadas, recusados como traços identificatórios pela maior parte da população. Assim, sugeriu que podemos estar frente a um processo de “invenção de uma tradição”. Partindo de uma fundamentação teórica transdisciplinar, que reuniu pós-estruturalismo, estudos de música popular, etnomusicologia, história, teoria literária, sociologia e teoria contemporânea, e utilizando o método etnográfico, por meio de observação participante, entrevistas e análise de canções, estudaram-se as relações entre a música popular urbana e os discursos dominantes desde a década de 1960 até a atualidade em Campo Grande. Em razão desta música surgida na década de 1960 ter, além das influências platinas (daí ser denominada, aqui, de Música do Litoral Central, ou MLC), marcas rurais e da contracultura do período, suas ideologias contradiziam aquelas mantidas pelas elites do estado até 1977. Tais elites, em que a classe dos pecuaristas era hegemônica, voltavam-se, ao contrário, aos grandes centros nacionais e internacionais em sua busca por modernização capitalista. Além disso, no plano nacional, a aproximação com as culturas platinas foi diretamente combatida pelos governos federais desde Getúlio Vargas, por razões de segurança nacional e temores de perda de hegemonia das classes dominantes brasileiras. Portanto, constatou-se que a MLC pautava-se, desde sua concepção, por uma preocupação em desrecalcar as vozes silenciadas pelas elites agrárias em sua busca de modernização capitalista e confrontar as violentas contradições da região – o rural e o urbano, o arcaico e o moderno, a América Platina e os centros dominantes brasileiros, o local e o global. Entretanto, com a divisão do MT e a criação do MS em 1977, estas elites agrárias, ascendidas ao controle do novo estado, se viram na necessidade de estimular a ideia de pertencimento a ele. Parte da MLC sofre, então, um processo de cooptação, por meio do qual passa a valorizar aspectos nativistas, o que confirma a hipótese inicial. Não obstante, como parte de setores críticos da sociedade urbana, a MLC problematizou questões étnicas, de gênero e de classe, contribuindo também para deslocar do poder as oligarquias rurais e acelerar contradições entre o capital e o trabalho. Em virtude da pluralidade de posições subjetivas disponibilizadas pela sua intertextualidade, seu papel na transformação social e política do estado como um todo foi, assim, materialmente eficaz, em que pesem suas contradições e o fato de exprimir com destaque o universo cultural da cidade de Campo Grande. Como parte importante desta intertextualidade, o diálogo entre músicas da América Platina, brasileiras e o rock oferece uma identificação desterritorializada ao habitante do MS, que vai de encontro às teses do Estado nacional e ao regionalismo, simultaneamente inscrevendo uma diferença no contexto do mundo globalizado. Identificando-se com estas múltiplas posições, diferentes atores sociais puderam contestar as ideologias dominantes e provocar fissuras na sua hegemonia. Palavras-chave: América Latina – Mato Grosso do Sul – Música popular – Etnomusicologia – Estudos Culturais – Pós-Estruturalismo ii NEDER, Alvaro S. C. “While this new train crosses the Central Seashore”: Platinidad, poetics of dislocation, and indentity (de)construction in popular urban song of Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 2011. Dissertation (Doctorate in Music) – Post-Graduate Program in Music, Center of Letters and Arts, Federal University of the State of Rio de Janeiro. ABSTRACT Mato Grosso do Sul’s alleged “cultural identity” is currently defined through rural symbols, such as “regional” music and the Pantanal. This identity is presented as “natural” by verbal and musical discourses which pretend it to be the expression of Mato Grosso do Sul’s essence. This dissertation started from the assumption that, on the contrary, both its urban popular music – deeply influenced by the musics and cultures of Paraguay (polca paraguaya), Argentina (chamamé), and Bolívia – and the Pantanal were, just few decades ago, refused as identificatory traces by the largest part of the population. Thus, I suggested that we could be witnessing a process of “tradition invention”, and I proposed to investigate the multiple verbal and musical discourses that were problematically unified around this definition. Theoretically based on a transdisciplinary foundation, which connected post-structuralism, popular music studies, ethnomusicology, history, literary theory, sociology, and contemporary theory, this research employed the ethnographic method, through participant observation, interviews, and song analysis, to study the relationships between the city of Campo Grande’s popular music and dominant discourses since 1960 up to the present. Due to the fact that this music had, along with Platinean influences (which elicited my denomination of Music of the Central Seashore, or MLC), rural and 1960’s counterculture marks, it went the opposite way to that looked upon by the élites of the state until 1977. On the contrary, such élites, in which the class of the cattle ranchers was hegemonic, turned themselves to the large national and international centers, in their search for capitalist modernization. Additionally, in the national dimension, approximation with Platinean cultures was strongly opposed by federal government since Getúlio Vargas’ office, due to national security reasons, and the fear, by Brazilian dominant classes, of loss of hegemony. Thus, it was found that this music was guided, since its inception, by a concern in derepressing the voices silenced by the agrarian élites in its search for capitalist modernization, and in confronting the region’s violent contradictions – the rural and the urban, the archaic and the modern, “América Platina” and Brazil’s dominant centers, the local and global spheres. However, with the division of the Mato Grosso state and the creation of Mato Grosso do Sul in 1977, the élites brought to the new state’s control needed to stimulate the idea of belonging to it. Part of this popular music suffers, then, a process of cooption, and becomes nativistic, which confirms the initial hypothesis. Notwithstanding, being part of critical sectors of urban society, MLC problematized issues of ethnicity, gender, and class, contributing, also, to dislocate the rural oligarchies from power, accelerating contradictions between capital and labor. Due to the plurality of subjective positions made available by its intertextuality, MLC’s role in the state’s social and political transformation was, thus, materially efficacious, in spite of its contradictions and the fact that it expresses, primordially, the cultural universe of the city of Campo Grande. As an important part of this intertextuality, the dialogue between musics of Platinean America, Brazil, and rock music offers a deterritorialized identification to the people of MS, which collides with nationalist and regionalist agendas, simultaneously inscribing a difference in the context of globalization. Identifying themselves with these positions, different cultural agents could contest the dominant ideologies and provoke cracks in their hegemony. iii Keywords: Latin America – State of Mato Grosso do Sul – Popular music – Ethnomusicology – Cultural Studies – Poststructuralism iv NEDER, Alvaro S. C. “Enquanto este novo trem atravessa o Litoral Central”: Platinidad, poéticas do deslocamento e (des)construção identitária na canção popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. 2011. Tese (Doutorado em Música) – Programa de PósGraduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. RÉSUMÉ La supposée "identité culturelle" du Mato Grosso do Sul est définie dans l'actualité au moyen de symboles rurales comme la musique "régional" et le Pantanal. Cette identité est présentée comme "naturelle" dans des discours verbaux et musicaux qui ont l'intention d'être l'expression d'une essence sud-mato-grossense. Cette thèse part de la constatation, au contraire, qu'aussi bien sa musique populaire et urbaine - profondément influencée par des musiques et cultures du Paraguay (la polka du Paraguay), l'Argentine (chamamé) et la Bolivie - que le Pantanal étaient, il y a peu de décennies, refusés en tant que traces identificatoires par la majeur partie de la population. Ainsi, cette thèse suggère que nous pouvons être en face d'un processus d' "invention d'une tradition". En partant de fondements théoriques transdisciplinaires, qui rejoignent le post-structuralisme, les études de musique populaire, l'ethnomusicologie, l'histoire, la théorie littéraire, la sociologie et la théorie contemporaine, et en utilisant la méthode ethnographique, au moyen de l'observation participante, interviews et analyse de chansons, nous avons étudié les rapports entre la musique populaire urbaine et les discours dominants depuis les années 60 jusqu'à l'actualité à Campo Grande. En raison du fait que le surgissement de cette musique aux années 60 a eu, au-delà des influences platines (d'où sa dénomination, ici, de Música do Litoral Central [Musique de la Côte Central], ou MLC), des marques rurales et de la contre-culture de la période, ses idéologies entraient en contradiction avec celles maintenues par les élites de l'état jusqu'à 1977. Ces élites, où la classe des éleveurs de bétail était hégémonique, se retournaient, au contraire, vers les grands centres nationaux et internationaux en leur quête de modernisation capitaliste. Par ailleurs, au plan national, l'approche avec les cultures platines a été directement combattue par les gouvernements fédéraux depuis Getúlio Vargas, pour des raisons de sécurité nationale et crainte de la perte d'hégémonie par les classes dominantes brésiliennes. Donc, nous avons constaté que la MLC se basait, depuis sa conception, sur une inquiétude de de-refouler les voix mises en silence par les élites agraires en quête de modernisation capitaliste, et de confronter les violentes contradictions de la région - le rural et l'urbain, l'archaïque et le moderne, l'Amérique Platine et les centres dominants brésiliens, le local et le global. Cependant, avec la division du MT et la création du MS en 1977, ces élites agraires, élevées au contrôle du nouvel état, se sont trouvées dans la contrainte de stimuler l'idée d'appartenance à cet état. Une partie de la MLC subit alors un processus de cooptation, par lequel se met en valeur des aspects nativistes, ce qui confirme l'hypothèse initiale. Et pourtant, parce que faisant partie de secteurs critiques de la société urbaine, la MLC a problématisé des questions ethniques, de genre et de classe, en contribuant aussi au déplacement du pouvoir des oligarchies rurales et à l’accélération des contradictions entre le capital et le travail. En vertu de la pluralité des positions subjectives mises en place par son intertextualité, de son rôle dans la transformation sociale et politique de l'état comme un tout, elle a été, ainsi, matériellement efficace, en dépit de ses contradictions et du fait d'exprimer en premier l'univers culturel de la ville de Campo Grande. En tant que partie importante de cette intertextualité, le dialogue entre musiques de l'Amérique Platine, brésiliennes et le rock offre une identification déterritorialisée à l'habitant du MS, ce qui fait face aux thèses de l'État national et au régionalisme, en inscrivant simultanément une différence dans le contexte du monde globalisé. v En s'identifiant avec ces multiples positions, des différents acteurs sociaux ont pu contester les idéologies dominantes et provoquer des fissures en son hégémonie. Mots-clés : Amérique Latine – Mato Grosso do Sul - Musique populaire - Ethnomusicologie – Études culturelles – Post-structuralisme vi SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 1. CAPÍTULO 1. “SONHOS GUARANIS”: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO SUL DE MATO GROSSO - 31 Questões principais - 35 - O sul de Mato Grosso nos séculos XVI, XVII e XVIII − formação e características - 40 - Decadência das jazidas de Cuiabá – o sul desperta interesse - 48 - A erva-mate: advento de uma riqueza extrativa e transformações resultantes - 54 - 2. CAPÍTULO 2. “VIDA CIGANA”: POÉTICAS DO DESLOCAMENTO EM CONSTRUÇÃO Gêneros musicais trazidos pelo processo de colonização - 98 - 98 - Música popular e projeto de modernização I: o Rádio Clube e as rádios, desde os anos 20 até os anos 50 106 Música popular e projeto de modernização II: os anos 50 - 110 - Os anos 60 e o desenvolvimento de uma forma singular da cidade - 123 - Discursos contrastantes na MLC: regionalismo versus deslocamento - 183 - 3. CAPÍTULO 3: “ONDE VOCÊ QUER IR, MEU BEM?”: INDETERMINAÇÃO E COOPTAÇÃO NAS ONDAS DO NOVO ESTADO - 216 Convulsões do divisionismo e a procura da “identidade sul-mato-grossense” - 216 - Fessul e Festão - 244 - O colapso do governo Harry Amorim (1979) - 254 - A invenção do Pantanal e os problemas ecológicos - 258 - MLC e efervescência cultural na década de 1980 - 271 - O Prata da Casa Prata da casa – o álbum - 284 - 296 - 4. CAPÍTULO 4. “LITORAL CENTRAL” OU “BRASIL POEIRA”? - 332 - Pantanal: governo, turismo, iniciativa privada e visibilidade nacional para a MLC - 332 - A novela Pantanal - 335 - Peña Eme-Ene - 338 - Canções e sentido Geraldo Espíndola Paulo Simões Geraldo Roca Almir Sater - 368 - 370 - 381 - 389 - 397 - Terra da Jacarelândia: críticas e movimentos de ruptura. - 407 - América Platina e a incorporação da diferença - 427 - 5. CONCLUSÕES - 433 - 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DEPOIMENTOS - 463 - Discografia 7. ANEXO – CULTURA, “IDENTIDADE”, DISCURSO E PÓSESTRUTURALISMO - 473 - - 475 - Introdução - 475 - Da “identidade” à identificação - 477 - Do estruturalismo ao pós-estruturalismo - 481 - Discurso, produção/ reprodução da desigualdade e intervenção social - 495 - Diferentes visões sobre a cultura: o culturalismo, o marxismo economicista, Gramsci e o pósestruturalismo - 508 - Meios de comunicação de massa e a questão da “manipulação” – uma análise pós-estruturalista - 519 - Indeterminação e propósito: para que serve ser diferente? - 529 - LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Delimitado pelos rios Paraguai e Ivinhema, o território paraguaio hoje localizado no MS - 47 - Figura 2 - Ervais nativos do sul do MS (Fonte: Nelson Werneck Sodré apud Arruda, 1986, p. 213) Figura 3 - Capa do LP Tetê e o Lírio Selvagem - 56 - 229 - INTRODUÇÃO No dia 23 de Setembro de 2006, o serviço de notícias via internet MS Notícias, sob o título “No próximo domingo, show reúne três gerações da música no MS”, faz a seguinte observação: “Nomes como Geraldo Roca e Paulo Simões, autores de ‘Trem do Pantanal’, música que é considerada o hino do Mato Grosso do Sul, também são destaques do show (...)” (Arruda, 2006). Efetivamente, esta paradigmática canção, e outras do movimento nomeado pelo jornalista e pesquisador musical José Octávio Guizzo como moderna música popular urbana do MS (Guizzo, 1982, p. 5), são geralmente aceitas como representativas da identidade 1 cultural do estado. 2 As maneiras pelas quais foi construída e se dá esta representatividade, entretanto, difere entre os grupos sociais e ideológicos, explicitando alianças, contestações, divergências e conflitos, que serão discutidos ao longo desta tese. 1 O termo “identidade”, que será muitas vezes empregado, tem sido usado de diversas e conflitantes maneiras, muitas das quais associadas ao essencialismo e/ou ao regionalismo, sendo, portanto, necessário conceituá-lo de imediato com o sentido que será utilizado aqui. Etimologicamente, “identidade” deriva do latim identitas, provavelmente uma fusão de idem, “o mesmo”, e entitas, “entidade” (Identity, 1997). Como tal, em uma perspectiva pós-estruturalista, como a adotada nesta tese, o termo “identidade” exprime um conceito errôneo, pois um sujeito dividido (entre um efeito de consciência, provocado pelo discurso, e seu inconsciente) não poderia, em qualquer circunstância, ser idêntico a si próprio. Entretanto, o termo é utilizado mesmo assim, em virtude de sua ampla aceitação em volumosa e importante bibliografia nas ciências sociais e humanidades. Para o pós-estruturalismo, o conceito mais adequado às vicissitudes da produção (sempre precária, não essencial, problemática e descentrada) do sujeito seria “subjetividade”. Isso porque este coletivo teórico tende a compreender o que se chama de “identidade” como um conjunto de diferentes “posições subjetivas” assumidas temporariamente pelo sujeito ao ativá-las por intermédio do discurso – inclusive os discursos verbais e musicais veiculados pelas canções. Portanto, ao conceito estático de “identidade” é preferida uma política de representação, que permite a contínua desestabilização das ideologias dominantes por intermédio de práticas de intervenção ativa dos sujeitos e grupos não-hegemônicos sobre as modalidades de representação, neste caso, com destaque para a canção. Para uma discussão mais aprofundada sobre as premissas teóricas empregadas nesta tese, consultar o Anexo – Cultura, “identidade”, discurso e pós-estruturalismo. 2 O vocábulo “estado”, ao designar uma unidade federativa, será grafado em caixa baixa. Quando se referir ao conjunto de instituições que controlam uma nação, terá sua letra inicial em caixa alta (“Estado”). -2O movimento em questão teve início no final dos anos 60 e pleno desenvolvimento nos anos 70, chegando ao auge de sua popularidade nos anos 80 e sendo atuante até o momento, quando, inclusive, é apropriado pelas gerações mais jovens. Nunca articulado como tal por meio de manifestos, organizou-se de maneira flexível em torno dos compositores Geraldo Espíndola, Paulo Simões e Geraldo Roca, cuja produção se insere na formação discursiva analisada aqui. Propostas importantes e individualizadas, como as do Grupo Acaba, desde o princípio esforçaram-se por diferenciar-se das já diversas concepções musicais e culturais dos três compositores, mas não chegaram a constituir um movimento à parte e mantiveram-se envolvidas na mesma categoria, instrumentalizada sempre que projetos individuais ou coletivos e séries de shows e gravações são implementados. Dada a diversidade que caracteriza o movimento, poderia se pensar que, talvez, o único traço comum entre todos os seus participantes pudesse ser a tematização de Mato Grosso do Sul em suas letras e/ou por intermédio do emprego de gêneros musicais ou instrumentos musicais aí encontrados. No entanto, há uma quantidade de canções importantes neste repertório que não utilizam qualquer traço regional reconhecível – caso de, por exemplo, “Uma pra estrada” (Geraldo Roca), “Mochileira” (Geraldo Roca), “Abril” (Celito Espíndola e Antonio Porto), “Vida bela vida” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) e muitas outras. Sendo assim, desde o início, este movimento se caracteriza por sua ausência de unidade estética, estilística e ideológica, o que é significativo no contexto de uma discussão sobre (des)construção identitária. Embora a denominação cunhada por Guizzo seja mencionada ocasionalmente, principalmente na imprensa escrita e livros, há várias outras e pouco consenso quanto a seu uso. Entretanto, o nome genérico de “música regional” ganhou, com o tempo, larga aceitação entre jornalistas, compositores, músicos e o público em geral, sendo amplamente utilizado. Esta categoria nativa, portanto, se reveste de importância, por indicar articulações múltiplas, -3especialmente relações entre o local e o nacional e o local e o global, e vínculos entre setores urbanos e agrários. O nome parece sugestivo de um desejo nativo de marcar uma diferença, pois o mais superficial exame dessa música evidencia tensões entre elementos regionais, ideologias nacionalistas e gêneros transnacionais articulados por intermédio da globalização capitalista. Outra indicação para as possíveis razões do rótulo “música regional” são as ligações entre essa música e a atividade pecuária. Conforme discutiremos, são fortes as relações ideológicas entre essa música nascida em um estado agrário e a configuração das forças produtivas nesse mesmo estado. 3 A base econômica pecuária que constituiu e constitui esta unidade federativa será estudada como um dado, visto que qualquer elemento, cultural ou outro, aí encontrado, não pode ser sequer pensado sem levá-la em consideração – mesmo que a ela se oponha. Entender a configuração própria que assume a atividade pecuária no sul do antigo Mato Grosso exige compreender a intensa busca por desenvolvimento tecnológico e econômico chefiada pelos fazendeiros. A pecuária, nessa parte do estado, orientou-se desde cedo para a busca de inovações que dinamizassem a economia local, no que foi extremamente bem sucedida. Promovendo o melhoramento genético de seus rebanhos e investindo em sua nutrição, os pecuaristas aumentaram o efetivo de bovinos do estado para a expressiva cifra de 3 A relação entre as estruturas do campo musical e as estruturas de poder não são compreendidas nesta tese como homológicas. Na perspectiva pós-estruturalista, aqui adotada, a produção, tanto das instituições, como das práticas sociais e culturais, como dos próprios sujeitos, é realizada por discursos. Os discursos são materiais porque levam as pessoas a praticar atos materiais condizentes com eles. Ao fazê-lo, os discursos (e as pessoas, movidas por estes discursos) constroem a estruturação social, as práticas e instituições. Ao mesmo tempo, dada a pluralidade de discursos circulantes na sociedade, tanto dominantes como subalternos, tanto integrados como contestadores, verifica-se a possibilidade de oposição aos discursos dominantes no interior de cada discurso, logo de cada prática, instituição e sujeito. A canção popular, enquanto instância discursiva, possibilita o embate de discursos conflitantes, e adquire materialidade na medida em que reforça o status quo ou impele a transformações sociais e políticas. Consultar o Anexo – Cultura, “identidade”, discurso e pós-estruturalismo. -422.325.663 cabeças, colocando-o em terceiro lugar entre as unidades da federação, com a participação de 10,9% no quantitativo nacional – dados de 2009 (IBGE, 2011a). A pecuária constituiu-se, assim, no sustentáculo da modernização capitalista na região. Ao contrário, as forças urbanas do século XIX, os grandes comerciantes de Cuiabá e Corumbá, que eram ligados ao capital financeiro internacional, passado um período de predominância e forte exploração ao pecuarista, tornaram-se decadentes na segunda década do século XX (Alves, 2005, p. 30). O novo comércio que passa a existir em Campo Grande, concomitante à gradativa transformação dessa pequena vila em centro político e econômico após 1914, é inteiramente dependente da atividade pecuária. Com o controle das forças produtivas mantido pelos pecuaristas, a ênfase na modernização, proposta por eles, influenciou decisivamente a ideologia da cidade de Campo Grande, escolhida como sede para as articulações dessa classe. Esta peculiar configuração local assumida pelas forças produtivas do campo e da cidade deve ser mantida em mente, pois há forte relação entre a orientação modernizante dos pecuaristas, a ideologia desenvolvimentista da cidade de Campo Grande e a própria busca, por parte dos compositores e músicos aqui em foco, de manterem-se atualizados com relação às últimas tendências culturais internacionais e nacionais. Haverá, no entanto, contradições entre esta mentalidade modernizante e os artistas, com relação à consideração e inclusão, em seu projeto, das culturas rurais e latino-americanas. Não poderia deixar de haver, também, contradições entre a base econômica e política pecuarista e os profissionais liberais e comerciantes de Campo Grande. Esta cidade, que, a partir do início do século XX, desenvolverá uma economia em que cada vez mais predominará o setor de serviços, inicialmente estava voltada inteiramente para o atendimento das necessidades do campo e das fazendas. Gradualmente, no entanto, começa a desenvolver um potencial de produção e consumo próprios que lhe propiciaria certa autonomia com relação ao interior e ao mundo agrário. Surge, então, desses profissionais -5liberais, comerciantes e funcionários públicos, um projeto de urbanização, atualização técnica e modernização produtiva e cultural voltado para Campo Grande, que seria parcialmente dissonante em relação às necessidades dos pecuaristas. Sendo ideologicamente identificados aos setores urbanos, os compositores também manifestariam em suas canções tais conflitos em relação aos fazendeiros. Em última análise, esta atuação da “música regional” terá influência nas transformações políticas e sociais que, entre as décadas de 1970 e 1990, terminaram por destituir do poder os pecuaristas. Devido a toda essa ênfase no cosmopolitismo e no desenvolvimentismo, entendidos como necessidades locais históricas do desenvolvimento capitalista, liderado pela economia agrária – especialmente pecuária –, a preocupação com o aspecto regional surge como interrogação. Para os três compositores iniciais do movimento, o rock e a contracultura – recebidos pela via midiática – foram influências fundamentais, o que coloca em primeiro plano o interesse nos fluxos globais, econômicos e culturais. Há, inclusive, depoimentos, a serem reproduzidos adiante, em que criticam explicitamente a noção de regionalismo (Simões: “Algumas músicas (...) que tentavam denunciar a situação envolvendo o planeta inteiro e não só um estilo regional de criação era o que nos interessava!”; Geraldo Espíndola: “Eu acho que regional é coisa pra jornalista catalogar”; apud Simões, [1984?]). A visada regional, portanto, não era reclamada, inicialmente, pelos participantes do movimento. Na verdade, passa gradualmente a ser aceita à medida que se estabelece a divisão do estado, em 1977. A partir desse momento, ficam mais evidentes as demandas colocadas sobre os agentes culturais, por parte dos pecuaristas, na busca de estabelecer um consentimento ideológico através de toda a sociedade, que possibilitasse sua governança. As contestações a estas demandas também contribuem para manter o foco no regional. Assim, o tema do divisionismo merecerá atenção concentrada, devido à sua importância para esta música e cultura. Causa centenária no sul do antigo Mato Grosso, o -6divisionismo se apoiou justamente em um regionalismo exacerbado, que visava defender e justificar a ideia de separação “do norte” 4 enumerando as diferenças entre as duas regiões e salientando as singularidades do sul. Conforme argumenta a historiadora Marisa Bittar (2009a e 2009b), a divisão se apresenta como uma articulação das elites agrárias sulistas visando reter o poder político e econômico sobre o sul por meio da transformação dessa região em um estado independente. No entanto, apesar de estratégico para o projeto de poder dos proprietários de terras, o regionalismo, com seu caráter estático, vai de encontro ao dinamismo da ideologia desenvolvimentista desses mesmos proprietários. Por supor possível narrar a realidade local sem se relacionar ao estágio de desenvolvimento do capitalismo global, o regionalismo entra em contradição com a necessidade da atividade pecuária em manter-se atualizada com as últimas inovações técnicas e tecnológicas. Ao contrário, foi e é necessário, para o progresso dessa atividade, reportar-se continuamente ao mercado global, que é também a instância que adquire sua mercadoria. Sendo assim, a questão da “música regional” se insere no interior – e expressa a tensão – de um amplo processo contraditório, cuja análise e interpretação são justamente o objetivo principal desta tese. 5 4 O antigo estado do Mato Grosso uno era composto, na verdade, de três regiões bastante distintas em seus aspectos: o sul, ocupado pelo atual Mato Grosso do Sul, o norte, com características derivadas de sua proximidade com a floresta amazônica, e o centro, ocupado pela capital Cuiabá. No entanto, Cuiabá terminou por ser referida como o “norte”, como consequência da polarização divisionista que a opôs ao sul, dominado historicamente por Campo Grande. 5 A contradição é compreendida, aqui, a partir da matriz psicanalítica, como fruto do embate entre pulsões destruidoras e criativas, inerentes aos sujeitos inseridos na cultura, e, a partir da teoria marxista, como o que poderia levar a uma transformação do modo de produção (a propósito, consultar o Anexo). Justifica-se, assim, o esforço analítico em não tentar resolver as contradições, testemunhando-se, ao contrário, sua proliferação. Pressupõe-se, nesta tese, que as práticas culturais tornam-se tão mais transformadoras quanto mais contraditórias sejam. Por outro lado, por não haver determinação da “superestrutura” ideológica pela “infraestrutura” econômica, as canções possuem seu próprio nível de determinação, que diz respeito à construção das subjetividades. Em razão disso, não devem ser buscadas relações de pertencimento de canções a classes sociais. Ao contrário, importam os efeitos das canções sobre as diversas lutas ideológicas, por intermédio do oferecimento de posições subjetivas, que podem ser politicamente inertes ou mobilizadoras. Se for assim, a medida do potencial transformador das canções é a quantidade de pessoas que envolvem, e a capacidade dessas práticas de gerar polêmica e debate entre as pessoas envolvidas. Desta maneira, embora seja inegável que a -7Adicionando-se entre as múltiplas contradições já apontadas até aqui, o advento dessa “música regional” – termo que, como vimos, interessa às elites pecuaristas para consolidação de sua hegemonia após a divisão, e, simultaneamente, expressa contestações a esse interesse – se deu em um dos momentos históricos em que as populações do então Mato Grosso manifestaram sua rejeição aos grandes proprietários rurais e pecuaristas, tradicionais comandantes da política estadual, bem como à ditadura. Isso se deu em 1965, ano em que o político sulista Pedro Pedrossian (PSD) foi eleito governador do estado, concorrendo com o tradicional fazendeiro Lúdio Martins Coelho (UDN), candidato do regime militar. Desde o início de sua campanha, Pedrossian, um engenheiro de origem humilde, se voltava contra “as oligarquias e estruturas feudais que sempre dominaram Mato Grosso”, e contou com o apoio da esquerda, do PTB e dos ferroviários do estado. Esta campanha se insere num período, que se estende dos anos 1960 aos 1970, caracterizado por uma grande efervescência cultural no sul de MT. Tal efervescência caracterizou-se pela criação da universidade estadual (depois federal), faculdades e festivais de música e teatro afinados com os movimentos estudantis de oposição à ditadura no Rio de Janeiro e São Paulo. É de se notar que os envolvidos nesses festivais fossem, justamente, os profissionais liberais, funcionários e comerciantes da cidade de Campo Grande, que são os setores de serviços já descritos como “música regional” não participe da construção das lutas dos setores mais oprimidos da população sulmato-grossense, estando mais envolvida com os conflitos entre setores médios e dominantes em torno de projetos divergentes de poder regional e nacional, seus significados não se esgotam aí. Isso porque, em primeiro lugar, verificamos, por depoimentos, que o movimento atingiu e transformou pessoas de segmentos sociais subalternos, provocando efeitos nestes segmentos, portanto. Em segundo lugar, porque o estudo desse movimento evidencia, justamente, a contradição entre diferentes projetos: se são identificáveis tais conflitos entre setores médios e dominantes do estado, a eles se superpõem inúmeras outras polêmicas, envolvendo a inclusão de saberes tradicionais em um projeto alternativo de modernização, a preocupação com etnias indígenas, a integração da América Latina com o questionamento da hegemonia econômica, política e cultural dos grandes centros brasileiros, e, a partir do ideário da Nova Esquerda e dos Estudos Culturais, a reformulação dos papéis sociais das mulheres e dos homens, dos costumes e dos usos dos corpos – polêmicas constitutivas dessa música que abrangem virtualmente todas as classes sociais, e que foram especialmente significativos para as pessoas, submetidas a uma vida culturalmente empobrecida em um estado destinado a uma vocação agropecuária por arranjos entre elites regionais e nacionais. -8interessados na busca de um caminho singular para a urbanização da cidade, independente das direções impostas pela economia agrária. Foi justamente nesses festivais que nasceu a música aqui estudada, a partir da atuação conjunta de Paulo Simões e Geraldo Espíndola, época em que começam a compor juntos, adicionando, logo depois, Geraldo Roca e outros a seu círculo. Portanto, esta música é uma manifestação que surge de um momento crítico, em que as populações locais buscavam um caminho independente das estruturas sociais agrárias. A relativa independência da “música regional”, em suas origens, face a tais estruturas, se percebe, também, a partir do fato de que o movimento divisionista, nesta época, encontrava-se desativado e incapaz de motivar a população. A nova música urbana manteria esta marca crítica, ainda que não permanecesse impermeável às múltiplas mediações regressivas recebidas após a divisão do estado, assim como a própria sociedade. Esta viu-se envolvida pelos esforços, por parte das elites agrárias, de construção de um consenso, visando à hegemonia que sustentasse sua ascensão ao poder, a partir desse momento. Sintetizando, seria possível dizer que, organizada por setores médios em conflito com uma burguesia agrária hegemônica, essa música evidencia uma polifonia de vozes, muitas delas críticas. Percebe-se tal polifonia desde a instância da produção: não há qualquer possibilidade de atribuir uma ideologia nativista a esta música como um todo. Os discursos das canções sobre as quais nos deteremos apresentam diferentes posições subjetivas ao se relacionarem com o material regionalista. Tais posições se estendem do elogio sentimental e melancólico à crítica irônica, passando pela relativização do regional pela via do nacional e mesmo da problematização da ideia de um projeto nacional, principalmente por meio do rock e das músicas paraguaia, boliviana e argentina. No plano da recepção, a intertextualidade (cf. Kristeva) resultante da mistura de gêneros musicais e literários, ideologias e papéis sociais constitutiva dessa música atuou no sentido contrário à fixação de uma ideologia dominante. Diferentes posições estavam inscritas -9no texto musical e linguístico, fragmentos da ideologia. Ao identificar-se simultaneamente com diferentes posições, o receptor foi desconstruído enquanto uma “identidade” fixa, que é o que mantém as instituições em seu lugar (consultar o Anexo – Cultura, “identidade”, discurso e pós-estruturalismo). Desestabilizada esta “identidade” atribuída pelos sistemas de representação dominantes, o sujeito pôde construir-se performativamente da maneira desejada. Este processo produziu polêmicas e conflitos que entraram em choque, continuamente, com a ideologia, e transformaram-na, à medida que agregou mais pessoas por intermédio de uma política de representação. Isso foi efetivamente realizado, tal como poderemos acompanhar a partir dos discursos de diferentes atores, bem como de suas trajetórias, sugestivas de transformações subjetivas significativamente disseminadas na sociedade que, conforme sugiro, tiveram influência sobre o fim da hegemonia agrária no estado, bem como para a transformação dos papéis sociais de homens e mulheres. O questionamento à identidade regionalista, demandada pelos pecuaristas, e mesmo à identidade nacional, se verifica, por exemplo, pelo nome proposto por Geraldo Roca, Música do Litoral Central, que parece bastante estimulante. Ele enfeixa alguns temas fundamentais dessa música, tal como a compreendo. Em primeiro lugar, esse provocativo “litoral central” a que Roca se refere deriva da chamada “música litoraleña argentina”, música da região conhecida como “litoral argentino”, ou seja, a bacia do rio da Prata. Esta bacia possui importância primordial para o estado, pois, em situação de isolamento, era por seus rios que recebia mantimentos, fazia comércio e intercâmbios culturais. Tal situação se manteve até 1914, quando a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil chega a Campo Grande, produzindo uma alteração radical na posição política e econômica dessa cidade e dos pecuaristas no balanço de forças regional. Os profundos e prolongados intercâmbios possibilitados pela bacia do rio da Prata se davam, em grande parte, entre os vários países e regiões latino-americanos banhados por ela. - 10 Isso levou à formação da chamada América Platina, unidade cultural que envolve desde o MT, MS, o oeste do Paraná, o oeste de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. O enorme território da América Platina situado dentro do Brasil se diferencia e se opõe ao Brasil entendido como Estado-Nação, supostamente delimitado de maneira clara com relação a seus vizinhos sul-americanos, o que, a meu ver, coloca problemas ao projeto nacional. Pouco se sabe, na literatura acadêmica, sobre este Brasil interiorano e fronteiriço à América Platina, descrito em forma de blague por Geraldo Roca como o Brasil que, “da Rodovia Castelo Branco para cá, (...) vai ficando cada vez mais mexicano, até que ele vira o México”. Este desconhecimento, por si só, já é significativo. Por que nós, brasileiros em geral, acadêmicos ou não, sabemos tão pouco a respeito dos outros países sul-americanos? Não estaria este desconhecimento vinculado a relações de poder? Afinal, nos habituamos a pensar nesses países como símbolos do “atraso”, como se nada – pelo menos da área da cultura e da política – pudesse vir daí que nos servisse. Ao contrário, os olhares das populações nacionais, mesmo do MS, se voltam para os centros dominantes brasileiros – notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo – e internacionais (EUA e Europa). Parece, então, pertinente, propor uma pouco frequente reflexão sobre as relações de uma parte fronteiriça do Brasil com estes países, tão próximos, histórica e geograficamente, no entanto, tão distantes de nossos corações e mentes. Com suas estereotipadas linguagens imagéticas, sonoras e conceituais perpassando as mídias, as tecnologias, a legislação e as decisões mais amplas, o Brasil que se apresenta como modelo de modernidade e desenvolvimento passa na TV Globo como se expressasse um “caráter nacional”, recalcando processos culturais singulares, como os discutidos pela música aqui tratada. Mantendo-se uma visão crítica sobre a alta concentração, no Brasil, dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de corporações, busca-se, - 11 também, compreender o problema da inserção nacional da “música regional” em termos de enfrentamentos entre diferentes discursos na cultura brasileira. Não obstante, é de se notar que uma quantidade extremamente significativa de brasileiros seja, até hoje, mais profundamente influenciada em seus modos de sentir e pensar pela enorme cultura, mistura de global, nacional, caipira e plateña, que se desenvolve em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Essa música, assim, serve também como uma reflexão sobre uma sensibilidade diferente, que se desenvolveu ao longo do litoral central representado pelo Rio da Prata, e sobre a qual pouco se sabe fora dali. Em vista disso, a Música do Litoral Central merece ser estudada, também, enquanto busca de direções que orientassem um processo de urbanização, pensado a partir de uma posição periférica, marcada pelo isolamento no interior da América Platina. Essa proposição interferiu num debate que envolveu o comércio, a arquitetura, a medicina, enfim, todos os setores de serviços de Campo Grande, empenhados, em certo momento histórico, numa procura de superação das estruturas sociais produzidas pela economia agrária. O litoral central, então, implicita complexas relações entre o local, o nacional, o sul-americano e o global, que passamos a discutir. Tais relações são de constante tensão entre o Estado nacional brasileiro e o local sulmato-grossense, considerando que esta região “onde o Brasil foi Paraguai” (“Sonhos guaranis”, de Almir Sater e Paulo Simões) há muito inspira preocupações nacionalistas de cunho geopolítico. Desde Mario Travassos, em sua influente e seminal obra Projeção continental do Brasil ([1931] 1938), se encontra formalizada uma inquietação com o Oeste brasileiro, que, em virtude de sua posição limítrofe a outros países, poderia se tornar uma potência regional hegemônica. A Constituinte brasileira de 1934, por sua vez, concedeu bastante atenção às fronteiras internacionais, assim como o Estado Novo varguista, que, - 12 justamente motivado por tais preocupações com a segurança nacional, instituiu o Território Federal de Ponta Porã em 1943, na divisa do sul do estado com o Paraguai. Já José de Melo e Silva alertava veementemente em sua obra Fronteiras Guaranis, de 1939, contra o que denominou o perigo da “guaranização” da população de fronteira, e sugeria providências urgentes (Silva, 2003 [1939]). Cearense que se estabeleceu em Bela Vista, fronteira do então Mato Grosso com o Paraguai, no ano de 1932, para exercer o cargo de juiz de direito, Melo e Silva se tornou importante cronista da vida na fronteira sulista, sendo autor de obras consultadas com interesse pela historiografia contemporânea do estado. A seguir, a questão passa a ser matéria de estudos da Escola Superior de Guerra, tornando-se estratégica para a ditadura militar implantada em 1964, o que levaria, finalmente, à divisão do estado (Bittar, 2009a, 263-314). Assim, ao fazer o elogio da cultura latinoamericana, em geral, e paraguaia, em particular, na constituição do sul-mato-grossense, a Música do Litoral Central entra em contradição com o projeto nacional. No mesmo movimento, problematiza o divisionismo – que, entretanto, apoia, em certas de suas vertentes –, pois este se concretizou, em última análise, justamente por ir ao encontro das teses do estado nacional, encampadas pela ditadura. Apesar da importância fundamental das trocas materiais e culturais permitidas pelos rios com os países platinos, tais trocas não eram restritas aos vizinhos sul-americanos. Pelo contrário, naquele momento em que o Brasil não era industrializado, grande parte dos bens de consumo e produção era importada de países da Europa, América do Norte e outros continentes. Não apenas aqueles produtos de alta distinção, mas também todos os que se fizessem necessários às populações humildes. Eram famosas, por exemplo, as lâminas alemãs de excelente aço da marca Solingen, que atendiam tanto as necessidades dos trabalhadores braçais da agricultura quanto as dos burgueses. - 13 O ponto principal, aqui, é a tensão provocada, pela globalização, nos projetos regionalista e nacionalista, bem como a diferença buscada pela Música do Litoral Central como resultado destas tensões. Por isso, o Litoral Central é também metáfora da articulação entre o global e o local que preside a Música do Litoral Central desde muito antes de sua concepção, explicitando suas problemáticas e conflitivas conexões com o avanço do capitalismo planetário e as transformações culturais mundializadas, das lâminas Solingen ao rock’n’roll, passando pelas músicas e culturas latino-americanas. Uma característica importante das músicas e culturas do sul do antigo MT advém da mencionada situação de isolamento histórico do estado e das características ideológicas das novas classes dirigentes depois de 1914, os pecuaristas. Como em outros lugares do Brasil, os proprietários rurais tornaram a viagem extremamente valorizada, visando continuamente a modernização, bem como o que vem de fora, o novo. Como norma, as famílias de fazendeiros enviavam seus filhos para estudar nas grandes capitais brasileiras, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Este traço biográfico é bastante comum nas elites dirigentes do MT e MS. Justamente devido a isso, a filiação aos partidos criados após 1945 inverteu-se no sul do antigo MT. Enquanto o PSD, no restante do Brasil, atraía as oligarquias rurais, e a UDN representava os setores liberais urbanos de oposição a Vargas, na região correspondente ao atual MS a base eleitoral da UDN eram as oligarquias rurais, o que fez com que os setores liberais urbanos se vinculassem ao PSD. Esta configuração, encontrada em muitos municípios e até estados brasileiros, é, pelo menos no contexto aqui abordado, inteiramente dependente da busca de modernização por parte dos pecuaristas. Ao enviar seus filhos para estudar nos grandes centros brasileiros, colocaram-nos em contato com a política urbana desses centros, o que os levou a desenvolver simpatias e alianças com as lideranças da cidade. Vespasiano Barbosa Martins, Fernando Corrêa da Costa, Wilson Barbosa Martins, Lúdio Coelho, Rachid Saldanha Derzi, José Manoel Fontanillas Fragelli, todos viveram e estudaram fora do estado, - 14 vários se formaram profissionais liberais, todos eram vinculados às oligarquias rurais, todos se tornaram políticos importantes no sul do antigo MT/MS, e foram os organizadores da UDN nesta região. A importância e valorização conferida à viagem, por parte dos pecuaristas do sul do MT, torna-se, assim, uma contraditória e possível explicação para a derrota desta classe na eleição mencionada anteriormente, em que obteve vitória o pessedista engenheiro Pedrossian, com o apoio do PTB e dos trabalhadores urbanos, entre eles os ferroviários, contra o udenista fazendeiro Lúdio. A viagem e a abertura às informações que vêm de fora tanto confirmaram o poderio econômico e político da classe dos proprietários rurais, quanto forneceram os instrumentos para a afirmação de uma burguesia urbana, com sua própria ideologia, em muitos casos discordante daquela das elites agrárias. Estas contradições são importantes para compreender o surgimento e desenvolvimento da Música do Litoral Central. Em viagem, experimentam-se as delícias e angústias de uma identidade precária. Isto já se verifica a partir mesmo das afirmações feitas nos parágrafos anteriores, em que nos damos conta de que os filhos dos próprios pecuaristas entrariam em conflito com a ideologia de seus pais a partir dos contatos realizados em viagem. Sendo assim, a identidade precária produzida pela viagem é, segundo sugiro, uma marca fundamental desta geografia humana que foi captada de maneira sensível pela Música do Litoral Central, sobredeterminada por uma complexa confluência de fatores, citados a seguir. Inicialmente, desde o século XVI até o final da Guerra da Tríplice Aliança, ocorreu a impossibilidade de radicar-se aí algum grupamento humano de forma fixa e estável, sendo um terreno disputado por diversas etnias indígenas, espanhóis e portugueses. Após os genocídios paraguaio e indígena, verificou-se na região uma impressionante sucessão e simultaneidade de correntes migratórias de pessoas de diferentes locais do Brasil, da América do Sul e do mundo. Tudo isso produziu uma sensação de desenraizamento, de ausência do estabelecido, que - 15 possibilita a ideologia modernizante dos pecuaristas, com seu peculiar desapego aos métodos tradicionais e mesmo à memória. Processamento criativo de todos estes discursos circulantes, a Música do Litoral Central apresenta caráter nitidamente indeterminado, embora constantemente em conflito com tendências reificantes. Esta música se insere nos debates travados na cidade de Campo Grande, principalmente pelos profissionais liberais, funcionários e comerciantes em busca de um caminho singular para a urbanização e o desenvolvimento da cidade. Estes debates incluem a participação de certos membros das classes subalternas e discussões sobre modelos alternativos de modernização, não desenvolvimentistas. Incluem, também, preocupações com uma redefinição das lealdades e alianças envolvendo a América Platina e os grandes centros nacionais, além de outras polêmicas. Vários elementos em suas letras e músicas apontam para essa indeterminação, principalmente a dúvida, a incerteza, o movimento constante e o deslocamento de sentidos (que não se confunde com o movimento, dizendo respeito à ressignificação). Articulando essa procura pela modernização da cidade à situação histórica da região, de “atraso”, isolamento, identidade em trânsito, inacabamento e provisoriedade, e à noção da identidade precária experimentada em viagem – elemento que assegura o poder econômico e político aos pecuaristas, e, simultaneamente produz uma classe de profissionais liberais urbanos, comerciantes e funcionários que disputarão a eles este poder – desejo inserir aí a metáfora do litoral central, por condensar parte importante dos sentidos e significados veiculados pela música que estamos tratando. Devido a isso, adotaremos a sugestão de Roca, abreviando-a por meio da sigla MLC. A suposta representatividade da MLC após a divisão do estado em 1977, que passa a ser defendida pela imprensa, discursos oficiais e não-oficiais, artistas e intelectuais, não é, entretanto, assumida por todos os segmentos sociais do estado. Os setores populares, mesmo - 16 da cidade de Campo Grande, parecem identificar-se mais com as duplas sertanejas pop, de sucesso atual (em oposição às duplas caipiras e sertanejas mais antigas) e com o fenômeno dos modernos grupos de baile sertanejos-axé music (os chamados “baileiros”). Por sua vez, na atualidade, a maior parte dos jovens das classes médias, mesmo de Campo Grande, parecem definir-se musicalmente por uma infinidade de gêneros musicais nacionais e internacionais, entre os quais figura com destaque, mais uma vez, o fenômeno sertanejo pop, em especial os baileiros e o dito “sertanejo universitário”. Isto será relevante para caracterizar o discurso musical da MLC vis-à-vis discursos ideológicos e disputas por poder. Analogamente, a música e cultura de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, das quais é ponta de lança a MLC, diferem sobremaneira daquelas do restante do estado, na mesma direção sugerida no parágrafo anterior. Basicamente, Campo Grande adota um perfil mais urbano, cosmopolita e tecnologizado, alinhado com sua situação de centro decisório, onde residem tanto os empresários rurais detentores de propriedades localizadas no restante do estado quanto a maior parte dos profissionais liberais, funcionários e comerciantes urbanos. Estes, a um só tempo necessitam das receitas geradas pela agropecuária – muitas vezes até estão vinculados às oligarquias rurais por parentesco – e manifestam ambiguidade frente à sua estruturação social e ideológica. A cidade usufrui da economia agrária do interior, mas não se envolve diretamente com ela, assumindo a função de fornecedora de produtos e serviços, com destaque para o comércio (um dado fundamental, que deve ser mantido em mente, é o de que a participação da agropecuária no PIB [Produto Interno Bruto] do estado vem decrescendo: de 46,7% em 1980, passou a 16,6% em 2008, principalmente devido ao crescimento da participação dos serviços [IBGE, 2011b e 2011c]). Já o interior possui uma realidade fortemente agrária, o que transparece em suas preferências culturais. Embora a MLC consista, muitas vezes, de canções com forte inspiração musical caipira e paraguaia, é inegável que busque a distinção (cf. Bourdieu, 2007), pois nunca se - 17 confunde com uma sensibilidade popular propriamente dita. De maneira geral, evita o canto a duas vozes e o histrionismo característico dessas músicas. Quanto aos padrões de emissão, voltam-se para aqueles mais assemelhados à ausência de grandiloquência da bossa nova, da Jovem Guarda e da Tropicália, embora percorram, também, todo o arco que vai daí ao dramático. Com relação às letras, tendem a ser bastante elaboradas, à maneira da MPB, e mesmo em seus momentos mais despretensiosos, não se confundem com o universo cultural dos trabalhadores rurais, nem dos moradores urbanos com identificações rurais. Com isso, a MLC se afasta da comunicabilidade direta buscada pelos apreciadores da música sertaneja pop contemporânea, resultando em uma popularidade bastante pequena dessa música no restante do estado. Este perfil da MLC fez com que incorporasse discursos em conflito entre os setores médios urbanos nas décadas de 1960 e 1970, a respeito de um caminho que levasse à urbanização e desenvolvimento da cidade e à modernização de suas estruturas sociais, marcadas pelo conservadorismo e o patriarcalismo agrário. Deve-se ressalvar que tal modernização visava a atender às necessidades capitalistas de desenvolvimento na região, mas, contraditoriamente, também envolvia discursos políticos, inclusive de membros das classes subalternas. Estes discursos envolviam o combatido pertencimento do MS às culturas platinas e questões de gênero, sexualidade, corpo, liberdade, ecologia, além de preocupações com a inserção dos sujeitos locais nos planos nacional e global, a partir dessa realidade periférica e rural. As vicissitudes deste projeto, em que forças urbanas evidenciam simbiose e mesmo dependência da economia rural, mas, ao mesmo tempo, buscam questionar as bases ideológicas condicionadas por esta economia – que são hegemônicas no restante do estado –, são, em grande parte, as vicissitudes da MLC. Segundo espero demonstrar, entretanto, aquele objetivo foi conseguido, a despeito de todas as contradições apresentadas por esta música. E, - 18 entre estas contradições, está o fato de ter trazido as vozes silenciadas – rurais e paraguaias – para os debates culturais do estado, além de ter contribuído para a transformação dos papéis sociais disponíveis. Ao mesmo tempo, a partir da valorização contracultural ao altiplano andino, da histórica presença cultural do Paraguai, e da orientação do artista plástico e intelectual Humberto Espíndola, a MLC propõe uma nova geografia do poder. Essa geografia conflitiva preconiza o deslocamento das alianças produzidas com São Paulo e Rio de Janeiro pelas elites pecuárias a partir da chegada dos trilhos a Campo Grande, em direção aos países platinos. Neste sentido, a MLC propõe uma integração transnacional que abrange MS e MT, indo em direção contrária ao divisionismo e às lutas por hegemonia travadas tanto pelos EUA como pelo Brasil em relação à América do Sul. A propósito, ficou evidente, nas entrevistas realizada para esta tese, que muitos dos sul-mato-grossenses que já tinham desenvolvido uma identificação com a ideia de ser mato-grossenses à época da divisão, foram contrários a ela. Teremos, inclusive, oportunidade de notar a relativização do divisionismo na temática pantaneira de Geraldo Espíndola e do grupo Acaba. A polêmica platina, enquanto integradora dos países vizinhos e dos dois estados divididos, será, também, definidora dos rumos do movimento. Outro acontecimento marcante para a MLC será o advento da própria divisão, em que a burguesia agrária ascende ao controle da nova máquina administrativa. Este é mais um episódio controvertido, entre muitos, da história do MS, que, sugere-se, poderia, talvez, explicar algo sobre a também controversa história da MLC e sua trajetória de muito prestígio na capital mas pouco sucesso econômico e popularidade no estado como um todo. Não obstante a diversidade de modelos musicais fora e dentro da cidade de Campo Grande a que foi feita menção, causa espécie que, quando entrevistados ou consultados a respeito de que música exprime culturalmente o MS, muitos daqueles citados jovens e - 19 membros das classes populares refiram a MLC. Verifica-se aí uma discrepância entre popularidade e prestígio. A MLC não usufrui, no momento atual, especial popularidade (medida tanto positivisticamente, em níveis de vendagem, frequência a shows e aparição nos meios de comunicação de massa, quanto etnograficamente, em termos de evidência nas práticas musicais e discursivas da sociedade como um todo). No entanto, possui todo este prestígio, sendo referida por diversos membros da sociedade campo-grandense, de diversas classes sociais, como representativa da cultura do estado. Mesmo que não seja a música de suas preferências ou a que escutam habitualmente – o que é um dado da maior importância. Como compreender essa discrepância entre popularidade e prestígio da MLC? Esta dinâmica implica que é necessário estudar os elementos históricos, sociológicos, econômicos e culturais do estado, desde o início de sua colonização no século XVI, para melhor se compreender as disputas entre capital e interior, nas quais a MLC desempenhou importante papel. De que as elites dominantes continuamente manifestam sua aprovação à MLC na atualidade e confirmam seu prestígio, parece não haver dúvidas. O poder público explora em eventos oficiais as mesmas conexões entre essa música e a identidade do sul-mato-grossense, como se pode ver na seguinte notícia, sobre o lançamento, no MS, da XIV edição dos Jogos Abertos Brasileiros de 2005: Um público estimado em cinco mil pessoas, incluindo atletas das delegações dos estados de Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul, autoridades e comunidade esportiva presenciaram o acendimento da pira olímpica, [e] várias apresentações (...) musicais (como a do coral da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, que interpretou o Hino Nacional Brasileiro e a música Trem do Pantanal). Em nome do governador Zeca do PT, o secretário Dirceu Lanzarini entregou flores à prefeita Maria da Saudade Medeiros Braga (PSB), de Nova Friburgo (RJ) (...) Estiveram presentes na solenidade de abertura os secretários Dirceu Lanzarini (Juventude e do Esporte e Lazer) e Matias Gonsales (Saúde); os deputados estaduais Antônio Carlos Arroyo (PL), Paulo Corrêa (PL) e Pedro Teruel (PT); além do representante da superintendência do Banco do Brasil (parceiro dos jogos) em Mato Grosso do Sul, João Santana; o representante da Setass (Secretaria de estado de Trabalho, Assistência Social e Economia Solidária), Afonso Areco; (...) o diretor de esportes do estado do Paraná, Lester Pinheiro; (...) a prefeita de Nova Friburgo, Maria da Saudade Medeiros Braga, e outras autoridades. (Junqueira, 2006; grifo meu) - 20 Fica confirmada, então, a aceitação, por parte das elites decisórias, de “Trem do Pantanal” como um “hino de Mato Grosso do Sul”, por sua execução, em cerimônia oficial, ao lado do Hino Nacional Brasileiro. Terá sido essa aceitação influenciada pela apropriação desta música e movimento cultural pela população? É importante notar que o estado possui um hino oficial, com música de Radamés Gnattali e letra de Jorge Antonio Siufi e Otávio Gonçalves Gomes. No entanto, este hino, como se pode ver, não foi aceito pelos sul-mato-grossenses como representativo de sua identidade, sendo largamente desconhecido pela população. Por que razões e por quais caminhos “Trem do Pantanal” ascende à situação de hino, enquanto o hino propriamente dito não é especialmente promovido ou recebido como símbolo do MS? Esta situação atual de aceitação privada e pública da MLC como representação identificatória confirma uma tendência já anotada em 1982 por Guizzo: Trem do Pantanal, composição de [Paulo Simões] e de Geraldo Roca, hoje transformada numa espécie de hino da moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul, possui (...) forte apelo popular e inusitado poder de comunicabilidade. (Guizzo, 1982, p. 27) No entanto, há uma grande distância em constatar que a canção é uma “espécie de hino da moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul”, e afirmar que é “considerada o hino do Mato Grosso do Sul”, tal como hoje é a formulação hegemônica, expressa na primeira citação desta introdução. Inclusive, tal formulação foi legitimada por meio de uma eleição direta em todo o estado, em que esta música foi escolhida como a mais representativa do MS por votação popular, em 2001. Portanto, a distância que medeia entre a fala de Guizzo, tentativamente emprestando sua reputação de intelectual à MLC como produto cultural digno do interesse da população, e o estabelecimento incontestável do prestígio dessa música, é a medida de um processo cultural e histórico que nada tem de natural, como se é levado hoje a pensar. - 21 O fenômeno surgido em torno desta música não seria, assim, o desenvolvimento espontâneo de supostas raízes, tal como é construído pela recepção posterior à divisão (incluindo-se aí a poderosa mediação exercida pelo próprio Guizzo), mas envolveria, segundo a hipótese inicial deste trabalho, complexos embates por uma definição identitária envolvendo vários segmentos sócio-econômico-político-culturais do estado (com destaque para a oposição capital/ interior), constituindo-se em uma construção, na realidade, bastante surpreendente. Ainda mais surpreendente porque, apenas dez anos antes do momento em que Guizzo escrevia, o movimento da MLC ocupava uma posição melhor descrita como “marginal” na cultura do estado dos anos 70. Este momento foi retido pela memória da professora Maria da Glória Sá Rosa, pesquisadora da música campo-grandense, quando, em artigo em que historia a moderna música urbana do estado, lembra: “Houve época em que (...) os compositores eram ironizados por uma população voltada somente para o lucro (...)” (Sá Rosa, 1999, p. 221). Tendo uma relação de proximidade com a comunidade musical de Campo Grande desde os anos 70, àquele tempo ainda como músico amador, mas com contato direto e vínculos de amizade pessoal com vários dos compositores e a realidade da MLC, não poderia deixar de confirmar seu caráter marginal naquele instante, tal como detectado por Maria da Glória. Que, por sinal, além de intelectual das Letras sempre à frente das movimentações culturais do estado, é mãe de um compositor, cantor e instrumentista da MLC, o precocemente falecido citarista e bluesman José Boaventura. Esta marginalidade pode ser confirmada também pelos próprios compositores do movimento. Celito Espíndola, irmão de Geraldo, explica que a maneira que muitos dos músicos encontraram para buscar a promoção dessa música e a formação de um mercado para ela não foi com shows autorais em teatros. Ao invés do caminho individual, inviável frente às dificuldades de aceitação de sua música, passaram a atuar de forma coletiva (uma importante - 22 característica da MLC), por meio dos bares da cidade, introduzindo, aos poucos, uma ou outra composição, entre os sucessos apreciados nesses ambientes: [Em] Campo Grande, [nessa] época [final dos anos 1970], (...) não havia... bem, em Campo Grande, até hoje, não há um teatro municipal. Você imagina na época. Então, começamos este trabalho pela noite. Tocando nos bares. Trabalho de formiguinha, de começar a tocar, toca num bar aqui, toca noutro ali (...) Isso começa a ser disseminado a partir de uma estratégia pensada de que não poderíamos tocar a noite inteira nosso repertório. Era um cantando a música do outro, misturada a outras nacionais e internacionais. (Espíndola, C., 2009) Já Paulo Simões, que como vimos é um dos compositores de “Trem do Pantanal” juntamente com Geraldo Roca, diz a respeito de suas conversas sobre música com o parceiro: Ficamos [Simões e Roca] anos e anos, de 72 a 78 discutindo coisas mais ou menos assim: por que não cuidar da fazenda do avô, ser um advogado ou um jornalista de sucesso, em vez de ficar insistindo nessas músicas, que ninguém quer ouvir? Quem iria perder seu tempo com misturas esquisitas, exóticas, ouvindo Délio e Delinha, Dino Rocha, Bob Dylan, Louis Armstrong ou Johnny Alf, como fazíamos? (Simões apud Sá Rosa et al, 1992, p. 78) Estes testemunhos demarcam a grande distância que separa a realidade dos anos 70 daquela documentada pelos relatos contemporâneos. Em vista disso, a naturalidade com que tais relatos atribuem à população do MS em geral o sentido identificatório veiculado por uma canção contracultural, celebratória dos alternativos hábitos vagamundos dos mochileiros, e enaltecedora de elementos humanos e culturais atribuídos pelas elites ao “atraso” (o paraguaio, o boliviano, o caipira, o índio) não deixa de causar espécie. Que complexos processos levaram a esta radical transformação? A tentativa de responder a esta pergunta conduziu a um mergulho nos múltiplos discursos – verbais e musicais – de diversos atores engajados na luta de construir a cultura de Campo Grande e Mato Grosso do Sul, que abrangeu produção, mediação, mediatização e recepção. Querer compreender como essa música saiu da relativa marginalidade, nos anos 1970, passando à condição de poderoso elemento definidor de grande parte da sociedade, nos anos 1980 e 1990 (mesmo sem gozar de popularidade massiva), levou a entender um contexto extremamente diversificado. Tal contexto inclui continuadas e insistentes contestações a este suposto papel - 23 sintético/ sincrético desempenhado pela MLC, surgidas de múltiplos lugares – notadamente de músicos e agentes culturais unicamente identificados com a existência urbana, desinteressados da realidade interiorana e não convidados para os círculos dos financiamentos oficiais. Portanto, o quadro em que se insere a MLC é complexo, produzido por projetos e motivações conflitantes e mesmo contraditórios de diferentes grupos, que se lançaram a um embate com resultados inesperados para todos. Tentativas de simplificar esse processo seriam contraproducentes. Adequadamente tratado, o problema revela múltiplas faces. Como já dito, uma polifonia de vozes deseja se fazer ouvir, e saber ouvi-las, acredito, é não reduzi-las a polos dicotômicos. Não só, como sugiro, existem relações entre a MLC e uma formação ideológica que se organizou em torno da cooptação das populações do estado para o projeto político divisionista das elites da cidade de Campo Grande, por meio da articulação de elementos culturais dessas populações (principalmente as músicas e temáticas das canções paraguaias, caipiras, gaúchas). Teria essa música ainda, como também já afirmei, relação com a problematização das identidades sociais sul-mato-grossenses, tradicionalmente subordinadas a uma rígida hierarquia social e de poder, mediada pelo patriarcalismo e pela propriedade da terra. Ela envolve, ainda, diferentes discursos sobre a modernização, tanto conservadores quanto críticos, excludentes e includentes, voltando-se para os grandes centros brasileiros ou virando-lhes as costas para propor uma integração da América Platina, combatida no plano nacional e internacional pelas forças em disputa por hegemonia. As características construtivas peculiares da MLC privilegiam a construção de uma persona poética que mantém relações com aquela construída pela música caipira, mas diverge dela em certos aspectos centrais, que dizem respeito ao contínuo deslocamento de sentidos (ressignificação). Se ambas se caracterizam pela itinerância, o sujeito da MLC se diferencia por sua intertextualidade (cf. Kristeva) peculiar. A este processo construtivo denominei de - 24 poéticas do deslocamento, que produzem uma desconstrução da identidade unitária, e, consequentemente, uma abertura para o questionamento potencial de todas as hierarquias e subordinações. Portanto, é buscando reconhecer e analisar os diferentes e contraditórios discursos – inclusive musicais – em torno da MLC, como símbolo identificatório, por parte da intelectualidade e de outros setores sociais do estado, que se pode começar a recuperar a historicidade do movimento e sua significância para a imagem que o sul-mato-grossense acredita possuir, deseja construir ou poderia inventar. Como já foi dito, estes discursos devem ser compreendidos nos contextos histórico, social, cultural, econômico e político do estado, pois retiram seu sentido destes contextos. O caminho aqui percorrido, em termos teóricos, está detalhado no Anexo – Cultura, “identidade”, discurso e pós-estruturalismo. Quanto à metodologia, envolve um panorama histórico e uma etnografia musical de Mato Grosso do Sul e, mais especificamente, da cidade de Campo Grande. Esta etnografia foi construída com referência a longos anos de observação participante, nos períodos em que residi nesta cidade, e a cerca de cem horas de entrevistas com músicos, compositores, intelectuais, produtores culturais e secretários de cultura do município de Campo Grande e do governo do estado. As entrevistas foram realizadas no período de dezembro de 2009 a fevereiro de 2010. Foram também realizadas análises das canções. Tendo em vista o período histórico em que a MLC produziu suas mediações mais centrais para a vida cultural do estado – ou seja, as décadas de 1980 e 1990 – a opção metodológica que fundamentou as análises musicais consistiu do corpus de canções gravadas pelos compositores e alguns intérpretes. Ou seja, uma vez que, nessa época, não havia se consolidado o hábito atual, de ouvir música popular quase sempre em associação com a imagem, optou-se por analisar quase exclusivamente gravações de áudio. - 25 Esta análise se centra em elementos tradicionais da música – melodia, harmonia, modo, ritmo, timbre, entre outros – e também nas letras, considerando que estas canções e seus sentidos se disseminaram, principalmente, em situações auráticas. Ou seja, disseminaram-se por meio de performances ao vivo, em geral em ambientes intimistas, em que os artistas iam transmitindo suas criações a um círculo relativamente pequeno de amigos, e, gradualmente, a espaços médios (“barzinhos”) e teatros. Durante toda a década de 1980, foram bastante raras as gravações, mesmo dos compositores mais consagrados, que começam, apenas, a lançar seus álbuns solo por volta da década de 1990 (com certas exceções, como no caso de Almir Sater, Tetê Espíndola e Geraldo Roca). Devido a isso, considerou-se que as principais mediações exercidas por estas canções não se apoiaram de maneira principal na tecnologia, o que fez com que se colocasse em primeiro plano, nas análises, as categorias musicais que veicularam sinais diacríticos (isto é, características que os integrantes desse movimento construíram para se diferenciar das músicas existentes até seu surgimento). Também em termos metodológicos, optou-se por discutir os projetos que primeiro disponibilizaram a MLC em um âmbito mais amplo, por meio de concertos ao vivo e também em mídia gravada, que consistiram, principalmente, de coletâneas. Em geral, como o pioneiro Prata da Casa (1982), eram iniciativas da Universidade Federal do MS (UFMS). No entanto, todo o cuidado deverá ser tomado para não entender semelhantes iniciativas institucionais como decorrência de um projeto ideológico unificado. Muitas vezes encontraremos indícios de construção da MLC como símbolo identitário do MS por meio da atuação isolada de indivíduos que, lutando contra toda sorte de adversidades, e tendo alguma influência em certo meio cultural ou instituição, buscavam impor sua visão pessoal – terminando por consegui-lo, embora de maneira incompleta, fazendo concessões ou se deparando com dificuldades técnicas. - 26 Devido a esta complexa dialógica entre o subjetivo e o institucional, uma atenção especial deverá ser aqui dedicada à figura do mediador, entendido como pessoas ou instâncias que, transitando entre esferas diferentes, contribuíram para afirmar a MLC junto ao público mais amplo, adicionando mediações específicas que participaram da construção dos sentidos do movimento. Neste sentido, merecerão atenção especial, como mediadores, o cineasta Candido Alberto da Fonseca, a professora Maria da Glória Sá Rosa, o artista plástico Humberto Espíndola, a compositora Lenilde Ramos, a animadora cultural Margarida Neder, idealizadora da Peña Eme-Ene, e os meios de comunicação de massa, com destaque para a novela Pantanal, que catapultou para o sucesso um dos compositores da MLC, Almir Sater. O sucesso de Almir como compositor e intérprete da MLC em uma novela de grande popularidade nacional, bem como o fato de que os outros compositores do movimento, vistos por seu público como tão criativos quanto o violeiro, não conseguiram atingir a popularidade com sua música, convidam à investigação de suas possíveis razões. Quais eram as características da MLC e do regionalismo pantaneiro passíveis de interessar o público dessa novela? Quais eram as características do estilo de Almir que possibilitaram seu sucesso? Inversamente, quais os traços estilísticos dos outros compositores e intérpretes que impediram sua popularização junto ao “público nacional”? Estas indagações estão vinculadas a uma pergunta mais abrangente: por que não deu certo? Por que esta música que tem tantos atributos valorizados pela MPB mais ampla (“sofisticação” harmônica, melódica, poética, etc.) não se tornou popular realmente em todo o país? Por que, mesmo em Campo Grande, após um período referido como sendo particularmente popular, nos anos seguintes à divisão do estado, sua popularidade arrefeceu, restando apenas o prestígio? Assim, todas estas perguntas colocadas nesta Introdução visam balizar o percurso que passamos a percorrer, visando ao exame etnográfico das relações estabelecidas entre a MLC e - 27 significados sociais e culturais relevantes para o estudo da ainda pouco explorada realidade local. A tese apresenta, em seu Capítulo 1 (“Sonhos Guaranis”), um panorama histórico, geográfico, político, econômico, social e cultural do povoamento da região que hoje constitui o Mato Grosso do Sul desde o século XVI, visando apresentar informações imprescindíveis para a compreensão cultural das canções a serem analisadas. Dentre as mais importantes destas informações, figura a longa história do divisionismo, que pode ser traçada desde, pelo menos, a tentativa de implantação do chamado Estado Livre de Mato Grosso, ou República Transatlântica de Mato Grosso, em 1892. Outros temas relevantes são: os entraves à colonização branca, a partir do século XVI, com a tardia definição da potência colonizadora que manteria a posse da região e as tentativas indígenas de manutenção do território livre; a Guerra da Tríplice Aliança, a partir do século XIX; o monopólio da exploração da área aproximadamente equivalente ao atual MS por uma única empresa multinacional, a Companhia Matte Larangeira; e a canalização das receitas estaduais com impostos e arrendamentos pagos pela Companhia para o “norte”, isto é, o Executivo e Legislativo estaduais, situados em Cuiabá. Paralelamente, e inter-relacionado a estes fatos, neste século XIX há o conflito entre comerciantes, detentores de hegemonia, e pecuaristas pioneiros descapitalizados, com o recalcamento destes últimos. Todos estes fatores impediram o desenvolvimento do capitalismo na região, e é justamente esta necessidade, imposta pelo sistema predominante, que impelirá a classe pecuarista à busca de modernização produtiva, expansão econômica e hegemonia política. Tais elementos serão determinantes para a constituição da MLC e de seus discursos de reforço e contestação dos discursos dominantes, com marcantes repercussões sociais, que serão os temas dos capítulos seguintes. No Capítulo 2 (“Vida cigana”) será traçado um panorama da gradativa conquista de espaços pela classe dos pecuaristas, com a predominância de seus discursos na cidade Campo - 28 Grande, escolhida pelos fazendeiros como seu centro político e econômico. Tais discursos, desenvolvimentistas e modernizantes, enfatizavam, como modelos, os centros brasileiros com os quais os pecuaristas mantinham alianças (notadamente, São Paulo e Rio de Janeiro). Firmemente estabelecidos institucionalmente na vida do estado, estes discursos passaram a influenciar, decisivamente, as populações de Campo Grande, que, desde então, buscam continuamente sua atualização com relação às metrópoles nacionais. Surge, aí, a possibilidade de mapear estes discursos a partir das preferências musicais dessas populações, bem como de sua maneira de delimitar, nos bailes da cidade, repertórios musicais vinculados às ideias de “tradição” e “modernidade”. Torna-se, assim, possível confrontar tais discursos com aqueles propostos pela MLC como um conflito proposto pelo movimento, já nos anos 1960, quando surge, atraindo críticas ao realizar a fusão dos gêneros sertanejos, platinos, nacionais e transnacionais. O capítulo finaliza com o levantamento dos elementos constituintes das poéticas do deslocamento propostas pela MLC, a que seu título fez referência. O Capítulo 3 (“Onde você quer ir, meu bem?”) reflete sobre o processo de cooptação sofrido pela sociedade sul-mato-grossense a partir da efetivação da criação do novo estado em 1977. Ocorre, então, um agendamento6 da questão da “identidade cultural” do MS, o que leva a uma virtual monopolização deste tema nas diversas pautas culturais – especialmente comunicacionais, políticas e musicais. Este agendamento é, posteriormente, reforçado pelas graves ameaças à ecologia do Pantanal e, de maneira vinculada, pelo surgimento do turismo como alternativa econômica para empresários, fazendeiros e governo. Todos estes determinantes são absorvidos pelo processo de produção de consenso implementado pelos 6 O “agenda setting” é uma hipótese contemporânea da Teoria da Comunicação, mais sofisticada do que a superada “teoria hipodérmica”, segundo a qual as mídias teriam o poder de impor às populações o que pensar. A teoria do agendamento propõe, ao contrário, que, à força de impor, com insistência, determinados assuntos nas pautas comunicacionais, os media “são capazes de, a médio e longo prazos, influenciar sobre o quê (sic) pensar e falar (...) Ou seja, dependendo dos assuntos que venham a ser abordados – agendados – pela mídia, o público termina, a médio e longo prazos, por incluí-los igualmente em suas preocupações. Assim, a agenda da mídia de fato passa a se constituir também na agenda individual e mesmo na agenda social” (Hohlfeldt, 2007, p. 191, grifos no original). - 29 proprietários rurais alçados ao comando do Executivo estadual, em busca de hegemonia. Examinando o impacto destas mediações sobre a produção, mediatização e recepção da MLC, o capítulo finaliza com a análise do álbum Prata da casa, fundamental para verificar este impacto sobre os diálogos e polêmicas lançados pelo álbum seminal do movimento. Finalmente, o Capítulo 4 (“Litoral central” ou “Brasil poeira”?) interpreta o contraste entre diferentes proposições para a música popular urbana de Campo Grande. Verifica-se, nessa música, uma oscilação entre duas posições básicas. Uma delas é a de procurar uma especificidade local a partir de sua realidade subalterna, no interior do Brasil, junto a países marginalizados no continente, propondo uma contra-hegemônica integração latino-americana. A outra é a de integrar-se ao modelo construído e historicamente aceito pelo consumo cultural dos públicos “nacionais”, a que devem enquadrar-se as produções provenientes do vasto interior do Centro-Sul. A partir desta constatação, discute-se sua relevância para uma crítica cultural da música da região estudada. Esta Introdução não poderia terminar sem que se fizesse uma ressalva, e um apelo à compreensão do leitor. Vários dos temas aqui tratados são bastante comuns a muitas outras regiões e culturas: por exemplo, a importância de rios, de trens e de outros meios de transporte; as tentativas das elites governantes de impor símbolos de unificação e identidade local, regional e nacional, como hinos; as polarizações de poder, semelhantes às encontradas entre Campo Grande e Cuiabá, presentes, por exemplo, entre Rio de Janeiro e São Paulo, Nova York e Los Angeles, Londres e Liverpool; as articulações e conflitos entre o local, o nacional e o global. A ausência de indicações, neste sentido, no corpo desta tese, poderia levar o leitor, inadvertidamente, a pensar que o autor presume que todos estes temas são unicamente encontrados no território e culturas aqui abordados. No entanto, isto se explica pela preocupação em evitar uma dispersão da atenção do leitor e uma expansão desenfreada destas páginas rumo a ramificações laterais. Buscou-se, assim, focalizar a realidade do Mato - 30 Grosso e Mato Grosso do Sul, com o objetivo de entrever as fugidias e problemáticas relações culturais que permitem a esse território suas diferenças e uma articulação particular de objetos e tratamentos, sem que isso implique na defesa de uma suposta originalidade dos temas e conflitos aí encontrados. - 31 - 1. CAPÍTULO 1. “SONHOS GUARANIS”: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO SUL DE MATO GROSSO Como foi dito na Introdução, a compreensão da música popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul passa pelo entendimento abrangente de vários elementos da história, economia, sociedade e cultura deste estado, todos muito evidentes e marcantes nesta música. Vários desses elementos importam na medida em que foram responsáveis pela colonização tardia da região e pelo estado arcaico da economia local – do ponto de vista das necessidades do capitalismo –, ao se chegar ao século XX. É contra este estado de coisas que se insurgem os pecuaristas, neste momento, propondo um discurso desenvolvimentista que se tornará dominante em Campo Grande. Centro de poder para onde convergem os pecuaristas, esta cidade terá influência decisiva também sobre o restante do sul do MT, futuro MS. 7 Entretanto, enquanto as elites agrárias buscavam a hegemonia, essa mentalidade desenvolvimentista buscou se afirmar através da repressão ao diferente, o índio, o paraguaio, o boliviano e o rural, de maneira geral. À medida que esta hegemonia se estabelece, os proprietários de terras buscam integrar todo o sul do estado visando o sucesso do projeto divisionista. Incorporando tanto os discursos dominantes quanto suas contestações, a MLC, contraditoriamente, incorpora uma apologia ao latifúndio, sua crítica irônica e o primeiro momento em que uma música feita na cidade de Campo Grande inclui o diferente recalcado 7 Como é ressaltado no Anexo, nunca existe unidade discursiva. Ou seja, os discursos dominantes dos pecuaristas nunca seriam os únicos. Sempre há a possibilidade de contestação, e a eleição de 1965 seria bem um exemplo disso. No entanto, se o conceito de “discurso dominante” não implica em univocidade, tampouco impede que tais discursos, ao predominar nas instituições (Escola, Direito, Igreja, etc. – ou seja, nos Aparelhos Ideológicos de Estado, cf. Althusser) exerçam o poder de maneira razoavelmente coerente aos interesses que os sustentam. - 32 às preocupações cosmopolitas e de desenvolvimento. Vê-se, portanto, que é necessário compreender as condições históricas locais, para que se possa entender o surgimento e transformações da MLC. Retrocedendo ao século XVI, o desenvolvimento local aos moldes colonialistas encontrou, como grande empecilho, a dificuldade e demora na definição de qual potência confirmaria a posse do território, se Espanha ou Portugal. Durante séculos, a região que hoje é o Mato Grosso do Sul foi virtualmente desabitada, em função da insegurança de se viver sob constante ameaça de assaltos, seja de espanhóis, seja de portugueses-brasileiros. O interesse da Coroa portuguesa se intensifica após 1719, quando ouro é descoberto no norte, em Cuiabá, mas, ainda assim, o sul permaneceu virtualmente abandonado. Nessa mesma época, os temíveis guerreiros índios Guaicuru ainda mantinham com altivez sua dominância nessa região, exercendo-a na forma de rápidas incursões, o que era mais um elemento a desestimular a fixação de colonos. Justamente por apresentar qualidades valorizadas de combatividade e poder, os Guaicuru viriam a ser, posteriormente, peça chave nos debates identitários que se seguiram à criação do estado do MS em 1977, o que justifica adicionalmente um rápido exame de sua atuação. Outro grupo indígena também importante para esses debates sobre a singularidade do novo estado é o Guarani. Aqui, sua importância se prende não à sua belicosidade, mas ao fato de que se incorporou à cultura dominante, por via de sua absorção e redução pelos jesuítas, plasmando-a com seus traços de maneira evidente ainda hoje, com grande influência sobre o MS e a MLC. A Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) é, por sua vez, relevante para os debates identitários pós-divisão por várias razões. Inicialmente, por confirmar, por fatos históricos, a noção de que parte do MS foi Paraguai, e, em seguida, por explicitar o processo de destruição, tanto da nação paraguaia, quanto dos indígenas que se envolveram na guerra. A visão crítica - 33 deste processo está presente nas canções da MLC, as quais romperam o silêncio em torno desse genocídio. Utilizando gêneros paraguaios e tratando da cultura deste país vizinho, a MLC pôs a nu o imaginário local recalcado, já que, efetivamente, uma grande parte desta área, de campos de ervais nativos, permaneceu sob domínio paraguaio até o fim da guerra (com o constante assédio dos Guaicuru), e, até hoje, possui grande influência de suas culturas. Antes disso, este território estava sob domínio espanhol e do mestiço do espanhol e do guarani, formador do povo paraguaio, dominante ali há vários séculos. Além disso, o fim da guerra fecha o ciclo de instabilidade total, naquelas terras, com a dizimação dos paraguaios e dos índios Guaicuru, instituindo outro ciclo, de instabilidade mais relativa e voltado a interesses mais concretos. É o momento em que se instala a Companhia Matte Larangeira, que arrendou grande parte do que hoje é o Mato Grosso do Sul, para a exploração dos ervais. Ao impedir a posse dos terrenos do estado pelos imigrantes, notadamente gaúchos, o capital financeiro, por via da Companhia, prejudicou a implantação de pequenos posseiros que pudessem se vincular à terra, tornando-se produtores e, portanto, competidores. Este ciclo da erva-mate se estende desde poucos anos depois do fim da guerra até os anos 1940. Contra a Matte Larangeira se opuseram as nascentes oligarquias sulistas, de proprietários de terras em busca de hegemonia, envolvidas com o ideário separatista desde as primeiras manifestações divisionistas no final do século XIX. Portanto, em última análise, foi contra os interesses do capital financeiro que emergiu esse contraditório movimento de oposição, de tão grande importância para a cultura e a música do MS. Foi também essa conjuntura que levou Campo Grande a estabelecer uma polarização com Cuiabá, ao tornar-se o centro decisório das elites pecuaristas após 1914, o que se refletiria na música dos anos 1960. A implantação da ferrovia Noroeste do Brasil até Campo Grande, neste ano de 1914, retirou a primazia do “norte”, servido pelo Rio Paraguai. O transporte ferroviário, mais - 34 eficiente, e a ligação incomparavelmente mais rápida com São Paulo e Rio de Janeiro produziram uma radical reestruturação do equilíbrio de forças entre Cuiabá e Campo Grande, ao permitir que esta cidade estabelecesse alianças com os dois grandes centros citados, enquanto Cuiabá permaneceu relativamente isolada. Outros temas contemporâneos estão contidos aí, além desse: rio e trem passam a ser adotados de maneira metafórica pela Música do Litoral Central, representando o desejo de movimento, de abertura ao novo e ao incerto; e estes meios de transporte tornam-se simbólicos de uma união platina, principalmente o rio, de uma América banhada pela bacia do Prata, o que também se refletiu na música. Justamente devido à forte influência das culturas platinas sobre o sul de Mato Grosso, a região se tornou foco do interesse estratégico da geopolítica militar, devido ao receio de que os laços afetivos construídos por sua população com os países vizinhos pudessem acobertar e estimular atividades subversivas e mesmo de guerrilha. Por conta disso, a presença de elementos das músicas platinas na MLC possui ressonâncias ambivalentes e mesmo contrárias ao projeto nacional. Há que mencionar, também, a importância das correntes migratórias de diversas origens desde o início da colonização: paulista, mineira, gaúcha, principalmente, e, a partir do século XX, em Campo Grande, japonesa, árabe e europeia, situando a característica de mosaico que apresenta a cultura sul-mato-grossense. Se esta característica, como outras já mencionadas, é bastante comum a diversas e diferentes situações sócio-histórico-geográficas, neste caso torna-se especialmente relevante para a compreensão, tanto da configuração particular que assumiu no estado, como dos debates pós-divisão. Portanto, este capítulo será dedicado a contextualizar estes elementos histórico-sociais, cuja compreensão é imprescindível para o estudo cultural da MLC de Campo Grande. Principalmente para que se possa entender como essa música incorpora diversos conflitos - 35 político-ideológicos em torno de tentativas de organizar modelos identitários construídos a partir dos elementos mencionados. Questões principais A história do sul de Mato Grosso (que viria a se tornar Mato Grosso do Sul) é dominada por três temas principais e interdependentes, que integram todos os outros elementos já mencionados e que passaremos a estudar a partir de agora. O primeiro deles é a erva-mate, que colocou em relação, nesse espaço, desde antes da colonização europeia, indígenas de várias etnias; depois dela, jesuítas, preadores8 de índios e mestiços; e que, a partir do final do século XIX e início do 20, se tornou a principal receita econômica de exportação do estado. Os outros dois são a pecuária e o divisionismo. Estes três temas são interdependentes porque a erva-mate, no final do século XIX, passou a ser monopólio de uma empresa particular, a Companhia Matte Larangeira – representante do capital financeiro em sua primeira manifestação em Mato Grosso (Alves, 2005, p. 25) –, que explorava como concessionária (do governo “nortista”) enormes extensões de terras devolutas9 no sul do então estado de Mato Grosso. Consequentemente, a empresa buscou ativamente impedir que os migrantes (provenientes, principalmente, do Rio Grande do Sul, a partir de 1893) obtivessem a posse e titulação de terras nesta área, com o que se tornariam produtores independentes e, portanto, competidores. Foi apenas em 1920, no bojo da chamada “questão do mate”, que os posseiros começaram a ter seus títulos de propriedade, o que, entretanto, transformou-os em mão-de-obra da Companhia, única compradora do produto. Esta condição sujeitou-os às regras, preços e interesses de aquisição da empresa. 8 “Preação”: aprisionamento e venda de humanos para escravização. O termo “terra devoluta” designa, originalmente, terras devolvidas ao Reino de Portugal. Surgiu na época das sesmarias, terras doadas aos sesmeiros, que tinham a obrigação de cultivá-las. Se não o fizessem, elas seriam devolvidas ao proprietário anterior, ou seja, a Coroa. A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 (Brasil, 2010) tipifica exatamente o que era considerado terra devoluta naquela época. 9 - 36 Assim, a luta dos que queriam se estabelecer produtivamente naquela região inóspita propiciou o surgimento de lideranças de comerciantes-proprietários de terras que se insurgiam contra o governo nortista em busca de hegemonia, ensejando as primeiras manifestações divisionistas. De forma análoga, o pecuarista pioneiro, descapitalizado e desarticulado, dependia inteiramente da casa comercial. Produzindo, em sua atividade, couros, charque e outros subprodutos bovinos, sua comercialização demandava penosas viagens de barco a remo pelo Rio Paraguai acima, até Corumbá, onde “a carne seca era vendida por preço irrisório, pois aviltado pelas grandes casas comerciais, as únicas compradoras” (Alves, 2005, p. 28). Isso é confirmado pelo pecuarista José de Barros Netto, o Zelito, fazendeiro da terceira geração dos pantaneiros: (...) a pecuária da região na época do desbravamento era, como fonte de riqueza, quase nula, porque a comercialização era praticamente nenhuma. Os criadores buscavam a sobrevivência na caça, pesca e nalguma agricultura de subsistência. Raramente iam à cidade, em viagens cansativas e demoradas, levando a remo e zinga, carne secada ao sol para ser comercializada ao preço ditado pelo comerciante do momento. O produto recebido era, então, convertido em gêneros alimentícios e vestimentas. (Barros Netto, 1979, p. 78) Como a casa comercial “correspondeu ao instrumento indispensável à acumulação do capital industrial, basicamente de origem inglesa, pois importava e distribuía suas mercadorias” (Alves, 2005, p. 15), os conflitos entre o pecuarista e a casa comercial não estavam desvinculados dos conflitos entre os posseiros e a Companhia Matte Larangeira, uma vez que esta era, como já se disse, representante, na região, do capital financeiro. 10 Com a gradual eliminação da mediação da casa comercial pelas empresas ligadas, diretamente, ao 10 O capital financeiro é o capital industrial monopolista fundido com o capital bancário (Lenin, 1976, p. 126). A casa comercial chegou a ser utilizada pelo capital financeiro, como representante de bancos nacionais e estrangeiros, concedendo crédito a altas taxas de juros. No entanto, este momento era caracterizado pela incipiência do desenvolvimento capitalista na região. À medida que se instalam as primeiras agências bancárias em Mato Grosso, no final da década de 1910 e início da década de 1920, as “seções bancárias” das casas comerciais entram em decadência (Alves, 2005, p. 30). - 37 capital financeiro, a primeira delas sendo a Companhia Matte Larangeira (implantada em 1891), ocorriam embates no plano político entre ambas as instâncias. A referida “questão do mate” é uma expressão desse conflito. Na base da disputa entre posseiros e a Companhia Matte Larangeira situava-se o embate entre o monopólio e a manufatura, representada pelos comerciantes. Foi por perder terreno, progressiva e inexoravelmente, para a Companhia monopolizadora, que os comerciantes (muitos deles coronéis com poder político sobre os posseiros) buscaram parcelar os ervais ocupados pela empresa e doá-los ou arrendá-los aos imigrantes. Com a derrota dos comerciantes, este processo incipiente de diversificação da produção em Mato Grosso foi, portanto, sufocado pelo imperialismo, ao impor ao estado uma economia primária: É possível perceber, dentro dessa ótica, que a divisão regional do trabalho, no âmbito do País, jamais privilegiaria o desenvolvimento industrial de Mato Grosso, região interior, afastada dos centros de consumo. Seus produtos industriais perderiam qualquer possibilidade de competir no mercado, em conseqüência dos elevados custos de transporte. Ao contrário, a divisão regional do trabalho determinou que a “vocação natural” de Mato Grosso seria a pecuária, como parte de uma estratégia de produção de alimentos para o abastecimento das regiões econômicas mais dinâmicas do CentroSul do Brasil. (Alves, 2005, p. 38) Neste trabalho, o professor Gilberto Luiz Alves estuda o insucesso de variados empreendimentos estabelecidos no sul do MT, que buscavam a diversificação da produção do estado para além das atividades primárias. Discute, também, as derrotas dos grupos monopólicos platinos por grupos organizados no Brasil, nas disputas por hegemonia sobre a região. Demonstrando os impactos da lógica do capital nesta área, fornece, assim, importantes subsídios para a compreensão de alguns fatores que se articularam a uma multiplicidade de outras determinações, localizadas no plano ideológico. Como resultado dessa articulação, verifica-se, no plano nacional, tanto uma representação dominante do MS como estado agrário, quanto uma rejeição às influências culturais latino-americanas sobre este território. Com certeza, essa dupla condição não pode ser excluída das discussões em torno do insucesso da MLC no plano nacional, em dois planos simultâneos. Em primeiro lugar, essa - 38 música não se conforma nem às expectativas pastorais dos grandes centros com relação às produções culturais de estados periféricos como o Mato Grosso do Sul. Em segundo, por utilizar gêneros musicais platinos e destacar positivamente as culturas dos países do Prata, a MLC vai de encontro aos discursos ideológicos que vêm conseguindo, até o momento, desqualificar os outros países sul-americanos junto ao público brasileiro. Como será demonstrado no próximo capítulo, tais discursos solidificam reações, na melhor hipótese, de descaso e desinteresse, e, na pior, de desconfiança e, mesmo, agressão, a esses países, culturas e pessoas. Assim, a condição de estado agrário imposta ao MS configura a interdependência entre erva-mate, pecuária e divisionismo, temas que precisam ser estudados para que se possa contextualizar a música do Litoral Central. Até, pelo menos, a década de 1920, o divisionismo não constituiu, propriamente, um movimento, mas “manifestações, ideias e anseios esparsos que surgiam em meio aos conflitos maiores entre chefes políticos regionais” (Bittar, 2009a, p. 129). Uma vez que o divisionismo sempre esteve ligado aos interesses dos grandes proprietários de terras dedicados à pecuária no sul do estado, este ideário tem grande impulso com o crescimento da importância dessa atividade a partir de 1914. É neste ano que a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil chega a Campo Grande, o que fortaleceu economicamente os produtores. Estes se baseiam em Campo Grande, que, a partir daquela data, passa a adquirir crescente importância política e econômica, tornando-se apta a rivalizar com Cuiabá. Conforme comenta Marisa Bittar, [a] sede da capital no “norte” gerava inconformismo nos grupos latifundiários sulistas que, na década de 1930, já contestavam: “Sabe-se que existe Mato Grosso pelo talão de imposto”. Ou então: “O sul possui tudo, menos administração”. (Bittar, 2009a, p. 16) Neste momento, a pecuária adquire tal importância econômica porque, pela primeira vez, pôde-se comercializar gado pronto para o abate (etapa mais lucrativa do negócio). Anteriormente, a única maneira de levar o gado gordo aos frigoríficos de São Paulo era - 39 conduzindo-o a pé. O gado assim conduzido perdia peso, devendo ser novamente engordado no local antes do abate, o que fazia com que apenas pudesse ser comercializado a preços de gado magro. Antes da implantação da ferrovia, os fazendeiros não tinham o que fazer com a carne, fora o consumo da família, sendo o excedente jogado fora (Metello, 1999, p. 84). Apenas podiam vender os couros, exportados pelo Rio da Prata a baixos preços, como já foi dito. Procuraram fazer o charque, mas o sal era ainda mais caro e difícil de conseguir, inviabilizando o processo (Metello, 1999, p. 84). Havia indústrias de beneficiamento de carne em conserva, os chamados saladeiros, mas que absorviam apenas parte da produção de gado gordo do estado (industrializando 50 a 60 mil cabeças/ano, segundo Corrêa, 1982, p. 293). Além disso, os saladeiros passam a existir apenas no início do século XX e entram em decadência logo duas décadas depois, “principalmente pelos baixos preços alcançados por seus produtos (...), decrescendo deste modo sua importância na economia regional, ao mesmo tempo que se inicia a penetração de compradores paulistas do gado pantaneiro” (Corrêa, 1982, p. 129). Assim, antes da chegada dos trilhos a Campo Grande, o sul de Mato Grosso não vendia gado gordo, apenas gado magro, resultando em baixa geração de recursos por parte da pecuária, apesar da importância central dessa atividade no estado. A chegada da ferrovia provocou importantes transformações econômicas, ao permitir o escoamento do principal produto da região. Mas, além disso, favoreceu os interesses de grupos monopólicos sediados São Paulo e Rio de Janeiro, o que representou a formação de alianças do pecuarista com esses estados. Simultaneamente, o histórico rival do fazendeiro, o comerciante mato-grossense representado pela casa comercial e vinculado aos grupos econômicos dos países platinos, sofre repetidos revezes que provocarão a ruptura de seu poder econômico e político. “A - 40 implantação de empresas monopólicas no Estado enfraqueceu ainda mais o comerciante, na medida em que seu estabelecimento foi marginalizado dos circuitos de comercialização das mercadorias que aquelas produziam” (Alves, 2005, p. 45). Apartados dos interesses dos grandes grupos financeiros por diversas razões (inclusive pela perda da capacidade de operar com o capital financeiro por meio de suas “seções bancárias”), os outrora poderosos comerciantes, articulados com indústrias e grupos capitalistas cosmopolitas, tornam-se proprietários de estabelecimentos puramente comerciais e/ou, eles próprios, de fazendas de criação de gado. Com o aumento progressivo da receita advinda da pecuária, e a diminuição também progressiva da receita advinda da erva-mate, aliados ao fato de que a ferrovia trouxe modernização e poder político a Campo Grande, o eixo político-econômico do estado de Mato Grosso se desloca da capital, Cuiabá, para Campo Grande, fazendo com que a tensão entre as duas regiões se acirre. No entanto, a divisão não se efetivaria antes de 1977. Como tratamos dos conflitos em torno de identificações (com o “sul” em oposição ao “norte”, com Rio de Janeiro e São Paulo em oposição à América Platina) veiculadas pela música popular urbana, podemos perceber que tais conflitos já estavam na ordem do dia no século XIX, não sendo irrelevantes ainda hoje, refletindo-se intensamente na cultura em geral e na música em particular do Mato Grosso do Sul. O sul de Mato Grosso nos séculos XVI, XVII e XVIII − formação e características Na época em que espanhóis e portugueses começaram a disputar o sul do que viria a ser Mato Grosso, no século XVI, habitavam a região índios Guaicuru e Guarani, entre outros. Os Guaicuru, também conhecidos como Índios Cavaleiros, apropriaram-se do cavalo e do ferro do colonizador espanhol e utilizaram-nos para promover tenaz resistência aos invasores - 41 espanhóis e portugueses. Sobre uma das tribos Guaicuru e a única remanescente em nossos dias, os Kadiwéu, diz Darci Ribeiro: As primeiras expedições que atravessaram o Grande Chaco no começo do século XVI, à procura de um caminho para as lendárias montanhas de ouro do Peru, os encontraram vivendo da caça, da pesca, da coleta e do saque, nas terras baixas e alagadiças, ao longo do Rio Paraguai. Dessa região, que durante o período das chuvas se transforma em pantanais impenetráveis e em desertos na época de estio, eles saíam para suas guerras a outros grupos, voltando a seu território indevassável, livres de revanches. Estas condições contribuíram para a sobrevivência de alguns grupos Mbayá-Guaikuru e a conservação de seu patrimônio cultural até nossos dias, enquanto outras tribos, que só tiveram contato com o europeu muito mais tarde, foram dominadas e extintas. (Ribeiro, 1980, p. 18) A par do domínio da arte da guerra, os Guaicuru aprenderam com os espanhóis a tornar-se competentes criadores de gado, que havia sido introduzido naqueles tempos, também pelos espanhóis, para servir de força motriz e alimento. Este gado haveria de se espalhar, bravio, reproduzindo-se espontaneamente pelos limpos campos do atual Mato Grosso do Sul. Deriva desta característica da vegetação a repetidamente mencionada impropriedade do nome do estado, mais adequado para referir o norte do MT, com suas características amazônicas. Tão adequada para a criação de gado é esta região (o planalto da bacia do rio Paraná) que ela tornou-se conhecida como Campos de Vacaria pelos que aí passavam. A notícia de tais campos, propícios para a pecuária e já contando com extensas manadas à solta, viria a despertar o interesse de bandeirantes e aventureiros, e, mais tarde, em 1870, do fundador de Campo Grande, o mineiro José Antonio Pereira. Diferentemente dos Guaicuru, os Guarani não se notabilizaram por sua ferocidade, mas por sua flexibilidade. Embora estes povos, em sua multiplicidade, tenham apresentado divergentes atitudes quanto ao contato com o branco, resistindo a ele pelo messianismo ou pelo confronto direto, parte expressiva deles aderiu a este contato sem maiores dificuldades. Uma evidência a esta afirmação é oferecida pelas missões jesuíticas dos séculos XVII e XVIII, cujo contingente nativo era constituído basicamente por guaranis. - 42 A participação dos Guaicuru na retomada de parte de Mato Grosso aos paraguaios, durante a Guerra da Tríplice Aliança, enseja um rápido exame desta etnia, no que importa aos propósitos imediatos desta tese. A ocupação, pelos Mbayá-Guaicuru, da ampla região que estamos tratando, o Chaco pantaneiro, é assim descrita por Ana Lucia Herberts: O grupo habitou inicialmente no século XVI a região do Chaco, dividido em dois núcleos: o núcleo do sul (Guaicurú), localizado na margem ocidental do Rio Paraguai, próximo à cidade de Assunção; e do norte (Mbayá), também na margem ocidental do Alto Paraguai. A partir de meados do século XVII, começou a ocupar paulatina e paralelamente também a margem oriental do Rio Paraguai, correspondente a região do Pantanal e áreas periféricas, que se tornou no século XVIII a principal área ocupada. Em fins do século XIX, o território habitado pelo grupo concentrava-se em áreas abrangidas pelo atual estado brasileiro do Mato Grosso do Sul. (Herberts, 1998, p. XVIII-XIX) Vemos, então, que os Mbayá-Guaicuru ocupavam áreas que viriam a constituir, em parte a República do Paraguai em 1811, e em parte o sul de Mato Grosso, depois de ser este retomado do Paraguai após a Guerra da Tríplice Aliança. Esta enorme área ficou, como foi dito, dominada inteiramente pelos índios Guaicuru, sem que houvesse possibilidade de estabelecimento dos europeus e seus descendentes. É importante notar esta barreira ao povoamento local pelo branco e relativamente recente estabelecimento do mesmo (o que se deu principalmente após o fim da Guerra da Tríplice Aliança) quando se pretende entender a história e sociologia de Mato Grosso do Sul. O povoamento branco foi feito aos poucos e de maneira dispersa, sem uma base econômica sustentável. O historiador Paulo Marcos Esselin nos fornece detalhes e razões sobre este fato ao falar da colonização do atual Mato Grosso: Com as descobertas das primeiras jazidas de ouro, iniciou-se o processo de povoamento português. Apesar de o território, por força do Tratado de Tordesilhas, pertencer aos espanhóis, não houve forte reação por parte destes, fato que se explica por seu enfraquecimento, devido à rivalidade que havia entre colonos e jesuítas. As jazidas auríferas eram de duração efêmera. Essa característica contribuiu para a itinerância da população, que muito rapidamente ocupou de forma dispersa o território em busca de riquezas e de índios, formando pequenos núcleos urbanos e conquistando novas áreas pertencentes à Espanha. Se, por um lado, essa característica peculiar da população permitiu o rápido devassamento e a ocupação dispersa do território, por outro, não permitiu a estruturação de uma economia sólida, porque o ouro constituía o único produto de exportação, e todos os investimentos eram canalizados para sua exploração. A agricultura e a pecuária, que atendiam apenas às necessidades dos - 43 mineiros, desenvolveram-se com técnicas extremamente rudimentares, não se constituindo em alternativa para a exploração de qualquer produto. (Esselin, 2000, p. 155-156) Segundo explica Esselin, a invasão das terras espanholas pelos portugueses e o afluxo de grandes contingentes em busca das minas violaram o Tratado de Tordesilhas, o que forçou as duas potências a rever seus marcos demarcatórios. Isso precipitou a criação da Capitania de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá pelos portugueses, com o que procuravam estabelecer sua posse sobre as minas e conter o avanço das missões jesuíticas espanholas. Estas objetivavam fixar-se em ambas as margens do rio Guaporé e interromper o comércio português com o Pará. Em face desta situação, os lusos passaram a incrementar as atividades de criação e agricultura, e organizar a defesa, procurando antecipar-se às invasões inimigas. As mais de quinhentas léguas de fronteira despovoada e desarmada fizeram com que os governantes fundassem diversos fortes e cidades, inicialmente no norte, buscando proteger as jazidas e rotas fluviais. Enquanto isso, o sul ficou relegado ao esquecimento, o que também ajuda a explicar seu povoamento recente. A região sul continuou no mais completo abandono, até quando os espanhóis direcionaram seu movimento de expansão para o norte, buscando comunicação com as reduções dos chiquitos através do Rio Paraguai. Então os portugueses resolveram voltar sua atenção para estes territórios, a fim de conter o avanço inimigo. (Esselin, 2000, p. 157) A incipiente ocupação do sul pelo branco necessitou, então, contar com a intervenção da coroa portuguesa, que construiu fortificações ao longo do Rio Paraguai para salvaguardar seus interesses. Estes fortes deram guarida a pequenos povoados, na verdade guarnições de fronteiras, estabelecidas em áreas estratégicas. Além de estarem em posição de rechaçar os espanhóis, também buscaram manter os indígenas à distância, e com isso fomentar a colonização a partir da base agropecuária. Com a ocupação e militarização dos pontos estratégicos, foram-se criando condições de segurança para que os fazendeiros se instalassem nas proximidades das nascentes, vilas e fortes, e se dedicassem às atividades criatórias e agrícolas, o que permitiu aos portugueses consolidar sua posse sobre a região. (Esselin, 2000, p. 157) - 44 Mesmo assim, fora algumas vilas na proximidade dos fortes, o terreno era virtualmente dos indígenas, especialmente dos Mbayá-Guaicuru. Isto se deu porque, como vimos, não havia maior interesse de espanhóis ou portugueses nesta área naquele momento. Economicamente, ela apenas poderia servir para a pecuária e para fornecer a erva-mate, ali nativa (que, denominada caá pelos guaranis, já era utilizada muito antes da chegada dos colonizadores brancos na América, segundo Warren, 1946, p. 155). O lucro potencial da exploração destas empresas era desprezível, em comparação ao aprisionamento e venda de indígenas e o garimpo do ouro em Cuiabá (1719-1760). Isto é explicado pelo historiador Gilberto Luiz Alves: O Chaco pantaneiro era, então, mera rota de passagem das monções11 paulistas que rumavam em direção a Cuiabá e caminho aspirado pelos castelhanos para comunicação entre os centros platinos e o Peru. Portanto, esse território ainda correspondia a um vazio, cuja ocupação efetiva não era prioridade para nenhuma das coroas ibéricas. Tal fato ajuda a explicar a hegemonia exercida pelos guaicuru nesse extenso território (Alves, [2008?], p. 6). De fato, o apogeu dos Mbayá-Guaicuru chega ao fim em meados do século XVIII. Segundo Herberts, seu domínio sobre as terras do Alto Paraguai passou a ser desafiado pelos grupos Lengua e Enimagá, também equestres, que passaram a disputar suas terras, seus cavalos e seus cativos (Herberts, 1998, p. 49). Expedições punitivas vindas de Assunção e Corumbá ameaçavam também seus assentos nucleares e cerceavam sua grande mobilidade conquistada no século XVII (Susnik, 1972, p. 14, apud Herberts, 1998, p. 49). Estes dois fatores provocaram a diminuição da área ocupada pelo grupo, resultando em seu confinamento, o que trouxe o fim do apogeu dos Mbayá-Guaicuru. Mesmo assim, continuaram a pilhar, principalmente as fazendas paraguaias ao sul do rio Apa, agora providos de armas de fogo. No entanto, sua completa subordinação e quase completa destruição estava próxima: 11 Monções eram expedições de preação realizadas pelos bandeirantes que, descendo o curso do rio Tietê, atingiam as bacias dos rios Paraná e Paraguai, o Pantanal Mato-grossense e, de lá, a bacia amazônica e o Oceano Atlântico (Entradas e bandeiras, 2010). - 45 As tribos Mbayá-Guaicurú existentes se desintegraram rapidamente, conseqüência do mestiçamento intertribal, do alcoolismo e das freqüentes epidemias de varíola, restando somente no fim do século XIX, com seus remanescentes mais expressivos, a tribo dos Kadiwéu, que abandonaram seus assentamentos chaquenhos à margem do Rio Paraguai e localizaram-se principalmente na região dos rios Nabileque, Niutaque e Branco. (Herberts, 1998, p. 53) E, segundo Gerhards, a Guerra da Tríplice Aliança teria sido determinante para este declínio: a verdadeira decadência efetuou-se na guerra paraguaia (1865-1870), da qual os (Guaycurú) Mbayá participaram (...). Seu número não só sofreu dizimação através das perdas da guerra mas também através do contato com os soldados que os levaram a adquirir doenças venéreas e ao alcoolismo. (Gerhards apud Herberts, 1998, p. 53) Destituídos do poder de outrora, os Mbayá-Guaicuru viram-se na contingência de estabelecer alianças e tratados de paz, ora com os espanhóis, ora com os portugueses, quem lhes fornecesse melhores vantagens a cada vez. É nesta condição que escreveram página fundamental na tomada da área que viria a formar o sul de Mato Grosso e o estado de Mato Grosso do Sul, conquistando-o do Paraguai durante a guerra de mesmo nome. O fato se torna ainda mais dramático após sabermos das consequências do engajamento dos Mbayá-Guaicuru na guerra de 1865, a partir do comentário de Gerhards. A respeito dessa participação dos Índios Cavaleiros na reconquista do sul de Mato Grosso, conta Guido Boggiani: Na guerra do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, em 1865, os Caduveos, instigados e armados de fuzis pelos brasileiros, penetraram no rio Apa12, assaltando as aldeias e os exércitos paraguaios. Atacaram finalmente a aldeia de São Salvador, que saquearam e destruíram, voltando carregados de presa, composta em grande parte de fazendas, armas e munições tomadas ao inimigo, entre as quais figuravam muitos terçados [espécie de sabre curto] que em 1879 os Caduveo ainda levavam constantemente pendurados à cintura. Depois dessa guerra o Brasil reforçou sua influência sobre os Mbayá que, atraídos pelos presentes recebidos das autoridades do Império, visitam anualmente Corumbá, Coimbra e Albuquerque, onde trocam os seus troços por pólvora, panos, facas e outras coisas: lá são atraídos com presentes de fuzis antigos, de uniformes de refugo e diplomas de oficiais do exército imperial. (Boggiani, 1975, p. 267) Portanto, o apoio dos Guaicuru foi fundamental para que a região hoje constituinte do Mato Grosso do Sul não tenha permanecido sob controle espanhol. Isto é afirmado pelo historiador Gilberto Luís Alves, em depoimento ao autor: 12 O rio Apa demarca, hoje, a fronteira Brasil-Paraguai. Nasce na serra de Maracaju, ao sul do município de Antonio João, e segue no sentido leste/oeste, atravessando os municípios de Bela Vista, Caracol e Porto Murtinho (Pereira, 2010). - 46 O Pantanal mato-grossense só se integra (...) ao império colonial português por força da atuação dos guaicurus, porque eles eram extremamente belicosos. O Pantanal, até o final do século XVIII, é uma região em que espanhóis e portugueses não têm nenhum controle. No final do século XVIII, há um acordo de paz entre a Coroa portuguesa e os guaicurus. A partir disso, os portugueses passam a ter uma supremacia no Pantanal. (Alves, 2009) Após o fim da Guerra da Tríplice Aliança, foi estabelecida, em 1872, uma Comissão Demarcatória de Limites entre o Brasil e o Paraguai, que formalizou a anexação ao Brasil de grande quantidade de terras paraguaias, conquistadas pelos Guaicuru. A importância econômica deste passo, representada pela nova posse de grande área de ervais nativos, é confirmada por Carlos Warren: “Ao final da Guerra, quando o Paraguai perdeu uma extensão territorial de 156.415 km2, o Brasil anexou, nesta oportunidade, uma das áreas mais ricas em ervais naturais” (Warren, 1946, p. 157). 13 Neste momento, para Raul Silveira de Mello, “estava terminada a missão dos Guaicurú. Haviam cumprido o seu papel histórico de guardas vigilantes das nossas fronteiras na bacia do médio-Paraguai” (Mello, 1961, p. 247). Este fato terá grande relevância a seguir, por consistirem estas terras, como lembrou Warren, de ervais nativos, a grande riqueza do estado entre o final do século XIX e as primeiras décadas do 20, além de apresentar grandes extensões de campos não inundáveis, propícios para a agricultura e a pecuária. Trata-se da região que engloba, entre outros, os atuais municípios de Ponta Porã, Porto Murtinho, Bonito, Nioaque, Ivinhema, Dourados, Glória de Dourados, Maracaju, Rio Brilhante, Itaporã, Naviraí, Itaquiraí, Jateí, Mundo Novo, Amambai, Iguatemi, Eldorado, Jardim e Guia Lopes da Laguna (a maior parte dos quais mencionados na Figura 1). Esta enorme área do sul de Mato Grosso era considerada território paraguaio antes da demarcação dos limites Brasil-Paraguai, que ocorreu depois da guerra (Weingartner, 2002, p. 69). 13 “Al final de la Guerra, cuando el Paraguay perdió una extensión territorial de 156.415 km2, el Brazil se anexó en esta oportunidad una de las zonas más ricas en yerbales naturales”. - 47 - Figura 1 - Delimitado pelos rios Paraguai e Ivinhema, o território paraguaio hoje localizado no MS É necessário notar que a maior parte dos municípios hoje localizados nesta área ainda não existia, como, por exemplo, Ponta Porã e Dourados (mais sobre isso adiante). Os primeiros povoamentos do sul de Mato Grosso (então Capitania) tinham sido criados, como se disse, com função estratégico-militar, para assegurar as posses da coroa portuguesa frente aos avanços da coroa espanhola. O primeiro desses povoamentos-fortificações foi o Forte de Nova Coimbra, em 1775, às margens do Rio Paraguai, seguido de Albuquerque, em 1778 (que hoje é a cidade de Corumbá). A localização setentrional de ambos explica-se como defesa da navegação pelo rio Guaporé, rumo ao Pará, navegação que garantia à coroa portuguesa importante via de abastecimento e fonte de riqueza, por meio do contrabando de gêneros nas colônias espanholas (Esselin, 2000, p. 136). Pode-se acreditar que realmente, até bem recentemente (o fim da Guerra da Tríplice Aliança), tratava-se de uma terra sem lei e sem dono, do ponto de vista do colonizador. Com - 48 os diversos tratados entre Portugal e Espanha se sucedendo e sendo continuamente desrespeitados e revogados, realmente o princípio definidor do estatuto jurídico sobre a propriedade desta região – o uti possidetis – teria que ser a força daquele que sustentasse sua posse. Nisso, como vimos, os Guaicuru foram fundamentais para garantir o domínio português. Toda a região sul do estado, onde se encontram hoje os municípios brasileiros já mencionados14, foi retomada pelo Paraguai durante a guerra de 1865. Posteriormente, o Brasil, por motivo da partilha dos despojos da guerra pelas nações vencedoras, entrou na posse dessas e de outras terras paraguaias. Esta é a razão da afirmação de que, realmente, o Brasil foi Paraguai naquele lugar (como, aliás, reafirma a canção “Sonhos guaranis”, de Almir Sater e Paulo Simões, analisada à pág. 314). Decadência das jazidas de Cuiabá – o sul desperta interesse Conforme foi dito anteriormente, o gado, implantado na região logo na chegada dos espanhóis no século XVI, se reproduziu e povoou os Campos de Vacaria. Além de suprir as necessidades de alimentação, transporte e carga dos espanhóis, dos rios da bacia do Prata para as minas de prata do Peru e vice versa, abastecia também o norte de Mato Grosso. As reses, já engordadas, seguiam para o abate pelos portos fluviais do Rio Paraguai – que, de resto, levava também a Corumbá e Cuiabá os mais requintados artigos importados nas metrópoles europeias, inclusive sua cultura, com a música ocupando lugar especial. A propósito, é preciso acentuar aqui a importância social, comercial, cultural e histórica do Rio Paraguai também para Corumbá. Até o fim da Guerra da Tríplice Aliança, sua navegação esteve fechada pelo Paraguai às nações inimigas. Com o fim da guerra, passa a servir de principal meio de acesso à cidade. Uma vez que é interligado à bacia do rio da Prata, o Rio Paraguai permitia um contato relativamente fácil, rápido e barato de Corumbá com os 14 Ponta Porã, Porto Murtinho, Bonito, Nioaque, Ivinhema, Dourados, Glória de Dourados, Maracaju, Rio Brilhante, Itaporã, Naviraí, Itaquiraí, Jateí, Mundo Novo, Amambai, Iguatemi, Eldorado, Ivinhema, Jardim e Guia Lopes da Laguna - 49 países platinos. Com isso, propicia, no final do século XIX e princípio do XX, acentuado desenvolvimento a esta cidade, que passa a deter, naquele momento, a posição de principal entreposto comercial do estado. O meio físico determinará uma dicotomia contrastante: de um lado a impossibilidade de Corumbá ligar-se ao centro administrativo do País por terra, de outro permitindo contacto com Assunção, Buenos Aires, Montevidéu, Santos e Rio de Janeiro, garantindo relativa modernização de sua urbe. (Governo do estado do MS, 1981) Não é por outro motivo que o compositor Geraldo Roca, em sua canção “Rio Paraguai” (analisada à pág. 392), afirma que o “século XX aportava do sul”, vindo a bordo dos navios que chegavam por esse rio. A comunicação facilitada e mais próxima com os países platinos caracterizaria historicamente o Mato Grosso como “região ambígua” pela geopolítica da segurança nacional. Esta é uma referência aos fortes laços históricos, culturais, comerciais, de amizade, família e reciprocidade que unem Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e os países platinos, tornando os dois estados brasileiros pouco confiáveis, aos olhos do poder central, no caso de eventuais guerras, guerrilhas, insurreições ou atos de terrorismo envolvendo os países vizinhos. Isto também deve ser levado em conta quando se estudam as relações entre o Rio Paraguai, esta música e o projeto nacional. Após a decadência das minas de Cuiabá, aumenta o interesse pelas terras do sul. É conveniente lembrar que até a descoberta do ouro, em 1719, Cuiabá não existia (foi fundada nesta data), e até 1760 (quando se esgotam as jazidas) a vida desta cidade girou em torno da garimpagem. Como foi dito, após o fim das jazidas, Cuiabá não desenvolveu atividade econômica apreciável. É o que afirma também, entre outros, a historiadora Alisolete Weingartner: O Sul de Mato Grosso, no entanto, no início do período republicano, desponta como uma economia disponível, (...) que substitui a antiga e decadente economia mineradora do Norte de Mato Grosso. (Weingartner, 2002, p. 21) No entanto, a estrutura administrativa de Cuiabá permaneceu ativa e estabelecida, mesmo após a decadência mineradora, como comenta o bacharel em Direito, membro de - 50 tradicional família de fazendeiros do pantanal mato-grossense e cronista Abílio Leite de Barros: Acredito que naquele momento [1802] e nos anos anteriores e seguintes, grande parte, talvez a maioria, dos aventureiros bandeirantes retornou à corte ou ao querido São Paulo de Piratininga, de onde partiu em busca de riquezas. Alguns ficaram. Ficaram aqueles que tinham funções públicas, pois a extensão territorial conquistada pelos bandeirantes começava a ser vista por Portugal como tão importante quanto o ouro. Forças militares e toda a engrenagem burocrática governante ficaram. Não fosse isso, Cuiabá teria desaparecido, como muitos garimpos exauridos. (Barros, 1998, p. 17) Os que ficaram, excluindo os que obtinham sua remuneração por ocupar função pública, passaram a se dedicar a atividades agropecuárias, como fica evidente na missiva do padre José de Siqueira ao rei de Portugal (Miguel I) no mesmo ano de 1802, que Barros estava a comentar: Estão as minas cansadas; os seus jornais [receitas diárias] já não cobrem as despesas do ferro, aço, alimento e vestuário dos escravos e por isso o minerador já desesperado se passa a lavrador ou criador de gado, ou erige um engenho de aguardente e açúcares. Porém, onde se poderá dispor e qual o equivalente para formar a troca que se chama compra e venda? (Siqueira apud Barros, 1998, p. 17) Com isso, o padre (que realizava a função de olheiro do rei, desconfiado da súbita diminuição na receita) advertia sobre a absoluta falta de moeda circulante. O fato de que a única atividade econômica que restava era a agropecuária colocou a Cuiabá o problema de suas terras inférteis, atestado pelo próprio Barros, descendente de família estabelecida na região comentada: Ali no Livramento [vila situada a 39 km de Cuiabá, formada, como outras, depois da descoberta de ouro em alguns de seus ribeirões e córregos], nos sítios em volta, como já sabemos, estavam alguns descendentes desses desesperados mineradores. Um grupo infelizmente malsucedido na tentativa agrícola. A terra era ingrata e de difícil amanho. Apenas pequenas manchas à beira dos ribeirões eram férteis. Ali plantavam banana, o que lhes custou o apelido [de papabanana], e a cana alimentadora dos pequenos engenhos de rapadura e açúcar, às vezes, alambique. No restante, um cerrado ralo e pedregoso, de escasso pasto, onde se fazia tímida pecuária. (Barros, 1998, p. 58) Os terrenos férteis e os Campos de Vacaria do sul do estado, com suas manadas de gado bravio à disposição de quem pudesse garantir sua posse em terra sem lei, tornaram-se, então, a destinação dos garimpeiros arruinados. Juntaram-se a eles migrantes de outras partes do Brasil, principalmente mineiros, paulistas e gaúchos. - 51 Começando a estabelecer-se na divisa do sul de Mato Grosso com Minas Gerais e Goiás, alguns mineiros formam as povoações que posteriormente constituiriam as cidades de Paranaíba (1830) e Três Lagoas (1880) (ver Garcia, 1978). O também mineiro José Antonio Pereira continuou a marcha para oeste e instalou-se, em 1872, na confluência dos córregos que se chamariam, de maneira peculiar, de Prosa e Segredo, iniciando a formação da futura cidade de Campo Grande. Já mais povoado o local, com 62 pessoas entre parentes e “escravos amigos” chegando da segunda viagem de Pereira, estabelece-se, em 1875, o Arraial de Santo Antonio do Campo Grande (Pereira, 2001, p. 32-35). Toda esta região se situa nos Campos de Vacaria (planalto da bacia do rio Paraná), que, como diz o nome, é plana, limpa e propícia para a pecuária, já contando, como foi dito, com grandes manadas de gado bravio. Não é uma região de ervais. Recapitulando, no extremo sul do estado, justamente a área disputada pelos espanhóis quando do Tratado de Madri, situavam-se os ervais nativos e que eram frequentados pelos índios e seus descendentes paraguaios. Esta área, exatamente por ter estado desde longa data em poder dos perigosos índios guerreiros Mbayá-Guaicuru, era evitada pelo branco, que só começa a se estabelecer aí de forma consistente após o fim da Guerra da Tríplice Aliança (1870, portanto), quando os índios já estavam dizimados – e, sempre, atraído pela erva-mate como mercadoria. É o caso de Ponta Porã, Amambai e Naviraí, por exemplo, municípios constituídos, respectivamente, em 1890 (Guimarães, 1992, p. 49-50), 1903 (Amambai, 2010) e 1952 (Naviraí, 2010). Na área pouco menos meridional, ainda ao sul do estado, em que predominava a pecuária, a fundação de vilas e pequenas povoações se inicia antes. O atual município de Rio Brilhante, por exemplo, se desenvolveu em torno da posse de Antonio Gonçalves Barbosa, de 1838, constituindo o povoado de Vacaria em 1845 (Guimarães, 1992, p. 15-18). O povoado - 52 de Maracaju surge em 1850, nas cercanias da posse de Antonio José de Sousa, de 1844 (Guimarães, 1992, p. 32). Outros povoados, futuros municípios de importância regional, viriam apenas depois da instalação de destacamentos militares e outras modalidades de presença armada do estado. É o caso de Nioaque, que começa a ser povoado depois da instalação do Posto Militar, em 1850 (Guimarães, 1992, p. 137), Miranda, que, como já citado, foi elevada a vila em 1857, tendo se desenvolvido à sombra do Presídio Nossa Senhora do Carmo do Mondego, e da também já citada Ponta Porã (destacamento de Nioaque). Houve também a colônia militar do [rio] Dourados (não confundir com a cidade de mesmo nome, fundada apenas em 1935), instalada em 1862 e que foi idealizada para dar apoio ao projetado povoamento de Ponta Porã. Entretanto, foi destruída em 1864, logo no início das hostilidades da Guerra da Tríplice Aliança. Aliás, todos os povoamentos citados neste parágrafo foram abandonados por seus moradores quando da invasão pelas tropas paraguaias, e em seguida destruídos por elas. Na Colônia Militar do Dourados, o tenente Antonio João e dois soldados resistiram ao ataque até à morte, com treze outros soldados fugindo e sendo talvez mortos posteriormente (Guimarães, 1992, p. 67). Concluímos, então, que o povoamento nesta região era escasso; fortes e outros tipos de presença militar possibilitavam que alguns pioneiros corajosos se estabelecessem por ali (visto que a pecuária extensiva de então exigia que morassem em distantes e gigantescas fazendas); tais fortes, longe de evidenciar a propriedade definida da região para o império brasileiro, assinalavam justamente a contínua luta pela sua posse; índios temíveis, de diversas etnias, principalmente cavaleiros (e, nos rios, canoeiros, como os Paiaguá), e espanhóis, impunham cerco constante a esta região de precária estabilidade; e os paraguaios, mestiços de índios e espanhóis, entravam e saíam da região para a busca da erva-mate. - 53 Com a situação de decadência da mineração em Cuiabá, o sul de Mato Grosso, com suas enormes extensões de terras férteis, propícias para a agricultura e pecuária, além dos ervais nativos, torna-se, então, cada vez mais visado pela burocracia e pelas oligarquias nortistas, como fonte potencial de riqueza e como perigoso reduto de nascentes oligarquias, que poderiam colocar em perigo o domínio nortista. A propósito dessas oligarquias, deve-se lembrar que a atividade rural praticada desde a introdução do gado na região era, como foi dito, extensiva, com o gado bravio ou semibravio a deslocar-se por extensões enormes de terra. Com isso, a partir do estabelecimento de posses na região, exercidas sobre terras devolutas, tais propriedades eram também gigantescas, contando dezenas ou mesmo centenas de milhares de hectares. 15 Se levarmos em conta que a ausência de poder público para defender a propriedade privada era quase total, naquele momento, concluímos que a posse de tais extensões de terra só poderia ser garantida a partir de certo poderio bélico, constituído do próprio fazendeiro, seus filhos e outros parentes, agregados, empregados e por alianças com outros fazendeiros. Prestando assistência mútua em terra violenta e sem lei, proprietários e não-proprietários fortaleciam os laços de confiança e lealdade que os uniam e estabeleciam as nascentes oligarquias mencionadas. Vários traços culturais arraigados se formam a partir desta estruturação social, fundada no patriarcalismo, inclusive os direitos absolutos do primogênito sobre os irmãos. Tornados obstáculos à organização da vida urbana e capitalista, estes arcaísmos suscitarão parte das divergências ideológicas entre as classes médias da cidade de Campo Grande e a classe dirigente dos pecuaristas, mais tarde, no século XX. A MLC terá papel importante na luta por sua superação. Com a formação das oligarquias enquanto alianças para proteção mútua, surge a figura do fazendeiro-comerciante sulista, que logo se tornaria o líder dessas formações ideológicas. 15 Um hectare (1 ha) equivale a cem mil metros quadrados. - 54 São, em geral, gaúchos que migram para o sul do estado e entram na posse dessas terras, que eram devolutas, como se disse, desenvolvendo paralelamente a atividade do comércio. Eles congregam em torno de si um grupo de grandes proprietários rurais, além de moradores dos ervais, Campos de Vacaria e outras regiões. Devido à escassez de moeda circulante, que se prolongou até depois da República Velha, solidificou-se o costume do escambo. Assim, o fazendeiro-comerciante organizava comitivas para buscar artigos industrializados e os trocava por couros de bovinos e animais silvestres, erva-mate e tudo o mais que se produzisse e fosse de interesse. A consequência é o fortalecimento e interdependência econômica e política desses chefes locais do sul de Mato Grosso, devido à distância, ausência, falta de comunicação e de assistência do poder público estabelecido em Cuiabá. Segundo Alisolete Weingartner, “[é] nesse meio que o fazendeirocomerciante torna-se líder político local e arregimenta homens armados para ajudá-lo nas suas lutas políticas” (Weingartner, 2002, p. 22). Para a compreensão da importância das oligarquias sulistas e nortistas para o divisionismo, consequentemente para a música, no entanto, é necessário entender o surgimento do fenômeno comercial da erva-mate, nosso próximo assunto. A erva-mate: advento de uma riqueza extrativa e transformações resultantes Segundo Carlos Warren, a primeira constatação, pelos europeus, do consumo da ervamate pelas populações pré-colombianas, se deu em 1502 (Warren, 1946, p. 155). O primeiro impulso em sua comercialização foi dado pelos jesuítas em suas missões, que também passaram a selecionar a erva. Segundo Natalicio Gonzales, a Companhia de Jesus obteve da coroa espanhola a permissão para comercializá-la em 1645, impondo uma “competição desastrosa” aos paraguaios, que nunca obtiveram maiores benefícios pelos impostos que pagavam (Gonzales, 1948, p. 158). - 55 Os povos da bacia do Prata constituíam um mercado consumidor extremamente forte para a erva-mate. Segundo Athamaril Saldanha, [e]m 1726, o consumo do mate andava pelos 60.000 quilos distribuídos entre Paraguai, Províncias do Rio da Prata, Chile e Peru. Em poucos anos, este consumo atingiu a cifra dos 5.000.000 quilos, comercializados principalmente entre Santa Fé e Jejuy na Província do Prata, e daí redistribuídos para os mercados acima referidos. Naturalmente que no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, o uso do mate foi altamente propagado, já que possuíam ervais nativos dado (sic) a abertura das missões jesuíticas (Saldanha, 1986, p. 453). Pelo ano de 1860, ainda segundo Saldanha, o presidente do Paraguai, António Carlos López (pai de Solano) conseguia, por meio de um esforço progressivo de aumento da produção, que somente aquele país comercializasse 2.000.000 de quilos, a serem utilizados na compra de armas para proteger o país ameaçado por João Manuel Ortiz Rosas, ditador argentino (Saldanha, 1986, p. 454). No Brasil, os ervais nativos, segundo Gilmar Arruda, estendiam-se desde a foz do rio Pardo no rio Paraná, por este até Sete Quedas, percorrendo a linha de fronteira com o Paraguai até Ponta Porã e pela serra de Maracajú até os limites atuais do município de Sidrolândia, daí pelo rio Pardo até sua foz no rio Paraná. (Arruda, 1986, p. 209) Uma ilustração aproximada desta área dos ervais é propiciada por Nelson Werneck Sodré: - 56 - Figura 2 - Ervais nativos do sul do MS (Fonte: Nelson Werneck Sodré apud Arruda, 1986, p. 213) Como se pode ver, trata-se de uma área imensa. Esta área é formada de terras extremamente férteis, que hoje são utilizadas para os produtos mais lucrativos de uma agricultura altamente tecnologizada, como a soja, cana-de-açúcar e algodão, além da chamada safrinha (segunda safra do ano, com menor produtividade) de milho, sorgo e outros cereais. No entanto, à época de insegurança e ausência do estado que estamos referindo, tudo o que existia ali, fora os esparsos e pequenos núcleos de povoamento e poucas fazendas, eram os ervais nativos, utilizados por índios e paraguaios para seu consumo. Para que a exploração capitalista se consumasse, seria necessário um projeto de dizimação sistemática dessas populações, que coincidiu com a Guerra da Tríplice Aliança. Retirados os entraves, a exploração passa a dar-se com a instalação da Companhia Matte Larangeira. A empresa viria a arrendar grande parte desta área, utilizando irregularmente, também, partes não arrendadas. Seu poderio era inimaginável, verdadeiro - 57 estado dentro do estado, com polícia, moeda, ferrovias, embarcações e estradas próprias, influindo decisivamente nos rumos da política cuiabana, emprestando dinheiro ao estado combalido por disputas armadas em que a própria erva era uma motivação maior, elegendo governantes de sua preferência e dando combate às oligarquias nortistas adversárias, às nascentes oligarquias sulinas e aos posseiros que ali desejavam se instalar. Nesta qualidade, insuflou os ideais divisionistas desses posseiros e dos coronéis proprietários de terras sulistas. Para a instalação da Empresa Matte Larangeira, foi fundamental o tratado de limites firmado entre o Império do Brasil e a República do Paraguai, após a guerra. Segundo Pedro Ângelo da Rosa, a comissão nomeada para a demarcação dos limites, chefiada pelo coronelde-engenharia Rufino Ennéas Gustavo Galvão, depois barão e visconde de Maracaju, partiu do Rio de Janeiro a 6 de junho de 1872 (Rosa, 2004, p. 19). Fazia parte da comissão, como comandante militar, o capitão Antonio Maria Coelho, ex-comandante da Retomada de Corumbá na Guerra da Tríplice Aliança, encarregado, agora, de repelir ataques indígenas (Ferreira, 2007, p. 28). É neste momento que faz sua entrada um dos personagens principais desta história, o gaúcho Thomaz Larangeira16, fornecedor de víveres à expedição. Como gaúcho e comerciante que era, Larangeira conhecia o potencial econômico da erva na região platina, e soube avaliar a grande qualidade e quantidade da erva sul-matogrossense. Após o fim dos trabalhos de demarcação, em 1874, Larangeira permanece no local e decide explorar o negócio com pessoal especializado no preparo da erva-mate, trazidos do Rio Grande do Sul. Contava também, para o trabalho de colheita e cancheamento (trituração inicial, grosseira, para ensacamento) da erva, com a mão de obra paraguaia, submetida a regime semiescravo de trabalho. A esta altura, Ennéas Galvão (o chefe da comissão de demarcação de limites, a quem servia Larangeira) era providencialmente nomeado Presidente da Província de Mato Grosso. 16 Ortografia da época, respeitada aqui neste e em vários outros casos. - 58 Nesta qualidade, intercede junto ao Imperador em favor do esperto comerciante, obtendo para este, pelo Decreto do Governo Imperial nº 8.799, de 9 de dezembro de 1882, sua primeira concessão, válida por 10 anos. Larangeira torna-se, assim, o primeiro concessionário dos ervais. Neste decreto, que levava a rubrica de Pedro II, parece evidente sua mão humanística, em cláusulas como a que impõe que [o] concessionário não podera directa ou indirectamente impedir a colheita da hervamatte aos moradores do territorio, de que trata a presente concessão, que viverem de semelhante industria e della tirarem os indispensaveis meios de subsistência. (apud Arruda, 1986, p. 277) A Matte Larangeira irá, após o advento da República, interferir no texto das concessões para retirar a proteção ao morador prévio e fazer com que, ao contrário, passe a ser encarregada de “zelar”, com sua truculenta polícia própria, pela integridade do território. Com isso, impedirá a exploração individual e a fixação do elemento humano no sul de Mato Grosso. Ao fazê-lo, fomentará, assim, o ideal divisionista. Hostilizados como intrusos, enfrentando uma política favorável à Companhia, na medida em que o governo aumentava o preço das terras devolutas, muitos dos moradores daquelas raias colocaram-se abertamente contra o governo e contra a Companhia. A sua forma de exploração monopolista e suas ligações com o governo estadual consistiram em fatores desestabilizadores no sul de Mato Grosso, gerando as primeiras manifestações e intenções divisionistas. (Bittar, 2009a, p. 69) A fundação da Empresa Matte Larangeira se dá logo após o decreto, com o aval do governo da Província de Mato Grosso e o apoio financeiro da empresa argentina Francisco Mendes & Cia (Weingartner, 2002, p. 70). Os capitais, principalmente ingleses, que impulsionavam esta empresa argentina, seriam os principais beneficiários do ciclo da ervamate. Isso porque toda a produção da Empresa Matte Larangeira – ainda em estado bruto, com pequeno valor agregado –, desde esses momentos iniciais até a decadência da futura Companhia Matte Larangeira, seria entregue à Francisco Mendes para beneficiamento e exportação (Arruda, 1986, p. 245). Sua sede de exportação de erva-mate era a cidade de Concepción, no Paraguai, o que contribui para ressaltar os fracos laços entre Mato Grosso e os - 59 centros políticos e grupos capitalistas brasileiros, bem como as relações próximas deste estado com países da América Platina e o mercado global. Thomaz Larangeira estaria no gozo da concessão até 1900. No entanto, oito anos de sucesso do empreendimento do gaúcho, contados desde a primeira concessão, foram suficientes para despertar o interesse de uma poderosa oligarquia nortista, os Murtinho, que logo iria dominar o negócio usando de sua enorme influência política. Organizando-se no sentido de fazer com que seus membros ocupassem destacadas posições de poder, essa família é, assim, emblemática de uma tradição política renitente na história de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (além de, evidentemente, muitos outros estados brasileiros e países). Para ascender à direção da empresa, foi fundamental (e também providencial, agora para os Murtinho) uma alteração advinda da nova Constituição Federal, instituída como decorrência da Proclamação da República. Esta alteração dizia respeito à responsabilidade de legislar sobre terras devolutas, que anteriormente era do Império e agora passava a ser do estado em que tais terras se encontrassem (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1891, Art. 64). Assim, quem dominasse a política oficial poderia interferir no processo de concessão das terras devolutas dos ervais. Foi o que aconteceu. Em um inteligente processo de articulação, os Murtinho passam a controlar os postos de comando e os políticos do estado, influenciando também a política federal. O primeiro momento desta ascensão é a nomeação do engenheiro e médico Joaquim Murtinho para senador do Império, em outubro de 1889, para representar a Província de Mato Grosso na Câmara, dois meses antes da Proclamação da República. Mantendo-se no cargo após a mudança de regime, viria a ser senador da República por três mandatos (1890 a 1896, 1903 a 1906, e 1907 a 1911), médico de Deodoro da Fonseca, ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas de Prudente de Morais e ministro da Fazenda e da Viação e Obras de Campos Salles. - 60 Já seu irmão Manoel Murtinho seria o primeiro presidente eleito de Mato Grosso (pela Assembleia Constituinte), em 1891, e, mais tarde, ministro do Supremo Tribunal Federal. No jogo político que se segue, os Murtinho sofrem a oposição de Antonio Maria Coelho, que se elege governador. O líder do Partido Liberal, partido de maior expressão à época, coronel Generoso Ponce, percebia em Maria Coelho uma ameaça às suas próprias pretensões às riquezas oriundas da erva-mate, o que o leva a aliar-se aos Murtinho. Segue-se um governo conturbado em que Maria Coelho e seus correligionários buscam, sem sucesso, manter afastadas do poder as outras duas oligarquias, a dos Murtinho e a de Ponce (é necessário lembrar que o poder político daquelas oligarquias dependia, em grande parte, da capacidade de fazer nomeações para cargos públicos e outros usos privados da máquina estatal). Com a influência exercida junto a Deodoro da Fonseca, Joaquim Murtinho consegue a exoneração de Maria Coelho do Governo Provisório. Evidenciando o poder de Murtinho na esfera federal, e o uso privado da máquina pública, o Ministro da Justiça Campos Sales indefere o recurso impetrado por Maria Coelho e seus correligionários contra a anulação das eleições de 3 de janeiro (Corrêa Filho, 1969, p. 617). No entanto, isto não impediu que os constituintes eleitos pelo Partido Nacional a 3 de janeiro se sentissem legítimos representantes do estado. Com isso, embatem-se os dois grupos de constituintes, este, ligado a Maria Coelho, e o do Partido Republicano, ligado a Generoso Ponce e os Murtinho. O novo governador, coronel João Nepomuceno de Medeiros Mallet, empossado em 6 de junho do mesmo ano (Martins, [197-?], p. 76), busca obter uma conciliação entre os dois partidos (que, na verdade, eram apenas o braço político das três oligarquias). Na impossibilidade de atingir o acordo, Mallet segue parecer de Campos Salles, reconhece a eleição de 28 de maio e convoca os deputados do Partido Republicano para a Constituinte - 61 (Souza, 1953, p. 44). Essa Assembleia, em 15 de agosto de 1891, promulga a primeira Constituição do estado (já elaborada de acordo com as prescrições da Constituição brasileira de 1891, a primeira da República, promulgada em fevereiro deste ano). Seu anteprojeto havia sido elaborado por Manoel Murtinho e José Maria Metello. Também elege Manoel Murtinho para Presidente do estado, 1º Vice-Presidente Generoso Ponce, 2º Vice-Presidente José da Silva Rondon e 3º Vice-Presidente Pedro Celestino Corrêa da Costa. Segue-se uma revolta armada entre as oligarquias, com o levante das guarnições militares de Corumbá, Nioaque e Miranda (sul do estado), fiéis a Maria Coelho. Em reunião ocorrida em 31 de março de 1892, alegando interferência do governo federal nos assuntos do estado, com a imposição de um governador, o coronel João da Silva Barbosa propõe aos oficiais comandantes das unidades militares sediadas no sul de Mato Grosso a instituição do Estado Livre de Mato Grosso, ou República Transatlântica de Mato Grosso, que seria a primeira tentativa de separação do norte e do sul do estado, marco histórico do divisionimo. À frente de mais de três mil homens, Generoso Ponce estabelece cerco a Cuiabá em 7 de maio, e, “depois de sangrentos combates nas suas ruas, assume o Governo até que o Presidente deposto, Dr. Manoel Murtinho, que viajara para o Rio de Janeiro, se apresentasse para reassumir seu cargo, o que se verificou a 20 de julho” (Martins, [197-?], p. 83, grifo meu). No interregno que vai da tomada de poder por Ponce até a posse de Murtinho desenvolveram-se as lutas em que Ponce vence os militares amotinados e liquida o Partido Nacional, de Maria Coelho. “Livre dos embaraços políticos e apoiado pela unanimidade da Assembleia Legislativa e a maioria da representação federal, Manoel Murtinho faz um governo no qual a exploração ervateira é o principal objetivo” (Weingartner, 2002, p. 44). Estava cumprida a trajetória que levaria os Murtinho até o domínio dos ervais. Afastados do poder Maria Coelho e sua oligarquia, a coligação Murtinho-Ponce busca entrar na posse das riquezas da erva-mate. E isso vem bem rápido, pois, já em novembro de 1892, - 62 Manoel Murtinho sanciona a lei nº 26, proposta pela Assembleia Legislativa. Esta lei estabelecia concorrência pública para o arrendamento, para fins de exploração da erva-mate, dos “terrenos devolutos comprehendidos pelos rios Iguatemy e Paraná e linha de limites com a República do Paraguay até encontrar a cabeceira principal do mesmo Iguatemy” (Arruda, 1986, p. 281). O vencedor da concorrência foi o Banco Rio e Mato Grosso, de propriedade de Joaquim Murtinho. Este banco foi uma das muitas empresas surgidas da desastrada política financeira de Rui Barbosa, denominada de Encilhamento, que facilitou a emissão de papelmoeda sem lastro em ouro ou prata, por parte de bancos privados. O resultado foi a especulação financeira, crise generalizada, inflação e ruína de muitas empresas, entre elas, o Banco Rio e Mato Grosso – mas apenas em 1902, depois de haver cumprido com seu objetivo, de colocar os Murtinho no controle dos ervais. Evidentemente, faliu a empresa, não seus proprietários, que continuaram no mando da política. A esta altura, a dominância econômica do sul em relação ao norte era incontestável, tanto por causa da exploração da erva-mate quanto da expansão pecuária. Este sucesso passa a atrair migrantes, em especial os gaúchos egressos da Revolução Federalista (visto que os paraguaios, a principal mão-de-obra dos ervais, não se fixavam no local e retornavam aos seus lugares de origem ao fim de cada safra). Como já foi dito, o sul de Mato Grosso possuía enorme extensão de terras devolutas, grandes detentoras de ervais nativos e propícias à pecuária e agricultura. Portanto, oferecia-se como um dos locais mais convidativos para os gaúchos, tradicionalmente ligados à exploração pecuária e agrícola, com destaque para a erva-mate. Tem início, então, expressiva corrente migratória advinda do sul do País. Como não poderia deixar de ser, este afluxo de migrantes vinha a contrariar os interesses da Companhia Matte Larangeira, a quem não interessava o estabelecimento de - 63 famílias de posseiros-proprietários, mas apenas a compra do trabalho semiescravo e temporário dos paraguaios. Não é surpreendente, então, o fato de que o presidente Manoel Murtinho “denunciava em 1895 que diversos indivíduos registraram posses fantásticas declarando ocupar terrenos que jazem inteiramente incultos, com o fim de legitimá-los e, assim, constituírem-se grandes latifúndios para, mais tarde, os dividirem e vender por lotes” (Corrêa, 1982, p. 94). Murtinho detectava a formação das primeiras oligarquias sulinas, verdadeiras ameaças ao monopólio da erva-mate exercido pela Companhia Matte Larangeira. Entretanto, como já foi explicado à página 37, no conflito entre o monopólio, representado pela Matte Larangeira, e a manufatura, que tinha como proponentes os comerciantes, muitos deles coronéis, era este último o setor realmente ameaçado. Na busca de resistir ao inexorável jugo monopolista, os coronéis buscam o apoio dos posseiros. A relação entre oligarquia e migração é explicitada por Gilmar Arruda: O setor oligárquico, ligado a [sic] propriedade da terra, da [sic] onde provinha seu poder político e econômico, via no assentamento dos migrantes, uma maneira de fortalecer sua posição, ou seja, o próprio coronelismo seria reforçado com o aumento de proprietários e de moradores que se tornariam massa de manobra dos potentados locais, além de significar para os comerciantes, um aumento considerável de consumidores. (Arruda, 1986, p. 257) Os fazendeiros-comerciantes chegados logo após a Guerra da Tríplice Aliança já se organizavam neste sentido, tecendo laços comerciais, políticos, de amizade e compadrio com os posseiros que começavam a se instalar no lugar, e tinham seus requerimentos de posse negados pelo Judiciário estadual, além de sofrerem ataques da Matte Larangeira. O coronel João Mascarenhas, por exemplo, era já um dos mais abastados da região de Nioaque; outro era o coronel João Caetano Teixeira Muzzi (Rosa, 2004, p. 44). Ambos organizam partidos políticos (respectivamente, o Partido Republicano Popular e o Partido Autonomista). Ambos têm também, contraditoriamente, ligações com as oligarquias nortistas, e competem entre si para obter seus favores. Muzzi, com seus homens, é encarregado de - 64 defender os interesses da Companhia, evitando que posseiros se alojem na região. No entanto, com o aparecimento de ideais divisionistas em seu Partido Autonomista, Muzzi passa a ser considerado “inimigo da ordem e da tranquilidade na região” (de acordo com ofício de um chefe de polícia não nomeado, citado por Weingartner, 2002, p. 46). Perdendo o apoio da Companhia Matte Larangeira, em 1894 Muzzi sofre combate contínuo de João Mascarenhas (que recebe apoio maciço de Ponce, dos Murtinho e da Companhia) até que, vencido, exila-se no Paraguai, levando consigo os restos de seu Partido Autonomista, e, com ele, mais uma tentativa frustrada de implantação do divisionismo. No entanto, embora vencida pela força, a ideia de promover a divisão do estado como, aparentemente, o único meio de diminuir a influência da Matte Larangeira e possibilitar o estabelecimento dos migrantes não foi erradicada. Entre a comunidade que lutava para obter a legalização de suas posses, ocorreu um cisma entre os partidários de Mascarenhas, esperançosos de obter esta legalização individualmente para si, e os divisionistas de Muzzi, vencidos e desejosos de revanche. Desta maneira, o conflito permaneceu latente, e os ódios ampliados com a derrota. Os interesses das oligarquias comandadas por Ponce e os Murtinho podiam ser discordantes, uma vez que Ponce apoiava seu amigo e correligionário João Mascarenhas nas tentativas de reconhecimento e legalização das posses junto ao Legislativo estadual, o que era necessário para a manutenção do apoio político que Ponce desfrutava no sul do estado. No entanto, mesmo opondo-se aos interesses dos Murtinho com relação às áreas dominadas pela Companhia Matte Larangeira, estas diferenças não impediam que as duas oligarquias operassem em conjunto, sempre que ideais divisionistas – que ameaçavam a ambas – se manifestassem. Nessa qualidade, tal como se viu no caso de Muzzi, insuflavam as divergências políticas no sul, favorecendo um dos grupos, toda vez que surgiam movimentos divisionistas (Corrêa, 1982, p. 96). Tudo isto evidencia a ausência de um movimento - 65 organizado, e, embora permita reconhecer anseios de uma quantidade numerosa de posseiros em busca de títulos de propriedade, estabelece o divisionismo como interesse de coronéisproprietários de terras. As contradições desses abastados coronéis-comerciantes e proprietários rurais – João Mascarenhas, João Teixeira Muzzi, Bento Xavier – são evidenciadas pelo fato de que buscavam, antes de tudo, ascensão pessoal ao poder e enriquecimento. Esta afirmação se verifica pela forma com que oscilavam em suas lutas, ora em favor dos posseiros, ora em favor dos interesses da Matte Larangeira e dos políticos nortistas. Tais contradições não impediram que, na mitologia do divisionismo, passassem a “heróis”. Mascarenhas, percebendo a inutilidade de seus pleitos junto ao Judiciário estadual, de regulamentação e legitimação das posses dos colonos sulistas a ele ligados, adota a bandeira divisionista. É então combatido por tropas do governo apoiadas por Bento Xavier, ele próprio um gaúcho egresso da Revolução que, em breve, sustentaria o ideal divisionista e seria, por sua vez, combatido pelas oligarquias nortistas. Derrotado e morto Mascarenhas, em 1901, a coligação que uniu a oligarquia dos Murtinho, o Presidente do estado Antonio Pedro Alves de Barros e as forças de Totó Paes sitia e massacra aliados de Ponce que se encontravam na usina do irmão de Totó Paes, João Paes de Barros. Como consequências, a oligarquia dos Barros se parte e a oposição se dispersa, exilando-se Ponce no Paraguai, onde passa a atacar o governo pelo jornal que funda, A Reacção. Sendo inevitáveis novos confrontos, os Murtinho buscam novamente aproximar-se de Generoso Ponce, que aceita o combate, trazendo seus correligionários. Entre os coronéis sulistas a quem Ponce está aliado figura Bento Xavier, que a esta altura havia se tornado próspero fazendeiro, comerciante e líder. - 66 Entretanto, as divergências entre as duas oligarquias, Ponce e Murtinho, não tardariam em ressurgir. Ainda em 1906, com a conjuntura política favorável pelo reconhecimento dos candidatos apoiados pela “Coligação” Murtinho-Ponce, a Companhia Matte Larangeira solicitou à Assembleia uma renovação antecipada de seu contrato. Não conseguiu por interferência de Ponce. Como já foi dito, Ponce, como comerciante que era, estava ameaçado pelo monopólio representado pela Matte Larangeira, e seu apoio à coligação que sustentava os interesses da companhia não poderia deixar de ser conjuntural. Em vista disso, Ponce desenvolve um plano, no intuito de manter o apoio dos posseiros sulistas e ir ao encontro dos interesses dos comerciantes, de parcelar a região ervateira em lotes de 450 hectares para arrendá-los em hasta pública (Corrêa Filho, 1969, p. 603). Vemos nessa disputa, de um lado, os Murtinho como aliados ao capital financeiro monopolista, organizador da Matte Larangeira e outras empresas similares no estado. E, de outro, Ponce, como representante dos interesses dos comerciantes ameaçados pelo monopólio e desejosos de aniquilar a empresa e partilhar as terras por ela ocupadas entre os posseiros. Segundo Gilberto Luiz Alves, nesse momento, Ponce era o principal líder político dos comerciantes mato-grossenses (Alves, 2005, p. 36). O plano de Ponce, no entanto, é deixado de lado, tendo em vista o cumprimento de acordos que tornaram sua eleição possível. Tais acordos, evidentemente, não repercutiram bem entre os moradores dos ervais, reavivando as dissensões entre estes e a Matte Larangeira. Isso porque a solução para a “questão do mate” não ameaçou o monopólio do grupo que a explorava, nem transformou a situação vulnerável dos posseiros. A Resolução 725, de setembro de 1915, acenava com a promessa de importantes restrições à Matte Larangeira, principalmente a limitação da área arrendada a 400 léguas quadradas (1.440.000 hectares), a sua demarcação (o que até então nunca havia sido feito), e a tão esperada possibilidade de compras de lotes de 3.500 hectares, por posseiros, das terras dos ervais. Entretanto, em vez de - 67 comprometer os interesses capitalistas, a situação foi favorável à empresa monopolista e representou maior exploração aos posseiros, pois passaram a girar sob a órbita de influência da empresa Laranjeira, Mendes & Cia., que lhes comprava toda a produção de erva-mate com base em preços que ela própria fixava. Os pequenos produtores não tinham meios de reagir, pois a empresa dominava os transportes e, como decorrência, o escoamento da produção. Transformaram-se, assim, numa reserva de mão-de-obra explorada com regularidade, desde então, por força de sua fixação à terra. Essa fixação, pelo lado do trabalho, constituiu-se numa grande vantagem para o capital, se comparada ao desenraizamento da mão-de-obra paraguaia, até então quase exclusiva nos ervais, e às dificuldades decorrentes de recrutamento e de rotatividade dos trabalhadores. Inegavelmente, a solução da “questão do mate” correspondeu a uma derrota para os comerciantes, que só lograriam gozar da dependência dos pequenos ervateiros caso o grupo monopolista se retirasse em definitivo da região. Como o acordo final não consumou tal possibilidade, saiu fortalecido o capital financeiro, fonte da gradativa quebra de poderio da casa comercial a partir de fins do século XIX. (Alves, 2005, p. 37) Adicionalmente, a produção da Matte Larangeira continuou estável, passando, além disso, a receber indenizações do governo por áreas que não mais lhe interessavam, cedidas a este para a regularização dos títulos dos posseiros. Com isso, Bento Xavier se rebelou, instituindo um movimento divisionista no mesmo ano de 1907, e buscando a legalização das posses dos moradores do sul de Mato Grosso. Seu movimento, “a que o povo daquela época deu o nome paradoxal e pitoresco de Revolução da Paz” (Rosa, 2004, p. 48), foi arquitetado por um ideólogo, o advogado Barros Cassal, que também foi devidamente alçado, a posteriori, a herói divisionista. Cassal é assim descrito por Hildebrando Campestrini: Barros Cassal era o teórico do movimento autonomista, cujas cores eram o azul e o branco (que figuram na bandeira de Mato Grosso do Sul). Cassal lutara com os federalistas, chegando a ser secretário da coluna de Gumercindo Saraiva, quando conheceu Bento Xavier, com quem veio para Mato Grosso, fixando em Nioaque, onde faleceu em 1903. Aqui defendia a Revolução da Paz, que compreenderia também uma reforma agrária. (Campestrini, 2004, p. 49) No entanto, como se sabe, não seria ainda esta vez que o movimento separatista conseguiria estabelecer a divisão do estado de Mato Grosso. Em junho de 1911, após sucessivas derrotas, Bento Xavier interna-se no Paraguai. Terminava assim a “Revolução da Paz”. - 68 Outra voz a se levantar contra as pretensões da empresa neste momento, a do deputado Brandão Júnior. Ela deve ser mencionada, devido ao fato de que a existência de representante eleito evidencia já a expressividade numérica dos migrantes-posseiros e alguma organização política por parte deles. Sendo natural do Rio Grande do Sul, Brandão Júnior foi eleito por interessados na partilha e venda destas terras em disputa. O projeto que encaminha, retomando as ideias daquele já mencionado, de autoria de Generoso Ponce, propõe a divisão dos ervais em lotes a serem leiloados em hasta pública. E justificava sua posição argumentando que ‘ali, no Planalto do Amambai, havia 20.000 brasileiros que, desde longa data, permaneciam, por assim dizer, acampados, na expectativa da terminação dos contratos da Empresa Larangeira, Mendes & Cia., esta malfadada empresa’. (Brandão apud Arruda, 1989, p. 70) Ao mesmo tempo ocorriam as primeiras mudanças modernizadoras no então arraial de Campo Grande, trazidas já pelos planos de implantação da ferrovia Noroeste do Brasil. A companhia foi autorizada a funcionar por decreto de 1903, encarregando-se de iniciar imediatamente os estudos para implantação do trajeto Bauru (SP)-Cuiabá (MT). Esta era a intenção dos políticos de Cuiabá, que assim desejavam escoar a erva-mate pelo porto de Santos (SP). No entanto, segundo alguns autores, prevaleceram as razões da defesa da soberania nacional, visto que, a partir de 1906, acirram-se as tensões com a Argentina com a ascensão de Estanislau Zeballos à Chancelaria daquele país. Zeballos confrontou o Barão do Rio Branco, então Ministro das Relações Exteriores, devido ao rearmamento naval brasileiro, aprovado em 1906, e a criação da Embaixada Brasileira em Washington. Acusando Rio Branco de retomar o expansionismo do Império, Zeballos teria chegado a arquitetar, em 1908, um “plano de invasão do Rio de Janeiro se o Brasil não aceitasse a equivalência naval” (Muñoz, 2009, p. 18). No auge da crise, a lembrança recente da Guerra da Tríplice Aliança, em que, como vimos, o Brasil fora invadido pelo país vizinho, teria sido crucial para modificar o trajeto da ferrovia. As ordens do governo federal determinavam concluí-la com - 69 rapidez, demandando o Rio Paraguai onde fosse mais conveniente para uma eventual travessia. A escolha recaiu em Corumbá, com a consequente passagem por Campo Grande, como comenta Cabral: Assim, compreende-se porque, ao invés de infletir rumo ao norte, a ferrovia seguiu a oeste, para Corumbá. Ao se decidir por este traçado, elegia-se Campo Grande como ponto de apoio vital para o guarnecimento das fronteiras internacionais com a Bolívia e com o Paraguai. Para tanto, além do tronco principal da ferrovia, ligando Bauru a Corumbá na fronteira boliviana, definiu-se a construção de um ramal, partindo de Campo Grande em direção a Ponta Porã, na fronteira paraguaia. (Cabral, 1999, p. 32) Já Gilberto Luiz Alves possui outra explicação para o traçado da ferrovia. Para o autor, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil “não reforçou as empresas monopólicas estabelecidas nos centros platinos mas, sim, as sediadas num novo polo, constituído pelo eixo São PauloSantos” (Alves, 2005, p. 42). Como Cuiabá girava na órbita de influência dos grupos monopólicos sediados em Buenos Aires e Montevidéu, acessados via Rio Paraguai, criou-se um conflito com os interesses de outros grupos, ligados a São Paulo. As elaborações geopolíticas, que se fixam sobre evidências ilusórias, têm procurado minimizar e desfigurar esse conflito econômico, reduzindo-o às suas dimensões nacionais. Tal é, por exemplo, o sentido de um tipo de interpretação que confere à construção da Noroeste do Brasil objetivos estratégicos, de integração nacional. Resulta velado, portanto, o fenômeno do imperialismo. Ao capital, em seu movimento, importa somente reduzir os custos de produção e de transporte das mercadorias, visando a consecução de maiores taxas de lucro. No caso mato-grossense, o barateamento dos transportes, propiciado pela via férrea, determinou o deslocamento da hegemonia econômica platina para o eixo São Paulo-Santos. Frise-se que ao agente desse deslocamento, o capital monopolista, configurou-se indiferente ter como razão social centros “nacionais” ou “estrangeiros”. Somente uma maior taxa de lucro o levou a privilegiar a “solução nacional”. (Alves, 2005, p. 42) Provavelmente, tanto as explicações econômicas quanto geopolíticas sejam pertinentes. Como estamos acompanhando, as questões culturais-ideológicas envolvendo as relações entre as populações do MT e dos países vizinhos – inclusive a segurança nacional – são centrais para situar as decisões que influíram no destino daquele estado, com destaque para sua divisão. No entanto, o aspecto econômico – a promoção da modernização capitalista na região – não deixou de ser uma motivação importante em todo esse processo, evidenciando pressões e - 70 conflitos entre grupos interessados em manter controle sobre o território, tanto os estabelecidos no Brasil como na América Platina. Tanto a economia quanto a geopolítica, portanto, convergem para a promoção de um efetivo deslocamento da hegemonia platina e o estabelecimento da dominância do eixo RioSão Paulo sobre a região. Este fato é da maior importância para a MLC, uma vez que sua insistência nos gêneros platinos passará a assumir uma posição contraideológica (pelo aspecto cultural) e mercadologicamente inviável (pelo aspecto econômico). Voltando aos preparativos para a implantação da ferrovia em Campo Grande, em 1909, a engenharia militar do Exército demarcou uma área de 3.600 hectares e procedeu ao planejamento urbano do local, com novo arruamento e ordenamento. Processou-se uma modernização do desenho urbano, com largas ruas e avenidas dispostas em tabuleiro de xadrez, de modo a otimizar a circulação de veículos e a edificação de casas e lojas, em uma cidade que cresceria com a chegada dos trilhos. A linha férrea e a estação passam a constituir referências a partir das quais se estrutura, agora remodelado, o núcleo urbano. (Cabral, 1999, p. 32) Avançava a ferrovia, portanto, com rapidez. Com ela, chegava a modernização que, de um lado, deslocaria irreversivelmente as oligarquias nortistas do centro de poder, afirmando as oligarquias sulistas em sua busca de controle administrativo da região por intermédio do divisionismo. De outro, contribuiria para uma complexa composição social na cidade de Campo Grande, com a multiplicidade de migrantes nacionais e estrangeiros. Estes já começavam a chegar para trabalhar na construção da estrada de ferro, cujos trilhos encontraram Campo Grande em 1914. A ferrovia relegou a segundo plano o meio de transporte de cargas e passageiros até então dominante, que era o Rio Paraguai, propiciou rapidez, economia e grande aumento no escoamento da produção do estado e marcou de maneira determinante a identificação do sul de Mato Grosso com São Paulo. Este último fato, além de significar uma vantagem estratégica da cidade em relação a Cuiabá, que permanecia isolada e distante, teria consequências no encaminhamento local dos levantes militares ocorridos no Brasil nas décadas de 1920 e 1930. Todas estas - 71 transformações, trazidas pela ferrovia, pela influência militar (cujo contingente vinha, transferido, de todas as partes do Brasil), pelo fortalecimento dos pecuaristas enquanto classe dominante, e pela diversidade migratória, teriam influências sobre as discussões em torno de uma suposta identidade cultural de Campo Grande. Tal problema viria a ser colocado e elaborado, mais tarde, pela MLC. Nesta década de 1920, várias e importantes são as alterações do contexto político, econômico e institucional que favorecem o sul do estado, tirando partido tanto de seu vigor econômico quanto de sua localização estratégica. Em 1921, a Circunscrição Militar é transferida de Corumbá para Campo Grande. Tendo sob seu comando os destacamentos militares de todo o Mato Grosso, em especial os das fronteiras do sul do estado, a Circunscrição, ao estabelecer-se no sul, passa a exercer significativa influência sobre o divisionismo. Manifestações divisionistas acompanham todos os episódios locais das seguidas sublevações tenentistas (1922, 1924 e a Coluna Prestes), da Revolução de 1930 e da Revolta de 1932 que acometeram o país, em que os apoios das elites pecuaristas locais a São Paulo eram acompanhados pela sempre renovada expectativa de divisão do estado, caso o levante em questão fosse bem sucedido. A revolta de 1922, ou revolta do Forte de Copacabana, manifestação tenentista progressista que se insurgiu contra a política oligárquica ruralista do “café com leite” na figura do Presidente Arthur Bernardes, refletiu-se em Mato Grosso por meio do levante comandado pelo general Clodoaldo da Fonseca. Este militar sublevou a 9ª Circunscrição Militar e os regimentos da fronteira, “inclusive o 11° R.C.I., de Ponta Porã, que fez convocação de reservistas” (Rosa, 2004, p. 54). Rapidamente dominada, a sublevação não teve sucesso em seus objetivos imediatos, mas provocou efeitos sobre o divisionismo. A partir da revolta, os coronéis foram impedidos de realizar a convocação militar, que passa a ser prerrogativa dos generais. Forçados à - 72 subalternidade, esses coronéis, que eram chefes políticos e proprietários de terras no sul, veem-se na contingência de fortalecer suas alianças mútuas. Com isso, tornam-se progressivamente independentes das oligarquias nortistas e ligados ao tenentismo, o que contribui para a formação de novas lideranças urbanas, muitas vezes oriundas das oligarquias rurais sulistas (Neves, 1989, p. 107). Com isso, de um lado, fortalece-se o sentimento divisionista, e, de outro, a influência, na região, do Rio de Janeiro e São Paulo (Weingartner, 2002, p. 63). A Revolta Paulista de 1924, segunda manifestação tenentista, comandada pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, também teve adesões de tenentes em Bela Vista, no sul de Mato Grosso. O MT foi um dos poucos estados que aderiram à segunda tentativa – esta, iniciada em São Paulo – de desestabilização do regime oligárquico de Arthur Bernardes, juntamente com Amazonas, Pará, Sergipe e Rio Grande do Sul. No entanto, foi exatamente nesta região, na cidade de Três Lagoas, que a revolta teve sua maior derrota. Um terço das tropas revoltosas morreu, feriu-se gravemente, ou foi capturado. Apesar de rapidamente sufocada, a rebelião promoveu a propaganda do ideário divisionista. Em agosto do mesmo ano, uma coluna comandada por Juarez Távora, tenente engajado na revolta paulista, chega a Porto Independência, na divisa SP-MT, lançando um manifesto dirigido aos sul-mato-grossenses que os incitava à divisão territorial, com a criação do estado de Brasilândia. Sucessivas derrotas para as forças legalistas, no entanto, forçam os revoltosos a descerem o rio Paraná, indo se internar na Argentina. No ano seguinte à Revolta Paulista, 1925, a Coluna Prestes ocupou Dourados, Porto Felicidade e Campanário, sendo esta a cidade-sede da Companhia Matte Larangeira. Com a adesão de divisionistas, a Coluna obteve algumas vitórias até ser derrotada pelas forças do Exército, apoiadas pela polícia da Companhia. - 73 Mesmo assim frustrado nas tentativas práticas de implantação, o ideário divisionista, enquanto suporte das pretensões ao poder pelas elites proprietárias, permaneceu atuante. Contribuiu para isso a intensificação das viagens de trem para São Paulo e Rio de Janeiro, fortalecendo a conexão do sul do estado com estes centros decisórios, facilitando alianças. Com o aumento das viagens, aumenta também o fluxo migratório e a exportação do gado em todas as cidades localizadas ao longo da rota ferroviária, notadamente Campo Grande. Com o desenvolvimento econômico resultante, estas cidades sulinas experimentam maior independência política com relação ao governo do estado – inclusive por não serem detentoras de ervais e, por conseguinte, não se encontrarem no interior da área arrendada. Isto favorece o crescimento da esfera de poder dos pecuaristas. A maneira que a Companhia encontra para lidar com este perigo potencial é exercendo seu poder econômico sobre o estado. Com efeito, Mato Grosso vivia com suas finanças combalidas, como foi dito, resultado de gastos excessivos com renovados conflitos armados e uma economia frágil, apoiada principalmente sobre a receita da própria erva-mate. Face às dificuldades encontradas pelo estado para apoiar a Circunscrição, segundo contrato firmado em 30/10/1926 com o Governo do estado de Mato Grosso, a companhia constrói, a suas expensas, os quartéis de Ponta Porã e Campo Grande, entregando, ainda, prédio de sua propriedade em Porto Murtinho, para acomodar a Força Pública do estado, “ou qualquer outro destino que o governo achar conveniente” (Arruda, 1986, p. 302). No mesmo contrato, a empresa empresta ao estado a quantia de três mil contos de réis, o primeiro de vários empréstimos. Como garantia, o contrato oferece a arrecadação de todos os impostos pagos pela companhia, que representam mais de 80% da arrecadação de todo o estado. Até então, as receitas da empresa eram superiores em mais de cinco vezes às do estado; o dinheiro que circulava na sua área era de impressão própria; sua força policial era expressiva até em confrontos que envolviam tropas federais; mandara construir e operava - 74 exclusivamente os portos de Guaíra, no rio Paraná (onde, devido a isso, surgiu a cidade homônima), dos rios Ivinhema e Amambaí, a ferrovia que contornava o salto de Sete Quedas, a sede em Campanário, a cidade e porto de Porto Murtinho, e outras instalações (cf. Arruda, 1986, p. 246). Agora, no mesmo movimento em que aumentava sua área de domínio para dois milhões de hectares, a empresa passava a ser também o maior credor do estado. Mas, nos planos internacional e nacional, já pairavam ameaças ao comércio do mate. Na década de 1920, o plantio de ervais na Argentina aumentou exponencialmente, resultando em grande crescimento da produção deste país na década de 1930, o que determinou progressiva diminuição da importação da erva mato-grossense e de seus preços, até a completa autossuficiência argentina no final da década (Arruda, 1986, p. 247-251). Além disso, o advento da Revolução de 1930 teve como consequência a ascensão ao poder de Getúlio Vargas, gaúcho como eram gaúchos aqueles que, majoritariamente, buscavam se estabelecer nas terras devolutas ocupadas de maneira tenaz pela Companhia Matte Larangeira. Seria por iniciativa de Vargas que, anos mais tarde, a Companhia deixaria de existir, embora por múltiplas causas que não, unicamente, a motivação de auxiliar seus conterrâneos. Para compreendê-las, façamos um breve histórico desse período. Em 1930, a campanha da Aliança Liberal, em favor dos candidatos à presidência da República Getúlio Vargas e João Pessoa, “teve grande repercussão no sul de Mato Grosso, e notadamente em Ponta Porã e Bela Vista, onde a maioria da população era constituída de riograndenses” (Rosa, 2004, p. 60). Derrotados aqueles candidatos em meio a acusações de fraude da parte do governo oficial, é deflagrada a Revolução. Tomando, mais uma vez, o partido do aliado mais constante das elites pecuárias, São Paulo, as tropas da 9ª Circunscrição Militar de Campo Grande prepararam-se para lutar. O governo de MT em Cuiabá, alinhado a Getúlio, estava pronto para dar-lhe combate, quando sobreveio a notícia de que o presidente - 75 Washington Luís fora deposto, estabelecendo a vitória da Revolução sem que se tivesse deflagrado a luta em Mato Grosso (Rosa, 2004, p. 62). Mais tarde, em 1943, Vargas iria ter participação direta na questão divisionista e na legitimação das posses no sul do estado. Para isso, no entanto, foi-lhe necessário superar a Revolução Constitucionalista de 9 de julho de 1932, instaurada em São Paulo e no próprio sul de Mato Grosso. Este movimento pode ser visto, de maneira esquemática, como uma tentativa de derrubar Vargas por parte de São Paulo, para recuperar o poder perdido com a Revolução de 1930. Assim procedendo, no entanto, em caso de sucesso São Paulo comprometeria os avanços obtidos pela Revolução de 30 quanto ao sepultamento das oligarquias agrárias que dominavam o Brasil na República Velha. Devido a isso, São Paulo não teve apoio de nenhum outro estado da Federação, a não ser Mato Grosso, mais especificamente o sul do estado, não por acaso dominado por tais oligarquias. Tal situação era insólita, pois Getúlio Vargas, sendo gaúcho, era um aliado natural dos gaúchos que lutavam contra os interesses da Matte Larangeira, buscando a titulação de suas posses nas áreas devolutas do estado, tal como se verificaria posteriormente. No entanto, explica-se pelos fortes vínculos que as elites pecuárias da região do sul de Mato Grosso já tinham com o vizinho estado de São Paulo. Tais vínculos vinham desde os tempos das incursões dos bandeirantes, e foram acrescidos por novos laços, mormente após o advento da Estrada de Ferro. A partir do estabelecimento da ferrovia, alianças com o poderoso estado vizinho se afiguraram como a mais consequente estratégia para neutralizar a influência de Cuiabá e deflagrar o processo divisionista. Condizente com esse cenário, o general Bertoldo Klinger, membro da “Junta Revolucionária” paulista, era comandante da guarnição militar de Mato Grosso, o que garantiu o apoio dessas tropas ao levante (Martins, [197-?], p. 108). Tendo sido Klinger - 76 exonerado e reformado do Exército a 7 de julho (portanto, dois dias antes da eclosão da revolta), a revolução teria sido “por assim dizer, desfechada de Campo Grande” (Virgílio Corrêa apud Martins, [197-?], p. 108). Adicionalmente, a aliança com São Paulo trouxe a promessa da divisão imediata do estado, reivindicação antiga dos proprietários rurais em luta por hegemonia. Com efeito, instaura-se o estado de Maracaju (nome da serra que corta o então sul do MT), ocupando a área do atual estado de Mato Grosso do Sul, proclamado seu governador Vespasiano Barbosa Martins. No entanto, com a derrota das forças ditas constitucionalistas de São Paulo, chega ao fim, também, mais esta tentativa malograda de dividir o estado de Mato Grosso. Uma nova tentativa surgiria dois anos mais tarde, representada pela denominada Liga Sul-Mato-Grossense. Visando interferir na elaboração da Constituição brasileira de 1934, estudantes universitários do sul de Mato Grosso, membros de famílias de proprietários rurais do sul ou a elas ligados, fundaram essa liga no Rio de Janeiro. Seu primeiro ato foi o de buscar o apoio de seus conterrâneos para um manifesto, com o qual tentariam sensibilizar os constituintes para que eles, na elaboração da Constituição, aprovassem a divisão do Estado de Mato Grosso. Sobre isso, diz Marisa Bittar: (...) [O] divisionismo, enfrentará, logo nos primeiros anos da década de 1930, um dilema: mudança de capital [de Cuiabá para Campo Grande] ou cisão do estado? Superada a fase das manifestações esparsas do início do século, os divisionistas vão oscilar entre essas duas perspectivas. De todo modo, os acontecimentos dessa década são o divisor de águas na forma de ação política das elites sulistas e na sua relação com os grupos hegemônicos de Cuiabá. Não é por acaso que só então nasce uma organização com o objetivo de encaminhar a luta pela divisão de Mato Grosso: a Liga Sul-Mato-Grossense. (Bittar, 2009a, p. 216) Como lembra a autora, Vespasiano Barbosa Martins, que havia sido proclamado governador do estado de Maracaju, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, era uma liderança emblemática desse novo período. Nesta configuração, o sul do estado, em termos políticos, estava ligado a São Paulo, e em termos econômicos, projetava sua superioridade sobre o centro e o norte do estado. - 77 A Liga fez publicar seu estatuto no Diário Oficial de abril de 1934, declarando por objetivo “pleitear a divisão do Estado de Mato Grosso em dois Estados Federados”. Para Bittar, [a] importância desse documento reside no fato de que ele é o primeiro que resulta de uma tentativa de organizar um movimento divisionista. É também o primeiro que registra a intenção de dividir Mato Grosso. (Bittar, 2009a, p. 218) Na polêmica que se seguiu com os defensores da unidade do estado, sediados ao norte, verificam-se tropos retóricos, de um lado e de outro, que gradualmente passaram a marcas valorativas e fundamentos do discurso divisionista, em busca de construção de uma identidade que fomentasse a separação. Assim, [c]uriosa é a identificação do cuiabano com a política, as “coisas do Estado”, “a máquina da governança”, o que, para os [sulistas] era associado a algo anacrônico e quase sinônimo de ociosidade. O sulista, ao contrário, era descrito como “aberto a todas as iniciativas” e “desinteressado dos cargos públicos” (...) (Bittar, 2009a, p. 223) No entanto, o futuro demonstraria que não seriam tão desinteressados assim, na medida em que a conquista de poder no interior do governo do estado, depois de concretizada a divisão, passa a ser o principal objetivo das oligarquias em disputa, tornando-se secundários eventuais projetos em favor do MS. A legitimação da necessidade desse novo aparelho de Estado passou, evidentemente, por outros discursos, além dos políticos. Já no primeiro manifesto publicado pela Liga SulMatogrossense, em 11 de outubro de 1933, intitulado Aos habitantes do sul de Mato Grosso, os universitários mostravam desprezo pelas tradições cuiabanas, declarando-se “muito mais depressa em contato com os centros mais fortes de civilização e de cultura”, ou seja, basicamente São Paulo e Rio de Janeiro. Vê-se que esta identificação com os centros de poder nacional é exatamente o oposto do projeto de estabelecer uma alternativa a estes centros a partir do desenvolvimento de uma integração entre o MS, o MT e a América Platina. Na Resposta ao general Rondon, os estudantes da Liga chegaram ao sarcasmo dirigido aos valores culturais cuiabanos, ao perguntar se: - 78 amar verdadeiramente o Estado é considerar Cuiabá a melhor cidade do mundo, o rio Cuiabá, um paraíso, embasbacar-se na grandiosidade das florestas nortistas, deliciar-se com danças inocentes de Nhambiquaras e caçadas valentes de Bororós, gozar historias de montanhas de ouro e diamantes (...) (Liga Sul-Mato-Grossense apud Bittar, 2009a, p. 235) Contrapondo o “regionalismo inútil” figurado pela história mato-grossense ao “regionalismo sadio, necessário, causa de progresso, expansão de amor à terra” dos sul-matogrossenses, os estudantes da Liga, membros das elites agrárias que se beneficiariam com a divisão do estado, iam, assim, construindo um discurso instrumental aos seus propósitos de criação e apropriação de um novo aparelho de Estado. Compreendendo a importância adquirida pelo regionalismo neste contexto, que era a de acirrar as singularidades e diferenças de norte e sul para justificar a divisão, poderemos entender, no capítulo seguinte, como essa ideologia se manifestou na música, bem como avaliar de que maneiras foi também desestabilizada por meio desta modalidade cultural. A criação da Liga Sul-Mato-Grossense alçou o divisionismo à condição de movimento organizado, representando uma ruptura com um passado de anseios dispersos. Outra característica importante desse movimento se depreende do exame das assinaturas dos manifestos e polêmicas. Segundo Bittar, as quinze assinaturas constantes da resposta dos divisionistas ao general Rondon, que havia se manifestado contrário à divisão do estado, correspondem a membros de algumas das mais antigas famílias que povoaram o sul de Mato Grosso a partir de 1830, introduzindo ali a pecuária. Assinaram o documento: Antonio Rondon, Aniceto Rondon, Sebastião Lima, Candido Lima, Israel Pereira Martins, Juvenal Corrêa Filho, Augusto Mascarenhas, Nestor Muzi, Raul Muzzi, Estevam Alves Corrêa, Altivo Martins, Major Leonel Velasco, Levino Garcia Leal, Braulino Garcia e Emílio Garcia Barbosa. (Bittar, 2009a, p. 225) Além disso, a Liga apresentou à Assembleia Constituinte de 1933 uma petição sobre a divisão de Mato Grosso, proclamando constar do documento treze mil assinaturas de populares, em apoio à Representação dos sulistas ao Congresso Nacional Constituinte. Já o senador Italívio Coelho (Arena/sul), membro de família situada entre as maiores proprietárias de terras do estado, sustentou, em discurso, o número de 20.000 assinaturas. Um número - 79 espantoso, considerando que a população de Campo Grande, na época, era de 21.360 pessoas, conforme o censo de 1920. O mesmo número foi exibido por José Barbosa Rodrigues em sua História de Mato Grosso do Sul. No entanto, analisando o documento, Bittar verificou que se tratava de uma lista de 9.248 nomes (devendo-se levar em conta nota dos editores declarando não terem sido incluídas 4 mil assinaturas, por terem chegado depois do trabalho impresso). Entretanto, não se tratava de assinaturas, senão de nomes datilografados. Tudo isso nos alerta “sobre o verdadeiro grau de adesão à demanda separatista e sobre a forma pela qual aqueles nomes chegaram à lista”. Além disso, há “nítida preponderância de algumas famílias, tais como: Barbosa, Nantes, Pereira, Sousa, Rezende, Azambuja, Nogueira, entre outras”, o que levanta a suspeita de que os chefes dessas famílias tenham, simplesmente, arrolado os nomes de seus membros sem lhes consultar. Entretanto, os propósitos divisionistas não foram contemplados. A Constituinte de 1934 não acolheu a petição separatista, e o governo Vargas, centralizador, avesso a divisões e desinteressado pelos regionalismos, reprimiu duramente os separatistas (Bittar, 2009a, p. 227232). Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o Presidente do Governo Provisório Getúlio Vargas decide desmembrar seis territórios estratégicos de fronteira do país para administrá-los diretamente, incluindo Ponta Porã. O Decreto-lei n.° 5.812, de 13 de setembro de 1943, que criou o Território Federal de Ponta Porã, estabeleceu que o mesmo seria formado do município de Ponta Porã (onde foi instalada a capital) e mais seis outros: Porto Murtinho, Bela Vista, Dourados, Miranda, Nioaque e Maracaju. Parecia ser, finalmente, o atendimento aos anseios das elites agrárias divisionistas. No entanto, representava apenas as características político-ideológicas da ditadura de Vargas: nacionalismo, interiorização, autoritarismo, centralização e intervencionismo, todas - 80 interligadas. A interiorização promovida por este decreto visava o desenvolvimento capitalista, a integração e unidade nacionais, a segurança nacional e o desenvolvimento nacional como um todo, não a promoção de interesses regionais. Justamente por isso, a ditadura varguista chocou-se frontalmente com os interesses de diversas oligarquias agrárias brasileiras, incluídas aí as sul-mato-grossenses, inclusive com a nomeação de interventores, o que ocorreu em Cuiabá durante a Revolução de 1932. Com a decisão da Constituinte em desfavor dos pecuaristas sulistas, e a criação do Território de Ponta Porã, o divisionismo viu-se frustrado, uma vez que Campo Grande, a cidade idealizada por essa classe como rival de Cuiabá, não foi incluída na área destacada. Justamente por causa disso, por entender que não haveria justificativa para um pleito de nova divisão no estado, que viesse a contemplar Campo Grande como capital, a Liga Sul-MatoGrossense dispersou-se (Bittar, 2009a, p. 286). Com isso, há um período de suspensão da “causa” separatista, que vai deste momento até sua reativação, já em pleno governo Geisel, quando este se dirige a certas lideranças pecuaristas visando promover articulações com o objetivo de instaurar a divisão. Esse fato é relevante para esta tese, pois permite situar a MLC em seus primórdios, nos anos 1960 – até a divisão – como relativamente livre da influência dos pecuaristas. Como vimos, o movimento nasce de um momento de recusa da população do estado aos governos das oligarquias rurais e ao regime militar, na eleição de 1965, que derrotou Lúdio Coelho e elegeu Pedro Pedrossian. Esta recusa se materializava, também, na busca, por parte dos setores urbanos de diferentes classes sociais, de um caminho próprio para a urbanização, a partir de sua situação geográfica e histórica peculiar. Além disso, o período em que surge a MLC é marcado pelas mobilizações estudantis, contraculturais, comportamentais e de repúdio à ditadura da década de 1960. - 81 A par de criar o Território de Ponta Porã, o despacho do presidente da República, publicado no Diário Oficial de 01/02/1944, negava provimento à renovação do contrato de arrendamento dos ervais de Mato Grosso, com isso liquidando, na prática, com o império representado pela Companhia Matte Larangeira. Ao mesmo tempo, em outra iniciativa manifesta das características políticoideológicas de sua ditadura, a partir de 1941 Vargas implementou o programa Marcha para o Oeste, que visava promover o progresso e a ocupação do Centro-Oeste, por meio de incentivos à migração. No entanto, seus resultados, no que tange à promoção da qualidade de vida do pequeno proprietário, foram pequenos, obstados pelos interessas das oligarquias agrárias, porque as grandes propriedades continuaram a ser a característica marcante do uso da terra com baixa produtividade. Assim, grande contingente da população rural continuou a utilizar os pequenos lotes, insuficientes para assegurar a subsistência familiar, cuja dimensão não permitia a racionalização e mecanização da produção. A falta de incentivos ao pequeno produtor e a política de renda da terra, vantajosa aos grandes proprietários, demonstrava que as oligarquias tradicionais mantinham sua força que, aliás, era fruto do monopólio da terra e do controle do voto. A estrutura fundiária do país não se alterou e a desmobilização política imposta pela ditadura adiava a proposta de mudanças estruturais no país. (Bittar, 2009a, p. 255) Com a deposição de Getúlio em 1945, e a promulgação da Constituição de 1946, o território de Ponta Porã foi extinto, sendo reincorporado ao então estado de Mato Grosso. Este acontecimento não deixou de ser positivo para os divisionistas, uma vez que mantinha aberta, mais uma vez, a possibilidade de um novo estado a ser criado, com a capital em Campo Grande. Apesar da desmobilização do “movimento” divisionista, a criação do novo estado acabou ocorrendo, por razões diversas daquelas defendidas pelos pecuaristas sulistas, e que passamos a examinar. Atualmente a área do antigo território de Ponta Porã faz parte do estado de Mato Grosso do Sul. - 82 - “O Brasil é e não é a América Latina”: Geopolítica, divisionismo e anti-latinoamericanismo Desde a Independência, o Brasil se colocou contra seus vizinhos. De acordo com o historiador Manoel Guimarães, buscava-se definir a nação brasileira como representante da ideia de civilização no Novo Mundo. Para assumir essa identidade, no entanto, era necessário um outro, que foram as repúblicas da América Latina, representantes da “barbárie”, em oposição ao civilizado Império do Brasil: Na medida em que Estado, Monarquia e Nação configuram uma totalidade para a discussão do problema nacional brasileiro, externamente define-se o “outro” desta Nação a partir do critério político das diferenças quanto às formas de organização do Estado. Assim, os grandes inimigos externos do Brasil serão as repúblicas latinoamericanas, corporificando a forma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representação da barbárie. (Guimarães, 2012, p. 7) De acordo com Guimarães, esta definição do nacional brasileiro em oposição às repúblicas do continente trouxe “conseqüências políticas visíveis”, por exemplo, “na formulação da política externa do Segundo Reinado e nos desdobramentos futuros da história da região”. São, inclusive, estas construções que presidem à constituição do Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro, em 1838, “realizando a tarefa de sistematizar uma produção historiográfica capaz de contribuir para o desenho dos contornos que se quer definir para a Nação brasileira” (Guimarães, 2012, p. 7). Esta animosidade contra os países latino-americanos vizinhos teve continuidade com o advento da República: intelectuais como Eduardo Prado, Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, entre outros, compararam negativamente os países vizinhos da América Latina e o Brasil (Baggio, 1998). Também participam da construção de representações negativas sobre os países platinos os relatos de viagem. Um desses relatos foi elaborado em 1927 pelo jornalista Luiz Amaral, que percorreu mais de 20 mil quilômetros, passando pelo então Mato Grosso, - 83 Paraguai, Argentina e a fronteira do então MT com a Bolívia, durante três meses (Baggio, 2008, 438). Segundo Baggio, Amaral manifesta, em sua narrativa, “a surpresa ao se deparar com mais desenvolvimento na região do que supunha. Amaral elogia o desenvolvimento de Campo Grande (...) (Baggio, 2008, 438). Esta visão ufanista da cidade brasileira, no entanto, é logo contrastada com a descrição negativa do Paraguai: Mas, ao entrar no país vizinho, o autor quase imediatamente explicita o “atraso” paraguaio em relação ao Brasil, fruto, ainda, segundo ele, da Guerra da Tríplice Aliança, encerrada mais de 50 anos antes. Para Luiz Amaral, o Paraguai ainda vivia, nos anos 1920, a “catástrofe moral” da derrota de 1870, insulado nas “convulsões internas” e na “xenofobia”. Nas palavras do autor, o Paraguai não teria tomado “conhecimento do progresso” e era um país de miséria e corrupção. Assunção não estaria melhor, caracterizada com uma cidade “velha” e “atrasada”. (Baggio, 2008, 439) De acordo com Baggio, Amaral descreve o Paraguai pela: “vida urbana nula”, pela “miséria nacional”, pela ausência de comércio, pela desolação e despovoamento. E conclui: “a melhor medida desse atraso é o fato de ao paraguaio bastar [...] o guarani, idioma paupérrimo [...], gutural, ofensivo à garganta de quem fala e aos ouvidos de quem ouve”. Evidente aqui o contraste: o centro-oeste do Brasil se desenvolvendo a olhos vistos e o Paraguai parado no tempo, herdeiro das ditaduras do século XIX e ainda marcado pela forte presença indígena. O Paraguai é, explicitamente, para Luiz Amaral, sinônimo do atraso e da quase completa ausência de elementos da modernidade. (Baggio, 2008, 439-440) Já a Argentina configura um perigo ainda maior, por seu “crescente bolchevismo”: (...) o jornalista brasileiro chama a atenção do leitor para o significativo crescimento do movimento operário no país platino, segundo ele, com um número cada vez maior de “agitadores”, um “socialismo forte” e um “crescente bolchevismo”. Afirma que Buenos Aires era um “viveiro de idéias sociológicas avançadas e perigosas” e que o proletariado, “vasto”, era constituído por “elementos internacionais” e “pregadores de princípios dissolventes”, ou seja, o anarquismo, socialismo e bolchevismo. (...) [O]s sindicatos eram organizados (...) para o “combate sistemático” (...), eram “órgãos dos ódios de classes”. Ao avaliar a situação político-social argentina, o brasileiro adverte seus leitores: “julgo, portanto, possível uma sucursal da Rússia vermelha na América do Sul”, com o conseqüente “aniquilamento de uma nação próspera”. E alerta os brasileiros sobre a “inquietadora questão social” argentina, torcendo para que “quiçá não prejudique os vizinhos”. Vale ressaltar que Luiz Amaral publica seu livro após mais de uma década de governos radicais na Argentina, que adotaram um discurso e medidas antioligárquicas, provocando a oposição das vertentes e dos grupos mais conservadores. (Baggio, 2008, p. 440-441) No que tange aos nossos interesses – demonstrar uma construção sempre renovada de discursos que colocam os países platinos como símbolo do “atraso” ou do “perigo vermelho”, - 84 discursos que terão impactos negativos sobre a MLC no plano nacional – as conclusões da autora são esclarecedores: Os relatos publicados por jornalistas, particularmente, revelam, em grande medida, o que podemos denominar de “imaginário coletivo” ou, ao menos, o que se pretende construir como um “imaginário coletivo”. Ao mesmo tempo, reafirmam o lugar fundamental da imprensa na construção de visões sobre o “outro”. (Baggio, 2008, p. 443) Este imaginário provocou efeitos na política brasileira de âmbito federal desde a década de 1930: “Com a Constituição de 1934 criou-se afora a faixa dos 66 km [na fronteira com outros países], uma faixa que se denominou ‘Faixa de Interesse da Segurança Nacional’” (SEMINÁRIO FAIXA DE FRONTEIRA, p, 31, 2004). A posição de Mato Grosso no Brasil, situado no extremo oeste e vizinho ou próximo a diversos países estrangeiros da América do Sul, preocupou Getúlio Vargas e foi um dos fatores que o estimularam a promover a “Marcha para o Oeste”. Esta preocupação filia-se à geopolítica, concepção que, no Brasil, passou a contar com trabalhos já definidos desde esta década de 1930. O primeiro teria sido Projeção continental do Brasil (Travassos, [1931] 1938), de Mario Travassos, seguido de escritos de Everardo Backheuser, do general Meira Mattos e de Cassiano Ricardo, cuja Marcha para o Oeste (1940) teria exercido grande influência sobre o Estado Novo. Para Marisa Bittar, a futura divisão de Mato Grosso estava ligada ao pensamento geopolítico brasileiro da época, porque, ao separatismo fundado nas insurreições armadas do final do século XIX e início do XX, sobrepôs-se a política nacional de interiorização do país, o controle do espaço territorial pelo Estado autoritário, que implicou uma nova forma de considerar o Centro-Oeste. Da conjugação dessa concepção geopolítica com os anseios separatistas existentes no sul de Mato Grosso é que surgirá a possibilidade de dividir o estado. (Bittar, 2009a, p. 263-264) Para Bittar, o processo autoritário de consolidação do capitalismo no Brasil, a partir de 1930, implicou em uma concepção de Estado controlador do território nacional. Para isso seria preciso conhecê-lo cientificamente, motivando a criação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 1938. O conhecimento produzido pelo Instituto serviria, então, - 85 a uma ideia integracionista, de unidade nacional, possibilitando o controle absoluto do território pelo Estado. Ficava implícito que aspirações regionais ou locais deveriam equilibrar-se subordinadamente ao nacional. Surgem daí relatórios técnicos e recomendações que diziam respeito, entre outras coisas, ao número de unidades federativas e seu tamanho, e que orientaram a iniciativa da “Marcha para o Oeste”. Ao mesmo tempo, por ocasião da Constituinte de 1934, emergem discussões conclamando à redivisão territorial do país. Entretanto, tais pleitos foram desconsiderados, como foi o caso da petição da Liga Sul-Mato-Grossense em favor da divisão do estado, porque Vargas não rompeu inteiramente com as oligarquias. Ao contrário, preferiu, nesse e em outros casos, favorecer a algumas em detrimento de outras, em vista de seus interesses de manutenção do poder. Não se atendeu, portanto, ao regionalismo sul-mato-grossense, mas, sim, aos grupos hegemônicos do centro-norte [do MT]. Isso evidencia que Vargas não tinha interesse em romper totalmente com certos grupos oligárquicos, ainda mais quando se tratavam daqueles que haviam defendido seu governo em 1932. (Bittar, 2009a, p. 267) No entanto, embora a ditadura varguista tenha conseguido amortecer diversos pleitos divisionistas com a divisão territorial em regiões, em 1941, as preocupações geopolíticas ressurgiriam na década de 1950, no interior da Escola Superior de Guerra, estimuladas por escritos de Golbery do Couto e Silva. Fundada em 1949, a ESG organizou seus estudos visando promover duas ideias: a doutrina de segurança nacional e o desenvolvimento. De acordo com o general Meira Mattos, [q]uando veio a Revolução de 1964 a doutrina da Escola Superior de Guerra já estava formulada e exercitada em termos laboratoriais ou escolares. Foi fácil para o Chefe da Revolução, o Presidente Castelo Branco e seus principais assessores Golbery, Ernesto Geisel, Juarez Távora, Cordeiro de Farias, todos ex-militares, participantes ativos na formulação dessa doutrina, pois todos haviam pertencido aos quadros da ESG, transferirem para a prática governamental, a doutrina formulada durante 14 anos no casarão do Forte de São João. (Meira Mattos apud Bittar, 2009a, p. 269) No plano internacional, o país hegemônico, os EUA, lançava o Plano Marshall em 1947, no contexto da Guerra Fria. Embora o Plano fosse concebido como uma ajuda a nações - 86 europeias, “os países latino-americanos acreditam que também podem beneficiar-se desse tipo de ajuda” (Ayerbe, 2002, p.77). E, realmente, “[e]m relação a investimentos privados, haverá um aumento da presença dos Estados Unidos na região, de 2,8 bilhões de dólares em 1940 a 4,4 bilhões em 1950” (Ayerbe, 2002, p.78). Mas, evidentemente, esta ajuda não estava desvinculada de interesses explícitos: A formalização da política de ajuda ao desenvolvimento por parte dos Estados Unidos acontece em janeiro de 1949, no discurso de inauguração das sessões do Congresso, em que o presidente Truman destaca os quatro aspectos que considera prioritários na sua política externa: o apoio às Nações Unidas, a reconstrução da economia mundial, a luta contra o comunismo e a ajuda aos países em desenvolvimento. (Ayerbe, 2002, p.77-78, grifo meu) Verifica-se, assim, que a criação da Escola Superior de Guerra se inseria na política de relações exteriores dos EUA. Em contrapartida ao apoio econômico e logístico proporcionado nos termos de uma “ajuda aos países em desenvolvimento”, aquele país faria demandas aos militares no sentido de promoverem o capitalismo no país (“reconstrução da economia mundial”) e a luta contra o comunismo. Estes dois últimos objetivos convergiriam de maneira mutuamente potencializadora sobre o MS e MT, uma vez que a forma de combater o comunismo consistia, além da atuação conjunta da inteligência, da política externa e do aparato repressivo, no desenvolvimento do capitalismo na região. Na interação de todos estes vetores, além dos que já vêm sendo discutidos, surgirão as condições para a divisão do MT/criação do MS e a construção da MLC em suas características contra-hegemônicas, indo, justamente, em busca de uma integração latino-americana. Em Organização para o Brasil, publicado em 1959, Juarez Távora, que escreveu outras obras de geopolítica, criticava “anomalias”, como estados com área gigantesca e populações rarefeitas, declarando que, nesses estados, as pessoas desconheciam a existência do governo estadual em seus aspectos de apoio, organização e estímulo. “Talvez só a sintam através dos aspectos coercitivos da autoridade – o imposto e a polícia” (Távora apud Bittar, - 87 2009a, p. 270). Como lembra Bittar, a Liga Sul-Mato-Grossense justamente acusava o governo nortista dizendo dele conhecer apenas imposto e polícia. Nessa obra, Távora apresenta proposta de redivisão territorial. No que tange ao sul de Mato Grosso, seria separado do restante do estado, formando o estado de Maracaju, com capital em Campo Grande, exatamente como pleiteava a Liga Sul-Mato-Grossense. Presumese que o conhecimento de Távora sobre Mato Grosso, por onde transitou em 1924 e, depois, com a Coluna Prestes, deva ter contribuído para a elaboração de uma proposta condizente com os anseios separatistas (Bittar, 2009a, p. 272). Já Golbery, como mais destacado nome da ESG, imprimiu orientação decisiva para os rumos da academia e das políticas públicas da ditadura, respondendo à polarização do mundo sob a lógica da Guerra Fria entre o bloco socialista e capitalista. Para Golbery, o ocidente e seus valores morais (o cristianismo e a democracia) estavam ameaçados. Cumpria fortalecer o capitalismo, como sistema eficiente para fazer frente às “investidas comunistas”. No entanto, isso era incompatível com as gigantescas áreas despovoadas e atrasadas do Brasil, entre as quais figurava com destaque a região Centro-Oeste. Sendo assim, ocupá-las, consolidando o capitalismo nessas áreas, atenderia não somente a imperativos da ordem do progresso nacional interno, como à segurança nacional e global. Mato Grosso era explicitamente citado por Golbery, justamente por participar do “caráter indeciso e ambivalente” dos vizinhos Paraguai e Bolívia. Explicitava, inclusive, a necessidade de desenvolvimento regional como forma de resistir a “táticas sutis de infiltração do terrorismo, da guerrilha” e de procurar “enfraquecer o sistema econômico dos antagonistas”. Para o militar, Mato Grosso era uma das áreas estratégicas que deveriam integrar-se ao triângulo “altamente vitalizado de Rio-SP-BH”: A oeste, duas zonas estratégicas terrestres – a amazônica e a platina, ligadas por uma zona estratégica de soldadura que abarca, grosso modo, o Mato Grosso, Paraguai e Bolívia, em sua ambivalência já por muitos assinalada. (Golbery do Couto e Silva apud Bittar, 2009a, p. 275) - 88 Uma ambivalência muito presente na música que estamos tratando, uma vez que esta propõe, justamente, o contrário do que preconizava Golbery. Ou seja, uma política de alianças com os países platinos, visando fazer o MS escapar da órbita de influência do eixo Rio-São Paulo, articuladores de uma divisão do trabalho entre as unidades federativas que o mantém na posição de produtor primário. Atribuindo diferentes graus às “ameaças”, Golbery entendia a região da bacia do Prata como de risco máximo, enquanto no Nordeste seria médio e, na região amazônica, mínimo. Como medida “preventiva”, destacava a “integração de península do Centro-Oeste”, visando a “contrapor-se ao avanço para o norte de um imperialismo platino” (...). Para cumprir a estratégia, Golbery percebia a necessidade de fortalecer os vínculos de algumas cidades dessa região com o “triângulo altamente vitalizado”, citando “Campo Grande e o sul de Mato Grosso, Goiânia e o sul de Goiás”, que corresponderiam à constituição de “potências regionais” para o desenvolvimento capitalista brasileiro. (Bittar, 2009a, p. 276) Verifica-se então, nesse projeto, a preocupação em promover a segurança nacional e global a partir do fortalecimento do sistema capitalista (era a partir de um “núcleo progressista” que se deveriam integrar os “espaços vazios”), e isso envolvia o uso da tecnologia e da técnica como meios para se atingir a eficiência. Estas características seriam visíveis no modelo tecnocrático e despolitizado de governo implantado logo após a divisão do estado, que, justamente por isso, não conseguiu sobreviver frente às disputas entre as elites políticas, responsáveis por sua súbita interrupção. Assumindo a presidência da República em 1975, o general Ernesto Geisel viria a colocar em prática algumas das estratégias geopolíticas de Golbery. Isso envolvia a dilatação do conceito de defesa nacional para o de segurança nacional, mais amplo. Enquanto a defesa se refere a agressões externas, a segurança se aplica também às agressões internas, na forma de infiltração e subversão ideológica e mesmo guerrilhas, que pareciam mais prováveis do que tentativas de invasão por outros países (Bittar, 2009a, p. 278). As preocupações de Geisel com relação a essas ameaças em Mato Grosso pareciam já vir de uma década antes, pelo menos. Esta informação provém do falecido jornalista José - 89 Barbosa Rodrigues, reformulador e proprietário do jornal campo-grandense Correio do Estado, representante mais poderoso da imprensa escrita sul-mato-grossense. Segundo Rodrigues, Juarez Távora, enquanto ministro da Viação e Obras Públicas do Governo Castelo Branco, destacou dois então coronéis do exército, Geisel e Golbery, para estudarem a viabilidade da criação de um Estado que compreendesse o território do Sul de Mato Grosso. A conclusão desse estudo considerou como viável, realizável e necessária tal criação. Sigilo em torno do assunto é mantido, como um segredo de Estado. (Rodrigues apud Bittar, 2009a, p. 279) Já o cronista e grande pecuarista sul-mato-grossense Paulo Coelho Machado situa esse fato uma década antes, em 1955 (Machado apud Bittar, 2009a, p. 279), quando Juarez Távora foi candidato a presidente da República. Em favor dessa hipótese coloca-se a obra Organização para o Brasil, de Juarez Távora, que, conforme já mencionado, propunha divisão bastante próxima à que se concretizou para o estado de Mato Grosso do Sul. Além de estudos suficientes quanto à geopolítica de Mato Grosso, o regime militar contou, também, inequivocamente, com a anuência ao golpe militar de 1964 do governo mato-grossense, das elites que simbolizavam a rivalidade norte-sul, do General Amauri Kruel, de generais que o acompanhariam, bem como das forças públicas do estado (Bittar, 2009a, p. 280-281). Esta convergência das elites do sul e do norte contrasta com o ocorrido no passado, em especial em 1930 e 1932, e motiva-se por crerem que a ditadura promoveria a “valorização regional”. Esta fé no governo militar contribuiria para diminuir resistências do norte à divisão que viria a dar-se na década seguinte. A ocorrência da divisão viria a causar surpresa, pois, embora os divisionistas buscassem justificar seu pleito a partir da afirmação de que o sul não era representado politicamente, ocorria justamente o contrário. A representatividade política do sul vinha crescendo consistentemente. Enquanto, em 1932, a Liga Sul-Mato-Grossense reclamava da baixa representatividade do sul, em 1955 a situação se inverteu: de 30 deputados, 21 eram do sul; de 7 deputados federais, 5 eram dessa região do estado. Entre 1947 e 1964 consolida-se a - 90 representatividade do sul. Neste período, o sul produziu quatro governadores, contra apenas um do norte. Sendo assim, não haveria mais o argumento sulista de que era necessário dividir o estado porque Cuiabá teria vocação para o “mando” (Bittar, 2009a, p. 291-294). Segundo a historiadora, “o isolamento em que vivia uma região em relação à outra fez com que se formasse no sul uma classe economicamente poderosa que rivalizava com a do norte e que acabou sobrepujando as oligarquias tradicionais daquela região”. Essa classe se torna mais organizada a partir da década de 1930, passando a competir pelo aparelho de Estado com os grupos que monopolizavam o governo. O desequilíbrio criado entre a superioridade econômica do sul e sua ausência de acesso a uma máquina administrativa própria produziu a motivação para o divisionismo. Isso se verifica ao constatarmos que o divisionismo não foi insuflado por uma suposta ausência de representatividade dos sulistas no legislativo e no executivo. Muito pelo contrário, como vimos, os políticos do sul passaram a dominar as posições nestes poderes. Portanto, a justificativa do divisionismo era que, de acordo com seu discurso, os recursos gerados pelo “dinamismo” do sul continuavam a ser canalizados para Cuiabá. Assim, era preciso que à dominação econômica correspondesse a dominação de uma estrutura administrativa estatal própria (Bittar, 2009a, p. 308). Sob Geisel, o divisionismo, finalmente, encontra uma conjuntura nacional propícia. Pois o regionalismo histórico passa a ser respaldado pela ideologia desenvolvimentista da ditadura, pela sua preocupação com a segurança nacional por via da integração e da consolidação capitalista, pelo seu interesse em aumentar a população da fronteira. O próprio fato de que o país se encontrava sob regime de exceção favorecia o divisionismo, uma vez que não houve qualquer consulta a nenhuma das populações envolvidas, nem preocupação em realizar articulações políticas visando obter apoio das lideranças. Decidida [a divisão] nos altos escalões do Exército e na Presidência da República, o ministro do Interior encarregou, então, a Superintendência do Desenvolvimento do - 91 Centro-Oeste (SUDECO) de efetivar as medidas para a divisão e esta, por sua vez, solicitou assessoria “a quatro pessoas de expressão de Campo Grande”, Paulo Coelho Machado, Kerman Machado, Cândido Rondon e José Fragelli, que procederam a minucioso levantamento sobre a situação socioeconômica de Mato Grosso (...) [E]sse trabalho, que durou três meses, foi grande e realizado também em “sigilo absoluto” (...). É importante perceber, inclusive, que a divisão, oriunda desse contexto, isto é, prescindindo da participação popular, completou a trajetória do “movimento divisionista” como demanda que esteve sempre vinculada às elites políticas e econômicas do sul de Mato Grosso. (Bittar, 2009a, p. 305) Sendo estas elites políticas e econômicas justamente os grandes proprietários rurais, ou a eles ligadas, é interessante notar como esta classe sempre esteve implicada no divisionismo. Entre eles, figuram justamente os que passaram à história do novo estado como “heróis”: João Caetano Teixeira Muzzi, João Mascarenhas e Bento Xavier eram todos proprietários de terras, chefes políticos e comerciantes. “Da mesma forma a geração de divisionistas da década de 1930 originava-se dessa classe, bem como a das décadas posteriores (...)” (Bittar, 2009a, p. 308). Entretanto, apesar da dominância exercida pelos políticos do sul sobre o estado, o divisionismo não unia os interesses dos moradores do sul de Mato Grosso como um todo. De acordo com Marisa Bittar, considerando a dificuldade de aquilatarmos a fidedignidade da adesão ao abaixoassinado levado à Constituinte em 1934, podemos afirmar que nem mesmo nessa ocasião o “movimento” teve feição popular. Depois, na sua última etapa de vida, sob o governo Geisel, quando a divisão era iminente, a Liga Sul-Mato-Grossense, coerente com seu apoio aos governos militares, não estimulou ações populares ou manifestações políticas sobre o assunto. (Bittar, 2009a, p. 306) Conforme dito anteriormente, a Liga Sul-Mato-Grossense estava dispersa desde a recusa da Assembleia Constituinte de 1934 em acatar sua petição em favor da divisão do estado. A desmobilização a respeito era total, tanto no período em que emergiu a MLC (década de 1960, caracterizado pela intensificação cultural e política no sul do MT), quanto à época do envio ao Congresso, pelo governo, da lei que estabeleceu a divisão (14 de setembro de 1977). O Poder Executivo estava tão seguro da sua aprovação que não o incomodou o fato de que exatamente na década de 1970 quase não se falava em divisão no sul de Mato - 92 Grosso, exceto, talvez, o jornal Correio do Estado, que não deixou de publicar matérias com esse teor (Bittar, 2009a, p. 300-301) Ao contrário da ideia de uma mobilização popular, o propósito de reativar a Liga parece ter sido exatamente de coadjuvar o processo a partir dos bastidores. Segundo Bittar, o seleto grupo de pecuaristas que estava em contato com o gabinete de Geisel com vistas a preparar relatórios e estudos para fomentar a divisão, e que eram vinculados à Liga, somente pensou em reativar as atividades desta em 1977, ao aproximar-se do fim o governo daquele presidente. Face à delonga no desfecho aguardado ansiosamente, e de possibilidade de malogro caso o governo Geisel chegasse ao fim antes da divisão, surge de Paulo Coelho Machado a iniciativa de trazer a Liga de volta, não para promover a mobilização popular, mas para apoiar a decisão do general: Aí comecei a me preocupar. Nessa época eu afirmava: “daqui a pouco acaba o Governo Geisel e aí não sai mais a divisão”. Então convidei alguns companheiros à minha casa e propus a reativação da Liga Sul-Mato-Grossense, que tinha sido desativada em 1934, para reiniciar a luta pela divisão, com os mesmos objetivos e os mesmos estatutos, apenas atualizado. Então começamos a fazer um trabalho subterrâneo para que saísse a divisão. Montamos a estratégia. Provocamos os cuiabanos para que eles reagissem, pois eles não podiam nem ouvir falar do assunto. A criação de atritos entre os cuiabanos e nós (o sul) era uma forma de acelerar o processo. E pegou (...) Tudo o que era publicado na Imprensa nós mandávamos para o Geisel e dizíamos que não era possível continuar essa situação, e isso funcionou (Paulo Coelho Machado apud Bittar, 2009a, p. 306) Assim, as razões geopolíticas expostas anteriormente provariam ser mais importantes para as decisões de Geisel do que os interesses da população. Segundo Bittar, nenhum dos governos impostos de 1964 a 1985 tinha “uma concepção estratégica do desenvolvimento do capitalismo brasileiro tão centrada na geopolítica de interiorização e integração nacional como o de Ernesto Geisel” (Bittar, 2009a, p. 299). A situação apenas se resolveu em favor dos pecuaristas de forma inesperada, contrariando as expectativas. Afinal, além de não haver mobilização popular em favor da divisão, e além de a maior parte das lideranças políticas do sul e do norte estarem concordantes com o regime militar, que vinha efetivamente colocando em prática uma política de integração regional para o MT, os poderes legislativo e executivo - 93 vinham sendo mantidos pelos políticos sulistas, desautorizando argumentos de desigualdade na representação. Mais ainda, o regime ditatorial vinha favorecendo o estado como um todo, conforme relata Afonso Simões Corrêa: Além da contribuição da Usina Jupiá, é justo reconhecer que o Estado de Mato Grosso foi bastante beneficiado pelos governos militares, com o lançamento de vários programas de desenvolvimento, tanto de infraestrutura como de incentivos às atividades econômicas. Além de programas de investimentos em estradas, energia elétrica e saneamento básico, como o Prodoeste, foram lançados e implementados, com significativos recursos financeiros, outros programas de incentivo às atividades produtivas do Estado, principalmente à agropecuária (...). Não se pode negar que Mato Grosso nunca foi tão beneficiado com programas de financiamento, a maioria com crédito subsidiado, como nesse período. (Simões Corrêa, A. apud Bittar, 2009a, p. 309) Evidentemente, este auxílio era motivado pelos interesses já mencionados, quais sejam, de sustentação da hegemonia norte-americana e militar brasileira na região, de desenvolvimento do capitalismo e de combate ao “comunismo” (compreendidas localmente, sob este termo genérico, e a ele imputadas, quaisquer tentativas de colocar em risco os privilégios mantidos pelas elites dominantes). Estes objetivos eram constantemente ameaçados por iniciativas unificadoras por parte de países latino americanos, que se constituíam em ameaça, tanto aos interesses estadunidenses quanto da ditadura militar implantada no Brasil, como se pode ver a seguir: Em 1969, os países andinos Chile, Bolívia, Peru e Equador assinam o Acordo de Cartagena, ao qual adere, em 1972, a Venezuela. Entre as principais decisões do acordo estão o controle regional à entrada do capital estrangeiro, estabelecendo que 51% do capital de filiais de empresas multinacionais devem pertencer a cidadãos nacionais, barrando seu acesso a serviços públicos, transportes, bancos e meios de comunicação. Em 1972, o Peru propõe na OEA a discussão sobre o levantamento do bloqueio a Cuba. (...) Em 1973, Panamá e Peru, membros na época do Conselho de Segurança da ONU, colocam em discussão projeto de resolução que restabelece a soberania do Panamá sobre a Zona do Canal. O projeto é rejeitado pelos Estados Unidos, que exerceram seu direito de veto. Na terceira sessão da Assembléia Geral da OEA, em abril de 1973, Colômbia, Costa Rica e Venezuela apresentam projeto de resolução que reconhece o pluralismo político-ideológico nas relações interamericanas, aprovado pela maioria dos países. (...) Também em 1974, em Tlatelolco (México), os países latino-americanos exigem o fim das sanções contra Cuba, o que se concretiza em parte na XVI Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores da OEA de 1975, que aprova uma resolução, com voto favorável dos Estados Unidos, liberando "os países membros da obrigação de aplicar as sanções de 1964". (Ayerbe, 2002, p.163-164) Evidentemente, não se verifica a participação do Brasil nestas iniciativas contra-hegemônicas. - 94 Todas as evidências reunidas nesta seção demonstram que os interesses das classes dominantes brasileiras, incluindo os grandes grupos econômicos, atuando de maneira interdependente aos da ditadura militar e da política externa dos EUA para a América do Sul, buscaram produzir um decidido afastamento dos vizinhos sul-americanos, muitas vezes associando-os ao “perigo comunista”. A mídia, estruturada, mas não determinada, por estas injunções políticas e econômicas, torna-se palco de um enfrentamento discursivo. De um lado, há representações favoráveis a uma união latino-americana nas vozes poderosas de cantores e compositores de muito prestígio, que fazem sucesso nacional desde a década de 1960. Podemse citar, de maneira aleatória, o sucesso de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não falei das flores” (Caminhando), no III Festival Internacional da Canção, em 1968, que é uma guarânia; Milton Nascimento, em diversas canções interpretadas em espanhol, como “Volver a los 17”, com Mercedes Sosa e com o Grupo Água; Grupo Tarancón, Pablo Milanez, Chico Buarque e tantos outros. Tais manifestações discordantes da ideologia dominante não poderiam ser veiculadas nos meios de comunicação de massa se estes fossem determinados pela base econômica. No entanto, o enfrentamento a esta noção de unidade com os hermanos do Brasil era e é severamente contestada por uma poderosa mídia, que, concentrada nas mãos de poucos grupos, exerce efeitos incontestáveis. Confirmando a visão desfavorável de setores dominantes em relação aos vizinhos continentais, trabalhos dedicados ao assunto evidenciam as estratégias colocadas em prática por grupos nacionais poderosos, no sentido de desqualificar os países sul-americanos. Tais estratégias objetivam, entre outros aspectos, desestimular o apoio, por parte da opinião pública, a uma integração latino-americana, a partir da qual se pudesse fazer avançar as agendas desta região contra interesses hegemônicos. Para o comunicólogo Alexandre Barbosa, por exemplo, A indústria jornalística brasileira rejeita as tentativas de integração, como pode ser comprovado pela cobertura da semana de 22 a 26 de fevereiro de 2010, que marca a - 95 cúpula da América Latina e Caribe em Cancún e a cobertura sobre as declarações do então pré-candidato da oposição à Presidência da República, José Serra, ao se referir à Bolívia como um “exportador de drogas”. (Barbosa, 2010, p. 5-6) O autor transcreve, a seguir, parte do editorial do jornal O Estado de S.Paulo, “A retórica da integração”, de 25 de fevereiro de 2010, sobre a Cúpula da América Latina e Caribe (CALC), que propõe a criação de uma nova organização dos estados americanos. Esta nova organização seria chamada de Comunidade dos Estados Latino-Americanos (CELAC): A recém-nascida OEA do B, como inevitavelmente vem sendo chamada, barra a entrada dos Estados Unidos e do Canadá e abre as portas a Cuba, excluída da OEA original. Essa parece a sua única razão de ser, além, naturalmente, de servir de palco para canções diplomáticas de protesto e desfile de guayaberas – uniforme oficial da nova entidade. (...) Apresentadas como justificativas para o surgimento da Celac, a afirmação de soberania e a busca de integração dos seus 33 heterogêneos membros (os 32 de Cancún e Honduras, quando for reabilitada) representam o triunfo da retórica sobre as realidades regionais. (...) A Celac espelha a desorientação dos governos da área em relação ao seu problemático entorno e à falta de rumos de suas políticas externas, travadas pela ilusão de que esnobar os Estados Unidos fará pela integração latino-americana o que 200 anos de história não fizeram. Embora não seja criatura brasileira, a Celac se encaixa no modelo lulista de diplomacia, com a sua obsessão por fustigar os "brancos de olhos azuis". (ESTADO DE S.PAULO apud Barbosa, 2010, p. 6) Para Barbosa, o trecho destacado mostra: a) descrença na possibilidade de integração, ao afirmar que os discursos não passam de retórica diante dos vários conflitos regionais. Um dos conflitos citados, entre Colômbia e Venezuela, tem origem no fato da Colômbia aceitar bases norteamericanas no território como pretexto para combater o tráfico de drogas; b) menosprezo pelas características culturais das nações, ao ridicularizar o uso da guayabera, vestimenta comum do México e Caribe, e dizer que a reunião não passa de um desfile de protesto; c) que a política externa dos países da América Latina, e a do Brasil em especial, é apenas para criticar os EUA. (Barbosa, 2010, p. 6-7) Um documento significativo a este respeito, fortemente indicativo da maneira como se pensa nos altos círculos políticos e governamentais brasileiros a respeito das relações internacionais com os países sul-americanos vizinhos, é o Seminário Faixa de Fronteira: Novos Paradigmas (2004). O seminário contou com a presença de diversas autoridades, como o Vice-Presidente da República, José Alencar Gomes da Silva; o Ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes; o Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Jorge Armando Felix; o Advogado-Geral da União, Ministro Alvaro Augusto Ribeiro Costa; e - 96 o Consultor-Geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho. Abrindo o evento, o VicePresidente José Alencar lembrou a necessidade de atualizar concepções de defesa do Território e advertiu que a atual delimitação da Faixa de Fronteira, de 150 km, como de interesse da segurança nacional, ‘não resiste às modernas técnicas de comunicações, de transporte e de logística hoje largamente utilizadas pelo crime transnacional’” (Alencar apud SEMINÁRIO FAIXA DE FRONTEIRA, 2004, p. 7-8). Surpreendentemente, o Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Felix, ergue-se em favor da “integração Sulamericana”, defendendo que “a fronteira deixa de ser elemento de separação e transforma-se em faixa de contato” (Felix apud SEMINÁRIO FAIXA DE FRONTEIRA, 2004, p. 8). No entanto, para o Ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, o fato da Faixa de Fronteira ter sido durante muito tempo tratada apenas como “uma porta orçamentária de distribuição clientelista de recursos” levou à ausência do Estado e “permitiu sua transformação em Território livre para o narcotráfico, para o banditismo, para o tráfico de armas”. (Ciro Gomes apud SEMINÁRIO FAIXA DE FRONTEIRA, 2004, p. 8). O Seminário segue discorrendo, por 108 páginas, sobre diferentes modalidades de crimes praticados na faixa de fronteira e as ações necessárias para contê-los. Embora esta visão criminalizante dos vizinhos sul-americanos seja, em certos momentos, suavizada por referências mais positivas, preponderam representações negativas desses países. Analisando a revista Seleções do Reader’s Digest em busca de tais representações, Mary Junqueira observa que, nessa revista, “o latino-americano, com raras exceções, era visto como passivo, sem interesse e iniciativa” (Junqueira, 2001, p. 324). O poder de influência destas práticas da representação em fornecer posições subjetivas politicamente inertes não deve ser desprezado: Dentro dessa ordem de idéias, eram reforçados em Seleções estereótipos sobre a América Latina e os latinoamericanos que se formaram ao longo dos séculos passados e que, muitas vezes, foram (re)construídos não só pela mídia, mas também por romancistas, intelectuais, cientistas, naturalistas, pensadores, etc. (Junqueira, 2001, p. 324). - 97 Afastando-se da visão que atribui todos os males a causas externas, a autora torna implícita a atuação da hegemonia ao produzir um consenso interno adequado aos discursos dominantes: A revista O Cruzeiro, por exemplo, a partir dos anos 40, acompanhou de perto esses empreendimentos: mostrou o interior do Brasil e a Amazônia como desconhecidos, e os índios foram tratados pela revista brasileira como entrave ao progresso — e em muitos momentos mostrou os Estados Unidos como referência e modelo a ser seguido para alcançar o tão propalado desenvolvimento. Dessa maneira, a visão de Seleções não pode ser vista como imposta de fora para dentro, como acreditou uma historiografia preocupada com as questões do imperialismo — a revista encontrou ressonância na sociedade brasileira. (...) [O] sucesso da publicação nos convida a pensar sobre o imaginário brasileiro do período. (Junqueira, 2001, p. 339-340). Com efeito, o “Brasil é e não é a América Latina” (Maria Lígia Prado apud Junqueira, 2001, p. 339). Reforçadas de maneira cotidiana em diversos discursos institucionais e nãoinstitucionais, tais referências justificam uma interpretação das relações entre o “sucesso nacional” e a incorporação, ou não incorporação, de gêneros platinos por diferentes vertentes da MLC. Este é o assunto de nosso próximo capítulo. - 98 - 2. CAPÍTULO 2. “VIDA CIGANA”: POÉTICAS DESLOCAMENTO EM CONSTRUÇÃO DO Gêneros musicais trazidos pelo processo de colonização A partir do quadro básico da colonização do estado traçado no capítulo anterior, é possível passarmos a considerar as influências culturais e musicais trazidas por alguns destes grupos sociais, e sua permanência nas produções populares da cidade de Campo Grande, com destaque para a MLC e os embates discursivos desenvolvidos em torno dessa música. Conforme foi mencionado, a função principal dos primeiros núcleos populacionais do atual Mato Grosso do Sul (Nova Coimbra e Corumbá sendo os primeiros entre outros que se seguiriam) era a de serem fortificações e presídios militares. Eram, portanto, formados por oficiais e soldados vindos de várias partes do país, notadamente do Rio de Janeiro. Isto contribuiu para um investimento identitário em torno da cultura carioca, que se atualizou em uma forte tradição sambista e carnavalesca na região de Corumbá, diferentemente do resto do estado. Campo Grande, como foi explicado no Capítulo 1, desenvolveu maiores laços com São Paulo, que se evidenciaram no apoio mútuo quando da Revolta de 32 e acenavam com a expectativa, por parte das elites agrárias, de trazerem a divisão do estado. Outra marca distintiva de Corumbá seria o fato de estar localizada em plena planície do Pantanal, por oposição à cidade de Campo Grande, situada no Planalto Maracaju-Campo Grande, ou planalto da bacia do rio Paraná, a uma altitude de 650 metros (MoreiraNordemann, Girard e Poppi, 1997). Assim, Campo Grande, geográfica e culturalmente, esteve desconectada da realidade pantaneira, o que precisa ser salientado face ao atual orgulho e entusiasmo por meio do qual muitos campo-grandenses se significam como pantaneiros. - 99 Segundo o compositor Paulo Simões, em seu trabalho de levantamento da MLC realizado em meados da década de 1980 pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), [a] influência mais forte, para a maioria dos entrevistados, é a da música paraguaia, que se caracteriza pelos compassos ternários, e popularizada através de ritmos como a guarânia, a polca, o rasqueado e o chamamé (...) Os ritmos paraguaios estão presentes no trabalho de quase todos os compositores sul-mato-grossenses contemporâneos, à exceção do grupo Acaba, do Terra Branca e autores que procuram um som mais “pop”. (Simões, [1984?]) Esta dualidade entre música paraguaia e música pop (ou o rock, não mencionado por Simões, e que fazia e faz parte corriqueira de fusões da MLC com as músicas paraguaia e caipira), agora que se encerrou toda uma revisão da formação do estado, faz-se entender como representativa de diferentes disputas. De um lado, as músicas paraguaia, boliviana e caipira, representando o diferente, foram absorvidas pela MLC, quando antes eram rejeitadas pelas elites de Campo Grande, o que é um dado positivo. Entretanto, a presença da música paraguaia na MLC, ao acentuar um regionalismo especificamente sul-mato-grossense, passou a favorecer os interesses das classes dominantes agrárias, após a divisão do estado. Todavia, ao privilegiar uma música advinda de um país platino, contribuiu também para reafirmar a histórica “ambiguidade” de Mato Grosso com relação à sua lealdade aos países do Prata, o que vai contra os interesses estratégicos e geopolíticos do projeto nacional, na órbita da influência hegemônica estadunidense. Além disso, as referências ao Pantanal contribuem, muitas vezes, para aumentar a ambiguidade a respeito dessa música, uma vez que este ecossistema está distribuído entre os estados de MT e MS. Em vários exemplos musicais, a tematização do Pantanal vai no sentido contrário à ideologia divisionista, propondo – ainda que, talvez, de maneira não deliberada – a unificação desses estados. Por outro lado, o rock, utilizado com profusão na MLC, contribui para solapar a ideia de um regionalismo autêntico, rural, oral, e é, muitas vezes, empregado pelos compositores e intérpretes desse movimento com o propósito de ironizar qualquer - 100 tentativa de bucolismo, e mesmo criticar abertamente os pecuaristas. Entretanto, a mistura do rock com gêneros caipiras e platinos funciona como um discurso crítico com relação à globalização. Já se vê que a busca por estabelecer os sentidos dessa música de forma binária17 é problemática. Estas questões são preponderantes na tentativa de fabricação de uma identidade sulmato-grossense, que passou a ser empreendida pelas elites dominantes logo após a divisão do estado, para consolidação de sua hegemonia. Isso foi entendido como necessário, uma vez que, como vimos, a divisão se deu de forma inesperada, pela ditadura, na ausência de qualquer mobilização popular, num momento em que a representatividade política estadual favorecia os sulistas, e o estado como um todo vinha sendo favorecido por investimentos e uma política de integração desfechada pelo regime militar. As populações precisavam ser convencidas de que eram, realmente, parte de uma unidade cultural distinta, cujo destino histórico seria, supostamente, desenterrar essas raízes ocultas pela decisão do reino de Portugal, de confundir o norte e o sul de Mato Grosso em uma coisa só. A MLC se prestou, em parte, a este projeto; no entanto, como vimos no parágrafo anterior, seus múltiplos sentidos apontam para disputas entre direções radicalmente opostas, o que inviabiliza a ideia de construção de uma identidade. Verifica-se, ao contrário, através da análise dessa música, a contínua migração entre diferentes posições subjetivas, possibilitando que parte da audiência se construa de maneira igualmente intertextual, problematizando, assim, o projeto ideológico das elites. Esta característica das canções desta vertente é denominada, nesta tese, de “poéticas do deslocamento”. A presença mineira na música sul-mato-grossense pode ser observada no meio rural, onde é grande a popularidade de músicos como Tião Carreiro (o principal cultor do pagode mineiro, e exímio na viola de 10 cordas). Esta influência mineira é também preponderante no 17 ou seja, apenas como “tradição inventada”, ideológica, ou apenas como expressão de “resistência”. - 101 estilo de Almir Sater, sem dúvida o mais bem sucedido artista da MLC, dentro e fora do estado. Esta particularidade – o fato de que o “sucesso nacional” chegou para um artista que não exibe traços distintivos de uma singularidade sul-mato-grossense, especialmente a música paraguaia – deve ser notada, e será discutida adiante. A tradição junina no MS também segue o modelo mineiro, com predominância do arrasta-pé. Os gêneros regionais paulistas (cururu, cateretê, etc.) têm uma presença bem mais discreta, tanto no gosto popular como, por exemplo, no repertório dos artistas sertanejos de Campo Grande (Simões, [1984?]). Diferentemente da situação verificada por Simões na década de 1980, a intensa penetração gaúcha em quase todo o estado terminou por fazer com que os gêneros sulistas em geral, como o fandango, a milonga e o vanerão, sejam, hoje, cultivados intensamente. Inclusive, o chamamé, surgido na região de Corrientes (outrora parte da República do Paraguai, anexada à Argentina após a Guerra da Tríplice Aliança) tornou-se popular no MS por meio da influência gaúcha. Isso porque, segundo o musicólogo Evandro Higa, os paraguaios, e, por extensão, os sul-mato-grossenses de antes dos anos 1990, apreciavam principalmente a polca paraguaia e não o argentino chamamé, que se teria originado daquela (Higa, 2005, p. 216). Tanto é massiva a popularização do chamamé em oposição à polca paraguaia, na atualidade, que leva o musicólogo a alertar para o que entende ser um perigo de descaracterização da tradição musical do estado (Higa, 2009) – opinião não subscrita por esta tese. Já os gêneros nordestinos, antes da recente popularização nacional conhecida como “forró universitário”, eram restritos a alguns bolsões de migração nordestina, como Fátima do Sul (região de Dourados), não influenciando expressivamente a produção sertaneja e urbana. Hoje, como parte do fenômeno das comunicações de massa, podem ser escutados cotidianamente em shows de artistas locais e em “barzinhos”. - 102 Todos esses gêneros musicais, ligados que são à história da colonização do estado e migrações subsequentes, sugerem elementos que se conectam a narrativas e contranarrativas ideológicas, proporcionando leituras plenas de sentido quando cotejadas ao contexto e às letras que cada canção veicula. A discussão sobre as direções que a música deve tomar – de acordo com diferentes atores – implica, assim, em discussões, contra e a favor, sobre questões identificatórias, numa gama de escolhas que colocam, de imediato, disputas entre discursos sociais, econômicos, políticos e ideológicos. Assim, o simples arrolar de gêneros musicais trazidos na bagagem cultural de grupos de migrantes não nos diz nada a respeito do sentido com que as populações atuais os investiram – se é que algum. As convenções estéticas (o que já é dizer, ideológicas) da MLC não podem ser isoladas da experiência concreta dos grupos envolvidos com ela, e dos sentidos construídos por estes grupos. Como diz o etnomusicólogo John Blacking, “[o]s princípios da organização musical devem ser relacionados a experiências sociais, das quais a audição e execução musicais constituem um aspecto” (Blacking, 1995, p. 72). 18 A produção social de sentido é analisada, nesta tese, a partir dos embates que ocorrem no interior nas diversas práticas discursivas, conforme se discute no Anexo. Em resumo, para o pós-estruturalismo, a cultura – que, para esta corrente teórica, não se distingue da ideologia19 – poderia ser compreendida como “um sistema de representações dependentes de 18 “[t]he principles of musical organization must be related to social experiences, of which listening to and performing music form one aspect”. 19 Para Althusser, o processo de interpelação de indivíduos como sujeitos, por meio do qual eles se tornam agentes de ideologias específicas, inserindo-se em relações sociais materiais específicas, é explicado pelo conceito de “ideologia”, que, para o pós-estruturalismo, corresponde a uma teoria da linguagem. Na teoria pós-estruturalista, a estrutura e a função da posição do sujeito no interior do discurso é a pré-condição para o sujeito assumir formas historicamente específicas de subjetividade dentro de discursos particulares (Weedon, 1997, p. 30). Estes discursos podem, evidentemente, contestar as ideologias dominantes, uma vez que “ideologia”, para o pós-estruturalismo, não é uma percepção “falsa” da realidade (que é sempre um construto, e, portanto, não se dá à verificação), mas uma operação adequada aos propósitos do discurso em questão, embora realizada sobre formas fenomênicas. Não há, para o pós-estruturalismo, a possibilidade de escapar das constrições do discurso em direção à plenitude do “real”, pois todo o conhecimento sobre o “real” é obtido, justamente, por - 103 uma certa posição subjetiva, construídas por práticas significantes” (Coward, 1977, p. 78). Esta definição parece mais adequada para pensar sociedades urbanas complexas contemporâneas, como a aqui estudada. Ela tem a virtude de complexificar o modelo marxista economicista – que propõe uma sociologia da distribuição, ou seja, uma homologia entre a estruturação da sociedade em classes e uma estruturação paralela das produções e usos culturais. A definição pós-estruturalista também problematiza o culturalismo, enquanto noção idealista da cultura como produção de valores e sentidos pela “consciência” individual sem a mediação de complicadores, como o inconsciente ou a linguagem. Ou seja, a cultura é produzida pelo sujeito, fonte ativa de sentido. A atividade dos indivíduos em conjunto produz a vida social (com suas divisões em classes sociais) (Coward, 1977). Portanto, esta atividade humana é compreendida como produto exclusivo do indivíduo em contato com a natureza (sem as mediações já referidas), sendo o indivíduo possuidor da capacidade inerente de investir as formas materiais da existência com sentido sem as intromissões de agentes “externos”. Cancelando-se tais intromissões, o sentido é visto como uma categoria nãoproblemática (ou seja, decorre unicamente da atividade do indivíduo). A consciência livre, ativa e criativa do indivíduo tem a capacidade inerente de produzir o sentido (ou seja, culturas de “resistência” à subordinação a classes dominantes, baseadas no “livre arbítrio”) ou realizar esse sentido (reproduzir, sem conflitos, as formas de consciência impostas pelo determinismo econômico). Retirando a produção do sentido do âmbito do processo material por meio do qual a estrutura produz efeitos, esta concepção de cultura deriva, como se pode ver, do humanismo liberal, com seus pressupostos da centralidade da consciência e da livre determinação (Coward, 1977). Como consequência, o culturalismo também entende a cultura intermédio da linguagem – o que é dizer, dos discursos. Assim, não pode haver, para o pósestruturalismo, “ciência” ou “verdade”, enquanto absolutos ou universais, apenas diferentes formas de discurso, com suas próprias regularidades, inserções institucionais, condições de produção e graus de poder dentro da formação social-histórica. - 104 como uma resposta a determinadas condições materiais. O corolário desta premissa é a compreensão da cultura como mecanicamente homogênea para toda uma classe social (ou subcultura, ou comunidade). Supõe-se que o sentido seja válido para todos os indivíduos dessa mesma classe, não sujeito a identificações e rejeições subjetivas, que tendem a produzir sentidos diferentes do mesmo objeto para pessoas de diferentes gêneros, etnias, sexualidades, nacionalidades, religiões, com histórias individuais diferentes, etc. Fechando-se em torno do suposto poder determinante da estrutura econômica/material, ignorando as mediações da linguagem e do inconsciente sobre o problemático processo de construção do sentido em que cada sujeito está implicado materialmente, esta definição ignora os diversos conflitos ideológicos e potencialmente transformadores que ocorrem no interior das classes. Se, ao contrário, entendemos que um dado sujeito, dado o complexo efeito da produção de sua subjetividade no discurso, ressalvada a intervenção dos dispositivos de poder na produção de subalternidades, pode se identificar, em tese, com qualquer posição subjetiva – independente de seu pertencimento “real” a uma classe social, etnia, sexo, geração, e assim por diante; se entendemos que tais posições subjetivas nunca são necessariamente fixas; e que nem mesmo é necessário que diferentes posições subjetivas assumidas pelo sujeito sejam coerentes entre si, no intervalo entre duas enunciações, verificamos que toda ameaça de essencialismo ou determinismo foi afastada. Ao mesmo tempo, recuperamos a dimensão política e a eficácia material dos múltiplos conflitos ideológicos – inclusive os que são encenados a partir do nível próprio de determinação da música popular. Neste ponto, para maior facilidade de compreensão (sem abandonar o percurso pósestruturalista), pode-se mencionar, como mera analogia, a semelhança entre a posição pósestruturalista e os conceitos de “estratégias e táticas”, do historiador Michel de Certeau, retrabalhados pelo também historiador Roger Chartier como “apropriação”. Efetivamente, pessoas de setores subalternos podem apropriar-se de objetos culturais associados aos setores - 105 dominantes e torná-los seus, e vice-versa. Enquanto uma sociologia da distribuição analisaria estes dois casos, respectivamente, por meio das categorias estáticas e não-contraditórias da “falsa consciência burguesa” e da “expropriação”, entendendo como inócuos os conflitos ocorridos no âmbito ideológico (uma vez que estes só ocorrem, supostamente, depois que já se instalou o processo econômico de superação do modo de produção anterior), o pósestruturalismo compreende nestas práticas discursivas (ideológicas) a possibilidade de confronto, luta e transformação social. Assim, se o discurso é um sistema de representações dependentes de uma dada posição subjetiva, diferentes representações (por exemplo, representações críticas a um discurso dominante, construídas a partir de uma dada posição assumida por um dado sujeito) resultarão da identificação do sujeito falante/receptor com diferentes posições subjetivas. Nesta acepção, o falante/receptor retém algum sentido de agência, que é dado por seu posicionamento em uma cadeia discursiva mediada por sua história pessoal, e que se traduz na possibilidade de sua atividade política. E, se as representações são produzidas por práticas significantes – que são todas aquelas que produzem a proliferação dos sentidos – verifica-se que a demonização dos media ou da indústria cultural não só é supérflua como contraproducente. Na vigência do capitalismo tardio, quando as instituições cidadãs foram anuladas pelo “estado mínimo” neoliberal, a arena onde se dão os conflitos e transformações é o consumo, com o consumo midiático assumindo lugar de relevo na produção e circulação de discursos não-hegemônicos. Se, portanto, como foi dito, o simples arrolar de gêneros musicais nada nos diz sobre como são produzidos e contestados seus sentidos sociais, se faz necessário, a partir de agora, relacionar os gêneros e estilos musicais a questões sociais e discursivas mais amplas. - 106 - Música popular e projeto de modernização I: o Rádio Clube e as rádios, desde os anos 20 até os anos 50 Na contracorrente do cultivo aos gêneros rurais e tradicionais, associados (sempre de maneira flexível) a discursos subalternos, pode-se perceber nos segmentos dominantes de Campo Grande, a partir do advento do rádio nos anos 20, um intenso movimento de busca de atualização cultural através da música popular, que constrói, portanto, posições hierárquicas. Esta ansiedade em obter informações sobre o que ocorria nos grandes centros brasileiros indica forte investimento identitário nos modelos oferecidos por estes centros. Neste sentido, se compreendermos “identidades” como posições subjetivas ativadas no interior de discursos, é especialmente pertinente a observação do musicólogo Richard Middleton: a música popular sempre esteve interessada, nem tanto em refletir a realidade social, quanto em oferecer maneiras pelas quais as pessoas podem usufruir e valorizar identidades desejadas por elas, ou que elas acreditam possuir. (Middleton, 1990, p. 249) 20 Com efeito, os setores urbanos de Campo Grande passaram a buscar músicas populares nacionais e internacionais associadas a discursos dominantes de “bom gosto”, “sofisticação” e “modernização”, ativando, no interior destes discursos, posições subjetivas associadas a tais representações. Como deve estar claro ao leitor, o conceito de discurso é maleável o suficiente para permitir a ativação de posições subjetivas críticas a partir dos mesmos discursos – verbais e musicais – dominantes. Logo, não se pode inferir, automaticamente, que o uso de músicas associadas a setores cultural e/ou economicamente privilegiados por membros dos setores subalternos seja acrítico ou integrado, e vice-versa. Um reflexo expressivo desta busca de atualização foi a criação do Rádio Clube, em 1924, e que, nas palavras de Sá Rosa, juntou “(...) sócios reunidos em torno de um aparelho de 20 “popular music has always been concerned, not so much with reflecting social reality, as with offering ways in which people could enjoy and valorize identities they yearned for or believed themselves to possess”. - 107 rádio, que através de muitos ruídos colocou os ouvintes em contato com a música e o mundo além de nossas fronteiras” (Sá Rosa, 1999, p. 222). Naquele tempo em que “não havia outra distração na cidade” (Paulo Coelho Machado apud Rádio Clube, 1994, p. 27), e em que “o sujeito ficar acordado até tarde era perigoso” (Alberto Neder apud Rádio Clube, 1994, p. 27), o Rádio Clube se tornou o mais importante ponto de encontro social das famílias de classe média e alta. Estas famílias eram formadas tanto por grandes e médios pecuaristas quanto por profissionais liberais, empresários e comerciantes, que assim buscavam se atualizar quanto às modernas tendências culturais vindas das metrópoles nacionais e internacionais. A identificação mútua entre as frações burguesas agrárias e urbanas, evidenciada por sua participação no mesmo meio social, era possibilitada pela sua interdependência: os pecuaristas eram responsáveis pela crescente base econômica do sul do MT, e necessitavam de fornecedores de produtos e serviços, que, por sua vez, dependiam da riqueza produzida pelos primeiros. Verificam-se, nessa circularidade, algumas das razões plausíveis para o fato de que os discursos modernizantes que caracterizavam os pecuaristas passam a constituir-se, também, no traço predominante das elites de Campo Grande, e da própria cidade como um todo. Verifica-se, também, que este nexo não é de tipo determinista-econômico, uma vez que haverá conflitos ideológicos entre as classes dominantes agrárias e urbanas, e mesmo no interior de cada uma delas. Da mesma maneira, diferentes pessoas, de classes sociais subalternas, também buscavam as mesmas músicas, ativando, por meio delas, posições muito diferentes, como veremos. Justamente, seria este relativamente heterogêneo segmento social que viria, anos depois, a propor a MLC, ao menos em seus momentos iniciais. O pai do compositor da MLC Paulo Simões, o juiz federal Paulo Simões Corrêa, foi presidente do Rádio Clube, e a vivência - 108 cultural proporcionada pelo clube foi bastante marcante para o músico. Geraldo Espíndola, outro fundamental compositor da MLC, também se deixou influenciar pela vida cultural aí apresentada, a despeito de não ser de família abastada ou poderosa. No entanto, tendo recebido tais influências, estes compositores viriam a propor, posteriormente, importantes modificações ao modelo cultural pautado pela importação de músicas dos grandes centros. O fato de que sujeitos de classes sociais diferentes utilizaram os discursos dominantes para constituírem representações conflitantes com aquelas preferencialmente associadas a tais discursos, apenas ressalta as múltiplas possibilidades críticas de entender as formações sociais pela categoria do discurso, sem que se seja obrigado a recorrer à noção de “falsa consciência”, a homologias estruturais ou a uma ideia de cultura homogênea. Com isso, nossa atenção se torna disponível para os conflitos ideológicos, que são propulsores de transformações. Enfim, o Rádio Clube foi, por um bom tempo, a mais importante instituição da cidade a contar com um orçamento estável e crescente e a colocar todas as suas energias no propósito de desenvolver, com talentos locais e vindos de fora, atividades artísticas e culturais. Não é de causar surpresa, portanto, que tenha provocado influência marcante e duradoura na vida de muitas pessoas de Campo Grande e, por conseguinte, também na vida cultural e artística da cidade. Além disso, com o desenvolvimento de Campo Grande, pouco a pouco a influência do Rádio Clube se expandiria através do espectro social. Quando o clube surgiu, nos anos 1920, a cidade contava com apenas cerca de 20.000 moradores, conforme dados do censo de 1920 que foram apresentados no Capítulo 1. À medida que a cidade crescia, o isolamento entre as famílias tradicionais e os novos ricos, os recém-chegados e as classes populares deixava de ser tão explícito. Já transformadas paulatinamente havia décadas, essas relações sociais explicam porque, nos anos 1980, o clube se comprometeu com o ideal de se transformar, de - 109 associação de amigos, em empresa, o que implicou em uma política de aumento expressivo dos associados com expansão horizontal (interclasses) (Rádio Clube, 1994, p. 117-148). Voltando aos anos 1920, aí, nesta associação de amigos, estas famílias de classe média e alta criaram seus filhos, que frequentaram seus bailes infantis, suas matinês, desde crianças, passando pela juventude e a idade adulta. “Eu comecei a frequentar o Rádio Clube com 6 anos, em bailes infantis (...) em 1937 (...) Continuei frequentando e conheci meu marido, numa festa do Rádio” (Oliva Faria Rolim, dançarina e esposa do tabelião Murilo Rolim, apud Rádio Clube, 1994, p. 25). Os depoimentos demonstram que o Rádio (como é conhecido até hoje) era o centro da vida social e do lazer das elites da cidade, o ponto de partida para várias formas diferentes de sociabilidade, com destaque para manifestações culturais, e, especialmente, a música: (...) tinha (também) a moda do piano (...) faziam também teatro amador, em geral para angariar fundos para a igreja, para a Santa Casa. E o Clube funcionava assim diariamente, porque a juventude se reunia ali para essas brincadeiras, para sessões lítero-musicais (...) havia declamações, tocavam piano, havia dança, (ou) então, concertos musicais mesmo (...) (Paulo Coelho Machado apud Rádio Clube, 1994, p. 27) A música, assim, tinha importante papel no Rádio Clube, ao conectar com os grandes centros do Brasil aquelas pessoas ansiosas por modernização e isoladas por enormes distâncias e precárias comunicações, em uma região marcada pelo “atraso” (sempre, do ponto de vista dos interesses do modo de produção vigente) explicado por sua história. Os famosos bailes de carnaval do Rádio, em uma cidade sem esta tradição, como foi dito, reforçam a ideia de que a música – importada dos centros difusores de cultura nacional, como fica evidente pelo repertório de marchinhas arrolado a seguir – desempenhava um papel sutil nas expectativas sobre as identidades sociais, que ia muito além das notas musicais: (...) O Teu Cabelo, A Jardineira, Mamãe Eu Quero, Taí, Amélia, Com Jeito Vai, Chiquita Bacana, General da Banda, As Águas Vão Rolar, Cabeleira do Zezé, Coração Corintiano e tantas outras (...) É fácil perceber, portanto, como o Carnaval pôde estar presente já na origem do Clube. Afinal, antes de ir para a rua ou para os salões, a música de carnaval ia para a rádio, sendo ouvida no rádio. Então, desde os primeiros tempos, Carnaval e Rádio Clube fizeram uma parceria indissolúvel, dando lugar a - 110 festas memoráveis. Os carnavais de antigamente são sempre lembrados com saudades por aqueles que deles participavam, lá pelos idos de 30. (Rádio Clube, 1994, p. 40) Atendendo à expectativa por progresso na cidade de Campo Grande, quinze anos depois da fundação do Rádio Clube, chega a primeira emissora de rádio do estado. Em 26 de agosto de 1939, nasce a PRI-7 – Rádio Sociedade Difusora de Campo Grande, que continua este processo de atualização das elites por meio da absorção de modelos metropolitanos. Segundo a pesquisadora Cláudia Ruas, a rádio Difusora, no início, era considerada mais do que veículo de comunicação e um dos principais entretenimentos da população, adentrava as casas das pessoas modificando hábitos, (...) criando dependência em seus ouvintes. (Ruas, 2004) Com a chegada da emissora, a missão atualizadora do Rádio Clube é reforçada. A implantação da PRI-7 evidencia tanto os discursos da modernização dos campo-grandenses quanto a importância dos meios de comunicação de massa para isso. Isto porque, com estes meios, passa a existir uma diferença crucial: a propagação dos discursos e polêmicas em torno da atualização cultural através de todo o espectro social. Música popular e projeto de modernização II: os anos 50 Mais do que mera diversão, portanto, a música no Rádio Clube (e também na PRI-7 e nas rádios nacionais e internacionais que, a essa época, já tinham se tornado hábito noturno da população) respondia a desejos de atualização, que, na verdade, eram produzidos por diferentes discursos de modernização. A modernização, da maneira como tem sido pensada pelas elites, é um empreendimento ligado às necessidades do capital. Não o é essencialmente: é possível que setores subalternos se apropriem de discursos globais, ligados à ideia de modernização, para fazer avançar suas agendas próprias. A música sertaneja radiofônica, por exemplo, já era popular no Brasil inteiro desde tempos antes. A apropriação da tecnologia do rádio pelos públicos destas canções traz múltiplas possibilidades discursivas, que não se deixam reduzir aos desejos de acumulação. Um desses exemplos é o antigo sucesso da dupla sul-mato-grossense Délio & Delinha, “Transmissor da saudade”: - 111 “Transmissor da saudade” (Delio – Delinha – Biguá) Nosso peito não é rádio É apenas um transmissor Que recebe da saudade Transmite para o amor Que atinge com som perfeito Seja a distância que for Atingindo os corações De quem sofre a mesma dor Neste exemplo, a nova tecnologia serve de metáfora para a comunicação amorosa, atendendo ao desejo de colocar em contato pessoas separadas de seus diferentes objetos de desejo por diferentes motivos – era muito frequente, por exemplo, que membros de uma família permanecessem numa fazenda, enquanto outros membros fossem trabalhar na cidade. Como tal, a modernização não é, unicamente, um projeto de acumulação capitalista, mas tem a ver com a manutenção dos laços afetivos – e muitos outros discursos que se podem imaginar. No entanto, sendo a contradição o signo inescapável da vida cultural, mesmo nesse exemplo não há a pureza da “resistência” das classes subalternas, mas, sempre, o conflito, a descontinuidade, a possibilidade de avanço e também de retrocesso, em que a mediação dos interesses econômicos, se não é determinante, nunca é de se desprezar. A música no Rádio Clube e emissoras de rádio com programações nacionais e internacionais buscava sintonia com o estilo de vida e pensamento das capitais. A partir de certas posições subjetivas localizadas em discursos deste tipo, membros de classes dominantes buscariam, continuamente, a modernização das estruturas produtivas e da economia, intensificando o processo de globalização capitalista. O que era, justamente, a preocupação dos grandes pecuaristas, em sua busca de hegemonia. 21 Como evidência de que os pecuaristas colocaram tal modernização em primeiro lugar, podem-se citar alguns exemplos. Antonio Francisco Rodrigues Coelho, avô do advogado, selecionador de gado nelore puro e figura chave para a divisão do estado Paulo Coelho 21 Não é ocioso notar, nesta formulação, a primazia e poder de influência conferidos à música, ou seja, à cultura, pelos setores dominantes, com relação à esfera econômica. - 112 Machado, já estava envolvido com o melhoramento genético do gado europeu degenerado (“tucura”) encontrado então em Mato Grosso. Foi um dos pioneiros na introdução do nelore desde a primeira década do século XX, em sua fazenda, relatada por memorialistas como uma das maiores propriedades rurais de Mato Grosso. Igualmente, Sebastião Lima (um dos signatários d’ A divisão de Mato Grosso: resposta ao general Rondon, documento divisionista de 1934 já mencionado no Capítulo 1) trouxera um lote de reprodutores dessa raça zebuína de Uberaba para sua fazenda em 1903 (Bittar, 2009b, p. 62). A família Alves Ribeiro, proprietária da fazenda Taboco, citada e desenhada por Taunay na obra Em Mato Grosso invadido, já tinha nessa fazenda, no princípio do século XX, luz elétrica por gerador, antes que o mesmo existisse nas cidades mato-grossenses. Teria implantado também as primeiras cercas de arame de toda a região. Em 1940, já possuía telégrafo, e, ao surgir o trator, a fazenda adquiriu vários desses veículos. A partir da década de 1950, os fazendeiros pantaneiros já tinham superado as dificuldades e lentidão do transporte terrestre (em vista das cheias do Pantanal) por intermédio do avião. Já utilizavam este meio de transporte os proprietários da família Alves Ribeiro, além de Laucídio Coelho (pai de Lúdio Martins Coelho, também pecuarista e personagem importante da política sul-mato-grossense), Etalívio Pereira e outros. Na fazenda Taboco havia mais de um avião, enquanto Laucídio possuía quatro, além de mais de dez caminhões, por volta de 40 pistas de pouso para aviões e serviços de radiotransmissão, destinados às comunicações entre as diversas fazendas e cobertura aos serviços aéreos (Bittar, 2009b, p. 6486). Levando-se em consideração, portanto, a importância dada à modernização por parte dos pecuaristas, que configurariam a classe dominante do sul do estado, torna-se, assim, possível compreender a grande ênfase que era dada à música no Rádio Clube. Apenas podiam frequentar o clube as elites de Campo Grande, que eram compostas por esses mesmos - 113 pecuaristas, além de empresários, comerciantes, funcionários públicos e profissionais liberais participantes de seus círculos de relacionamento e interdependência. Tendo interesses políticos e econômicos divergentes, compreende-se que o mesmo repertório teria sentidos diferentes para proprietários rurais e burguesia urbana, sem falar de outros tipos de discursos divergentes menos prevalentes; no entanto, a atualização por meio da música era requerida por todos, daí sua importância: Grandes bailes exigiam grandes orquestras ou grandes intérpretes. Artistas de renome nacional abrilhantaram os bailes do Rádio: Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Trio Los Panchos, Cassino de Sevilha, Juca Chaves, Trio Cristal, Simonal, entre outros. No entanto, o Clube mantinha sua própria orquestra. Conforme a ata de 1º de junho de 1953, determinou-se que haveria bailes dois sábados por mês, quatro domingueiras, das 10h às 12h30 e uma vesperal infantil por mês. (Rádio Clube, 1994, p. 56) Tudo isso indica um forte investimento nos ideais de progresso, com um desinteresse proporcional ao cultivo do passado, da tradição e da memória, que é traço marcante na cultura campo-grandense. Nesta cidade, vários monumentos e construções históricas (o relógio da rua 14 de Julho, o casario antigo e a ferrovia do Centro da cidade, entre outros) foram demolidos e retirados para dar passagem a esta visão de progresso, sem que houvesse maiores manifestações em contrário por parte da população. Verifica-se, assim, nestas situações, a predominância de certos tipos de discursos modernizantes na cidade como um todo, discursos que provocavam efeitos favoráveis às necessidades econômicas e políticas da classe dos grandes pecuaristas. É importante ressaltar que este modelo desenvolvimentista se construía mediante o recalcamento do outro, do diferente, que eram as comunidades e culturas rurais, vistas como símbolo do “atraso”. Disso é evidência a grande desproporção entre os investimentos realizados na cidade de Campo Grande e nas cidades do interior. Além da adesão das elites a este modelo específico de modernização, parte das classes populares também estava significativamente comprometida com outros modelos. Entre as múltiplas e possíveis maneiras de compreender um conceito crítico de modernização a partir - 114 de posições subjetivas subalternas, pode-se pensar num esforço de apropriação e deformação dos discursos dominantes, com o fim de atender ao desejo exercido a partir de tais posições. Neste sentido, a memória de Lenilde Ramos é fundamental, por caracterizar a intensa atividade musical praticada por sua família de trabalhadores urbanos, concordante com a ideia de atualização cultural da cidade, mas exprimindo, simultaneamente, um propósito crítico de confronto emitido a partir de uma posição subalterna. Lenilde Ramos (n. 1952), que viria a ser importante compositora da MLC, surgindo nos mesmos festivais que lançaram Paulo Simões e Geraldo Espíndola, entre outros, é uma informante altamente qualificada sobre a música em Campo Grande a partir dos anos 1950, por razões que se tornarão evidentes em seu depoimento. Seu pai e todos os tios maternos, sendo ferroviários não nascidos em Mato Grosso, estiveram entre os que trabalharam na construção da estrada de ferro, tendo orgulho e plena consciência da sua situação de classe e da importância histórica do trabalho que desempenharam. À participação nos discursos de classe, soma-se, na fala de Lenilde, a participação nos discursos de consciência negra e de crítica à posição da mulher na sociedade, evidenciando uma posição dissonante com relação ao pensamento dominante. Tal posição foi estimulada no ambiente familiar, pois, segundo a compositora, seu pai era do Partido Comunista Brasileiro, e encorajou a esposa e as filhas a se exprimirem por meio da música, contrariando a tradição conservadora. É, justamente, seu pai, que a levou a romper com os interditos interiorizados – de cor, de classe, de gênero – e se impor como compositora, lugar reservado aos homens pela sociedade patriarcal, passando a exprimir, por intermédio da MLC, tais conflitos sociais. Esta educação libertadora começou cedo e sempre esteve ligada às artes. Lenilde dá conta de que seus pais e avós estimulavam a expressão de ideias e sentimentos por meio da apropriação de formas culturais tidas, pelo pensamento dominante, como propriedade das classes “altas”: - 115 A primeira referência musical eu tive dentro de casa (...). Uma coisa que meu avô sempre fazia questão era que os filhos dele todos soubessem, além de ter uma profissão, escrever poesia e fazer música (...). Meu pai trouxe essa herança com ele, porque meus tios, um tocava rabeca, outro tocava bandolim, meu pai tocava bastante bandolim, violão, quando ele veio pra cá ele já era compositor (...) (Ramos, 2009) No que diz respeito à apropriação e deformação dos hábitos das classes “altas”, Lenilde lembra, também, a importância cultural de outro clube social, que não o Rádio Clube, e vinculado às classes populares: “Meus pais se conheceram no Clube Português, onde dançavam”. Em suas memórias, fica evidente a centralidade usufruída pela música e a atualização cultural em sua família. O interesse, por parte de setores subalternos, de escrever poesia e fazer música, pode ser equivocadamente interpretado como uma alienação, na cultura das classes dominantes, dos sujeitos explorados. Ao contrário, a partir de sua história de vida, Lenilde deixa entrever como seu pai, sua mãe e seu avô atribuíam a essas atividades um sentido eminentemente crítico. Tal sentido se prendia à contestação de um determinismo econômico, que viesse a reproduzir-se na estratificação cultural da sociedade, bem como ao desafio lançado aos setores dominantes, na apropriação e deformação de seus valores culturais: Quando meu pai se casou com minha mãe, matriculou-a na escola de música do professor Emídio Campos Vidal, e a minha mãe foi estudar acordeão, que na época estava no auge, o método Mascarenhas. Então quando nasci, nasci dentro de uma casa que cultivava a música. Meu pai, além disso, ouvia muito rádio, muito rádio mesmo, e ele além das rádios brasileiras... a paixão do meu pai era notícia e música. Então ele ouvia muito a Rádio Nacional, ele ouvia muito os programas de auditório, ele tentava reproduzir algumas coisas em casa, principalmente os chorinhos, ele era um bom chorão no violão, ele se orgulhava de ter conhecido pessoalmente o Pixinguinha. Nas férias ele ia para São Paulo, e qual era o divertimento dele em São Paulo? Era frequentar a Casa Manon, era tentar conhecer pessoalmente os ídolos que ele ouvia no rádio. E ele ouvia muito, também, as rádios internacionais. É uma coisa muito marcada na minha infância: todo dia, às 7 da noite, que era meia-noite em Londres, nós ouvíamos as badaladas do Big Ben e meu pai ouvia a BBC de Londres. Ele ouvia também a Deutsche Welle, ele ouvia também uma rádio El Mondo, se não me engano, de Buenos Aires, e tinha umas curiosidades assim, de procurar umas rádios suecas... (Ramos, 2009) O rádio, então, assumia grande importância para este estágio de desenvolvimento do capitalismo globalizado, possibilitando a integração e a “civilização” dos rincões distantes e isolados, como Campo Grande. No entanto, não há como confundir as posições subjetivas dos - 116 pecuaristas em busca de modernização e as posições críticas subalternas que utilizam os mesmo discursos de modernização e distinção cultural. Para estas últimas, tratava-se de contestação de privilégios de classe, e de inconformismo quanto à exclusão das classes trabalhadoras da fruição cultural de qualquer produto do trabalho humano. O processo de reprodução de tais posições discursivas críticas é exemplificado pela declaração de Lenilde, a seguir. Mesmo sem compreender, ainda, seu pleno significado, intrigada, percebia ali uma forma importante de investimento subjetivo que viria a ser desenvolvida ao longo de sua formação política: Eu me lembro muito de um nome, que depois que eu fui estudar, eu fiquei sabendo, que era Stravinsky. Porque alguns trechos de Pássaro de Fogo serviam de vinheta pra algumas rádios europeias. Era uma oportunidade de ouvir uma música que eu não entendia muito bem, mas se meu pai gostava, eu achava que era uma coisa boa. A partir do depoimento de Lenilde, podemos constatar essa apropriação e deformação dos hábitos das elites por parte de pessoas específicas pertencentes aos segmentos subalternos, que, entretanto, permaneciam ligados a manifestações de cunho popular – seu pai, como vimos, era músico de choro. No entanto, além de possibilitar o contato com a cultura de matriz europeia dos grandes centros mundiais, o rádio permitia também aos mato-grossenses do sul o acompanhamento diário dos acontecimentos latino-americanos. Esta influência era, e continua sendo, entendida como problemática no Brasil. Como vimos, a proximidade de Mato Grosso com esta região produz, como contraponto aos interesses hegemônicos dos pecuaristas locais e dos grupos capitalistas nacionais, histórica preocupação, por parte dos militares e teóricos da geopolítica, com a questão da “ambiguidade” ideológica do estado. Considerando os discursos de poder interessados na produção da discórdia entre o Brasil e as outras nações latino-americanas, as memórias de Lenilde tornam mais concreta a evidência de que o rádio, como signo de modernização, era passível de apropriações por parte dos mato-grossenses do sul em geral que conflitavam com os interesses dominantes. Este - 117 meio de comunicação de massa não apenas servia para que eles se apropriassem das culturas de tradição europeia, mas também daquelas dos hermanos latino- e sul-americanos, reforçando laços contra-hegemônicos que se traduziriam, mais tarde, na MLC: E a minha mãe tinha um gosto mais romântico. Assim, através da minha mãe, eu conheci a música cubana, ela cultivava bastante o bolero, eu reencontrei muito o repertório da minha mãe quando eu fui tomar conhecimento do Buena Vista Social Club: Ferrer, Compay Segundo, aquelas músicas como “Perfume de Gardenia”, minha mãe cantava muito essas coisas. E, no bojo da música cubana vinha a música da fronteira. Eu me lembro que a minha mãe tinha uma coleção de discos 78 rotações, uma pilha de discos, uma coisa que ela fazia muito. Isso, pra você ter uma ideia, antes de eu ser alfabetizada. (Ramos, 2009) Creio ser pertinente adicionar que minha mãe, Margarida Neder, e meu pai, Alfredo, ambos cultivavam, também, um gosto pronunciado por estas e outras músicas latinoamericanas. Este dado vem subsidiar a afirmação de que o contato afetivo com a cultura latino-americana no sul do MT atravessava o espectro social e era disseminado entre a população. Entretanto, é evidente que os mesmos discursos musicais significavam coisas muito diferentes para pessoas identificadas com posições discursivas diferentes. Se bem que, com o advento da política estadunidense denominada de “Boa Vizinhança” (1933-1945), intensa propaganda da cultura dos países latinos tenha atingido a América Latina, incluindo o Brasil, como um todo, a proximidade do MT aos países da América do Sul favoreceu um contato muito mais próximo com estes, inclusive migratórios, com a formação de laços de amizade e família. É uma informação relevante, neste sentido, que a Guerra do Paraguai tenha resultado na dizimação sistemática, não só dos homens válidos, mas também dos jovens e crianças do sexo masculino, o que favoreceu a geração de filhos de mulheres paraguaias e homens de diversas proveniências, especialmente das regiões mais próximas, como o sul do MT. Assim, embora a identificação com a cultura dos países vizinhos tenha sido bastante generalizada através das classes sociais no sul do MT, há evidências de que os segmentos subalternos fariam usos diferentes dessas identificações. Além disso, como já foi dito, a - 118 aproximação com o universo latino-americano foi incentivada pela política da “Boa Vizinhança”, mas esta aproximação foi logo substituída pelo distanciamento e desconfiança quanto a este universo, por parte da política externa da Guerra Fria, que a sucedeu. Retomando o fio tecido por Lenilde, verificamos que, por meio da intensa vida musical em sua família, a futura compositora passa a conhecer as práticas musicais da cidade para além de seu círculo familiar. É nesse sentido que nomeia, aqui, também, outro local de difusão dessa modalidade cultural, o Cine Alhambra, também citado em outros depoimentos como local onde se davam apresentações públicas de música ao vivo: Minha mãe sempre gostava de organizar reuniões em casa, festas, então ela ensinava eu e minha irmã a dançar (...) [e, nestas festas], afastava os móveis da sala e colocava a gente para fazer demonstração para os convidados. Meu pai tocava, reunia os amigos... Aí, eu comecei a conhecer alguns amigos do meu pai que acompanhavam os artistas que vinham a Campo Grande pra tocar no Cine Alhambra, que era um local onde havia algumas apresentações. Conheci o sr. Ferreira, muito bom violonista que acompanhava esses artistas de fora, conheci o professor Sílvio, que chegou a tocar várias vezes na Peña... Então eu comecei, dentro de casa, a ter uma ideia do que se passava musicalmente fora do meu âmbito familiar, na cidade. (Ramos, 2009) A busca de modernização pelo campo-grandense, ficamos sabendo pela memória de Lenilde, envolvia tanto as elites quanto parte dos setores subalternos. Entretanto, o conceito adquiria sentido bastante diferente para estas últimas, marcado por diferentes interesses, táticas e usos. Toda a movimentação em torno da música sertaneja no rádio e nas gravações fonográficas, desde os anos 1920, para Néstor Garcia Canclini, é evidência de um outro modo de conceber a modernização latino-americana: mais do que como uma força alheia e dominadora que operaria por substituição do tradicional e do típico, como as tentativas de renovação com que diversos setores se encarregam da heterogeneidade multitemporal de cada nação. (Canclini, 2003, p. 19) Neste contexto, é significante que a experiência pioneira da produção fonográfica no Brasil, em 1929 (Nepomuceno, 1999, p. 110), tenha sido dedicada à música caipira. Este primeiro produtor musical foi Cornélio Pires, apaixonado promotor da cultura do campo, inclusive tendo escrito mais de vinte livros sobre ela. Sem dúvida, Pires propunha um conceito - 119 diferente de modernização daquele promovido pelas elites – e bastante popular, disseminado pelo interior brasileiro. Em Campo Grande, os diferentes discursos das classes dominantes e subalternas sobre modernização continuou a estimular a implantação de empresas de comunicação. Após a criação da Difusora, surgem, em 1949, a Rádio AM Cultura e, na década de 60, a Rádio Educação Rural (Ruas, 2004). Os gêneros rurais, parte importante da programação, eram transmitidos para as famílias de trabalhadores rurais emigradas para a cidade e para aqueles que continuaram nas fazendas, provocando a aversão de pessoas identificadas com os discursos dominantes de modernização. Para estas, as rádios disponibilizavam grande variedade de músicas urbanas, a totalidade das quais era proveniente de fora da cidade e do país (mesmo aquela executada ao vivo pela orquestra da PRI-7 e outras). Conforme se recorda o cineasta Candido Alberto da Fonseca, que viria a ter participação fundamental na cultura e na música do estado desde a década de 1960, Eu sempre gostei de ouvir tudo, a única coisa que eu não gostava de ouvir era música sertaneja. Porque o resto eu gostava de tudo, os programas de rádio eu ouvia muito, minha mãe até às vezes se irritava, quando à tarde eu ficava ouvindo tudo quanto era música de rádio... O que eu mais lembro era o programa do Nassura, de música, e o programa do Sabino Presa. Tinha uma introdução musical muito legal que eu nunca mais esqueci. Era uma música com Poly e sua Guitarra Havaiana. Esses programas tocavam Glenn Miller, grandes orquestras... Era uma coisa bem eclética mesmo, não havia ainda o sistema da cadeia produtiva musical, em que as grandes corporações da música [passaram a impor] as músicas que você queria ouvir, então era uma coisa mais inocente, mais eclética, você ouvia Poly, Luís Bordon, polca paraguaia, chamamé, Tião Carreiro e Pardinho, Roberto Carlos (de quem eu vi um show, quando era pequeno, no Cine Santa Helena, lotado) (...) rock, samba, samba-canção... Na escola fiz um sucesso cantando “A praia”. (Fonseca, 2009) A partir dos anos 50, o Rádio Clube passa a notabilizar-se pela promoção de uma intensa programação musical, sempre marcada pelo espírito de atualização cultural em relação à metrópole. Nesta programação, é notável a ausência de composições de caráter local que porventura já houvessem absorvido tal espírito de atualização, razão pela qual o clube apresentava artistas de fora ou artistas locais tocando música de fora (a síntese mencionada teria que esperar pela MLC, ainda por nascer). O Conjunto do Rádio Clube, por exemplo, que - 120 conheceu diversas formações (notadamente sob a direção do saxofonista Agápito Ribeiro e do pianista Lalo), era composto de músicos competentes o bastante para executarem de forma adequada o repertório americano pop-jazzístico (“standards”) que fazia sucesso nos anos 50 e 60. Este conjunto admitiu prontamente em seu repertório a bossa nova quando esta surgiu, sendo o primeiro grupo musical a executá-la em Campo Grande. Entre seus membros figuravam músicos até hoje lembrados por sua capacidade invulgar, como o falecido Antonio Mario, parceiro de composições da MLC. Segundo José Octávio Guizzo, testemunha dos fatos, Lalo era Antonio Minhoto Teixeira, soldado transferido para Campo Grande aos 19 anos de idade, em 1949. Já então havia cursado o 8º ano do curso de piano do Conservatório Santa Cecília, de Bauru (SP). A fama do soldado-pianista chegou até os ouvidos do Dr. Carlos Hugueney, então presidente do Rádio Clube, que não hesitou um minuto sequer em convidá-lo para atuar no tradicional e aristocrático clube da elite campograndense. Quem não gostou da brincadeira foi o Major Ivo Arruda, comandante do recruta, presidente do Círculo [Militar, clube onde Lalo cumpria a rotina de entreter os militares], dono de seu passe. (Guizzo, 1979, p. 63) Alguns anos depois, já liberado do Exército, Lalo passa a se dedicar exclusivamente ao Rádio Clube: Em meados dos anos 50 Lalo deu baixa do glorioso. Hugueney, que já havia tabelado com ele, de imediato comprou seu passe e incumbiu-o de formar um conjunto musical que iria, daí em diante, com exclusividade, animar as noitadas do Rádio. Lalo pôs-se a campo e aproveitou os talentos de Angelo Ricci (Angelim) na harmônica e do conceituado e circunspecto professor Emidio [Vidal], que tocaria contrabaixo-de-pau. De Bauru veio o bom saxofonista Ivanildo Gomes de Oliveira (o popular China), Lupércio Gomes de Oliveira (Pepe), ritmista, e, de Rancharia, SP, viria o Aparecido Nascimento Filho, (Nascimento), que, além de razoável baterista, iria, mais tarde, se constituir no melhor cantor que já tivemos. Essa era a primeira formação do grupo que recebeu o nome de LALO E SEU CONJUNTO [sic]. (Guizzo, 1979, p. 63) Na nova formação que deu origem ao nome Conjunto de Ritmos Tabu, o grupo passou a dedicar-se em suas horas vagas ao jazz, e, de acordo com Guizzo e outros que viveram a época, com competência: De São Paulo, nesse período, veio a figura humana e lucidez musical de Javerth Pinto (Javé) e o Paulo Mendonça de Souza (o Paulinho Carrapeta, anos depois meu parceiro em “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal”, música que tenho gravada em fita, acredito que a única, com um solo de Javé), exímio baterista. O tripé estava armado: Lalo era - 121 um confesso admirador de Stan Kenton; Paulinho, de Gene Kruppa e Javé, além de conhecer os grandes pistonistas do jazz, teve a oportunidade histórica de tocar por muito tempo com um dos maiores sax-alto do mundo, o fabuloso Booker Pittman (pai de Eliana Pittman), músico de Alabama radicado em São Paulo. O entrosamento dos três, daí em diante, seria decisivo para o aprimoramento do conjunto. Eles ensaiavam no RC ou no bar Bom Jardim, geralmente nos términos das apresentações, quando tocavam para eles mesmos tudo aquilo que não podiam tocar durante o baile, por razões óbvias. (Guizzo, 1979, p. 63) Durante os anos 90 tive oportunidade de trabalhar como músico por vários meses com, e entrevistar longamente um dos músicos egressos do Conjunto do Rádio Clube, Virgílio Almeida, falecido precocemente, que atuou como contrabaixista sob a direção do tradicional bandleader Agápito. Esta experiência com Virgílio, um músico sem dúvida excelente, possibilitou-me uma comprovação em primeira mão da competência musical dos músicos do Rádio Clube. Candido comenta, ainda, outro conjunto importante do Rádio Clube, além do Conjunto do Lalo, o Conjunto do Nascimento (este, também mencionado adiante por outro músico, Miguelito). Fica evidente em seu depoimento tanto a capacidade técnica destes músicos quanto a influência que disseminaram tocando jazz, música que, por esses depoimentos, parecia gozar de alguma popularidade local. Além disso, ao mencionar os militares da Base Aérea de Campo Grande, lembra outra importante fonte de informação, atualização e intercâmbio com as capitais brasileiras: Inclusive estou escrevendo um roteiro chamado Cigarras e formigas, que é sobre a vida de um conjunto musical que era o Lalo e seu Conjunto, que depois virou Nascimento e seu Conjunto, pois eu era vizinho de um dos maiores pistonistas que havia aqui, e eram músicos praticamente de jazz. Eram músicos do Rádio Clube, músicos de jazz. Como havia aqui a Base Aérea e os militares vinham sempre, principalmente o pessoal da Base Aérea frequentava o Rádio Clube, alguns gostavam de música, esses caras quiseram levar o conjunto pra tocar no Rio e São Paulo, mas eu acho que eles foram e ficaram dois meses e por um problema de saudade eles voltaram. Não por um problema de fazer sucesso, porque eles eram bastante competentes, eram dos melhores conjuntos de jazz que existiam em Mato Grosso do Sul (...) E a coisa do ponto de vista comparativo que é legal é que o jazz, essas músicas influenciaram muitíssimo os conjuntos daqui, de clubes e de boates, aqui onde tinha o Exército e a Base Aérea, a Aeronáutica, enquanto que em Corumbá eram os marítimos e lá ficou uma tradição de samba muito grande, era a coisa que mais se ouvia. (Fonseca, 2009) - 122 Voltando ao tema das transmissões radiofônicas, Geraldo Espíndola retoma sua importância para a formação e atualização cultural da cidade, chamando a atenção para o pouco interesse que a música rural e de fronteira lhe despertou. Esta rejeição, de resto, comum na cidade, sugere a hierarquização que caracteriza Campo Grande, que procurou ativamente os grandes centros brasileiros em busca de modernização urbana, voltando as costas para o interior agrário – que, como já discutimos, estava também interessado na promoção da modernização, embora com viés bastante diferente. Além disso, é evidente, na fala de Geraldo, a vinculação identitária às capitais do Brasil – ou seja, o nacional-popular – e à cultura midiática estadunidense, em oposição ao universo regional: [Minhas primeiras memórias de infância relacionadas à música são] Rádio Nacional, escutando Cauby [Peixoto], Dalva de Oliveira, mamãe cantando muito em casa também, mamãe sempre foi uma grande cantora. É a própria Tetê, a mesma voz... Mamãe cantava muito pra gente em casa, tudo que é tipo de música. Aí me lembro, já em 1962, tive no primeiro show, aqui em Campo Grande, ao vivo, eu era guri de tudo [muito novo], e era um show de Elza Soares e Jair Rodrigues, no Cine-Teatro Santa Helena, na [rua] Dom Aquino (...). Então, me lembro como se fosse hoje, porque eu ia muito ao Cine Santa Helena, sabe? assistir àqueles [filmes] americanos, de Roy Rogers, Zorro (...) Dessa vez eu vi o show dos dois ao vivo e aquilo me encantou profundamente. E também escutava assim, en passant, (...) chamamé, essas coisas... som de fronteira, mas tudo muito en passant também (risos), sempre muito mais interessado na nossa música brasileira, sempre, ouvido totalmente voltado pra esses caras da época que estavam... já escutava no rádio... (Espíndola, G., 2009, grifo meu) Esta era, portanto, em resumo, a situação da música e da cultura da cidade nos anos 50. Havia informação musical atualizada, veiculada pelas emissoras de rádio internacionais, nacionais e locais, e pelos clubes que traziam artistas de fora, com destaque para o Rádio Clube, além de bons conjuntos de música ao vivo, tanto para dançar como para ouvir. Havia uma forte dicotomia entre a música de produção própria, que era basicamente a música sertaneja, e a música urbana, que vinha exclusivamente de fora até então. Tal dicotomia exprimia concepções até então inconciliáveis sobre o que constituía modernização. Por um lado, as elites buscavam “uma força alheia e dominadora que operaria por substituição do tradicional e do típico”, como disse Canclini. Por outro, as classes subalternas de proveniência rural evidenciavam outro modo de conceber a modernização local, - 123 que não estava fechada às inovações tecnológicas (o rádio, o disco) nem aos confortos urbanos, mas não abria mão de certos traços de sua cultura, conquanto concebida em termos dinâmicos. Não havia, portanto, um tipo de música ou outra forma cultural que buscasse, de alguma maneira, produzir um discurso urbano por meio da incorporação do rural. Esta situação se transformaria na década seguinte, que passamos a tratar a partir de agora. Os anos 60 e o desenvolvimento de uma forma singular da cidade Já nos anos 1960, Lenilde chegou a travar rápido contato com a orquestra da PRI-7. É interessante que, a par de historiar o início de sua educação musical formal, contribuindo para o conhecimento da realidade local mais ampla, coloque comparativamente o conhecimento que obteve com esta orquestra, e aquele que teria com o Conjunto do Rádio Clube, como “transição”. Presume-se que esta classificação implícita tenha como operador a modernidade do repertório: A partir do momento em que eu fui para o colégio [N. Sa. Auxiliadora, o Colégio das Freiras, como é conhecido], meu pai fez uma coisa muito sensata. Da mesma forma como ele fez com a minha mãe, eu fui matriculada no colégio, e fui matriculada na escola de música também. Então, durante os dez anos em que eu fiquei no Colégio Auxiliadora, eu estudei piano, e depois acordeão também, durante este tempo todo. Mas, mesmo tendo vivido dentro do internato, passávamos os domingos em casa, e eu comecei a ampliar o meu conhecimento de música através de minhas amigas, através dos eventos que aconteciam na cidade. Então eu tomei conhecimento de duas coisas muito importantes: a primeira foi o que tinha restado do grupo de música do professor Emídio Campos Vidal, que era uma pequena orquestra que tocava na rádio PRI-7. E eu ainda alcancei com muito pouca idade o Cine Trianon, na [rua] 14 de Julho. Eu acho que devia ser assim o último ano do Cine Trianon, porque depois nunca mais ouvi falar dele. E eu fui a uma apresentação no Cine Trianon. Tinha orquestra, alguns cantores também, e outra coisa que me chamou bastante a atenção foram os conjuntos. Foi a época que Campo Grande tinha o Conjunto do Rádio Clube. Então foi uma transição, o grupo de música do professor Emídio para os conjuntos de baile da cidade. Foi mais ou menos em 1966 ou 1967 que eu conheci aquela formação de Agápito Ribeiro, Antonio Mário, Geraldo... (Ramos, 2009) A menção a conjuntos de baile da cidade evidencia que não apenas o Rádio Clube participava do esforço de modernização cultural buscada pela cidade, muito embora sua posição de maior destaque. Se já sabíamos que parte das classes populares buscava - 124 ativamente a informação nova, e tinha no Clube Português o local para se encontrar e partilhar esta informação, surge em 1965, neste contexto, o Clube Surian. Como evidencia o nome, o Surian é um clube originado a partir da comunidade árabe, em geral, e libanesa, em particular, colônias de expressão central em Campo Grande. A primeira geração de árabes na cidade consistiu de emigrados, chegados por volta do início do século XX, geralmente descapitalizados, empregados no comércio, que pouco a pouco ascendem à condição de empresários. A segunda geração, seus filhos, já conta com numerosos médicos, advogados, engenheiros e outros profissionais liberais. Era esta composição social atendida culturalmente pelo Clube Surian, e é curioso que o grupo de baile deste clube, de 1965 em diante, fosse dedicado ao rock: Nessa época também, eu tive a oportunidade de conhecer um outro tipo de conjunto, porque o conjunto do Agápito [Conjunto do Rádio Clube], todos eles liam música, o Agápito escrevia as partituras, ele fazia arranjos, ele se dedicava bastante assim a uma música popular mais elaborada, mesmo que eles tocassem pra baile. No outro lado, quando fiquei mais adolescente, eu conheci o primeiro grupo de rock. Não era, assim, um grupo de rock, era um grupo de baile mais jovem, o Zutrik. Na época, nem se chamava Zutrik ainda, eram Os Miniboys, que eram do Clube Surian. (Ramos, 2009) Às lembranças de Lenilde juntam-se as de Miguel Tatton, Miguelito, experiente músico, compositor, fundador do Zutrik e dos Miniboys (as bandas mencionadas por Lenilde), dono de empresa de sonorização e figura também fundamental da música no estado desde os anos 1960. Este momento se caracteriza, na voz de Miguelito (que não viveu na cidade nos anos 50), por intensa influência do rock e da mesma música que eletrizava os jovens das metrópoles nacionais e internacionais. Miguelito menciona também o Colégio Dom Bosco (dos padres salesianos), como mais um local onde os jovens podiam ouvir a música do momento: Nasci em Porto Murtinho [em 1954] e cheguei em Campo Grande em 60, 62. Não sabia tocar instrumento nenhum. Quando entrei para o Colégio Dom Bosco, às quartas-feiras eles faziam um show cultural lá, e apareceu uma banda chamada The Five Boys. Abriu a cortina e apareceram aqueles caras de terno, tocando The Monkees, Beatles, Marmalades... Eu falei ali: eu quero ser isso aí. Eu decidi meu futuro naquele dia, na hora que eu vi aqueles caras com aquela guitarra lá... Mas não tinha lugar pra aprender [a tocar rock], e me puseram pra aprender a tocar piano no Conservatório Musical Santa Cecília, que é próximo ao Rádio Clube. Já [tinha] a - 125 banda do Rádio Clube, Os Geniais, no Surian tinha Os Brasinhas... Comecei a entrar no mundo da música... Mas desde criança eu sempre gostei de compor (...) Essas bandas [Os Brasinhas, Os Geniais] eram bandas de baile mas que tocavam rock, também. Aquele rockabilly, tipo... [executa exemplos ao violão]. Depois entrou Jovem Guarda, Beatles, Rolling Stones, aí o negócio começou a pesar. Quando eu conheci os Rolling Stones, minha cabeça já foi pro lado do pancadão. Porque Beatles é mais light, e tal. Aí Deep Purple, entendeu... Eu tive o privilégio de viver uma fase muito rica, que foi a bossa nova, no Brasil, uma fase excelente brasileira, e a fase rock’n’roll... As melhores bandas, no mundo, surgiram nos anos 70... e estão até hoje: Led Zeppelin, Genesis, Pink Floyd, Deep Purple... (Tatton, 2009) Na fala de Miguelito são reforçados os temas que vêm sendo ressaltados aqui. Verifica-se nela o enorme interesse pela ideia de modernização, pelo desejo de atualização cultural. Como já foi dito, os discursos de “modernização” são plurais, exprimindo posições subjetivas também plurais, irredutíveis a um discurso, dominante ou subalterno. Se as relações e forças de produção, instituições e práticas da sociedade são construídas por discursos, tornando-se a base material dos discursos dominantes, os discursos são terrenos da luta política que visa estabilizar ou transformar os sentidos dessas estruturas e as próprias estruturas, as instituições e práticas que possibilitam o modo de produção. Já tivemos oportunidade de falar de outros discursos que participam destas polêmicas, associados a trabalhadores rurais e outras pessoas que, a partir deles, ativaram posições subjetivas na defesa de modelos alternativos de modernização. Entre estes discursos subalternos também é possível encontrar aqueles que favorecem a manutenção do status quo e aqueles que o desafiam. Da mesma maneira, o rock enfeixa ainda outros discursos, e seria um equívoco restringir sua pluralidade, simplificando o gênero como “resistente” ou “alienado”. A modernização de que fala Miguelito seria propiciada, no caso, pela música popular brasileira, dita mais sofisticada, dos grandes centros, e pela música estrangeira, tanto aquela associada, também, à sofisticação (o jazz), quanto aquela marcada pelo selo da contemporaneidade (o rock). Confirma-se o envolvimento de largas parcelas da população nestes discursos pela efervescência em torno dessa música, que lotava os clubes, e pela influência marcante do Conjunto do Rádio Clube sobre os outros conjuntos. Entretanto, como - 126 os discursos estão, sempre, sujeitos a contestações, verifica-se que, se, de um lado, a ideia de atualização cultural sofre influência material dos discursos dominantes dos pecuaristas em busca de hegemonia, de outro, o rock, como antítese do regionalismo, dificilmente poderia ser considerado um reforço da ideologia agrária. Nestes termos, é interessante salientar as diferenças entre o conceito de globalização capitalista, vinculado à exploração econômica, e o de mundialização: Se por um lado a globalização nos remete à generalização das relações econômicas transnacionais, dependentes do modelo norte-americano e de seus padrões, por outro a mundialização nos leva à constatação de que os sujeitos culturais deixaram há muito tempo de ser necessariamente nativos de uma região, de uma etnia, de uma cultura nacional ou de uma classe social ontologicamente determinada (...). Nós não podemos, no mundo "mundializado" pelos meios de reprodução transnacional que vão da fita cassete à internet, relevar o fato de que se está exposto a informações culturais mútiltiplas, que esse é um dado de realidade formativo, e que nenhuma vida cultural paira "pura" acima ou abaixo disso. Globalização e mundialização vêm a ser, assim, fenômenos associados, ao mesmo tempo que potencialmente divergentes. (Wisnik, 2004, p. 321) Mesmo tendo essa característica progressista neste contexto, a postura anti-regionalista, cumpre notar que aquele rock excluía e recalcava o outro – o índio, o interiorano, o mundo rural, o paraguaio – o que contribui para explicitar a complexidade do conceito de discurso. A mesma exclusão ocorria com a música das big bands, os sucessos nacionais e internacionais, o jazz, a bossa nova e as músicas de carnaval importadas das metrópoles nacionais e internacionais e executadas nos clubes e rádios da cidade. A face oculta do desenvolvimentismo e modernização capitalistas estava recalcada, tanto nos discursos musicais quanto verbais. Então, a gente viveu um momento em que eu ficava dividido entre bossa nova e rock. Porque quando o Antonio Mário saiu da banda do Rádio e foi para o Zutrik, no Surian... Primeiro nós formamos os Miniboys (eu tinha uns dez, doze anos, ou seja, 1964, 1966). Os Miniboys durou dois, três anos... Tocamos em São Paulo, no programa do Moacir Franco... O repertório era The Monkees, Herman Hermits, Rolling Stones... E nós tínhamos músicas próprias, também, mas não tinha como gravar. Aí tinha uns dois caras que eram militares, foram transferidos, a banda se desfez, já entrou o Zutrik (em 68, 70), que existe até hoje, tem 40 anos a banda. Aí o Antonio Mário saiu da banda do Rádio e entrou pra gente. E o Antonio Mário era um cara que tocava jazz, né. A banda do Rádio era muita bossa nova, MPB de qualidade. Músicos de alto nível. Sabe Os Cariocas? Era uma banda com aquele vocal, cara. Eles faziam aquele vocal. E eu moleque... De repente entrou na banda um cara ícone de - 127 bossa nova, pra nós foi um aprendizado muito grande. porque nós começamos a ver que (...) não era só rock, tinha bossa nova, tinha acordes... A banda do Rádio era o Antonio Mário, o Celso na bateria, o Nascimento no vocal, Virgílio Almeida, baixista, fez parte da banda. Era uma banda-escola, assim, pra nós, né. Mas eles não tocavam rock, eles tocavam MPB, jazz, música americana, meio soul... Antes do Antonio Mário, antes dos Geniais, teve a banda do Nascimento, que tocava muito Johnny Alf, aquele repertório antes da bossa nova, Maysa... Uma vez os Miniboys fizeram um show no Rádio Clube e o Nascimento regulou o som pra gente, então eu peguei essa época ainda. Era uma época que tinha muita música, e os clubes lotavam. (Tatton, 2009) Se Miguelito lembra o Colégio Dom Bosco, dos padres salesianos, como local de troca e atualização de informações musicais, Lenilde, correspondentemente – e surpreendentemente – destaca o desempenho da mesma função pelo igualmente conservador “Colégio das Irmãs” (N. Sa. Auxiliadora): (...) Dentro do colégio, a gente sempre se apresentava, porque, como a gente já estudava música, a gente sempre se apresentava nas festas, nos encontros do Grêmio Literário e Recreativo, e uma das irmãs lá do colégio, irmã Irma Zorzi, tinha uma visão bem de promotora (...). Ela entrou em contato com um empresário de São Paulo, e esse empresário financiou para ela um equipamento de som e os instrumentos. Então foi como se a gente tivesse ganhado na Loteria Esportiva, porque a gente saiu do violão, da sanfona, tudo acústico, nós ganhamos um órgão Farfisa, que em Campo Grande não existia, tanto que os conjuntos da cidade vieram pra conhecer o equipamento, ganhamos guitarra, contrabaixo, bateria. E formamos o primeiro grupo musical dentro do colégio (...) em 1968. Só que nós não tínhamos nem noção de como que a gente ligava aquilo, como que a gente mexia com aqueles instrumentos (...) então nós conseguimos que as irmãs deixassem que os meninos dos Miniboys fossem, aos sábados, no colégio pra nos dar aula de conjunto. Então, começaram a entrar no colégio Miguelito, Lúcio Val, o Fala Baixo (...) Era um acontecimento, o sábado à tarde. Porque, quando esses meninos chegavam de [calças] boca-de-sino, botinha, com aqueles cabelos deste tamanho, black power, principalmente o Lúcio Val, que tinha uma cabeleira enorme, então as meninas iam em cima, e queriam autógrafo... (Ramos, 2009) A ideia de transgressão, por meio dos discursos musicais, das estruturas patriarcais características dos discursos dominantes agrários, é bem captada e destacada por Lenilde, tanto ao salientar o papel de sua colega Vandinha, quanto o de um grupo formado apenas por meninas: Uma colega nossa que estudava no colégio, a Vanda Brito, fazia parte dos Miniboys (...). O fato de ela ter saído do Colégio das Freiras pra entrar num grupo que se chamava Miniboys e ser a vocalista do grupo, isso já era uma grande transgressão que nem ela mesma entendia, depois só que ela foi entender bem assim toda essa força que ela tinha pra encarar uma situação dessas. Então a Vandinha levou os Miniboys pra dentro do Auxiliadora, e nós formamos um conjunto, as Golden Girls, que era o nome da banda. (Ramos, 2009) - 128 - Além de influenciar todos estes jovens músicos já mencionados, os meios de comunicação de massa também são lembrados como fonte de atualização por Paulo Simões. Conforme se pode depreender a partir dos discursos musicais veiculados pelo repertório comentado pelo compositor, o desejo de atualização por meio de tais discursos, em sua fala como na dos outros entrevistados, continua indistinto do desejo de superação dos papéis sociais associados à sociedade conservadora: Comecei a me interessar por música “jovem”, ou feita por jovens, na época, que seria o rock’n’roll, vindo do exterior e a Jovem Guarda no Brasil. Pra ter acesso a isso... isso começou a surgir por meio de pequenas pitadas de Elvis Presley, ver filmes de Elvis Presley no cinema, eu achava, nossa, fantástico, um puta som... E isso me levou a ficar atento a esse filão, e comecei a procurar nas rádios, já que discos [eram raros], talvez minhas irmãs tenham ganho um ou dois, de presente... Pat Boone, que era o cover do cover do cover, mas tinha um ou outro rock, umas baladas pop, aí comecei a pegar uns horários vagos na rádio-vitrola lá de casa e procurar coisas por conta própria. À noite, porque só pegava à noite, eu ficava escutando, principalmente a rádio Excelsior, de São Paulo. Foi através dela que eu ouvi Jovem Guarda. Eu ouvi os Beatles, eu tenho a memória muito precisa da primeira vez que ouvi os Beatles, por uma coincidência – eu falei que o trem sempre foi muito importante por causa do ritual de sair de férias – e, por um acaso, eu estava na cabine do trem na plataforma da estação de Campo Grande esperando o trem sair, quando eu escutei, numa cabine ao lado, alguém com rádio portátil, e começou a tocar “Love me do”. E eu fiquei muito impressionado, sabe, espichando a orelha assim pra... quase caí do vagão (risos) pra escutar aquilo, porque eu nunca tinha ouvido, e achei imediatamente que aquilo era algo interessante que eu tinha que procurar. E assim que cheguei em São Paulo já saí atrás daquilo, comprei o primeiro compacto deles, que tinha acabado de ser lançado, isso foi por volta de 1964, acho, não lembro exatamente que ano foi lançado no Brasil... deve ter sido entre 1964 e 1965... . 22 E, de quebra, acho que nas mesmas férias, estava saindo um disco do Roberto Carlos, chamado É proibido fumar, com O Calhambeque. Eu já escutava músicas dele mas não tinha me predisposto a comprar discos. Então, a partir daí eu comecei a reunir minha própria discoteca, me tornei um daqueles moleques que esperavam o disco dos Beatles, do Roberto Carlos com ansiedade, encomendava nas lojas, lá no Rio. (Simões, 2009) Se estamos analisando a música ouvida e produzida em Campo Grande no contexto dos discursos que sustentam o modo de produção favorável às elites agrárias, dificilmente se poderia reduzir o rock’n’roll a essa ideologia – muito embora a polissemia inescapável do discurso disponibilizasse, também, tais posições subjetivas. Tudo o que o rock representava 22 Há quem afirme que o primeiro LP dos Beatles lançado no Brasil foi Twistin’, de 1962 – ver The Beatles, 1962; entretanto, não era um álbum solo do grupo, que acompanhava Tony Sheridan sob o nome de The Beat Brothers. Portanto, “Love me do”, lançado em 1964, foi realmente o primeiro álbum dos Beatles no Brasil, ao menos sob o nome consagrado da banda – ver The Beatles, 1964. - 129 em termos de críticas dos costumes, mesmo nos tempos ingênuos dos Beatles pré-Revolver e da Jovem Guarda 23 , tensionava o conservadorismo vigente. Por intermédio dessa música, aqueles jovens interioranos podiam questionar sua realidade imediata a partir de sua conexão com algo maior do que uma rebeldia individual, facilmente dominável no âmbito familiar. Esse algo era a própria categoria do “jovem”, igualmente contraditória enquanto consumidora ideal de uma indústria de mercadorias produzidas para ela, mas ideologicamente poderosa e capaz de promover mudanças sociais progressistas importantes. Isso ocorreu em Campo Grande quando, mais tarde, os jovens aqui representados puderam desafiar as relações de poder na cidade. Analogamente, Marcelo Ricardo Miranda Espíndola, o Celito (n. 1955), destaca a importância dos meios de comunicação de massa para “fazer chegar” àqueles jovens todo um contexto musical e contracultural que colocava em primeiro plano discursos musicais e verbais contra-hegemônicos. Entretanto, a fala de Celito evidencia uma óptica particular que se diferencia em certos aspectos centrais daquela expressa anteriormente por seu irmão Geraldo, implicando dissonâncias entre a identificação deste com um projeto nacional, mediado pelo transnacional, e a sua própria, com a cena local-global: Nos anos 60, Campo Grande começa a entrar no cenário de implantação da televisão e de emissoras de rádio, isso foi muito forte nos anos 60 (...). Por esses meios modernos, nos chegou muito o contexto musical contemporâneo da época, tanto internacional quanto nacional. Há uma forte audição de Beatles, de Stones, de Hendrix, de todos os músicos que representavam o movimento flower power aliado ao movimento interno nacional, a Tropicália, os festivais da Record, presenciamos muito, muito de perto 23 A produção dos Beatles antes de Revolver, conquanto considerada pelo público em geral como de qualidade marcadamente superior à música pop da época, era voltada, basicamente, às relações amorosas e outros acontecimentos da vida juvenil, como nos sucessos “I wanna hold your hand” e “Love me do”. Com Revolver, surgem novas temáticas, mais adultas, como em “Eleanor Rigby” e “Tomorrow never knows”, esta uma das primeiras músicas de inspiração psicodélica. O uso de quartetos de cordas e outras sofisticadas manipulações de estúdio fazem, também, com que a produção de Revolver se coloque num outro plano, com relação aos álbuns anteriores. Quanto à Jovem Guarda, acompanhou estes primeiros momentos dos Beatles, antes de Revolver, mas não soube se reinventar da mesma maneira. Foi, então, forçada a ceder seu lugar, como movimento de sucesso dedicado ao rock, a partir de 1967, à Tropicália, que, além de utilizar o rock, possuía uma concepção crítica e informada da música que se provou mais adequada para esta faixa de mercado. Para maiores detalhamentos sobre esta questão, ver Neder, 2007, p. 384 e p. 313-325. - 130 isso, e esse cenário encantador de uma música fundada num ritmo ternário, uma música compartilhada pelos países que compõem a Bacia do Prata, tendo o Rio Paraguai como um condutor natural dessa cultura, dessa música, que é representada por guarânias, por polca paraguaia, por chamamé, pelas músicas que chegam do sul do país, do Rio Grande do Sul, e pela música do altiplano boliviano. Este é o cenário dos anos 60... da metade dos anos 60 até a metade dos anos 70, muito forte essa presença, muito forte essa fusão de elementos de música de raiz, de elementos identitários de música local, música da Bacia do Prata, música do Pantanal, com os elementos de música contemporânea, rock, pop, depois mais nos anos 70 o jazz também, uma audição muito interessante do jazz americano. (Espíndola, C., 2009, grifo meu) Verifica-se, assim, o início da valorização da cultura platina pelos jovens contraculturais de Campo Grande dos anos 1960. Até então, sob a influência hegemônica dos EUA no contexto da Guerra Fria, as frações dominantes da cidade, voltadas para os modelos desenvolvimentistas buscados aos grandes centros nacionais, viam os países do Prata de maneira bastante similar ao pensamento emanado das metrópoles brasileiras. Ou seja, unicamente como símbolos do “atraso”, quando não da contravenção e do crime. Nesta oposição, se percebem inclusive, talvez, a memória dos conflitos que opuseram comerciantes e pecuaristas no século XIX. Naqueles conflitos, os comerciantes predominavam na rota do Rio Paraguai e estabeleciam alianças com empresários platinos, resultando na exploração aos pecuaristas. Como vimos, por exemplo, a empresa argentina Francisco Mendes & Cia teve destacado papel na história da Companhia Matte Larangeira, absorvendo toda sua produção desde o início. Conforme já foi discutido, os pecuaristas apenas conseguiram sair do jugo das casas comerciais quando a ferrovia chega a Campo Grande em 1914. E isso porque puderam criar e fortalecer laços, justamente, com as metrópoles brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro). Como Campo Grande era a base política, econômica, financeira e comercial dos pecuaristas, compreendem-se algumas das razões para o desinteresse, indiferença, preconceito e mesmo animosidade predominantes nessa cidade com relação aos países platinos (com exceção das famílias que emigraram desses países e se estabeleceram na cidade). Evidentemente, sem excluir a participação, para a construção dessas representações opressivas, de discursos de - 131 ordem nacional/ nacionalista desde o Império, como os já mencionados, inclusive aqueles fundados nos interesses de grupos econômicos situados nos grandes centros brasileiros, em busca de controle sobre a região, e na ideologia da segurança nacional. No entanto, a partir da valorização das viagens pelo continente sul-americano, por parte dos jovens identificados com a contracultura, uma nova importância passa a ser dada a este território. A MLC traria esta marca muito forte, conectando-se a um sentimento francamente favorável à América Platina por parte da contracultura, presente desde suas primeiras canções, como “Trem do Pantanal”. Tal sentimento de valorização do latinoamericano estava simultaneamente sendo abraçado pela MPB, que, estimulada pela ideia de contestação à ditadura, e pelos ideais antiimperialistas de união latino-americana, promoveriam diversos projetos com a atuação conjunta de artistas brasileiros e de outros países da América Latina. Um desses projetos foi a participação do grupo chileno Água no álbum Geraes, de Milton Nascimento, grupo que já havia se apresentado, anteriormente, em Campo Grande, tendo sido já conhecido dos músicos locais. Esta relação de proximidade com o universo latino-americano, devido a múltiplas motivações, entre elas a contracultura, seria o ponto de partida para a proposição, pelo artista plástico Humberto Espíndola, quando de sua atuação à frente da Secretaria de Cultura do MS (1986-1990), de um projeto cultural que visava a integração de MS aos países vizinhos, Bolívia e Paraguai. Desse projeto decorreu a Peña de Margarida Neder, e seria uma etapa inicial de um projeto maior, que idealmente unificaria os países da América do Sul como um todo. Verifica-se, assim, que, desde o início, a valorização às culturas platinas se fazia de maneira oposicional em relação aos discursos dominantes no estado, que favoreciam os pecuaristas. Simultaneamente, a MLC colocava-se também em conflito com os grandes centros nacionais, que perderiam sua hegemonia econômica sobre a região, caso ela - 132 conseguisse estabelecer laços suficientemente fortes com a região platina. E, por fim, as preocupações geopolíticas, de que esta região pudesse se tornar um foco de subversão e guerrilha devido à sua “ambiguidade” (representada, justamente, pelos laços que a uniam aos países do Prata) faziam a MLC ir, também, no sentido oposto ao desejado pela ditadura militar implantada poucos anos antes da concepção desse movimento. Confirmando a importância do ideário contracultural para o surgimento de uma valorização das culturas platinas em Campo Grande, Celito detalha melhor a significância desse ideário para a revalorização das músicas boliviana e peruana nessa cidade. Em seu depoimento, fica evidente que a participação dessas músicas no imaginário dos compositores não se verificou por influência dos programas de rádio ou bandas de baile de Campo Grande, da qual estavam ausentes (ao contrário da presença massiva em ambos da música paraguaia e sertaneja), mas por sua importância para o universo andarilho hippie dos anos 60 e 70: [Quanto à música boliviana,] nunca houve uma popularização [nos meios de comunicação] (...) Entretanto, na minha geração, sempre houve um fascínio pela coisa do altiplano, tanto é que a grande maioria dos autores da minha geração viajaram (sic) por lá, viajaram mesmo pelo Trem da Morte, que acabou virando o Trem do Pantanal, e foram pra Cuzco, pra Lima, pra Bolívia, eu mesmo andei, fiquei oito meses viajando pela América do Sul na primeira metade dos anos 70, antes do Luz Azul e do Lírio Selvagem estava fazendo essa viagem, fiquei muito tempo em contato com essa música do altiplano, com Ernesto Cavour que é um grande nome do charango. (Espíndola, C., 2009) Rock, música platina e contracultura: esses são os elementos citados por Celito como importantes para a construção de certas subjetividades locais, e que fariam parte da MLC em gestação. Elementos que, a essa altura, iam de encontro às expectativas conservadoras da sociedade, e, como tal, provocaram conflitos que resultaram em profundas transformações sociais, mas que, posteriormente, seriam parcialmente rearticulados às necessidades da ideologia agrária. Enquanto isso, as frações dominantes da sociedade manifestavam seu envolvimento com as músicas oriundas do Rio de Janeiro e São Paulo. Mais uma vez, constatamos esta - 133 preferência, ligada à busca de alianças entre tais frações e os grandes centros nacionais, ao nos reportarmos aos locais difusores da música na cidade, em especial o Rádio Clube. Em 1963, Gabriel Spipe Calarge (Gabura), que viria a ser um conhecido presidente do Rádio Clube ainda nesta década, “teve uma composição de sua autoria, ‘Quanta tristeza’, gravada por Elvio Bobby, denominado a Voz de Ouro do Brasil. Foi o primeiro campograndense a ter uma música registrada em disco” (Sá Rosa, 1999, p. 222). A partir de 1967, ascendendo à presidência do clube, posição que manteria por vários anos, Gabura inicia uma política consistente de levar à cidade artistas de fora sob os auspícios do Rádio Clube. Além dos já citados, passaram a apresentar-se lá nomes como Caubi Peixoto, Jair Rodrigues, Peri Ribeiro, Gregório Barrios e Bienvenido Granda. Paulo Márcio Bacha, psicanalista e intelectual ligado à cultura do MS, contribui para esclarecer a perspectiva das elites locais, no que diz respeito a sua ideia de modernização. Nascido em Campo Grande também na década de 1950, Bacha confirma a influência do Rádio Clube e de Gabura, atestando o compromisso de ambos com o que define como a renovação da mentalidade local e o distanciamento do modelo rural, ao mesmo tempo reafirmando o fato de que não havia, ainda, uma produção local de caráter atualizado: [A música rural não fornecia um modelo identitário] para a classe média, (...) pessoas (...) vinculadas a [setores de serviços], [a música urbana sendo] uma coisa incipiente que o Rádio Clube organizava. Mas o que acontecia com o Rádio Clube? O Gabura é um cara muito importante porque ele trazia as pessoas de fora, trazia Roberto Carlos, trazia Wanderléa, trazia Golden Boys, e fazia as experiências musicais mas com pessoas de fora, ou com pessoas daqui mas que tocavam as músicas que tocavam lá fora. Mas não era uma música daqui. (Bacha, 2009) Portanto, o Rádio Clube seria responsável, em grande medida, pelo atendimento à necessidade demonstrada pelas elites 24 de Campo Grande, de atualização musical e construção identitária em relação às grandes cidades brasileiras. Nesta qualidade, centralizou grande parte das produções musicais que visavam a esta atualização, e influenciou as 24 compreendidos, no interior deste termo vago, também os jovens de classes subalternas, como Geraldo Espíndola e muitos outros, identificados com os discursos contemporâneos do “jovem”. - 134 emissoras de rádio já em atividade na cidade. Esta busca de modernização, que se traduzia no consumo de música das metrópoles e se fazia às expensas do recalcamento da face rural e fronteiriça do estado, seria descrita posteriormente, por críticos como Guizzo, como “importação” de produtos culturais que colocavam em perigo a cultura do MS, preocupados, como estavam, em desenvolver uma identidade local. Dessa maneira, o que a história da música de baile, de show e de rádio de Campo Grande nos mostra é o substancial investimento identitário feito por parte expressiva das pessoas da cidade – com predomínio dos setores dominantes – em sua atualização com relação às capitais mais desenvolvidas do Brasil e do mundo. Esta atualização foi mediada, em parte apreciável, pela música, com a adoção rápida das novas modas que surgiam nos grandes centros. Tal padrão evidencia, como vem sendo sugerido, conflitos entre diferentes discursos modernizantes, sendo que o discurso dominante da modernização e desenvolvimentismo era promovido, principalmente, pelo pecuarista, coluna vertebral da economia sul-mato-grossense e principal promotor da globalização capitalista na região. Paradoxalmente, isto implicava em um relativo distanciamento de sua herança cultural rural – paralela à hierarquização entre Campo Grande e interior, em que a capital figurava como cosmopolita e desenvolvida, enquanto o interior era – e é – visto como regressivo e conservador. Apesar disso, não se deve perder de vista o fato de que a polca paraguaia era extremamente popular nos bailes do Rádio, sendo chamada de “limpa-banco”, tal era o furor entusiástico que impelia virtualmente todos a dançar, ao som dos primeiros acordes desse gênero. No entanto, não se pode dizer o mesmo da música caipira ou sertaneja goiana, paulista, mineira, ou, na época que estamos tratando, das músicas tradicionais sulinas. Sustenta-se aqui, portanto, que, apesar da sociedade, como um todo, depender da economia pecuária naquele momento, partia dos próprios envolvidos na atividade uma preocupação com - 135 sua abertura para o mundo, não o fechamento em si própria, como forma de consolidar seu poderio por meio de inovações tecnológicas e alianças com os grandes centros. Parece condizente com esta afirmação o fato de que, virtualmente, todos os bailes da cidade, indefectivelmente, executavam diversos gêneros musicais da moda até a animação chegar ao auge, por volta da meia noite, quando então eram substituídos pela polca paraguaia. Fossem bailes de carnaval, de réveillon ou qualquer outra ocasião durante o ano. Era só então que o supostamente polido e moderno sujeito apolíneo campo-grandense se apagava para dar as rédeas da subjetividade ao seu outro, o selvagem e sensual habitante da fronteira. Nesses eventos, construía-se, pouco a pouco, um ritual dionisíaco, por meio do qual todo o mundo rural emergia com força irresistível após ter sido recalcado, à maneira de um verdadeiro retorno do reprimido. A dicotomia tão clara (ou seja, uma ausência de contaminação mútua) entre músicas com conotação de modernidade e desenvolvimento, e músicas associadas ao mundo rural, parece indicativa de uma fabricação discursiva. Construía-se, em música, um discurso aberto às inovações tecnológicas e conhecimentos adequados à concentração da renda e de capital simbólico, que, em busca de hegemonia, subordinasse o mundo rural. Desejando apagar as marcas da expropriação, este discurso, no entanto, sempre teria que se defrontar com o retorno dessas marcas. Seria possível entender, assim, a organização programática dos bailes de Campo Grande vis à vis a dicotomia que valorizou historicamente Campo Grande às expensas do interior? Tal configuração contrasta com a adoção recente de um orgulho em ser significado como “pantaneiro” ou “rural”. Tal orgulho nativista que, como veremos, era também estranho à música da MLC, em sua origem (pois quando empregava gêneros sertanejos ou paraguaios era de mistura com o rock e padrões interpretativos da bossa nova e da Jovem Guarda), passa depois a fazer parte dela, o que precisa ser historicizado. - 136 Não se pode discordar de que todas estas cidades do sul do Estado dependeram historicamente da economia rural. Com Campo Grande não seria diferente, no sentido de que “[a] indiscutível ocupação agropecuária do Estado sempre foi a principal fonte de desenvolvimento” (Verruck, 1999, p. 165). No entanto, esta afirmação diz respeito à circulação, na cidade, do dinheiro produzido pela economia rural do restante do estado. A efetiva geração de riqueza na cidade de Campo Grande, em si, dependeu de sua especialização no desenvolvimento do comércio e serviços. Mesmo que seja visível a origem agrária do dinheiro proveniente das atividades rurais dos outros municípios do estado. Isso se verifica por meio da oferta de produtos e serviços voltados para atividades agropecuárias e para consumidores com hábitos culturais rurais, pois “é muito comum a migração de pessoas do interior do Estado para realizar suas compras na capital” [Verruck, 1999, p. 166]). Campo Grande evidenciou-se como um polo de comércio e serviços, o que se confirma com a participação de 46,35% do setor de Comércio e 38,02% do setor de Serviços na arrecadação [do ICMS] (...) A arrecadação estadual evidencia um aumento da participação de Campo Grande em relação ao Estado. Em 1989 participava com 38,16% da arrecadação estadual, que vem aumentando nos dois últimos anos (...) Em 1997, Campo Grande representava 27,34% da arrecadação estadual do setor de Comércio, 49,55% da Indústria, o que também confirma a concentração industrial na capital, e quase a totalidade do setor de Serviços (94,01%); e a Agricultura com 30,06%. O mesmo não ocorre com a Pecuária, que representou apenas 11,09%. (Verruck, 1999, p. 166) Assim, Campo Grande exibe esta dicotomia, apresentando em sua fisionomia, ao visitante que chega, visíveis traços agrários misturados a modernas lojas de departamentos e cadeias de supermercado. Mostra sinais aparentes da proximidade com o meio rural, principalmente os trabalhadores rurais e pequenos fazendeiros, com seus chapéus e botas, que se podem avistar nas ruas da cidade, principalmente próximo à estação rodoviária e outros locais em que se concentra o comércio popular. No entanto, antes da divisão, qualquer associação cultural, por parte das classes médias e altas, ao universo rural, seria vista como um sinal de “mau gosto”. Excetuando-se os bailes de fazenda e os momentos desrecalcados dos bailes da cidade, dificilmente seria possível ver esses habitantes praticando as culturas - 137 rurais em Campo Grande. Verifica-se, aí, a mesma predominância do interesse em ocultar as marcas de origem da riqueza do estado, apontada nos bailes da capital. Na atualidade – após a divisão – muita coisa parece ter mudado. Hoje se percebe um elevado orgulho pela condição de fazendeiro, relacionado a uma mudança de comportamento e de concepção: estes novos fazendeiros, moradores urbanos, se veem como empresários rurais, suas propriedades são tecnologizadas, estão conectados todo o tempo com a Bolsa de Chicago e outras bolsas de commodities via Internet, utilizam conceitos de administração em suas atividades, novas e vistosas caminhonetes topo de linha (em cujos vidros passaram a afixar adesivos com os dizeres “Fazendeiro Mesmo”) e todos os gadgets tecnológicos associados à vida urbana moderna (aparelhos celulares sofisticados, computadores com Internet na fazenda, laptops, etc.). Veem-se jovens de todas as classes sociais em rodas de tereré, à frente de suas casas, em parques e até em shows de rock. Esta situação é inédita para todos os que viveram em Campo Grande antes da divisão, incluindo este autor e vários dos entrevistados nesta tese, como será evidenciado adiante. Há também um culto às diversas músicas sertanejas-pop, em todo o espectro social, e há algumas décadas dispõe-se de uma profusão de bailes inteiramente dedicados a essas músicas. Embora a parafernália tecnológica envolvida na produção desses shows de música sertaneja indique, claramente, discursos de valorização da modernidade urbana, é explícita aí a identificação com o universo rural. Toda essa aceitação da realidade agrária do estado, é, portanto, recente, e, como sugiro, está vinculada – embora não exclusivamente – ao divisionismo, pela via do regionalismo. Esse regionalismo, que não era especialmente importante para as elites, como um todo, antes da divisão, surge como importante marco ideológico a legitimar a separação do estado. A partir daí, torna-se importante recuperar a face recalcada da cultura rural para, com ela e seus - 138 símbolos, compor a nova fisionomia do estado recém-criado e promover um sentimento de pertencimento de todas as suas populações. Se, nesta nova fisionomia, mecanismos sutis de distinção continuam mantendo separações sociais claras em questões críticas, de maneira geral percebe-se uma menor recusa à participação do universo rural no mundo das classes médias e altas urbanas. Da mesma maneira, a expressiva migração que atinge a cidade após a divisão também contribuiu para modificar os hábitos, deslocando o processo de urbanização que vinha sendo gestado desde o início do século XX pelos setores urbanos locais em seus conflitos com a ideologia agrária. Os dados do IBGE deixam clara esta explosão demográfica: em 1970, a população urbana de Campo Grande era de 131.110 habitantes; em 1980, ano seguinte à efetiva implantação da capital, 283.653, mais do que o dobro, portanto (IBGE, 2011d e 2011e). Em 2009, a população da cidade era de 755.107 habitantes (IBGE, 2010). Muitos desses novos moradores vieram do interior do Centro-Sul, região em que a economia agrária é parte importante da base econômica. Desconhecedores do processo singular de urbanização que se tentava desenvolver em Campo Grande, a partir de uma apropriação e ressignificação, por parte dos setores urbanos, do universo rural, foram, em grande parte, responsáveis pela interrupção deste processo, e pela instituição de uma nova valorização da cultura sertaneja na cidade. Tradicionalmente, desde o início da história de Campo Grande (como, evidentemente, em muitas outras zonas de exploração primária), as classes dominantes, os fazendeiros, buscaram enviar seus filhos para São Paulo e Rio de Janeiro para estudar. Isto provocou alterações no perfil cultural da cidade e colocou-a em contato com os estilos de vida das metrópoles, além de influenciar suas opções políticas (como vimos na Introdução), contribuindo para afastar Campo Grande da órbita do rural. O tradicional pecuarista pantaneiro e bacharel em Direito Abílio Leite de Barros demonstra que, desde a primeira - 139 geração dos pioneiros, era hábito enviar os filhos para estudar na metrópole: “Estudar era uma obrigação sobre a qual não caberia discussão (...). Ainda conheci pantaneiros morando em ranchos de chão batido com filhos estudando no Rio ou em São Paulo” (Barros, 1998, p. 101102). Fenômeno que, como já foi dito, não é estranho ao Brasil, como reconhece o próprio cronista: (...) tenho com muita clareza que não há maior originalidade em termos de Brasil. Sabemos todos que este sempre foi tido como o país dos coronéis e filhos bacharéis (...). Essas atitudes eram, no fundo, a manifestação do velho preconceito de desprezo pelo trabalho manual, próprio das classes dominantes no antigo Portugal e, principalmente, no Brasil Colônia”. (Barros, 1998, p. 101-102) A propósito da preocupação com a superação do trabalho manual e a predisposição aos estudos, o pecuarista José de Barros, em suas Memórias, editadas por seus familiares em 1959, ao contar da dura fabricação diária de adobes (tijolos crus) para a casa, lembra sobre ele e o irmão: Às quatro da tarde, já estávamos de roupa mudada e estudando música. Às vezes exercitando uma ou duas peças novas para à noite tocarmos em serenata, com mais companheiros amantes da arte. (Barros, 1987, p. 17) Segundo Gilberto Luiz Alves, referindo as Lembranças do citado José de Barros, [a] segunda geração [dos pecuaristas do pantanal da Nhecolândia] teve a oportunidade, no mínimo, de se deslocar para Cuiabá e Corumbá para realizar os estudos de nível secundário. Os filhos mais velhos de José de Barros, como Aristides e Belmiro, retornaram à propriedade do pai após a conclusão desse nível de ensino e, em seguida, começaram a trabalhar. Uma filha, Julieta, deslocou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou os estudos secundários no refinado Colégio Sion de Petrópolis. O filho mais jovem, João, após a conclusão dos estudos secundários, oscilou entre São Paulo e o Rio de Janeiro, visando à formação de nível superior em medicina, tendo por fim se radicado na capital do País. Entre os integrantes da terceira geração, a formação de nível superior passou a ser sistemática. A cada formatura, os jovens concluintes eram saudados na memória do já venerável Pioneiro. Foi assim, por exemplo, com a neta Cleonice, formada em odontologia, e com o sobrinho-neto, Nheco, formado em veterinária. (Alves, 2004, p. 41) Esta importância conferida aos estudos em cidades mais desenvolvidas, por parte dos pecuaristas, produziria dividendos políticos, ao elegerem seus filhos para cargos de destaque, o que fortaleceria sua atividade e fortaleceria as oligarquias agrárias do sul. Exemplos dessa trajetória são muitos: da família Barbosa, por exemplo, estabelecida no sul de Mato Grosso já - 140 em 1825, e proprietária de grandes estabelecimentos rurais, viriam Vespasiano Barbosa Martins, médico, Wilson Barbosa Martins e Plínio Barbosa Martins, advogados. Todos políticos destacados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, participaram de páginas importantes de sua história. Formado na Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, Rio de Janeiro, em 1915, Vespasiano foi prefeito de Campo Grande, governador do Estado de Maracaju quando da revolta constitucionalista de 1932, deputado federal e senador da República por dois mandatos. Wilson se bacharelou na Faculdade de Direito da USP, em 1939, e foi prefeito de Campo Grande (1959-1963), deputado federal (1963-1967, 1967-1969), governador do MS (19831986 e 1995-1998) e senador (Constituinte, 1987-1994). Plínio bacharelou-se na Faculdade de Direito da PUC de São Paulo em 1950, tornando-se vereador em Campo Grande (1963-1966 e 1977-1983), prefeito (1967-1969), deputado federal (1983-1987) e deputado federal (Constituinte, 1987-1991). De acordo com alguns analistas, abdicou da eleição para governador do MS em favor do irmão Wilson em 1983, cargo para o qual era o mais cotado. Este episódio sugere a força e influência da cultura patriarcal de origem agrária, bem como a importância que a superação dessa cultura adquiriu para as classes médias urbanas de Campo Grande, em sua procura por um caminho próprio para a urbanização. A família Coelho, já mencionada, é outro exemplo que pode ser citado. Laucídio Coelho, o patriarca, organizou um verdadeiro império de fazendas, sintonizado com princípios administrativos modernos e eficientes. Seus filhos Italívio Coelho e Lúdio Martins Coelho, ambos grandes proprietários e criadores, também fizeram carreira na política, como senadores, e Lúdio também como prefeito e personagem importante nas articulações políticas para a divisão. Lúdio saiu para fazer o ginásio em Campinas e estudar Veterinária em Viçosa, embora não tenha concluído o curso. Italívio foi deputado estadual constituinte pelo Mato Grosso (1946-50) e senador da República (1973-1980). Em 1950, gerenciou a implantação do - 141 primeiro frigorífico de Mato Grosso do Sul, quando os produtores deixaram de vender seu gado gordo para frigoríficos de São Paulo. Foi, também, presidente da Acrissul (Associação dos Criadores do MS, influente entidade criada já em 1931 pelos pecuaristas do sul do MT) por três mandatos na década de 60. Rachid Saldanha Derzi era cunhado de Lúdio e Italívio Coelho. Um dos maiores proprietários rurais e de gado do sul, tornou-se renomado selecionador de gado nelore. Formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, em 1939. Foi prefeito nomeado de Campo Grande (1942-1945), vereador (1947), prefeito (1950) e deputado federal (1954, 1958, 1962 e 1966). Eleito senador em 1970, foi senador biônico pelo Mato Grosso do Sul em 1978, sendo reeleito em 1986. Derzi era pai de Flávio Derzi, falecido em 2001 ao cumprir seu terceiro mandato como deputado federal. A reprodução das elites políticas contribui para evidenciar o caráter oligárquico dessa estrutura de poder. Portanto, não são destituídas de nexo as relações entre os pecuaristas, a hegemonia política de suas oligarquias e sua ativa procura pela educação, modernização e desenvolvimento. Sabendo-se que as oligarquias rurais estiveram, continuamente, em conflito com os setores urbanos, é possível contextualizar, como resultado destas interações, a busca de uma certa orientação realizadora, verificada na cidade de Campo Grande, que, hoje, conta com diversos estabelecimentos superiores de ensino: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Estácio de Sá, Universidade Anhanguera-Uniderp, Universidade Católica Dom Bosco, além de outros Centros e Faculdades. Estas diversas buscas por modernização, por parte de distintos setores da sociedade campo-grandense, estão relacionadas ao desenvolvimento de uma música própria, ligada à cidade e não ao campo, de acordo com Bacha: Campo Grande era uma cidade de serviços. Servia ao campo, às fazendas. Então, a cultura campo-grandense era uma cultura rural. Quando Campo Grande começa a ter a - 142 experiência de se tornar uma cidade de serviços dela mesma, que ela começa a ter uma autonomia, em termos da medicina, em termos da engenharia, em termos da arquitetura, (...) ela começa a produzir as suas próprias estéticas, suas próprias formas de existir, ela tem uma tendência de buscar uma música. E essa nova música é a música do Paulinho [Simões], dos Espíndolas. Foi a mesma coisa com as casas que foram feitas na década de 50 e 60, a medicina, a engenharia, a universidade (...) Campo Grande começa a se tornar responsável pela região, por criar uma estética própria, não a serviço do mundo rural, mas a serviço de si mesma. (Bacha, 2009) Esta posição particular ocupada pela cidade de Campo Grande com relação às suas vizinhas no estado é confirmada pelo compositor Geraldo Roca: A gente foi fazer uma excursão pela primeira vez pelo interior do MS. Aí eu tive um satori25, entendeu? Eu toquei em Nova Andradina, foi um público de 800 pessoas, numa exposição agropecuária, um tremendo palco montado... Essas 800 pessoas não aplaudiam, não vaiavam e não iam embora. No meio da história, comecei [a perguntar], “Tem alguém vivo aí?”... Que é que é isso, parece um monte de... sei lá... E aí entendi uma coisa fundamental: música, em MS, quer dizer música sertaneja. A gente às vezes esquece que o pessoal com menos de 30 anos que cresceu [no interior] não tem a menor noção do que é música brasileira, por exemplo. Ou rock, americano, inglês... Não tem a menor noção. Música, para eles, quer dizer música sertaneja. Então eles ficam... eles não estavam hipnotizados ali, eles estavam pasmos, entendeu? Estupefatos: “Que merda é essa, pô”. Porque em Campo Grande, de qualquer maneira, o público convive, tem TV a cabo, etc. Ou não tem TV a cabo, mas tem show aqui em Campo Grande, os caras veem os artistas. Lá não, é realmente o oco do miolo, entendeu? Não tem isso, então o que chega lá é o rádio e a TV com sinal aberto com música sertaneja. Tem programas em vários lugares que em Campo Grande ninguém sabe o que são, e são líderes de audiência. Todos eles têm alguma coisa a ver com a música sertaneja ou com esse universo. Aí entendi: isso aqui é o MS, não Campo Grande. (Roca, 2009) A partir da experiência de Roca, verifica-se o que vem sendo sustentado nessa tese: a classe dos pecuaristas, em busca de hegemonia, em interação com setores urbanos, buscou o conhecimento, a modernização e a atualização para seu fortalecimento econômico e para apoderar-se de posições-chave no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, de onde poderia consolidar sua posição dominante. Este esforço foi acompanhado de um recalcamento do diferente, representado pela fisionomia rural do estado, que os proprietários de terras desejavam deixar para trás, substituindo-a pela modernização capitalista no campo, por meio de tecnologia e gerenciamento. Ao mesmo tempo, e, em parte, decorrente da ativação destes 25 Termo japonês budista que significa "compreensão", “iluminação repentina”. - 143 discursos, ocorre uma dicotomia que constrói Campo Grande como sede do poder e cidade de serviços, em oposição ao restante do estado, cuja economia é, basicamente, agropecuária. Nos anos 1960 e 1970, influenciados pelo pensamento dos setores urbanos, que buscavam desenvolver um processo de urbanização próprio para Campo Grande, os compositores Paulo Simões, Geraldo Espíndola e Geraldo Roca, logo seguidos por outros, começam a procurar uma forma musical que pudesse servir a este processo de desenvolvimento da cidade. Os elementos “externos”, por assim dizer, que fariam parte dessa síntese, encarregados de comunicar a ideia de modernidade e cosmopolitismo, seriam as diversas músicas transnacionais, com destaque para o rock em diversos de seus subgêneros, inclusive brasileiros, e a MPB. A inovação destes compositores consistiu na adição, a essa música híbrida, dos gêneros encontrados no estado, especialmente as músicas caipiras e paraguaias, acrescidas de outras que pudessem falar da situação local, inserida na América Platina, como as influências bolivianas, argentinas e peruanas. Assim, a ideia não era, realmente, fazer uma música que pudesse espelhar o estado como um todo. O universo cultural daqueles compositores refletia, ao contrário, suas vivências cosmopolitas e referências urbanas, brasileiras e internacionais. Era, portanto, uma música feita para se pensar a cidade de Campo Grande e seu processo de urbanização peculiar, não uma música voltada para a totalidade do estado. Não tentaram, assim, modernizar o rural, e sim trazer o rural para a cidade. Os setores urbanos – parcela social a que estava associada a MLC – mantinha uma relação contraditória com os proprietários rurais. Por um lado, dependiam destes, como responsáveis pela base econômica do estado, da mesma maneira que as elites agrárias dependiam dos médicos, engenheiros, advogados, arquitetos, empresários e funcionários públicos urbanos. No entanto, há diversas indicações seguras de que não deixavam de haver conflitos entre essas classes. As canções da MLC fornecem diversos exemplos, como veremos. - 144 Sintetizando a posição de muitos empresários, comerciantes e outros representantes dos setores urbanos, o economista Jaime Verruck declara: “O conservadorismo e tradicionalismo limitam a nossa expansão econômica sustentável” (Verruck, 1999, p. 167). Na política municipal, encontramos no livro da arquiteta Maura Simões Corrêa Neder Buainain, sobre o planejamento urbano de Campo Grande, boa quantidade de referências à questão. Constituído de entrevistas a diversos políticos que exerceram a prefeitura desta cidade desde a década de 1950, o livro contém passagens em que estes prefeitos evidenciam certos antagonismos com relação aos pecuaristas. Mesmo levando-se em consideração que não se poderia esperar que políticos fossem abertamente críticos aos pecuaristas, detentores de forte poder econômico e político no estado, tais antagonismos fazem-se notar em suas falas. Dizem eles respeito à pouca dinamização econômica promovida pela atividade agropecuária nos setores da empregabilidade, desenvolvimento e receitas públicas, e outros problemas, até de saúde pública: Campo Grande tinha [na década de 1950] um importante problema de natureza sanitária. No centro da cidade havia um curtume (...). a cidade precisava tirá-lo do centro, porque era um péssimo cartão de visitas devido ao mau cheiro e todo aquele problema de um curtume antigo, desatualizado, sem uma higiene maior. (Wilson Fadul apud Buainain, 2006, p. 34) Na época em que eu era prefeito [1959-1962] eu já defendia a ideia de que a industrialização e o comércio eram a base do futuro, do desenvolvimento. Via que só com o boi e com a lavoura nós seríamos sempre um Estado produtor de artigos primários. E artigo primário não traz o desenvolvimento com o mesmo impulso que traz a indústria. Não traz o emprego. A indústria traz o emprego em grande número. Ela traz o desenvolvimento e traz o emprego, aumenta a renda do trabalhador, aumenta a renda da população. (Wilson Barbosa Martins apud Buainain, 2006, p. 87) Se a gente direcionar Campo Grande para o comércio, o serviço e a pequena indústria, essa é a conquista da qualidade de vida para nós. (Juvêncio César da Fonseca apud Buainain, 2006, p. 355) A economia de nosso município baseia-se, principalmente, em serviços. Nós queremos estimular a atividade empresarial, industrial e a turística, tornando Campo Grande uma cidade de turismo de eventos. (André Puccinelli apud Buainain, 2006, p. 431-432) E, na política estadual, tivemos várias confirmações. Como já comentamos na Introdução, as eleições de 1965, para governador, são exemplares, neste sentido. Nesta eleição houve a - 145 vitória de um engenheiro, com o apoio da esquerda, do PTB e dos ferroviários do estado, contra um grande pecuarista, membro de poderosa oligarquia rural e apoiado pela ditadura militar. Há outros significativos momentos em que fica evidente o aspecto crítico das populações campo-grandenses, evidenciando oposição aos discursos dominantes, como explica Marisa Bittar: (...) foi exatamente esta cidade [Campo Grande], por meio de movimentos sociais e populares, pela presença da esquerda, pela luta contra a ditadura, que fez a diferença eleitoral em momentos marcantes, por exemplo, a eleição de Plínio Barbosa Martins para prefeito de Campo Grande, em 1966 quando o MDB ainda estava se estruturando no sul de Mato Grosso e enfrentando adversidades provindas da atuação de uma organização paramilitar, a Associação Democrática Matogrossense (ADEMAT), que se especializou em delatar pessoas e vigiar os passos daquelas que considerava comunistas; depois, em 1974, os votos dados ao mesmo partido, conforme tivemos ocasião de demonstrar anteriormente; novamente os votos dados a Plínio Barbosa Martins para senador em 1978; a vitória da oposição em 1982; a eleição de dois vereadores comunistas nessa mesma eleição; os votos de Zeca do PT em 1996. Enfim, a vitória da coligação de esquerda “Muda MS”, em 1998, quando, inclusive, o seu candidato a senador Carmelindo Rezende, historicamente vinculado ao partido Comunista Brasileiro e que nunca havia disputado um cargo político, obteve na capital quase o mesmo percentual de votos dados a Juvêncio César da Fonseca, que havia sido duas vezes seu prefeito: ele obteve em Campo grande 14,47% dos votos válidos ante 15,74% dados ao ex-prefeito. (Bittar, 2009b, p. 332-333). Já por ter a MLC emergido e se desenvolvido durante esses momentos de intensa manifestação crítica da sociedade de Campo Grande e de Mato Grosso (a partir de 1968), a que se juntaram as ocorridas nos planos nacional e internacional, é aconselhável cautela na análise dos diferentes papéis ideológicos que esse movimento subscreveu. Assim, realmente, embora, de certa maneira, ele tenha se alinhado à ideologia que buscava a urbanização de Campo Grande como reação e repulsa ao “atraso” do interior, não deixa de ser importante a incorporação deste mesmo interior pelo movimento. Pela primeira vez em uma produção própria dessa cidade, feita por e apresentada para as suas elites, voltava-se a atenção para o universo rural, buscando-se uma representação de todo o sul do estado que incluísse sua face reprimida. Além disso, o interesse em incluir em seu projeto outras culturas periféricas, como as do Paraguai e Bolívia, possibilitaria, ainda, outras leituras críticas, agora das relações de poder estabelecidas pelos centros dominantes brasileiros. - 146 Neste momento, a principal orientação do movimento provinha de Humberto Espíndola, como veremos adiante. Humberto desenvolveria, posteriormente, uma visão, segundo a qual o MT deveria incorporar a modernização mundializante a partir de sua posição periférica no interior da América Platina. Era preciso, portanto, incorporar os ícones rurais (a Bovinocultura), indígenas e latino-americanos às influências midiáticas transnacionais. Desta maneira, visava ao deslocamento da importância do eixo hegemônico Rio-São Paulo para a região e a articulação dos países vizinhos de maneira independente. Assim como os discursos dominantes de âmbito nacional, já transcritos, evidenciam, uma união latino-americana que possibilitasse uma contestação aos interesses do grande capital sofre forte e consistente oposição no interior dos aparelhos ideológicos do Estado (cf. Althusser, 1974). Como não poderia deixar de ser, a realidade institucional sul-matogrossense manteve-se, obedientemente, dentro dos limites estritos destes discursos dominantes. No entanto, alguns dos aspectos culturais mencionados – ícones rurais, indígenas e latino-americanos, tais como materializados na MLC – passam a ser brandidos, somente após a divisão do estado, pelo governo, empresários e setores mais amplos da população como representativos da “identidade” do MS. Evidentemente, neste processo, os aspectos contraditórios, conflitivos, produzidos pela violenta expropriação do trabalhador rural, do índio e do paraguaio são escamoteados, restando uma narrativa épica das origens do estado que visa, apenas, legitimá-lo, bem como às relações estruturais de dominação. Com isso, a MLC dos anos 1980 passará a apresentar também impulsos regressivos, de nostalgia do rural. Entre a crítica e a apologia do latifúndio, tais impulsos encontram-se tanto explicitados nas letras das canções quanto na mediação pós-divisão, que passa a ressignificar gêneros musicais, melodias, harmonias, arranjos e padrões interpretativos, cuja análise, no contexto do panorama geral aqui sendo traçado, será objeto desta tese. - 147 Para a invenção da MLC foi imprescindível uma atmosfera, nos anos 1960, frequentemente descrita pelos entrevistados como de efervescência cultural, na cidade de Campo Grande. O expressivo aumento do interesse por cinema, peças de teatro, música, literatura, fotografia, é várias vezes relacionado, em suas falas, à fundação das primeiras instituições de ensino superior, o que ocorreu no início desta década. A professora e pesquisadora Maria da Glória Sá Rosa, a Glorinha, por exemplo, comenta que uma coisa que melhorou muito o estado, mesmo antes da divisão, foi a criação das universidades. Porque, com a universidade, surgem ideias pra frente. De quebrar a rotina, produzir, coisa que não existia nas escolas. Aqui só existiam escolas de 1º e 2º graus. Eu mesmo quando fui estudar, fazer universidade, tive que sair daqui. Fiquei 8 anos fora. Não queria sair, queria ficar aqui, mas ia ficar aqui fazendo o quê? (Sá Rosa, 2009) O primeiro centro de educação superior de todo o estado de Mato Grosso, a Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras, foi fundado em Campo Grande em 1961, pela Missão Salesiana de Mato Grosso, com os cursos de Pedagogia e Letras. A Missão implantaria ainda a faculdade de Direito em 1965, de Ciências Econômicas, Contábeis e Administração em 1970, de Serviço Social em 1972 e, nos anos seguintes, os cursos de História, Geografia, Ciências (Biologia e Matemática), Filosofia, Psicologia, e Graduação de Professores (Universidade Católica Dom Bosco, 2010). Já as áreas biomédicas teriam impulso no ano seguinte ao da fundação da Faculdade Dom Aquino, 1962, com a Faculdade de Farmácia e Odontologia, futuro Instituto de Ciências Biológicas de Campo Grande (1966), que instituiu departamentos e criou o curso de Medicina. Em 1969 o Instituto se tornaria a Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), que, com a divisão, passaria a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em 1979 (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2010). Assim, na década de 1960, ocorrem a implantação do ensino superior, da televisão (em 1965), de mais uma estação de rádio (Educação Rural), do Clube Surian (que, fundado em 1965, seria importante palco para o teatro e a música nascentes na cidade). A essas inovações se soma a grande atenção dada à música no Rádio Clube, notadamente na - 148 administração de Gabura nesta década de 1960, já referida. Evidencia-se, portanto, um ambiente de ebulição na área da cultura, que é perfeitamente concordante e mutuamente potencializador com relação aos múltiplos e conflitantes discursos de desenvolvimento e modernização, que, conforme sugiro, configuram um traço predominante da cidade de Campo Grande desde as primeiras décadas do século XX. Se não se pode deixar de ver nessa busca pelo conhecimento, pelo desenvolvimento e modernização, os interesses das classes dominantes, é, também, importante perceber que tais processos são marcados pela contradição. O estímulo à educação e à tecnologia visava a consolidação política e econômica das classes agrárias, e a burguesia urbana participava desses benefícios, embora de maneira ambígua. Entretanto, tal estímulo terminou, também, por favorecer o surgimento, nos anos 1960 e 1970, de um ambiente intelectual e artístico, crítico das relações de poder nessa mesma sociedade local, conservadora, elitista e patriarcal. Neste ambiente, proliferou também uma oposição à ditadura que se instalava em 1964, e aos pecuaristas enquanto classe dirigente, como vimos. A propósito dos primórdios deste período de estímulo às ideias, diz Lenilde Ramos: [o Colégio Estadual, no “lado de baixo”] começou a ganhar força quando fizeram a primeira faculdade de Farmácia, que foi lá (...), o primeiro núcleo de Farmácia, Odontologia (...) mais para as áreas biológicas, porque, do lado de cima26, os padres fizeram a FUCMT [Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso, futura denominação da Faculdade Dom Aquino], que começou com (...) um curso de Letras... Então, nesse período, de década de 1960, início de década de 1970, (...) acho que com a abertura da faculdade, Campo Grande teve um impulso muito forte do lado cultural. Mas foi uma coisa assim bem forte, mesmo. (Ramos, 2009) É de se notar que esta atividade, toda a absorção da cultura chegada dos grandes centros nacionais e internacionais, se dava sem conflitos de identidade, transcorria sem que tais estímulos fossem percebidos como ameaças externas a uma suposta pureza original. Tal 26 O “lado de cima” (dos trilhos que cortavam Campo Grande até recentemente) a que Lenilde se refere é a parte da cidade em que se estabeleceram as classes médias e altas. Os setores populares se fixaram no “lado de baixo”. Assim, na partilha dos saberes, as áreas técnicas e biomédicas ficaram com “o lado de baixo”, e as humanidades no “lado de cima”. Vê-se que a mediação da ferrovia sobre a vida da cidade teve, realmente, grande penetração. - 149 forma de pensar surgiria publicamente apenas mais tarde na década de 1980, sendo perfeitamente localizável no tempo e no espaço. Não se deve esquecer que a década de 1960 representou, também e principalmente, no Rio e São Paulo, um período de enorme intensidade cultural e artística, em função da mobilização estudantil e de certos setores da sociedade civil em repúdio à ditadura. Como coadjuvante dos processos intrínsecos vividos pelo estado, a partir da ideologia modernizante dos pecuaristas, isso ajuda a explicar a forte intensidade do interesse pela cultura em Campo Grande naquele momento. Para evitar se estender demasiadamente, bastaria lembrar que, na música popular, modalidade cultural que interessa mais diretamente a esta tese, nascia nesta década, a partir de 1963, a MPB, junto com a carreira discográfica e as apresentações em festivais de todo o seu primeiro time de artistas: Jorge Ben, Chico Buarque, Nara Leão, Maria Betânia, Chico Buarque, mais tarde, a partir de 1967, passando a destacar também Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Milton Nascimento, Tom Zé e muitos outros. Toda esta agitação se refletiu na cidade de Campo Grande sem que se tenha percebido uma reação de ordem preservacionista. Ao contrário, naquele instante, afirmavam-se, com muita intensidade, as produções locais realizadas à base de material que vinha de fora, como lembra Lenilde: Porque a cidade era pequena, então as coisas repercutiam mais rápido. Então, nós saímos da fase dos bailes e dos shows eventuais que aconteciam, quando passava um artista aqui, para a produção própria. Foi quando começaram os festivais de música e de teatro. Começaram primeiro os festivais de teatro. O grupo de Direito da FUCMT, dali surgiu o Sílvio Torrecilha, o dr. Sílvio Torrecilha era professor lá, ele começou a produzir peças do Gianfrancesco Guarnieri, era a época do auge da ditadura... As primeiras peças que eu vi deles foi em 1968, 1969... O Zeca do Trombone, que era o José de Almeida, com a Darci Terra, eram atores desse grupo... Chamavam bastante a atenção... Estas peças eram encenadas no Surian, então o Surian começou a chamar a atenção não só pelos bailes, mas também por ser um palco alternativo dessas encenações. E levando muita gente da cidade, não só o público universitário. Junto com as peças de teatro vieram os festivais de música. E os primeiros festivais de música que eu tenho conhecimento aconteceram também no Clube Surian. Então eu comecei a conhecer uma outra tribo, quer dizer, todo mundo começou a se conhecer ao mesmo tempo. (Ramos, 2009) Estes festivais de teatro, nesta fase de efervescência cultural que antecedeu e foi contemporânea à invenção da MLC, também contaram com a participação de Candido da - 150 Fonseca e alguns dos futuros compositores dessa música. Nestes eventos, evidenciava-se uma atmosfera de experimentação criativa crítica e irônica e, muitas vezes, assumidamente inconsequente, que pouco evocava a solenidade de uma pesquisa sobre raízes ou a elevação da classe pecuária, e que constituíam ainda outros discursos discordantes: Aos poucos, com os festivais de teatro, dos quais eu participava, participei umas três vezes como ator, depois eu e Paulo Simões, que é um dos melhores compositores daqui, resolvemos escrever uma peça, chamada O outro lado do lado de cá, visto do lado de lá dos lados, ou a estupefaciente conclusão a que se chegou na discussão que teve lugar entre o sargento X e o recruta Y no País da Nuvem Azul. Com essa peça a gente ganhou um festival nos anos 60. A gente fez um título enorme pra gozar a censura, e também porque a gente lia nos jornais de São Paulo as peças com os títulos pequenos e a gente resolveu fazer uma peça pequena com o título grande. Então, foi pura transgressão de juventude. Essa nossa primeira peça, nós montamos o cenário com restos das peças dos outros, das outras peças, ganhamos o festival. O som, a sonoridade, que a gente fez, [foi] uma colagem que não era musical, era mais de ruídos e músicas. A música sempre esteve presente na minha atividade. Depois disso fiz um musical com Geraldo Espíndola, aí já participei como compositor, mais letrista, fiz umas três músicas com o Geraldo, uma das quais está no disco dele que eu produzi, mais tarde, que é “As coisas de sonhar”. (Fonseca, 2009) Glorinha também relaciona a educação superior, a mídia de massa e os festivais da Record à atmosfera de efervescência cultural em Campo Grande, nos anos 1960, que ela denomina como uma “epifania”: Eu lecionava na Faculdade Dom Aquino, de Ciências e Letras, e era muito ligada aos alunos, havia também o Colégio de Aplicação, onde foi meu aluno o Paulinho Simões. Surgiram os festivais da Record, que estavam na mídia. Em 1967, a televisão aqui era muito precária [não oferecia a possibilidade de apresentações para os compositores locais] (...) Aí surgiu essa ideia [de fazer um festival de música]. Encontrei o Nelson Nachif [comerciante e diretor social do Clube Surian]. “Vamos fazer um festival de música?” Várias pessoas toparam. A Rádio Educação Rural colocou a rádio à disposição [para dar cobertura jornalística, juntamente com o Jornal do Comércio], era o Ailton Guerra que era o diretor. E aí fizemos os editais e houve um interesse enorme de pessoas [querendo participar]. Até então nunca tinha havido uma oportunidade de várias pessoas mostrarem suas composições, sejam boas ou ruins. Era uma espécie de epifania, você chegava lá [no Surian] e até ficava com o coração entusiasmado de ver aquela fila enorme de (...) pessoas esperando [para ensaiar]. Nos ensaios era um entusiasmo fora de série. Dr. Germano de Barros, que era um poeta, todo dia ia lá assistir aos ensaios. Eu me lembro que conheci o José Octávio Guizzo assim, porque a gente ia ensaiar lá no palco do Surian, e passávamos o dia inteiro ensaiando, treinando, até levávamos umas pessoas pra ensinar expressão corporal, pra terem entusiasmo pra apresentar... Ficava sempre, o José Octávio Guizzo, sentado lá, assistindo, religiosamente, todos os ensaios. E o I Festival, então, foi uma coisa falada na cidade inteira, porque era muito pequena, né? (Sá Rosa, 2009) - 151 Entretanto, segundo Glorinha, o foco do interesse na realização de atividades culturais, como os festivais, situava-se mesmo entre os estudantes dos cursos superiores: Tudo isso saiu da Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras, com os alunos que queriam quebrar a rotina. [A gente] falava assim, “Vamos fazer um festival?”, todo mundo corria. “Vamos!”, se animavam, todos... Aí surgiram os valores, aí surgiu o Teatro Universitário Campo-grandense [TUC], com o Sílvio Torrecilha dirigindo, e fizemos 4 peças: Arena Conta Zumbi, [Morte e Vida Severina]... eram peças que quebravam a rotina, nunca se fez aqui... eram peças do Teatro de Arena. Eu ia a São Paulo, chegava lá, assistia às peças, vinha aqui, “como é que eu vou fazer?”, o Sílvio Torrecilha [dizia], vamos levar. E ia criando, ele era muito criativo. “Agora vocês são negros”, [dizia]. Dava também textos de Stanislavsky, para as pessoas se conscientizarem... Havia também uma coisa muito interessante, aqui, todo mundo se animava porque... não era uma cidade grande. Era quase uma província, Campo Grande. E essas coisas davam ânimo, porque você tem que quebrar a rotina com a cultura, com alguma coisa que mexa com sua cabeça senão... senão não é vida, né? E os alunos gostavam muito disso, falava em [festival] eles [se animavam]. Eu tinha carro, eu saía com eles, botava no carro e saía andando, todo mundo queria ir, queria ajudar, uns se improvisavam como diretores de teatro, queriam compor músicas... (Sá Rosa, 2009) Não escaparia ao leitor, certamente, o conteúdo fortemente crítico dessas peças encenadas em Campo Grande. Criava-se, portanto, na década de 1960, um ambiente de experimentação e problematização que se voltava, não apenas, à situação política do Brasil como um todo, mas à própria sociedade local. Esta sempre foi vista como fortemente dependente da ideologia dos proprietários rurais, especialmente os pecuaristas, razão pela qual é comum ouvir-se, nas ruas, críticas à “bovinocultura”, como suposta explicação para a pouca atenção à cultura na cidade e no estado. Cabem aí, também, as críticas ao conservadorismo dos costumes e ao patriarcalismo. Seria possível imaginar que estas manifestações súbitas de inconformismo jovem, surgidas simultaneamente, na década de 1960, em boa parte do mundo, teriam deixado perplexa e incomodada a sociedade local, influenciada, como se disse no parágrafo anterior, pelo conservadorismo e o patriarcalismo de origem agrária. No entanto, como vimos, houve uma convergência de interesses – de que não estavam ausentes, inclusive, os econômicos – da parte de diversos setores urbanos para a realização dos festivais de música e teatro. Empresários, comerciantes, professores, advogados, comunicadores e outros representantes - 152 desses setores uniram-se aos estudantes, certamente estimulados por interesses críticos comuns. Com a dominância dos pecuaristas contestada por estas frações urbanas, compreendese que elas empreendessem um esforço de atualização, buscando desenvolver uma estética e um modo próprio de existir. Isto foi feito por meio da identificação com modelos nacionais e internacionais e do desinteresse por referências mais explícitas a culturas agrárias, interioranas, tradicionais e ditas de raiz. Ainda não se havia conseguido criar uma música que construísse uma nova realidade local à base de representações da realidade do estado e fosse, simultaneamente, afinada com essas tendências modernizantes. Tais tendências, no entanto, condicionaram profundamente a recepção de artistas e público, bem como a programação musical dos veículos e agenciadores em atividade no estado, predispondo-os a uma constante busca de renovação. Todo esse esforço começaria a dar frutos de criação local, propriamente dita, neste ano, 1967, no I Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande, o primeiro de uma série de festivais de música popular decalcados nos festivais da TV Record de São Paulo. A primeira tentativa de sintetizar essas experiências, que chegavam dos grandes centros por meio da mídia e das viagens, com a experiência local, foi a proposta regionalista veiculada pela composição vencedora deste I Festival, “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal”. Com esta primeira edição do festival, começamos a perceber, na música urbana de Campo Grande, o conflito entre o regionalismo, como tateante tentativa de encontrar uma identidade para o estado, e as produções baseadas em influências externas, ainda em estado de incipiência, ingenuidade e amadorismo, como proposição de um projeto de modernização. Realizado entre os dias 11 e 14 de dezembro de 1967, o I Festival teve como canção vencedora na categoria das composições inéditas “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal”, com letra de José Otávio Guizzo e música de Paulo Mendonça de Souza: - 153 “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal” (Paulo Mendonça de Souza/ José Otávio Guizzo) De camisa aberta no peito Lá vai o Mané Bento Em cima do alazão Fazendo rodeio E da morte sem receio Enfrentando o sertão... No couro de sua sela O laço, o pala O alforge e o berrante Na cintura a guaiaca Tendo atrás a faca E o porte sempre galante Sua proposta regionalista é singularizada em relação às competidoras, que, ainda sem evidenciarem nem uma qualidade de elaboração digna de nota, nem uma adaptação dos conteúdos locais às conquistas formais vindas de fora, são descritas como meras cópias de modelos externos, por Paulo Simões e Candido da Fonseca: [Mané Bento] [t]ratava-se, curiosamente, de um dos raros exemplos de proposta regional: ao ritmo de toada sertaneja, os versos descreviam o cotidiano de um vaqueiro do Pantanal, num clima quase épico (...) As demais classificadas seguiam, sem maiores constrangimentos, o figurino das canções de festival, um gênero híbrido que mesclava harmonização da Bossa Nova com letras complexas, elementos folclóricos com vocalizações retumbantes. (Fonseca e Simões, 1981, pp. 14-5) Em outro comentário, Simões relata o choque causado pela pioneira canção regionalista, confirmando, mais uma vez, a percepção de que as elites urbanas buscavam se dissociar das referências a Mato Grosso, ao Pantanal e à vida no campo em geral: No Festival de 67 surpreendeu-me a música vencedora – “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal – (...), pois através dela, pela primeira vez me ocorreu que eu estava em Mato Grosso e que Mato Grosso poderia ser tema de música! O que mais me impressionou foi uma música falando de Pantanal ser apresentada com toda pompa à elite campograndense. (Simões, [1984?]) Como vimos no Capítulo 1, a essa altura, e desde 1934, as atividades da Liga SulMatogrossense, e do próprio “movimento” divisionista, estavam desmobilizadas. Verifica-se então, a partir do estranhamento de Simões, que, realmente, àquele momento, não havia uma articulação divisionista que explorasse um regionalismo sulista com vistas à produção de um consenso na sociedade, em favor de uma integração de todo o sul do estado, que viesse a - 154 justificar a separação desta região do estado de Mato Grosso. Isso nos permite situar a influência da ideologia dominante, agrária, sobre a MLC, apenas a partir da divisão efetivada. Será apenas nesse momento que aqueles elementos desfavorecidos pelas elites até então (o outro diferente, ou seja, o paraguaio, o caipira, o índio, o peão, o pantaneiro), já incorporados à MLC desde o final da década de 1960, passam a ser estratégicos às classes decisórias, o que as levam a instrumentalizar a MLC aos seus propósitos. O discurso de Guizzo, que buscava valorizar o regionalismo local, terminaria por ser útil a este processo de cooptação. Sendo assim, passamos a discutir sua orientação teórica, objetivando compreender como intelectuais e músicos foram levados a alienar-se de seu projeto de confrontar as elites agrárias em favor do regionalismo instrumental. Guizzo explicitava a ansiedade de certos setores da sociedade local – que propunha generalizada – para com os destinos das populações do estado, e estava ciente de que a definição destes destinos estava ligada às maneiras utilizadas para representar aquele coletivo específico. Sua fala é, assim, marcada por um lugar, a de intelectual e agente cultural. Como tal, filia-se diretamente à linhagem iniciada pelo polígrafo e musicólogo Mário de Andrade, em que a ideia de representação assume um caráter menos dinâmico: o de uma identidade cultural definida. Não é por outra razão que a epígrafe de seu livro A moderna música popular de Mato Grosso do Sul é dedicada ao teórico da identidade nacional: Porque o direito de vida universal só se adquire partindo do particular para o geral, da raça para a humanidade, conservando aquelas suas características próprias, que são o contingente com que se enriquece a consciência humana. O querer ser universal desgraçadamente é uma utopia. A razão está com aquele que pretender contribuir para o universo com os meios que lhe são próprios e que lhe vieram tradicionalmente da evolução de seu povo. Tudo o mais é perder-se e divagar informe, sem efeito. (Mário de Andrade apud Guizzo, 1982, p. 3). Mário postulava a existência de uma linguagem musical natural, capaz de fornecer identidade a uma nação, ao mesmo tempo em que reconhecia na música popular um grande poder de conformação identitária. Conforme diz a antropóloga Elizabeth Travassos, a respeito - 155 de Mário e do músico e pesquisador Béla Bartók, também empenhado em um projeto de semelhantes características: Eles eram o indício de uma mudança cultural, no sentido mais amplo do termo, que alterava a visão global das artes e equivalia a uma nova fé religiosa (...) Os dois autores explicitaram que a compreensão dos valores da canção popular era como uma crença religiosa: a força capaz de mudar o pouso das montanhas, segundo Mário, e a nova Weltanschauung de que falava Bartók (...) (Travassos, 1997, p. 209). Conforme bem demonstra Travassos, esta intensa preocupação com o valor da canção popular para uma “nova Weltanschauung” perpassava as mentes de intelectuais e ideólogos em vários pontos do planeta ao tempo de Mário e Bartók, sendo grandemente representativa de um ideário historicamente situado, mas disseminado geograficamente. O texto de Guizzo deve ser lido a partir desta preocupação, que buscava a inserção no universal a partir do particular. No entanto, não se tratava da discussão das diversas diferenças encontradas no sul do MT, mas da procura de uma identidade regional que pudesse ser integrada à identidade nacional. Evidentemente, tais preocupações sempre correm o risco de ser rearticuladas aos interesses dominantes. Quando isso ocorre, aqueles interesses, ainda que bem intencionados, podem concorrer para selecionar certos traços culturais e fixar seus significados de maneira vantajosa para certos grupos hegemônicos. Tal “identidade” se torna ideológica, na medida em que representa uma intolerância à diferença e busca dissolvê-la em favor de padrões dominantes. Este processo de ansiedade pela descoberta da “identidade” se acirra, frente à indefinição e inconclusividade que caracteriza a criação autoritária de Mato Grosso do Sul, com certeza resultante do processo que alienou a população de toda consulta relativa à criação e funcionamento do novo estado. No livro de Guizzo, de maneira condizente com esta ausência de crítica às ideologias da identidade, do regionalismo e do nacionalismo, não são objeto de reflexão os conflitos econômicos e políticos que marcaram a mudança do eixo econômico de Corumbá para Campo Grande. Como vimos, o esforço de diversificação produtiva empreendido pelos comerciantes do século XIX, por meio da conexão de Mato Grosso com os centros platinos, pela Bacia do - 156 Prata, era centralizado regionalmente em Corumbá. Este esforço de diversificação é esvaziado pelos interesses do capital, que priorizam a “vocação primária” do estado ao permitir a articulação dos pecuaristas baseados em Campo Grande, via trem, com os grandes centros nacionais. Ao contrário, no livro de Guizzo é apenas constatado que [f]inda a guerra com o Paraguai, o Brasil percebeu que já não mais consultava aos interesses do país a navegação pelo estuário da Bacia do Prata. (...) Daí em diante (...) o eixo econômico do Estado se deslocaria, paulatinamente, daquela cidade transfronteiriça para a jovem e progressista Campo Grande. (Guizzo, 1982, p. 13) Dessa maneira, Guizzo não percebe que o elogio desse deslocamento das forças econômicas do transnacional platino para o nacional, a partir da “progressista Campo Grande”, favorecia os pecuaristas, principais beneficiados pela mudança. Sendo um declarado nacionalista, também não percebe que, assim como a preocupação em torno com uma identidade regional apenas poderia beneficiar as classes hegemônicas do estado, a defesa de uma identidade nacional só poderia, analogamente, beneficiar as elites dominantes do país. Decorre de seu nacionalismo a preocupação em negar as influências “paraguaias”, preferindo vê-las como “produtos da herança guarani” (p. 43). Finalmente, escapa a Guizzo que a insistência na categoria da natureza, justamente, como doadora da tão desejada identidade do MS, apenas poderia provocar o resultado de eternizar as populações dessa região na posição edênica de “seres da natureza”, propícia à sua exploração, inclusive como fornecedoras de produtos primários para o restante do país e do mundo, para desfrute único dessas elites, tanto estaduais como nacionais. Por isso mesmo, o canto ecológico dos irmãos Espíndola reflete, sobremaneira, uma postura política em favor da fauna e da flora do Estado, onde a natureza fala mais alto e cuja riqueza principal se assenta na agro-pecuária. (Guizzo, 1982, p. 19) Decorre desse elogio à natureza uma crítica a tudo o que se apresenta como artificial (em oposição ao que é “autêntico”, sempre referido como “nosso”: “nossas raízes” [p. 26], “elementos nossos” [p. 21]). Esta crítica se volta, por exemplo, a Brasília, por ser “uma cidade - 157 cuja linguagem é muito cosmopolita e sem nenhuma tradição cultural” (p. 41). Constitui, também, o cerne de sua advertência final: E o importante é não substituir essas constantes culturais e históricas de nossa formação por modismos musicais, consumidos vorazmente, e impostos pelos meios de comunicação de massa, cujos resíduos, altamente negativos, nivelam os sons e os ritmos (e isso só interessa às multinacionais do disco), dando-lhes um falso caráter de nacionalidade e universalidade. (Guizzo, 1982, p. 44) Volta-se, também, contra a “moda” dos instrumentos elétricos e eletrônicos. Referindo-se ao estilo de Almir Sater, comenta que: O desprezo pelos instrumentos eletrônicos e a sua opção consciente pela viola acústica define bem sua posição como músico, infenso aos ditames da moda. E ao fazer essa opção corajosa (sobretudo porque não-imediatista e anticomercial) ele se tornou mais próximo de nossas raízes rurais. (Guizzo, 1982, p. 23) Aliás, toda esta postura é coerente com sua resenha de compositores sul-matogrossenses dessa geração, de cujos estilos musicais são cuidadosamente selecionados os elementos valorizados por ele, sendo silenciados os que não se conformam à sua ideologia. Com relação aos Espíndola, após o comentário de sua relação com a “fauna e a flora” e a “riqueza agro-pecuária”, reproduzido aqui, anteriormente, resume-se a mencionar, sinteticamente, a respeito de suas influências musicais, “a herança musical guarani, (...) raízes sertanejas, da Música Popular Brasileira, dos blues, da música pop e a dos países latinoamericanos” (p. 19). Nenhuma referência ao rock. Nesse sentido, Guizzo foi o principal ideólogo da cultura sul-mato-grossense, e, como tal, promoveu enorme influência entre os artistas locais, mas esta influência não pode ser compreendida sem considerar a mediação que levou os pecuaristas ao poder executivo. Como vimos, o movimento divisionista havia sido reativado recentemente, apenas após a criação do MS, produzindo um agendamento (cf. nota 6) da questão da identidade cultural do novo estado, em decorrência da qual o livro de Guizzo veio a se popularizar. Sua data de publicação é bastante indicativa disso, tendo ele sido lançado, inclusive, no festival Prata da - 158 Casa, evidenciando toda uma convergência de interesses para a construção de uma identidade cultural do MS fundada nesses valores. Verifica-se, assim, a utilidade da obra de Guizzo para o fortalecimento dos discursos que as classes dominantes agrárias buscavam impor ao novo estado. Foi significativa sua influência para a maior ênfase que os artistas passam a dar aos elementos regionais e nativistas, e o relativo recalcamento das provocações elaboradas pela hibridação, pela MLC, desses gêneros com elementos transnaconais. Estas provocações buscavam chamar a atenção para o conflito entre a globalização e o “atraso” regional e sugerir discursos alternativos de modernização, includentes dos elementos recalcados pelo conceito capitalista de modernização, mas esta perspectiva crítica é anuviada pela busca de uma identidade. Por força destas mediações, a procura que vinha sendo empreendida pelos setores urbanos de Campo Grande, por um projeto de modernização com características singulares, a partir de uma reflexão que considerava a posição periférica do estado no interior do Brasil e junto a países subalternos da América do Sul, terminou por ser interrompida. Em seu lugar, profissionais liberais, empresários, comerciantes, artistas, críticos, intelectuais e outros agentes culturais foram instados a encontrar a verdadeira identidade sul-mato-grossense após a divisão do estado em 1977, com ênfase para a música popular. Adotando este ideário, que lhes veio de Mário e de outros pesquisadores com semelhantes preocupações, opuseram-se ao que lhes parecia uma importação de modelos metropolitanos que, segundo eles, desvirtuava tradições musicais que deveriam ser preservadas (e que estavam, não por coincidência fortuita, ligadas à atividade econômica pecuarista). Evidentemente, lhes escaparam, ou não lhes interessaram discutir, as relações entre esta busca de preservação – ou construção – e as lutas pela hegemonia por parte das elites dominantes. À guisa de recapitulação, já nos anos 60, com “Mané Bento”, Guizzo propunha uma identidade sul-mato-grossense, e que passasse por uma referência geográfica e cultural - 159 especialmente selecionada. O Pantanal é apresentado como metonímia do estado como um todo, em que pese a arbitrariedade dessa escolha. 27 E é significativo que esta escolha arbitrária de uma identidade proposta por alguns para o estado fosse primeiramente veiculada pela canção, confirmando a força da música popular preconizada por Mário e Bartók. Seria o primeiro passo para que uma música popular própria, unificadora de elementos rurais e urbanos, assumisse a função de mediar a negociação de significações imaginárias identitárias pelos moradores do futuro MS. Esta função, tal como assumida pela música criada pelas populações urbanas, foi vinculada ao universo das “tradições” regionais pela primeira vez com os festivais de 1967. Posteriormente à divisão do estado e por influência de uma série de diferentes condicionamentos, com prioridade para a busca por hegemonia por parte das elites pecuárias, tal função se diferencia e dissemina-se pelas múltiplas tendências do movimento chamado por Guizzo de moderna música popular urbana, o mesmo que denominamos, aqui, MLC. Até então, como vimos, em seu cotidiano, os setores dominantes da população campograndense buscavam adequar-se a discursos desenvolvimentistas e igualmente urbanos, forjados pelas produções da mídia de massa produzida nos grandes centros a que tinham 27 Segundo Silva e Abdon (1998, p. 1703), a área do Pantanal no Brasil é de 138.183 km2, dos quais 64,64%, ou seja, 89.318 km2, são ocupados por nove municípios dos 77 que constituem o estado de Mato Grosso do Sul (Campo Grande não é um deles). Como, segundo o IBGE (2006), a área de Mato Grosso do Sul é de 357.124,962 km2, temos que o Pantanal ocupa aproximadamente apenas 25% da área do estado, não sendo, portanto, representativo da fisionomia do mesmo. O mesmo ocorre com a cultura das populações pantaneiras, que se desenvolveu a partir do contato com seu ecossistema sui generis. O jeito de lidar com o gado, as habilidades necessárias para o peão, os hábitos domésticos e outras características definidoras desta cultura contrastam com aquelas desenvolvidas pelas populações do planalto, que não estão sujeitas às enormes distâncias impostas pelos extensos latifúndios pantaneiros, não sofrem a rotina do isolamento quase total na época das chuvas, e não carecem das habilidades necessárias ao pantaneiro para enfrentar as enchentes. Além disso, a partir dos anos 70 a economia das áreas de planalto passou a basear-se majoritariamente na agricultura (Barros, 1999, p. 114-115), sistema produtivo inviável no Pantanal e que promoveu profundas transformações sócio-culturais na região do planalto, em especial a agressão sistemática à ecologia, a dinamização econômica, a transformação do peão em bóia-fria e, no caso dos peões mais preparados, à sua capacitação como operador e mecânico de máquinas. - 160 acesso. Na década de 1960, este discurso modernizante recebe notável reforço por uma infinidade de fatores, além dos já citados. Deve-se lembrar que a construção de Brasília, iniciada em 1956, teve especial relevância simbólica para os anseios de modernização desta cidade, sendo, de resto, profundamente influente para o Brasil como um todo. Além disso, a ditadura militar implantada em 1964 deu grande destaque à questão da segurança nacional e à diminuição das tensões sociais e fundiárias nas outras regiões, particularmente no Sul (SUDECO, 1986, p. 33). Como vimos, a questão da segurança nacional diz respeito ao temor de insurreições provocadas a partir dos vizinhos platinos do Brasil, especialmente Paraguai e Bolívia, e envolve a manutenção da hegemonia estadunidense e militar brasileira, além do desenvolvimento do capitalismo e do combate ao comunismo na região. Com isso, nas décadas de 1960 e 1970, a ditadura injetou expressivos volumes de recursos no sul de Mato Grosso, na forma de financiamentos a juros subsidiados. Tais financiamentos destinavam-se à derrubada do cerrado e à implantação de lavouras e pastagens que levassem a uma ocupação efetiva da fronteira com o Paraguai e a Bolívia e a uma absorção da mão de obra vinda de outras partes do país. Para tanto, implantou inúmeros programas, como o Prodoeste, canalizando recursos do Banco Mundial, das Nações Unidas (FAO) e outros organismos supranacionais e internacionais. Conforme citação, no Capítulo 1, p. 93, de Afonso Simões Corrêa, “não se pode negar que Mato Grosso nunca foi tão beneficiado com programas de financiamento, a maioria com crédito subsidiado, como nesse período”. Assim, todos estes fatores confluiriam – contraditoriamente – para a produção dessa fase de efervescência cultural, que teve início, de acordo com a interpretação de nossos informantes, nos anos 1960, se estendendo até os anos 1970. Isso é confirmado por Lenilde: Pra Campo Grande, esse final da década de 60 e início de 70 foi altamente produtivo. E altamente definidor do que se tenta [fazer] acontecer agora. Eu acho que (...) por - 161 exemplo, o que nós estamos vivendo nesses últimos dois anos (...) em relação ao que a gente produzia, naquele final de 60 e começo de 70, não tem comparação. Pelo tamanho da cidade, pelas condições dos meios de comunicação, a produção era mega. Era mega. Tinha muita coisa acontecendo. (Ramos, 2009) É justamente neste momento de efervescência que Humberto Espíndola começa a atuar na cidade: Porque também foi nessa época, 1970, que Humberto Espíndola, que tinha terminado o curso de jornalismo em Curitiba, voltou pra cá já com a intenção de amadurecer a produção que ele já fazia [sobre o Boi] (...) (Ramos, 2009) Descrevendo a atuação de Aline Figueiredo, juntamente com outros mediadores culturais que se dedicaram a dinamizar a cultura local, Lenilde chama a atenção para a importância desses mediadores, capazes de aglutinar e incentivar pessoas em torno de si. E dali [Humberto] encontrou a Aline Figueiredo, que era uma mulher da terra, totalmente, que tinha tanto esse lado urbano dela quanto essa vivência toda em fazenda, foi criada nas fazendas, então ela começou a articular com ele esse trabalho. [Ela sendo] uma grande produtora cultural, começou a dar consistência pra aqueles bois, e aí essa dupla [foi muito importante para o desenvolvimento dessa área no estado]. Agora, o que eu acho legal dos dois, é que eles não só produziam o trabalho deles, mas a Aline organizou um rastreamento, já em 1970, e foi lá no Clube Português a primeira exposição que ela fez, da Associação Mato-grossense de Arte, a AMA, então ela pegou todo mundo que pintava, que rabiscava, que fazia alguma coisa de escultura, e fez uma grande exposição lá no Clube Português. Até eu participei, imagina! (...) Então, esse incentivo da Aline Figueiredo, nas artes plásticas, o incentivo da Glorinha Sá Rosa, com a música, e o incentivo do Torrecilha, com o teatro, olha... fecharam Campo Grande. Aquilo ali era um caldeirão cultural tão efervescente que, da forma como começou, com a força com que começou, se tivesse continuado com a mesma força, eu te juro que hoje em dia Mato Grosso do Sul era como se fosse um Rio Grande do Sul, uma Minas Gerais. (Ramos, 2009) Apesar de que a maior parte dessa movimentação cultural se limitava a uma importação de modelos de fora, não representando, ainda, uma reflexão crítica focalizando a situação social de Campo Grande, no estado de Mato Grosso, acenava com uma mudança positiva, por estimular uma mentalidade que se encaminhava para isso. É verdade que já existiam artistas em franca atividade àquele momento, como, por exemplo, Jorapimo, que focalizava desde muito antes os tipos humanos do Pantanal. No entanto, tais artistas não estavam conectados à mesma realidade transnacional dos anos 1960, não exercendo uma - 162 influência direta sobre os acontecimentos que envolveram a cidade e a MLC nessa época – apesar de sua evidente importância, tanto artística quanto política. Nesta década, manifestações como o rock, a contracultura, a ecologia e a Nova Esquerda produziram mudanças na maneira de se pensar a política, inclusive a política cultural. Tais mudanças foram passíveis de articulação com a realidade local, que interessam, mais diretamente, à MLC e ao público das cidades, resultando em transformações sociais. Uma tal proposição crítica e autorreflexiva local se encontrava, no entanto, nas artes visuais de Humberto Espíndola, que discutiremos brevemente adiante, e que serviram de referência à MLC, como já foi dito. Antes do que a música, a obra de Humberto voltava-se para sua realidade, processando-a a partir das técnicas e procedimentos buscados nos centros mais desenvolvidos. Lembrando da oposição representada no I Festival, entre a toada sertaneja “Mané Bento”, e as “canções de festival” com harmonizações de bossa nova, verifica-se que o imaginário rural/ regionalista/ tradicional e o imaginário urbano/ cosmopolita/ desenvolvimentista colocavam-se em planos opostos e inconciliáveis nos discursos musicais. Mediada pela repulsa da sociedade ao “atraso” representado ali, flagrante a partir do estranhamento demonstrado por Simões, “Mané Bento” deixava entrever aquilo que essa própria sociedade não queria ver. Como camera obscura, apresentava a imagem reversa que Campo Grande acreditava possuir. Talvez essa tenha sido a razão de sua vitória na competição, por impactar mais pela sua temática do que por sua artesania, entendida como elementar. Justamente por não inovar no aspecto formal, sem promover uma reelaboração do material local a partir de técnicas expressivas das contradições entre o arcaico e o moderno, “Mané Bento” não possibilitou levar adiante a proposta autorreflexiva que iniciou, ao referir a expropriação do trabalhador rural. Ficava a meio caminho sua crítica, passível de ser - 163 integrada como um elogio ao passado épico idealizado da atividade pecuária. Sendo assim, o I Festival continuou, a meu ver, a dicotomia exibida nos bailes da cidade, entre músicas tradicionais no estado e a produção marcada pela noção de cosmopolitismo e modernidade à base de modelos externos. Continuava incapaz de se integrar em uma reflexão própria a coexistência do passado – agora com o novo e fundamental traço da valorização do Pantanal como símbolo identitário – com o presente da vida moderna local, seus hábitos urbanos e suas contradições. A proposta regionalista apresentada por “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal”, na sua incongruência com quaisquer dos discursos de modernização em atividade na cidade, parece incorporar as preocupações andradianas de Guizzo, com relação a uma suposta ausência de identidade cultural no sul de Mato Grosso. Entretanto, pode, inclusive, ser interpretada como resultado, mais uma vez, da influência dos festivais da Record, portanto das capitais nacionais, que davam destaque às músicas regionais com caráter épico como veículo do protesto contra a ditadura. De toda maneira, é significativo o fato de que, àquele momento, havia apenas uma canção regionalista em todo um festival de uma cidade do interior. Certamente isso configura um notável contraste com o crescente regionalismo que se apoderou da cidade de Campo Grande desde a divisão até a atualidade, e que chega a incomodar as pessoas que a ele não aderem, como veremos. No sentido inverso, os festivais campo-grandenses também davam continuidade à busca de atualização cultural por meio da recusa ao regional sul-mato-grossense e da absorção de modelos exclusivamente externos, da forma como era levada a efeito pelo Rádio Clube, pelo Clube Surian, por certos programas de rádio e práticas sociais já mencionados. Neste sentido, é de se notar que o primeiro destes festivais tenha sido aberto solenemente com uma significativa homenagem: Silvia Odiney Cesco e Antônio Mário, acompanhados pelo conjunto Os Geniais, interpretam a composição “Ponteio”, de Edu Lobo, campeã do II Festival da Record, encerrado poucas semanas antes. Mas as influências não cessam aí: no concurso de interpretação (...), Os Geniais vencem na categoria conjuntos, com “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso (também - 164 do III Festival Record), e José de Almeida [irmão de Virgílio, citado anteriormente, e mais tarde conhecido como Zeca do Trombone, homônimo do músico famoso internacionalmente] sagra-se o melhor cantor com “Disparada”. (Fonseca e Simões, 1981, p. 14) Assim, sugiro que a música do I Festival marcou a coexistência entre o imaginário rural e o urbano, mas não a incorporação de ambos a uma reflexão crítica sobre a realidade social local contemporânea – que começaria a surgir no II Festival. O II Festival, realizado em 1968, foi vencido pela canção “O amor vence a cor”, de Lenilde Ramos, sua primeira criação, com apenas quinze anos de idade, composta por insistência e motivação de seu pai, segundo conta: Quando eu fiz parte [das Golden Girls], eu me toquei pra uma coisa que meu pai sempre me alertou. Meu pai, que ia às audições anuais do Colégio, pediu para eu fazer uma música minha em 66-67. Eu falei, “não existe esse negócio de música minha”, ele disse, “claro que existe. Você tem capacidade de fazer uma música sua. A próxima audição eu quero ouvir uma música sua”. Eu fiquei com aquilo na cabeça e compus, realmente, uma música, em 1968, que foi a primeira música minha. (Ramos, 2009) A história desta composição ajuda a iluminar um pouco mais o contexto da época, em especial os conflitos de classe, gênero e etnia, narrados pela voz própria de Lenilde, e sua luta para contestar o lugar reservado a ela e a outras pessoas marcadas pelo selo da subalternidade. Neste sentido, a influência dos festivais da Record, dos musicais de televisão e a importância dos modelos cosmopolitas de qualidade musical para os conjuntos locais devem ser lidas à luz do que representavam em termos dos discursos conflitantes e divergentes sobre modernização encontrados na cidade. Ou seja, a modernização capitalista, preconizada pelos pecuaristas, não se confunde com o discurso de modernização ativado pelos jovens informados pelas convulsões teóricas e práticas dos anos 1960, das quais “O amor vence a cor” é tão claramente indicativa, a partir mesmo de seu título. Na busca de se distanciar destas estruturas opressivas vinculadas à exploração agrária em direção a uma expressão aberta do problema do preconceito, Lenilde exprime extrema valorização do desenvolvimento técnico e cultural vindo dos grandes centros - 165 nacionais, em detrimento do olhar para o passado e a tradição, visivelmente desfavorecido e simbolizado pela poeira vermelha: Uma [coisa] que me incentivou foram os Festivais da Record. Eu era do internato [do Colégio das Irmãs], era interna. Então, a única hora que as internas podiam ver televisão era domingo à tarde. E era a hora, justamente, em que passava o programa da Jovem Guarda e que passavam, também, assim, os videoteipes dos festivais da Record. Então ali eu conheci Jair Rodrigues, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Elis Regina, Chico Buarque, Nara Leão, e eu me apaixonei por esse trabalho. E quem reforçou a minha paixão por esse trabalho foi o conjunto do Rádio Clube. Porque o Agápito reproduzia maravilhosamente bem esse repertório. Então ele repercutia o que acontecia no eixo Rio-São Paulo, principalmente na Record, ele repercutia aqui em Campo Grande. Ele sempre estava atualizado. Interessante o fato de Campo Grande ser uma cidade que era a cidade da poeira vermelha, literalmente, [e estar tão atualizada]. (Ramos, 2009) Além do interesse pelo desenvolvimento tecnológico, representado pela atenção aos EUA, aos festivais, à televisão, nesta canção, percebe-se a preocupação com o racismo, um tema sobre o qual a sociedade local, fortemente dominada pela ideologia agrária, silenciava. A estratégia retórica empreendida pela canção promove a aproximação destes dois contextos – racismo e modernização – com o propósito de reflexão crítica e libertação de uma realidade opressiva. O uso do gênero samba, neste quadro, sugere a busca de expressão por meio de uma música associada à negritude e distanciada do regionalismo agrário. “O amor vence a cor” [era] inspirada pelos festivais da Record, mas com a cabeça observando os acontecimentos dos Estados Unidos, daquela grande rebelião que teve, dos negros, que incendiaram quarteirões inteiros, não sei se foi em Chicago, e aquilo ali na imprensa me chamava muito a atenção, então eu fiz uma música pensando mais nos Estados Unidos que no Brasil. Mas o ritmo era um samba, focado nos festivais da Record. (Ramos, 2009) Temos, assim, mais uma composição que podemos classificar entre aquelas que buscavam evocar um imaginário urbano problematizador, estética. técnica, política e informacionalmente atualizado, em contraposição ao ideário regionalista, mas que não representou a fundação de uma corrente estética ou ideológica, em seu sentido mais amplo. Ao utilizar o samba, a música não buscou refletir criticamente sobre o racismo a partir, mesmo, da músicas locais, o que tenderia a acirrar as contradições e situaria o conflito no aqui - 166 e agora de seu acontecimento. Entretanto, a atuação posterior de Lenilde na MLC evidencia tal articulação de maneira bastante evidente. A maior novidade trazida pelo II Festival foi representada pelo conjunto Os Bizarros, formado pelos compositores Geraldo Espíndola e Paulo Simões. Ambos, com a adição, ainda em 1971, de Geraldo Roca, constituiriam o trio dos mais reputados compositores da MLC, que nasceria naquela década de 1970 bastante inspirada pela ideologia estreada neste II Festival, e, como tal, bastante influente até os dias de hoje. Faziam também parte d’Os Bizarros os músicos Maurício Almeida (futuro parceiro de Almir Sater, na dupla Lupe e Lampião), James de Deus e João Batista Clivelarro. O grupo mostrava em seus elementos uma entusiástica adesão à Tropicália, começando pelo figurino adotado. A música escolhida, “2001”, também era oriunda do Festival da Record, “onde causara impacto como uma das primeiras e mais audaciosas tentativas de se chegar a uma síntese rural/ urbana” (Fonseca e Simões, 1981, p. 17). Conforme relata Simões: E é uma estranha coincidência dessa música eu ter recebido o disco que era a primeira música de todo aquele rolo da Tropicália que tentou fazer uma fusão de até 50% entre música urbana ou rock e música sertaneja. A música começava com viola caipira, depois eles cantavam um negócio que era meio cateretê e outra metade da música era rock. Isso chamou muito a nossa atenção. (Simões, [1984?]) Se “Mané Bento” era uma toada sertaneja que coexistiu com canções de corte metropolitano sem que se constatasse nenhuma influência de parte a parte, percebe-se, com a participação d’Os Bizarros no II Festival, o primeiro passo na busca deliberada de um modelo sul-mato-grossense desta síntese – ou melhor, hibridação – rural/ urbana. Tal hibridação incorporava ao rural até então recalcado a situação contemporânea da cidade, da qual eram aceitas como partes integrantes a indústria cultural, a contracultura e as questões cruciais então para o jovem, tanto no plano nacional como no transnacional, em oposição a uma música regionalista. Estas duas vertentes são detectadas por Guizzo, ao discorrer sobre o que representava, em sua opinião, o duplo valor desses festivais no processo de desenvolvimento da música popular urbana: - 167 [n]ão só ao nível de afirmação de caminhos novos (no primeiro festival saiu vencedora uma proposta inteiramente regionalista: o [sic] de se cantar a cultura pantaneira), bem como, a de revelar uma série de compositores, instrumentistas e cantores, que daí por diante assumiram a sua condição e até hoje permanecem na estrada, como figuras exponenciais de nosso mundo musical. (Guizzo, 1982, p. 15) Tratava-se, então, de um conflito entre duas propostas inconciliáveis. Na década seguinte, 1970, grupos como o Acaba nasceriam já engajados à ideia de autenticidade e raízes – trilhando, entretanto, um caminho inteiramente original em relação ao estilo composicional de Guizzo. Já outros compositores da MLC procurariam uma hibridação rural/ urbana com graus variáveis de regionalidade, oscilando do elogio sentimental à negação completa deste traço. Para a construção dessa hibridação foram utilizados os gêneros rurais e paraguaios, populares no sul do então Mato Grosso, em sintonia com as informações dos grandes centros brasileiros e internacionais, com destaque para o rock e para a dicção intimista da bossa nova, tal como legada à Jovem Guarda – totalmente rejeitados pelo Acaba. É necessário entender neste processo o papel fundamental do artista plástico Humberto Espíndola. O mais velho dos irmãos Espíndola, Humberto era já um artista consumado nestes anos finais da década de 1960. Humberto torna-se nacionalmente reconhecido depois de 1968 (o mesmo ano do II Festival) por suas obras em técnica mista denominadas genericamente de Bovinocultura, como explica a crítica de arte Aline Figueiredo: Como conhecedor da problemática da região pantaneira, [Humberto Espíndola] registrou na sua obra os materiais de uso na pecuária. Apropriou e recriou toda uma simbologia histórica e mágica do binômio pecus pecunia, resultando daí a sua bovinocultura, que não se conteve apenas ao quadro de cavalete. Utilizando os mais variados materiais para satisfazer as necessidades de sua pesquisa artística, passou do óleo sobre tela à tela de arame, e desta ao arame farpado, ao ferro, à faca e à marca. Da paisagem ao curral, ao chifre, ao couro, à moeda. Da roseta à rosa. Do quadro de parede ao objeto e ao ambiental, realizando assim um verdadeiro culto diário do boi, que hoje se revela como uma das mais definidas e concretas experiências estéticas brasileiras. Pela primeira vez Mato Grosso chamava a atenção de toda a crítica nacional ao revelar o boi como força econômica e social de uma região. (Figueiredo, 1979, p. 191) Portanto, Humberto esteve também, desde o início, envolvido com uma reflexão sobre a realidade sul-mato-grossense construída através de uma hibridação entre o rural e o urbano. Voltando-se para a principal atividade econômica do estado, evidenciava seu interesse em - 168 indagar sobre a questão do poder, afastando-se, assim, do elogio regionalista. Os signos utilizados em suas obras, e retirados do contexto da produção pecuária, indicam relações de dominação: o arame farpado, o ferro (de marcar) e a marca são símbolos da propriedade privada. Entretanto, o próprio autor nega uma crítica à economia pecuária ou aos pecuaristas. Partindo do conceito de que “a obra de arte reflete o meio sócio-cultural do artista”, preferiu constatar essa realidade inequívoca no estado. Seu Boi não se voltaria, assim, a uma denúncia da situação regional, mas buscaria sua inserção em um ícone ancestral, de reconhecimento universal, como diz: A minha obra nunca foi uma coisa específica ao Mato Grosso, ou aos fazendeiros, ou à política latifundiária. Isso não, nós somos um estado agrário. Eu fiz uma coisa com o boi, só que o meu boi, eu descobri logo, não era uma coisa só de Mato Grosso, nem de Mato Grosso do Sul. O Boi é universal, está na história da arte universal, é um símbolo dos mais fortes, você vê ele desde a Índia, a Via Láctea se chama Via Láctea, Via de Leite, porque a Vaca que pariu o universo na mitologia indiana espirrou esse leite, e esse risco branco que viam no céu antigamente eles achavam que era o leite da Vaca que tinha parido o universo. Você vê, era uma coisa arquetípica que vem de muito longe e que se manteve, como nome da nossa galáxia, que tem o nome do leite da Vaca, Via Láctea, Via de Leite. Então, o Boi é muito mais poderoso... Eu falo Boi entre aspas, porque no português do Brasil se generalizou a palavra boi para touro, para vaca, para tudo. Porque, na verdade, eu fiz uma pintura do touro, do boi e da vaca. Entrei na Tauromaquia de Picasso, de Goya, teve muitos outros pintores em diversas épocas do mundo que pintaram o boi, o touro, entende... No Egito antigo, deuses-touros, deuses-vacas, civilizações inteiras na Antióquia, na Turquia (...) O boi, o touro e seus antepassados desde a pré-história, está nas cavernas... O homem escolheu esta carne como a mais gostosa pra ser caça, pra ser comida, pra ser alimento... Quer dizer, então, a importância desse animal na história da humanidade é muito grande. A civilização não teria nascido sem o boi, o cavalo e a roda. Porque o Boi foi o que propiciou – e o Brasil também se consolidou do tamanho que foi porque os bandeirantes entraram, e o gado foi ficando no caminho, dando sustentação de comida, de leite, de queijo... É assim até hoje na Índia (...) quem tem um boi tem uma renda, uma forma de vida (Espíndola, H., 2009) Mesmo assim, o artista defende que sua obra possui um sentido eminentemente crítico, voltado ao poder do dinheiro – que é, também, como o Boi, um signo transcultural, passível de ser associado ao particular, ou seja, a realidade social do MS. O couro se transforma em mapa. Mapa da ocupação. Cartografia do domínio onde as marcas assinalam, ao modo estatístico, a posição dos rebanhos e o poderio dos proprietários. Quando a circunstância começa a ser vista sob esse enfoque, o status começa a se consolidar, implicadamente. Ele passa a ser analisado em todos os seus níveis, mas a sua consolidação definitiva e objetivada acontece quando o boi comparece para efetivar sua destinação: pecus transformando-se em pecúnia e depois em pecus outra vez e assim por diante. (Espíndola, H. apud Morais, 1975) - 169 - Da mesma maneira que elegeu o Boi como “alegoria denunciadora” da “pressão de uma sociedade rude”, d’“a agressividade, a ânsia por moedas, a ferocidade pessoal do seu conterrâneo” (Espíndola, H. apud Bittencourt, 1977), Humberto buscou refletir sobre a realidade dos povos expropriados do MS e da “América Latina Índia”. O próprio MS, enquanto unidade da federação a quem coube o destino de ser fornecedor de produtos agropecuários para o restante do país e do mundo, é incluído nesta reflexão. Humberto – que, tendo terminado seus estudos na década de 1960, radicou-se, então, definitivamente em MT e MS – desenvolveu, assim, uma visão própria a respeito das possibilidades do estado. Esta visão engloba tanto a situação histórico-geográfica da região, em que transitavam os povos pré-colombianos, quanto a situação político-econômica periférica deste enclave situado no interior da América Platina. O resultado o estimulou a propor uma política cultural para o estado, o que o levou ao cargo de Secretário de Cultura (1986-1990). Sua proposta será ainda discutida quando examinarmos as mediações promovidas pela Peña Eme-Ene, devido à influência exercida por ele sobre esta iniciativa. No entanto, é importante dizer que este projeto cultural com reflexos econômicos, pensado desde a realidade subalterna do MS, visava promover o desenvolvimento regional a partir de sua situação periférica em relação aos grandes centros decisórios internacionais e nacionais. Adquire, assim, o aspecto de uma crítica à hegemonia destes centros e de uma procura por deslocá-la no âmbito regional, com o recurso a alianças construídas com os outros países subalternos da América do Sul, inicialmente Paraguai e Bolívia. Esta visão se articula à prática já então corrente, dos compositores da MLC, de, inspirados pelas viagens hippies pelos altiplanos andinos, fundir as músicas desta região àquelas resultantes dos encontros culturais (cf. Burke) ocorridos no antigo sul do MT (paraguaias, gaúchas, mineiras, paulistas, entre outras). - 170 No entanto, estas fusões não implicam em uma realidade regional encerrada em si mesma. Para Humberto, “antes mesmo dos espanhóis e portugueses o Rio Paraguai já cumpria o papel de rio civilizador, e nossos povos indígenas praticavam o comércio e profunda interação sócio-cultural” (Espíndola, H., 2011). Sendo assim, “o Rio Paraguai já era um rio do Mercosul” (Espíndola, H., 2009). As implicações são evidentes: pelo Rio Paraguai passariam a dar-se os contatos entre o território que, posteriormente, constituiria a província do Mato Grosso, e o restante do mundo, desde antes do início da colonização europeia na região. As trocas culturais com os países latino-americanos já aconteciam, e continuaram a acontecer no contexto da globalização, que trazia simultaneamente desenvolvimento e expropriação para toda a área. Buscando refletir sobre esta realidade contraditória, os compositores da MLC passam a incluir os gêneros transnacionais nestas fusões, como continuidade a esse processo histórico. Por tudo isso, a influência de Humberto sobre este movimento musical permite compreendê-lo como uma reflexão sobre a realidade local, às margens do capitalismo global e das decisões nacionais, em que a presença de músicas latino-americanas exprime a busca de uma união com outros povos subalternos da região a partir de um repertório comum. Tudo isso vai contra o regionalismo buscado pelas elites agrárias e a ideologia da segurança nacional, evidenciando, também, uma irresignação frente aos modelos culturais ditados pelo conceito de “sucesso nacional”. Portanto, os vetores ideológicos que atravessam a MLC ajudam a explicar tanto sua significância para o desenvolvimento de um pensamento crítico produzido localmente por meio da música, quanto as vicissitudes encontradas por este movimento para viabilizar-se comercialmente nos planos estadual, regional e nacional. Tudo isso ajuda também a entender a Bovinocultura de Humberto, que também foi bastante influente para os compositores da MLC. Em vez de cantar em sua obra um passado supostamente bucólico e idílico, um passado idealizado, sem conflitos pela posse da terra, - 171 sem a exploração do trabalho, Humberto buscava discutir a realidade política, social e cultural, com suas relações de poder: Entendeu, eu fui buscar o meu Boi... E naquela ocasião que ela surgiu, era uma pintura agressiva porque nós estávamos na ditadura. Então o meu Boi, minha Bovinocultura inicial foi muito mais uma sátira ao Ditador, porque eu associei o Boi ao Tirano, pecus pecunia, Boi-Dinheiro, o dinheiro como forma de sociedade, o dinheiro como viga mestra do autoritarismo, o dinheiro faz a política, a política vem da economia, a economia que gera o poder político... Não é? Uma economia gera o poder político. E o poder político, ele às vezes se desvia. Pode ser autoritário. E esse Boi foi a representação... Eu humanizei esse boi pra mostrar como sátira, como crítica ao Brasil. Tanto é que eu fui mais um artista que criticou a ditadura do que a sociedade local. Pelo contrário, tentei recuperar um ícone da sociedade local que ela não achava belo, não achava importante, para essa sociedade. Quando eu tentei vender os primeiros quadros meus do Boi todo mundo falava, “por que você não pinta cavalo, cavalo que é bonito, boi é horroroso...” Hoje, você vê, nesses leilões, nelores de dois milhões de reais, três milhões... Acabou essa história, todo mundo acha lindo! Entendeu, o animal é lindo. Ele conquistou, e eu trabalhei nessa luta, pela busca estética, da recuperação estética. De uma estética que as pessoas não viam, porque era um animal rude dos campos que virava dinheiro, que competia com as senhoras fazendeiras na relação com seus maridos, então ele não era muito benquisto, não é, elas não o queriam na sala... Se ainda fossem rosas... Por isso que eu fiz uma fase satírica sobre a rosa, mostrando que a rosa e o boi têm muita coisa em comum porque ambos são híbridos hoje... (Espíndola, H., 2009) Certos paralelos entre a obra de Humberto e a dos compositores da MLC se impõem. Neste trecho aqui citado, Humberto dá conta de uma transformação estética na forma de ver até então vigente na cidade, que contou com sua participação. Signos ligados ao campo são legitimados como temas artísticos, e, valorizados, passam a constar de exposições, catálogos e museus. Sabemos, já, que a ideologia desenvolvimentista e modernizante das classes dominantes pecuaristas procurou recalcar as marcas da expropriação desse mesmo diferente – o índio, de quem foram tomadas suas terras, e o peão, cujo trabalho foi a fonte de seu lucro. Inserido nessa realidade contraditória, o trabalho de Humberto não poderia deixar de apresentar essas marcas. De um lado, contribuiu para trazer ao plano da consciência o que estava recalcado. Expondo as marcas da exploração e a realidade agrária, que estavam ocultas das preocupações das classes médias urbanas, aumentou as possibilidades de sua tematização e discussão. Sua obra, ao produzir um novo olhar sobre uma realidade que se pensava estabelecida, definida e - 172 sem mais o que discutir, demonstrou que é sempre possível repensar o que está dado, o que se enrijeceu numa forma estática. Entretanto, enquanto artista inserido no modo econômico capitalista, não poderia deixar de apresentar contradições. A polissemia das práticas significantes, como a pintura, permite a produção de discursos variados; certos discursos construídos sobre a obra de Humberto contribuíram, assim, para também valorizar e legitimar a classe que buscava hegemonia, indo em direção aos seus interesses. No caso em questão, a beleza do Boi de Humberto encontrou eco nas transformações empreendidas pelos criadores para aumentar sua produtividade, que o tornaram efetivamente mais belo, segundo esses padrões. O Boi de Humberto não é o tucura dos tempos da subordinação do pecuarista em seu conflito com a casa comercial, mas o Nelore resultante da tecnologia do melhoramento genético, do investimento na busca dos melhores reprodutores da Índia, do desenvolvimento das melhores combinações de sal mineral, dos melhores vermífugos, das melhores pastagens, das melhores rações. Tudo isso depende do desenvolvimento de novas máquinas industriais, de uma nova mecanização da agricultura, de novos processos de logística, gerenciamento e administração, promoção e marketing. Assim, a busca de uma estética do Boi não poderia deixar de ser, também, o elogio do projeto de modernização empreendido pelo pecuarista. Apesar dessa contradição, o discurso visual de Humberto é crítico, evitando enaltecer essa classe de maneira idealizada, idílica ou passadista, por ressaltar em suas obras as marcas da propriedade e do conflito. Ao concretizar tais significações numa nova forma estética, Humberto afirmou e comprovou sua influência no processo que colocou em pauta o que estava reprimido, da mesma forma que o fariam as fusões de rock e gêneros caipiras e paraguaios que logo passariam a ser realizadas na forma singular da MLC. Evidentemente, no plano da cultura, há sempre a possibilidade de as formas serem - 173 integrados ao projeto capitalista, ao que não foram imunes nem o trabalho de Humberto, nem dos compositores e músicos da MLC. Sabendo que a ligação entre significantes e significados é potencialmente instável, mantida ilusoriamente fixa a partir de sua performatividade, que é produzida pelos discursos dominantes, a única possibilidade de manutenção do potencial crítico é fugir de sua estabilização, por meio da própria performatividade, agora movida por uma prática do conflito. Entretanto, as mediações partidas do status quo sempre agem no sentido de fixar os sentidos, amortecendo dessa maneira as tendências irrequietas e insubordinadas das produções, pacificando-as e conciliando-as (para maior detalhamento deste percurso teórico, consultar o Anexo). Portanto, as significações não estão dadas na obra, enquanto objeto autônomo, supostamente realizado por uma consciência transcendental que adquiriria direitos de paternidade sobre seus possíveis sentidos. As mediações adicionam novas camadas de sentido, e a recepção ainda outras. Em última análise, os sentidos nunca estão dados, de maneira final. Há, então, uma polêmica, que se processa entre diferentes receptores. O potencial transformador da “obra” (assim relativizada enquanto objeto autônomo) reside mais em sua capacidade de promover, continuamente, esta polêmica, do que em eventuais qualidades do objeto produzido. Ver o Boi sob uma óptica renovada, assim como ouvir o paraguaio e o caipira fora de seus contextos e formas naturalizadas, implicou em fortes rejeições, décadas atrás. Provocando debates, estas práticas tencionavam a reformulação dos costumes e dos usos, o que envolve a discussão das relações de poder. Havia muito a ser repensado e rediscutido, naquela sociedade conservadora, regida por um código de comportamentos patriarcal. Sendo assim, da mesma maneira que o trabalho de Humberto trouxe à discussão o universo agrário, a MLC colocaria na pauta a questão do índio, do paraguaio, dos próprios homens e mulheres urbanos, e de seus papéis sociais. - 174 Neste contexto, a referência ao híbrido, na fala de Humberto, é notável, por sintetizar muito de sua proposta, das transformações em andamento na cidade, e da nova música que estava por nascer. Evidentemente, “híbrido”, aqui, não se refere ao conceito biológico, mas à apropriação metafórica do conceito pelos estudos culturais, especialmente por Canclini. 28 Híbrido é o Boi de Humberto, ao mostrar, de um lado, a expropriação no campo, e, de outro, a visão das elites, a modernização capitalista como fundamento de sua riqueza, o melhoramento genético trazendo o desenvolvimento precoce e tamanho descomunal pela mistura entre raças indianas e europeias altamente tecnologizadas, o chamado choque de sangue. Híbridas são também as rosas, indicando, possivelmente, novos hibridismos culturais envolvendo a figura da mulher na sociedade campo-grandense em rápida mutação. Híbrida seria também a nova música, que misturaria polca paraguaia, chamamé, moda de viola, cateretê e rock, sem se reduzir às características de nenhum desses gêneros tomados isoladamente. É preciso dizer também que o Boi de Humberto propunha um enigma. Não encontrando um lugar para alojar-se nos sistemas de classificação social disponíveis, furtavase às tentativas de definição, e daí extraía sua força. Não servia para decorar a casa: era um animal “horrível”, não era belo como um cavalo – o que é dizer que o cavalo já estava plenamente domesticado como objeto decorativo, enquanto o boi não era aceito nessa função. Não servia para ganhar dinheiro: é famosa a história verídica de que um fazendeiro que, assustado ao saber o preço de um quadro de Humberto, disse que, com todo aquele dinheiro “por um boi pintado”, ele compraria “vários de verdade” e teria muito lucro. Na verdade, estava errado – a valorização dos quadros de Humberto superou, em muito, a lucratividade que o fazendeiro teve ao investir em gado o mesmo valor que teria pago naquele quadro. Este erro apenas sublinha o fato de que o Boi de Humberto foi, por algum tempo, inapreensível 28 ver p. - 425 - - 175 pelas categorias existentes, e por isso era potencialmente mais transformador que qualquer discurso militante, por mais contundente que se pretendesse. Portanto, tal desenvolvimento apenas reforça a imprevisibilidade, a indeterminação e o caráter do novo na obra de Humberto. Esta ausência de definição, de docilidade da produção cultural em se deixar aprisionar nas categorias existentes, foi também experimentada pela música da MLC: nem regional, nem folclórica, nem puramente rock, oferecia-se, igualmente, como enigma, e, recusada pela sociedade, embaralhava as categorias existentes, possibilitando um reordenamento delas. Ao menos por algum tempo. Talvez Humberto pudesse ter dito tudo o que queria dizer sem se remeter a um ícone local, como o Boi. No entanto, ao manipular este elemento, conseguiu estabelecer contato – ou seja, comunicar, o que talvez não houvesse conseguido, caso tivesse proposto um signo alheio ao repertório médio de seus receptores. Mas comunicar seria apenas o primeiro passo na estratégia do artista. Seu intento era, ato contínuo, provocar estranhamento, tal como o entendiam os formalistas russos e como Umberto Eco comenta: O efeito de estranhamento ocorre desautomatizando-se a linguagem: a linguagem habituou-nos a representar certos fatos segundo determinadas leis de combinação, mediante fórmulas fixas. De repente um autor, para descrever-nos algo que talvez já vimos e conhecemos de longa data, emprega as palavras (ou os outros tipos de signos de que se vale) de modo diferente, e nossa primeira reação se traduz numa sensação de expatriamento, numa quase incapacidade de reconhecer o objeto, efeito esse devido à organização ambígua da mensagem em relação ao código. A partir dessa sensação de “estranheza”, procede-se a uma reconsideração da mensagem, que nos leva a olhar de modo diferente a coisa representada mas, ao mesmo tempo, como é natural, a encarar também diferentemente os meios de representação e o código a que se referiam. A arte aumenta “a dificuldade e a duração da percepção”, descreve o objeto “como se o visse pela primeira vez” (como se não existissem já fórmulas para o descreverem) e “o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa compreensão a significação que veicula, mas criar uma percepção particular do objeto” (...) (Eco, 1976, p. 70. Os trechos aspeados são citações de Chklovski e Erlich) Provocando estranhamento por meio da desautomatização da linguagem da representação do Boi, o que é dizer, por meio do aumento da ambiguidade da mensagem, Humberto levaria seus receptores a mergulhar no código, a inquirir-se sobre o que havia por detrás dessa mensagem que produzia tal efeito – o que é uma característica da mensagem - 176 estética. No entanto, o efeito estético não se resume a este exame estrutural da obra, envolvendo também – e principalmente – uma dimensão política. Tal movimento traz a possibilidade de devolver os receptores modificados à realidade anterior. Ou seja, os receptores do Boi de Humberto que se identificaram com o pensamento do artista expresso em sua obra, certamente saíram transformados da experiência. Dificilmente veriam um boi novamente da mesma maneira – e todo o cortejo de seres humanos que desenvolvem seu trabalho à sua volta. Sua realidade havia sido transformada pelo trabalho visual. E, ao passarem a se relacionar com essa realidade transformada, poderiam vir a contribuir para transformar as realidades de outras pessoas. Este é o percurso sintetizado por Humberto, em que a estética participa da transformação da realidade (neste caso, desautomatizando-a, exibindo o que oculta, “Lembrando o que não se diz”, como na letra de “Sonhos guaranis”, possibilitando sua tematização e discussão) ao dizer, simplesmente, “Eu trabalhei nessa luta”. Este é, também, o percurso que Humberto orientou os compositores da MLC a fazer, embora de maneira com certeza diferente da que se tentou, aqui, comentá-lo. Como foi dito, Humberto foi um ideólogo principal de todo este movimento que terminou assumindo tanta importância para muitas pessoas no MS. A partir da influência de Humberto, a MLC propiciou a estas pessoas um meio para reflexão sobre sua própria situação periférica, em um estado marginalizado pela divisão regional do trabalho, que lhe destinou o lugar de produtor primário. Sendo assim, enquanto os discursos dominantes viriam a favorecer, a partir da divisão, a entronização da MLC como identidade representativa do MS, um exame adequado demonstra a incoerência de se designar por “uma identidade” tal teia heterogênea, plural e conflitiva. Assim, embora não se possa sustentar que a MLC expresse “a identidade” do MS, ela proporcionou um sentimento de pertença e autorreconhecimento ligado a uma maior autoestima por parte de uma certa população. Estes moradores urbanos do MS queriam pensar - 177 sua situação periférica local a partir de sua participação no mundo contemporâneo do presente, globalizado, mediatizado e tecnologizado. O movimento se tornou viável, e ainda é, por tratar, em suas canções, de questões relevantes para uma parcela significativa de pessoas com preocupações culturais específicas, que não se sentiam representadas unicamente pelas músicas feitas nos grandes centros e sem relação com o local, nem por músicas rurais ou tradicionais. Entre os participantes na construção da MLC enquanto reflexão sobre a realidade social a partir da cidade de Campo Grande, Humberto não foi o único, pois devemos lembrar que já estavam em atividade intelectuais, pesquisadores e críticos como Guizzo (autor de “Mané Bento”) e Glorinha, entre vários outros agentes culturais já então comprometidos com esta reflexão. No entanto, na posição de intelectual articulado, Humberto foi uma grande influência sobre aqueles jovens dos anos 60 que iriam, na década seguinte, tornar-se os primeiros a propor a MLC. A começar com seu irmão Geraldo, como o mesmo explica: [Humberto] foi um poeta maravilhoso, divino, talvez o poeta que mais tenha me influenciado em toda minha vida, porque acho quando [sic] o Beto largou a poesia e pegou a pintura eu acho que houve uma doação da poesia dele pra mim porque eu como garoto pesquisava muito as suas poesias, eu vivia nas poesias do Beto, achava a coisa mais linda, mais estranha (...) A poesia foi herança em vida graças a Deus, do Beto! (Geraldo Espíndola apud Simões, [1984?]) Ou com seu outro irmão Celito, também em suas próprias palavras: Minha família é toda musical assim desde criança recebi influência nesse sentido de minha mãe que sempre gostou de cantar e de fazer versos e de Beto (Humberto Espíndola) que marcou a todos nós: Geraldo, Tetê, Alzira com sua presença, abrindonos as portas para a arte. (Celito Espíndola apud Simões, [1984?]) Já Geraldo Roca deixa mais clara a referência ao percurso aludido nestas citações: A gente [Roca, Paulo Simões e Geraldo Espíndola] começou a compor mais ou menos na mesma época [em 1971, quando se conheceram, já compunham; Geraldo começou a compor em 1966], inclusive muito estimulados e orientados pelo Humberto Espíndola. Ele falou, “Vocês querem ser compositores? Vocês comecem a compor uma canção por dia, daqui pra frente”. Isso foi uma coisa que eu nunca esqueci (...) E foi muito importante o Humberto nessa coisa [de compor]. E a visão que ele tem da cultura daqui, que é um saque do cacete... Tinha o Manoel de Barros antes. O Manoel é um poeta, que é um universo que atinge menos gente. Ele é um grande poeta. O maior poeta do Brasil. Mas é um universo mais fechado. O Humberto é pop, no sentido de que, desde o começo, com a coisa da Bovinocultura, aquilo ali é uma - 178 formulação que é clara, ela é inteligível imediatamente, entendeu? Ela é uma coisa [a partir da qual] você pode alavancar coisas suas, pode derivar coisas. Ele é muito importante, e o Manoel de Barros é, evidentemente, fundamental. São as duas navesmães da cultura, eu acho. Essa é a minha opinião. (Roca, 2009) Quando Roca menciona a imediata inteligibilidade da formulação de Humberto, fica ainda mais evidente o uso de um ícone constante do repertório local básico, embora recalcado, com o fim de provocar estranhamento e atrair a atenção para essa realidade, suscitando sua discussão. Quando ele afirma que, a partir da formulação de Humberto, é possível alavancar coisas suas, explicita-se a adaptação dos gêneros musicais e temáticas locais para uma nova música capaz de chamar a atenção para a cidade em relação com o mundo em mutação, convidando os ouvintes dessa cidade a se deixarem transformar, assim como o Boi de Humberto contribuiu para transformá-los. Por sua vez, Paulo Simões arremata o quadro que está sendo desenhado aqui, desta MLC inicial que, inicialmente sem definição muito clara, a seguir já contando com a orientação de Humberto Espíndola, toma elementos do repertório básico local, no contexto de uma cidade em rápida transformação, e modifica-o em contato com influências globais, provocando estranhamento, questionando o lugar de cada um na sociedade, propondo uma discussão estética e comportamental e lançando uma reflexão sobre os rumos a seguir: [A partir de janeiro de 1969, Maurício Barros e eu passamos seis meses nos EUA. Ao retornar a Campo Grande], em relação aos Bizarros, nós continuamos com o projeto, sem o Geraldo [Espíndola], que tinha se mudado pra Curitiba, na época, com a família. Mas nós reatamos o grupo e passamos a fazer apresentações ensandecidas para o público que assistia. O repertório era extremamente esquisito e desconhecido, tocávamos Doors, por exemplo, ninguém sabia do que se tratava, não passava na TV brasileira, não tinha programa de videoclipe... Então, durante um certo tempo, nós fomos vistos com uma enorme estranheza, “esses guris piraram de vez” (...) Mas foi nessa época também que eu me lembro, mais do que antes disso, que surgiram nossas primeiras descobertas de que por mais modernos que a gente fosse e se sentisse, a gente não podia abandonar as coisas que estavam implantadas lá no fundo da alma e da sensibilidade de quem foi criado aqui. Eu lembro eu mesmo de ter escutado um disco de Tonico e Tinoco que tinha um arrasta-pé que eu levei para o repertório dos Bizarros, não lembro em que situação... nós começamos a achar engraçado botar fogo no circo, e tocar polca com andamentos próximos, misturados com rock, com bateria, com baixo... e a partir daí eu acho que a gente começou a detectar a nossa identidade musical, em construção. Porque, até então, a gente tinha só os restos das identidades perdidas. Campo Grande já não era mais uma cidade do interior. Estava se modernizando, crescendo muito, foi na década de 60, com o impulso do Brasil - 179 Grande, a população do estado inchou, chegaram mais gaúchos, uma segunda leva de gaúchos, uma nova leva de paranaenses, e isso colocou o caldeirão pra ferver (...). Eu tinha começado já, em 68, a compor com o Geraldo Espíndola. A gente se conheceu em 67. Na época nós começamos já, desde 67, a compor juntos. Em 68 é que nós chegamos assim ao auge de nossa prolificidade. Nós compúnhamos muito, várias músicas por dia, sem nenhuma direção, sem ninguém pra nos orientar, a não ser, inicialmente, e depois (um pouco) o Humberto Espíndola, que é uma pessoa que a gente respeitava muito pela inteligência, pela atitude como artista, que se impunha diante da sociedade conservadora, pela competência, pelo reconhecimento que ele tinha fora daqui, e ele nos estimulava muito, ele e a Aline Figueiredo. Era assim quem nos dava uns sopros de estímulo. (Simões, 2009) A posição subalterna do estado como produtor primário, que é predominantemente representado como pertencente ao domínio do “natural”, juntamente com os discursos das elites, que passavam por uma apologia do latifúndio, levaria a MLC, mais tarde, a uma celebração ufanista da natureza, especialmente do Pantanal. No entanto, percebe-se que a defesa do Pantanal, não era, como se poderia pensar, uma preocupação existente desde sempre no MS. Ela passa a se dar, de maneira disseminada, apenas a partir de 1979, como será discutido adiante. Da mesma forma, também não existia na MLC, cujo interesse originário pela natureza derivava da contracultura. Neste caso, a adesão de Paulo Simões ao ideário ecológico não vem de uma preocupação regionalista, mas, ao contrário, de uma influência da mundialização. Quem explica é o cineasta Candido da Fonseca: A ida do Paulinho Simões aos Estados Unidos (...) criou nele a consciência ecológica. Porque eram os anos 60, era o ano da paz e amor, dos hippies, (...) do flower power, (...) e quando ele voltou pra fazer suas músicas ele (...) trouxe essa consciência ecológica, que era uma coisa mais ou menos enxertada, do verde, da natureza intocada, essas coisas. Ela não nasceu, propriamente, de uma consciência ecológica autóctone, ela foi influenciada (...). [I]sso também está presente nas músicas do Geraldo Espíndola (...) (Fonseca, 2009) Quanto a Geraldo Espíndola e seus irmãos, isso é confirmado por Lenilde Ramos: [Nos anos 1960,] nem as pessoas que faziam essas músicas conheciam bem o Pantanal. Elas começaram a se preocupar mais com o Pantanal à medida que o Pantanal começou a ser cantado, começou a ser falado, a ser discutido culturalmente. [Isso veio] na década de 80. Tanto que quando foi feita a primeira Fundação de Cultura, que foi em 79, os Espíndola já faziam músicas e músicas falando do Pantanal, falando de arara, falando de tudo. [No entanto,] [a] primeira vez que eles foram ao Pantanal foi comigo. Em 1980. Eu organizei um show deles em Corumbá, então nós fomos de trem, e era época de cheia, tanto que nunca me esqueço que no retorno foi a última viagem do trem naquele período, porque (...) a água já estava alcançando os - 180 trilhos (...). E eles falavam, “Gente, é a primeira vez que a gente vem ao Pantanal!”. E na verdade nem viram muito do Pantanal, porque a gente viu só Corumbá, demos uma volta de barco, pelo rio, mas foi a primeira vez que eles pisaram no Pantanal. Depois de terem feito já... não sei quantas músicas falando do Pantanal. (Ramos, 2009) Evidentemente, não se questiona aqui a criação liberta das amarras impostas pela representação daquilo que se apresenta como real. Nos termos de uma concepção de criação que privilegia a liberdade de invenção formal sobre qualquer outro aspecto, a suposta fidelidade a conteúdos a serem mimetizados pelas canções não é, de forma alguma, um pressuposto, pelo contrário. Comentar que a consciência ecológica da MLC não nasce de um atavismo ou regionalismo supostamente “autóctone”, mas veio já trazido, ao contrário, pela mundialização, é, ao meu ver, evidenciar a impossibilidade de reduzir o papel dessa música a um esquema regionalista. Ao mesmo tempo, ressalta a historicidade do movimento, instrumentalizado pelos interesses dominantes após a divisão do estado, quando, então, a preocupação contracultural com a ecologia vai, muitas vezes, metamorfosear-se em elogio ufanista do Pantanal como paisagem exótica, “natural”. Resumindo o exposto, a ideologia desenvolvimentista e modernizante dos pecuaristas sempre esteve entretecida com o pensamento de um rumo próprio para o sul do estado, que fosse controlado pelos interesses dessas elites. Estes elementos foram colocados explicitamente desde que se articulou o ideário divisionista, sendo que a tentativa de implantação do chamado Estado Livre de Mato Grosso, ou República Transatlântica de Mato Grosso, data, como vimos, de 1892. A partir da década de 1960, sob o influxo dos múltiplos e influentes debates culturais travados nesse momento através do mundo, da situação local de desenvolvimento (que envolveu a criação de centros de ensino superior), e da rejeição à ditadura e aos pecuaristas enquanto classe dirigente, a população passa a se interessar, de forma perceptível, por uma reflexão sobre sua realidade. É nesse momento, 1968, que Humberto Espíndola e José Octávio Guizzo, pela primeira vez, expõem a própria face da sociedade a ela própria, mostrando o que não se dizia, - 181 sobre o que se emudecia: a sombra do diferente. Assim, os projetos de intelectuais como Humberto Espíndola, José Octávio Guizzo e Maria da Glória Sá Rosa, apoiados pelos setores urbanos de Campo Grande, formados por estudantes, profissionais liberais, funcionários públicos, comerciantes e até operários, como o pai de Lenilde, estimularam os jovens compositores da MLC a fazer suas próprias experiências na direção de uma análise crítica de sua situação periférica (no caso de Lenilde, isso resultou em uma crítica ao preconceito racial e aos papéis sociais da mulher). Isso se concretizou por meio da incorporação, por parte destes compositores, pela via da contracultura, do ideário libertário, ecológico, crítico das relações de poder e favorável a uma integração latino-americana. Após a divisão do estado em 1977, a busca pela definição de uma identidade cultural regional – que, antes, encontrava-se dispersa em iniciativas isoladas, como “Mané Bento, vaqueiro do Pantanal” –, generalizou-se e atingiu um paroxismo. A ideologia da burguesia agrária, que chegava ao controle do aparelho do Estado, passa a organizar um consenso em torno da suposta necessidade de definição dessa identidade. Produzindo um agendamento (cf. nota 6) da questão nos meios de comunicação de massa, mobilizando debates na mídia, influenciando intelectuais, artistas, produtores culturais e formuladores de políticas públicas, que se puseram em campo à procura de traços que permitissem recuperar a “verdadeira” fisionomia do estado nascente, essa ideologia foi eficiente na promoção de um processo de invenção de tradições (cf. Hobsbawm e Ranger, 1984) a partir de elementos regionalistas. Não por acaso, o citado livro de Guizzo é aberto com a seguinte constatação sobre a “moderna música popular urbana do MS”: “A divisão de Mato Grosso em 1977, criando o novo estado, colocou em evidência um dado concreto até então despercebido: somos um povo sem identidade cultural definida” (Guizzo, 1982, p. 5). A MLC viria como resposta ao acirramento desta ansiedade após a divisão. Inicialmente descomprometida com o regionalismo, expressando mais o interesse de jovens - 182 em aproximar os ideais libertários e contraculturais em plena efervescência na década de 1960 a uma reflexão a partir de gêneros musicais e culturas regionais, seu tratamento ao material local não era predominantemente saudosista, sentimental ou ufanista. O movimento teve início por volta de 1970, como foi dito, com os compositores Geraldo Espíndola (n. 1952), Paulo Simões (n. 1953) e Geraldo Roca (nascido na mesma época). Na mesma década a MLC passou a contar com o Grupo Acaba (surgido em 1971 e inteiramente independente da direção tomada pelo trio Espíndola-Roca-Simões, optando por uma direção decididamente regionalista), Lenilde Ramos, Grupo Therra, Celito Espíndola, Tetê Espíndola, Alzira Espíndola, Guilherme Rondon, Maurício Almeida, Iso Fischer, João Fígar, Paulo Gê, Grupo Terra Branca, Almir Sater, Carlos Colman, José Boaventura, Rubens Aquino, Sandra Menezes e Cláudio Prates. Celito, Tetê e Alzira são irmãos de Geraldo, e os quatro foram integrantes do fundamental grupo Tetê e o Lírio Selvagem, o primeiro grupo da MLC lançado nacionalmente, em 1978. Todos estes compositores-intérpretes formam o grupo que surgiu até o final da década de 1970, propondo características estilísticas e ideológicas parcialmente convergentes (o Grupo Acaba, como foi dito, bateu-se, desde o início, por uma proposta essencialmente regionalista, pantaneira e que defendia que a cultura do estado estava ligada a raízes indígenas). Muitos outros grupos e artistas continuariam se incorporando ao movimento nas décadas seguintes, o que ocorre até o momento, com grupos como, por exemplo, o Filho dos Livres. As características da música proposta pelo trio Espíndola-Roca-Simões consistiam, de maneira genérica, em uma fusão de gêneros paraguaios, bolivianos e caipiras com o folk e o rock americanos (representados por Bob Dylan e Simon & Garfunkel, entre outros) e a MPB dos grandes centros urbanos brasileiros (muito presente no trabalho de Geraldo Espíndola, que, em contrapartida, tem menos influência de gêneros paraguaios e caipiras). Os discursos - 183 do movimento em seu nascedouro transparecem no comentário de Paulo Simões sobre as composições feitas por Geraldo Roca, Geraldo Espíndola e ele, em 1971-1972: Tínhamos temas que iam do regional mal feito, porque a gente não tinha realmente uma consciência regional, do regionalista mal pensado, pouco pensado, intuitivo, até o universal, mundial, planetário que desembocava no protesto. Só que este protesto não era ainda decorrente do tipo de protesto estilo Bob Dylan ou à la americana, mas uma coisa herdada diretamente de John Lennon, do inconformismo de John Lennon que era a única coisa marcante na música pop e sempre nos pegava pelo pé aquela mania de ser do contra que ele tinha. Algumas músicas daquele tipo que tentavam denunciar a situação envolvendo o planeta inteiro e não só um estilo regional de criação era o que nos interessava! (Simões, [1984?]) Dialogando com Simões, Geraldo Espíndola complementa: A gente não denunciava apenas um fato regional, denunciava o lance do planeta inteiro. Aí está o meu forte, nisso me pego até hoje! Eu acho que regional é coisa pra jornalista catalogar, porque não importa onde você mora, não importa que o mundo fale línguas diferentes, pois cada um tem um jeito de pensar! (Espíndola, G. apud Simões, [1984?]) Assim, vemos que, em seu início, parte da MLC recusava um ideário essencialista, de suposta pureza às “raízes”. A reflexão sobre a situação local empreendida pela MLC era dinâmica, incorporando ícones como o Pantanal e o Paraguai, mas mantendo-os instáveis, sujeitos a transformações, permanentemente incorporando a eles dados contemporâneos. No entanto, isto não impediu que a ideia de “raízes” emergisse continuamente nos discursos dos artistas da MLC – até nos de muitos de seus proponentes mais jovens da atualidade, dedicados ao rock – e que a recepção a este movimento terminasse por construí-lo de forma vaga e difusa como a expressão da pureza destas raízes (mais uma vez, por que isto era conveniente para os discursos dominantes, agora oficiais). Discursos contrastantes na MLC: regionalismo versus deslocamento Conforme discutimos anteriormente, o Grupo Acaba apresenta características completamente diferentes daquelas propostas pela linhagem fundada por Roca, Espíndola e Simões, embora seja participante da mesma MLC. Surgido no início dos anos 1970, desde o início se volta para uma concepção lírica regionalista em que imperam os temas do Pantanal e dos indígenas da região. O núcleo básico, ideológico e composicional do grupo – que também - 184 contou, por muitos anos, com Vandir Barreto, Luís Porfírio, José Charbel Filho, Jairo Lara, depois incluindo Adriano Praça, e, nos anos 1990, Odon Nacasato – são os irmãos Chico e Moacir Lacerda, filhos de pescador e músico. Nascidos, respectivamente, em 1944 e 1951, em Albuquerque e Porto Esperança, no Pantanal, evidenciam forte identificação com os tipos humanos e as coisas do lugar, dedicando toda a sua carreira artística a decantá-los. A contraditória categoria da autenticidade, portanto, é fundamental para compreender a proposta destes dois irmãos. Que, apesar de bem sucedidos como publicitário (Chico) e engenheiro (Moacir), dependendo integralmente da vida urbana para sua sobrevivência, carregam até mesmo em sua linguagem verbal evidentes traços do falar pantaneiro. Estes traços foram mantidos aqui até o ponto permitido pelos limites da representação gráfica não-fonética. Ao contrário do estilo introvertido de Paulo Simões, do perfil MPB de Geraldo Espíndola e da ironia roqueira de Geraldo Roca, o Acaba se caracteriza por uma forte e dramática presença cênica (um exemplo da qual pode ser vista no vídeo em anexo Show Prata da Casa Parte 5.mp4, em 6:20). Em suas performances, o grupo utiliza vestimentas de algodão cru (tomadas aos pantaneiros, que as usam em razão do intenso calor úmido) e muitos instrumentos de percussão, com destaque para chocalhos indígenas amarrados nos tornozelos. Também se diferencia de maneira muito evidente por empregar, com bastante frequência e também de maneira dramática, sons que procuram mimetizar aqueles da natureza e dos povos da floresta, além do fortíssimo e súbitos contrastes entre som e silêncio. Pode-se dizer que sua estética pouco tem a ver com o espaço urbano, a bossa nova, a Tropicália e a Jovem Guarda, que são, ao contrário, bastante importantes para os estilos dos outros compositores citados antes – além de traduzir discursos desenvolvimentistas e transformações comportamentais na sociedade urbana, o que permite situar ideologicamente as diferenças propostas pelo grupo. Embora as referências à fauna e flora do Pantanal sejam retiradas, principalmente, das vivências em primeira mão, as menções aos índios são baseadas principalmente em leituras, - 185 pois os índios heroicos que eles cantam já não mais existiam muito antes de nascerem. Suas letras priorizam, assim – em suas próprias palavras –, uma busca de valorização das raízes sul-mato-grossenses. O Grupo Acaba faz sua aparição no cenário da música popular local em 1970, vencendo a edição daquele ano do Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande (não há registro definitivo sobre a numeração ou mesmo a denominação dos festivais, após a edição de número II, de 1968). A música foi “Na minha canoa só cabe Lucinda”, e com ela ganharam os prêmios de melhor composição e melhor interpretação (Fonseca, 1981, p. 89). A vitória dessa música e o estímulo ao grupo representam fatos isolados no processo de consolidação da corrente regionalista, iniciada por Guizzo no I Festival, e que subscrevia uma proposta discordante com relação ao projeto de Humberto Espíndola e dos outros compositores da MLC para a representação e discussão do estado. Este processo de consolidação apenas se afirmaria, realmente, após a divisão do estado, quando se tornaria, finalmente, o discurso predominante. Mas, naquele momento, o que predominava eram manifestações da sociedade local, tanto em favor da urbanização, quanto ambíguas, senão contrárias às elites pecuárias, como vimos. Analogamente, o início do grupo, que “levantou a bandeira” da “primitividade de uma música regional”, se dá, segundo contam, em meio a um contexto adverso, em que predominava um interesse por música estadunidense e uma rejeição à cultura regionalista: 29 Moacir – O Grupo Acaba levantou pela primeira vez a bandeira da música pantaneira. Ninguém, até então, assumia a primitividade de uma música regional. Todos os músicos do Mato Grosso do Sul... primeiro de tudo, eles tinham muita vez a influência do rock, muita vez das músicas urbanas... Mas o Grupo Acaba, nós começamos a fazer um trabalho em cima da regionalidade. Sem nenhuma pretensão, também, de ter um grande trabalho no final, mas começamos. De uma maneira contínua e se voltamos sempre ao Pantanal porque era nossa origem. A gente tinha essa sensibilidade, compreendia essa questão, e uma outra coisa: foi um grupo que levantou a bandeira da 29 Uma vez que a entrevista foi feita coletivamente com Chico, Moacir e Adriano Praça, há intervenções mútuas nas falas. Em vista disso, optou-se por identificar cada autor de cada intervenção, com a entrada da referência feita como Acaba, Grupo. - 186 ecologia. Não somente de cantar um Pantanal, de beleza, mas um grupo de ginasianos, já preocupados com ecologia. Então a gente já tinha essa questão ecológica, que hoje virou tema. Porque, até então, você jogar um carandá, caraguatá numa música, isso era até pejorativo... jacaré... [símbolo do “atraso”]. As pessoas queriam uma linguagem mais moderna... Chico – ...não percebiam [a poesia] da palavra jacaré... Moacir – Então nós começamos a sonorizar essa linguagem, também, e nessa sonorização uniu a música, a poesia, e foi entrando o lado ecológico, foi entrando também o lado social... (Acaba, 2009) Os festivais, plataforma de lançamento do grupo, como foi dito, são contextualizados justamente por haver representado, segundo eles, uma oportunidade de se apresentar uma música diferente, que não teria outro espaço – o que confirma a ausência de uma recepção favorável ao regionalismo por parte da sociedade local: Moacir – Houve uma época dos grandes festivais... Era uma oportunidade, também, pra se apresentar uma música diferente. Não tinha outros espaços. Os conjuntos que tinha era conjunto de baile. Era conjunto de baile, rock, twist, esse negócio tudinho... e também tinha as músicas paraguaias... que é boa, salutar também... isso faz parte da própria identidade, também. Mas uma música mais de raiz, retratando mais as belezas, as cores da região, essa música não tinha espaço, não existia espaço. Então os festivais não deixaram de ser um laboratório, pra que grupos diversos ali, grupos de estudantes, apresentavam, de alguma maneira, uma composição. Enquanto que os festivais tinham um conjunto que davam a base musical [acompanhavam] pra todos os participantes, o Grupo Acaba se apresentava já de maneira integral, com todos os seus participantes, pra dar aquela sonoridade desejada. Porque, se você fosse pegar um conjunto de apoio, um conjunto de baile, ele não ia expressar o que dizia uma composição [nossa]... Foi em função disso aí que começou a ter essa linguagem regional, os efeitos, os chocalhos, então começaram a aparecer isso nas músicas, e isso deu um... diferencial. E desse diferencial, veio surgindo também, nessa esteira, a divisão do estado. E quando se divide o estado, havia a necessidade do novo estado também, de ter uma identidade cultural, e começou a se discutir a identidade cultural do estado. E nessa identidade cultural, aí o grupo tinha também... De certa maneira, lastreou, não é isso? E de certa maneira, influenciou praticamente a todos os outros músicos de Mato Grosso do Sul. De alguma maneira influenciou. Ou forçou a eles também a buscar a linguagem regional, a linguagem pantaneira, como uma expressão da verdadeira identidade. (Acaba, 2009) A fala de Moacir reforça, portanto, o que vem sendo sustentado aqui: a MLC, inicialmente, não possuía maior inclinação pelo regionalismo, ao contrário do Acaba. Entretanto, a partir da divisão do estado, sobreveio a “necessidade” de uma identidade cultural, que se torna o centro das discussões e influencia praticamente todos os músicos a buscarem uma linguagem regional, pantaneira, como “expressão da verdadeira identidade”. A esse ponto, coloco uma - 187 questão que só poderemos analisar posteriormente: o que é, na música (não nas letras) do Acaba, uma “linguagem pantaneira”? Consoante ao discurso de descoberta de uma identidade existente desde sempre, a poética do grupo é inteiramente baseada na concepção de que a cultura já está dada na natureza da qual surge: Chico – Nós vivemos num país que é um continente. Você pega o Nordeste, a criança ali já nasce com seus dons, com seus coloridos, com seu ritmo, você que está no Rio de Janeiro, você sobe o morro, o samba ali tá presente, de uma forma natural. O Pantanal, ele é conhecido, ele é percebido, pelos sons que ele tem, pelo movimento que ele tem, pelas batidas de peixe [faz sons percussivos, fortes], então essa é a música pantaneira (...) É a natureza em si. Esses gritos, desses pássaros... Você vê que a Tetê [Espíndola] faz um trabalho muito bonito em cima disso... Todos esses ruídos... Então, a música no Pantanal já está presente... Eu acho que isso é que é o Acaba... E talvez dentro disso a gente faz uma música diferenciada... meia rude... rústica... (Acaba, 2009, grifo meu) Assim, a poética do Acaba se funda em um processo de descoberta, um achado, um desvelamento das raízes que estavam à disposição de quem as quisesse procurar, e não uma técnica, uma construção, um artifício e uma tecnologia: Chico – E tem uma outra coisa muito importante que nós já tínhamos plena consciência do que nós estávamos buscando. Esse diferencial... e de marcar [bate os pés, com força, no chão] aqui é o nosso chão! Aqui é a nossa linguagem! Aí começamo a perceber que [declamando] lambari, caraguatá, sauá, pacu peva, armau: isso é poesia! Tarumã, aguapé; acupari; jenipapo... qualquer outra fruta, jatobá... Tava fácil! E ninguém tinha percebido isso... Depois acabou influenciando os outros companheiros mais novos, né. (Acaba, 2009) Da mesma maneira, a ecologia e os indígenas surgem entre seus temas principais por uma necessidade natural, a de sobrevivência: Chico – Depois voltar para os problemas dos povos menos favorecidos... dos povos indígenas, que continuam sendo dizimados... a palavra ecologia... [o Acaba foi] o primeiro grupo a nível de Brasil a levantar essa bandeira... Moacir – Até da música indígena também... foi um dos primeiros grupos a falar da música indígena. A questão indígena. Da cultura... Hoje não, já despertou uma consciência... mas não foi uma coisa premeditada, assim... foi por uma questão natural. Quando você tem uma origem, naturalmente você tá na sua origem. Isso virou depois uma linguagem popular e uma necessidade até mundial. Você cuidar das minorias, cuidar da cultura, cuidar dos ecossistemas... é questão de sobrevivência, né. Moacir – O Acaba vem de uma conscientização ecológica... se não tomasse uma consciência, mesmo... Chico – Abre os olhos! Abre os olhos! Senão isso aqui acaba, como está acabando, infelizmente! Tem regiões que já foram totalmente pro brejo... E as outras, - 188 infelizmente, vão sofrer essas consequências... já sofrem hoje... e vai sofrer muito mais... Moacir – É, o grupo saiu com essa bandeira... nasceu com essa bandeira e... prosseguiu, né? (Acaba, 2009) Se a vitória no festival de 1970 foi um fato isolado no processo de consolidação da corrente regionalista30, esta corrente, no entanto, como foi dito, não se tornou hegemônica a não ser depois de vários anos, e sob o influxo de várias determinações, o que ressalta a historicidade desta transformação. Com efeito, após a vitória no festival de 1970, que foi representativa por envolver, de maneira geral, todos os compositores da cidade que se interessaram em participar, o Acaba – e, por extensão, o regionalismo – teria outra expressiva vitória apenas em 1979. Isso porque, apesar de continuar participando nos festivais anuais seguintes, o Acaba obteria apenas segundas colocações, no máximo. Além disso, esses festivais já são bastante esvaziados. Isto se deu, segundo Candido e Simões, devido à atuação da censura. “Esse esvaziamento do festival [devido à censura], como um dos raros espaços abertos ao debate de novas ideias, causa naturalmente a extinção desse ciclo, marcado pela participação ativa da comunidade” (Fonseca e Simões, 1981, p. 19). Pode-se ter uma ideia do interesse secundário despertado pela proposta regionalista se acompanhamos os resultados desses festivais da década de 1970. Em 1971 (Sá Rosa et al, 1992, p. 118) ou 1972 (Fonseca e Simões, 1981, p. 20) vence Geraldo Espíndola, com a lisérgica balada “Ponha na sua cabeça”: Ponha na sua cabeça um pedaço de nuvem Ponha na sua cabeça um pedaço de céu Ponha tudo na cabeça antes que eles venham Ameaçando desacreditar31 nosso Papai Noel Neste festival, o Acaba obteve o segundo lugar, com “Presiganga” (Constantino Pereira/ Moacir Lacerda). 30 além do reconhecimento da evidente qualidade da elaboração da performance integral do Acaba (letra, música, arranjos, execução, vestuário, presença cênica, iluminação, etc.). 31 “A censura cortou, nesse trecho, o verbo Assassinar” (Fonseca e Simões, 1981, p. 20). - 189 Em 1973 o festival muda de nome, para FEMACRIM (Festival Matogrossense de Criatividade Musical). Foi vencido por “Meteorito” (José Boaventura/ Rubens de Aquino), que, segundo Fonseca e Simões, “tinha como tema a própria comunicação, e suas múltiplas possibilidades/ dificuldades na era eletrônica” (Fonseca e Simões, 1981, p. 21): Nada está parado! Os dicionários caem das mãos... E a palavra partiu! (...) Perdeu-se! Mãos estendam suas mãos Ergam aos olhos um livro E a palavra partiu! Da minha, da sua, da nossa vossa articulação (...) e a palavra segue seu projeto secreto Trajeto direto Conduzindo o fim do século A um reinício Num rodízio de sons vocais O Acaba obteve mais um segundo lugar, neste festival, com “Terra primitiva” (Moacir Lacerda/ Chico Lacerda). O último Festival Estudantil foi realizado em 1974, e contou com a participação do Quinteto Violado, que fez um show no intervalo e tomou parte no júri. Nesta edição, o Acaba obteve o terceiro lugar, com “Pachico” (Moacir Lacerda/ Luís Porfírio/ Chico Lacerda). A vencedora foi “Recado”, de Lenilde Ramos: Você que está vivendo uma farsa consciente Feita para contentar aos outros, pura e simplesmente ...você já se esqueceu o que é o vento nos cabelos Que também se sofre para ser mais verdadeiro... Tente quebrar o muro que você construiu Solte os elos da corrente que você mesmo uniu... Estes foram os festivais organizados por Glorinha. Em 1975 houve mais um festival, organizado por Inahlu Metelo, no Clube Libanês, vencido por Geraldo Espíndola, com “Voos claros”, em homenagem ao falecido parceiro Antonio Mário (Sá Rosa et al, 1992, p. 118). - 190 “Voos claros” (Antonio Mário/ Geraldo Espíndola) Te soltei nos anéis dos meus olhos nus Pra que me pudesses entrar Pra que visses por dentro o amor Que eu trago espalhado em mim. Pra que possas saber que eu vim Pelo menos mais esta vez Te abrigar nos meus braços Te saber não distante Te querer mais que antes. Vem voar entre as cores da solidão Faz nascer teu afeto em mim E se deixe em meu coração E passeie tua nave nua Por todo meu corpo feliz Por conter entre o sangue O fruto da espera tua. Vou voar entre as praias do teu amor Vou nascer como o Sol à Terra Ser a vida que não se enterra O meu corpo calado da paz No teu beijo infinito É capaz de me transformar Em duas lágrimas azuis... Estas composições vencedoras nos festivais de depois de 1970 e até 1975 são extremamente significativas das ideologias libertárias e contraculturais dos anos 1960 e 1970, que se tornaram extremamente significativas para muitos daqueles jovens envolvidos com a música, o teatro, as artes visuais na cidade de Campo Grande. Verifica-se que todas elas apontam, não para as coisas do chão, mas para as coisas do ar. Trata-se de “por na cabeça um pedaço de nuvem”, “de céu”, constata-se que “nada está parado”, que as palavras se desprendem de dicionários – fixadores de sentido que, inúteis, caem das mãos, deixando partir as palavras. Livres, estas passam a obedecer, não à vontade de um autor, mas a seu próprio “projeto secreto”... Na canção de Lenilde, mais do que “quebrar o muro” ou “soltar os elos da corrente”, é significativa a referência a “vento nos cabelos”, coisas do ar – vento e cabelos. Finalmente, nesta canção – descrita pela recepção de seu público como sendo de rara intensidade – de Geraldo Espíndola, com participação autoral do músico invulgar e amigo assassinado Antonio Mário (em anexo, na gravação de Tetê e o Lírio Selvagem), são marcantes, neste contexto, os verbos “soltei”, “voar”, “passear” e os substantivos “nave”, - 191 “corpo” e “nua” (os dois últimos, ligados à ideia de superfície). “Terra”, que é, nas canções sertanejas e nativistas, símbolo tradicional da territorialização, lugar das raízes, aqui, remete ao planetário, universal. Além disso, tem seu sentido expelido para o exterior (“nascer”), radicalizado por se tratar do movimento do Sol, que é totalmente externo – e livre – em relação à Terra (qualidades transferidas ao amor liberto de amarras entre o eu lírico e seu objeto, por uma associação de equivalência). Mais ainda, o verso seguinte estabelece uma oposição entre vida (que permanece após a morte) e o que está enterrado (o corpo sem vida), evidenciando uma associação implícita entre vida e superfície. Portanto, essas canções não buscam aprofundamentos, não buscam raízes, mas o que está na superfície, o que é fluido, o que tem movimento – ar, nuvem, palavras, cabelos... Buscam o não-estabelecido. Como tal, elas se articulam aos ideários já mencionados, tanto de uma negação contracultural e libertária do conservadorismo de uma sociedade regida por códigos morais agrários quanto de uma MLC que buscava referências cosmopolitas, em oposição a uma música regionalista32, de raiz. É evidente que esta postura renovadora foi possibilitada por discursos de modernização alternativa, libertária, que se relacionavam de maneira complexa e contraditória aos discursos modernizantes de consolidação da atividade pecuária pela via do desenvolvimento capitalista na região, que instituiu como valores a abertura às metrópoles, ao conhecimento técnico, à atualização cultural. Em certo sentido, a MLC, como todos os setores urbanos de Campo Grande, constituiu-se a partir de suas relações com esses discursos modernizantes, como seu outro – o que implica conflitos, rejeições, definições por oposição, acomodações e consensos parciais. Estabelece com os discursos dos pecuaristas um conflito, na medida em que os papéis sociais produzidos por tais discursos, pela estruturação 32 Não foram feitas análises dos elementos musicais destas canções porque a maior parte delas não foi registrada e não permaneceu na memória coletiva. Agradeço a Paulo Márcio Bacha ter-me chamado a atenção para a particularidade de certas canções dessa época, que valorizavam a ideia de superfície em oposição à de raízes. - 192 econômica e cultural das atividades agrárias, entram em contradição com as novas configurações que caracterizaram o período. Diferentes papéis eram desejados por uma sociedade urbana aberta às transformações mundializadas que chegavam pelos meios de comunicação de massa, pelas manifestações radicais e a inclinação à esquerda que caracterizaram os anos 1960 e 1970. Coube à música (do Litoral Central) construir discursos próprios a partir desses outros discursos circulantes (inclusive musicais), retendo seu próprio grau de determinação social e efetividade material. Esta característica fundamental da MLC – a procura do movimento e a atração pela indeterminação – não é encontrada apenas em músicas dos festivais. Na MLC como um todo, elas não são poucas. Como representantes dessa vertente podem-se citar “Mochileira”, “Litoral central”, “Rio Paraguai” e “Polca outra vez”, de Roca, “Itaverá”, “E Deus criou o vento”, “Rosa em pedra dura”, “Em pira lenta”, “Vida cigana”, “Fala bonito”, de Geraldo Espíndola, “Estranhas coincidências”, de Guilherme Rondon e Paulo Simões, “Mês de maio”, de Almir Sater e Paulo Simões, “Rumo a 2001”, de Guilherme Rondon e Paulo Simões, “Mais um verão”, de Almir Sater e Paulo Simões, “Ordem natural das coisas”, de Guilherme Rondon e Paulo Simões e “No circo das ilusões”, de Guilherme Rondon e Paulo Simões. Uma vez que estas características do movimento e da indeterminação são fundamentais para a compreensão dos discursos da MLC, é necessário, para começar, discutir aqui alguns poucos aspectos das letras de duas canções em especial. Geraldo Roca situa estas duas canções, também surgidas na primeira metade dos anos 1970, como paradigmáticas da nova música que começava a se constituir com os elementos já citados: elementos mundiais, linguagem urbana, desapego a raízes e profundo desejo de movimento: A minha visão desse troço é que, a partir de duas canções, que são “Trem do Pantanal”, que é do Simões e minha, e o “Cuñataiporã” [Geraldo Espíndola], começou a haver essa “contaminação”, digamos assim. Antes, eu nunca vi nada remotamente parecido com isso. A gente tinha uma ou outra banda de rock aqui. O Simões fez um negócio de rock’n’roll num ano e no ano seguinte a gente começou a tentar misturar rock com essa história sem resultados muito frutuosos. Eu não me lembro de nada antes disso. E essas duas canções são realmente... Seja a temática delas... Ela não fala - 193 do peão, do peão boiadeiro. Ela já saiu disso. Ela é música popular, ou música folk, ela já não é mais um regionalismo, como Délio e Delinha, por exemplo. Ela já é uma outra coisa. (Roca, 2009) “Trem do Pantanal” (Geraldo Roca/ Paulo Simões) Enquanto esse velho trem Atravessa o Pantanal As estrelas do Cruzeiro Fazem um sinal De que esse é o melhor caminho Pra quem é como eu Mais um fugitivo da guerra Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal O povo lá em casa espera que eu mande um postal Dizendo que eu estou muito bem vivo Rumo a Santa Cruz de La Sierra Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal Só meu coração está batendo desigual Ele agora sabe que o medo viaja também Sobre todos os trilhos da terra Rumo a Santa Cruz de La Sierra “Cuñataiporã” Espíndola) (Geraldo Onde você quer ir, meu bem? Diga logo pra eu ir também Você quer pegar aquele trem? É naquele trem que eu vou também É pra Ponta Porã Cuñataiporã chero rai ro É pra Corumbá É lá que eu vou pegar um barco E descer o Rio Paraguai Cantando as canções Que não se ouvem mais Nas letras das duas canções, um novo eu lírico se posiciona como modelo identificatório para o campo-grandense, que começa a poder participar, pela primeira vez, dos discursos transnacionais, políticos, culturais, geracionais e comportamentais, sem ter que recalcar sua realidade objetiva. Pantanal, Santa Cruz de la Sierra e Rio Paraguai remetem aos laços que unem Mato Grosso e Mato Grosso do Sul à América Platina. A referência a estes signos indica a incorporação dos ideais contraculturais e do desejo de cosmopolitismo e contemporaneidade ao universo local e a uma reflexão própria, situada. Não seria mais necessário à canção de Campo Grande estabelecer seu setting nos EUA, Europa, Rio ou São Paulo, como no período anterior, em que utilizava o rock inglês, estadunidense e a Jovem Guarda para exprimir aqueles desejos. Por sua vez, o tropo do movimento, da itinerância, que viria a ser outra das marcas importantes da canção da MLC, como parte das poéticas do deslocamento, indicaria tanto a histórica indefinição de Campo Grande, dividida entre uma - 194 realidade agrária e diferentes discursos de modernização, e a ânsia por transformações, expressa no tropo também marcante da indeterminação: O Geraldo Espíndola fala do que, em “Cuñataiporã”? Ele fala de alguém que tá na estrada e quer pegar uma mulher que tá próxima dele e levá-la Rio Paraguai abaixo. O “Trem do Pantanal” é alguém entrando via Pantanal, de trem, na Bolívia, fugindo de alguma coisa. Um drop-out, ou alguém ligado à guerrilha, não fica muito claro. É sempre um itinerante, é sempre uma coisa assim... E isso aí ficou muito marcado, na música daqui. Nas letras das canções, por exemplo, essa coisa do itinerante, do andarilho, ele é um personagem meio que fundamental. [Isso é muito importante], é, porque anteriormente, as letras das canções, a persona da letra da canção, quem tá dizendo isso, o personagem que tá dizendo aquilo ali, ele é um boiadeiro, ele tá com o [revólver calibre] 38 na cintura, e depois dessas canções, a partir dessas canções você tem um outro personagem, ele não é um peão boiadeiro, ele não é um fazendeirão, ele não é nada disso, ele é uma outra coisa. (Roca, 2009) Identifica-se no traço inovador, desenraizado, dessas novas experiências, a diferença fundamental introduzida pelos contraditórios discursos de modernização verificados por esta etnografia. Estas canções iam a contrapelo, tanto do desenvolvimentismo exclusionário, quanto dos discursos ufanistas e conciliadores do regionalismo, ao propor um diálogo entre o rural, a América Latina e o mundial: Ou seja, sem intenção nenhuma, a gente, de certa forma, [em vez de] falar com o mato-grossense, a gente começou a falar com todo mundo, com o ser humano. A diferença fundamental é essa. Esse personagem novo, ele pode falar com o americano, com o francês, com todo mundo. Por sinal, a gente viajou com essas canções, e é exatamente o que acontecia, você tinha francês, fazendo esse caminho aqui [para a Bolívia, Peru e restante da América do Sul], alemão, italiano, todo mundo. Era uma coisa engraçada, porque era uma coisa meio ecumênica, interessante (...) Você passava pela estação de trem, a Noroeste do Brasil, e tava cheio de gente com mochilas, de todos os lugares do mundo. Indo pros Andes por aqui. (Roca, 2009) Por sua vez, Celito reforça a importância, para essa nova música, do imaginário do fluxo e do movimento, ao conectar o rio Mississipi ao Rio Paraguai. Além disso, constrói uma outra associação. Esta, especificamente musical, aproxima o blues e a polca paraguaia/ chamamé, e tem o poder de levar ainda mais longe a metáfora (e o desejo) de desenraizamento e liberdade: “Cuñataíporã”, do Geraldo Espíndola, “Sonhos Guaranis”, de Almir Sater e Paulo Simões, “Rio Paraguai”, de Geraldo Roca, “Indiazinha”, uma música minha que não tem dez anos ainda... estas músicas, realmente, elas são uma síntese dessa conversa que nós estamos tendo aqui. Que é a utilização desses elementos de uma maneira totalmente rock’n’roll de se fazer, meio rock, meio folk... Você tem que entender também que há uma semelhança muito grande dos elementos do chamamé, da polca, - 195 com os elementos do blues. Inclusive o Rio Paraguai, como um condutor natural dessa cultura, e o Mississipi da outra. E os ritmos também são ternários. A visão de mundo dos negros americanos é bem diferente da visão de mundo dos índios e dos malucos paraguaios daqui... Isso é que faz a diferença, mas se você for analisar a quadratura, a quadratura é a mesma. É a mesma! A polca e o chamamé, quando você toca I, IV e V graus, e o blues, quando você toca I, IV e V graus, há uma quadratura que você respeita, são tantos compassos no acorde I, tantos no acorde IV e tantos no acorde V, e no chamamé e na polca é a mesma coisa. Isso aproximou, na cabeça dessa geração, que é apaixonada por chamamé... O blues, que é a mãe e o pai do rock, do jazz e tudo mais (...) e a polca e o chamamé, [que são] o pai e a mãe dessa música que a gente está criando aqui. Isso nos aproximou e muito, quando começamos a perceber, todos esses elementos muito contemporâneos, flower power, de libertação, de tudo, com os elementos muito particulares (...) e muito semelhantes [da cultura local], e a gente começou a utilizar, também, isso. (Espíndola, C., 2009) O contexto da criação de “Trem do Pantanal” também ajuda a iluminar o processo de construção dessa nova concepção musical apoiada nos traços principais da viagem, da itinerância, do deslocamento de sentido, do cenário local em diálogo sem hierarquias com o cosmopolita, tudo isso organizado em torno de um coletivo. Em 1974, Simões faz uma rápida viagem à Bolívia, que provoca profundo impacto em sua sensibilidade. É visível, em sua fala, a importância que teve para ele esta viagem e tudo o que encontrou lá, evidenciando pressentir que este universo seria fundamental para a música que seu grupo de amigos estava procurando desenvolver. Voltando da viagem, “cheguei no Rio e falei pro Roca, ‘olha, a gente precisa ir juntos’, porque é um outro mundo, e eu estava certo. E faz falta pra gente saber disso. Saber, saber mesmo, penetrar... Falei pro Roca várias vezes” (Simões, 2009). Efetivamente, em abril de 1975, Roca e Simões embarcam no trem, então chamado Trem da Morte, em direção aos Andes, via Corumbá, atravessando o Pantanal. Pegamos o trem pra Corumbá e logo na primeira noite de viagem, a caminho de Corumbá, nós começamos a música “Trem do Pantanal”, que de certa forma antecipou o que a viagem apresentaria pra nós. O Roca tinha deixado o violão de 12 [cordas] em cima da cama, na hora de guardar ele pegou o violão e fez uns acordes e assoviou uma melodia e eu disse, “isso aí é legal”. E aí começamos a música, sugeri umas frases ritualísticas (risos) e a música começou logo na primeira noite, mas estava só esboçada. (Simões, 2009) No processo de construção da música, foi fundamental o laboratório muito particular da situação de viagem, em que os compositores se tornaram estrangeiros. E não apenas eles - 196 eram estrangeiros, mas também, em contato com os outros estrangeiros, pessoas de diversas nacionalidades, constituíam um grupo em que o traço identificatório que os unia era exatamente serem todos estranhos uns aos outros, em movimento por uma terra estranha a todos. Esta situação é completamente diferente daquela que se obtém andando nas ruas de uma metrópole, seja o local de residência do observador ou em um outro país. Nesta circunstância, todos se desconhecem, enquanto que, como uma característica peculiar das extintas viagens de trem de Campo Grande até o Peru – roteiro obrigatório para os simpatizantes do ideário hippie nos anos 1970 – todos estavam sempre a encontrar-se. Isso porque se moviam rumo a um objetivo comum, em geral as ruínas peruanas de Macchu Picchu, e utilizando basicamente o trem como meio de transporte (não há muitas estradas naqueles países pobres e cortados por montanhas). Talvez se pudesse aproximar este tipo de viagem daquela empreendida em certas peregrinações religiosas. Entretanto, evidentemente, a identificação do grupo com uma instância paternal, como é o caso das peregrinações, é radicalmente diferente da identificação de um coletivo com um ideal, que é o próprio coletivo, sem o estabelecimento de hierarquias. Devido a este contexto particular, os viajantes desenvolvem uma situação de reconhecimento e afeto gratuito, uma “intimidade com estranhos”, por verem-se repetidas vezes e por saberem-se partilhando uma mesma identidade estrangeira (desculpando-se o oxímoro). Trata-se, ao que tudo indica, de um ritual informal, marcado por um deslocamento, a transposição de um objeto de um domínio a outro. Segundo Roberto DaMatta, o ritualizar, como o simbolizar, é fundamentalmente deslocar um objeto de lugar – o que traz uma aguda consciência da natureza do objeto, das propriedades do seu domínio de origem e da adequação ou não de seu novo local. Por isso, os deslocamentos conduzem a uma conscientização de todas as reificações do mundo social (...) (Matta, 1997, p. 99). Este conceito, de importância central nesta tese, permite a compreensão do que é denominado, aqui, de poéticas do deslocamento, termo aqui utilizado não para significar, literalmente, o - 197 movimento, mas, principalmente, o deslocamento de sentidos, a ressignificação, a restituição de movimento ao processo de semiose, estancado pela imposição do poder dominante sobre ele, que resulta na fixação dos sentidos. E o principal sentido que é deslocado por estas poéticas, o que possui os mais profundos efeitos políticos e sociais, é a percepção de si mesmo, ou seja, aquilo que chamamos, por desejo de simplificar, identidade. É esta entidade supostamente estável e fixa que sustenta as instituições, que de nada valeriam se todo o coletivo anônimo passasse a não reconhecê-las. Transformando as rígidas identidades em posições subjetivas, as poéticas do deslocamento podem, potencialmente, produzir efeitos materiais radicais. Compreendo exatamente esta sensação descrita por Simões, pois fiz a mesma viagem alguns anos depois, podendo avaliar a significância desse laboratório singular para a formação da futura música glocal33 de Campo Grande: Essa viagem não tinha a pressão da outra, nós passamos uns dois meses viajando, chegamos a passar um tempo em Cuzco, quase um mês, alugamos um quarto baratinho... E por estarmos levando instrumentos... [entramos] no fluxo dos mochileiros, aquela comunidade na estrada. Você encontra as mesmas pessoas na viagem, aí você para numa cidade, fica dois dias, uns vão na frente, outros engancham na cidade que vem, você vai formando um grupo, um círculo de relacionamentos (...) Naquela época o trem era um funil que captava esse fluxo em São Paulo, passava por Campo Grande e... O trem era sempre o [veículo] preferido por mochileiros. E levava até Santa Cruz [de la Sierra], onde tinha um pequeno trecho até Cochabamba que tinha que ser de ônibus, depois continuava-se por vários meios até pegar trem de novo pra chegar em Cuzco. E nós começamos a participar dessa comunidade como músicos. (Simões, 2009) Justamente no decorrer deste ritual, que se dava num contexto multicultural, a inacabada canção que viria a se tornar “o hino do MS” desperta interesse: A gente se encontrava nos hotéis, ou em praças, pessoas de várias nacionalidades que começavam a tocar, tinha nossa vez, a gente tocava Bob Dylan, formos armados com gaita, violão, bandolim, mas notamos também que o que mais chamava a atenção era o esboço de “Trem do Pantanal”. A gente tocava os versos que já tinha, assoviava a 33 O neologismo glocal se refere à interferência (na forma de resistências e integrações) da cultura local na produção de uma cultura globalizada. Em termos gerais, diz respeito à mesma necessidade de observar a relativa autonomia da cultura em relação à economia proposta anteriormente pelo conceito de mundialização. - 198 parte que não tinha, fazia solo de gaita, bandolim, e quando acabava os caras falavam, “pô, legal!”, em várias línguas. Algumas a gente nem entendia (risos). (Simões, 2009) A surpresa causada pela recepção favorável levou o compositor a analisar quais, possivelmente, teriam sido as causas deste agrado, eventualmente atendo-se a alguns elementos, na busca pela constituição de um estilo: Isso ajudou a aprofundar a nossa reflexão sobre a identidade. Uma música tão simples, nem tá acabada, não tem uma letra pronta, não sabemos se tem que ter uma segunda parte, e causa tanta impressão nas pessoas. Será que é só pela beleza da melodia? Tem algo mais... Ela tinha talvez, ou muito provavelmente, de uma forma pioneira, segundo me disseram outras pessoas, alguns dos elementos que virão, um dia, a ser conhecidos como formadores da nossa identidade. Tinha o ritmo, que originalmente era de guarânia, um rasqueado lento... Tinha o fato da gente ser brasileiro e cantar em português... Tinha palavras em português, tinha a palavra Pantanal mais como um ícone, não como uma descrição, como interpretação... (Simões, 2009) Como sempre, há mais de uma maneira de interpretar essa referência a “identidade”. Por um lado, deve-se sempre levar em conta que a classe pecuarista, em sua busca por hegemonia a partir da divisão do estado, terminaria por rearticular, parcialmente, a MLC aos seus propósitos, reforçando seus aspectos regionalistas – e a ideia de uma “identidade” tem tudo a ver com isso. Por outro, tratava-se de reinventar a vida na cidade de Campo Grande, justamente destruindo a identidade e transformando-a em fugazes posições subjetivas, desconstruindo os papéis sociais, instituições e práticas formulados por uma estrutura social agrária e conservadora. Para tanto, era necessário afastar-se do regionalismo. Isso foi feito pelo emprego de um gênero musical paraguaio e pela óbvia inspiração no imaginário latino-americano. Nesse momento, como já foi dito, as relações com esse universo eram proscritas pela sociedade conservadora local, avessa à contracultura. Sem dúvida, percebe-se nesta oposição estabelecida entre América Latina e os grandes centros brasileiros, o embate entre a ideologia dos pecuaristas e o projeto contracultural de valorização das culturas platinas. Os pecuaristas, como vimos no Capítulo 1, buscaram ativamente desenvolver laços com São Paulo e Rio de Janeiro para conseguir impor a divisão do estado. Já a ideia de desenvolver uma reflexão local - 199 surgida da posição ocupada pelo estado no interior de uma região subalterna, a América Platina, estabelecendo laços com ela, representa uma polêmica. Tal polêmica era lançada contra a posição dos pecuaristas, dos grandes grupos econômicos nacionais e do poder central, mobilizado, na órbita da hegemonia estadunidense, em torno da ideologia da segurança nacional, do combate ao comunismo e do avanço do capitalismo. Além disso, a letra e a maneira de cantar – coloquiais, isentas de grandiloquência, saudosismo, exotismo ou exaltação – ressaltavam a procura de desterritorialização, ao deslocar os elementos locais (a guarânia, o Pantanal) por intermédio de técnicas e recursos buscados das ondas midiáticas (principalmente o folk rock). “Trem do Pantanal” coloca, realmente, um enigma. Sendo uma melodia simples, sem segunda parte, foi favorecida com esta recepção encorajadora e transnacional em seu nascedouro, sendo esta recepção confirmada, posteriormente, em diversas instâncias. Gravada por diversos artistas de expressão regional e nacional, a canção também passa de boca em boca em um largo circuito não comercial através do Brasil, de corais a igrejas. Neste caso, a prevalência de seu valor de uso, em detrimento de seu valor de troca, é extremamente significativa para uma crítica cultural que não deseja se apoiar em medições positivistas de vendagens ou execução – que, inclusive, são notoriamente inconfiáveis (ver, por exemplo, Neder, 2010). No histórico projeto Prata da Casa, a ser examinado adiante, que reuniu grande parte dos compositores e intérpretes de Campo Grande, em 1982, para a gravação de um LP, “Trem do Pantanal” foi escolhida para finalizar a gravação (também filmada em vídeo) de maneira característica: todos os artistas sobem ao palco e a interpretam conjuntamente. O resultado, se bem que esteticamente caótico, teve enorme importância, pois o ato se tornou altamente simbólico da união do coletivo. Tal união se fez necessária, frente às dificuldades encontradas por esta música para penetrar na sociedade. A partir de então, passou-se a repetir a execução - 200 conjunta de “Trem do Pantanal” em outros dos vários projetos coletivos, que, devido à necessidade apontada, passaram a marcar a produção dos artistas da MLC. Esta marca de “Trem do Pantanal” se mantém até a atualidade. O projeto GerAções (2006) juntou em um CD uma grande quantidade de artistas, sendo que cerca de 30 participaram do show de lançamento, encerrando-o da mesma maneira, segundo conta o compositor, músico e jornalista Rodrigo Teixeira (n. 1969): Não só o público se emocionou, mas vários artistas que participaram do show também ficaram com o ‘coração mole’ nos bastidores. O clima foi de total integração entre plateia e músicos, com direito a pedido de autógrafos e gritos histéricos do público. No final da apresentação, todos os músicos se reuniram no palco para cantar junto o 'hino não-oficial' do estado, a canção Trem do Pantanal. (Teixeira, 2010a) Este aspecto coletivo da MLC, como característica básica dessa música, é ressaltado pelo fato de que vários compositores diferentes começaram a produzir, simultaneamente, músicas que foram recebidas como participantes de um mesmo movimento. Não foram lançados manifestos, a não ser que se considere o LP Prata da Casa como tal, mas mesmo assim, as músicas foram percebidas como integradas em um movimento, articulado de maneira bastante flexível em torno de alguns pontos em comum. Isso não quer dizer que havia homogeneidade estilística ou conceitual entre os vários compositores. Teremos oportunidade de examinar suas produções com mais detalhe, evidenciando a grande diversidade de estilos a diferenciar cada criador. Esse dado ressalta a polifonia constituinte da MLC, a diversidade das vozes colocadas em diálogo e polêmica por esse movimento, e contribui para ressaltar o conceito de poéticas do deslocamento, e seus efeitos materiais. A trajetória de “Trem do Pantanal” ainda contaria com um fato significativo de sua capacidade de aglutinar pessoas. No ano de 2001, uma votação popular em todo o estado estabeleceu “Trem do Pantanal” como a canção mais representativa do Mato Grosso do Sul. A votação foi realizada por meio de urnas eletrônicas, cedidas pelo TRE. Em todo o estado, contou com a participação de 27.698 pessoas. A canção recebeu 12.112 votos (43,73% do - 201 total) e venceu em 52 dos 77 municípios do MS. Em cidades como Aquidauana, Anastácio e Corumbá, por onde o trem passava, a votação nessa música passou dos 70% (RMT, 2001). Deve ser dito que o “Trem” fazia parte de uma lista de dez canções, selecionadas por uma comissão, portanto não se sabe qual teria sido o resultado se a escolha fosse inteiramente livre. O processo é explicado por Evandro Higa, musicólogo e estudioso das manifestações musicais tradicionais paraguaias que participou da seleção: Foi um trabalho conjunto da TV Morena [TV Globo local] com o jornal Folha do Povo, e fui convidado pra integrar uma comissão de pré-seleção de 10 canções que seriam representativas da cultura sul-mato-grossense. O trabalho foi coordenado pelo jornalista Ciro de Oliveira e a gente pôde contribuir (...) ajudando a elencar 10 canções representativas, que depois foram submetidas ao voto popular, das quais saiu vencedora o “Trem do Pantanal”. (Higa, 2009) Entretanto, mesmo assim, a vitória é significativa, pois a canção concorria com outras extremamente marcantes e de vários gêneros, inclusive o sertanejo “de raiz”, representado pela extremamente popular “Estrada de chão” (Aurélio Miranda), vencedora de importante festival realizado em 1979, e que será comentada neste capítulo. Outra canção tradicional constante da lista era “Chalana” (Mario Zan/ Arlindo Pinto), gravada por Almir Sater e muitos outros intérpretes. Estas duas últimas canções são generalizadamente entendidas como representativas do estado do MS e são frequentemente executadas quando há eventos ou apresentações de música regional. Havia ainda, entre outras, “Qyuquyô”, de Geraldo Espíndola, canção extremamente popular que narra um mito indígena reposicionado para significar a origem do MS, “Monções”, do grupo regionalista Acaba, e a tradicional “Gaivota pantaneira” (Dino Rocha/ Zacarias Mourão), interpretada por Dino Rocha, mestre acordeonista reconhecido por Dominguinhos e Sivuca, ídolo popular das massas rurais (e participante, juntamente com Simões, Guilherme Rondon e Celito, do grupo Chalana de Prata), assim como Zacarias Mourão. Além dessas, havia ainda músicas importantes de Geraldo Roca (“Rio Paraguai”) e - 202 Guilherme Rondon /Paulo Simões (“Paiaguás”), entre outras de Almir Sater, Paulo Simões e ZéDu. Ou seja, a competição era dura, apesar de a seleção não incluir os sucessos sertanejos comerciais favorecidos naquele momento. Isto, evidentemente, foi deliberado, a partir do objetivo declarado de confirmar uma identidade sul-mato-grossense. Nada mais coerente, dentro dessa lógica, do que propor uma escolha a partir de um universo de canções considerado representativo dessa identidade. Há presença do aspecto da institucionalização aí, derivado dos interesses dos setores dominantes em busca de manutenção de sua hegemonia, mas não há dúvida de que a vitória foi expressiva. Dada sua representatividade, “Trem do Pantanal” se coloca como adequada metáfora do movimento musical aqui em estudo. Não só pela sua evidente popularidade, pelas suas contraditórias relações com a ideologia burguesa agrária, mas pelo simbolismo que cerca sua concepção a bordo do trem, em viagem, passando pelo Pantanal, pela América Platina, unindo andarilhos de vários pontos do planeta em torno de um imaginário comunitário, ecológico e solidário. Como metáfora, esta canção apresenta vários elementos, creio que não da identidade, como mencionou Simões, mas da diferença proposta pelo movimento. Isso deve ser mantido em mente, porque à medida que novas recepções se acumulam sobre a MLC, ela passa a ser vista como essencialmente ligada a raízes e exotismos regionalistas. Se não se pode negar que parte da MLC se deixou instrumentalizar pelos interesses das elites dominantes, que logo se tornariam oficiais, restringir sua interpretação a esses aspectos seria empobrecer sua leitura. Passamos, então, a discutir suas características mais complexas. Já se falou sobre a relevância, para a ideia de “poéticas do deslocamento”, do movimento, da vinculação às coisas do ar, em oposição às coisas da terra, da superficialidade e do deslocamento dos sentidos. Procuraremos continuar a caracterizar tais poéticas a partir da - 203 importância, para elas, da viagem (que se conecta mas não coincide com a noção de movimento), da platinidad, da fronteira e, finalmente, da artificialidade. A característica da viagem é central para a procura de relativização das estruturas sociais conservadoras pelos jovens de Campo Grande, assim como já era, desde muito antes, para as elites agrárias em busca de desenvolvimento de seu poder econômico e político. O isolamento que marcou esta cidade levou a uma exaltação da viagem e dos meios que a tornavam possível que pode parecer incompreensível aos habitantes das metrópoles. Já se falou que superar esse isolamento era uma necessidade do capitalismo em sua trajetória rumo à globalização. Já se falou, também, que este processo trouxe a possibilidade de questionar a realidade cultural local, a partir do conhecimento de outras realidades situadas alhures. Estes são dois dos discursos encontrados no MS a respeito da viagem que, com certeza, são encontrados também em outras regiões. No entanto, a importância da viagem para a produção das poéticas do deslocamento detectadas na MLC evidencia uma configuração particular, relativa à especificidade geográfica, cultural, social e histórica do MS. A viagem se dá entre diferentes fronteiras, com diferentes países, países que são platinos ou não. As poéticas do deslocamento reproduzem, metaforicamente, esta trajetória do viajante, por paisagens musicais artificiais. Com isso, estas poéticas produzem uma intertextualidade com características específicas. Há várias canções sobre o trem e sobre o Rio Paraguai, os dois historicamente mais importantes meios de transporte da região. Trem e rio não apenas proporcionavam bens de subsistência material e possibilidade de compensação econômica. Representavam intercâmbios culturais, ardentemente desejados numa situação de isolamento. A viagem implica em abandonar o Mesmo e experimentar o contato com o diferente. Ao deixar o território familiar, o viajante experimenta posicionar-se como um outro. As ansiedades e prazeres oferecidos pelas viagens estão ligados às vicissitudes de se abandonar - 204 uma identidade estável e de se abrir à indeterminação. Nestes termos, a valorização da viagem é um dado extremamente significativo. Não é difícil encontrar confirmações espontâneas, na fala dos informantes, sobre a importância da viagem para a MLC e para o campo-grandense. Segundo Candido, (...) os nossos [compositores], Geraldo [Roca] (...), Paulinho [Simões] (...) [viajavam bastante], é a diferença da viagem que faz parte da vida do bom escritor, do bom cineasta, do bom músico, porque eu acho que o que forma o ser humano é a questão cultural e a possibilidade de intercambiar, de viajar, de conhecer, de tocar as coisas de outros lugares, acho que esse tipo de formação essa turma teve. (Fonseca, 2010) Se hoje o trem e o rio são referências históricas e simbólicas e os modernos meios de transporte e comunicação se impõem, a viagem como valor, as trocas culturais, o interesse pelo que é novo, pelo que vem de fora, permanecem sendo categorias importantes para compreender a cultura de Campo Grande (como, evidentemente, de muitos outros lugares). Geraldo Espíndola diz a respeito: Toquei no teatro Richelieu, na universidade de Sorbonne, em 2005 (...) Em 2006 fui pra Tunísia, rodei a metade norte, todas as regiões. Em 2008 (...) em maio, voltei pra fazer a metade sul da Tunísia (...) Toquei nas praias do mar Mediterrâneo, toquei em Túnis (...) Tudo o que eu planejei tá acontecendo. Eu continuo morando (...) pertinho do aeroporto... [risos] (Espíndola, G., 2009) Outro tema especialmente caro à MLC é a situação do eu lírico na América Platina. Trata-se de toda a imensa região historicamente servida pela navegação na bacia do rio da Prata, em cinco países. À maneira de “Trem do Pantanal”, a persona de muitas das canções da MLC não está fixada à terra, mas há frequentes referências às regiões e povos platinos. Nas produções representativas deste coletivo, em sua face não institucionalizada ou nativista, tais referências são como instantâneos que capturam de maneira fugaz aquilo que passa pela janela de um veículo em movimento. Não se prestam à decantação emotiva de paisagens, mas buscam exprimir a coexistência de diferentes culturas e identificações em uma região do Brasil que difere daquele representado nas faixas nobres dos meios de comunicação de massa e que é, por conseguinte, desconhecido das populações de outras regiões. - 205 Este Brasil diferente representado pela MLC é um Brasil situado na encruzilhada dos outros países platinos, daí que as referências ao Paraguai, à Bolívia, ao Peru, à Argentina são frequentes, em letra e/ ou música. Pode-se dizer, então, que a persona produzida pelas poéticas do deslocamento pratica um desfronteiramento. Com isto, quero implicar, não o atravessar a fronteira física em si, tomada aqui como metáfora, mas a instabilidade e a indeterminação que caracterizam a intertextualidade deste personagem, continuamente deslocada à medida que atravessa as fronteiras platinas por meio da MLC. Como o conceito de intertextualidade, construído pela crítica literária e psicanalista Julia Kristeva terminou por ser incorporado ao uso comum, limitando-se a indicar o uso de diferentes textos em um outro texto, convém conceituá-lo como o faz a autora. Segundo Kristeva, a ideia de intertextualidade foi deduzida do trabalho de Bakhtin, mas não se confunde com ele, apresentando as seguintes diferenças: [e]m primeiro lugar, reconhece-se que um segmento textual, sentença, declaração ou parágrafo não é, simplesmente, a interseção de duas vozes em discurso direto ou indireto; em vez disso, o segmento é o resultado da interseção de um número de vozes, de um número de intervenções textuais, que são combinadas no campo semântico, mas, também, nos campos sintático e fônico da declaração explícita. Portanto, existe a noção desta pluralidade de participação fônica, sintática e semântica. Acho que o que é novo com relação a Bakhtin é o ver esta intervenção da pluralidade externa em diferentes níveis – não apenas no nível do sentido, mas também no nível sintático e fônico. (Kristeva apud Guberman, p. 189-190, grifo meu) 34 A preocupação com o nível fônico, em adição aos níveis sintático e semântico, permite que o conceito seja aplicado em música. Além disso, o que a intertextualidade verifica não é a mistura de textos (aí incluídas as músicas) em si, mas o efeito subjetivador causado por esta prática, que é a desconstrução do sujeito unitário, integrado, a desconstrução da identidade: 34 [i]n the first place, there is the recognition that a textual segment, sentence, utterance, or paragraph is not simply the intersection of two voices in direct or indirect discourse; rather, the segment is the result of the intersection of a number of voices, of a number of textual interventions, which are combined in the semantic field, but also in the syntactic and phonic fields of the explicit utterance. So there is the idea of this plurality of phonic, syntactic, and semantic participation. I think that what is new with regard to Bakhtin is seeing this intervention of external plurality at different levels – not only at the level of meaning but at the level of syntax and phonics, too. - 206 a participação de diferentes textos em diferentes níveis revela uma atividade mental particular (...). E a análise (...) deveria compreender que o objeto com o qual se está trabalhando é uma dinâmica específica do sujeito da fala, que consequentemente, precisamente por causa desta intertextualidade, não é um indivíduo no sentido etimológico do termo, não uma identidade (...) [A] descoberta da intertextualidade em um nível formal nos leva a um achado intrapsíquico ou psicanalítico (...) que concerne ao estatuto do “criador”, aquele que produz um texto ao colocar-se na interseção desta pluralidade de textos em seus níveis bastante diferentes – (...) sintáticos ou fônicos. Isto me leva a entender a subjetividade criativa como um caleidoscópio, uma “polifonia”, como Bakhtin a denomina. (Kristeva apud Guberman, p. 190) 35 Para Kristeva, um texto se oferece ao leitor/ ouvinte/ espectador como um modelo identificatório (Kristeva, 1974, p. 87). Textos monológicos tenderão a produzir identificações com uma instância do tipo paternal. Já uma produção intertextual tenderia a replicar seu processo de produção no leitor que com ela se identifica. Assim, a desconstrução identitária promovida pela intertextualidade não seria exclusivamente um indicativo do processo psíquico do autor, mas também uma produtividade do leitor/ ouvinte/ espectador. Portanto, o que a intertextualidade proposta pelas poéticas do deslocamento da MLC produz, é um sujeito incerto quanto à sua identidade, de passagem por diferentes mundos. No que diz respeito às fronteiras, estes mundos incluem (mas não se resumem à) América Platina, tal como se verifica pela enumeração de lugares ou características, bem como pela frequente aparição polifônica de outras vozes: linguisticamente, o uso do português, guarani e espanhol (no caso de “Japonês tem três filhas”, de Geraldo Roca, português, guarani e japonês); musicalmente, pela mistura das músicas e sons de diferentes países dessa região. No entanto, apesar da insistência em demarcar o espaço físico da América Platina, o território é descontextualizado pelo uso de elementos sem referência geográfica definida. Entre estes, podem-se citar os gêneros musicais (rock, folk rock, blues, reggae), que se descolaram de seus 35 the participation of different texts at different levels reveals a particular mental activity (...). And analysis (...) should understand that what is being dealt with is a specific dynamics of the subject of the utterance, who consequently, precisely because of this intertextuality, is not an individual in the etymological sense of the term, not an identity (...). [T]he discovery of intertextuality at a formal level leads us to an intrapsychic or psychoanalytic finding (...) concerning the status of the "creator," the one who produces a text by placing himself or herself at the intersection of this plurality of texts on their very different levels – (...) syntactic, or phonic. This leads me to understand creative subjectivity as a kaleidoscope, a "polyphony" as Bakhtin calls it. - 207 locais de origem devido à sua massiva utilização midiática em virtualmente todas as regiões do mundo, técnicas (recursos de gravação, timbre, tratamento do som, etc.) ou tecnologias (instrumentos musicais, equipamentos de gravação e processamento de som, etc.). Portanto, o sujeito produzido pelas poéticas do deslocamento da MLC é indefinível e não coincide consigo mesmo, sempre em transformação. Esta característica fundamental tem sido distorcida, às vezes até mesmo por compositores que resvalam, às vezes, para o elogio sentimental da região, quando este sujeito intertextual se caracteriza pela ausência de autocomplacência, segurança e contentamento, pelo estranhamento de sua condição estrangeira. Como vem sendo afirmado, para a produção da intertextualidade pelas poéticas do deslocamento da MLC, é fundamental o deslocamento dos sentidos. Se na viagem descrita por Simões verifica-se o deslocamento da identidade entre diferentes posições subjetivas pelo trânsito físico do sujeito através das diferentes fronteiras platinas, as poéticas do deslocamento produzem este mesmo efeito pelo trânsito entre diferentes discursos, linguísticos e musicais. Seguindo esta lógica, discutimos agora o deslocamento produzido pelo gênero musical. Para caracterizar as relações entre gênero musical, identidade e intertextualidade, serão reproduzidas aqui considerações publicadas nos ensaios A invenção da impostura: MPB, a trama, o texto (Neder, 2008) e O estudo cultural da música popular brasileira (Neder, 2010), e na tese O enigma da MPB e a trama das vozes: identidade e intertextualidade no discurso musical dos anos 60 (Neder, 2007). Ouvir músicas preferidas, dançar, cantar, são maneiras que o sujeito encontra para obter identidades sociais e culturais, tornando-se – a partir de sua identificação com signos que trazem sempre a marca da alteridade – um outro que não existia antes. Para o musicólogo Richard Middleton (1995), se os gêneros e estilos trazem junto de si sua “bagagem discursiva”, e se a subjetividade, “longe de ser um solo experiencial a priori, é construída no - 208 discurso – em particular pela linguagem, mas também outras práticas culturais (tais como os gêneros musicais) 36” (Middleton, 1995, p. 469), segue-se que para Middleton a subjetividade é construída dialogicamente também através do discurso musical (Neder, 2008, p. 271). Utilizando ensinamentos de Bakhtin, Middleton parte da premissa de que “não há experiência fora de sua incorporação em signos” (Bakhtin apud Todorov, 1984, p. 43). 37 E, uma vez que, para Bakhtin, os signos são sempre marcados pelo discurso de um outro, a subjetividade é criada através de diálogos com outros sujeitos e outros discursos (inclusive musicais) (Neder, 2008, p. 272). O “self” é entendido, portanto, não como “presença” devedora do “real”, fonte da “intenção soberana” ou “garantidor do sentido unificado”, mas como um “projeto”, uma “capacidade”, uma “energia”, um “presente do outro” (Middleton, 1995, p. 469). Com isso, a música não apenas é mediada por discursos. De acordo com o etnomusicólogo Robert Walser, o gênero musical é: um sistema significante social, e não um conjunto autônomo de características estilísticas[; utilizo] uma abordagem à análise musical que constrói detalhes musicais como unidades gestuais e sintáticas significantes, organizadas por narrativas e outras convenções sociais, [que] constituem um sistema para a produção social de sentido – um discurso (Walser, 1993, p. xiv).38 Portanto, a música é também um discurso, que, por sua vez, medeia todos os outros – inclusive os discursos verbais (sendo, simultânea e dialeticamente, mediada, também, por eles). Elementos musicais são codificados discursivamente, e com isso, a música, como prática significante, participa da fabricação das pessoas, em correlação com os discursos de uma sociedade ou grupo mais restrito (Neder, 2008, p. 272). 36 (...) far from being an a priori experiential ground, is constructed in discourse – particularly language, but also other cultural practices (such as musical styles). 37 (...) there is no experience outside its embodiment in signs. 38 (...) a social signifying system rather than an autonomous set of stylistic traits[; I employ] an approach to musical analysis that construes musical details as significant gestural and syntactical units, organized by narrative and other formal conventions, [which] constitute a system for the social production of meaning – a discourse. - 209 Ao relacionar dialeticamente corpo (desde sempre culturalizado) e sociedade por meio do simbólico, a psicanálise compreende uma experiência do corpo variável em relação ao lugar, história e cultura, portanto nunca dada de maneira essencial [, sendo modificada de acordo com os discursos disponíveis]. O sentido musical situa-se na experiência corporal, mas essa experiência é mediada pelo discurso verbal, pois tanto o corpo quanto o mundo físico não podem ser experienciados ou concebidos fora da linguagem. Tanto o próprio funcionamento da linguagem se baseia em processos corporais – metáfora e metonímia originando-se, respectivamente, de condensação e deslocamento das pulsões (...) – quanto o experimentar gestos musicais como gestos físicos ou emocionais depende das operações discursivas que possam tornar tais gestos musicais significativos. Assim, questões identitárias, políticas, estéticas, corporais, de etnicidade, nacionalidade, classe e outras estabelecem entre si uma relação complexa, no âmbito dos discursos verbais. Esta relação servirá como um contexto para apreender, classificar e criticar os sons musicais, quaisquer que sejam. Por outro lado, os discursos musicais (...) [de gênero, estilo, retórica, técnicas e tecnologias, e as intertextualidades produzidas a partir deles] se conectam tanto a processos corporais como culturais, tal como discutido acima. [Uma vez que o funcionamento da linguagem se baseia em processos corporais,] [i]sso torna possível que WALSER (1993), BRACKETT (1995) e NEDER (2007) proponham que os sentidos musicais não apenas sejam constituídos por discursos extramusicais, mas também sejam constitutivos deles. (Neder, 2010, p. 190) A conclusão que se segue é a de que, enquanto gêneros musicais definidos possuem uma tendência a construir identidades sociais mais integradas, músicas que empregam uma pluralidade de gêneros (como a MPB e a MLC) são marcadas pela intertextualidade. No caso da MLC, verificam-se diferentes gêneros paraguaios (guarânia, polca paraguaia), argentinos (chamamé), uma grande variedade de gêneros sertanejos paulistas, mineiros, além de todos os gêneros utilizados pela MPB, e, ainda, os gêneros transnacionais mais utilizados pelas músicas populares contemporâneas (rock, reggae, pop, country, jazz, etc., e seus subgêneros). Transitando entre as posições subjetivas construídas por todos estes gêneros, entendidos como discursos, o sujeito é desconstruído enquanto uma identidade. Para explicações mais detalhadas sobre o processo, ver Neder (2007). No caso de “Trem do Pantanal”, a música-símbolo da nascente MLC, o gênero paraguaio da guarânia não é um gênero tradicional, tendo sido criado por autor conhecido (José Asunción Flores) há relativamente pouco tempo, a década de 1920, em um contexto mercadológico, e desenvolvido por outros compositores nesse mesmo contexto (para informações musicológicas sobre a guarânia, ver Higa, 2005, p. 123-126). - 210 Desconhecedores, Roca e Simões, das práticas musicais paraguaias tradicionais, e desinteressados de reverberar uma fidelidade interpretativa que, com certeza, soaria demasiado atada a um vocabulário regionalista do qual desejavam distanciar-se, seus padrões de emissão vocal nunca se aproximaram da grandiloquência das duplas e conjuntos paraguaios, estando mais influenciados pela vocalização do folk rock e da Jovem Guarda. Já Tetê Espíndola não se nega a admitir a influência paraguaia neste aspecto. Tetê, sintomaticamente, não apenas explora todas as nuances da intensidade, não se negando aos fortissimo, como também incorpora recursos cênicos e dramáticos em suas performances, o que Roca e Simões não fazem. Evidentemente, isso não significa que Tetê se limite por uma concepção essencialista de suas influências, uma vez que está sempre expandindo as fronteiras de sua criação por meio da experimentação. No entanto, atesta o descompromisso de Roca/Simões quanto a uma suposta fidelidade às raízes. Contrapondo seu estilo ao da notável intérprete, Simões evidencia este desinteresse pela matriz interpretativa tradicional, ao mencionar a admiração de Tetê pelo histrionismo paraguaio: Isso é uma coisa que a Tetê [Espíndola] disse numa entrevista que eu fiz com ela, que ela sempre ficava muito impressionada com o jeito dos paraguaios cantarem, uma coisa muito latina, muito pra fora, muito teatral, eles cantam projetando tudo, sabe, tudo pra frente... Ela disse que ficou muito influenciada por isso, eu nem tanto. (Simões, 2009) Da mesma forma que a guarânia de Roca e Simões é uma guarânia estranha, diferente do original, assim também deve ser entendido o Pantanal. Silenciadas inteiramente as descrições de suas características, o Pantanal não representa, aqui, o orgulho ufanista pelas belezas naturais, tal como viria a ser brandido, mais tarde, pelo sul-mato-grossense. Nesta canção, o Pantanal não é símbolo de uma raiz atávica, da terra natal, nem desperta nostalgia. Ao contrário, não representa pertencimento geográfico, mas é um índice, um indício, geográfico e cultural, exatamente do local onde se dá o afastamento de casa (“O povo lá em casa espera que eu mande um sinal”), a passagem, o deslocamento. O Pantanal é o fundo ao - 211 qual se superpõe o sujeito intertextual, em sua passagem, apenas para destacar o processo de deslocamento (“Enquanto esse velho trem / Atravessa o Pantanal...). Assim, tanto a referência displicente ao espaço circundante, como o uso de maus modos, sem solenidade, deslocado, dos gêneros musicais atrelados à história da colonização do sul de Mato Grosso, devem ser vistos, no contexto da MLC inicial, como a preocupação de situar, histórica e geograficamente, o eu lírico de suas canções, com um objetivo. Segundo sugiro, isso seria uma estratégia necessária para a proposição, por parte daqueles compositores, de um projeto de atualização e crítica cultural que articulasse tradição e modernidade sem a exclusão do outro. No que diz respeito à sua situação, o sujeito intertextual ocupa uma posição histórica e geográfica, mas essa posição não é fixa ou estável, segura ou determinada. Tratava-se de desestabilizar a ideia de uma identidade nacional ou regionalista, como parte de um projeto que questionava a posição subalterna ocupada pelo estado nos arranjos “nacionais” que o destinaram a uma economia primária. Isto era feito a partir da identificação com as culturas latino-americanas mencionadas em letra e música nas suas canções. Na encruzilhada de múltiplas vozes, em que se encontram diversas línguas, diferentes músicas, indícios de muitos outros lugares, línguas, músicas e lugares são deslocados. Esta MLC inicial, portanto, não aderia a um ideário essencialista, visto que se posicionava em um meio fluido, vendo rodar em torno de si, sem se fixarem, os signos disponíveis localmente, em mistura aos que chegavam por discos, rádio, cinema e TV e os presenciados em outros lugares. Por outro lado, a ideia de situar o setting da canção, também obedece à intenção de não mais silenciar o diferente, tal como vinha sendo feito em Campo Grande, quando se verificava uma clara dicotomia entre músicas importadas dos grandes centros, utilizadas para constituir as desejadas identidades modernas, e as polcas paraguaias e músicas caipiras, - 212 utilizadas para se rememorar, nostalgicamente, um passado para sempre perdido – ou recalcado. Graças a esta nova abordagem proposta pela MLC, ali estava presente a história do estado, com suas contradições e seus excluídos, com o morticínio nada edificante da nação paraguaia, não a história idealizada, dos grandes feitos, das vitórias retumbantes dos grandes homens. A música paraguaia que comparece não traz cor local, visto que não tenta imitar o “autêntico”, mas exibe-se em sua evidente artificialidade. Esta artificialidade é a marca de seu deslocamento: retirada de seu contexto tradicional e inserida em um mundo inteiramente diverso, a música paraguaia não poderia senão provocar estranhamento, e este estranhamento tem o poder de chamar a atenção para a reificação da diferença. Não se deve esquecer que a música paraguaia era a música obrigatória em virtualmente todas as churrascarias de Campo Grande, naquele momento e décadas antes e depois. Era apenas nessa função e similares que era admitida – naturalizada – na sociedade dominante. Sendo assim, essa nova música que se constituía não privilegiava o polo da tradição – relacionada, como regionalismo, aos interesses dominantes –, que era aqui alterada, transformada, tornando-se, não mais familiar ou nostálgica, mas estranha. E também não privilegiava o polo da modernidade desenvolvimentista, como vinha sendo feito até então, com a exclusão do diferente em função do ideal de progresso. Buscava sugerir ou simbolizar a incorporação dos saberes populares tradicionais em diálogo com o mundo culto e uma outra noção de modernidade, que não era avessa à incorporação das novas tecnologias (de comunicação e de produção musical). Como tal, oferecia-se como modelo identificatório para um novo momento na história de Campo Grande, capaz de relativizar os rígidos papéis sociais legados aos jovens das décadas de 1960 e 1970. Entre suas contribuições, figuram com destaque o interesse atual pela manutenção da memória e dos conhecimentos tradicionais de - 213 toda a região (que abrange, também, aqueles trazidos pelas trocas ancestrais com paraguaios, bolivianos e seus antepassados). Esta complexa conformação inicial da MLC deve ser mantida em mente, pois, após a divisão, em 1977, uma série de novos condicionamentos se juntam à já discutida ansiedade por uma identidade cultural para o estado, produzindo mediações que associaram o movimento ao atavismo das raízes, com a celebração do apego à terra, do pertencimento, da ordem constituída e da natureza do Pantanal. Neste segundo momento, ocorre uma sutil transformação, e o uso artificial dos gêneros subalternos passa a ser visto como uma exaltação de raízes atávicas, autênticas, o que tem o poder de retornar à situação anterior, de apaziguamento com relação a uma realidade dada, tida como natural, como natural passa a ser a desigualdade e a subalternidade. Inclusive, é neste contexto de recepção que se insere o importante álbum Tetê e o Lírio Selvagem, o primeiro deste movimento a ser lançado nacionalmente, em 1978, por uma grande gravadora, contando com videoclipe apresentado no programa Fantástico, da TV Globo. Compreender o processo histórico de cooptação da MLC aos interesses dominantes é perceber que a MLC não tem uma identidade essencial ou vínculo necessário com o passadismo, o regionalismo e a ideologia oficial. Essa ideologia é relativizada pelo movimento inicial, que procurou pensar o local no Mato Grosso do Sul em articulação simultânea com o global, privilegiando o deslocamento e não a estabilização. Entretanto, este momento histórico que coincide com a divisão do estado se caracteriza exatamente pela intensa busca de estabelecimento de uma identidade regionalista, com um forte matiz naturalizante e essencialista. A MLC se viu favorecida neste desenvolvimento, em que foi objeto de interesse inédito por parte de iniciativas governamentais e institucionais, tanto privadas quanto públicas, mesmo que seus autores não tenham obtido compensação econômica de destaque. A moeda de troca era o prestígio – - 214 aparições no rádio e televisão, em eventos e solenidades em que se fizesse necessário representar o estado por uma imagem musical considerada mais adequada pelas elites urbanas, em comparação com os ídolos realmente populares, geralmente de caráter rural. Isto evidencia uma hierarquização fundada no privilégio ao universo cultural da MLC, que, após algumas mediações e ressignificações, pôde ser absorvido pelos discursos dominantes. Enquanto isso, as elites decisórias excluem os ídolos populares desses eventos, não desejando associar sua imagem à deles. No entanto, quando se trata de agradar o público mais amplo, mormente para a busca de votos, são esses ídolos populares que são lembrados pelo Executivo e o Legislativo, não os artistas da MLC. Rodrigo Teixeira reflete sobre esta condição: Quando o governo vai num evento, por exemplo, internacional, e ele tem que mostrar a arte sul-mato-grossense, [o artista da MLC] é quem tem que ir. E aí ele tem prestígio. Quando tem que fazer um evento de final do ano, da virada do ano, pro povão, [o artista da MLC] não tem prestígio (...). Esse pessoal do sertanejo, do [grupo baileiro] Tradição, os baileiros, eles conseguiram fazer um mercado de shows. Eles conseguiram sobreviver independentes do governo (...). O Tradição nunca tocou num festival daqui, nem no [Festival] da América do Sul, nem no [Festival] de Bonito, nunca foram chamados. É o maior grupo do MS (...). Nós temos vergonha de ser populares, também (...). Por que o Tradição nunca foi chamado para o Festival da América do Sul? E foram chamados (...) Jorge Aragão (...) [Será] porque o Tradição faz uma música que não é a sul-mato-grossense? Por que o Tradição não fala dessa geração Prata da Casa? E não reverencia esse pessoal? Por que teve essa ruptura? (Teixeira, 2009a) Sem antever as consequências, os representantes do movimento deixaram-se envolver neste processo, que levaria à institucionalização da MLC, com consequências funestas para ela. Entre o último festival, ocorrido em 1975, e a divisão, que se deu em 1977, muito haveria para ser contado, em relação ao processo criativo dos artistas, às circunstâncias da composição de cada canção, às gravações dessas canções por intérpretes locais e de fora. No entanto, em termos de eventos públicos e coletivos, como os festivais, ou de qualquer acontecimento que marcasse, de maneira destacada, a música popular urbana de Campo Grande como um todo, nada ocorreu. Portanto, há um hiato, até que a divisão, potencializada - 215 por alguns outros fatores que aconteceram na mesma época, transforma radicalmente o panorama anterior e institui o outro mencionado logo antes, bastante diferente. - 216 - 3. CAPÍTULO 3: “ONDE VOCÊ QUER IR, MEU BEM?”: INDETERMINAÇÃO E COOPTAÇÃO NAS ONDAS DO NOVO ESTADO Convulsões do divisionismo e a procura da “identidade sul-mato-grossense” Segundo Bittar, “uma frente democrática contra a ditadura militar era vigorosa em 1977 na região que acabava de se tornar Mato Grosso do Sul” (Bittar, 2009a, p. 346). Essa frente incluía o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido que seria extinto em 1979 pelo regime militar, em que eram líderes os irmãos Wilson e Plínio Barbosa Martins, já citados. Mobilizando-se em torno da luta pela redemocratização da sociedade brasileira, a Frente não tinha como bandeira, evidentemente, a divisão do estado, enquanto aspiração das elites pecuárias. A exclusão da população do processo decisório que levou à criação do estado do MS, bem como a ausência da oposição nas manobras de gabinete que caracterizaram este processo, explicam, portanto, a dominância da ARENA nessas articulações, bem como aquelas que viriam a ter como objeto o controle do Executivo no novo estado (Bittar, 2009a, p. 345). Além dos três senadores sulistas arenistas Italívio Coelho, Antonio Mendes Canale e Rachid Saldanha Derzi, compunha o grupo “ortodoxo” da ARENA o ex-governador José Fragelli. Esse grupo “ortodoxo” tinha como rival a facção “independente”, do ex-governador Pedro Pedrossian. Os nomes citados, como os de Plínio e Wilson, todos egressos de oligarquias agrárias (com exceção de Pedrossian), viriam a dominar a política do novo estado. No dia 24 de agosto de 1977, o então presidente da república Ernesto Geisel enviou a Mensagem n. 91, de 1977-CN, com o projeto de lei complementar de criação do novo Estado. No dia 11 de outubro seguinte, o mesmo presidente assinava, em solenidade histórica, a Lei Complementar n. 31, “criando o Estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do Estado de Mato Grosso”, com a capital em Campo Grande. As principais lideranças do sul (principalmente os participantes da Liga Sul- - 217 Mato-Grossense) estiveram presentes ao ato em Brasília. O anteprojeto criava o “Estado de Campo Grande”, nome não aceito pelas lideranças sul-mato-grossenses (...) Assim, optou-se por Mato Grosso do Sul, esperando que Mato Grosso passasse a Mato Grosso do Norte, o que não ocorreu. (Campestrini, 2010) A insatisfação com o nome, que paira, até hoje, como um fantasma sobre o MS, reflete a falta de consulta à população sobre todo o processo. Compreendendo-se a divisão como uma reivindicação basicamente partida dos pecuaristas, que tinham a cidade que seria a futura capital do MS como centro político e econômico capaz de rivalizar com Cuiabá, era esperado que houvesse a tentativa de implantação do estado com o nome de Campo Grande. Esta teria sido, inclusive, uma iniciativa do próprio Geisel (Liga Sul-Mato-Grossense apud Bittar, 2009a, p. 347). Sob a alegação de que haveria reações dos habitantes das outras cidades sulistas, principalmente Dourados e Corumbá, vereadores douradenses teriam oficiado à presidência da República, solicitando a mudança de nome, o que foi feito. Mantido o nome Mato Grosso do Sul, como foi mencionado na citação anterior, esperava-se que Mato Grosso se tornasse Mato Grosso do Norte. Não se verificando essa mudança, reforçaram-se as insatisfações com o nome do novo estado, o que redundaria, mais tarde, em diversas polêmicas, que, se não trouxeram solução de consenso, ao menos possibilitaram à população o envolvimento com a questão que lhe havia sido negado com relação à divisão. Após a criação do novo estado, a implantação efetiva de Mato Grosso do Sul como nova unidade federativa teria que esperar até 1º de janeiro de 1979, para a execução de todos os procedimentos de estruturação necessários, como a elaboração da legislação, aluguel de prédios para a máquina administrativa, compra de mobiliário e veículos, e assim por diante. Nesse meio tempo, como era de se esperar, o estado ficou em polvorosa, com os políticos disputando a possibilidade de serem nomeados por Geisel como o primeiro governador do novo estado, e todos os outros cargos, de todos os escalões. Previsivelmente, pegam fogo, também, as discussões sobre a identidade cultural do estado que nascia. Essa questão, agora, tornava-se subitamente estratégica para as elites que passariam ao controle de uma máquina - 218 estatal, e necessitavam fazer com que, literalmente do dia para a noite, fosse criado um sentimento de unificação entre todos os sulistas. Tinham que lutar, inclusive, contra o renitente apego ao Mato Grosso uno, partilhado, até hoje, por não poucos sul-mato-grossenses. Sendo assim, o problema da identidade envolvia, inclusive, o problema do nome do novo estado. A professora Glorinha compara a falta de consenso em torno de um nome com a falta de mobilização e consenso para promover a própria divisão do estado: A confusão surgiu desde a escolha do nome. Eu fiz um livro só de depoimentos sobre 100 anos de Campo Grande. E fiz a última entrevista com [o cronista da história do sul de MT, posteriormente MS] Paulo Coelho Machado. O nome era pra ser... puseram vários nomes: Maracaju, Guaicuru, e ninguém aceitava... Ele falou que estado do Pantanal iria criar a mesma confusão... Segundo o depoimento dele, quando o estado foi criado era estado de Campo Grande, capital Campo Grande. Mas aí veio o ciúme, Dourados não deixava, Corumbá... Por que não estado de Corumbá, capital Corumbá? (...) O estado de Mato Grosso do Sul não foi resultado de campanhas, de movimentos políticos, foi resultado de uma ação... Foi como se pegasse o couro de Mato Grosso do Sul... e cortasse ao meio. (Sá Rosa, 2009) Assim como Glorinha e muitos outros sul-mato-grossenses, Humberto Espíndola se ressente da maneira como foi feita a divisão: Quando eu falei que a divisão foi feita de uma forma errada foi porque aconteceu no momento da ditadura, por uma vontade de um ditador, e não por uma vontade de um movimento que vinha se desenvolvendo desde a chegada dos gaúchos, e que teve tantos momentos. (Espíndola, H., 2009) Para Humberto, a divisão, na verdade a criação do novo estado, por ter sido imposta autoritariamente, resultou na escolha insatisfatória de um nome, mas os políticos locais teriam parte da responsabilidade nisso: (...) o nome ficou errado, aliás, não por parte do Geisel, porque o Geisel queria estado de Campo Grande, que teria sido uma grande identidade para o estado. Mas os políticos, com medo de ter uma reação de deputados ou vereadores partidários de Corumbá, de Dourados, se reuniram, meia dúzia de políticos que sabiam do segredo, porque a divisão estava sendo feita em segredo, e resolveram pedir para mudar para Mato Grosso do Sul julgando que o Mato Grosso, que estava perdendo uma parte de suas terras, e que não tinha nada com isso (...) fosse mudar para Mato Grosso do Norte. Então, o termo “divisão”, inclusive, é errado, é a criação do estado de Mato Grosso do Sul, que nasceu do Sul, sendo do Centro-Oeste, já nasceu com esse nome errado, mas identitariamente estava certo, fazia parte de Mato Grosso... (Espíndola, H., 2009) Humberto acredita que há vários inconvenientes com relação ao nome, citando alguns: - 219 (...) esse “do Sul” ficou deslocado, porque as pessoas passaram a se preocupar por 20 ou 30 anos em falar “do Sul” para as pessoas de fora que falam Mato Grosso até hoje. E se tornou uma coisa que, na minha opinião, é muito antipática, você chegar para um palestrante, pessoas até debocham disso, quem já sabe [e é de fora, quando fala “Mato Grosso”, completa com ênfase irônica], “do Sul”. É uma coisa provinciana, realmente, e que ficou um ranço que não aconteceu com Goiás, ao criar Tocantins. Todo mundo sabe que é Tocantins. Mas todo mundo vai confundir, sempre, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Isso, até virar uma realidade... mesmo porque, se Mato Grosso estivesse na região Sul do país [o que não está]... Poderia ficar um Mato Grosso do Sudoeste (risos), talvez estivesse mais certo, ficasse mais expressivo como identidade. Mas eu achava que [estado de] Campo Grande, capital Campo Grande [seria mais certo], porque aqui são campos, não é? Nós estamos aqui numa área de campos. E o Mato Grosso, [esse nome vem] da selva amazônica (...) (Espíndola, H., 2009) Humberto Espíndola estende o problema identitário a respeito do nome para outros mitos fundadores em que se apoiam as divisões territoriais políticas, a bandeira e o hino: Eu trabalhei também pela mudança do nome do estado, numa época em que se quis que se chamasse estado do Pantanal. Eu achava que era um grande marketing, que poderia fazer alguma coisa. Eu não gosto da nossa bandeira do estado porque foi feita aleatoriamente... Com tantos artistas plásticos que já tínhamos, em 1978 foi feito um concurso debaixo do sigilo da ditadura e foi arrumada a bandeira, quem fez a bandeira do MS foi um cara do Piauí... O nosso hino, com tantos músicos daqui, foram buscar na gaveta do maestro Radamés Gnattali, que tinha um hino pronto, que era uma outra encomenda que ele não conseguiu acertar o preço... Essa música virou o hino de Mato Grosso do Sul. Então tivemos diversos problemas na fundação. (Espíndola, H., 2009) Já foi mencionado que o hino oficial não é especialmente favorecido pela população. Provavelmente como decorrência desta recusa popular, o hino apenas foi gravado em 1994, quinze anos, portanto, depois da implantação do novo estado. Esta gravação fez parte de uma coletânea típica dos momentos fundadores, em que se pretende definir a identidade de algo que se inicia por meio de um amplo inventário de signos de origem. No entanto, se a intenção era demarcar o nascimento do novo estado e contribuir para doar-lhe legitimidade, veio com bastante atraso. Este atraso na gravação do hino parece, então, resultante da exclusão da população do processo, que não se interessou pelo hino imposto e preferiu desenvolver outros de sua escolha (ver nota 39), inclusive o “Trem do Pantanal”. Como ressalta Odon Nacasato, músico, compositor e produtor musical que realizou a gravação e a produção: Fizemos o registro do Mato Grosso do Som, o mapeamento musical de Mato Grosso do Sul, que foi o primeiro álbum triplo com o registro das gravações nos gêneros urbano, clássico, instrumental, a música nativista e a música folclórica. Foi onde nós registramos o hino de Mato Grosso do Sul. Olha o exemplo: o estado criado em 1977, a gravação do hino em 1994. Olha que desatenção. 77 pra 94 dá quantos anos? 17 - 220 anos? Então se passaram 17 anos pra que o estado se atentasse que não temos o nosso hino registrado. O hino do Mato Grosso do Sul não havia sido registrado. Você vê que vergonha, é uma vergonha isso, não é verdade? Eu se fosse governador, se você fosse governador em 77, você empossava aqui e na outra semana mandava gravar o hino, não é verdade? Pra ensinar nas escolas. Então os primeiros sul-mato-grossenses que [nasceram após a divisão], com 17 anos, não conhecem o hino. Com certeza. O hino do Mato Grosso do Sul, se ele começou a ser distribuído nas escolas a partir de 1994, a geração que vai começar a ouvir é a geração de que, 2002, 2003, quando você está com 6-7 anos de idade [risos]. A gente ri mas é uma vergonha... (Nacasato, 2009) Como se vê, o processo de construção de uma identidade regional instrumental para os desígnios das elites recém-elevadas ao poder se apoiou mais na MLC e em certas músicas tradicionais39, que já estavam consolidadas em sua popularidade, do que na efetiva invenção, a partir do zero, de mitos fundadores – sobre os quais não houvera consenso. Esta é a explicação para o fato de que o “Trem do Pantanal” é mais representativo, como hino, do que o próprio hino composto para ocupar este lugar. A ausência, no hino oficial, de elementos musicais articuláveis ao regionalismo instrumental requerido pelas oligarquias agrárias governantes, determinou o desinteresse com que é recebido pelos políticos e pela população. Embora as disputas políticas no Executivo estadual dificultassem a própria consolidação da suposta “identidade cultural” do novo estado por intermédio da divulgação desses mitos, o agendamento (cf. nota 6) da questão nos meios de comunicação de massa, nos círculos intelectuais e culturais, fazia com que a questão se mantivesse na ordem do dia, como lembra o historiador Gilberto Luiz Alves: A divisão do estado realmente ensejou muitas discussões sobre essa questão [da identidade cultural], da cultura. Você observa, por exemplo, debates entre intelectuais, especialmente aqueles intelectuais que eu chamaria diletantes, não eram propriamente figuras ligadas à universidade, mas eram pessoas que tinham uma sensibilidade, realmente, pra questão cultural, muito grande. Aí, acho que o nome paradigmático é o do Guizzo. O Guizzo foi sempre uma pessoa que nunca esteve ligada à universidade, mas era uma pessoa que puxava muito o debate sobre cultura aqui em Mato Grosso do Sul (...). Aliás, isso está presente, inclusive, em algumas matérias de periódicos da época. Então, o que seria a cultura sul-mato-grossense? O que é que lhe daria identidade? Isso estava muito presente nas preocupações (...) (Alves, 2009) 39 “Pé de cedro”, “A matogrossense” e “Seriema de Mato Grosso”, entre outras. - 221 Entretanto, embora, para Alves, o sul de Mato Grosso tenha uma história distinta do norte, o pesquisador acredita que essas discussões que tentaram definir a singularidade do novo estado primaram pela inconclusividade. Seu depoimento, no entanto, ressalta a intensidade do debate em torno da suposta “identidade cultural” do estado, após sua criação. Demonstra também, implicitamente, a importância ideológica desta questão, ao indicar o surgimento de uma revista “logo após a divisão”, e já fazendo desta discussão seu assunto principal: Quando [o sul de MT] começa a ser colonizado, o próprio eixo econômico da colonização não tem nada a ver com Mato Grosso. As nossas ligações sempre foram com o centro-sul do país. O Guizzo, a partir disso, dizia: as nossas matrizes culturais são diferentes das matrizes culturais do norte. Isso deve ter pesado na definição da nossa especificidade, da nossa identidade, como ele dizia. Mas o Guizzo, inclusive, ele nunca se arvorou a fazer uma elaboração no sentido de fechar o que seria a nossa identidade. Tem, inclusive, uma entrevista do Guizzo que é muito interessante, no primeiro número da revista Grifo, que surgiu aqui no MS logo após a divisão do estado. Em que o Guizzo, exatamente... puxa um pouco essa discussão. O título da matéria significativamente é “Cultura sul-mato-grossense?”, com interrogação. Acho que o próprio título dá um pouco a noção da precariedade que atravessava essa discussão. Principalmente no sentido de fechar uma ideia do que seria nossa identidade. (Alves, 2009, grifo meu) Além de inconclusivas, para Alves, estas muitas e onipresentes discussões se caracterizavam pelo pouco aprofundamento e diletantismo, mesmo na academia tendo faltado sistematização nos debates sobre o tema, problema, segundo ele, observado até hoje: [Portanto], me parece que [essas discussões] nunca foram conclusivas, eram muito mais um brainstorm. Levantavam-se n possibilidades, n questões, mas você nunca via as coisas relativamente fechadas. Os debates eram, no geral, muito abertos, levantavam-se ideias mas nada era fechado. E também, na academia, o que se observa é que isso nunca foi estudado de forma sistemática. Os próprios estudiosos da área de cultura estão devendo isso ao estado. Até mesmo no sentido de limpar um pouco o debate, que sempre se desenvolveu no âmbito do senso comum. (Alves, 2009) Alves cita, como articulação importante de um coletivo, o Movimento Guaicuru, que teria se empenhado na formulação de uma proposta, ainda que o historiador discorde da ideia de que os Guaicuru tenham sido os indígenas mais importantes para a formação cultural do estado, que, em sua opinião, foram os Guarani: Há um grupo de artistas, e esse movimento eu cheguei a estudar um pouco, que é mais da década de 80. Eles chegam a afirmar que praticamente a divisão teria gerado um - 222 vácuo, que as pessoas não tinham clareza da identidade cultural sul-mato-grossense, que isso precisaria ser construído, e aí desenvolvem até algumas propostas. O Movimento Guaicuru de Cultura, por exemplo, entendia que os sul-mato-grossenses deveriam se espelhar na cultura guaicuru para descobrir a sua própria. Para elevar ao nível da consciência a sua própria. O Movimento Guaicuru, basicamente, foi um movimento em que pontificaram artistas plásticos de Mato Grosso do Sul. O grande mentor do movimento foi Henrique Spengler, um jovem historiador, também artista plástico, animador cultural. Ele foi sempre a figura que falou pelo Movimento Guaicuru, inclusive em entrevistas era ele quem falava pelo Movimento Guaicuru, era convidado para participar de mesas redondas, de palestras, sempre ele representando o Movimento Guaicuru... Mas havia, também, outros artistas plásticos, participantes de primeira hora, como o caso de Silvio Rocha, Adilson Schieffer, Cleir também se integrou um pouco mais tarde, Jonir Figueiredo também se integrou um pouco mais tarde... Esse movimento se desenvolveu a partir de 1985, mais ou menos. E foi um movimento muito atuante até o final do século XX. (Alves, 2009) Na defesa do Movimento Guaicuru pode-se perceber um outro eixo discursivo no conjunto heterogêneo de motivações para a busca de uma identidade cultural para o estado nascente. Idealizado por artistas plásticos, como foi dito por Alves, é evidente a preocupação de criar um nicho de mercado para o estado. Estes artistas, em especial Spengler, utilizaram pinturas Kadiwéu em suas obras, visando criar um diferencial legitimado como identidade por uma referência histórica selecionada entre outras possíveis, diferencial este que não fosse oferecido por outra unidade federativa. Assim, a proposta do Movimento Guaicuru se diferencia, por exemplo, da preocupação de Guizzo, que não visava, ao menos diretamente, um resultado econômico, voltando-se para a “descoberta” de uma identidade regional. Isso coloca em destaque o fato de que diversas vozes – artistas, intelectuais, políticos –, com interesses parcialmente divergentes, uniram-se em torno de alianças transitórias com o objetivo comum de construir uma identidade sul-mato-grossense. Também na fala de Humberto Espíndola, em defesa da adoção da identidade guaicuru, parece estar presente a preocupação de que esta identidade abra novas perspectivas mercadológicas para o estado: (...) e depois teve um equívoco muito grande, as pessoas acharam que o estado nasceu no dia em que o Geisel sapecou a caneta. Este é um grande equívoco de identidade... Trinta anos de Mato Grosso do Sul... Ninguém fala “500 anos da nação Guaicuru”. Porque, na verdade, as pessoas acham que o estado começou [há 30 anos]. Mas não, - 223 toda a história de Mato Grosso começa no Sul. A nação Guaicuru, que foi a última tribo indígena a se integrar no Império brasileiro, ela ficou até o último momento, até às vésperas do Império [cair] como nação Guaicuru, ninguém sabia se seria espanhola ou se seria portuguesa. Por um gesto de sabedoria do Império, quando fez dos caciques capitães do exército brasileiro, eles assumiram a posição de capitães do exército brasileiro e essa parte [aqui] ficou para o Brasil. Então, não há uma outra história indígena como a de Mato Grosso do Sul no país inteiro. Ninguém valoriza esses aspectos. O estado poderia ser estado Guaicuru, estado de Guaicuru. Porque nós teríamos a identidade de um povo que viveu aqui antes dos colonizadores chegarem. E conviveu com esses colonizadores. E que se tornou uma nação poderosa no século XVIII, perigosa, ao assimilar o cavalo do colonizador. (Espíndola, H., 2009) É patente, na visão de Humberto, a utilização da etnia guaicuru como símbolo identitário por ser potencialmente doadora de autoestima, associável a uma marca forte (índios que se apropriaram do cavalo e do ferro, portanto tecnologizados, poderosos e perigosos) e, por tudo isso, possivelmente vantajosa em termos comerciais. O lugar do índio guaicuru é, também, estratégico e coerente com o projeto de Humberto, de propor um deslocamento dos eixos de poder no estado, recusando a subordinação aos grandes centros brasileiros em favor de novas alianças com os povos platinos. Nossas experiências sociais e históricas remontam aos tempos pré-colombianos, anteriores à colonização da América por portugueses e espanhóis. A região geográfica onde hoje se implanta o estado de Mato Grosso do Sul encontrava-se há cinco séculos no cruzamento do divisor das quatro principais raças indígenas do continente sulamericano (...). Por ser aqui quintal dos quatro grandes troncos, aqui se mesclavam, revelando uma tendência única de comportamento no continente, com específicas manifestações culturais (cultura mbaya-guaicuru). (Espíndola, H., 2011) Humberto entende que a missão histórica do MS é a de criar um ambiente de fraternidade e respeito entre os povos vizinhos, produzindo, na política externa brasileira, caracterizada por ele como “imperialista”, uma mudança de curso, ainda que não abra mão de combater o contrabando e o narcotráfico: Nosso povo, o sul-mato-grossense, pacificou em nome do povo brasileiro o ódio advindo da guerra com o Paraguai, e ainda hoje é palco de guerra do contrabando e do narcotráfico sem contudo pôr em risco a fraternidade e o respeito para com os vizinhos de outras nações. Portanto, encontra-se neste jovem estado o maior acervo de experiências sócio-políticas entre Brasil, Paraguai e Bolívia. (Espíndola, H., 2011) No entanto, a retórica de Humberto não busca o conflito com os centros de poder. Qualquer alteração no balanço de forças regional e nacional se daria, não pelo confronto - 224 direto, mas em razão da nova importância adquirida pelo estado, ao dar continuidade à sua vocação histórica: Ao sul do nosso atual estado, passava a estrada inca, o Caminho do Peabiru, calçada de pedras, ligando Cuzco ao Atlântico. Já exercíamos a missão cultural de povo mediterrâneo em nosso continente, ligando o leste ao oeste e o norte ao sul. (Espíndola, H., 2011) Assim, o reconhecimento da herança indígena vem em favor do projeto de Humberto para o MS, que é o de colocar o estado no centro de uma articulação de toda a América do Sul: A Constituição Brasileira é enfática na aproximação do país para com toda a América Latina. Cabe-nos um projeto cultural para transformar Mato Grosso do Sul num laboratório para o Brasil se exercitar e se integrar aos países latino-americanos de etnia indígena. (Espíndola, H., 2011) Neste sentido, a mitologia guaicuru proposta por Humberto como doadora de identidade ao estado nascente, embora, evidentemente, não tencione uma ruptura com o status quo, demonstra uma contraditória relação com o projeto divisionista. Por um lado, vai ao seu encontro, auxiliando-o na busca de símbolos supostamente definidores de uma identidade sulmato-grossense que favorecesse a hegemonia das elites agrárias ascendidas ao governo. De outro, empenha-se numa direção desfavorecida econômica e politicamente – a América Latina Índia – em oposição a algum traço identificatório que pudesse reforçar a aliança do MS a São Paulo por meio de sua situação subordinada. Tais traços não são difíceis de encontrar, como vimos no Capítulo 1, em que as elites pecuaristas apoiaram São Paulo em sucessivos levantes, tendo maior destaque a implantação do Estado de Maracaju, durante a Revolução Constitucionalista de 9 de julho de 1932. Por sua vez, Gilberto Luiz Alves discorda tanto de Guizzo quanto dos proponentes do Movimento Guaicuru, criticando o romantismo deste movimento. Seu interesse prioriza a recuperação de marcas históricas da influência Guarani sobre a cultura do estado. Alves, entretanto, reforça a ideia de uma união latino-americana pensada a partir do MS, ao lembrar que a influência dos Guarani é tão forte na região que chegou a provocar temores relacionados a ameaças de sua separação do Brasil: - 225 A minha hipótese é outra [em oposição à do Movimento Guaicuru]. Influência cultural extensa em MS foi viabilizada pelos Guarani. Eu entendo que os Guarani, sim! Já existia aquela experiência histórica, das missões jesuíticas do Paraguai. A convivência deles, inclusive, com espanhóis. Quando eles começam a ser trazidos para o sul de Mato Grosso para realizar principalmente a exploração do mate, eles plasmam, nessa fronteira, os seus hábitos, os seus costumes, os seus valores. A tal ponto que um estudioso, um juiz de direito que se instala em MS na década de 30 [Silva, 2003], colocava sua grande preocupação pelo fato de essa população guaranizada, como ele dizia, dominar naquela fronteira. Ele dizia que o Estado não tinha nenhum controle naquela região. Havia, inclusive, um perigo de essa região ser desmembrada da nação. E postulava, então, um programa de nacionalização da fronteira, mas para ele o programa de nacionalização era um programa no sentido de neutralizar a influência dessa população guaranizada. E nós, que vivemos aqui, sabemos como que hábitos dos guaranis permeiam as nossas relações. Os nossos jovens hoje, é inclusive surpreendente isso, os nossos jovens hoje fazem as rodas de tereré na cidade, jovens, inclusive, das classes mais abastadas, de classe média, então a roda de tereré é um hábito sistemático na cidade. Como na comida também, eles influenciaram bastante, na música... A música sul-mato-grossense, se ela tem a sua singularidade sem dúvida nenhuma essa singularidade foi construída a partir de matrizes legadas pelos guaranis. A polca (...) que já teve até mais influência por aqui, o chamamé tem ligação com isso... Como que, inclusive, a população daqui gosta dessa música de fronteira. Se identifica com essa música de fronteira. (Alves, 2009) Vemos que, da mesma maneira que a importância dada ao índio Guaicuru pelo movimento de mesmo nome, a valorização da influência Guarani conferida por Alves também atua no sentido contraideológico, oposto ao projeto nacional, voltando-se para o reconhecimento do repertório partilhado entre o MS e a América Latina Índia. Apesar da forte influência da cultura Guarani sobre o MS, como demonstra Alves, a noção de pertencimento, seja aos Guaicuru, seja aos Guarani, está longe de representar um consenso entre a população, sendo que muitos repelem com veemência a ideia de se fazerem significar por uma etnia indígena. Entre eles está Geraldo Roca, que tem sua própria narrativa sobre a singularidade do estado, e que está ligada ao Rio Paraguai, inclusive tema de uma notável música sua, a ser analisada. Entretanto, Roca concorda com Humberto e Alves quanto à ideia de uma América Platina, em que se integram Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, como veremos adiante por meio da descrição de sua perspectiva. Em outras palavras, seja buscando a filiação guaicuru, seja valorizando a influência guarani, seja integrando todas as narrativas sobre a região, o denominador comum entre diferentes reflexões sobre o MS, captadas pela Música do Litoral Central, é a defesa de um - 226 projeto político em que o estado altere sua posição no balanço de forças na América do Sul por meio de alianças com os países desse continente e a intermediação de relações do bloco assim criado com os centros decisórios brasileiros. Tetê e o Lírio Selvagem É no contexto destas discussões sobre a identidade cultural no Estado que os irmãos Espíndola (Tetê, Geraldo, Alzira e Celito) chegam à grande mídia. Trata-se do álbum Tetê e o Lírio Selvagem, de 1978, lançado nacionalmente, como foi dito, com um videoclipe exibido no programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão. A proposta do grupo – que consistia dos irmãos Geraldo, Tetê, Celito e Alzira Espíndola – era, basicamente, a proposta de Geraldo: a temática ecológica de um Pantanal estilizado, desterritorializado e não essencialista, unida à ambiência anti-stablishment, hippie e roqueira de 68, marcante em sua formação, e à música folk. É importante, devido a esta forte influência de Geraldo sobre o grupo, lembrar suas palavras, reproduzidas anteriormente, em que são evidentes o desinteresse pelo regionalismo e a adesão a uma cultura cosmopolita, via Rádio Nacional e influências midiáticas. No trecho seguinte, Geraldo dá mais detalhes sobre os discursos com os quais se identifica, evidenciando o entusiasmo pela participação em uma grande comunidade transnacional partilhada pelos jovens de então, unidos pelo rock, pelo hippismo e pelos ideais de maio de 68: Eu fiquei um porraloca do violão, deixei o cabelo crescer, passei a estar dentro do movimento mundial da revolução que foi no final da década de 60, underground mundial, escutando Bob Dylan, Jimi Hendrix, convivendo muito com Paulo Simões, também já nessa época a gente compunha algumas coisas juntos (...) A gente tocava [como canjas nos intervalos dos bailes animados por amigos] Beatles, Rolling Stones, Mutantes... (Espíndola, G., 2009) Sobre o Pantanal em sua obra, fica claro que não é uma referência fixa, relativa ao MS – sendo o Pantanal distribuído por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, as menções a este ecossistema tornam ambíguas as definições relativas aos estados. Não se trata, assim, de um - 227 Pantanal empírico, mas, reflexo das preocupações ecológicas contraculturais, um Pantanalsonho, Pantanal-delírio, Pantanal planetário (às vezes brasileiro): Eu já tinha um sentimento de ecologia, sabe, de preservar para as próximas gerações as coisas lindas que nós temos nessa Terra, e não só aqui, no mundo inteiro, então já nasci com isso, parece, a nossa geração já tem essa coisa no DNA. De ecologia, de mensagens profundas, poéticas, mas que atinjam realmente o coração das pessoas para a preservação, para a reserva nacional das coisas que nós temos, que são poucas, já... Quase que nos roubaram tudo... Na década de 70 eu já pensava assim, com esse sentimento ecológico. O Tetê e o Lírio Selvagem já vem imbuído disso, porque tem sete canções minhas no disco. Já começou por aí. (Espíndola, G., 2009) No entanto, o sonho dos Espíndola, de sair do isolamento imposto pela distância e inacessibilidade do MS e levar seu trabalho para todo o Brasil, via mídia de alcance nacional, não aconteceu com o Lírio. Isto porque a indústria necessita de uma classificação muito bem definida para comercializar seus produtos. A MLC, ao contrário, como vem sendo evidenciado, pautava-se pelo interesse oposto, as poéticas do deslocamento (sendo a de Geraldo Espíndola uma dentre elas). Estando envolvida com a prática da desconstrução identitária, buscava, não uma categoria definida, mas o atravessamento de todas elas. Como marca da diferença e da diversidade, o trabalho não interessou à indústria. Restavam as categorias preexistentes, e a inserção mercadológica do trabalho do grupo em uma delas não era assunto discutido democraticamente, mas imposto por uma relação desigual de poder entre a indústria e os músicos e compositores. Aquela música ecológica, vinda de um estado sobre o qual pouco se sabia além de vagas referências a florestas virgens, índios, onças e cobras, inseria-se em um quadro de referências organizado pela oposição natureza versus cultura. Necessitando de uma classificação definida para comercializar Tetê e o Lírio Selvagem, o álbum foi enquadrado na categoria da natureza. Isso se refletiu em toda a sua trajetória, inclusive nas negociações – fracassadas – dos Espíndola com os produtores (Roberto Menescal e Marcos Maynard) e o arranjador. Sendo assim, o fracasso de Tetê e o Lírio Selvagem pode ser, em grande parte, atribuído às relações de poder apontadas ao longo desta tese, que atribuíram ao MS o papel de um produtor - 228 primário, mais próximo da ideologia do natural e do telúrico, do que de participante, em igualdade de condições, do mundo contemporâneo, globalizado e tecnologizado. Posteriormente, esta insistência em conferir ao Lírio uma fisionomia natural seria instrumental aos interesses que buscavam inventar uma identidade cultural para o MS, pela via do regionalismo. O resultado conseguiu desagradar aos Espíndola, ao pequeníssimo público que já conhecia seu trabalho e ainda foi um fracasso comercial. O desconhecimento, por parte do produtor, arranjador e músicos de estúdio, das sutilezas dos gêneros regionais, e o desinteresse quanto a possíveis maneiras de integrá-los em um formato autoral – que ressaltasse as diferenças platinas –, transformaram o projeto em um fracasso artístico – nos termos propostos por seus criadores –, que seria secundado pelo fracasso comercial. O uso de arranjos padronizados, de instrumental inadequado e de cordas orquestrais, trai a intenção de enquadrar aquela proposta inusitada nas categorias comerciais já existentes no mercado. Ou seja, a busca de sucesso junto a um “público nacional” precisa ser articulada a discursos dominantes. Se o artista é, sempre, um discurso, que discurso é Tetê e o Lírio Selvagem? Vendido como um produto “natural”, o álbum é assim identificado desde a capa (colorida no arquivo anexado no CD), em que os irmãos são retratados em roupas colantes com estampas de bichos e plantas desenhadas pelo artista visual mato-grossense João Sebastião, conhecido por seu interesse pela representação do Pantanal. - 229 - Figura 3 - Capa do LP Tetê e o Lírio Selvagem Entretanto, é de se notar que as letras das canções possuam muito poucas referências a lugares específicos, sendo que uma dessas poucas referências é a Caucaia do Alto, em São Paulo, na canção de mesmo nome. Musicalmente, “Na catarata” e “Rio de luar” (que se chamava “Rio Cuiabá”, título modificado por demanda dos produtores) são as que mais se aproximam de referências regionais, com sua métrica ternária e busca de aproximação com a polca paraguaia. Isso não ficou despercebido, pois, nos anos 1980, uma geração mais nova de músicos sul-matogrossenses passaria a buscar – até mesmo, em certas situações, como reação a essa primeira geração – desenvolver uma ideia denominada por eles de polca-rock, da qual (segundo eles próprios, como veremos) a primeira representante teria sido “Polca outra vez”, de Geraldo - 230 Roca, e a segunda “Na catarata”, a partir do arranjo criado pelos músicos de estúdio que participaram do Tetê e o Lírio Selvagem. As canções se baseavam nas delicadas ambiências acústicas, folk, com inspiração ecológica hippie, criadas pelo grupo a quatro vozes, com suas craviolas (espécie de violão de 12 cordas), baixolão (espécie mais portátil de baixo acústico) e percussão. Ao invés de terem ressaltadas sua originalidade e suas letras densamente poéticas por meio de uma solução igualmente original, foram pasteurizadas por uma concepção equivocada. À base de piano Fender Rhodes e cortina de cordas, mais adequados a uma canção romântica tradicional, esta concepção não poderia atender nem aos desejos desse público, nem aos de uma outra audiência, identificada com o mesmo imaginário hippie proposto pelo grupo. Quanto às influências platinas, não foram consideradas capazes de atrair interesse. Diluídas, ao invés de valorizadas, tornaram-se quase irreconhecíveis. Isso nos leva a refletir sobre as possíveis razões para este procedimento. Para isto, é necessário retomar uma pergunta colocada na Introdução: por que nós, brasileiros em geral, sabemos tão pouco a respeito dos outros países sul-americanos? Não estaria este desconhecimento vinculado a relações de poder? Até mesmo em Campo Grande, há pouco interesse da população mais ampla em conhecer e se aproximar da língua espanhola e das culturas platinas. Em Corumbá, vizinha da Bolívia, não há, virtualmente, influência da música daquele país, sendo uma cultura tão sambista como se a cidade fosse o Rio de Janeiro (Ramos, 2009). Muitos dados foram trazidos para informar uma reflexão sobre o imaginário que rejeita aproximações com nossos vizinhos sul-americanos. “O Brasil é e não é a América Latina”. Em que medida este imaginário estava na base da falta de apelo do Lírio para o público brasileiro? Em que medida este imaginário prejudica os brasileiros e sul-americanos em geral, impedindo-nos de obter uma articulação política que fortaleça nossas reivindicações comuns? - 231 Isso não quer dizer que não haja uma fração enorme da população que se interesse por estas músicas. Os sucessos recentes, do “sertanejo universitário”, dos “baileiros”, em todo o Brasil, utilizam diversos gêneros platinos. Um dos mais populares, há muitas décadas, é o rasqueado, que deriva da polca paraguaia (ver nota 43). Seria fastidioso arrolar evidências de que os gêneros platinos são muito populares entre diferentes públicos brasileiros. No entanto, os artistas que se dedicam a eles, apesar de sua popularidade, não conseguem passar pelos filtros que definem o que é “sucesso nacional”. Esta é uma questão que não pode ser dissociada da análise do percurso artístico-comercial da MLC no plano nacional. Pode-se pensar, portanto, nestas mediações, para se compreender por que razão as diferenças musicais de Tetê e o Lírio Selvagem foram pasteurizadas na forma de música romântica ou disco music. Este foi o caso de algumas das canções mais ritmadas, “Rio de luar”, “Quando você tá por perto”, “Na catarata” e “Em piralenta”. As relações desiguais de poder, produzidas pela também desigual partilha do capital cultural e dos meios de produção entre músicos e indústria, estão bem expressas no comentário de Geraldo: Fizemos o disco “Tetê e o Lírio Selvagem”, danados da vida porque mudaram tudo! Eu tinha cabeça de maestro, mas era respeitado por quem em São Paulo? Ninguém sabia quem eu era! Diziam: “você não entende música, escreva uma partitura”. Eu ia escrever o que? Toco a minha música, sem precisar escrevê-la! [Os produtores eram] Marcos Maynard, Roberto Menescal. Diziam: “Vocês não sabem nada, vocês são índios, vocês vieram do Mato Grosso, se quiserem gravar o disco é assim, se não, bau, bau!” (...) Em “Rio de Luar” (...) [o] baixo era de discoteque [sic]. Desde o começo, disse: “Eu não quero esse baixo”, mas eles ganharam a cabeça de Tetê, Alzira (...) (Geraldo Espíndola apud Simões, [1984?]). Nesta fala de Geraldo fica evidente, da maneira mais explícita, o problema de se deixar representar pela mais insidiosa das categorias, a da natureza, e a desigualdade nas relações de poder resultante disso. A oposição natureza versus cultura fica claramente demonstrada na fala dominadora daquele que, como representante da cultura, detém os meios industriais de produção, necessários para a realização, distribuição e comercialização da música. Do outro lado se situa o discurso impotente do representante da natureza, a quem, na - 232 divisão social do trabalho, cabe a criação artesanal da música. Neste quadro ideológico de referências, a característica central da música, que é ser produto da cultura, dependente do desenvolvimento da técnica e da tecnologia (de cantar, de compor, de executar, de arranjar), é escamoteado, e tratado como matéria prima extrativista. Percebe-se, assim, que os impasses encontrados pelo álbum Tetê e o Lírio Selvagem reproduzem aqueles de ordem mais abrangente, encontrados pelo estado como um todo no plano nacional. Os discursos de natureza veiculados pelo álbum são passíveis de apropriações diversas, por diversos grupos, construindo diferentes posições subjetivas. Da mesma maneira como eram compreendidos pelo público contracultural em termos ecológicos, do ponto de vista das elites agrárias que passavam ao governo, foi possível articular tais discursos como um reforço à ideologia da natureza. Esta ideologia, portanto, passou a orientar a recepção ao álbum também dentro do estado, naquele momento já vivendo a euforia divisionista e a ansiedade por uma identidade cultural. Vemos, assim, que, nestes conflitos, a construção de uma ideologia identitária pelas elites dominantes do estado recém-criado supera as intenções dos artistas, sendo reforçada por ideologias nacionais e mesmo ainda mais amplas, envolvendo o capital global e a hegemonia estadunidense. Seguindo a lógica colonial, a partir da descoberta do Novo Mundo, que se continua com a lógica pós-colonial, o outro da Europa, a América, se relaciona, por contiguidade, ao outro do Brasil, Mato Grosso do Sul. Verifica-se a ação combinada destas ideologias, ao filtrarem e estabilizarem, continuamente, através do tempo, uma certa acepção da música dos Espíndola, paralela à acepção correspondente do MS – o polo da natureza. Vemos que este processo envolveu a seleção ativa dos componentes regionalistas, excluindo os elementos politicamente mais problemáticos para os discursos dominantes. Na perspectiva de uma política da representação, seria legítimo colocar a questão: por que não desestabilizar todas as referências, evitando identificar-se, de maneira estável, com - 233 qualquer uma delas? Ao contrário, o erro estratégico por parte dos artistas foi assumirem a defesa de uma “verdade artística”. Na fala de Geraldo explicita-se sua recusa a ser identificado, entre outras coisas, com o discurso social da discothèque, representado pela linha de contrabaixo. Esta recusa não pode ser explicada por uma suposta preocupação nacionalista, uma vez que o compositor/ intérprete utiliza largamente o blues, o rock, o folk, o reggae e outros gêneros estadunidenses, latino-americanos e transnacionais em sua produção. Simplesmente, o imaginário glitter, constituído e evocado pela disco music, irônico, debochado e abertamente “artificial”, se chocava com os ideais de “autenticidade” com a qual o rock e o folk rock estão visceralmente comprometidos, além de ir de encontro, também, no caso do Lírio, à preocupação com a “natureza”. Faltou aos artistas poder político para negociar um formato adequado ao seu produto, já que estavam sintetizando um produto artificial desde o início, com referências descontextualizadas à música paraguaia e à natureza que nada tinham a ver com suas representações tradicionais. Assim, tanto para lidar com a gravadora e para vender um produto de maneira bem sucedida, quanto para uma estratégia mais poderosa de negociação das relações de poder, seria mais adequada uma atitude irônica, de recusa a adesão a qualquer referência identitária fixa, podendo-se transitar por todas, inclusive a disco music. O resultado, desde sempre aceito como contraditório, seria comercial, por certo, mas não inerte politicamente. Esta dinâmica é explicada por Richard Middleton: O “sujeito da massificação” é construído serialmente, mais do que simultaneamente, no tempo tanto quanto no espaço – sendo, portanto, fragmentário – mas, nas palavras de Manfred Mann (apud Palmer, 1970, p. 145), “quanto mais pessoas compram um álbum, mais sucesso ele faz – não apenas comercialmente, mas [também] artisticamente”. Longe da ideia de que o valor de uso esteja sendo totalmente transformado em valor de troca – como entende a crítica adorniana – existe, portanto, um sentido aqui, no qual seu valor de troca funciona como um aspecto de seu valor de uso. Quanto maior seu sucesso comercial, mais o “sujeito da massificação” consegue sentir, embora de forma reificada, seu poder potencial. Desnecessário dizer, tal poder não pode ser simplesmente avaliado a partir de um cálculo quantitativo; e é duvidoso que a “posicionalidade de massificação” exista num estado puro, em vez de numa - 234 interação dialética com outras posicionalidades, mais específicas. Mais ainda, a política da prática cultural de massa articula-se, precisamente, nas relações qualitativas entre posição e resposta. (Middleton, 1990, p. 252) 40 Recusando a ideia de buscar um produto a um só tempo artístico, político e comercial, Tetê e o Lírio Selvagem encontrou o fracasso em cada uma dessas instâncias, demonstrando a coerência da explicação de Middleton. O álbum contém, assim, vários dos problemas que viriam a assombrar a MLC. Não sendo defensor de um ideário essencialista ou nativista, o movimento foi, no entanto, recebido assim, por deixar-se identificar pela categoria da natureza. Para isso, surpreendentemente, foi fundamental sua adesão, não tanto a gêneros regionais, que têm participação discreta e não nativista no álbum, mas ao rock, que tem na ideologia da “autenticidade” um de seus marcos identificatórios mais fundamentais. A defesa poética da ecologia, elaborada por Geraldo em suas letras, não seria um problema em si, posto que propriamente colocada, conceitualmente, em termos não exoticizantes. Entretanto, como, mais uma vez, a multiplicidade de posições subjetivas presentes nos discursos constroem diferentes realidades, organizadas hierarquicamente pelos processos de hegemonia, o tema da ecologia foi recebido pelas audiências nacionais sob a categoria estática e insidiosa da natureza, e, no âmbito do estado, gradualmente transformado em defesa essencialista de raízes regionais, por parte da MLC como um todo. Para tais processos hegemônicos concorreriam as interações de outros discursos envolvendo a defesa do Pantanal, que veremos adiante. Causa ecológica legítima, trouxe grande repercussão nacional e internacional ao MS. Entretanto, essa forte associação do 40 The ‘mass subject’ is constructed serially more than simultaneously, in time as well as space – and is thus fragmentary – but, in Manfred Mann's words (quoted in Palmer 1970: 145), ‘The more people buy a record, the more successful it is – not only commercially but artistically’. Far from the music's use-value being totally transformed into value in exchange – as the Adornian critique has it – there is thus a sense here in which its exchange-value functions as an aspect of its use-value. The greater its commercial success, the more the ‘mass subject’ is able to feel, in however reified a form, its potential power. Needless to say, such power cannot simply be read off from a calculation of quantity; and it is doubtful if ‘mass positionality’ exists in a pure state, rather than in dialectical interaction with other, narrower positionalities. Moreover, the politics of mass cultural practice hinge precisely on the qualitative relationships between position and response. - 235 estado com a região pantaneira terminou, também, por produzir uma representação regionalista e exoticizante, amplificada pelos discursos dominantes, pela qual a MLC deixouse, desavisadamente, instrumentalizar. Essa música associou-se, assim, a um ideário solene, pedagogizante e limitador que, à medida que passava o sentimento de ameaça, foi recusado pelos ouvintes. Principalmente as novas gerações, que passaram a ver na MLC uma imagem retrógrada, do mato, da natureza, do passado, quando tudo o que desejavam era participar do mundo contemporâneo, tecnológico e urbano. Que, ironicamente, era também tudo o que desejava a MLC inicial, pois, “enquanto esse velho trem atravessa[va] o Pantanal”, ela negociava seu estar no mundo em perpétuo deslocamento, vendo seu lugar de passagem sempre com renovada estranheza, fluindo nos trilhos da tecnologia que podiam ser, naquele momento, o trem, mas em outro momento, a Internet e o que viesse depois. A criação do MS, a nomeação do primeiro governador e a Fundação de Cultura Enquanto a MLC ensaiava suas primeiras tentativas de inserção na mídia nacional, e ao mesmo tempo em que ocorriam as primeiras discussões sobre a identidade cultural do estado após sua criação, uma busca febril pelo poder se desenvolvia, como foi dito. As disputas objetivavam a partilha dos cargos a serem criados em todos os escalões, com ênfase para o de governador. Desde abril de 1977, quando Geisel tomou a decisão de dividir MT, o regime militar criava a imagem de “estado modelo” para a nova unidade. Segundo Bittar, “[m]atérias jornalísticas, suscitando a expectativa de que no novo estado “tudo seria diferente”, começaram a ser veiculadas com o seguinte teor: “Fim do funcionalismo público com todos os servidores passando ao regime da CLT poderá ser uma das inovações (como qualquer empresa). O Governo Federal pretende criar unidade modelo para todo o Brasil”. (Bittar, 2009a, p. 356) Explicitava-se a preocupação dos governos militares em esvaziar a esfera políticoideológica, substituída pela aparente neutralidade dos aspectos técnicos, gerenciais, de - 236 planejamento. Isso está conectado à escolha do nome daquele que viria a ser o primeiro governador do MS. Com a indefinição, por parte das lideranças políticas sul-mato-grossenses, de um consenso em torno de um candidato local que pudesse ser apresentado a Geisel, este finalmente nomeia o gaúcho Harry Amorim Costa, em 31 de março de 1978. Consoante o discurso planificador da ditadura, da racionalidade e eficiência modeladas nas empresas capitalistas a gerir o Estado, o novo governador nada tinha de político, sendo um tecnocrata da confiança de Geisel. Na qualidade de diretor-geral do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), Amorim Costa já havia realizado algumas obras na região. Amorim Costa é empossado como governador em 1º de janeiro de 1979, data da efetiva implantação da nova unidade federativa, como mencionado anteriormente. Já em seu discurso de posse, o novo governador faz referência à procura de eficiência, que pautou a reestruturação da máquina administrativa em seu governo: A elaboração da estrutura organizacional do Poder Executivo, como instrumento operacional das ações do Governo, merece cuidados e atenções especiais, com o objetivo de alcançar racionalidade e eficiência administrativa, baseada nos pressupostos condicionantes da organização sistêmica, da gerência integrada e da descentralização executiva. Daí resultou uma estrutura inovadora na forma e na gerência, (...) adotado o planejamento como método de governo, para a mais ampla, livre e democrática participação comunitária em busca de maior apoiamento aos municípios e mais estímulo à iniciativa privada. (Amorim Costa apud Bittar, 2009a, p. 357-358) Esta ênfase nos aspectos gerenciais teria decisiva influência para a implantação de uma relativamente prestigiada Fundação de Cultura na estrutura administrativa do novo governo, produzindo um aumento de importância da cultura no interior da máquina estatal, o que se refletiria diretamente na trajetória da MLC. Para isso contribuiu, talvez, o fato de que Amorim Costa e sua equipe, sendo originários do Rio Grande do Sul, compartilhassem da crença manifesta naquele estado, quanto à importância política e necessidade ideológica de se promover a cultura, especialmente aquela de cunho nativista e gauchesco. Tal crença é - 237 confirmada pelo Secretário Estadual da Cultura do RS desde o início do governo Tarso Genro (PT), Luiz Antonio de Assis Brasil: Operamos em um estado multicultural, com culturas híbridas que cultuam um certo padrão hegemônico de representação do gaúcho. O homem do pampa é a metonímia do rio-grandense. Isso condiciona, inclusive, a destinação de recursos. (Assis Brasil apud Sartori, 2011) Esta nova importância da cultura na reestruturação administrativa do estado, realizada por Harry Amorim, bem como a ênfase no aspecto tecnocrático, é assim descrita por Glorinha, que foi convidada para assumir a diretoria executiva da recém-criada Fundação de Cultura: (...) o que sempre falo, é o olhar de quem vem de fora... Harry Amorim Costa foi uma pessoa que deu muito valor à cultura. Ele trouxe uma equipe do Rio Grande do Sul para implementar aqui as secretarias, o governo. E resolveu criar a Secretaria de Recursos Humanos com cinco fundações, e uma era a Fundação de Cultura. A pretensão era de que elas todas trabalhassem dentro de um plano comum. Então o que se fizesse na Educação repercutia na Cultura, na Saúde, et cetera. E eu estava à frente da Fundação de Cultura. (Sá Rosa, 2009) O elogio ao “olhar que vem de fora”, e a evidente admiração de Glorinha por Harry Amorim e sua visão administrativa – que foram compartilhados por muitos outros campo-grandenses –, contrariam a expectativa de que um governante vindo de outro estado apenas devesse provocar a ofensa dos brios regionalistas. Ressalta na fala de Glorinha a maneira de pensar que se afirmou na cidade, em parte devido à influência dos pecuaristas e sua preocupação com o desenvolvimento capitalista da região, que marcou a cultura de Campo Grande, tal como tantas vezes salientado aqui. Neste paradoxo – uma ideologia capitalista aberta à globalização econômica, tensionada pela necessidade de estabelecer a hegemonia política dessa mesma classe a toque de caixa, a partir da invenção de um regionalismo após a divisão (paradoxo complexificado pela contestação de ambos os termos por discursos alternativos de modernização crítica) – reside a chave para entender a trajetória da MLC desde 1977. É importante perceber o início da inserção do tema ideológico da identidade cultural do estado nascente na estruturação da máquina governamental, uma vez que esta política cultural seria decisiva para a transformação da MLC, de música marginal, em expressão dessa - 238 identidade. O grupo que construiu toda a noção de cultura sul-mato-grossense dentro do governo era bastante homogêneo e, ao contrário das gerações anteriores, entendia a MLC como a sua música. Esta poderosa mediação, a meu ver, foi uma – entre outras a serem descritas – a instituir a MLC como a fisionomia musical do estado, o que teve resultados contraditórios. Empossada na diretoria executiva da Fundação de Cultura, Glorinha leva para a fundação alguns ex-alunos que haviam se destacado durante os festivais de teatro e de música como jovens de talento, energia e profundo envolvimento com a cultura. Esses jovens, identificados com questões sociais, foram responsáveis por levantamentos e programas pioneiros para a região: (...) E [a fundação] não tinha nem sede. A gente se reunia numa sala lá do CESUP [faculdade particular] cedida pelo Pedro Chaves (...). [O] pessoal todo eram oito pessoas, hoje essas pessoas todas trabalham na cultura do estado. Eram Idara Duncan [artes plásticas], Neusa Arashiro [artesanato], Lenilde Ramos [música], Paulo Vilhalba [cinema], Albana Xavier Nogueira (chefe do Patrimônio Cultural), [Américo Calheiros, teatro, e Necy Yonamine, secretária]. Éramos oito pessoas, nossa verba era pequena, no entanto em seis meses a gente expandiu a cultura pelo estado inteiro. (Sá Rosa, 2009) Idara Duncan confirma o entusiasmo desta equipe, que era pequena, mas consistia de “pessoas interessadas, esforçadas e competentes, que tinham todo um mundo para descobrir, pesquisar, implantar e executar imediatamente” (Brandão, 2007, p. 104). Conforme salienta Lenilde Ramos, estas pessoas teriam papel importante na configuração que a cultura iria obter dentro do aparato governamental, não só naquele momento, mas também em vários governos por vir: Com a divisão do estado, a primeira [presidente da Fundação] de Cultura (...) foi a Glorinha Sá Rosa (...). A primeira equipe, tanto da transição, quanto a primeira equipe da Fundação de Cultura foi a turma da nossa classe [na Faculdade Dom Aquino, onde lecionava Glorinha]. Ela chamou a Idara Duncan, ela chamou Lenilde Ramos, Américo Calheiros, Cristina Matogrosso, e com essa equipe ela (...) instalou a primeira Fundação de Cultura do Governo do Mato Grosso do Sul (...) Aí, depois dela veio o Guizzo, veio a Lélia Rita [de Figueiredo Ribeiro], que também tinha feito parte da nossa turma... Então essa turma tem um papel histórico dentro desse contexto cultural (...) A Neusa Arashiro, até hoje ela faz parte dessa área de Patrimônio Histórico e Cultural, a Maria Uehara, [que também] era da nossa classe, o Hélio de - 239 Lima, que também era da nossa classe, que depois trabalhou mais a cultura ligada à área da educação, então foi um grupo emblemático, mesmo. (Ramos, 2009) O momento da divisão, como já foi dito, representou a ascensão de uma preocupação predominante com a identidade cultural do estado, motivada pela busca, por parte das elites dominantes, de unificação do estado como estratégia de obtenção de consenso político. Da mesma maneira, a preocupação com a identidade cultural passou, assim, a ser também predominante para a Fundação de Cultura – entretanto, não por adesão acrítica dos agentes dela participantes, mas por este objetivo articular-se com seus interesses progressistas. Pelo exame de sua atuação, percebemos como foi construído um consenso em torno da necessidade de desenvolver uma identidade cultural para o MS, fundado em interesses contraditórios de grupos bastante distintos, ideologicamente. No caso do grupo que assumiu a Fundação de Cultura, seus interesses eram voltados ao desrecalque da cultura local, em oposição à importação de modelos de fora, convergindo com a preocupação de Guizzo. Como conta Lenilde, na época da divisão do estado, a música de raiz estava muito em baixa. Os meios de comunicação, por conta de toda a modernidade, por conta de toda a música americana que tinha entrado com tudo, discoteca... A música [de raiz] estava moribunda. Então, eu montei um projeto que chamava Cantando para Mato Grosso do Sul, uma coisa assim. E a gente ia em cada cidade, pesquisava seus valores. Depois nós dividíamos o estado em cinco regiões e cada cidade... íamos numa cidade-polo daquela região e a gente fazia um grande festival. O que apareceu de gente boa, de violeiro, de músico, de repentistas... E aí, cada vencedor daquela região vinha pra Campo Grande e a gente mostrava, os representantes escolhiam os dez grupos, [por exemplo,] que representavam o MS. E nós fizemos isso cinco anos seguidos. E a música de raiz começou a ter um impulso grande, porque nós conseguimos gravar um disco com essas duplas, e as rádios tocavam as músicas... Não digo que tenha sido por causa disso, mas naquela época eles tiveram essa projeção toda patrocinados pelo governo do estado. (Ramos, 2009) Temos, assim, um panorama desses artistas e animadores culturais que fizeram parte da Fundação de Cultura após a divisão, e, como tal, subitamente alçados a promotores de políticas públicas para o setor cultural. Pessoas a quem não eram estranhos os ideais críticos, alternativos, libertários e contraculturais dos anos 1960 e 1970, era de se esperar que não resumissem a atividade da Fundação à cobertura das manifestações mais elitizadas e - 240 canonizadas. Ao contrário, procuraram realizar levantamentos relativos à cultura popular em virtualmente todas as suas manifestações. O próprio nascimento político de uma terra nova, de um estado novo, proporcionava essa adrenalina. E outra coisa, era uma estrutura toda nova que tinha que ser ocupada, um campo que tinha que ser ocupado, e as pessoas tinham que ter práticas, fazeres pra esse novo projeto que estava nascendo. E estava tudo aberto para as ideias pra quem... Então a gente nadou de braçada mesmo, naquela época. Porque a gente fez projeto pra cinema, pra literatura, pra artes, livros eram lançados, LPs eram gravados com a maior dificuldade, tinha que ir lá em São Paulo, levar o povo pra gravar, vir aqui... Então, houve uma projeção muito positiva desses nomes, dessas pessoas. (Ramos, 2009) Vemos, portanto, que a construção de um consenso em torno da identidade cultural do estado, além de fundamental para os interesses políticos das classes dominantes, envolvia, também, a possibilidade de questionar estes mesmos interesses, com o estímulo à produção e circulação de ideias novas, de novos modelos de pensar o estado, após décadas de repressão à realidade local. Articulando segmentos sociais discordantes entre si em torno de alianças parciais e transitórias, a questão da identidade não poderia deixar de produzir resultados contraditórios. A reflexão sobre o local, como vimos, já se havia iniciado muito antes, com a participação de Guizzo, dos músicos envolvidos nos festivais, de Humberto Espíndola e Aline Figueiredo, Glorinha e outros atores. Ainda outra mediação para a consolidação da Fundação de Cultura, que teria reflexos sobre a MLC, foi o fato de que Harry Amorim seria um governador pessoalmente envolvido com a questão da cultura, devido, segundo Glorinha, à sua condição de natural de um estado extremamente cioso de suas tradições: [Esse interesse do Harry pela cultura] era uma coisa já íntima dele, lá no RS há um grande interesse cultural. A quantidade de livros que eles publicam, a quantidade de CDs, o dinheiro que eles aplicam naqueles Centros de Tradições Gaúchas, é uma explosão cultural, são estados que dão muito valor à cultura. Eu fui presidente do Conselho Estadual de Cultura, cansei de ir nesses encontros, lá... Nossa, eram... As pessoas brigando, para impor certos valores, certos autores... (Sá Rosa, 2009) Foi o próprio Harry quem solicitou à UFMS, que, por sua vez, se envolvesse nesse esforço de levantamento da identidade cultural do estado, que subsidiaria o lançamento de projetos, por parte da Fundação, visando o aproveitamento das potencialidades detectadas. - 241 Tudo isto evidencia a profundidade do processo de institucionalização por que estava passando a cultura do estado, e também a ambivalência desse processo, que não deixou de trazer benefícios a este setor. Segundo Glorinha, [e]sse pessoal que veio do RS já trouxe essa ideia de implantar a Fundação de Cultura, veio nos orientar... E todo esse movimento partiu da UFMS. Que fez até pesquisa, vieram pesquisadores que andaram pelo interior do estado, coisa que não se faz mais, para analisar as condições, as características de cada município, para implantar uma coisa nova. (Sá Rosa, 2009) Emergindo para o sucesso nessa época, como veremos, o Grupo Acaba ressalta a iniciativa pessoal do governador – com certeza, advogando interesses de grupos hegemônicos – para a implantação oficial da ênfase sobre a identidade cultural. Salientando, mais uma vez, a dívida que este ideário tem para com a institucionalização da MLC, Chico Lacerda indica também que as academias de balé utilizavam a música “regional” para suas coreografias: Chico Lacerda – [Com a divisão, a proposta do Acaba] começou a [se] fortalecer. Ganhou corpo. Aí que [foi] importante a presença do saudoso Harry Amorim Costa. Gaúcho! Gaúcho preserva sua cultura pra caramba. Quer dizer: esse gaúcho chega aqui e conta realmente com, vamos citar mais uma vez a professora Maria da Glória, ela e as suas equipes de trabalho e pede, “Eu quero levantar uma bandeira da identidade desse novo estado”. Foi uma vontade política (...). [Daí] começam a nascer com força, já em cima da música regional, as academias de balé, porque começa a nascer um estado mais ou menos definido, não é? O que nós temos hoje é fruto do passado! (Acaba, 2009) Como foi dito logo antes, sabemos que havia, desde pelo menos os anos 1960 e 1970, um interesse de parte de certos intelectuais (Guizzo, Humberto Espíndola e Glorinha, entre outros) e músicos da MLC em refletir sobre sua situação local, não se contentando em consumir a cultura importada dos grandes centros. Entretanto, essa não parece ter sido uma questão palpitante para os setores urbanos em geral, pois, como vimos, havia uma forte tendência no sentido de recalcar a face rural, paraguaia e pantaneira do estado, entendida como subdesenvolvida, em favor de manifestações trazidas de fora, mais condizentes com o ideal de desenvolvimento capitalista preconizado para a região pelas forças dominantes. Esse panorama é confirmado, implicitamente, pelo depoimento de Lenilde. A preocupação com a identidade é descrita pela compositora, nas entrelinhas, como tendo sido, - 242 até então, praticamente inexistente. Este dado sugere-se como forte indício de que tal preocupação tenha sido colocada na agenda de discussão e popularizada pelo processo de institucionalização que estamos referindo, ao qual a compositora faz referência ao declarar que a busca de uma identidade se oficializou: Quando assinaram a lei [da divisão], 1977, a intelectualidade de Campo Grande e do estado (porque tinha muito corumbaense envolvido também, interessado, até porque Corumbá sempre foi um foco cultural muito forte para essas gerações de 1930, 40, 50) (...) Essa identidade nos atropelou. Literalmente. Porque nós estávamos na iminência de pertencer a um outro contexto e nós não sabíamos quem nós éramos. Então, esse debate foi muito importante por conta disso. Se oficializou a necessidade de saber: quem somos, quais são os nossos elementos, o que forma nossa cultura... (Ramos, 2009) Apesar de partilhar o Pantanal com Cuiabá, sendo aquele ecossistema parte do sul do estado, a urbana Campo Grande, dominada pelas preocupações de suas classes dominantes com o desenvolvimento capitalista na região, não se reconheceu em suas tradições, que, aliás, desconhecia. Após a divisão, com a urgência produzida pelo agendamento da questão em todos os canais de comunicação social, são produzidas discussões que visam definir a identidade do estado nascente. Finalmente, como que num insight, as atenções da Fundação se voltariam para a música paraguaia – que já era praticada pelos grupos paraguaios tradicionais nas churrascarias da cidade desde muitos anos antes, com baixa valorização social, e pela MLC desde vários anos antes, de maneira deslocada, como foi dito. Deve-se notar que esta é uma passagem, como diz Lenilde, da periferia, do âmbito popular, do âmbito rural, para a cidade, ressaltando tanto o processo de instrumentalização do periférico pelas elites, quanto, contrariamente, um movimento de desrecalque do outro: [Se oficializou a necessidade de saber] o que nós vamos herdar da cultura de Cuiabá... que praticamente era nada... porque a cultura que nós tínhamos de Cuiabá era a cultura pantaneira. Eu digo assim, nós, aqui, urbanos. Porque a nação pantaneira, que é uma só, o Pantanal Sul reproduzia literalmente a cultura do Pantanal Norte. O cururu e o siriri, a viola de cocho, então essa era uma identidade que nós chamávamos pra nós. Mas fora essa identidade mais de raiz, que já era uma identidade natural, a gente sabia que a gente não era só cururu, siriri e viola de cocho. Porque como nós não conhecíamos o nosso Pantanal, isso pra nós era uma coisa cuiabana. Mesmo que tivesse no nosso Pantanal, mas não era do nosso conhecimento, os corumbaenses que - 243 conheciam muito bem esses elementos. Então, a gente procurava alguma outra coisa, num cenário mais urbano, que nos identificasse como uma expressão própria. E estava muito difícil a gente conseguir desenhar, assim, uma expressão própria. Então, o que a gente começou a fazer? A gente começou a puxar os elementos da fronteira do Paraguai, que já estavam totalmente introjetados dentro da nossa maneira de viver. A música paraguaia, a partir daí, ela saiu daquele âmbito assim mais popular, daquele âmbito mais rural, saiu mais da periferia, saiu mais das fazendas, pra ela vir pra cidade. Então, a partir do momento em que a gente assumiu a polca paraguaia como ritmo nosso, o ritmo da nossa criação, nós descobrimos o número um. (Ramos, 2009, grifos meus) Mas o processo de absorção dessa música e de outros elementos como representativos do estado, ou da imagem dominante do estado, não estaria dado, tendo que ser construído ao longo de anos até que, finalmente parecesse natural. Nesse momento conseguiu-se uma síntese entre modernidade e tradição: E o interessante é que todos os elementos que nós procurávamos como nossos não eram nossos. Os elementos pantaneiros a gente achava que eram só de Cuiabá. A polca paraguaia era do Paraguai (risos). As coisas de culinária... Então, a gente precisou viver esses anos todos depois da divisão do estado pra hoje nós termos feito esse amálgama, de termos mexido nesse caldeirão, pra dessa colcha de retalhos nós depurarmos isso aí pra extrair a nossa identidade. Eu vejo dessa maneira. Porque a gente não ia encontrar a nossa identidade naquele 1979, 1980... Ia ser muito difícil, a gente tinha pedaços. A gente precisou viver esses pedaços todos juntos, misturar todos os pedaços, e é claro que com isso, é só o tempo que realiza esse processo, pra gente, hoje, olhar pra essa mistura... Então, aí que eu digo, que essa mistura é um ponto extraordinário dentro da cultura brasileira. Porque acho que essa mistura é a que tem o novo, essa modernidade da expressão cultural de Mato Grosso do Sul é uma coisa fantástica. Nós já misturamos tudo, já sabemos o resultado dessa mistura. E é a cara do Mato Grosso do Sul. É o moderno e o antigo juntos. (Ramos, 2009) Deve-se notar aqui a sutil transformação já mencionada antes: o uso da música paraguaia pela MLC dos primeiros tempos era deslocado e provocador de estranhamento, frente à evidente artificialidade, enquanto aqui já se constitui uma narrativa em que tudo recai em seus lugares e se torna natural. Organiza-se, assim, a construção da hegemonia das classes dominantes no estado recém-criado, por intermédio de um processo não linear, ao contrário, marcado por rupturas e retomadas. Este processo complicado é resultante da necessidade de incorporar interesses de variados matizes, progressistas e regressivos. Entretanto, mesmo com a consolidação desta “identidade”, verifica-se que a ambiguidade inerente ao processo continua possibilitando a - 244 crítica ao mesmo, fruto de sua contradição constitutiva e das múltiplas posições subjetivas disponibilizadas por ele. Fessul e Festão Entretanto, anos antes da consolidação desse processo, em 1979, com o surto de euforia e otimismo desencadeado pela divisão, que prometia um surto de prosperidade econômica e social sem precedentes, vários eventos marcantes são organizados na área da cultura. Dois deles são festivais: o I FESSUL (Festival Sul-Mato-Grossense de Música), dedicado à música popular urbana, e o I FESTÃO, específico da música sertaneja. Estes dois festivais diferenciam-se radicalmente dos anteriores por contarem com a organização e o apoio da poderosa TV Morena, a repetidora local da TV Globo, que garantiu uma divulgação nunca antes realizada para a MLC. Isso implica em um planejamento que visava a popularização dos eventos, como forma de obtenção de lucros, e, evidentemente, manter a ideia de uma identidade cultural do estado no primeiro plano da pauta da sociedade. Para tanto, o teatro Glauce Rocha, onde tiveram lugar alguns festivais anteriores, é substituído pelos ginásios esportivos da UCE (União Campo-Grandense dos Estudantes) e da UFMS (o Moreninho), que comportavam número significantemente maior de espectadores, o que efetivamente contribuiu para a maior visibilidade do evento e, principalmente, de sua música. Para o músico, compositor e jornalista Rodrigo Teixeira, o FESSUL começa a mostrar a produção autoral daqui (...). O maior veículo de comunicação estava junto com a cultura, de uma maneira ou outra. Então, o que aconteceu? Popularidade. Era um momento de euforia. (Teixeira, 2009a) A efervescência deste momento é descrita por Moacir Lacerda, do Grupo Acaba: (...) em 1979, com o entusiasmo da Divisão, a TV Morena resolveu promover o I FESSUL (...)., no qual podiam inscrever-se compositores de todas as idades e de todo o Brasil (...) Pela primeira vez, um festival em nosso Estado ia ser veiculado pela televisão. O primeiro prêmio era um automóvel, e a apresentação foi feita por um artista de âmbito nacional, Tony Ramos. Do júri, faziam parte nomes expressivos de nossa MPB, como Ricardo Cravo Albin, maestro Guio de Moraes e os experts locais: José Octávio Guizzo, professora Glorinha, Luca Marimbondo, entre outros. Houve mais de 400 inscrições (...) A TV Morena promovia shows todos os sábados, no - 245 sentido de fomentar a participação no I FESSUL. A noite de abertura aconteceu na UCE, com filas quilométricas de gente, querendo comprar os ingressos, que afinal não chegaram para quem queria. A UCE (...) não comportou a maioria, que voltou para casa e foi assistir ao evento pela TV Morena. Ainda me lembro do Governador Harry Amorim Costa aplaudindo e sorrindo, na primeira fileira. Foi um acontecimento histórico aquele I FESSUL, em que ganhamos o primeiro lugar com KANANCIUÊ (...) Soube que ganhamos por unanimidade, causamos impacto nos jurados e no público, quando surgimos no palco vestidos de branco, colares e instrumentos indígenas, cantando (...) Fiz a pesquisa através de diversas leituras (...) Foi o primeiro trabalho que fizemos em torno dos índios e aconteceu no momento em que o Estado buscava suas raízes, sua identidade cultural. (Moacir Lacerda apud Sá Rosa et al, 1992, p. 118-119) A proposta fortemente regionalista do Acaba, que colocou, desde o início, como sua bandeira principal, a defesa das raízes, repercutiu entre os jurados de fora, Ricardo Cravo Albin e maestro Guio de Moraes, que a levaram ao conhecimento de Marcus Pereira. Produtor de coletâneas de música tradicional das diversas regiões brasileiras, Pereira terminou por produzir também o primeiro LP do Acaba. Posteriormente, essa associação com Pereira ainda daria outros frutos ao grupo: Essa música abriu espaço para o Grupo ACABA, não apenas a nível regional, mas também nacional. O maestro Guio de Moraes e o Ricardo Cravo Albin informaram ao Marcus Pereira, que estava fazendo o mapeamento musical do Brasil, que a música de Mato Grosso do Sul não se resumia apenas a CUITELINHO que é a única composição, que aparece na coleção MÚSICA POPULAR DO CENTRO OESTE, organizada pelo Marcus Pereira (...) Disseram a ele que havia aqui um grupo, que fazia composições originais, baseadas na cultura local, que valia a pena ser ouvido. O Marcus Pereira então nos chamou, entusiasmou-se [e decidiu produzir] nosso primeiro LP: GRUPO ACABA – Canta-dores do Pantanal (...). O lançamento aconteceu no dia 24 de novembro [de 1979] (...) no teatro Glauce Rocha, prestigiado por grande público, muitas autoridades da Universidade, da Prefeitura Municipal de Campo Grande e do Governo do Estado, que patrocinaram o acontecimento. (Moacir Lacerda apud Sá Rosa et al, 1992, p. 119-120) Portanto, verifica-se, no I FESSUL, pela primeira vez, uma poderosa confluência de interesses na promoção da MLC. O desejo de encorajar essa música, subitamente entendida como a identidade do estado, juntando o moderno e o antigo, o urbano e o rural, é partilhado por empresários, governo, Universidade e intelectuais ligados à cultura: Por ser o primeiro acontecimento artístico do novo Estado, o festival recebeu importante apoio financeiro do governo, e a premiação final acabaria por refletir uma inclinação dos jurados e organizadores no sentido de prestigiar as manifestações de uma proposta regionalista. “Kananciuê”, do grupo ACABA, era a música que mais claramente empunhava essa bandeira, e não por acaso foi premiada com o 1º lugar. De autoria de Moacir Lacerda e João Luiz Bittencourt, sua letra dicionariza diversos - 246 vocábulos tupi-guaranis, tornando-se de difícil compreensão para não-iniciados, o que explica sua pouca penetração popular. (Fonseca e Simões, 1981, p. 23) “Kananciuê” (Moacir Lacerda/ João Luiz Bittencourt) Aruanã-Hetô é lugar das máscaras Maxte-Puru é lugar dos homens (...) Com jenipapo urucum pintei meu corpo Com rabo de canastra fiz flauta (...) Pesquei pirarucu com arupema e cipó-timbó Mandioca braba, inhame e cará plantei Pra alimentar meu corpo Aruanã-Hetô foi invadido Meu colar, meu tacape, minhas armas Não fazem mais sentido Nada vive muito tempo Só a terra e as montanhas Vem ver o que resta do seu povo, Kananciuê (...) Vem Jurumá expulsar Anhanguera Jaci, Tupã, filhos de Kananciuê (...) Tacape, cocar, mangaba, cajá Aruanã-Hetô Maxte-Puru Kananciuê Entretanto, a análise musical evidencia um surpreendente descompasso entre a forte defesa de um regionalismo do Mato Grosso do Sul, sustentada pelo discurso verbal do Acaba, e a música, uma canção que nada sugere tal regionalismo. A faixa inicia com percussões mimetizando sons de animais e peixes do Pantanal e uma introdução coral à capela, em que uma estilização “indígena” é procurada a partir de um arranjo de vozes masculinas em uníssonos e quartas. Entretanto, o que segue é uma toada em que o modalismo mixolídio e lídio sugere influência nordestina, enquanto o arranjo como um todo remete a padrões interpretativos do Centro-Sul. Portanto, entretecem-se diferentes vozes nesta canção, indicando uma construção identitária que passa ao largo daquelas consagradas para significar o MS – o paraguaio e o caipira, principalmente. É neste sentido que se retoma a pergunta colocada anteriormente, frente à afirmação, pelos componentes do grupo, de que o Acaba desenvolvia uma linguagem pantaneira: o que é, na música (não nas letras) do Acaba, uma “linguagem pantaneira”? - 247 Talvez se possa compreender melhor essa construção levando-se em consideração que as referências de origem dos irmãos Lacerda – o Pantanal – são mais ligadas ao norte do que ao sul. Embora se encontrem, mais recentemente, guarânias na produção do Acaba (como “Vazante correntina”, de Jairo Lara, gravada em Pantanal – coração da América, de 2001) elas são em quantidade incomparavelmente menor do que os cururus e siriris. Estes gêneros estão mais ligados à cultura nortista do que à de Campo Grande, onde são largamente desconhecidos. Além disso, é digna de nota a ubiquidade de influências musicais nordestinas na obra do grupo – modalismos e gêneros tradicionais naquela região, como cirandas, marchas-rancho e outros –, que podem ser interpretadas em razão da maior identificação de sua região de origem com o Norte-Nordeste do que com o Sul. A explicitação das vozes em diálogo nesta canção indica uma proposta surpreendente, se o objetivo declarado e buscado por todas as diferentes instâncias envolvidas era, justamente, construir uma identidade regional para o estado que nascia, a partir de suas singularidades. Ao invés de se construir por oposição ao norte, de que as elites sulistas desejavam se diferenciar, esta identidade, pelo menos no que tange ao Acaba, era pensada, ao contrário, por identificação ao universo cultural familiar aos cuiabanos, soando muito mais como um discurso de unificação do que de separação. O fato de que isto não foi tematizado e nem configurou obstáculo à ascensão do Acaba causa estranhamento. Este episódio evidencia o modo de funcionamento do processo de invenção de tradições colocado em movimento pela necessidade de produzir consenso após a divisão do estado. Como parte desse processo, foi produzida uma recepção que ressignificou estes discursos musicais, tornando-os “legitimamente” sul-mato-grossenses. A análise do material especificamente musical permite divisar contradições como estas, que seriam invisíveis apenas pelo exame do material linguístico. Confirma-se assim, portanto, mais uma vez, que a MLC, longe de se constituir - 248 como um movimento homogêneo, inclui projetos bastante discrepantes para Mato Grosso do Sul. É sintomático desta configuração peculiar, que, justamente aquela canção que viria a ser considerada o hino de Mato Grosso do Sul, “Trem do Pantanal”, nem mesmo fosse classificada entre as finalistas nesse I FESSUL. Este episódio é lembrado por Simões: Pelo momento histórico que o estado atravessava, pelo prêmio oferecido, se não me engano era um carro zero quilômetro, eu e o Geraldo Roca resolvemos, embora a gente não curtisse, não gostasse da forma de um festival competitivo, a gente sempre achou vazia e furada, mas todos os nossos amigos daqui iam participar, os Espíndolas e outros, nós resolvemos também inscrever a música “Trem do Pantanal”, que não havia sido gravada ainda. Então precisamos recapitular a data em que ela foi gravada pela Diana Pequeno. Deve ter sido em 79 [na verdade, foi em 1981, no álbum Sinal de amor]. Seja como for, nós viemos [do Rio], fizemos uma apresentação na eliminatória, eu, Geraldo Roca e Lúcio Val no baixo – viola, violão e baixo. O Geraldo é um cantor com dotes reconhecidos, uma voz poderosa, eu fazia uma voz de apoio e violão, acho que a gente se apresentou bem. O público, uma parte dele já cantou a música, foi muito aplaudida, alguns amigos conheciam, não sei dizer por que... Mas foi um tanto ou quanto surpreendente para nós que a música não tenha sido classificada para a final. Não precisava ganhar, mas não ir pra final... A história se encarregou de nos justiçar [risos]. (Simões, 2009) Acredito que, aparentemente, “Trem do Pantanal” não foi classificada porque não expressava, realmente, a ideia que se estava buscando para uma identidade sul-matogrossense, com a qual correspondia melhor e mais imediatamente, àquele momento, a proposta do Acaba, mais regionalista. Já vimos, pelo processo de gradual descoberta descrito por Lenilde, algumas páginas atrás, que ainda não havia clareza de que a “identidade” do novo estado seria buscada a partir das influências paraguaias (destacadas em “Trem do Pantanal”). Sabemos também, por outro lado, que desde “Mané Bento”, de Guizzo, o Pantanal – elemento privilegiado pelo Acaba – faria parte dessas referências. Além disso, diferentemente de “Kananciuê”, “Trem do Pantanal” não se apoiava em marcos definidores, fixos e estáveis, da identidade local (o que as referências a raízes indígenas e o telurismo pantaneiro parecem suprir a contento), além de desenvolver uma letra mais ambígua. A própria interpretação do Acaba, fortemente assertiva, comunicava certezas, - 249 que era o que se desejava no momento, enquanto “Trem do Pantanal” não oferecia mais do que dúvidas. Celito propõe uma interpretação para o fato que sustenta a argumentação desenvolvida até aqui. Para o compositor, “Trem do Pantanal” dizia respeito a uma “elite” que, com o tempo, gradualmente, se encarregaria de entronizá-la no lugar de marco identificatório. Para chegar a esta conclusão, que contribui para reforçar a ideia de que a MLC foi deixando de ser o que era, foi-se modificando para se adequar à expectativa identitária que percebia por meio das mediações recebidas, Celito traça um panorama da trajetória desses novos compositores. Esta trajetória se inicia com a juventude descompromissada de qualquer objetivo mercadológico, nos anos 60, até a progressiva ocupação do espaço que, perceberam, foi-se abrindo para eles à medida que avançava o processo descrito por Lenilde, de construção de uma identidade: Eu acho que tudo nasce assim [descompromissadamente]. Tudo nasce de forma absolutamente natural, com um bando de malucos, jovens, no final dos anos 60 e início dos anos 70, com sua formação na cultura dos anos 60, na música dos anos 60, e começa a exercer isso nos anos 70 (...) Aquela vontade de fazer música pra se divertir, pra curtir, pra se expressar, sem um compromisso e uma visão de mercado, sem visão nenhuma a respeito disso, da maneira mais saudável possível. Conforme isso avança, nos anos 70, começa a surgir esse tipo de consciência, porque as pessoas vão amadurecendo, as pessoas vão entendendo melhor esse cenário, e culturalmente vão ficando mais sólidas também. Então, nos anos 70, para se ter uma ideia, quando houve o FESSUL, o festival da TV Morena, a Globo local, a música “Trem do Pantanal” nem sequer foi classificada nesse festival. [A] própria emissora, 30 anos depois, propôs uma votação pública para eleger a música que representaria, que teria a cara do estado, e “Trem do Pantanal” acabou sendo eleita pela população [como] (...) a música que mais representa, digamos assim, de maneira imaginária, simbólica, o estado. [Portanto, naquele momento,] isso estava ainda apenas no âmbito dos autores, dos pensadores, digamos de uma “elite”, bem com aspas aí, de uma elite de intelectuais, professores, que enxergavam nessa geração todo esse potencial. (Espíndola, C., 2009) Para Celito, a divisão significou um marco zero cultural no estado, porque o mesmo não se reconheceu no grande cabedal cultural acumulado por Mato Grosso ao longo de 250 anos. Evidentemente, as explicações para este suposto não-reconhecimento são dadas pelo regionalismo proposto pelas elites pecuaristas do sul, em sua busca por acirramento das diferenças com o norte, visando a divisão do estado. A partir desse marco zero, o MS viu-se - 250 na contingência de passar a produzir seus referenciais identitários, dos quais a música era uma das maiores promessas. Por sua vez, os músicos viram-se empurrados por este processo, ou seja, perceberam, mesmo que difusamente, a expectativa que era colocada sobre seus ombros – a de participar, com destaque, na construção da identidade do estado. Começam, então, a produzir, não mais descompromissadamente, para apenas expressar os ideais críticos e contraculturais que fizeram parte da formação de sua geração, mas já com uma visão orientada para corresponder a essas expectativas identitárias: (...) [C]om a divisão do estado, em 1977, aí essa gurizada já tinha 21, 23, 19, 25 anos. [Eles] começam a perceber que toda a tradição oral, de artes plásticas, de patrimônio fica com Cuiabá. Fica com Mato Grosso. E que o nosso potencial, que tinha ficado realmente muito forte, é essa possibilidade musical (...). [H]á uma espécie de um marco zero na divisão do estado. E aí, a partir desse marco zero, uma certa consciência, muito descompromissada, muito leve, muito relax de que, realmente, a gente precisava fazer uma música... Essa geração, ela se vê, nesse momento, talvez até de maneira inconsciente, empurrada pela conjuntura, a se aprofundar, aprofundar um pouco mais essa questão de lidar com os elementos identitários da nossa cultura, da nossa música, e realmente começar a utilizar isso de uma maneira cada vez mais (...) clara, mais objetiva, na sua produção musical em fusão com os elementos de música contemporânea. E daí começa, realmente, a surgir essa identidade musical do estado. (Espíndola, C., 2009, último grifo meu) Não é difícil perceber a direção para a qual estavam sendo empurrados os compositores do estado. Os prestigiosos festivais promovidos pela TV Morena, com enorme divulgação, penetração e mobilização da sociedade local, são indicadores confiáveis destes rumos. Naquele mesmo ano em que “Kananciuê” derrotou “Trem do Pantanal” no I FESSUL, 1979, Aurélio Miranda (Cruzeiro) venceu o I FESTÃO com a toada sertaneja “Estrada de chão”, apresentando-se como parte do trio Cruzeiro, Tostão e Centavo na finalíssima, que se realizou no estádio de futebol Morenão. Mais uma vez, era um acontecimento central na vida da cidade e do estado, envolvendo intelectuais, universidade, governo, empresários e público: “Foram mais de 30 mil pessoas que aplaudiram a justa vitória” (Fonseca e Simões, 1981, p. 24). Aurélio Miranda é um importante compositor e intérprete regionalista, dono de vasta e significativa obra. Com sua sensibilidade e intuição, soube captar o novo momento e plasmá- - 251 lo numa música que permaneceria através das décadas, também, extremamente popular e representativa do Mato Grosso do Sul. Entretanto, esse novo momento dava tamanha repercussão às vozes antes recalcadas, mas, mediado por diferentes instâncias, com destaque para o júri, continuava a recompensar – e assim, reforçar – uma visão estática das classes subalternas rurais. Afinal, essas classes já não eram as mesmas há muito tempo, como lembra Rosa Nepomuceno: A estreia em disco de Léo Canhoto e Robertinho na RCA, em 1969, surpreendera. O desejo de modernizar a cara da música e do próprio artista sertanejo de ser aceito pela nova classe média urbana estava escancarado. O figurino não deixara dúvidas. Eles sabiam o que queriam: desprezavam aqueles trajes mexicanos, com calças de listras e chapelão de Sancho Pança, e inauguravam um estilo, na verdade mais exagerado, misturando trajes de boiadeiro com roqueiro. Sob as camisas berrantes de estampados psicodélicos abertas ao peito, tilintava uma profusão de medalhões e pulseiras. E os cabelos tinham crescido. Quando apareceram de motos e guitarras, Jeca Tatu cortou o dedo, picando fumo. A caipirada chiou (...). A dupla era discriminada no Café dos Artistas, nos corredores das emissoras de rádio (...). Mas [os dois artistas] queriam apenas chegar às novas gerações, que ouviam, como eles, as modas tradicionais dos pais e os sucessos de Roberto e Erasmo. (Nepomuceno, 1999, p. 180-181) Com certeza, essa nova orientação apenas se fortaleceu com o tempo, chegando aos nossos dias em que o sertanejo nada tem da visão idílica e bucólica associada ao passado de violas e violões acústicos. Hoje, as produções voltadas ao setor rivalizam com quaisquer outras do segmento pop, exibindo impressionante parafernália de palco, som e luz, e álbuns produzidos em estúdios de grife de Nashville. Não poderia deixar de ser assim, em vista da necessidade de integração com o mundo urbano, sentida pelas populações rurais recémchegadas às cidades. Entre as múltiplas causas para a migração dos trabalhadores rurais para as cidades, figuram com destaque as explicações centralizadas na expropriação desses trabalhadores. Segundo estas explicações, tratava-se do êxodo rural, que caracterizou a progressiva “empresarialização” do agronegócio a partir das políticas públicas para o setor, emanadas do regime militar após sua instalação. Conforme indica o sociólogo Rubem Murilo Leão Rêgo, [o] processo de modernização das atividades agrárias no Brasil vem se desenrolando, em várias etapas, desde o final do século XIX. A contínua transformação e superação das relações sociais atrasadas de produção – como a transição para o trabalho livre e a - 252 superação de formas extra-econômicas de sujeição da força de trabalho rural [e] a incorporação de inovações tecnológicas em várias fases do processo produtivo (...) constituíram mudanças que caracterizam o processo de modernização agrária (...). Aí podem ser encontradas as principais raízes do amplo processo migratório posterior, expressão do movimento de expulsão e expropriação das condições de vida de amplas camadas de trabalhadores rurais (...). Este processo foi particularmente intensivo após 1970, quando vai se concretizando uma crescente interdependência entre o capital agrário, tradicionalmente articulado com o capital comercial, e as outras formas do capital industrial e financeiro (...). Porém, a agroindustrialização do campo brasileiro foi acompanhada por um enorme processo de exclusão social de trabalhadores rurais – assalariados permanentes e residentes nos grandes domínios, assalariados temporários, parceiros e pequenos produtores minifundiários – agravando não somente as condições de miséria em que já viviam, mas também promovendo expressivo êxodo das populações rurais à procura de postos de trabalho nos mercados urbanos – há estimativas de que, entre 1960 e 1980, cerca de 30 milhões de brasileiros migraram do campo para a cidade. (Leão Rêgo, 1993, p. 24, grifo meu) É necessário ressaltar que não se pretende afirmar a expropriação como causa única para o êxodo rural. Há que se complexificar a análise. No entanto, o fato é que este enorme contingente rural em êxodo para as cidades passa a buscar sua representação, não mais nos termos romantizados de outrora, que propunham uma comunhão ideal entre o sujeito e a terra. Os novos trabalhadores urbanos desejam ser narrados por intermédio de uma reencenação de suas aventuras e desventuras nas cidades, ainda que continuem achando importante vincularse às suas origens rurais. Isto é feito, musicalmente, por meio do canto em duas vozes e outros signos convencionalizados. Reconhecem-se e reinventam-se, assim, nas grandes produções contemporâneas, que acenam com o mundo tecnologizado característico das modernas sociedades urbanas complexas, nas quais os egressos do campo e seus descendentes desejam integrar-se. Indo na contramão desta direção, a canção vencedora naquele I Festão voltava-se para o passado e constatava a imobilidade de sua condição presente. Lamentando o fim das viagens boiadeiras em estradas de terra, substituídas pelo transporte do gado por caminhão em novas rodovias asfaltadas, situa todos os signos tradicionais de movimento e dinamismo dos peões de comitiva em uma desconsolada e estática posição de relíquias de um tempo sem volta: - 253 “Estrada de chão” (Aurélio Miranda) Estrada de chão, seu tempo se foi Cadê a peonada, poeira e bois Cobriram de preto a estrada de chão E mais preto é o luto do meu coração O passado morreu, só ficaram lembranças E morre comigo a doce esperança De ainda se ouvir, nas encruzilhadas O berrante tocando chamando a boiada Grita o Peão Hei! Boi Na estrada de chão, vai boiada (...) Meu par de esporas, meu laço e arreio Que há tempos no meio das traias guardei Meu velho berrante enfeita a sala E ao lado as medalhas que colecionei Meu cavalo baio relincha no pasto Sentido o desgaste que o tempo lhe fez Deve-se ainda salientar o fato de que “estrada de chão” remete diretamente, por meio de metonímia, a todo o campo semântico que envolve a ideia de origem, fixação e pertencimento: terra, raiz, torrão natal, entre outros. É de se notar, também, que este elogio à terra, representado, por contiguidade, pelo campo onde pasta o “meu cavalo baio”, prenuncia um tipo de preocupação típica da música sertaneja que passaria no futuro próximo, inclusive, a fazer parte da MLC, para a qual, até então, era um sentimento inteiramente estranho: o elogio da propriedade da terra. Verifica-se, assim, com “Estrada de chão”, a predominância de um pensamento nostálgico, passadista e melancólico. Esta canção evidenciava o sentimento de exclusão dos trabalhadores rurais, expropriados de seu estilo de vida e meios de produção em face do estágio de desenvolvimento capitalista no campo. Enquanto as gerações mais novas souberam refletir sobre suas origens rurais no contexto de sua recente condição urbana por intermédio do sertanejo pop que já era proposto em 1969 por Leo Canhoto e Robertinho, os mais antigos ou identificados com o passado no campo tiveram muita dificuldade para fazer essa adaptação. Assim, embora “Estrada de chão” possa ser interpretada como um documento desse processo de exclusão, não deixava de ser, também e contraditoriamente, interessante para as classes dominantes recentemente instaladas no controle do aparelho de Estado. Afinal, - 254 tratava-se de construir imagens adequadas para o processo de consolidação da hegemonia dessas classes. Nesse sentido, a atitude contemplativa e nostálgica do passado, por evitar colocar a questão nos termos do conflito que suscitou o processo de expropriação, e por não estimular a atuação nesse conflito, é plenamente condizente com esse objetivo. Ao contrário, a reflexão ativa sobre o presente, que implica numa visão histórica das lutas dos banidos do campo para continuamente conquistarem seu lugar na sociedade urbana, surge, por vezes, ameaçadora para as elites. Justamente por isso as músicas vistas como “de raiz” são legitimadas pelas classes médias urbanas, enquanto o sertanejo pop é, em certos círculos, considerado destituído do valor da “autenticidade” e visto como uma música “menor”. Isso contribui para explicar o sucesso de uma música sertaneja nostálgica no contexto estratégico de um festival de grande popularidade, organizado pelos setores dominantes da sociedade com o propósito de organizar visões de mundo adequadas à confirmação do controle do aparelho do Estado por estes setores. Também contribui para a compreensão do uso, pela MLC, de músicas “de raiz”, e o preconceito voltado pelo movimento ao neo-sertanejo comercial pop. O colapso do governo Harry Amorim (1979) Ainda neste ano de 1979, a 12 de junho, chega ao fim, prematuramente, o governo de Harry Amorim Costa, apenas seis meses depois de ter-se iniciado e de ter trazido tantas expectativas de renovação, conforme comentou a revista Grifo: Nem a própria criação do Mato Grosso do Sul mereceu tanto destaque na imprensa nacional como a substituição de Harry Amorim. Apesar de anunciada nos meios arenistas locais desde antes de sua posse (o General Golbery teria prometido o cargo a Pedrossian em troca de uma vitória da Arena nas eleições de novembro [de 1978]), a destituição de um governador do Estado por um presidente [João Figueiredo] que, ao que tudo indica, vinha seguindo fielmente as orientações de seu predecessor, responsável pela nomeação, é um fato praticamente inédito nesses 15 anos de Revolução. Por isso, muitos atribuem a queda de Amorim à sua própria habilidade política, insuficiente para garantir o apoio e a cumplicidade dos principais capitães da política local, Pedro Pedrossian, Mendes Canalle, José Fragelli e Rachid Derzi. Em qualquer das hipóteses, a destituição do “Gauchão” só foi possível quando essas lideranças apresentaram ao governo federal um consenso momentâneo, já que - 255 Amorim havia sido nomeado justamente para por fim a uma crise resultante da “falta de consenso” entre essas lideranças. O consenso teria surgido, segundo os analistas políticos, em função do receio manifestado por essas lideranças, de ficarem totalmente fora do poder. Entre outras coisas porque, necessitando de maior sustentação política, Amorim vinha dando toda corda ao deputado Levy Dias, que poderia de repente tornar-se uma nova força dentro da Arena, minando progressivamente as bases dos demais. Trocado o governo, vencida a crise, duas verdades são evidentes: Amorim já havia conquistado certa simpatia popular e a forma com que foi demitido causou malestar mesmo entre velhos pedrossianistas. (Chacha, 1979, p. 19) O que este episódio evidencia é que a concepção de “estado modelo”, de “governo eminentemente técnico”, com a qual as elites procuraram justificar a divisão do estado, que seria “superior” e “diferente” daquele comandado pelas “oligarquias cuiabanas”, não era, realmente, um compromisso dessas elites. O governo de Harry buscava na eficiência tecnocrática uma solução para a consolidação e expansão capitalista na região, e insistia na ideia de planejamento participativo. Justamente em razão dessas diretivas, não deu continuidade aos antigos hábitos coronelistas/ clientelistas de uso da máquina pública para contentar a base eleitoral. Ao optar por essa linha, deixou de contar com o apoio daqueles que, tradicionalmente, procuravam cargos públicos para benefício individual. Por sua vez, os líderes destes, em disputa pelo poder, já buscavam o controle do cargo máximo e de todos os cargos de confiança do Executivo estadual desde que se iniciaram as articulações da divisão pelo governo Geisel. Segundo Marisa Bittar (Bittar, 2009a, p. 362-363), a concepção de “estado-modelo” se amparava tanto na ideia de um estado “exclusivamente administrativo”, gerencial, quanto nas noções que haviam, historicamente, feito parte do ideário divisionista. Tais noções, sempre visando à crítica ao “governo de Cuiabá”, apoiavam-se em três pontos principais, segundo a autora. Em primeiro lugar, a “superioridade econômica”: os divisionistas acreditavam que “mais de dois terços” da riqueza de todo estado eram gerados no sul, enquanto, só a capital, absorvia mais de 65% da receita. Em segundo lugar, os divisionistas criticavam a falta de atenção às áreas sociais no sul, especialmente a educação: as críticas concentravam-se na falta de escolas, professores e livros. Com a divisão, anunciavam “instrução pública primária e - 256 secundária gratuitas com um corpo de professores bem remunerados, pagos em dia e competentes”. Por último, acusavam “os políticos” pelo empreguismo e a inércia do estado. A “libertação” do sul dos “terríveis políticos de Cuiabá”, oriundos das “oligarquias” nortistas e responsáveis pelo “empreguismo” e o “clientelismo” era apresentada como a solução, uma vez que o espírito independente, autossuficiente e dotado de livre iniciativa dos sulistas encarregar-se-ia de trazer a prosperidade ao novo estado. Sendo assim, se advinda a divisão, esperava-se que a economia continuasse a crescer a índices superiores aos do MT. Os resultados desta prosperidade, se aplicados unicamente no sul, com privilégio dos setores sociais, especialmente da educação, resolveriam problemas arraigados, criados pelo esquecimento em se encontrava essa área. Com relação à governança, seria impermeável ao empreguismo, clientelismo e corrupção. Além disso, por criticarem o “mandonismo” dos políticos de Cuiabá, as elites do sul sugeriam que, uma vez instaladas no poder, caracterizar-se-iam pela gestão democrática e participativa da máquina pública. Entretanto, essa teoria não se mostrou condizente com a prática das elites, após a divisão. Como vimos na citação anterior, os altos ideais divisionistas sucumbiram frente à ambição pessoal dos chefes políticos locais. Como dependiam da política clientelista e empreguista para se confirmarem no poder, derrubaram Harry Amorim e toda a concepção de governo tecnocrático que ascendera junto com ele à governança do estado. Em seu lugar, permaneceram as velhas práticas. No caso específico da cultura, em vista da euforia que dominava a implantação do seu aparato na estrutura do governo Harry Amorim, a notícia de sua queda causou desânimo e frustração, como fica evidente nas palavras de Glorinha: Aí começou uma dispersão de tudo que tinha sido feito, porque a Fundação de Cultura foi transformada em departamento, que foi entregue ao deputado [Rubens] Figueiró e ao senador Rachid Derzi. Eram duas pessoas que, vamos dizer assim, não eram, no cerne, ligadas à cultura. E estas duas pessoas puseram gente lá, encheram de apaniguados... Todo aquele sonho acabou. E ficou nisso. O estado já começou... As coisas que se queria não se cumpriram, coisas que eram verdadeiros sonhos. Quando o Harry ia lá, explanava, a gente ficava admirado. O Secretário de Recursos Humanos se - 257 chamava Odilon Martins Romeo. Era uma pessoa extremamente ligada à cultura, que valorizava, que queria saber de tudo que era, a gente fazia projetos, ele ia lá, assistia à apresentação, isso não existe mais hoje. Então isso foi o começo da história. (Sá Rosa, 2009) Apesar de que o processo de criação do MS foi historicamente influenciado pela pressão exercida pelas oligarquias rurais sulistas, a mais forte personalidade política à época da divisão – e a principal força desestabilizadora do governo Harry Amorim – não era egresso de uma delas. O controverso Pedro Pedrossian, de ascendência armênia e família descapitalizada, conseguiu formar-se engenheiro e iniciou-se na vida pública fazendo campanha pelo marechal Lott para a presidência da República, em 1960. Apesar da derrota de Lott na eleição que colocou na presidência o também mato-grossense Jânio Quadros, soube Pedrossian conseguir apoio do PSD para conseguir ser indicado para a Superintendência da Ferrovia Noroeste do Brasil. Conforme já foi mencionado na Introdução, sua primeira candidatura foi em 1965, para governador do estado de MT. Concorrendo com o tradicional fazendeiro Lúdio Martins Coelho (UDN), desde o início sua campanha se voltava contra “as oligarquias e estruturas feudais que sempre dominaram Mato Grosso”, apesar de ser, ele próprio, já à época, proprietário de gado e uma fazenda de porte considerável (Correio do Estado apud Bittar, 2009b, p. 98). Sua vitória nesse pleito, contra um candidato apoiado pela ditadura, é vista por Bittar como resultante do apoio de Filinto Müller (PSD), do PTB, do eleitorado vinculado à Noroeste, mas, principalmente, por representar uma alternativa aos grandes proprietários, tradicionais comandantes da política estadual. Apesar de o êxito de Pedrossian ter colocado o MT entre os quatro estados brasileiros nos quais o regime militar perdeu as eleições em 1965, logo em seguida o político aderiu à ditadura (Bittar, 2009b, p. 101). Com o processo de dominação da política estadual pela UDN, devido ao apoio dado pelo regime militar (que compreendia a instauração de eleições indiretas), as oligarquias rurais voltam ao poder logo em seguida à gestão de Pedrossian com o governador nomeado - 258 José Fragelli, casado com a filha do já mencionado escritor das Memórias, o pecuarista José de Barros Netto, coronel Zelito. Fazendeiro da terceira geração dos pantaneiros, Zelito era pai de Fernando Alves Ribeiro (coronel Tico Ribeiro, duas vezes prefeito de Aquidauana) e cunhado de Fernando Corrêa da Costa (duas vezes governador de Mato Grosso e filho do expresidente da província Pedro Celestino, atuante na política ainda nos tempos da Companhia Matte Larangeira). Substituindo Harry Amorim, ascende ao poder Marcelo Miranda. Não era fato desconhecido que Miranda era subordinado ao ex-governador Pedro Pedrossian, como se depreende na entrevista da revista Grifo, que era apresentada pelo comentário citado anteriormente: Grifo – na ocasião da sua posse, o senador Pedrossian disse que com o senhor no governo, ele é quem estaria governando. Como o senhor vê esse tipo de colocação? Marcelo Miranda – Eu acho muito válida e digo que ela só nos beneficia. Tenho muita honra em dizer que o Pedrossian está governando comigo, principalmente porque ele realmente passará a participar do sistema que nós queremos implantar na administração do Estado (...) (Chacha, 1979, p. 22) E, realmente, Miranda seria muito rapidamente substituído por Pedrossian: seu governo se estendeu apenas de junho de 1979 a setembro de 1980. Pedrossian governaria entre outubro de 1980 a março de 1983. É nesses dois governos que o Pantanal passaria a existir, por assim dizer, por motivo de graves ameaças ao seu ecossistema, nosso próximo assunto. A invenção do Pantanal e os problemas ecológicos Durante o governo de Miranda, o Pantanal, até então largamente desconhecido da maior parte dos sul-mato-grossenses, entra na ordem do dia devido a uma grave ameaça ecológica que mobilizou parte expressiva da opinião pública local, regional, nacional e internacional. Este problema passa a participar da espiral de mediações que continuamente ressignifica o passado, o presente e o futuro, refletindo-se retrospectivamente na recepção do álbum Tetê e o Lírio Selvagem e, prospectivamente, da MLC como um todo. Esta recepção - 259 contribui para enrijecer o movimento musical na categoria da natureza, que já foi discutida, e articulá-lo aos interesses dominantes das elites agrárias. Toda a questão envolvendo a oportunidade usufruída pelo Tetê e o Lírio Selvagem coloca em primeiro plano o Pantanal. Realmente, é tênue a linha que separa uma noção contemporânea e cosmopolita de ecologia, sustentabilidade e respeito ao meio-ambiente de uma noção regressiva de culto idílico ao passado e reativa frente às transformações e mudanças trazidas pela história. O embate entre estas duas tendências é também parte ativa dos debates inscritos musicalmente na MLC, que, assim, buscava, mais uma vez, introduzir no terreno da cultura, para discussão pela sociedade, temas que teriam sérias repercussões políticas, sociais, econômicas e ambientais, suscitando decisões que se esperavam do coletivo e formatariam a face do nascente estado. A referência geográfico-cultural ao Pantanal é, hoje, compreendida como constituinte da MLC desde suas origens. O Pantanal é percebido difusamente como uma influência atávica, o meio-ambiente que molda o bios do sul-mato-grossense. Vemos esta construção, por exemplo, em uma resenha carioca da recente compilação da MLC, editada no CD GerAções. “Tem Pantanal para tocar na novela (‘Pireretã’ [sic], Guilherme Rondon & Gilson Espíndola) e Pantanal legítimo, rústico e belo: ‘Doma’, de Almir Sater (...)” (Barbosa, 2006, grifo meu). No entanto, “Doma” nada tem de “Pantanal legítimo”. Executada por viola de dez cordas (no original gravado no álbum Instrumental, do autor, que também contou com o violino de Zé Gomes), reflete o interesse de Almir Sater pela música mineira, nada representativa de uma suposta singularidade sul-mato-grossense. Assim, “Doma” não reproduz músicas regionais pantaneiras, mas, além disso, volta-se para elementos retirados da música midiática, sendo o rock progressivo um dos mais proeminentes nessa canção, na minha opinião. Na versão de Gabriel e Rodrigo Sater para GerAções, com violão de 12 cordas de aço e 6, de nylon, acompanhados de baixo, bateria, percussão e teclado, continua sendo - 260 impossível de classificar em algum tipo de gênero tradicional, sendo mais adequadamente descrita (ainda que de forma bastante genérica) como “música brasileira instrumental”. “Doma” é, portanto, um produto da imaginação musical de músicos urbanos, nada “legítimo” e nada “rústico”. Não se está aqui, de maneira nenhuma, subscrevendo uma metafísica composta de aparências ilusórias e essências verdadeiras, metafísica que, ao contrário, está evidenciada na resenha. Neste sentido, é de se notar a oposição expressa pelo resenhista entre um “Pantanal para tocar na novela” e um “Pantanal legítimo, rústico e belo”. Diferentemente da preocupação em privilegiar o que é supostamente “autêntico”, a ideia de um Pantanal-ficção, de um Pantanal “artificial” – um Pantanal deslocado – pode ser extremamente progressista, como discutiremos adiante. Assim, evidentemente, a crítica cultural colocada aqui não se dirige ao resenhista, como se indivíduo fosse, mas ao sujeito, assujeitado à cultura como é, e que como tal vocaliza percepções, categorias e hierarquias construídas discursivamente nesta cultura. Sendo assim, é importante localizar a formação discursiva que se construiu em torno do Pantanal, da natureza e do sul-mato-grossense como ser da natureza. Veremos que este é um assunto muito discutido pelos campo-grandenses, na atualidade e desde já vários anos. Sendo um rótulo que se afixou às pessoas e à música do local, é evidente o desejo de muitos de dele se libertar. O prazer de desfrutar da natureza emerge na MLC por via do ideário contracultural, como já dito, e era eminentemente erótico, no sentido mais amplo da palavra. Mas, associado pela recepção à defesa do Pantanal, ganha ares pedagógicos desvinculados da invenção artística. Pior: tendo passado a ameaça mais urgente, a atenção do público gradualmente se desviou para outros assuntos, esqueceu-se o contexto, e uma nova recepção urbana, não se reconhecendo na profusão de imagens da flora e fauna que continuaram a brotar daí, passou a - 261 ver na insistência em decantar a natureza um ufanismo das belezas naturais e um desinteresse pelo mundo urbano, contemporâneo e tecnologizado, e pelos seus problemas sociais e conflitos. Além disso, tendo sido cooptada pelas elites governantes desde a divisão, parte da MLC passou a ser associada aos discursos oficiais, sendo recusada pelas populações mais críticas e/ou não participantes do status quo campo-grandense. Isso porque, na mesma época, o crescimento do turismo no Pantanal evidencia, pela primeira vez, que este poderia ser um importante motor do desenvolvimento e fonte de divisas para o estado. Muitos fazendeiros buscam aliar a produção pecuária tradicional extensiva, de lucratividade declinante frente ao agronegócio praticado pelos grandes grupos altamente capitalizados, ao ecoturismo. Dessa maneira, interesses governamentais, empresariais e dos produtores rurais passam a buscar associar-se à MLC, que não soube administrar essas relações e terminou por ver-se, mais uma vez, envolvida em uma estrutura que reforçou os estereótipos com que passou a ser, gradualmente, recebida. Assim, o processo pelo qual saiu de uma posição de marginalidade para a respeitabilidade pública, reconhecida oficialmente, trouxe um alto custo. Tratemos então, de caracterizar estas fases e o contexto em que se deu esta passagem. Conforme foi evidenciado no Capítulo 1, a geografia do MS abrange duas áreas marcadamente distintas: o Pantanal (planície do Pantanal, inserida na baixada do Rio Paraguai) e o planalto da bacia do rio Paraná, a grande região produtora, de solos férteis, plana e propícia para a agricultura e a pecuária. Separando estas duas unidades geotectônicas, erguese a Serra de Maracaju. Campo Grande, situada no planalto, se diferencia radicalmente do restante do estado, como já foi dito, principalmente em seus discursos de modernização. Fabricados, em parte, pelos interesses dos proprietários agrários, voltados à consolidação capitalista no estado como um todo, são gradualmente contestados por outros discursos de - 262 modernização, dos setores urbanos em busca de hegemonia, e por ainda outros discursos, também de modernização, mas de cunho crítico e inclusivo. Há, portanto, uma oposição entre Campo Grande e as áreas rurais do estado, tanto do Pantanal quanto do planalto. Esta oposição se dá não apenas no setor econômico, mas também – e principalmente – no que respeita à ideologia de seus moradores, bastante ciosos de seu perfil urbano. Com efeito, os campo-grandenses, em geral, buscam ativamente colocar sua diferença neste sentido, ressentindo-se do desconhecimento destas nuances pelos nativos de outros estados. O estado tem essa característica do Pantanal como uma forma de expressão rural (...) [Mas] o estado do MS, de cima da serra, fora do campo rural, tinha [também] essa dimensão, que era a percepção de que nós não éramos apenas rurais, éramos também urbanos. (Bacha, 2009) Este ethos campo-grandense, condicionado pelas características locais do desenvolvimento capitalista, baseado na afirmação da cidade e na recusa ao rural, incorporou a valorização do Pantanal em um momento histórico muito bem delimitado, ocorrido entre 1979 e 1986, quando ocorreram três fatos fundamentais. O primeiro foi um movimento da sociedade civil sul-mato-grossense, em repúdio à tentativa de implantar usinas de álcool no Pantanal, o que trouxe grande visibilidade a este ecossistema, antes representado como longínquo e perigoso por muitos campo-grandenses. O segundo foi o gradual aumento do turismo de pesca no Pantanal durante os anos 1970, que culmina com o terceiro fato, a pavimentação da BR 262 (ligação de São Paulo ao MS) em 1986 (Almeida, 2002, p. 38), o que produz uma intensificação súbita do afluxo de turistas pescadores e indica a empresários e governo, pela primeira vez, que o turismo poderia ser uma fonte expressiva de recursos para o estado. O primeiro fato foi resultado da iniciativa de um consórcio de grupos brasileiros e estrangeiros, que, em 1979, pretendia construir 14 destilarias de álcool na região pantaneira do MS. Outra usina, que seria a maior do mundo, seria instalada na região do município de - 263 Bodoquena, com capacidade de produzir 450 milhões de litros de álcool por ano (Lemos, 2007; Ishy, 2010). Calcula-se que seriam anualmente jogados nos rios pantaneiros quatro bilhões e quinhentos milhões de litros de vinhoto. Trata-se de um líquido residual poluidor, resultado da fermentação do álcool de cana-de-açúcar. Em contato com a água, o vinhoto absorve dela o oxigênio, devido à alta concentração de microorganismos e matéria orgânica, comprometendo a sobrevivência das espécies aquáticas. Além disso, seriam também despejados nos rios do Pantanal os líquidos cáusticos e anticorrosivos utilizados no beneficiamento da cana e na manutenção do maquinário. O movimento teria recebido 450 mil assinaturas de apoio de todo o Brasil, além de apoio internacional e participação maciça, em passeatas e atos públicos, da sociedade local e regional, contando ainda com shows de artistas da MLC, como o Grupo Acaba, Lenilde Ramos e Geraldo Espíndola. Frente a esta inequívoca repulsa ao programa, por parte da sociedade, o governador – já, à época, Pedro Pedrossian – promulgou a Lei nº 328, de 25 de fevereiro de 1982, regulamentada pelo Decreto nº 1.581, de 25 de março de 1982, que proíbe a instalação de novas destilarias de álcool ou usinas de açúcar no Pantanal sul-mato-grossense. Este primeiro fato é assim relacionado pelo antropólogo Álvaro Banducci Jr. à mudança da percepção social sobre o Pantanal: E aconteceu um problema ambiental, sócio-ambiental bastante marcante aqui que fez com que a sociedade, também, mudasse seu olhar em relação ao Pantanal. Que foi [esse problema, ocorrido] (...) no final da década de 70 (...) Houve toda uma manifestação da sociedade contrária a isso, as pessoas começaram a [defender a ideia de que] “o Pantanal é frágil”, “o Pantanal é um ecossistema preservado”. E aí começa também essa discussão [sobre] o que é o Pantanal. [Pensava-se,] a riqueza que a gente tem é o Pantanal preservado, não pode mexer. Tanto que naquele momento conseguiuse evitar que a legislação vigorasse, não se implantou usina de álcool, naquele momento, no Pantanal. [Isso] fez com que a gente, (...) o sul-mato-grossense, passasse a olhar o Pantanal como algo diferenciado, a valorizar o Pantanal como algo que ele tinha, que não é todo mundo que tem. Se o Pantanal era aquela porção de terra que não produzia muito, perigosa, distante, vivia encharcada, ele passa agora a ser revalorizado. Porque é um lugar preservado, de uma variedade ecológica, tanto do ponto de vista da fauna como da flora, muito grande, riquíssima... Então passa a mudar nossa percepção a partir disso, não só por causa do enfoque do turismo, mas também essa percepção que vem do movimento social. (Banducci, 2009) - 264 Houve uma sequência a este problema, anos mais tarde, que teve desdobramentos trágicos. Em 8 de setembro de 2005, o então governador José Orcírio Miranda dos Santos (Zeca do PT) iniciava sua terceira tentativa de modificar a Lei nº 328, fazendo tramitar na Assembleia Legislativa do estado um projeto de lei apresentado pelo governo do Mato Grosso do Sul. Este projeto visava permitir que usinas sucroalcooleiras se instalassem na bacia do Alto Rio Paraguai. Em meio a um protesto público realizado pela população de Campo Grande, em 12 de novembro daquele ano, o ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, Franselmo, como era conhecido, de 65 anos, estendeu dois colchonetes em forma de cruz na calçada, ensopou-os e a si mesmo com dois galões de gasolina e ateou fogo, deitandose neles em seguida. A Santa Casa de Campo Grande, para cuja Unidade de Terapia Intensiva o ambientalista foi levado em estado grave, informou que ele teve queimaduras em 100% do corpo, vindo a falecer no dia seguinte, causando grande comoção. Ainda no início da década de 1980, com a ansiedade despertada pela ameaça representada pelas usinas de álcool, e as atenções voltadas ao Pantanal, começava-se a se preocupar com outros problemas ecológicos que ameaçam aquele ecossistema. Entre eles, os garimpos, com sua deposição de mercúrio nas águas dos rios, a pesca predatória e a caça de animais silvestres, com destaque para os jacarés. A Lei estadual nº 90 (MATO GROSSO DO SUL, 1980), de 2 de junho de 1980, que “dispõe sobre as alterações do meio ambiente, estabelece normas de proteção ambiental e dá outras providências” é sintomática desse momento. Essa lei institui o INAMB, Instituto de Preservação e Controle Ambiental de Mato Grosso do Sul, que ficou encarregado de fiscalizar a área, com função inclusive policial. No entanto, não tendo obtido recursos suficientes para coibir os chamados “coureiros” (caçadores de jacarés), este órgão foi extinto posteriormente. Suas atribuições foram redistribuídas à Companhia Independente da Polícia Militar Florestal (CIPMFlo), o que lhe conferiu o poder de Polícia Ambiental em todo o estado. A magnitude da mobilização da opinião pública com - 265 relação aos “coureiros” é atestada pelo comentário divulgado pela Ecoa, organização nãogovernamental dedicada à causa ecológica: Em 19 de março de 1987, a Polícia Militar Florestal, com sede em Corumbá, iniciou suas atividades com apenas 80 policiais militares. O policiamento e a fiscalização destinavam-se a coibir, de forma repressiva, a caça ao jacaré, no pantanal sul-matogrossense, crime ambiental amplamente divulgado pela mídia local, nacional e até internacional, que colocava em dúvida o poder do Estado em manter a ordem no que se referia aos crimes ambientais, pois o órgão anterior perdera a guerra para os "coureiros". (Ecoa, 2010) Portanto, os problemas ecológicos atraíram um foco significativo de interesse para a região do Pantanal de Mato Grosso do Sul, o que teria reflexos para a MLC, devido às ligações deste movimento, desde sua origem, com a natureza local. Quanto ao segundo fato que trouxe visibilidade ao Pantanal na cidade de Campo Grande, o turismo iniciado na década de 1970, é descrito pelo antropólogo Álvaro Banducci Jr., cuja tese de doutorado, voltada à antropologia do turismo (Banducci, 2002), é inteiramente dedicada a esta problemática: [Em 1999, quando comecei a estudá-lo, o turismo já havia se estabelecido, desde a década de 1970, na região do Pantanal]. Já tinha criado vilas na beira de rios, já tinha deslocado um universo humano de trabalhadores muito grande para a beira dos rios. Então, nessa época, o turismo já estava estruturado no Pantanal. O turismo de massa, que tem uma infraestrutura voltada para a atividade específica, [se inicia] no final da década de 70, [evoluindo até que ocorre] o asfaltamento da BR 262 [em 1986]. E aí, a BR 262 facilita, para o pescador de São Paulo, do Paraná ter acesso ao Pantanal. Porque antes tinha estrada (...) [mas] não era pavimentada, permitia que se chegasse, mas a dificuldade era bem maior. Os caras iam de caminhão, aqueles caminhõezinhos de pescadores, ônibus de pescadores, então passar naquelas estradas era um pouco mais problemático. Isso encurtou a distância (...) desse pescador. E como os rios pantaneiros são – ou eram – rios de alta piscosidade, era o paraíso para o pescador. Eles vinham pra cá e saíam carregados de peixes. (Banducci, 2009) Criando demandas por serviços especializados, o turismo predatório fundado na pesca inicialmente cria oportunidades de trabalho, para em seguida criar problemas sociais. Tanto estes como aqueles ajudaram a aumentar a presença do Pantanal no cotidiano de Campo Grande: E isso fez com que houvesse uma demanda por mão-de-obra: o piloteiro, o cara que conduz o barco; pra pegar peixe no Pantanal não pega com isca artificial. Tem que ser isca viva. O turista, quando ele chega, pra ele pegar isca viva, é nas lagoas, é mais difícil. Surge aí uma nova profissão, que é o catador de iscas, o isqueiro. São famílias - 266 inteiras que vivem, que passam a viver por grande período do ano, nove meses por ano, na beira das baías, perto das estradas, perto dos rios onde tinham turistas, eles passam ali pescando essas iscas e comercializando, ou com hotéis ou com os próprios turistas. Há um afluxo muito grande de mão-de-obra nesse contexto. E como foi intensa a investida do turismo, e que coincidiu, década de 70, que você tem a chegada da soja, a expansão da pecuária, desmatamento, o assoreamento dos rios, como o rio Taquari, por exemplo, caiu drasticamente a piscosidade dos rios. A ictiofauna diminuiu, mas sensivelmente. E o turista, esse turista, ávido por levar muitos exemplares, começou a ir embora. Ou ele ia para o interior do Paraguai, pescar no Rio Paraguai, mais no lado paraguaio (...), que tinha muito peixe, então eles iam mais longe, ou então eles iam para o Xingu, para a Amazônia, então começaram a deixar de pescar no Pantanal; caiu muito, por isso que hoje você tem problemas sociais intensos, na região de Miranda, por exemplo, uma cidade que, por algum tempo, viveu do turismo da pesca. (Banducci, 2009) Assim, o turismo da pesca, ao mesmo tempo em que introduz a ideia, nova até então, de que poderia trazer receitas expressivas ao estado, evidencia a necessidade de se pensar sua sustentabilidade. Isso evoluiria, posteriormente, para o turismo ecológico, não predatório como é o turismo da pesca tal como praticado então. Neste momento, confluem as preocupações com as ameaças ao ecossistema pantaneiro e os interesses governamentais, turísticos e dos fazendeiros. Relativamente a estes últimos, a lucratividade da pecuária extensiva pantaneira dependeu, tradicionalmente, das enormes dimensões territoriais das antigas fazendas. Isso se explica pela baixa fertilidade de seu solo predominantemente arenoso e pela inviabilidade comercial de se implantar ali tecnologias sofisticadas (como o confinamento e semiconfinamento, que dependem da produção de grãos na própria fazenda, que, por sua vez, depende de solos férteis). Com a sucessão de gerações, a partilha das heranças fez com que as fazendas diminuíssem consideravelmente de tamanho, e com isso sua rentabilidade. Segundo Abílio de Barros, de tradicional família de pecuaristas, “[o] empobrecimento da região (...) poderá chegar a curto prazo. As fazendas estão sendo rapidamente divididas, por sucessão hereditária, as rendas estão minguando (...)” (Barros, 1998, p. 229). Surge, então, a alternativa do turismo como suplementação de renda da pecuária. Com a nova popularidade do Pantanal, viabilizou-se, pela primeira vez, a exploração comercial - 267 dessa riqueza desde muito antes preservada pelos fazendeiros da região, sem que se pensasse que pudesse vir a ter destinação econômica. É o momento em que as fazendas pantaneiras diversificam sua fonte de receitas, passando a implantar estruturas de hotelaria para receber interessados de todo o mundo em busca de turismo ecológico. Portanto, a partir da confluência da ameaça ecológica, do aumento do interesse pelo turismo e da pavimentação da BR 262, (...) se descobre a questão da importância ecológica, e os fazendeiros, os pantaneiros, se inserem nesse movimento estabelecendo uma nova forma de ter o Pantanal, [que] não é [mais] só criação de gado: (...) é a questão turística, (...) ecológica. (Bacha, 2009) Gilberto Luiz Alves reforça a ideia de que o turismo teve um papel no aumento da visibilidade do Pantanal a partir de uma visão da decadência anterior da região, e também acrescenta outros fatores para esse aumento, comentando o papel dos grupos ambientalistas e das universidades, como formação de massa crítica: O Pantanal está sendo rediscutido, e hoje, as motivações que estão por trás dessa rediscussão do Pantanal são outras. O Pantanal, antes [da chegada dos trilhos a Campo Grande], só foi visto pela sua importância econômica (...) O Pantanal permitia, inclusive, o contato nosso com os grandes centros do mundo (...) Perdeu essa função e, praticamente, entrou num processo de decadência material muito grande (...). Ele está sendo redescoberto hoje por força de outras determinações (...) O Pantanal começou a ser recuperado muito recentemente por via do turismo. Isso já é algo, também, (...) marcante. Agora (...) já [se] começa, inclusive, a ter a ação desses grandes grupos ambientalistas, (...) muito fortes economicamente. Hoje há essa preocupação, inclusive, com o turismo... Mais recentemente, inclusive, com o ecoturismo... Há entrada (...) de alguns grupos fortes, que estão comprando essas fazendas, já com outras perspectivas... Algumas fazendas já começam a ser compradas, (...) reservadas estritamente ao turismo, restaurando, inclusive, a vida selvagem, eliminado, até mesmo, a exploração da pecuária (...) As próprias universidades estão exercendo um papel importante. Os cursos de biologia, isso é coisa de 1970 pra cá... Essa formação maciça de professores na região pela universidade, isso aí vai criando uma massa crítica pra ver, inclusive, a natureza numa outra perspectiva. (Alves, 2009) Todos estes novos fatores (das ameaças ecológicas, do advento do turismo da pesca como fonte de receita, da constatação de que esta receita findaria, e da preocupação com o desenvolvimento de alternativas sustentáveis) contribuíram para colocar o Pantanal na ordem do dia em Campo Grande, sede do governo e local onde se concentram o empresariado e as classes dirigentes agrárias do estado: - 268 A chegada do turismo da pesca coincide com essa ideia, com essa consciência, vamos dizer assim, por parte do empresariado, do próprio poder público, de que o turismo é uma atividade lucrativa. Isso já tinha acontecido 20 anos atrás no âmbito mundial, no país há 10 anos e o MS descobre o turismo como um potencial econômico para o estado nesse período. Quando se descobre esse potencial, você já tem ao mesmo tempo o estado e os empresários achando que o turismo dá grana, e o turismo que vinha crescendo é o turismo da pesca. E o turismo ambiental com Bonito, que começa a ser descoberto. O foco se centra nesses dois locais, mas, sobretudo, no Pantanal. (Banducci, 2009) Portanto, tanto do ponto de vista do empresário (inclusive rural) como do governo, o Pantanal passa a se apresentar como a grande perspectiva de desenvolvimento local: O Pantanal vira, então, o carro-chefe do turismo no MS (...). Quando há um movimento em favor do turismo, do ponto de vista do empresário, do ponto de vista do estado, é o Pantanal que aparece como a nossa mercadoria primeira pra esse mercado. O investimento é todo no Pantanal. Mas que Pantanal? O Pantanal do turismo da pesca, devido à ictiofauna muito variada, muito rica, muito volumosa. E você tem também o Pantanal como paraíso intocado. O Pantanal é uma região que tinha sido modificada, mas não tinha sido degradada como outras regiões. Até o cerrado mesmo, no MS, já vinha sendo dizimado com a soja e a expansão do gado, e o Pantanal se mantinha, de certo modo, não intacto, mas se mantinha em muitos aspectos preservado. E aí vira o Pantanal como o que a gente podia oferecer no momento em que o mundo vinha discutindo a questão ambiental, as pessoas estavam à procura desses paraísos ambientais, o Pantanal era um achado, um filão de ouro, então o foco todo recai sobre o Pantanal. (Banducci, 2009) Na fala de Banducci fica evidente o que se está afirmando aqui: Campo Grande, com seu ideal desenvolvimentista e urbano, até então não havia demonstrado interesse pela existência do Pantanal. Esse interesse surge em um momento definido cronologicamente e marcado historicamente, de um lado, pela perspectiva de novas receitas para o governo e o empresariado urbano e rural, e, por outro lado, pela conscientização ecológica: E até então, o que era o Pantanal, até esse momento, para nós, moradores de Campo Grande? Eu sou um campo-grandense, sou de uma cidade pequena, mas sou um cara urbano, não é... Sou do interior do Brasil, de uma pequena cidade, mas urbano, sempre. Não tinha relação com fazendas. Meus pais não tinham fazenda, então não tive relação com fazenda. E o Pantanal para mim, aparecia no meu imaginário de criança e de adolescente como um lugar distante, um lugar inóspito, um lugar perigoso... Era aquele lugar difícil de chegar, era aquele lugar que não tinha muita produtividade, tinha fazendeiros pantaneiros mas esses fazendeiros não gozavam de status como outros fazendeiros do planalto. [Eles] tinham grandes fazendas, tinham muito gado, [mas] no Pantanal era mais difícil criar o gado, mais difícil comercializar o gado. Enfim, era esse lugar distante e inóspito. Mais tarde, a partir desse momento é que a gente mesmo começa a olhar o Pantanal de uma forma diferente. (Banducci, 2009) - 269 Essa representação do Pantanal como lugar inóspito e, de maneira geral, desinteressante, é facilmente encontrada na fala de pessoas que já viviam em Campo Grande há anos, antes da década de 1980. Segundo Glorinha, “Eu menina me lembro que nenhuma das minhas colegas e amigas falava que queria visitar o Pantanal (...) Foi com a divisão que exacerbou o interesse do Pantanal como identidade... ” (Sá Rosa, 2009). Para o musicólogo Evandro Higa, A única referência do Pantanal na minha infância eram as notícias trazidas pelo meu tio, que gostava muito de pescar, caçar, passava semanas embrenhado no Pantanal, se divertindo... As notícias que ele trazia, dizendo que era um local muito bonito, com uma fauna fantástica, exuberante, e só. A gente realmente não tinha muitas notícias a respeito do Pantanal, nem tinha essa concepção do Pantanal enquanto potencialidade turística, econômica, enfim, não havia essa consciência. [A ideia que eu tinha era de um lugar] inóspito, perigoso, me lembro que ele falava muito dos ataques de queixadas [porcos selvagens], jacarés, todos os animais que habitavam o Pantanal (...) (Higa, 2009) Da mesma maneira, Moacir Lacerda, do Grupo Acaba, lembra que, nos tempos em que todos eles eram ginasianos, falar do Pantanal era “pejorativo”: [éramos] um grupo de ginasianos já preocupados com ecologia. Então a gente já tinha essa questão ecológica, que hoje virou tema. Porque, até então, você jogar um carandá, caraguatá numa música, isso era até pejorativo... jacaré... [símbolo do “atraso”]. As pessoas queriam uma linguagem mais moderna... (Acaba, 2009) Por sua vez, para Jerry Espíndola, o Pantanal não era explorado. Era considerado tipo um pântano, na cabeça da gente. Tetê e o Lírio Selvagem, naquele disco que eles gravaram em 78, eles pintaram o Pantanal nas roupas, né? Para mim, que era uma criança, tinha na época, sei lá, 14 anos, ali foi a primeira vez que eu vi o Pantanal. Nunca tinha visto imagens do Pantanal. (Espíndola, J., 2009) Já Lenilde evidencia o desinteresse histórico de Campo Grande pelo Pantanal ao comentar a obra de um destacado artista, Jorapimo, que se notabilizou por pintá-lo: [mostrando quadros de pintores:] Esse aqui é pantaneiro da gema. É o Jorapimo. São as espátulas que ele faz, os pescadores, as lavadeiras... O Jorapimo... ele sempre foi um pantaneiro autêntico. Ele tá com 80 anos mais ou menos e desde que ele começou a pintura dele... Ele foi pra Campinas, morou uma época lá, e sempre foi isso aqui... Ele só foi aprimorando este traçado, esses detalhes, essa iconografia, mas essas imagens, ele sempre fez isso. Ele foi um grande divulgador do Pantanal. Quando ninguém falava em Pantanal, ninguém conhecia Pantanal, ninguém sabia o que que tinha nesse Pantanal, achavam que era um brejo, o Jorapimo já estava com as telas dele mostrando a beleza do Pantanal, essa... as águas, os tipos humanos do pantaneiro... O Jorapimo abriu picada mesmo, na mata! (Ramos, 2009) - 270 - O entendimento de Gilberto Luiz Alves é concordante com o de Lenilde: Jorapimo, sem dúvida, é o grande artista plástico do Pantanal. A pintura dele não está marcada por um proselitismo, tem gente até que não vê muita vinculação, ou uma certa consciência social na pintura do Jorapimo. Eu, pelo contrário, vejo (...). Porque ele vai exatamente centrar a produção dele sobre os canoeiros, os pescadores, sobre as lavadeiras, os peões, a natureza... Aliás, a natureza é dominante na obra do Jorapimo. O tempo todo o Pantanal aflora na sua obra. E o que é interessante – (...) eu sinto que a obra do Jorapimo, num certo momento, era desconsiderada. Talvez essa desconsideração se deva, também, à própria importância que se atribuía às temáticas por ele abordadas: o Pantanal. Eu sinto que hoje existe uma receptividade muito maior à obra do Jorapimo do que existia na década de 1970. Eu morei em Corumbá e as pessoas se referiam ao Jorapimo [fazendo gestos vagos], “ah, tem um cara aí que pinta (...) isso aí”... A própria cidade não reconhecia o cara como uma expressão cultural importante daquilo lá (...). o Jorapimo era uma figura, assim, encarada como... um cara meio doido, que gosta de pintar... Diferentemente de hoje. Hoje existe um reconhecimento de que o Jorapimo é um artista de ponta. É um cara inclusive que tem uma obra que merece ser analisada mais detidamente (...). (Alves, 2009) Portanto, o Pantanal era largamente desconhecido, temido e desconsiderado pelas populações urbanas de Mato Grosso do Sul, com destaque para Campo Grande. A perspectiva de dinamização econômica prometida pelo turismo representou um primeiro sinal de sua existência. Com o surgimento do problema ecológico, seguido da conscientização sobre o mesmo trazida pela mobilização coletiva, local, nacional e internacional, em defesa do Pantanal, emergiu uma nova percepção a respeito desse ecossistema para o campo-grandense. Começa a ficar mais clara, então, a transformação do sentido das referências ao Pantanal nas letras de músicas da MLC e mesmo nas ambientações sonoras que passaram a ser feitas nessas músicas – ou seja, outras posições ideológicas já contidas nesses discursos passaram a ser ocupadas. Inclusive, canções prévias a este desenrolar histórico, foram recuperadas a posteriori, no imaginário popular, nos discursos de políticos, nas estratégias de empresários, para celebrar este novo momento. Que misturava ufanismo bem brasileiro na proclamação de suas riquezas naturais, interesses individuais, desejo de desenvolvimento coletivo e muitas outras motivações, inserindo-se nesta complexa teia discursiva que aqui está sendo desfiada. E que veio trazer esta face cheia de nuances e transições à MLC, que – deve- - 271 se sempre manter em mente – pode significar coisas muito diferentes, dependendo das posições subjetivas ocupadas por sua heterogênea recepção em cada momento diferente. MLC e efervescência cultural na década de 1980 Enquanto isso, no ano seguinte, 1980, o II FESSUL foi realizado em meio a um problema originado pela própria envergadura aumentada do evento, devido à organização falha da TV Morena, e que levaria a um boicote do festival pela maior parte dos artistas. Tendo sido escolhido para local das apresentações o ginásio de esportes Moreninho, sua acústica e os equipamentos de som disponíveis foram duramente criticados por vários artistas, após suas apresentações, o que os levou a boicotar a edição do festival. Permaneceram o Grupo Acaba, Geraldo Espíndola e outros artistas menos conhecidos. O primeiro lugar foi para a canção “O Pródigo”, que retomava a mesma orientação da vencedora do I FESTÃO, do ano anterior: a imobilidade, o passado e o elogio do chão/ terra natal/ pertencimento/ raízes: “O Pródigo” (José e Nelson Mirrha) Aqui estou, meu pai Corri o mundo, encontrei guerras Senti a paz das primaveras Vivi o amor de uma donzela (...) Pra sobreviver na escuridão Tateei o chão, tateei o chão Hoje volto como alguém Que não quer viver tão distante Lá só vi desdém e solidão Tateei o chão, tateei o chão Já o segundo lugar seria conquistado pelo Grupo Acaba, com a retomada do filão vencedor no ano passado, a decantação da saga indígena na região, remetendo também à celebração de algo definido (uma identidade guaicuru), localizado em lugar certo (o Brasil Central) e em tempo determinado (no passado anterior à colonização). Note-se a diferença em relação à procura incerta de algo não sabido, como em “Trem do Pantanal”: - 272 “Nos mares de Xaraés” (Chico Lacerda/ Moacir de Lacerda) No velho Brasil Central Cerrados e pantanais Na lenda dos Kadiwéus Terra e mar Xaraés Antigos donos da terra Galopando em pelo nu Na luta com os guaranis Cavaleiros guaicurus Resistentes de uma raça Nhandewá e Kaiowá Tupis, Terenas, Guatós, Guaicurus e Paiaguás Musicalmente, não se pode deixar de notar, mais uma vez, a ausência de traços de um regionalismo especificamente sul-mato-grossense. Além da presença do modalismo de influência nordestina, a canção se enquadra, no aspecto geral, na MPB que se fazia à época, inclusive com alguma preocupação com arranjos vocais, sugestiva da influência de grupos como o MPB-4. No II FESTÃO, no mesmo ano, mais uma vez se sai vencedor Aurélio Miranda. Entretanto, desta vez seu tema está vinculado à exploração do veio ecológico, que estava na ordem do dia desde 1979, como vimos. Se, no ano anterior, a predominância de um pensamento nostálgico e contemplativo buscava manter “tudo em seu lugar”, o problema ecológico, quando surge, não se coloca em termos de sustentabilidade (o que remeteria ao presente e ao futuro), mas de uma ameaça de destruição do passado, da ordem natural. Nesta concepção, natureza e cultura são antípodas, o humano representando o Mal absoluto e a natureza seu par opositivo, com toda sua carga representacional firmemente estabelecida por séculos de influência judaico-cristã, que remete à divina maternidade. - 273 “Fogo humano” (Aurélio Miranda) Canoas vão pelos rios Do peixe que se escasseia (...) Fogo humano que não segue O passo da ecologia Caça, pesca, mata e cria A fúria de exterminar (...) Sorriso mudo no rosto Do camponês alquebrado Na mancha do fogo humano As cinzas vão aumentando Com a natureza gritando meus filhos venham ajudar. No mesmo ano de 1980, o Grupo Acaba participou do Projeto Pantanal. Mais uma vez, a relevância do tema do Pantanal naquele momento específico se relaciona à questão identitária e aos interesses dominantes, controladores do aparelho de Estado. O Projeto Pantanal de 1980 representou uma iniciativa governamental que contou com total patrocínio da Fundação de Cultura, “através do qual nos apresentamos praticamente em quase todos os municípios de MS. Em cada lugar que chegávamos, desenvolvíamos uma pesquisa em relação à música local” (Moacir Lacerda apud Sá Rosa et al, 1992, p. 121). O que isto importa para nós, de maneira mais direta, é que será neste contexto, gradualmente modificado por múltiplos condicionamentos, que passará, aos poucos, a se dar a recepção da MLC. Em “Fogo humano”, além do crescente privilégio ao passado, começa-se a perceber o Pantanal, não mais como lugar de passagem, deslocamento, setting do estranhamento, como em “Trem do Pantanal”. Com o elogio da fixação, passa-se a defendê-lo como nossa casa, nossa terra, com variados tons que vão desde o catastrofismo passional à celebração ufanista. As posições subjetivas existentes nos polissêmicos discursos da MLC, produzem significados que podem ser incompatíveis entre si, dependendo dos processos hegemônicos em curso. - 274 Ainda no ano de 1980, mais uma vez há troca de governador. Como já era esperado, cai Miranda e Pedrossian entra em seu lugar, nomeado pelo presidente João Figueiredo, o último general do regime militar a ocupar o cargo máximo do Executivo federal. Por ser um político popular, capaz de dar sustentação eleitoral para a ARENA local, Pedrossian era, desde sempre, o nome preferido por Figueiredo para ocupar o governo do estado. No entanto, ao perceber que perderia o primeiro cargo do Executivo, uma comissão de notáveis do grupo “ortodoxo” (rival da facção “independente”, comandada por Pedrossian), incluindo Fernando Corrêa da Costa, foi a Brasília expor motivos a Geisel para reconsiderar a escolha. Geisel, que teria já decidido em favor de Pedrossian, teria se irritado e dito: “Já que vocês não querem o Pedro e eu não vejo motivo para não nomeá-lo, eu então vou nomear um de fora do estado” (Bittar, 2009b, p. 118). Assim, como a escolha era de Geisel, e como Pedrossian não tinha o consenso das lideranças locais, acabou preterido no momento inaugural em favor de Amorim Costa. A falta de consenso se origina no bipartidarismo instituído pela ditadura. Com a polarização entre um partido que buscava o restabelecimento da vida democrática, o MDB, e o partido que dava suporte político à ditadura, a ARENA, políticos vinculados a grupos rivais foram forçados a compartilhar a mesma legenda arenista, sendo o líder de um desses grupos, justamente, Pedrossian. Afastado da vida pública desde que seu mandato como governador de Mato Grosso terminara, em 1971, Pedrossian, que era egresso do PSD, vinculara-se à ARENA, juntamente com outros companheiros de partido, tão logo efetivou-se o bipartidarismo. No entanto, como a ARENA havia sido formada, principalmente, por antigos udenistas, o grupo de Pedrossian (os “independentes”) teria como principal adversário o grupo de José Fragelli (ex-UDN, os “ortodoxos”). Uma vez que o primeiro governador seria nomeado pela ditadura e não eleito, a disputa pelo cargo se deu entre os dois chefes políticos, remanescentes de partidos diferentes (Bittar, 2009b, p. 108-141). - 275 Um fato que teria relevância na disputa foi o indiciamento de Pedrossian por corrupção e posterior demissão do cargo de Engenheiro da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, a bem do serviço público, quando exercia o cargo de governador de Mato Grosso (1966-1971). Com isso, a Assembleia Legislativa apresentou processo de impeachment contra Pedrossian. Entretanto, por interferência de seu padrinho político, o poderoso chefe Filinto Müller, que intercedeu pessoalmente em seu favor junto ao presidente Castelo Branco, Pedrossian terminou poupado. Os partidários de Pedrossian ressaltam as grandes obras de sua iniciativa, compreendidas como fundamentais para a modernização do estado. Com efeito, o político implantou duas universidades (a federal UFMT, em Cuiabá, e a estadual UEMT, que se tornaria a federal UFMS após a divisão, em Campo Grande) e viria a construir o gigantesco Parque dos Poderes, a sede do governo do MS com todas as suas secretarias e outros órgãos relacionados, entre outras obras como hospitais, escolas e estradas. Sua popularidade nos dois estados, incontestável – foi o governador mais votado da história de MT até então, com 109.905 votos –, era vista por Figueiredo (e também por Golbery, de quem Pedrossian havia conseguido tornar-se amigo) como um patrimônio importante para a ARENA. Entretanto, as análises políticas do fenômeno indicam que, como já foi dito, uma importante explicação para o êxito de Pedrossian naquele pleito se devia à rejeição de parte da população às oligarquias rurais que comandavam a política no estado desde décadas antes. Além disso, Pedrossian foi o candidato em torno do qual uniram-se as esquerdas do MT (PTB e PCB), contra os candidatos da ditadura. O governador e líder da UDN na época, Fernando Corrêa da Costa, declarou que a derrota não havia sido sua e nem de Lúdio Coelho (candidato derrotado da UDN), uma vez que a população teria votado “contra aquilo que representávamos, o governo revolucionário. A esquerda decidiu o pleito em Mato Grosso”. Para Lúdio, a vitória do PSD se deveu “à população, que reagiu ao movimento revolucionário - 276 de 1964” e ao PTB, que tinha no estado “uns 25.000 votos e quando apoiava um dos dois [UDN ou PSD] decidia a eleição” (Bittar, 2009b, p. 127-128). Os reflexos mais diretos deste contexto político para a compreensão da MLC dizem respeito à disposição de parte expressiva da população de afastar-se dos rumos ditados pelas oligarquias políticas e pelo regime militar, justamente no período em que os primeiros compositores vinculados ao movimento musical começam a produzir sua obra. Em 1965, a eleição de Pedrossian significou a ruptura com as velhas oligarquias pessedistas e udenistas que pontificavam desde 1947 (Bittar, 2009b, p. 128). De acordo com a historiadora Maria Manuela Renha de Novis Neves, essa eleição constituiu uma mudança, pois se deu sobre um dos maiores proprietários de terras da época, em oposição à ditadura, com apoio da esquerda, e contra as oligarquias e os dois partidos hegemônicos no estado (uma vez que Pedrossian também rompera com Filinto Müller). Ainda, após sua eleição, desconsiderou os usuais arranjos clientelistas de nomeações dos chefes políticos dominantes até então (Neves apud Bittar, 2009b, p. 128-129). Tudo isso faz compreender o contexto cultural em que se gestou a MLC como propenso a mudanças radicais com relação aos tradicionais detentores do poder, os grandes proprietários de terras. Este contexto condiz com os aspectos críticos desta música, que expressaria, também, os interesses de uma quantidade suficiente de pessoas ideologicamente inclinadas a questionar as relações de poder instituídas pelas oligarquias agrárias, traduzidos em posições subjetivas constantes dos discursos verbais e musicais da MLC. Entretanto, apesar de protagonizar um momento político em que a população efetivamente evidenciou seu desagrado com respeito a diferentes formas de sujeição, Pedrossian não produziu mudanças concretas nas estruturas tradicionais do estado. Este fato coloca em perspectiva, também, as contradições que envolvem a MLC, caracterizadas por movimentos de aproximação e afastamento em relação aos discursos das classes hegemônicas. - 277 Dono de um estilo personalista, Pedrossian dominou a política sul-mato-grossense até o final dos anos 1990, reforçando, com o “pedrossianismo”, a centralização do poder, o clientelismo e outros procedimentos censuráveis que já eram praticados pelas oligarquias rurais. Sua ascensão ao poder, desvinculada de um projeto de gestão democrática e participativa, contribuiu para evidenciar o desinteresse das elites em implementar mudanças estruturais no Executivo, tal como eram prometidas, historicamente, pelos divisionistas, para quando o estado se separasse. Os reflexos negativos de sua atuação na área da cultura são comentados por Glorinha: No curto espaço de seis anos Mato Grosso do Sul teve quatro governadores, o que gerou não apenas inquietação, insegurança entre os sul-mato-grossenses, mas excesso de gastos, perda de divisas, aumento crescente das tensões entre partidos e pessoas a eles ligados. No serviço público a insegurança era geral com demissões, que aconteciam a cada mudança de governo. (Sá Rosa, 2010) Paralelamente, os festivais declinavam de importância. Em 1981, o III FESSUL já evidencia o desgaste dessa fórmula. Enquanto a primeira edição teve 187 inscrições e a segunda 190, esta, que seria a última, teria apenas 120 composições, sendo que “muitos autores concorreram com mais de uma canção” (Fonseca e Simões, 1981, p. 27). Quanto à ideologia predominante na sociedade, no entanto, se é que este festival é um indicador adequado dela, nada mudou. O Acaba vence os dois primeiros lugares, com “Waradzu” em primeiro e “Cavalinho de pau” em segundo. Como nas canções anteriores, nestas também não há elementos musicais regionalistas que caracterizem o MS – “Cavalinho de pau”, inclusive, sendo um frevo, está ainda mais distante da cultura do novo estado. No mesmo ano, o III FESTÃO tem como novidade o fato de a canção vencedora, “Interior”, ser de autoria de uma dupla de compositores da MLC, Paulo Simões e Celito Espíndola. A criatividade poética e melódica desses criadores está também presente nesta canção, em que a simplicidade é ativamente buscada. Na letra, merece destaque o achado representado pela paronomásia “detrator/de trator”. Musicalmente, esta valsinha sertaneja explora o campo harmônico da tonalidade principal (Ré) de maneira mais ampla do que em - 278 geral se faz no gênero sertanejo, além de realizar uma inclinação para o campo da dominante. Em virtude disso, foi motivo de polêmica e negada sua inscrição por supostamente não poder ser enquadrada no gênero. Entretanto, em sua defesa, os autores argumentaram que ela se inseria na linhagem dos compositores tradicionais do sul do estado da década de 1950, conseguindo sua inserção no Festival. A preocupação de dois compositores urbanos associados aos segmentos detentores do capital cultural em participar de um festival dedicado ao gênero sertanejo é sugestiva da predominância de certos discursos. Tais discursos buscavam estabelecer uma identidade cultural interclasses em favor do ideal de unificação do sul do estado recém-criado, sob a autoridade das elites detentoras do poder. Assim, o conflito de classes é conciliado por uma idealizada identidade comum, supostamente fundada em uma sensibilidade sul-matogrossense, que pairaria acima das diferenças sociais: “Coração de quem nasceu no interior/ Sente paixão igual, seja peão, seja doutor”, diz a letra. Mais ainda, já demonstrando uma sutil inflexão do direcionamento da MLC rumo ao ideário da fixação à terra e da negação do futuro contraposto a um passado supostamente idílico, a canção deixa de lado a contínua inversão dos valores que caracterizava esta produção e adere ao espírito nostálgico, característico da canção sertaneja: - 279 “Interior” (Celito Espíndola/ Paulo Simões) Coração de quem nasceu no interior Sente paixão igual, seja peão, seja doutor Solidão ninguém viveu superior E nem foi tão real, quanto esse chão Quanto essa dor A fazer nossa pior ferida Penas da própria vida Alvo de um caçador Pra render a violência vã Foi minha mente sã Que me fez um cantor De saber que o futuro vem Trocar o que se tem Por um outro valor De temer que o progresso quer Deixar em todo verde Seu sinal detrator Toda essa época coincidente com a divisão do estado é descrita como sendo de enorme efervescência em torno dessa nova música e da cultura como um todo. Os entrevistados reafirmam que, durante a década de 1980, os shows eram lotados e o entusiasmo da população por essa música era enorme. A participação popular pode, inclusive, ser verificada nos vídeos do Prata da Casa, em anexo. Segundo o músico e compositor Guilherme Rondon (n. 1952), um dos expoentes da MLC, que se juntou ao movimento no final dos anos 1970, no momento divisionista, foi uma época que aqui tava uma efervescência cultural. Era a época dos festivais, época do Prata da Casa, foi a época [dos shows] Velhos Amigos, Estranhas Coincidências, Benvirá, ah, sei lá, do Grupo Acaba, todo mundo que fazia show lotava o Glauce Rocha, lotava o [Clube] Sírio e Libanês, lotava o Rádio Clube, não interessa, era grupo daqui... As pessoas conheciam todo mundo, era todo mundo daqui de Campo Grande, um pouquinho antes da divisão. Então você era muito mais amado pelo povo daqui. (Rondon, 2009) Segundo Rondon, para isso foi fundamental o apoio da TV Morena: No Prata da Casa a gente era ídolo. A gente dava autógrafo, lotava teatro, e tem muito a ver com (...) a questão da Rede Globo. Queira ou não queira, a Rede Globo, ela é nacionalmente... Se ela quiser derrubar um presidente... Ela dita as normas, dita as regras. Como as Redes Globos regionais ditam as regras também, nas suas regiões. (Rondon, 2009) - 280 Verifica-se, assim, o interesse da poderosa repetidora local da TV Globo, a TV Morena, em promover o momento divisionista traduzido em uma música cujo regionalismo contribuía para exacerbar. Essa música regional era apresentada como o símbolo dessa identidade que unificaria todo o novo estado. Certamente, tal interesse não era gratuito e ligava-se à necessidade de confirmar o pertencimento, a um novo estado, de uma quantidade de pessoas de diferentes origens locais, classes sociais e estratos culturais. Era, inclusive, importante neutralizar alianças com o governo nortista, que pudessem advir do sentimento de pertencimento ao Mato Grosso uno, sentimento partilhado, até hoje, por diversos sul-matogrossenses, tal sua força. Além do interesse demonstrado pela televisão, houve também, como já vimos, consistente esforço do governo estadual na promoção da cultura regional, pelo menos à época de Harry Amorim. Logo a seguir, percebe-se uma desarticulação dos projetos culturais do governo, explicável pela ausência de consenso entre as facções em disputa, pelo estabelecimento, a contento, da governabilidade do novo estado pelas elites que ascenderam ao poder, e pela ausência de contestação da população à ideia de pertencimento ao estado dividido. Mesmo assim, o governo continuou sendo o sustentáculo artístico da maior parte dos artistas da MLC, principalmente à medida que o entusiasmo popular com a ideia do divisionismo arrefecia, e, com isso, a popularidade do movimento. É justamente por causa da importância do apoio público para essa música, nessa época, que se pode falar em institucionalização. Tanto havia receptividade para a MLC, por parte do setor da cultura no governo, quanto, pouco a pouco, os artistas se veem dependentes deste apoio, principalmente quando a TV Morena se desinteressa pelos festivais, o último tendo sido em 1981. “Quando a TV Morena para de fazer o FESSUL, o FESTÃO, é quando começa o declínio dessa música. Que é quando perde-se a mídia principal, da TV Globo” (Teixeira, 2009a). - 281 É bem verdade que este período de efervescência não terminaria imediatamente após o fim do patrocínio, pela TV Morena, dos festivais. Segundo o próprio Teixeira, ele iria pelo menos até o final da década de 1980, contando, inclusive, com a mediação do Estado nacional para isso – outra forma de institucionalização –, sob a forma do Projeto Pixinguinha, o projeto mais amplo e duradouro de divulgação da música popular brasileira: Então, era um momento de euforia. Que se viveu até o final dos Projetos Pixinguinha que aconteciam no teatro Glauce Rocha. Que foram fundamentais, também. Porque não chegava show nenhum aqui (...) de fora. E o Projeto Pixinguinha trazia um artista principal, um artista de outra capital, e um artista daqui abria. Esses shows, para mim, foram muito importantes. (Teixeira, 2009a) O Projeto Pixinguinha, lançado em 1977, tem, por sua vez, raízes nas motivações da ditadura, articuladas a preocupações de artistas e outros agentes culturais (Stroud, 2008, p. 111-130). Da parte do regime militar, havia a preocupação com a promoção da ideologia nacionalista frente ao que era entendido como a “perda” da identidade nacional devido à “colonização” estadunidense pelos meios de comunicação de massa. Além disso, os militares buscavam, pela via da cultura, uma aproximação com a sociedade civil, após anos de repressão autoritária. Um de seus pontos principais era a participação de todas as classes sociais, independente de sua localização, sendo para isso estabelecido um preço popular subsidiado para os ingressos, e programadas apresentações em cidades fora do circuito comercial, como Campo Grande à época. A ideia de promover a identidade nacional por intermédio da cultura, priorizando o “resgate” da MPB (principalmente na época da febre da disco music), foi bastante bem recebida pelos artistas, principalmente face às críticas por parte destes às multinacionais do disco. Esta situação suscitou polêmicas em torno de uma suposta cooptação dos artistas e animadores culturais pelo regime militar. Todas as características do Projeto Pixinguinha descritas por Stroud podem ser aplicadas, com adaptações, à realidade do MS, influenciando a recepção da MLC. Há outras similaridades partilhadas entre o projeto nacional e suas edições locais, como as realizadas no - 282 MS. Os nomes selecionados para as apresentações, por exemplo, refletiam muito mais os gostos de uma elite (e as crenças paternalistas das instâncias decisórias sobre a necessidade de “educar” a população mais ampla) do que a música regularmente consumida pela maior parte da população. Esta característica fundamental contribuiu para aumentar a aura de importância em torno da MPB – e, no MS, da MLC –, por promover a ideia de que essa música mereceria ser patrocinada pelo Estado nacional e defendida contra influências perigosas. Sendo assim, a MLC beneficiou-se, também, da poderosa mediação exercida pelo governo federal, por intermédio do Projeto Pixinguinha, na mesma medida, talvez, que a oficialização resultante desta mediação contribuiu para afastar seu público menos identificado com os discursos predominantes. De uma forma ou de outra, entretanto, as relações entre o Projeto Pixinguinha e a MLC salientam um momento de grande entusiasmo pela MLC. Jerry Espíndola (n. 1964), irmão mais novo de Humberto, Geraldo, Tetê, Celito e Alzira, compositor e instrumentista já em atividade nos anos 1980, também atesta este momento de acentuado interesse pela MLC: Então, naquela época, o som aqui tinha muita qualidade, e tinha um público de qualidade. Um público que prestigiava. Eu lembro que tinha shows aqui, pessoal daqui, que não era conhecido nacionalmente, e que era o Geraldo [Espíndola], o Almir [Sater], o [Paulo] Simões e lotavam os teatros. Durante quase toda a década de 1980 aconteceu isso, de rolar, realmente, um movimento forte aqui, porque existia a presença do público. (Espíndola, J., 2009) É importante lembrar, também, que vários dos shows coletivos importantes dos anos 1980, como o Prata da Casa, o Velhos Amigos, que ajudaram a formar a MLC como um movimento, no imaginário da sociedade, foram gravados em vídeo (por Candido da Fonseca) e exibidos ocasionalmente pela TV Morena. Além disso, durante a década de 1980, a retransmissora apoiou o movimento, abrindo espaços generosos para ele – não por motivos empresariais, mas por buscar confirmá-lo como parte da identidade local. Tal apoio é atestado pelo próprio Rodrigo Teixeira: “Na década de 80 tinha um programa chamado ‘Recado’, da - 283 Marilu Guimarães, diário, depois do Jornal Hoje, onde a cultura tava ali dentro. Você ia lá, você falava do show que ia ter e tal, lotava (...) à noite” (Teixeira, 2009a). Já reforçando o aspecto da institucionalização (que é contraditoriamente acompanhado, como sabemos, de uma importante e necessária valorização das vozes tradicionais e da recuperação da memória local), é também necessário levar em conta que, a partir de 1984, têm início as transmissões da TV e Rádio Educativa do MS. A emissora cumpriu papel social de relevo na divulgação da música e cultura do MS, principalmente a partir de programas de televisão de produção própria, como o Som do Mato (apresentado e produzido por Emilce Thomé, a Miska, por 13 anos [Thomé, 2009]). Lenilde comenta a atuação da TV e da Rádio: A TV Educativa (...) eles produziram coisas maravilhosas. O programa da Miska, por exemplo, o Som do Mato, foi um marco, porque foi (...) uma resistência desde que começou a TV Educativa, que era aqui, no bairro Vilas Boas, até ir para o Parque dos Poderes, nunca foi interrompido (...) Um projeto que mapeou, mesmo, tudo o que se fazia em termos de produção musical nesse estado. A Rádio Educativa teve um papel muito importante durante o governo do Zeca [do PT] (...) Deixou uma parcela muito grande da população órfã, quando foi desativada. (Ramos, 2009) Por sinal, a rádio tinha como o forte de sua programação extremamente diversificada a MLC. Tendo trabalhado ali por vários anos, na década de 1990, como produtor e apresentador (de programas de jazz, MPB e, apenas como produtor, música latino-americana), não poderia me eximir de fazer parte das próprias contradições aqui sendo apontadas. A rádio era dirigida por um músico e compositor, um dos fundadores e ex-integrante da conhecida banda paulistana Língua de Trapo, Lizoel Costa. Lizoel nasceu em Campo Grande, mas por longo tempo havia se radicado em São Paulo. Em seu retorno, na década de 1980, se integrou à MLC. Lizoel via seu trabalho na Rádio como uma missão histórica. Como também muitos daqueles dedicados animadores culturais, vários dos quais já mencionados aqui, devotados a promover a cultura local a partir do aparato governamental. Portanto, devido a todas estas mediações realizadas pelo equipamento estatal em relação à MLC, entendida, desde a constituição do estado, como seu patrimônio cultural, já se vê que o aspecto institucional era fundamental para o movimento. - 284 - O Prata da Casa E assim continuaria sendo com o projeto Prata da Casa, de importância histórica central para a MLC. Foi o primeiro registro em fonograma dessa primeira geração da MLC, o que é extremamente significativo frente à grande dificuldade de se gravar naquele momento. Não havia estúdios de gravação em Campo Grande, e os músicos tinham que se deslocar até São Paulo. Além disso, os custos de gravação tornavam o processo inacessível daquele período radicalmente diferente do atual, em que a tecnologia digital barateou consideravelmente os registros e fragmentou o monopólio das grandes gravadoras com uma proliferação de estúdios caseiros de qualidade profissional. O projeto contou com o apoio da UFMS, mas não deve ser entendido como parte de uma política central de cultura, e sim, mais uma vez, como uma iniciativa que dependeu inteiramente do empenho de mediadores, com destaque para Candido da Fonseca e Glorinha. Esses mediadores eram funcionários da UFMS e falavam a partir desse lugar institucional, mas o projeto foi idealizado individualmente por Candido (com a ajuda de colaboradores) e colocado em funcionamento por Glorinha. Dependeu, portanto, da energia e dedicação pessoal desses e outros atores, mais do que de uma estrutura com uma política definida de produção. Mesmo assim, o Prata da Casa deve ser compreendido como uma iniciativa institucional, uma vez que sua adoção pela UFMS significou o apoio amplamente divulgado da mais importante instituição dedicada à produção de conhecimento no estado. Apesar de federal, esta universidade é feita por pessoas que moram no estado e têm sua produção para aí voltada, portanto era mais uma maneira de o MS manifestar sua aprovação à ideia de que a MLC o representava adequadamente. A MLC pouco a pouco tornava-se oficial, o que, por um lado, foi importante para sua existência, em um momento que praticamente inexistiam políticas públicas de incentivo à produção cultural. Por outro, significou a assunção de uma - 285 responsabilidade, por parte dos compositores, que viria a produzir certos problemas ainda na década de 1980. O projeto consistiu de séries de shows que começaram em 1981 e se estenderam até 1983. Por estes shows passou grande parte dos artistas atuantes naquele momento na cidade, como Beth e Betinha, Simona e Lázaro, e os grupos Zutrik, Therra, Terra Branca, Therra Miúda e Lodzi. No álbum, propriamente, participaram Geraldo Espíndola, Jerry Espíndola, João Fígar, Lenilde Ramos, Miguelito, Grupo Therra (Carlos Colman, Jorge José da Silva, Orlando Brito e Roberto Espíndola), Celito Espíndola, Cláudio Prates, João Bosco, Lúcio Val, Grupo Acaba (Adriano Praça, Chico Lacerda, Luizinho, Moacir Lacerda, Vandir Barreto e Zezinho Charbel), Ayrton, Coral Sesc/Pró-Música, Edson César, Iso Fischer, José Boaventura, Lincoln, Tetê Espíndola, Almir Sater, João Fígar, Júnia Marize, Paulo Gê, Guilherme Rondon, Sandra Menezes, Rômulo Monteiro, Sidney Rezende e Elinho do Acordeon (posteriormente, Elinho do Bandoneón). As canções selecionadas foram “Quyquyho” (Geraldo Espíndola), “Coração ventania” (Carlos Colman), “Coração solitário” (Celito Espíndola), “Pássaro branco” (Chico Lacerda/ Vandir Nunes Barreto), “Violeiros” (José Boaventura/Rubens Aquino de Oliveira), “Vida cigana” (Geraldo Espíndola), “Carne seca” (Eduardo Oliveira/ Cláudio Prates), “Solidão” (João Fígar), “Descuidado” (Paulo Gê), “Horizontes” (Guilherme Rondon/Iso Fischer/Paulo Simões), “Sonhos guaranis” (Paulo Simões/Almir Sater) e “Trem do Pantanal” (Paulo Simões/ Geraldo Roca). O Prata da Casa se inicia com a volta de Candido, em 1981, do Rio de Janeiro, onde se formou em Comunicação e trabalhou no diário O Globo como jornalista. Nesse mesmo ano, o Prata da Casa foi um conjunto de shows, e no ano seguinte, novamente um conjunto de shows, mas agora gravados, para a elaboração do LP. O processo de idealização e organização do projeto é assim explicado por Candido: - 286 Quando me formei, voltei para trabalhar na UFMS. Eu vinha com uma concepção política. Como eu tinha a visão da unidade na totalidade, eu achava que se você reunisse esses músicos que eram dispersos, um era inimigo do outro por uma questão de picuinhas estéticas e emocionais, e de ego, você reunindo eles para tocarem juntos você daria consistência a um processo musical novo. Foi o que eu fiz. O Prata da Casa nada mais, nada menos foi do que aquilo que eu aprendi na política geral aplicado à estética. Ou seja, reuni aqueles compositores esteticamente novos, do ponto de vista de seu trabalho, e em cima disso a gente fez o Prata da Casa [1981, só show] homenageando, um primeiro, o segundo gravamos um disco [1982] e fizemos a música. Eu consegui convencer a TV Morena (...) de abraçar essa ideia. Em função de ter abraçado essa ideia nós tivemos a mídia (...). (Fonseca, 2009) José Octávio Guizzo não participou na idealização do projeto, mas estava sempre por perto nessas iniciativas, de alguma forma fazendo sentir sua influência: Como eu sempre fiz cinema também, o Guizzo foi meu sócio, junto com o João José, na Seriema Filmes. O Guizzo era um pesquisador de música e de cinema, o João José era cineclubista, presidente do cineclube, e eu o produtor, o realizador (...). A frase principal do Guizzo (...) era “quanto mais regional, mais universal”. Hoje em dia parece ser uma procura do mundo globalizado desses nichos, mas não pela intenção propriamente cultural, mas mais do exotismo pra consumo dos países ditos, entre aspas, “civilizados” (...) (Fonseca, 2009) Na descrição do processo de construção do projeto, fica evidente que se tratou de uma iniciativa pessoal de alguns mediadores, mais do que uma política institucional. O papel dos dirigentes centrais da UFMS foi o de apoiar, mas sem participação na sua organização: Então, quando a gente fez o Prata da Casa, a ideia original foi minha mas na execução teve (...) três pessoas importantes: o Moacir Lacerda, do Grupo Acaba, que me ajudou a formular o projeto, o [José] Boaventura, que é filho da professora Glorinha, que trabalhava comigo dentro da Universidade, e a Beti, que era uma das nossas secretárias. E a Lúcia, que era o operacional disso tudo. Mas, naquela época, não havia necessidade de grandes teorias, nem os reitores pensavam, os responsáveis, no significado da unidade de uma coisa desse nível. Foi aí que eu entrei. Eu tinha plena consciência de que isso daria certo, era um projeto interessante pra todos (...) (Fonseca, 2009) Assim, verifica-se que, nas diversas iniciativas da época que se encontraram para promover a MLC, não havia uma intenção prévia. Não havia uma clareza ou um consenso, de parte das elites dirigentes que haviam ascendido ao poder, de que tais ações eram necessárias para fortalecer, pelo aspecto cultural, o controle de todo o estado exercido por elas a partir da nova máquina administrativa. Sem dúvida, tal ação cultural era necessária para a fabricação do consenso de que depende o exercício do poder. No entanto, a clareza de compreensão demonstrada quanto a esse processo pelo governo Harry Amorim não foi compartilhada pelos - 287 governos de Miranda e Pedrossian. Assim, o entendimento adequado desta situação parece ser o de que, à medida que tais iniciativas isoladas começavam a ser empreendidas, ressoavam em uma parcela significativa da população, e isso tinha o poder de evidenciar aos detentores do poder os ganhos políticos potenciais, assim realimentando o ciclo. Entretanto, isso se deu sempre de forma fragmentária, com altos e baixos, sem uma política cultural definida e consistente. Mais uma vez, fica ressaltada a popularidade dessa música naquela década de 1980, muitas vezes referida como uma época de “efervescência cultural”, mas que dependia do apoio institucional à ideia da MLC como construção identitária no novo estado. Despertados em seu interesse a partir deste apoio, a televisão e certos outros setores do empresariado fizeram tentativas de promover essa música. Às mediações políticas, somavam-se as econômicas, na expectativa desses agentes em construir uma demanda para as coisas sulmato-grossenses, de que viessem a se beneficiar no futuro. A TV entrou, e no momento que a TV entrou a massificação foi imediata. Tanto que os shows foram lotados, alguns, tivemos que fazer duas sessões, e junto aos shows nós... nós fizemos o primeiro show [de Campo Grande] com [gravação de vídeo], o show inteiro foi gravado, o disco, todas as músicas classificadas tinham seu vídeo gravado, como têm, até hoje... (Fonseca, 2009) Candido descreve a participação de Glorinha e Guizzo no processo, ressaltando a importância da contribuição e prestígio pessoal desses mediadores no interior de um projeto institucional que visava a promoção da MLC como definidora da identidade do MS: O papel da professora Glorinha foi o seguinte. Quando surgiu o primeiro Prata da Casa, ela ainda era presidente da Fundação de Cultura. Então, ela, ali, pela Fundação, fazia o Projeto Pixinguinha, junto com a Universidade (...). Numa segunda fase, quando a gente resolveu gravar o disco, que já era um projeto, ela entrou, e se tornou a grande executiva do Prata da Casa. Ou seja, a influência dela permitiu que a gente conseguisse outros financiamentos. Agora, o Guizzo não, o Guizzo foi jurado em festivais, (...) participou por fora. No Prata da Casa ele não teve uma participação efetiva, mas não deixou de participar. Porque no dia do Prata da Casa ele lançou o livro dele, A [Moderna] Música [Popular Urbana] de Mato Grosso do Sul [Guizzo, 1982]. Ou seja, ele participou como intelectual, agregando o seu conhecimento e a sua pesquisa ao evento. Essa foi a grande participação do Guizzo nesse processo. (Fonseca, 2009) - 288 Por sua vez, Glorinha descreve a conjuntura que a levou a participar do Prata da Casa, que, mais uma vez, foi institucional: O Prata da Casa primeiro foi um show. O primeiro eu nem estive presente [em 1981] (...) Aí, eu não quis mais trabalhar no Departamento de Cultura [do governo do estado] – inclusive eu fui nomeada secretária executiva. Mas aí eu vi que a coisa ali estava muito burocrática (...) E não estava nada satisfeita, as pessoas lá do Departamento não tinham dinheiro, não estavam fazendo nada, só discutindo coisas assim banais nas reuniões que faziam, aí o Sérgio Pedrossian, que era pró-reitor da UFMS... Quando o estado se dividiu eu trabalhava na UFMS. Ele me telefonou [e disse] que estavam criando um núcleo chamado NUSC, Núcleo de Serviços Culturais, [e perguntou] se eu não poderia ir lá tomar conta desse núcleo. Não tinha quase ninguém, só tinha era o Candido que estava lá, a Lúcia Chaves, um grupinho pequeno. Aí tudo bem. Eu pedi demissão e voltei pra Universidade. E nesse núcleo a gente fez muita coisa, nós criamos o Auto-Cine, o Candido é uma pessoa muito criativa, cheia de ideias. Trouxe a ideia de fazer ciclos de filmes políticos, ciclos de filmes psicológicos (...) (Sá Rosa, 2009) Glorinha deixa evidente que, ao invés de uma política definida para a cultura, a UFMS contava com o interesse individual de seus reitores para promover iniciativas desse tipo: “Foi a Universidade que viu a importância disso. Tudo também depende da cabeça das pessoas que estão à frente desses órgãos. O reitor Edgard Zardo gostava muito de cultura, e dava muito apoio ao que a gente fazia” (Sá Rosa, 2009). Os detalhes da operacionalização mostram, em tais produções, a dependência da iniciativa e prestígio pessoais dos animadores culturais na ausência de uma política cultural definida e planejada: O primeiro Prata da Casa foi com o [reitor] Fauze Gatass. Mas foi só o show. No segundo, já se pensou (...) em fazer a gravação de um disco. Aí, vamos fazer? vamos. O que vamos fazer? Vamos atrás do dinheiro! Aí eu saí com a secretária da Universidade... nós saímos atrás de dinheiro para imprimir o disco. Tive muito boa acolhida. Nesse tempo o Valdir Cardoso era o prefeito, ele deu 500 reais (sic), a Assembleia deu dinheiro, e a gente arrecadou... Tem que ter coragem, enfiar a cara e pedir, não ter vergonha (...) (Sá Rosa, 2009) No entanto, o processo é desde sempre permeado de mediações institucionais. Se a UFMS influenciou na recepção ao legitimar a MLC como porta-voz da nova identidade do estado em construção, os políticos produziriam novas mediações ao associar-se a essa música, produzindo uma tensão com inclinações oficializantes: - 289 Aí saiu o disco... Todos os artistas dizem da importância do Prata da Casa, porque esse pessoal do Prata da Casa é a geração de compositores que são mais conhecidos (...) Os governantes passam a ver que a cultura projeta, que a cultura dá nome, e eles querem fazer parte desse processo. (Sá Rosa, 2009) Mesmo assim, é imprescindível ressaltar a efervescência do momento, que evidencia a ascensão da MLC a uma posição de reconhecimento de sua representatividade, pelo empresariado (representado pelo apoio decidido da televisão), pela Universidade, pelo governo e pelo público. Na visão de Guilherme Rondon, participante do projeto, o Prata da Casa foi um marco, foi [muito] legal (...), foi um show histórico. Tem um material de vídeo, tem um LP, foi apoiado pela Globo, casa cheia... E pô, um show que tava a nata da música daqui daquela época, Almir, Tetê, sei lá, todo mundo. Geraldo [Espíndola], Celito, Iso Fischer, João Fígar, Grupo Acaba, sei lá, o Prata da Casa tava todo mundo. Foi um momento que quem participou daquilo ali praticamente entrou num time, como se fosse, assim, a elite, a nata da música daqui. Ficou muito conhecido. Tinha [video]clipes de final de ano na TV Morena, todo mundo cantando, os shows tinham público, havia um respeito e um amor muito grande pelos filhos da terra. (Rondon, 2009) Por sua vez, Paulo Simões, que participou da organização e como artista, lembra aquilo que foram, em sua avaliação, as falhas do projeto, referindo-se às matrizes desse LP nunca reeditado, à revelia de muitos que o veem como um documento histórico: As matrizes [do Prata da Casa] estão em São Paulo, eu sei o paradeiro mas só revelo se me incluírem no projeto pra eu poder ter a capacidade de veto de algumas das coisas, das premissas completamente erradas que fizeram com que o projeto não decolasse. Para começar, o nome do projeto. Eu discuti com o Candido e com a professora Glorinha meses. Eu e o Almir Sater fomos chamados como consultores por a gente ter experiência fonográfica, eu como jornalista, como músico também, e o Almir como um cara que já tinha feito um ou dois discos, não lembro bem. Não, ele só tinha feito o LP de estreia. Nós, inclusive, tivemos a ideia de chamar o Peninha Schmidt pra gravar, o Peninha não veio pessoalmente, mas mandou o Egídio Conde, que era o principal assessor dele, um sujeito extremamente competente. O Prata da Casa foi gravado em estéreo, por falta de recursos, mas rendeu um disco com qualidades. E tem um material bruto que não foi aproveitado, porque a ideia era botar uma faixa de cada um, a seleção de músicas eu não lembro bem, mas eu devo ter participado com o Almir, eu e ele dando palpites, e a Glorinha e o Candido executando. (Simões, 2009) Simões se refere ao problema do nome Prata da Casa, pelo qual toda essa primeira geração ficou conhecida. Nesta polêmica em torno do nome inserem-se outras, menos declaradas, que dizem respeito à identidade regionalista – a um só tempo desejada e indesejada: - 290 O Prata da Casa podia ter realizado melhor seus objetivos se não se chamasse Prata da Casa, na minha opinião. Porque é um rótulo que não dignifica ninguém. É um rótulo nivelador, não diria nem por baixo, nem por cima, mas nivelador, e a longo prazo os efeitos perversos se fariam sentir. (Simões, 2009) A identidade regionalista implícita no nome Prata da Casa, por um lado, propiciava maior trânsito e visibilidade a essa música, e, por outro, não contemplava o desejo por atualidade e cosmopolitismo por parte daqueles músicos. Mais ainda, a identidade regionalista, tal como procurada pelos grupos hegemônicos, está por trás, também, da seleção dos músicos convidados, e, principalmente, das queixas dos que ficaram de fora. A questão da seleção passa, evidentemente, pela definição de uma identidade sul-mato-grossense mediada pela Universidade, pela televisão, pelo empresariado, em aliança com as elites agrárias que passavam a comandar a máquina administrativa do estado recém-criado. Logo, os critérios de seleção, em grande medida, foram pautados (explícita ou implicitamente) por estas mediações. Quem ficou de fora, evidentemente, não as percebeu, e o nome passou a ser utilizado de forma pejorativa ainda nessa década, pela geração subsequente, em confronto por espaços de atuação. Assim, a polêmica em torno do nome “Prata da Casa” encobre causas mais profundas que definiram músicos e composições tidos como mais adequados ou menos para participar dessa construção identitária. Simões se refere a esta questão da seleção dos artistas a serem representados no LP: A reunião de talentos [foi feita] mais ou menos a olho e pelos interesses e pelo conhecimento que pessoas como a Glorinha, o Candido, e pessoas da Universidade, também envolvidas, que não consigo me lembrar todas, e pelo consenso do meio musical, indicou que seriam as melhores candidatas. (Simões, 2009) Segundo Simões, a revolta dos que não entraram no LP pode ter contribuído para que o projeto não tivesse sido repetido: [Este espaço] não precisaria ser único, poderia ter tido um Prata da Casa II, um Prata da Casa III, se não fosse, como sempre, alvo de críticas exacerbadas por quem não tinha entrado. Obviamente nunca pode entrar todo mundo, então tem que haver uma seleção. Se os critérios foram claros [ou] subjetivos, isso eu não tenho certeza. Sei que eu fui convidado a colaborar de graça, colaborei, e insisto em dizer que foi um enorme erro, pelo qual eu responsabilizo o Candido Alberto da Fonseca pessoalmente, que foi quem mais teimou e até hoje não está convencido de que o Prata da Casa não dá camisa pra ninguém. (Simões, 2009) - 291 - Detalhando sua crítica, Simões explica que o nome Prata da Casa, sendo um rótulo genérico para todo e qualquer artista local, terminaria por ser utilizado espuriamente, prejudicando a imagem de todos os artistas envolvidos no projeto original: Então o que aconteceu é que, com o show, com o disco, que teve uma boa execução na época nas rádios, com o especial que a TV Morena mostrou, no teatro Glauce Rocha superlotado, todo mundo aplaudindo delirantemente os artistas que se apresentaram, dentro de um bom nível técnico-musical, daí por diante, qualquer artista iniciante, diletante, às vezes gaguejante musicalmente, podia alegar ser um Prata da Casa, e quem lho tiraria o direito? Então começou a aparecer na programação... A gente batalhava politicamente que as Exposições [Agropecuárias anuais], por exemplo, reservassem um espaço para artistas residentes, atuantes em MS. Isso era fácil de resolver, botava assim “segunda feira, show ‘prata da casa’”, entre aspas e com letra minúscula... E qualquer um podia ir [tocar]. O público ia enganado, achando que Prata da Casa era algo de bom porque tinha visto na TV ou tinha ouvido na rádio. E logo, logo criou-se uma natural ojeriza ao Prata da Casa. É bem provável que esta situação tenha, realmente, ocorrido, tal como relata Simões. No entanto, verifica-se, nesse quadro, a disputa entre um grupo de músicos e compositores que foi selecionado para contribuir, de maneira privilegiada, para a construção da identidade regionalista necessária para a hegemonia das instâncias dominantes, e outros grupos deixados de fora por não atenderem aos requisitos buscados por estas instâncias. Como evidência das contradições resultantes dessa inédita promoção à MLC – agora música “regional” –, motivada por necessidades dos grupos dominantes, o “provincianismo” passa a fazer parte dessa música que, inicialmente, desejava o cosmopolitismo e a abertura às causas planetárias: O fato é que o Projeto Prata da Casa, da Universidade, se esgotou nessas contradições internas e nessa falta de agudeza mercadológica. Ou, para dizer melhor, rendeu-se ao provincianismo que queria afastar. Nada mais provinciano do que chamar artista de Prata da Casa. Exatamente o recibo passado do provincianismo de que se quer fugir (...) (Simões, 2009) O que, talvez, não tenha ficado evidente aos participantes, é que seria impossível ter o apoio dos poderes constituídos, da televisão e dos media em geral, além da legitimação da Universidade e dos intelectuais, sem o privilégio à ideia de introversão regionalista, muito bem captada pelo nome Prata da Casa. Se a valorização da introversão trouxe como - 292 consequência o “provincianismo”, isso foi inevitável, dado o pacto implícito, não declarado, do qual os artistas da MLC optaram por participar. Confirmando esta análise, Candido chama a atenção, justamente, para o fato de que o nome “Prata da Casa” “recaiu na boa graça da imprensa e da comunicação”, o que representa o apoio dos media a uma construção identitária regionalista. Ao mesmo tempo, fica implícito, na fala de Candido, que os músicos desejavam, de maneira irrealista, a exposição produzida pela articulação de interesses hegemônicos à MLC, mas sem a contrapartida representada por esta introversão “provinciana”: Acho que esse processo foi prejudicado pelos próprios agentes. O Prata da Casa, os músicos não queriam ser Prata da Casa. E vieram me procurar para mudar o nome do show que já estava no seu terceiro ano, depois nunca mais aconteceu. E eu disse que não ia mudar. Não ia mudar porque é um projeto. A pessoa de cada músico é o seu trabalho. Então, dentro daquele projeto Prata da Casa, a pessoa estava inserida. Mas não significava que ela teria que ser a titular absoluta sempre, e ser um Prata da Casa. Agora, se essa terminologia recaiu na boa graça da imprensa e da comunicação, não é culpa do projeto. Mas é a repercussão e a importância que o projeto tem na formação dessa referência, eu não digo nem identidade, mas dessa referência cultural, que foi a união dos músicos em torno do conjunto da sua obra. Ou seja, eles se reuniram pra tocar juntos. E depois isso virou uma febre de músico tocar junto (...) (Fonseca, 2009). Ao mesmo tempo que a MLC apresenta estas vinculações problemáticas com a organização de uma identidade regionalista instrumental, a fala de Candido chama também a atenção para a peculiaridade e a importância dos projetos coletivos iniciados após o pioneiro Prata da Casa. A permanência desse traço sugere uma busca de alianças, entre os músicos, indicando que percebem que a solidariedade e a união pode ser mais proveitosa a eles do que o individualismo, o que seria uma característica progressista deste movimento. Ainda nos tempos atuais, projetos coletivos são realizados, colocando lado a lado gêneros, estilos, tendências e gerações diversas. Realmente, depois do Prata da Casa houve várias iniciativas aglutinadoras como essa, e que também geraram álbuns gravados, como Pantanal Alerta Brasil (1987) e Caramujo Som (1993). Geraldo Roca reuniu vários dos novos compositores em um CD, Novidade nativa - 293 (2006), entre eles, Jerry Espíndola, Rodrigo Teixeira, Vaticano 69, Filho dos Livres, O Bando do Velho Jack, o trio instrumental Croa e as bandas Tomada Acústica e Solosolar. Do mesmo ano (2006) é o projeto GerAções. Trata-se de uma produção de dimensões consideráveis que, apesar de evocar explicitamente e centralmente o Prata da Casa, possui diferenças marcantes em relação a ele. Ao invés das limitações orçamentárias que levaram à precariedade da produção do Prata da Casa, que recebeu mais apoio institucional que material, o GerAções pôde ser registrado em áudio e vídeo com grande qualidade. Isso porque seu produtor, Márcio de Camillo, obteve patrocínio da Petrobrás, utilizando as leis atuais de incentivo à cultura. Tais leis eram inexistentes na época do Prata da Casa, bem como era inteiramente inexistente no ensino formal brasileiro o estudo sistemático da produção cultural inserida no mercado. Sendo assim, os dois projetos indicam dois momentos históricos e duas orientações bastante distintas. O Prata da Casa foi implementado nos primeiros anos após a divisão, e dependeu, para ser viabilizado, de conexões mais evidentes com o poder público. Ao contrário, o GerAções faz parte de uma época em que o governo federal repassou ao mercado a iniciativa de realizar produções culturais que, organizadas em bases competitivas e empresariais, possam render dividendos palpáveis de marketing e, por implicação, lucros. Mesmo com as canções do Prata da Casa apresentando razoável diversidade estilística, o resultado final foi passível de cooptação, e, por intermédio dessas mediações, passou a exprimir, embora sempre acompanhada de conflitos, uma “identidade” sul-matogrossense. Situada em outro momento histórico, passando pelas mediações do mercado e menos comprometida com a ideologia identitária priorizada pelos processos hegemônicos, a diversidade das canções e interpretações incluídas no GerAções pôde ser recebida mais amplamente como uma mostra da heterogeneidade da produção local. - 294 Evidentemente, esta época regida pelo mercado não está isenta de suas próprias contradições, que são igualmente problemáticas. Inclusive, para que os projetos atuais da MLC pudessem existir, foi necessário o percurso de legitimação do movimento pelas instâncias oficiais que estamos acompanhando, o que implica numa simbiose entre os dois planos, do mercado e do Estado. No entanto, é importante demarcar os contrastes, para a devida compreensão da significação da MLC nesses dois momentos diferentes. Por outro lado, se há sensíveis diferenças na construção de significados da MLC, a partir das mediações dos poderes públicos e do mercado, o traço da produção coletiva permanece em ambos, o que cumpre assinalar. Além disso, tanto no Prata da Casa como no GerAções, músicos de estilos contrastantes uniram-se em torno de um projeto comum, indicando as possibilidades políticas da unidade na diversidade. Portanto, vimos que a MLC, em sua trajetória até o início da década de 1980, já havia iniciado seu processo de conquista de espaços, consequentemente já atraindo “críticas exacerbadas” (nas palavras de Simões) dos que se colocavam como excluídos, envolvendo acusações de favorecimento da máquina estatal. Em um nível mais profundo, vimos que o que realmente aconteceu foi o fato de que a MLC viu-se envolvida na busca de estabelecimento de uma identidade para o estado nascente. Esta identidade era buscada pelas classes dominantes recém-alçadas à direção da nova máquina administrativa como forma de confirmar seu controle do estado, por meio de sua unificação cultural. Isso era necessário em face da grande diversidade dos grupos étnicos que migraram para a região sul do estado e dos antigos vínculos de seus moradores com a ideia de Mato Grosso uno. Para a construção dessa identidade, foram priorizadas certas características, que uniam traços regionalistas a uma visão modernizante e cosmopolita adequada à representação daquelas elites, desde há muito comprometidas com o desenvolvimento capitalista a partir da pecuária. Aqueles compositores e canções da MLC que, com toda a sua - 295 diversidade ideológica e estilística, conseguiram adequar-se às características buscadas por essas elites, foram privilegiados no processo, não em virtude de relacionamentos pessoais com as instâncias decisórias, mas por fornecerem um material adequado aos propósitos em jogo. O processo de construção dessa representação identitária contou com a participação de mediadores estrategicamente colocados no interior das estruturas de decisão das várias instituições. Grandemente diversos no que diz respeito a suas concepções e posições no mundo social, esses mediadores eram, muitas vezes, destituídos de intenção de privilegiar os grupos instalados no controle do estado. Terminaram por fazê-lo de maneira não deliberada, devido às dificuldades encontradas para posicionar-se fora dos discursos dominantes, uma vez que foi possível, em seu interior, construírem alianças parciais e provisórias que contemplavam algumas de suas preocupações e motivações. O súbito entusiasmo e otimismo ante a criação da nova unidade federativa, produzidos e incentivados por estes discursos, engolfaram, a um só tempo, mediadores e público. Interpelados, estes atores contribuíram para construir um consenso, e, com ele, o fenômeno da identidade cultural do MS, da qual é parte importante a MLC. Posteriormente, devido às características elitizadas dessa música, ela, pouco a pouco, deixaria de ser celebrada pelas camadas mais amplas da população como modelo dessa identidade. Passariam, então, a ser predominantes certos ícones – em parte, popularizados por ela –, como o Pantanal, certas músicas platinas e as culturas populares rurais do sul do MT, tomados dela e estabelecidos de maneira estática e regressiva. Se entendemos a ideia de “Prata da Casa” como indicativa desse entusiasmo regionalista capitaneado pela MLC à época da divisão, podemos confirmar a trajetória de fascínio e declínio de popularidade dessa música a partir da fala de Guilherme Rondon, que participou do projeto: - 296 Chegou um ponto que o termo Prata da Casa virou pejorativo. “Ih, Prata da Casa”... Foi um [tremendo] projeto (...), mas depois de um certo tempo virou uma denominação meio pejorativa. “são os Prata da Casa”. (Rondon, 2009) Assim, à medida que múltiplos condicionamentos concorriam para transformar a MLC em modelo identificatório para o estado nascente, surgiam os ônus que representavam a outra face da moeda do sucesso e da popularidade dos músicos e compositores. Um desses custos foi, como mencionado, o de serem vistos como favorecidos pela máquina estatal, motivo de frequentes críticas das gerações subsequentes, ao que retornaremos. Outro foi o de se verem associados a um telurismo kitsch, feito de imagens da natureza pantaneira. Assim, num primeiro momento, as referências icônicas e indiciais ao Pantanal cumpriam importante propósito, ao romper com a tradição de silenciar sobre a marginalizada região rural do estado, e suas relações com a América Platina, via Rio Paraguai. No entanto, nos anos 1980, após o influxo dos fatores já mencionados, que progressivamente tornam o Pantanal uma moda, falar sobre o Pantanal se torna recurso visto como exoticizante. oficialesco e pouco criativo. Prata da casa – o álbum Como já foi dito, o LP Prata da casa (Sá Rosa, 1982) representou a primeira oportunidade de gravação fonográfica para vários artistas da MLC. Já foi comentado, também, que as condições de gravação foram precárias, e o resultado final, em termos de qualidade sonora, deixa bastante a desejar. Isto não deve levar a uma crítica indevida a respeito do talento musical desses artistas que tinham acesso, pela primeira vez, a uma experiência de gravação. Todos teriam melhores oportunidades para apresentar seu trabalho e comprovar sua capacidade. O Prata da casa, entretanto, é inestimável como documento sobre a MLC, e é nessa condição que é escutado aqui. Na medida em que o álbum era a apresentação da produção musical de Campo Grande no contexto da criação do novo estado, pode-se dizer que buscava - 297 criar a imagem musical (os discursos dominantes) deste novo estado. Os poderes institucionais envolvidos na feitura do Prata da casa, já discutidos anteriormente, subscrevem o trabalho e dão-lhe autoridade para definir a nova identidade do estado. Letra e música procuram, então, construir esta nova identidade, que é referendada de maneira extremamente abrangente nos primeiros tempos, tal como documentado pelos discursos analisados antes e, aqui, na audição do álbum, pela atmosfera de entusiasmo revelada pelos frequentes aplausos. A complexidade e contradição do processo de construção identitária é revelada também pelo álbum, na medida em que diferentes canções projetam diferentes discursos, que propõem, em conflito entre si, diferentes universos subjetivos e sociais. Pensado assim, o Prata da casa é a representação de discordantes concepções sobre o estado e sua gente, concepções que foram tentativamente, prospectivamente divulgadas com o fim de se descobrir quais teriam repercussão na autoimagem das pessoas e se firmariam, realimentando e refinando novas produções. Como processo contraditório, seria inevitável que originasse dissensões, expressas tanto na forma de discursos verbais como musicais, o que efetivamente se verificou e se verifica até o presente. Daí a importância dos documentos sonoros para a historicização e etnografias do estado. Estudaremos os diversos elementos do universo sonoro em termos de uma relação entre o regionalismo e o regional. O regionalismo é bastante influenciado pela tradição romântica, e se define em termos bastante semelhantes. Como se sabe, nesta tradição, instituída na Alemanha do século XVIII por Herder, os irmãos Grimm e outros, e continuada até os nossos dias, o popular (ou melhor, o folclórico), deriva da noção de Volksgeist (um “espírito” único possuído coletivamente por cada pessoa em uma nação). Como tal, apresenta as seguintes características, descritas pela antropóloga Maria Laura Cavalcanti: Na visão romântica, o mundo do folclore e da cultura popular abriga nostalgicamente a totalidade integrada da vida com o mundo rompida no mundo moderno. O povo encarnaria a visão de um passado idealizado e utópico. É o primitivo – de onde provem a errônea idéia da 'simplicidade' e ‘ingenuidade’ que emanaria das manifestações artísticas populares. É o comunitário – de onde provem a igualmente - 298 equívoca noção de sua homogeneidade e a sua noção irmã, tão abusada, de anonimato. É de preferência o rural – a população que está longe da corrupção das cidades e da industrialização. É também o oral, pois lidamos aqui, note-se bem, prioritariamente com camadas da população analfabetas, isto é, pessoas que não expressam a cultura que detêm através do sistema da escrita. É, finalmente, o autêntico, transformado aqui inevitavelmente em alteridade idealizada. (Cavalcanti, 2001, p. 2) Entretanto, como se sabe, a cultura popular (desde pelo menos a Idade Média, e até a atualidade), além de definir-se pela heterogeneidade, se caracterizou historicamente pela mistura e permeabilidade com relação ao que seria hoje denominado “estrangeiro” e/ ou “das classes dominantes”, com o fluxo de informações seguindo nos dois sentidos. Não é, necessariamente, primitivo, anônimo, rural, oral ou autêntico. Neste sentido, a ideia de cultura “autóctone”, pura, ou exclusivamente das classes subalternas, não se sustenta. A propósito, ver Bakhtin, 1993 e Burke, 1989. É esta visão dinâmica que será considerada para caracterizar o regional. Compreenderemos esta construção a partir dos conflitos e transformações que impelem a história, transformando os discursos [a cultura]. Tivemos oportunidade de discutir extensivamente a constituição histórica e cultural do MS. Esta discussão nos permitirá compreender, tanto as especificidades e diferenças encontradas neste território, quanto possíveis interpretações para os diferentes sentidos e funções de novos objetos, sempre sujeitos a contestações. Os diversos elementos “externos” (o rock e todas as músicas “estrangeiras”) serão, portanto, compreendidos, às vezes, como indicativos de conflitos e contradições que, potencialmente, provocam deslizamentos nas tentativas de vigiar (controlar) e punir, outras vezes como um apelo à integração à ordem dominante. Da mesma maneira, as relações entre classe e cultura não serão vistas como especulares ou correspondentes, de maneira que os usos de discursos associados a classes “altas” pelos setores subalternos serão investigados em termos de apropriação e deformação, como já foi comentado antes. Finalmente, é necessário explicitar que as análises desta tese – inclusive as análises musicais, que serão mais frequentes a partir deste ponto – não possuem a presunção de ser um - 299 discurso final, representativo da verdade. Todas as análises se baseiam nas recepções a variados discursos, proferidos a partir de diferentes lugares. Tais recepções foram explicitadas ao longo desta tese, pelas representações de múltiplas vozes em diálogo, e se dão a conhecer etnograficamente pelos sujeitos participantes das culturas implicadas, entre os quais se situa este autor. Portanto, a fala do analista não aspira à verdade, mas à participação neste diálogo, como uma outra voz, como uma outra mediação, nesta espiral de mediações: será esta interpretação plausível? A primeira canção do álbum é “Quyquyho” (Geraldo Espíndola). De temática indígena, evidencia uma preocupação central de Geraldo com a latinidade. Fruto das discussões sobre a busca de um caminho próprio para o estado, esta preocupação é bastante indicativa dos discursos contraculturais, que seriam reelaborados por Humberto Espíndola. Como vimos, seu projeto viria a propor alianças com os países vizinhos, a partir da recuperação da herança índia comum, visando, assim, escapar da posição destinada ao estado pelos grandes arranjos do poder. Evidenciando esta perspectiva de integração dos povos platinos, em sua letra, Geraldo busca soldar a fratura entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul por meio da invenção de um mito de origem que uniria os povos do sul e do norte – indo, assim, em sentido oposto ao preconizado pelo regionalismo divisionista. - 300 “Quyquyho” Espíndola) (Geraldo Quyquyho nasceu no centro Entre montanhas e o mar Quyquyho viu tudo lindo Tudo índio por aqui Índia América deu filhos Foi Tupi, foi Guarani Quyquyho morreu feliz Deixando a terra para os dois Guarani foi pro sul, Tupi pro norte E formaram suas tribos Cada um em seu lugar Vez em quando se encontravam Pelos rios da América E lutavam juntos contra o branco Em busca de servidão E sofreram tantas dores Acuados no sertão Tupi entrou no Amazonas Guarani ainda chama Quyquyho na lua cheia Quer Tupi, quer Guarani Quyquyho na lua cheia Quer Tupi, quer Guarani Quyquyho na lua cheia Quer Tupi, quer Guarani Quyquyho Justamente a preocupação em unificar o estado recém-dividido surge como uma contradição, em um álbum viabilizado justamente pela separação, e que teria o objetivo de contribuir para a construção de uma identidade regionalista do MS. Uma outra característica dessa canção que vai de encontro à ideologia oficial encontra-se no diálogo entre música e letra. Apesar de a letra da canção evocar de maneira explícita a forte carga imagética indígena num estado com uma das maiores comunidades nativas do país, a música evita decididamente qualquer tentativa de representação mimética dos índios. Pelo contrário, passando ao largo da solenidade da letra, com suas sugestões sacras, a música transcorre alegremente no gênero do reggae. Os discursos deste gênero – conquanto passíveis de articulação ao modo de produção, como eventualmente pode ocorrer com qualquer discurso – estão ligados, originalmente, aos negros jamaicanos, em sua difícil realidade. A instrumentação (Geraldo Espíndola: contrabaixo e voz; Jerry Espíndola: violão elétrico; João Fígar: percussão; Luciano: piano acústico; Miguelito Barrera: bateria) também evita qualquer efeito de cor local, com exceção, talvez, do acordeão executado por Lenilde Ramos, que pode ser visto como uma tentativa de integração do elemento paraguaio a um - 301 microcosmo, entretanto, extremamente diversificado. É necessário dizer, também, que o estilo de execução de Lenilde, deliberadamente descontextualizado, nada tem a ver com o estilo paraguaio, adicionando uma outra camada de complexidade aos sentidos comunicados pela canção. Portanto, musicalmente, esta gravação original de “Quyquyho” recusa o regionalismo. Assim, insere-se naquelas características das poéticas do deslocamento, sendo vinculada às coisas do ar, à superficialidade, ao deslocamento, ao fluxo constante, à viagem, à “identidade estrangeira” que foram estudados anteriormente. Nesta condição, situa-se de maneira deslocada em relação à expectativa de que participasse da construção de uma ideologia regionalista. Por outro lado, a primeira gravação solo da canção pelo autor, no álbum Geraldo Espíndola (Espíndola, G., 1991) já mostra sensível alteração na sua concepção. A esta altura, “Quyquyho” já havia se transformado em hino (Teixeira, 2010c). Deixando para trás a alegre relativização de pressupostos essencialistas representada pelo reggae, o arranjo agora é de canção de caráter triste ou melancólico em andamento lento, cantado basicamente em vozes paralelas à maneira sertaneja, acompanhadas apenas por um violão. Verifica-se, já aqui, a influência dos discursos dominantes, voltados à solene construção de uma identidade regionalista a partir de um suposto “espírito” constitutivo essencial. A gravação seguinte da canção por Geraldo, com arranjos de Mário Campos, Cleber Almeida e Vander Galvez, em álbum produzido por Arrigo Barnabé (Espíndola, G., 2004), continua a atmosfera de melancolia em andamento lento. Há que se notar que o gênero sertanejo foi substituído por uma concepção modernizante e urbanizada conferida por um ritmo de violão e harmonizações bastante próximos da bossa nova, teclados e contracantos sofisticados. Mas a caracterização urbana não é definitiva, pois há um evidente esforço em mimetizar um vago caráter indígena através do uso de apitos, pífanos e ocarinas. - 302 Incidentalmente, a gravação da canção por Maria Cláudia e Marcos Mendes (Cláudia e Mendes, 1988) utiliza abordagem semelhante, ao mesclar arranjos cool de caráter urbano com um coro masculino que busca emular aqueles da música indígena. Finalmente, na mais recente gravação da canção por Geraldo, incluída no álbum Intimidade acústica (Espíndola, G., 2005), com acompanhamento singelo de dois violões, a segunda vez sinaliza um retorno à concepção original, em ritmo de reggae, embora a primeira vez mantenha o mesmo arranjo da primeira gravação solo. Portanto, o que se percebe por meio destas gravações de “Quyquyho” é que, inicialmente, o compositor percebia esta canção com leveza e alegre despreocupação, Buscava, assim, possivelmente, exprimir, basicamente, o conflito de ser um morador do interior e desejar participar das seduções metropolitanas, além de inserir-se no projeto de unificação da América Platina a partir do MS. Estes traços são bastante presentes na produção local, como já foi discutido e será evidenciado a partir da escuta das canções do álbum. Entretanto, à medida que a popularidade e prestígio da composição se firmaram, concomitantemente às transformações históricas e culturais analisadas anteriormente, tem lugar uma nova recepção. Ela se encarregou de reposicionar a canção em outra categoria, visando à construção de uma identidade instrumental para as elites dominantes, o que produziu o efeito de reorientar seus arranjos. A segunda canção do Prata da casa, “Coração ventania”, de Carlos Colman, é uma moda de viola, em que o caráter regional – mineiro – é evidente, diferenciando-se, assim, de “Quyquyho”. Aliás, Colman é declaradamente um artista regionalista, preferindo apresentarse como músico caipira. Os gêneros de suas canções são escolhidos entre aqueles considerados “de raiz”, como a polca paraguaia, o chamamé, a toada e o arrasta-pé, e, em suas canções, favorece a viola de dez cordas. Alguns anos mais novo do que os artistas da primeira geração da MLC, começou a compor nos anos 1970 e é autor de “Castelânea”, canção - 303 bastante conhecida. Sua discografia solo inclui Toque na terra (1997), Trem caipira (2001), Carlos Colman (2002) e Sertanejo de coração (2005). “Coração Colman) ventania” (Carlos Meu coração é ventania Galopando em brancos versos Pelos campos dessas terras De sem fim... de sem começo Pulo a porteira dos meus olhos Que olham tanto Me consolo e só me encanto De ver moças enfeitadas Com clarão dentro dos olhos De luar beijando a mata Deixo o peito de rédeas frouxas Se a viola pede pousada E se a morena me diz não Viro chuva e tempestade Não levo amor por caridade Afino mágoa é na viola Que protege da tocaia da saudade Cantando moda de viola Só não faço chover Mas bem que eu controlo o tempo Como se vê, a letra se constrói à base de metáforas que unem a subjetividade do eu lírico ao mundo natural, produzindo um efeito de identidade entre ambos. Ao mesmo tempo, a instrumentação do Grupo Therra, que executa a música, é bastante tradicional, com exceção do contrabaixo elétrico: Carlos Colman: violão e voz; Jorge José da Silva: contrabaixo e voz; Orlando Brito: viola de 10 cordas e voz; e Roberto Espíndola: percussão. O mesmo se pode dizer da harmonia, melodia e ritmo. Trata-se de uma concepção regionalista que adota a cultura caipira mineira como adequada para representar o MS, valendo-se das similaridades verificadas entre os dois estados quanto ao seu universo rural. Aponta também para a ideia de “raízes”, ao fazer referência, por intermédio da música, à origem de Campo Grande, fundada por um mineiro e povoada por importante colônia proveniente das Minas Gerais. Sem dúvida, “Coração ventania” representava uma escolha adequada à confirmação do ideário regionalista proposto para acompanhar a consolidação política das elites agrárias no novo estado. “Coração solitário”, de Celito Espíndola, é a próxima faixa do álbum. Trata-se de um rock, executado com bastante energia, evidente apesar das difíceis condições técnicas. Todos - 304 os músicos participantes na gravação eram, já, experientes praticantes da linguagem do rock’n’roll: Celito Espíndola: violão e voz; Cláudio Prates: baixo; João Bosco: bateria; Lúcio Val: piano acústico; Miguelito Barrera: guitarra e sintetizador. Musicalmente, nada se percebe de regional nesta canção. Curiosamente, no entanto, a letra é, também, recheada de metáforas do mundo natural e da vida no interior, em que as caçadas são, ou foram, tradicionalmente, uma forma de convívio social. “Coração solitário” Espíndola) (Celito Um coração solitário É como um caçador Vive buscando uma presa Que lhe dê amor Um coração solitário Deseja sentir O perfume da flor Que se chama querer Bem alguém E não quer ficar para sempre Assim feito livre atirador Um coração solitário É como um caçador Vive buscando uma presa Que lhe dê amor Um coração solitário Só quer encontrar O parceiro ideal Numa noite de lua Pra bem amar E não quer ficar para sempre Assim feito livre atirador Por meio deste diálogo entre uma letra sentimental, vinculada a valores naturais e regionais, e uma música cosmopolita, voltada para o inconformismo, sugere-se uma tensão que pode ser interpretada de diferentes maneiras (como conflito ou, ao contrário, tentativa de conciliação, por exemplo), mas que permanece como atrito, como embate de dois universos contrastantes. É necessário notar, no entanto, que a letra se vincula ao tropo do movimento, recusando uma ancoragem explícita a valores da terra. “Pássaro branco” (de Chico Lacerda e Vandir Nunes Barreto), com o Grupo Acaba, segue o padrão criado pelo grupo, que busca criar uma imagem inteiramente dedicada ao regionalismo do Pantanal. No entanto, percebe-se neste padrão uma continuidade da tensão criada pelo diálogo entre letra e música, embora com características diferentes dos outros exemplos em que isso ocorre. - 305 A letra se atém ao Pantanal, falando da identificação que o eu lírico experimenta com esta região, sua flora e fauna, ao mesmo tempo exprimindo dor pela destruição de sua natureza. Pássaro Branco (Chico Lacerda e Vandir Nunes Barreto) Quantas penas brancas Que se movimentam Neste lago de lama Nesta lama sem pena Sua asa tão linda Abraçou o espaço Desenhou meu retrato Pra ficar nessa terra Esta pena tão branca Enfeitou o meu chão Decorou o meu céu Pintou minha planta Desvendar o mistério Da morte mais branca Que perdeu sua cor Neste lago de lama Ainda criança aprendi O caminho dos pântanos Embora sem pena Aprendi a voar Neste lago de lama Um homem sem fama De tanto ter pena Perdeu a canção A música é basicamente executada por instrumentos acústicos, com exceção do contrabaixo elétrico. Sendo uma característica definidora do grupo, a instrumentação não eletrificada é coerente com seu discurso verbal, de “autenticidade” e recusa à cultura “importada”. Participam os integrantes do Acaba, que, nessa formação, foram Adriano Praça: flauta e voz; Chico Lacerda: percussão e voz; Luizinho: contrabaixo e voz; Moacir Lacerda: pandeiro e voz; Vandir: viola e voz; Zezinho: tumbadora e voz. Há uma intensa busca pela mimetização da música indígena, através de percussões, apitos e da semelhança do timbre da flauta, e tudo isso foi aproximado do universo pantaneiro pelo grupo, em virtude do fato de que os indígenas daí costumavam transitar pelo Pantanal, e alguns eram exclusivos habitantes desta região. Entretanto, a harmonia da canção, que é uma toada, é de forte sabor modal (lídio e dórico). Como tal, não reflete um padrão local, sendo provavelmente inspirada na música tradicional nordestina. Não sendo ligada ao folclore musical do Pantanal, caracterizado pelo cururu e o siriri, nem ao padrão de interpretação sertanejo, comum no estado, esta toada - 306 evidencia a concepção do Acaba, em que o regionalismo é muito mais devedor das tradições do norte de MT, por sua proximidade com o nordeste, do que com o sul, cujas “tradições” buscavam-se inventar por meio deste projeto. Com efeito, se o Acaba evita ser um grupo tradicional, no sentido estrito, por outro lado, evita com maior vigor introduzir elementos transnacionais de música pop ou rock. Sua preferência recai, então, sobre gêneros tradicionais brasileiros de diversas regiões, com destaque para o Norte-Nordeste. Neste processo, seu discurso verbal volta-se a um regionalismo pantaneiro, mas seu discurso musical, da mesma maneira que em “Kananciuê”, já discutida, volta-se às referências constitutivas do norte. Em outras palavras, o Acaba reconstrói o Pantanal, descrevendo-o por suas características fenotípicas através da letra e de certos ícones musicais, e situa-o, musicalmente, ao norte do antigo MT uno. Mais uma vez, a música do Acaba soa mais como um discurso de retorno à unificação do que de separação. Em “Violeiros” (José Boaventura/ Rubens Aquino de Oliveira) temos uma situação que pode ser aproximada à de “Coração solitário”, sendo uma canção que possui uma letra bastante voltada ao universo regional, mas a música é uma balada pop. Na instrumentação repete-se esta tensão entre o “autóctone” e o “importado”: Ayrton: contrabaixo; Edson César: guitarra solo; João Bosco: bateria; José Boaventura: voz e guitarra; Lenilde Ramos: acordeom; Lincoln: percussão; Lúcio Val: piano; vocais: Coral Sesc/Pró-música, com arranjos e regência de Iso Fischer. O uso de um coral, associado à ideia de grandiosidade, provoca efeito sensível sobre a plateia, que reage com palmas entusiasmadas ao ouvi-lo. No entanto, como o coral entra exatamente no refrão, que se caracteriza por imagens de simplicidade bucólica e violeiros cantando “sua solidão”, faz ressaltar a tensão, sugerindo, mais uma vez, um desejo de superação das condições locais rumo a uma cultura mais cosmopolita. - 307 Esta tensão se encontra na letra entre as duas seções separadas não apenas estruturalmente, como estrofe e refrão, mas, principalmente, por seus significados: enquanto as estrofes privilegiam o movimento, o refrão aponta para o imobilismo (“sentados no chão”). “Violeiros” (José Boaventura/ Rubens Aquino de Oliveira) Você menina da noite Veja a lua nas restingas E deixe seus olhos morenos Libertar as trevas misteriosas Sobre as árvores mortas Espalhando nas campinas Luz gosto de mel Você menina que sonha Venha se encontrar comigo Logo que a noite nasça Na flor da água luminosa Vou num cavalo fogoso Montado num arreio de prata E trote silencioso Escuto violeiros Sentados no chão Cantando sua solidão E a garça branca Levanta voo Até o infinito das matas Levando meu pensamento para a lua Onde você dorme agora E onde estaremos Até o amanhecer Verifica-se, assim, mais uma vez, o conflito entre o pertencimento a uma realidade interiorana entendida como estática, representada pelos “violeiros sentados no chão, cantando sua solidão”, e as imagens de intenso movimento, expressando o desejo de libertação desta realidade. Sendo assim, é ainda outra canção que se insere na produção da MLC caracterizada pela busca de movimento e superficialidade, opondo-se à ideia de fixação (de uma identidade) e aprofundamento (de raízes). “Vida cigana” é uma das canções mais conhecidas de Geraldo Espíndola, com mais de 60 regravações por artistas como o grupo Raça Negra (que vendeu um milhão de cópias de sua versão pagode) e Gian & Giovani. Seu imediato reconhecimento pela plateia indica que já era popular então. Uma das interpretações caóticas desse álbum, devido à participação coletiva de todos os artistas do Prata da casa (sendo interpretada, em primeiro plano, por Tetê Espíndola), mesmo assim “Vida cigana” pode ser compreendida de maneira satisfatória. - 308 Trata-se de uma balada pop (nesta interpretação, apresentando alguns contracantos roqueiros de guitarra) com harmonia singela e melodia simples. Mais uma vez se verifica uma tensão entre elementos “próprios” e “externos”, sendo que, no entanto, aqui predominam elementos “externos”, uma vez que os materiais que podem ser percebidos como “próprios” se resumem a imagens da natureza que funcionam como ícones da região. Deve-se ainda notar que a letra expressa exatamente uma situação em que o eu lírico se encontra desenraizado em sua “vida cigana”, longe de seu lugar e da pessoa amada, inserindo-se na produção vinculada às poéticas do deslocamento: o fluxo, as coisas do ar, e que questiona o ideário de pertencimento que se buscava oficializar. “Vida cigana” Espíndola) (Geraldo Oh, meu amor! Não fique triste... Saudade existe pra quem sabe ter, Minha vida cigana me afastou de você, Por algum tempo que eu vou ter que viver por aqui, Longe de você, Longe do seu carinho... E do seu olhar, Que me acompanha tem muito tempo Penso em você a cada momento Sou água de rio que vai para o mar Sou nuvem nova que vem pra molhar Essa noiva que é você Para mim você é linda A dona do meu coração Que bate tanto quando te vê É a verdade que me faz viver Meu coração bate tanto quando te vê É a verdade que me faz viver por aqui “Carne seca”, do baixista Cláudio Prates e do letrista Eduardo Oliveira, é um caso raro de canção de protesto na MLC. Talvez, por conta disso, sua letra utilize imagens mais próximas do Nordeste do que do Mato Grosso do Sul (“boca seca”, “não lhe deu o que beber”, “carne seca de sol”, “inferno norte”, “farinha”), reminiscentes, sugestivamente, da literatura regionalista da década de 1930. Já por isso exprime um universo avesso ao regionalismo do MS, que é também sugerido musicalmente, sendo mais um exemplo de canção pouco afeita a - 309 corroborar a ideologia que se buscava implantar àquele momento. Neste caso, a sugestão musical contra-ideológica é feita pela evocação da Bolívia, tanto por meio do charango de Almir Sater e pela flauta de um músico não registrado na ficha técnica, quanto pelo modalismo (frígio) e por algo do ritmo da percussão. Entretanto, o ritmo básico que vai aí misturado é o do chamamé, percebido como regional, confirmando mais um exemplo de diálogo ou polêmica entre as duas instâncias que desafia o fechamento regionalista e se aproxima do projeto de integração latino-americana. Os músicos participantes são Almir Sater: charango; Celito Espíndola: violão; Cláudio Prates: voz e baixo; João Fígar: vocal e percussão; Miguelito Barrera: bateria; Orlando Brito: violão de 12 cordas. “Carne seca” (Eduardo Oliveira e Cláudio Prates) Poucos sabem desse povo Poucos ouviram falar Da dor que come essa gente Que não tem o que comer A terra que bebe esse povo Não lhe deu o que beber Poucos sabem dessa vida Que habita o inferno norte Que só consegue do dia Suor no prato de comida E um pouco de farinha Para estancar a ferida Poucos sabem dessa dor Dessa carne seca de sol Essa boca seca de tudo O peito fechado de luto Com muito pra falar Tudo trancado no fundo Em “Solidão”, do cantor e compositor João Fígar, temos na letra algumas referências que visam produzir nos locais a sensação de reconhecimento imediato. Estas giram em torno do popular e tradicional esporte da pescaria em Mato Grosso do Sul: a “piraputanga”, peixe arisco e que prefere as correntezas profundas, serve como comparação para o sentimento experimentado pelo eu lírico ao lembrar-se do fugidio objeto amado; a dor da perda deste é metaforizada pela fisgada do anzol no peixe; e a menção a “Coxim”, cidade ao norte de - 310 Campo Grande, localizada no Pantanal da bacia do Alto Paraguai, famosa por propiciar excelentes pescarias em seus rios, ajuda a ancorar geograficamente o setting da canção. No entanto, pouco há de regional nesta música com fortes influências de rock progressivo, com exceção do ritmo ternário marcado no trecho em que a letra é “Alguns dias em Coxim/ Ferro o peixe dói em mim”. Temos, aqui, uma aproximação estilizada dos ritmos da polca paraguaia e do chamamé, feita por músicos urbanos desinteressados de uma reprodução tradicional destes gêneros. Com exceção de João Fígar, vinculado principalmente à MPB, além da MLC, os outros músicos são fortemente ligados ao rock, principalmente o progressivo: Cláudio Prates, baixo; João Bosco, bateria; Lúcio Val, piano acústico; e Miguelito Barrera, piano Fender. Como em outras canções, temos aqui uma tensão entre elementos regionais e não regionais, entendida como uma recusa em significar-se por meio de uma identidade regionalista, e uma procura de integração latino-americana a partir do MS. “Solidão” (João Fígar) Vida diga minha vida Diga porque é tudo assim Estanca logo essa ferida Leve-a pra longe de mim Amanheceu... Alguns dias em Coxim Ferro o peixe dói em mim Só me dão solidão Só me dão só lhe dão solidão Como as piraputangas Em todo rio a bater Quando me lembro de ti Logo começa a correr Meu coração... “Descuidado”, de Paulo Gê, é, na verdade, uma modinha interpretada em estilo ultrarromântico pela cantora Junia Marize, como numa seresta, uma combinação totalmente descolada, tanto dos diferentes estilos da MLC, quanto dos gêneros tradicionais do estado. De certa maneira, isto se explica por Paulo Gê – que também faz vocais e violão nesta faixa, ao lado do experiente violonista Orlando Brito – ter apenas nascido no estado, em Corumbá, tendo vivido dos sete anos até então no Rio de Janeiro. À época recém-chegado, terminou por - 311 se integrar ao movimento, mantendo sempre em destaque de seu estilo características da MPB. Mas “Descuidado” não poderia ser considerada uma canção regional, evidenciando a discordância do artista em participar de um ideário nativista. “Descuidado” (Paulo Gê) Não quero mais pensar Nas coisas que passaram Pois é inútil relembrar Que morreu Mas acontece que ficou essa saudade Pra me levar pra sempre perto de você É impossível, não consigo liberdade Pra perceber que já não temos nada a ver Meus sentimentos por você são desprezados Só são cabíveis em quem já enlouqueceu É, eu tenho é que ficar calada Não ficar amargurada E morrer por te gostar Não sou nada mesmo Sou um coitado Que num dia descuidada Você fez se apaixonar Da mesma maneira, embora por motivos bastante diferentes, dificilmente “Horizontes” poderia ser chamada, com justiça, de “canção regionalista”. Nem pretenderia romper com o universo local. Percebe-se, ao contrário, a intenção de localizar-se no tempo e no espaço, mas estas duas dimensões são amplificadas por meio da absorção de procedimentos de fina elaboração. O resultado é uma expressão não regionalista do local, evidente nos arranjos, no tratamento melódico e harmônico e na artesania da letra. - 312 “Horizontes” (Guilherme Rondon, Paulo Simões e Iso Fischer) Calma deixada no mundo Sei que encontrei teu lugar É lá que me entrego aos prazeres Nos verdes momentos De cantar Casa caiada sem muro Mato que invade o quintal Saber o ser tão da cidade É roçar a verdade De viver Tardes inteiras Recortam mangueiras Num céu de horizonte Perdido na luz E no ar a fábula E na terra a mágica Na fogueira o sonho Nas águas o som... Ondas que o mar não fez Nuvem querendo paz De ser feliz Eu vim atrás... A letra de Paulo Simões e Iso Fischer reflete com sutileza sobre a dinâmica naturezacultura. Trata-se da sensibilidade do poeta sendo capaz de captar a diferença buscada por aqueles artistas situados no interior, mas seduzidos pela efervescência das metrópoles. Esta diferença se inscreve na complexa relação que os habitantes desse lugar desenvolvem com o mundo urbano e o natural, e como se definem por meio desta relação. Nos “verdes momentos de cantar”, no “mato que invade o quintal”, entrecruzam-se as duas instâncias sem que se afirme uma com a exclusão da outra. “Ondas que o mar não fez” traduz o sentimento oceânico em termos locais, ou a inexprimível sensação de se estar no mar em um lugar em que este não existe, uma cidade no coração da América do Sul. Mas é em “Saber o ser tão da cidade”, conhecer o modo demasiado intrínseco de ser da cidade e, simultaneamente, ser capaz de reconhecer o sertão na cidade, que os letristas alcançaram uma imagem que exprime esta dinâmica com raro poder de síntese. A música de Guilherme Rondon consegue responder à altura ao desafio proposto pela letra. Embora não seja evidente à primeira audição, ao transcrevê-la para o violão percebe-se que a harmonização e os contracantos tiveram como princípio central de organização as terças paralelas da viola caipira, mineira ou paulista, e alguns de seus clichês de rasqueado (refiro- - 313 me ao golpe das unhas sobre as cordas e não ao gênero musical). Entretanto, a articulação deste princípio aparentemente simples a acordes como Am9/C, B7/11/A e C#m7/9, que soam consideravelmente dissonantes nesse contexto, em tom de Mi maior, é que produz um análogo musical da ideia contida no texto. Mesmo assim, a fluidez da melodia não é comprometida, resultando em uma canção bastante coesa e assimilável a uma audiência mais ampla. Letra e música, em conjunto, são bem sucedidas em situar o local por intermédio de uma expressão cosmopolita, sendo mais um exemplo, assim, de relativização do regionalismo que os poderes constituídos buscavam reproduzir. Bem diferente é o universo explorado por “Sonhos guaranis” (Paulo Simões/Almir Sater). Musicalmente, trata-se de uma guarânia com soluções harmônicas originais, embora não se afaste radicalmente dos modelos paraguaios. Diferentemente da birritmia que caracteriza algumas polcas paraguaias, aqui a métrica é ternária, tanto do acompanhamento quanto da melodia. A letra, ao contrário da iconicidade sugestiva de “Horizontes”, é narrativa e mais explícita. O cuidado na feitura de letra e música justificam o prestígio que a composição logo em seguida passou a merecer, por parte da população. Entretanto, há mais razões para explicar a importância da canção para a memória sul-mato-grossense. Deve ser destacada a intenção pioneira de vincular a história de Mato Grosso (uno) ao Paraguai numa canção, em um momento em que referências ao país derrotado na guerra não ensejavam quaisquer conotações meritórias. “Sonhos guaranis” foi concebida como uma homenagem feita por brasileiros aos paraguaios, como explica Simões, contestando a possibilidade de uma intenção épica com relação ao confronto que os paraguaios chamam de “Guerra do Brasil”. Por coincidência o Almir tinha lido o livro Genocídio americano e comentado comigo, eu peguei emprestado e estava lendo (...) Uma batalha era descrita como o momento em que a Tríplice Aliança tinha passado a fio de espada os soldados paraguaios, onde a maioria era criança. Esta frase não cola no contexto do heroísmo. Como é que um exército de heróis liderado pelo grande Caxias está lutando e - 314 derrotando crianças, passando a fio de espadas? O livro do Chiavenatto não é perfeito, mas faz pensar. Um raio cósmico fez com que a gente começasse a música com versos contundentes. Poderia ter sido uma guarânia romântica. Era delicado mexer com o assunto da Guerra do Paraguai. (Simões apud Teixeira, 2011) A busca por desafiar o silêncio imposto pela guerra imperialista em que o Brasil teve papel destacado é explicitada em duas partes da letra: “Em mil canções/ Lembrando o que não se diz” e “Mato Grosso espera/ Esquecer quisera/ O som dos fuzis”. “Sonhos guaranis” (Almir Sater e Paulo Simões) Mato Grosso encerra Em sua própria terra Sonhos guaranis Por campos e serras A história enterra uma só raiz Que aflora nas emoções E o tempo faz cicatriz Em mil canções Lembrando o que não se diz Mato Grosso espera Esquecer quisera O som dos fuzis Se não fosse a guerra quem sabe hoje era Um outro país Amante das tradições De que me fiz aprendiz Por mil paixões Sabendo morrer feliz Cego é o coração que trai Aquela voz primeira Que de dentro sai E às vezes me deixa assim Ao revelar que eu vim Da fronteira Onde o Brasil Foi Paraguai Portanto, a canção se inscreve entre aquelas produções que contestam o heroísmo associado ao projeto nacional, e, propondo uma aproximação entre o Brasil e o Paraguai, contribuem para reforçar a instabilidade local motivada pelas alianças com os povos vizinhos, causa de preocupações estratégicas militares de longa data. Entretanto, as posições subjetivas presentes no discurso da canção permitiram, também, que ela fosse articulada aos interesses dominantes, que visavam, com a busca de singularidades culturais, justificar a divisão. Reside aí uma importante contradição. A música de origem paraguaia, nos primeiros tempos, provoca estranhamento e recusa, uma vez que desrecalcava o marginalizado e não era acolhida pela sociedade imbuída de uma certa - 315 ideologia modernizante, pautada nos grandes centros brasileiros. No entanto, com a passagem do tempo, torna-se assimilável como parte da identidade do estado. O caráter épico, contestado inicialmente, retorna, principalmente se o ouvinte se coloca na posição de quem “venceu” a guerra: “Se não fosse a guerra/ Quem sabe hoje era/ Um outro país”. Para este ouvinte, “Sonhos guaranis” forneceria, de maneira evidente, uma “raiz” (mencionada explicitamente na letra) para explicar a formação do estado a partir da Guerra do Paraguai. Assim procedendo, funcionaria como símbolo fundador, estabilizando os significados e ratificando a crença em uma origem definida para o estado nascente e sem tradição que se encontrava ansioso quanto à sua (incerta) identidade. Construída por certa recepção como canção épica, “Sonhos guaranis” partilharia esta categoria, neste álbum, apenas com “Quyquyho”. Entretanto, enquanto esta última expressava-se musicalmente por um gênero transnacional, “Sonhos guaranis” utiliza-se de uma guarânia que busca, na instrumentação, maior fidelidade ao gênero. Mesmo se o uso de uma voz solista tímida e insegura destoa da grandiosidade, autoconfiança e potência marcantes nas interpretações paraguaias. Interpretada no contexto da recepção construída pelo divisionismo, a canção marca, assim, um momento de afirmação de um sentimento regionalista em seus primeiros anos de surgimento: os primeiros anos em que se começava a sentir-se necessidade de narrativas de origem em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Entretanto, a performance desta gravação, em especial, desautoriza a afirmação de uma ideologia manipuladora, típica dessas narrativas, fundada na decantação de traços heroicos. O ouvinte é levado a identificar-se com uma posição que está longe de transmitir plena confiança e segurança à construção de uma identidade estável. Finalmente, a última canção do álbum é “Trem do Pantanal”. Uma das execuções mais caóticas do LP, a faixa documenta, entretanto, uma característica importante da MLC, várias - 316 vezes aqui mencionada: o espírito coletivo. Esta foi a canção escolhida para finalizar o Prata da casa, e foi reconhecida como merecedora desta distinção pelo coletivo de músicos, que subiu ao palco para interpretá-la com evidente entusiasmo. Este entusiasmo está presente no mbureio (mbureô) que se ouve ao final da canção, conectando de maneira explícita a nova música que se saudava como imagem do estado nascente com a tradição paraguaia da erva-mate. Na definição de Hélio Serejo, o mbureio é “o grito que o peão do erval solta quando está no caati, longe da ranchada, monteando, ou caminhando para pasar el tiempo” (Serejo, 2008b, p. 137), ou seja, quando está sozinho nos ervais, à distância dos companheiros e de qualquer outro ser humano. É uma forma de comunicação e contato naquelas distâncias ermas. Um grito chama a atenção, dá sinal de vida; dois gritos indicam que o peão está satisfeito, tudo está correndo bem; e três gritos, as coisas vão mal, existem dificuldades, o peão está desorientado; se repetir os três gritos, pede socorro urgente, não pode resolver sozinho o problema. (Serejo, 2008b, p. 137) Nos bailes da capital, como em todo estado, o mbureio é tradição antiga, popular em todas as classes sociais nos momentos em que se executa a polca paraguaia ou outros gêneros dessa origem, sempre associado à exaltação, excitação e sensualidade. Isso porque o mbureio, tradicionalmente, não se restringia à comunicação nos ervais. Era, também, uma forma de exibição viril com o fim de sedução. Como explica Serejo: Uma coisa que sempre acontecia com mbureador que possuía sentimiento nel grito: despertava, com certa facilidade, nas cunhãs dos ervais, moças e velhas, paixão violenta. O mbureador de classe, quase sempre um mineiro, era figura respeitada nos ervais. (Serejo, 2008b, p. 138) Dadas estas características, o que chama a atenção, aqui, é o insólito da presença do mbureio em “Trem do Pantanal”, uma canção antitética com relação às produções paraguaias, em vários sentidos. É verdade que o gênero é a guarânia, pertencente ao universo paraguaio. No entanto, seu emprego, aqui, é inteiramente deslocado. A própria instrumentação usada difere bastante da tradicional, ao empregar viola de dez cordas (ao invés de violões), piano e bateria. O estilo interpretativo destoa do original, tanto ritmicamente (não emprega o - 317 rasqueado do violão, que, para um não-paraguaio, é difícil de absorver em todas as suas nuanças) quanto em termos do padrão vocal (não há a grande ressonância e sonoridade da voz paraguaia característica). Além disso, como já foi dito, a letra não é particularmente voltada para a provocação de entusiasmo: o eu lírico é “mais um fugitivo da guerra”, alguém para quem “o medo viaja também / Sobre todos os trilhos da terra / Rumo a Santa Cruz de La Sierra” – ou seja, um fugitivo que tem por companheiro o medo. Estes são valores disfóricos, opostos àqueles voltados para transmitir confiança, exaltação, entusiasmo e sensualidade. O despertar desses sentimentos por “Trem do Pantanal”, na gravação do Prata da casa, assim, apoiou-se em posições subjetivas presentes no discurso da canção (a guarânia) para construir um sentimento de exaltação conectado ao contexto da divisão, momento eufórico em que muitas promessas foram feitas para não ser cumpridas. Exprime, assim, não tanto certezas quanto expectativas, algo angustiosas quando se imagina a incerteza provocada pela perda da estabilidade conferida pela divisão do velho estado uno, com o qual todos estavam habituados. Dessa maneira, o mbureio, como o gênero guarânia na canção, se insinua não como marca de identidade essencial, mas como procura de elaboração da experiência de um complicado e contraditório processo de divisão política do estado. O uso da guarânia era agenciado coletivamente, por parte expressiva da sociedade, na construção de um novo imaginário que respondesse a perguntas sobre seu estar no mundo e propiciasse um referencial, após a perda da estabilidade propiciada pelo antigo Mato Grosso uno. A música está transcrita a seguir, na versão em que aparece no Prata da casa. Neste álbum, trata-se de três repetições da mesma seção (com pequenas variações a cada vez, aqui sacrificadas para destacar o principal). As repetições acompanham as três estrofes da letra, sem nenhum interlúdio (elemento que já foi inserido em outras versões). Mais intrigante é, no entanto, a inexistência de refrão (que, ao contrapor-se à parte A, traria o aspecto da dualidade - 318 que é tantas vezes verificado na canção popular ocidental, e cuja ausência em “Trem do Pantanal” representa uma exceção digna de nota). Como já vimos, a questão da provisoriedade desta canção já fora problematizada pelo seu letrista: “Uma música tão simples, nem tá acabada, não tem uma letra pronta, não sabemos se tem que ter uma segunda parte, e causa tanta impressão nas pessoas. Será que é só pela beleza da melodia? Tem algo mais... ” (Simões, 2009). Por esta característica, “Trem do Pantanal” comunica a sensação de inacabamento, incerteza e indeterminação característica da formação cultural de Campo Grande. Como foi dito, esta cidade foi construída por discursos sobre modernização sempre contestados, com o recalcamento dos elementos entendidos como ligados ao “atraso”, e com o desprezo pela memória. Com o retardamento da colonização branca na região, que só se concretiza a partir do fim da Guerra da Tríplice Aliança, e os fortes fluxos migratórios que se verificaram desde então, não houve a definição de traços que pudessem ser aceitos, de maneira generalizada, pelas diversas populações, como expressivos da noção ideológica de uma “identidade”. O processo de divisão acirrou as incertezas, visto que as artes populares do Pantanal, os monumentos e os registros ficaram com Mato Grosso, enquanto o MS ficou apenas com as angústias, estimuladas pelas elites dominantes em busca de hegemonia, de criar uma fisionomia singular. Estas angústias estão, assim, formuladas a partir da forma inacabada, porém, assim perenizada, de “Trem do Pantanal” – música paradigmática do movimento, “hino do Mato Grosso do Sul”. - 319 - - 320 - Comitiva Esperança: em busca das raízes Justamente as dúvidas, angústias e incertezas trazidas pela divisão impulsionariam diversas iniciativas de levantamentos e buscas destas “raízes” supostamente ocultas. Com a MLC subitamente colocada na posição de representativa do estado que se criava, o que se materializou na forma de inúmeros convites de expressão, como o representado pelo Prata da casa, surge, em alguns artistas, o desejo de se aproximar de um Pantanal não idealizado, que propiciasse referências seguras para a criação da desejada identidade regional. Este foi o caso da viagem ao Pantanal empreendida por Paulo Simões e Almir Sater, denominada de “Comitiva Esperança”, que se propunha a registrar a ecologia musical pantaneira para subsidiar novas composições por parte da MLC. Esta nova configuração discursiva de parte da MLC foi potencializada pelo contexto político. Em 1983, Wilson Barbosa Martins ascende ao poder como o primeiro governador eleito pelo voto popular de Mato Grosso do Sul. Esta eleição foi extremamente importante, pois representou a derrota do candidato apoiado pela ditadura (Pedro Pedrossian), além de um retorno à normalidade institucional, após uma sequência de governos interrompidos pela ação conjunta de negociações de gabinete das elites político-econômicas e atos autoritários do regime militar. Wilson, como já foi dito, participava de movimentos estudantis universitários desde sua juventude, e manteve, ao longo de sua carreira política, uma postura crítica que lhe renderia a cassação, em 1969. Entretanto, era também membro de uma tradicional oligarquia pecuarista no estado. Sendo assim, seu governo representa, contraditoriamente, um momento em que as esquerdas e a sociedade civil mais ampla se unem para repudiar a ditadura, no entanto afirmando a dominância das elites rurais. Este viés não estaria ausente das políticas públicas do governo do estado para o setor cultural, sempre com a preocupação de estimular empreendimentos concordantes com o projeto de afirmar o que se compreendia como cultura sul-mato-grossense. Martins deu - 321 atenção a esta área, tendo reinstituído a Fundação de Cultura, ainda em dezembro de 1983. O contexto era favorável para iniciativas nessa esfera, e Simões, que havia decidido realizar ações voltadas ao mercado regional, começa a se interessar pelo tema do Pantanal, conforme ele mesmo explica: Em 1980, de volta do Rio de Janeiro, disposto a realizar um trabalho coerente e conseqüente de exploração do mercado regional, reencontrei o Guilherme Rondon, pantaneiro de formação, que me convidou a ir ao Pantanal. Lá nasceram duas músicas: Paiaguás e Estranhas Coincidências. Mais tarde, nos idos de 82, comecei a ver o Pantanal de verdade, mas superficialmente. Numa das vezes em que lá estive, em companhia do Almir Sater, ele disse ao Bandeirão, que era o dono da fazenda onde nos encontrávamos: “O Pantanal é demais!” O velho retrucou: “Cê sabe o que é o Pantanal? Pra vocês saberem, deviam sair por aí numa comitiva, levando boiada. Vocês não sabem de nada. Vocês têm que pegar uma mula e sair por aí.” Foi esse velho que nos deu a deixa de conhecer o Pantanal, através do olho pantaneiro, e não do civilizado, que lá chega, todo arrumadinho, de avião. Foi por isso que fiz questão de dar crédito em meu trabalho sobre o Pantanal ao Bandeirão (...) A partir daí, o Almir e eu passamos a encarar a ideia de conhecer de fato o Pantanal, saber o que realmente ele era. (Simões apud Sá Rosa et al, 1992, p. 87-88) Esta ideia concretizou-se no projeto Comitiva Esperança, que entre novembro de 1983 e janeiro de 1984 percorreu diversas regiões do Pantanal. A iniciativa obteve o apoio do Governo do estado – e, por este apoio, depreende-se que a iniciativa não contrariava os interesses dos pecuaristas –, da Funarte e da Embrafilme. Explicitava-se, assim, uma convergência dos múltiplos interesses – políticos, culturais e comerciais – em torno do Pantanal como referência identitária do estado implementado apenas cinco anos antes. Essa convergência é sinal, tanto da nova respeitabilidade da MLC, quanto de sua institucionalização, ao ser legitimada por vários atores para falar em nome do estado, coisa impensável nos primeiros tempos em que era considerada coisa de “malucos”, como dissera Celito. Não é de se espantar que, nesse contexto, artistas da MLC, como Simões, deixassem de lado as propostas descompromissadas dos anos iniciais, e se voltassem para uma busca do que lhes parecia ser a verdade cultural do estado. Em termos de documentação, Comitiva Esperança resumiu-se ao registro cinematográfico produzido pela Tatu Filmes, uma vez que os músicos não se propunham a um - 322 levantamento etnográfico propriamente dito. O filme obteve prêmios de melhor trilha sonora na XIV Jornada Internacional de Cinema da Bahia (1985), melhor fotografia no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro/DF (1985) e Melhor Montagem no Festival de Cinema de Fortaleza/CE, 1985 (Cinemateca Brasileira, 2010). No entanto, os resultados, no que tange ao levantamento da vida musical no Pantanal, não corresponderam às expectativas de Almir e Simões. Segundo constataram os compositores, as fazendas pantaneiras, divididas entre sucessivas gerações, diminuíram de tamanho ao longo da década de 60, o que fez diminuir, também, sua população trabalhadora e a presença dos patrões. Com isto, escasseou o interesse dos proprietários em manter músicos (que, de qualquer forma, sempre foram peões em horário de folga) ou mesmo em despender recursos para a manutenção de instrumentos musicais, prejudicando a vida musical que porventura houvesse. “Assim, o que esperávamos ver de manifestação autóctone reduziu-se a pequenos espasmos” (Simões apud Sá Rosa et al, 1992, p. 89). Ainda nas palavras de Simões: Houve uma overdose de expectativas musicais nessa viagem. Esperávamos encontrar artistas pululando pelo Pantanal, o que foi um engano. Achamos alguns isolados que justificaram nossa ida até lá. Um velhinho, seu André Preto, foi talvez um dos únicos sábios vivos que eu conheci até hoje sobre a terra. Poeta, pantaneiro, negro e trabalhador. Descobrimos a realidade pantaneira em oposição ao pantanal sonho (...) Saímos em busca de festas de fazenda, onde houvesse gente, que nos falasse, por exemplo, do Pantanal, paraíso Zen, com a rotina sendo o corolário da segurança e nos decepcionamos. O céu é só para um, está do lado de fora. Para quem vive lá dentro, pode parecer um inferno. Foi uma dialética que procuramos destrinchar. Só que com recursos insuficientes, com prazos reduzidos e até com resultados insatisfatórios. Porque na época ninguém se interessou pelo projeto. Descobri que o tesouro pantaneiro não está em festas de peões, mas guardado na memória do pantaneiro. O cérebro do pantaneiro é diferente do nosso. Ele não é afeito à precisão, é meio índio, meio zen em sua relação com a natureza. E eu, o Almir, o Zé Gomes, o pessoal da Comitiva Esperança não éramos exploradores ansiosos, caçadores da arca perdida, loucos para abri-la e exclamar: Olhem só o que achamos, vejam o que descobrimos! Nossa recompensa foi nosso aprendizado. (Simões apud Sá Rosa et al, 1992, p. 88-89) A preocupação de Simões e Almir em fazer um levantamento da música da região do Pantanal é bastante recomendável, face ao histórico desinteresse em relação à memória no estado do Mato Grosso do Sul, como um todo. No entanto, a iniciativa não deixa de evocar as - 323 célebres missões de pesquisas folclóricas de 1938 de Mário de Andrade, e sugere inserir-se no mesmo ideário, ainda que de forma genérica, não explicitamente inspirada em leituras. É forte a impressão de se estar, aqui, novamente, frente à orientação modernista de Mário, que norteou virtualmente todo o processo de constituição da música erudita brasileira no início do século XX, com sua “concepção mais científica do estudo do folclore e da utilização direta (e às vezes bem simples, como desejava o teórico do modernismo) da temática popular” (Neves, 1981, p. 56). Esta concepção influenciou de maneira direta Luciano Gallet, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri, que formam o primeiro grupo nacionalista, na organização realizada pelo musicólogo José Maria Neves, tendo ainda se refletido sobre Heitor Villa-Lobos. Ou seja, a influência de Mário é incomensurável, pois, a partir dessa perspectiva localizada, no terreno da música erudita, disseminou-se de tal maneira que, hoje, é encontrada em muitos projetos como o aqui estudado. Portanto, em virtude da semelhança ideológica de Comitiva esperança com a concepção andradiana, convém recapitular alguns pontos deste percurso já muito debatido, para que se possa situar a iniciativa de Simões e Almir. Como é sabido, Mário de Andrade elegeu a música folclórica como representando a verdadeira identidade nacional, e foi extremamente influente nas direções tomadas pelos compositores da música erudita por boa parte do século XX, sem mencionar os pesquisadores de música folclórica. Esta opção foi mobilizada por força de seu ideal utópico: a condução progressiva do povo brasileiro de um estado de “atraso” tecnológico até a superação deste – que seria presidida pela música erudita (de caráter europeu). Esta é uma das observações centrais de Mário no célebre Ensaio sobre a música brasileira: uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artistica, isto é: imediatamente desinteressada. (Andrade, s.d., p. 16) Assim, a essência nacional reside na música folclórica. A música popular comercial, denominada por Mário de “popularesca”, por trazer já influências urbanas e internacionais, - 324 não conduziria à efetivação de sua utopia, seu projeto teleológico de superação do “atraso” tecnológico brasileiro rumo ao progresso, mas sem perda da “essência”. Apenas a música erudita poderia conduzir, de maneira adequada, a “música interessada” dos festejos, rituais religiosos e cantos de trabalho até a condição da “música desinteressada” do puro deleite estético. Esse é, grosso modo, o projeto cultural de Mário, que deveria inspirar um projeto mais amplo de desenvolvimento nacional (para maiores detalhes, ver Neder, 2010, p. 183184). Entretanto, a perspectiva de Mário se ressente da falta de distanciamento crítico em relação às teorias científicas e concepções de mundo de sua época, o que é compreensível devido à dificuldade de se estabelecer tal distanciamento quando estamos mergulhados em um dado momento histórico. Ao contrário, a apreciável separação que temos hoje daquelas primeiras décadas do século XX permite que possamos compreender alguns dos problemas de suas teorias e concepções. Em 1917, época imediatamente anterior ao lançamento do ideário modernista de 1922, todos os países europeus faziam parte de impérios, exceto a Suíça, os três países escandinavos e as antigas possessões do Império Otomano nos Bálcãs (Hobsbawm, 2007, p. 78). Situação semelhante caracterizava a África e a Ásia, onde o Império Chinês havia deixado de existir por volta de seis anos antes. Foi apenas com o fim da I Guerra Mundial que o império dos Habsburgo, o Império Otomano e o império alemão deixam de existir. É evidente que o novo problema representado pela constituição das modernas naçõesestado a partir dos escombros desses impérios tinha considerável espaço nas preocupações da época. No Brasil, não era diferente, até porque, como é sabido, este país havia deixado de ser um império e se tornado uma república apenas anos antes, em 1889, sendo que a questão da identidade nacional e dos possíveis caminhos a tomar pela nação ainda em constituição eram problemas básicos do modernismo. - 325 As preocupações de Mário, sobre a descoberta de uma identidade nacional, se inserem nesse contexto, e se constituem a partir das outras iniciativas que se organizavam em outras partes do mundo. Em síntese, a busca de uma identidade nacional diz respeito à necessidade das jovens nações-estado de se constituir como tal, a partir de um mosaico heterogêneo de grupos humanos com traços culturais às vezes radicalmente diferentes. A identidade nacional seria uma busca de elementos comuns que pudessem servir à identificação por parte de todos, o que conduziria a uma identificação de todos entre si, consolidando, de forma inventada e imaginada (cf. Anderson, 2006), uma comunidade. Isso era visto como essencial para evitarse a desagregação, o separatismo e o esfacelamento da nação-estado. Aos poucos, foram surgindo as críticas a esse modelo homogeneizador, e algumas delas se centraram justamente no fato de que estas identidades inventadas só podiam existir à base do recalcamento das diferenças. Com isso, qualquer projeto de procura de uma identidade é colocado sob esta suspeita. Assim, a tentativa, por exemplo, de privilegiar uma cultura pantaneira como detentora da identidade do estado do MS, mesmo que partilhada com alguns outros grupos étnicos representativos, como os paraguaios, corre o risco de recalcar uma enorme diversidade cultural. No estado existem desde gaúchos até nordestinos, sem falar de muitos outros grupos sociais, como as que se organizam em torno da música sertaneja comercial, do jazz e do funk, todas elas representando vozes que merecem ser ouvidas. A singularidade do estado se constitui a partir do acolhimento a todas estas diferenças, enquanto a ênfase na noção de identidade serve ao intento de neutralizá-las em favor de uma ideologia dominante. Um outro problema constituinte do projeto de Mário é aquele representado pelas teorias evolucionistas, que eram entendidas, em sua época, como igualmente válidas para as ciências naturais e sociais. Aplicado a estas últimas, o evolucionismo propunha que o estágio máximo de desenvolvimento era aquele verificado na cultura europeia daquele momento. - 326 Todas as restantes, entendidas como “primitivas”, seguiriam um processo natural até chegar àquele estágio desenvolvido. Mais uma vez, o que se obtém por esse processo é o recalcamento à diferença e à diversidade, acrescido de uma hierarquização. Temos assim, em Mário, uma clara hierarquia: a música popular (ou seja, a música tradicional) detém o “caráter nacional”, mas é, em si, insuficiente; é preciso conclamar as normas do mundo desenvolvido – a música erudita – para poder fazer dela música “artística”. Já a música “popularesca” seria de escasso interesse, se algum. Assim, como se disse, este modelo andradiano, com suas contradições, parece ser o mesmo que inspirou os músicos sul-mato-grossenses a desenvolver sua pesquisa no Pantanal, com algumas adaptações que se fizeram de maneira aparentemente natural, com o passar das décadas. Uma delas é a de que a música popular comercial, criticada por Mário, se incorporou à vida cotidiana, o que permite que os músicos se utilizem dela sem conflitos e sem terem que se justificar. No entanto, no que tange ao uso de uma música “primitiva”, supostamente detentora de uma essência, por uma música supostamente “desenvolvida”, a transposição parece se dar de maneira ajustada. Já se falou sobre o problema da insidiosa oposição natureza versus cultura, de maneira que não seria necessário retornar a isso para constatarmos um problema nesta linha de pensamento. A insistência em alinhar as produções culturais à ideia de “natureza” justamente eterniza a posição subalterna das populações do estado, que se pretendia, supostamente, superar, ao desrecalcá-las na MLC. Temos também que manter em mente o problema da hierarquização, pois esse é mais central, a meu ver, para o futuro do movimento. Neste projeto de desenterramento das raízes, reedita-se, aparentemente, a valoração desigual entre uma música tradicional e uma música popular comercial. A música tradicional é vista como tendo valor apenas “interessado”, ligado ao trabalho, religião e festa da comunidade em que é praticada, não valor “estético” como as músicas comerciais. Caso fosse percebida em plano de igualdade com qualquer outra, ela não - 327 seria entendida como matéria-prima, e, pelo contrário, seria o caso de se editarem CDs dessa música para serem distribuídos e vendidos como as músicas populares comerciais o são. Evidentemente, com os resultados revertendo para as populações que a praticam. O sampleamento e a hibridação são processos bastante diferentes do que os sugeridos por aprofundadas pesquisas do tipo em questão, que se baseiam em um repertório homogêneo numa nítida tentativa de desvelamento de uma essência. Pela própria natureza do processo, o sampleamento e a hibridação colocam os diferentes materiais lado a lado, simultaneamente, sem hierarquizar, sem que um seja representado evolutivamente como a fonte “primitiva” e o outro seu desenvolvimento tecnologizado. Além disso, esses processos empregam, preferencialmente, muitos tipos de materiais, de diversas origens, de diversas temporalidades, buscando nessa fragmentação a perda das referências identitárias fixas. Isso é exatamente o oposto do que se quer com pesquisas como as da Comitiva Esperança. Pesquisas que, historicamente, se caracterizaram pela busca de um caráter nacional (ou regional, no caso) supostamente perdido pelas trocas culturais, e que precisa ser recuperado indo-se à “fonte”, à “origem”, que é sempre “natural”. Além disso, no relato de Simões, chama a atenção o silêncio a respeito de uma música cuja presença os pesquisadores não podem ter deixado de notar no Pantanal. Refiro-me à música sertaneja comercial ou sertanejo pop (em oposição ao sertanejo “de raiz”, ou música caipira). É seguro afirmar que essa música é extremamente popular ali, de maneira que o silenciamento a respeito grita, por assim dizer. Será que, nesta valoração negativa da música sertaneja comercial, estamos a ver ecos do pensamento hierarquizador de Mário, quando se voltava contra a música “popularesca”? Ao hierarquizar, assume-se uma posição rígida e fixa. Isso logo se volta contra aquele que o faz, pois é inserido à força em um sistema de significações construído à sua revelia. Enrijecendo-se nesta posição, estanca-se o processo de semiose, que, na MLC, era - 328 caracterizado pela alegre relativização de todas as certezas. Como música “popularesca”, a música sertaneja comercial pode lançar mão de qualquer material, e assim se reinventar continuamente, participando, desta maneira, do processo histórico que colocou em contato, no âmbito das cidades do Brasil, as culturas rurais e urbanas. Recusando esta mesma mobilidade, que a caracterizava inicialmente, a MLC institucionalizada assumiu uma certa solenidade, como guardiã dos altos valores de uma elite dominante, impermeável às manifestações “popularescas”. Fixando os sentidos das músicas tradicionais encontradas no MS e região, tornados solenes e grandiosos por meio de uma elaboração supostamente sofisticada e superior, recalcando elementos populares que antes desreprimia (enquanto manifestações das “raízes”, não do “inautêntico”), esta MLC institucionalizada deixou de se reinventar e de estar aberta à sua realidade local. Realidade contraditória, de choques sociais e culturais violentos, em que o arcaísmo e a contemporaneidade, o “bom gosto” e o “mau gosto” se embatem. Negando-se a documentar estes conflitos – o que, inicialmente, buscava –, a MLC estabilizou os sentidos da maneira esperada pelo sistema de significações instituído pelos discursos dominantes, na defesa de uma identidade sul-mato-grossense agendada pelas elites, supostamente sofisticada, porém fundada em raízes atávicas, naturais, portanto imutáveis. Dessa maneira, deixou de desafiar a posição subalterna ocupada pelo estado, colaborando, ao contrário, para a eternização da posição de produtor primário na divisão do trabalho no estado-nação como um todo. A pesquisa da essência do “espírito” do estado é uma preocupação que só poderia existir a partir do momento em que a MLC se investe (e é investida) da grave responsabilidade de presidir à constituição da identidade do MS. Esta preocupação seria impensável alguns anos antes, quando tudo o que havia era a experimentação imotivada. Se aquele momento se caracterizou pelo descompromisso, pela incerteza, pela ironia e pela busca - 329 de caminhos ainda não trilhados, já agora parecem prevalecer o compromisso (com uma verdade histórica), a certeza (de uma identidade), a respeitabilidade (de uma pesquisa fundacional) e o estabelecido. Em outras palavras, presenciamos a emergência de um diferente discurso sobre o uso da música tradicional pela MLC. Inicialmente, em um momento em que o desenvolvimentismo pecuarista era a ideologia hegemônica em Campo Grande, e que o universo rural e paraguaio era recalcado, o uso da música tradicional, lado a lado com o rock, era radicalmente deslocado de seu contexto habitual. Este procedimento chocante e perturbador – deslocado – ressaltava a reificação da música tradicional como música do lazer da classe média urbana, nas churrascarias, festas e bailes, e da posição do outro, silenciado em todos os momentos, a não ser para ocupar este lugar subalterno. A artificialidade do processo era salientada pelo descaso em tentar reproduzir qualquer noção de “verdade” supostamente constante da música “original”, seja em sua composição, instrumentação, arranjo ou execução. O resultado era estranho, estrangeiro, e indicava a intertextualidade produzida pelas poéticas do deslocamento. Ao ser transformada em identidade, a música tradicional é devolvida ao seu lugar de origem. A contradição é conciliada, e o conflito, pacificado, é abandonado sem resolução. Assumido como essência, o traço do outro torna-se apaziguador, reconfortante, e o estrangeiro torna-se familiar. O sujeito intertextual se torna o sujeito centrado. Não mais dominado pela incerteza, sabe seu lugar e sabe o lugar do outro. A pesquisa das raízes busca retomar a música tradicional tal como ela “realmente é”, e a autenticidade é a condutora do grande engodo reificador provocado pela identidade: a MLC passa a ser a personificação do estado, e ouvir e cantar MLC uma maneira de vibrar, exaltar-se, emocionar-se com o Mato Grosso do Sul. Este passa a ser, não mais um substantivo abstrato, imponderável, vazio de conteúdos positivos, válido apenas como lugar virtual de encontro e perpétua reconfiguração de sentidos - 330 e significados diferenciais em conflito, mas algo concreto como uma pessoa, e não uma pessoa qualquer: uma pessoa que presidiu ao nosso nascimento e nos doou nosso nome – uma instância paternal. Esta nova concepção da MLC sobre si mesma parece ser reforçada pela música que se tornou altamente massificada neste momento que estamos tratando, e que foi o primeiro governo de Wilson Barbosa Martins. Refiro-me a “Terra boa”, composição de Almir Sater e Paulo Simões. “Terra boa” Paulo Simões) (Almir Sater/ Quando se é moço E tudo que se tem Sai do próprio esforço Para ser alguém Nada é impossível Nada nos detém Só vai ser preciso Você querer também Quanta terra boa Pra se viver bem É juntando forças Que se vai além Superando crises Sempre que elas vem Meu Sul de Mato Grosso Te quero tanto bem. Definida musicalmente por seu caráter nostálgico, “autêntico”, comunicado pelo gênero rasqueado e pela instrumentação acústica à base de acordeão e violão de 12 cordas, “Terra boa” representa um sensível afastamento daquela face da MLC citada anteriormente, caracterizada pelas ideias de superfície, deslocamento de sentidos, movimento, viagem, incerteza e indeterminação. “Terra boa” se insere em uma outra vertente da MLC, muito diferente, e que seria descrita de maneira adequada como “nativista”. Está voltada para o cantar emotivo da terra, em que se misturam orgulho, motivos edificantes, elogio do enraizamento, respostas firmes e seguras para as dúvidas, inseguranças e desafios (a fixidez e imobilidade serena da terra, sempre associadas imaginariamente à maternidade e à natureza, possibilitam uma sólida ancoragem que, com o “próprio esforço”, faz com que todas as crises sejam superadas e nada seja impossível – ou seja, a reprodução de uma ideologia liberal burguesa bastante conveniente frente aos conflitos agrários). - 331 O abandono de seu caminho original empurrou a MLC a uma direção perigosa, como ideologia oficial, estabilizada, passadista e institucionalizada (“Terra boa” foi jingle de Wilson Barbosa Martins. Embora, como atividade profissional, a comercialização de jingles políticos não comprometa seus criadores, ao associar sua imagem à do político, o artista sujeita-se a um certo ônus. Foi o caso dessa canção, com autoria conhecida e que se insere no repertório gravado dos compositores). Tomando essa parte da MLC pelo todo, a nova recepção, que começa a se formar no final da década de 1980 e aumenta no decorrer das décadas de 1990 e 2000, gradualmente deixaria de perceber a importante e radical contribuição da MLC para a transformação da mentalidade no estado, colocando-a no papel de dignificado e respeitável objeto de museu que ela, de certa maneira, buscou. - 332 - 4. CAPÍTULO 4. “LITORAL CENTRAL” OU “BRASIL POEIRA”? Pantanal: governo, turismo, iniciativa privada e visibilidade nacional para a MLC Conforme estamos acompanhando, a esta altura já havia se implantado a noção da importância da MLC para o estado. Esta noção de importância compreende tanto as efetivas inovações estéticas e reflexões culturais propostas pelo movimento, quanto sua institucionalização e legitimação, por parte dos diferentes atores sociais (governo, universidade, empresariado). Isto fica evidente na extrema distância que separa os primeiros tempos, em que a MLC ocupava uma posição de marginalidade, e a década de 1980, em que passa a gozar de prestígio social. Tal prestígio foi explicitamente outorgado pelo governo do estado (na forma de apoio declarado, econômico e/ou institucional, para festivais, intercâmbios, iniciativas como o Projeto Pantanal, realizado pelo Grupo Acaba, além da própria viagem ao Pantanal de Almir e Simões), pela televisão, pela iniciativa privada (o projeto nacional Pantanal Alerta Brasil), pela universidade (Prata da Casa, Caramujo Som e outros) e pela população (que, conforme vimos, apoiava a MLC entusiasticamente nesse período). Além disso, esse novo prestígio se evidencia pela própria atitude sintomática de seus compositores, ao assumir o papel de desveladores da verdade cultural da música do estado, quando, em outros tempos, isso seria impensável, tanto para a sociedade mais ampla como para eles próprios. A ascensão do Pantanal à visibilidade nacional e internacional, por sua vez, provoca uma nova valorização desse ecossistema antes desprezado como lugar inóspito, improdutivo e símbolo do “atraso”. O Pantanal adquire centralidade em vários discursos: ecológico, ufanista, - 333 turístico, empresarial e governamental. Além desses, retém o lugar que sempre havia ocupado na MLC, influenciada, como foi evidenciado, pelos discursos do naturismo e ecologia hippie desde o princípio. Mas, mais problematicamente, a MLC passa a ser associada, na nova recepção que começa a emergir no final dos anos 1980, a esse discurso ufanista e oficial que se constrói sobre o Pantanal nessa década, e que era inteiramente estranho a ela antes disso. Esta associação se construiu por meio de letras de canções que começaram a pintar um Pantanal de cores fortes e exóticas, por um uso mais tradicional dos gêneros musicais e pela presença dos músicos da MLC em eventos ligados ao Pantanal. Um dos mais visíveis, nesse sentido, foi o projeto Pantanal Alerta Brasil. Realizado em São Paulo, em 1987, o projeto consistiu de uma série de palestras e shows, tendo sido um deles dedicado à MLC e gravado ao vivo no Museu da Imagem e do Som (MIS). Outras apresentações ocorreram também no estádio do Anhembi. Os shows foram dirigidos pelo militante ecologista, compositor, produtor e músico Daniel Taubkin e a produtora mato-grossense Rita Figueiredo, então sua esposa, e seriam parte de uma ação mais ampla que visava colocar em evidência a questão ecológica no Pantanal, denominada por Taubkin Movimento Alerta Brasil. Segundo o produtor, esse movimento surgiu com o objetivo de colaborar artística, jornalística, científica e culturalmente na luta pela preservação de um dos mais importantes reservas (sic) ecológicas do mundo, o Pantanal. Contou com a participação e envolvimento de centenas de cidadãos brasileiros e estrangeiros, entre pantaneiros, artistas, professores, pesquisadores, especialistas, jornalistas, políticos. Entre as dezenas de ações realizadas destaco o registro fotográfico da região pantaneira em mais de cem horas de voo em helicópteros Bell da Base Aérea de Campo Grande, com apoio, entre outros, do Ministério da Aeronáutica. E credita-se também ao Movimento Pantanal, a realização do primeiro debate público com candidatos à Presidência da República da história do país, que foi realizado no dia 29 de janeiro de 1989, no Teatro Macksoud (sic) Plaza, em São Paulo, e que teve a participação, entre outros, de Franco Montoro, Mário Covas e do atual presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. (Taubkin apud Izola, 2010) Pantanal Alerta Brasil contou com impressionante cobertura midiática nacional, principalmente do Estado de São Paulo e do Jornal da Tarde. Foi um projeto que só poderia - 334 despertar associações positivas, pela sua organização, pela envergadura, pela visibilidade que proporcionou à música do estado e pela orientação ecológica contemporânea. Os músicos da MLC presentes ao evento foram Almir Sater, Alzira Espíndola, Celito Espíndola, Guilherme Rondon, João Fígar, Paulo Simões & Expresso Arrasta-Pé e Toninho Porto. O LP foi gravado ao vivo, como se disse, nos dia 19 e 20 de 1987, sob a direção musical de Guilherme Rondon. É o próprio Rondon quem comenta este momento, evidenciando que, após esse complexo e imprevisível desenvolvimento, que contou com múltiplos fatores (divisão do estado, busca de definição identitária, descoberta do Pantanal devido a ameaças ecológicas e aumento da importância do turismo como motor do desenvolvimento local, entre outros), a MLC ascende a uma posição de importância como representante do estado, posição amplamente divulgada pela mídia tanto nacional como local: (...) o Pantanal Alerta Brasil, que foi um pessoal de São Paulo que fez, que levou a arte daqui e a questão ambiental pra São Paulo (...) foi muito interessante (...) Os caras arrumaram 80 passagens, pela Vasp, pra levar o pessoal daqui pra São Paulo. Todo mundo hospedado no... Teve época até [nos hotéis] Maksoud [Plaza], no Eldorado, uns puta hotel, tudo com carro, com tratamento, programa na Globo, Som Brasil, rádio Eldorado, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal da Tarde, show no Teatro Cultura Artística... (Rondon, 2009) Como representantes do estado, foram homenageados à altura, por artistas de envergadura nacional e internacional: O lançamento do disco (...) Pantanal Alerta Brasil, você sabe quem abriu, abriu o show? A Orquestra Jazz Sinfônica e Dori Caymmi. Eles abriram nosso show. Depois do Dori Caymmi entrou a gente. Nós tocamos no MIS, no evento, quem participou desse evento foi Egberto Gismonti, Gilberto Gil... Teve vários eventos nesse Pantanal Alerta Brasil, que gerou um disco belíssimo, um show que a gente gravou em [fita] cassete, na sala do MIS, que tem uma puta acústica, e o Daniel Taubkin. Quando ele ouviu pela primeira vez, ele ouviu duas músicas e parou de ouvir e já trancou as fitas no cofre. A outra audição já foi gravando pra virar um disco. Virou. Um LP bem bacana. Um projeto belíssimo, alertando para a questão ambiental no Pantanal, época dos “coureiros”, era época do garimpo, e levou gente, levou pantaneiro, pantaneira, fazendeiro, músico, artista, fotógrafo, eles englobaram todo mundo, promoveram painéis, debates... Foi uma época que a gente tava muito bem na foto. E a gente participava disso, nós éramos os representantes, lá fora. Foi um movimento muito bacana. (Rondon, 2009, o último grifo é meu) Evidentemente, neste momento a MLC já havia se afirmado como uma importante referência para o estado. Da mesma maneira, para as instituições, buscar associar-se à imagem - 335 da MLC já era algo visto como positivo. Esta atitude se fortaleceu com o tempo, a julgar pelas palavras do atual diretor-presidente da Fundação de Cultura do estado, Américo Calheiros: A gente agora está vivendo um outro momento aqui em que se está procurando muito trabalhar em conjunto a questão da cultura e do turismo (...) Isso é muito bom pra sobrevivência das duas áreas. A Nilde Brum é a nossa presidente da Fundação de Turismo e nós já fizemos, no ano passado [2008], um projeto chamado Música no Pantanal, com apresentação de músicas regionais em algumas... seis pousadas do Pantanal, na região de Miranda, buscando oferecer para o turista um contato com a música de raiz, nossa música regional, nossa música mais típica, se é que possa-se usar esse termo. E fizemos uma série de outras parcerias no Salão Estadual de Turismo, no Salão Nacional de Turismo, enfim, estamos procurando caminhar juntos numa série de ações que possam resultar beneficamente para a cultura que tem um produto e para o turismo que tem aquele que pode consumir esse produto. E dentro disso, a gente vai vendo que hoje, o governo também está procurando transformar o turismo numa outra matriz econômica do estado. Sair desse binômio grão e boi (...) e buscando outras alternativas (...) Você bem lembrou, anos atrás, artistas nossos já tinham percebido isso, já tinham cantado isso, já tinham evidenciado isso. (Calheiros, 2009). A entronização da MLC no discurso oficial se dá também em termos de homenagens dos vários governos aos músicos e compositores. Mais recentemente, uma das mais significativas foi a inauguração da Concha Acústica Família Espíndola, na Praça da República (Praça do Rádio Clube), ocorrida em 19 de dezembro de 2008. Com isso, a prefeitura municipal reconhecia os serviços prestados à cultura sul-mato-grossense por essa família tão pródiga em talentos. A novela Pantanal Além da representatividade obtida no discurso institucional e oficial, a MLC obteve importante reconhecimento por parte da iniciativa privada, representada pela Rede Manchete de televisão, na forma da novela Pantanal. A novela Pantanal, exibida durante o ano de 1990, e tendo Almir Sater como galã, veiculou em escala nacional várias das canções produzidas pelo movimento e serviu inegavelmente como um forte reforço da autoestima do sul-mato-grossense. Esta nova autoestima, fundada em valores regionais, viria a ser fundamental para a identificação, por parte de muitos, com as canções da MLC. A novela superou os índices de popularidade da TV - 336 Globo, abalando sua hegemonia e impondo um novo filão, o da novela ecológica (Perin, 1990). Pela primeira vez, um produto cultural sul-mato-grossense era apresentado de forma positiva ao país como um todo, e com o maior destaque possível. E, nesta apresentação, provocou-se um efeito que, apesar de não planejado por nenhum dos envolvidos, não deixou de ser bem-vindo por eles, na medida em que potencializava seus esforços. Este efeito era a construção de uma recepção que passava a perceber aquela música e identidade como a expressão fiel de uma cultura autóctone. A identidade apresentada na novela tem como sua dimensão mais evidente a estetização da ecologia pantaneira e da atividade pecuária, com suas imagens do tuiuiú, do boi, do peão, da fazenda, de permeio a influências nacionais e internacionais captadas através da mídia de massa. Havia passado o momento de euforia representado pelo período de implementação da divisão, quando a MLC teve seu auge de popularidade. A “busca” de uma problemática identidade sul-mato-grossense construída à base daquelas representações, que havia sido colocada como prioridade para a hegemonia das classes dominantes (articulada aos desejos de exprimir uma diferença, por parte das pessoas), permanecia, no entanto. É neste contexto que aquela estetização passa a ser orgulhosamente incorporada à “identidade” coletiva como forma de singularização em relação ao restante do país. O processo de produção discursiva por parte da MLC, que foi, como vimos, inicialmente aberto e indeterminado, tendo sido marcado por sua historicidade, por embates culturais e disputas ideológicas, foi reificado, e o movimento recebido como expressão de uma identidade cultural “natural”, quase biológica. Esta reificação da MLC em uma identidade, em parte considerável, se vincula ao momento de despolitização associado ao avanço do neoliberalismo sobre a esfera pública brasileira, a partir de 1990. A hegemonia das antigas oligarquias agrárias no controle do aparelho ideológico do Estado é, finalmente, superada em 1998. Esta transformação foi - 337 resultado de diferentes mediações, com destaque para as longas lutas políticas dos movimentos sociais, das quais participou a MLC. Com efeito, este movimento se insere nestas lutas sociais desde o momento de seu surgimento, como se deve lembrar. Isto se deu na década de 1960, marcada pela efervescência cultural e pela eleição de 1965, quando a população do estado rejeitou a ditadura e o candidato pecuarista. Participando da renovação dos papéis sociais, por meio da contestação às estruturas estabelecidas, a MLC atuou no campo discursivo em favor de uma modernização alternativa da realidade do estado que teve influência na transformação de suas estruturas políticas. No entanto, refletindo a aludida despolitização da população mais ampla, a vitória de Zeca do PT na eleição para governador do estado em 1998 foi, para Bittar (2009b, p. 333), mais um protesto da população contra a ausência de projetos para o estado por parte das oligarquias rurais que o vinham governando, do que, propriamente, um apoio consciente a um suposto programa de Zeca. Este programa não existia, e face aos problemas herdados do antecessor, sucederam-se alianças com os setores ligados ao atraso e ao governo FHC, com a inclusão de deputados do PFL e do PSDB na base governista na Assembleia Legislativa e a descaracterização do partido. Em última análise, Zeca buscou meramente manter-se no poder por meio dessas alianças, e seu governo restringiu-se à “governabilidade” (Bittar, 2009b, p. 336). Com base nessas alianças, pôde governar por mais um mandato, até ser derrotado em 2006 por André Puccinelli (PMDB), comprometido com um projeto de modernização conservadora, e reeleito com esse programa em 2010. Neste sentido, a “identidade pantaneira” apresentada na novela, e atribuída à MLC a partir desse momento, possui pontos de contato com a realidade política do estado, à época. Entretanto, em que medida essa “identidade pantaneira” correspondia aos diferentes modelos propostos pela MLC aos sul-matogrossenses? Esta questão será mais adequadamente - 338 respondida por meio da análise comparativa dos estilos de alguns compositores, após uma discussão sobre o papel da Peña Eme-Ene como mediadora da recepção ao movimento. Peña Eme-Ene Um importante espaço de ocorrência de mediações para a MLC na década de 90 foi a chamada Peña Eme-Ene. De 1989 a 1999, a Peña Eme-Ene foi o palco privilegiado que serviu, em seus encontros semanais às quartas-feiras, de único ponto de encontro regular entre artistas e público na vida cultural pouco provida de atrações da cidade de Campo Grande. Segundo os discursos nativos circulantes, “peña”, ou “rocha”, em português, se refere aos penhascos espanhóis, e, depois, altiplanos andinos, onde, para se proteger durante a noite, os viajantes e caravanas de diversas localidades e regiões se abrigavam. Nestas ocasiões, demonstravam, uns para os outros, suas artes musicais e poéticas, sua dança e culinária. Surge, assim, a tradição da Peña, que é extremamente popular nos países de língua espanhola, inclusive na própria Espanha. Embora as peñas musicais (chamadas de “peñas folklóricas”) sejam muito numerosas (na Espanha, “peñas flamencas”), há peñas de todos os tipos, inclusive de futebol (que são grupos de torcedores associados a um time, que se reúnem para assistir suas partidas, inclusive em viagens). A Peña Naira, do famoso compositor e artista do charango Ernesto Cavour, situada em La Paz, Bolívia, foi o modelo que inspirou a Peña Eme-Ene. Em uma viagem de intercâmbio com a Bolívia promovida pelo então Secretário de Cultura do MS, Humberto Espíndola, Paulo Simões toma contato com a peña de Cavour. Entusiasmado, leva a ideia de realizar algo semelhante em Campo Grande para sua tia, Margarida Neder. Esta aceita a sugestão, criando, então, a Peña Eme-Ene, em sua confecção e loja de roupas regionais. O espaço da loja era ocupado por um conjunto de três pequenas casas de vila unidas por um comprido corredor externo. O visitante, vindo da rua, entrava na primeira casa, onde era a loja, para exposição das roupas de malha e tricô produzidas por Margarida e suas seis - 339 filhas adotivas – duas delas, Norma Rosa Jornada e Ivette Ângela Lemes tornadas sócias – desde a década de 1970. O corredor externo, que era, originalmente, de uso específico das pessoas que trabalhavam na loja e confecção, foi adaptado para abrigar a peña. Era, assim, um ambiente bastante pequeno e simples – o conceito dominante, o significado desta configuração espacial, era o de proximidade/ intimidade. Esse comprido corredor, após chegar ao final da primeira casa e o início da segunda, se alargava numa espécie de pátio interno, que Margarida mandou cobrir para atender à peña. Este pátio interno, parte corredor, teria cerca de oito metros de comprimento por quatro de largura. Neste ambiente foram dispostos bancos e mesas de madeira em estilo rústico, de galpão de fazenda. Era nestes bancos – cujo desconforto Margarida procurou amenizar com almofadas – que se instalava o público, com lotação de cerca de sessenta pessoas. Os artistas se apresentavam sobre um pequeno praticado, disposto no centro deste espaço. Não havia iluminação especial, apenas lâmpadas domésticas comuns. Entre as características da Peña Naira que foram seguidas escrupulosamente pela Peña Eme-Ene, pode-se mencionar: não era admitida amplificação de som, apenas o som acústico dos instrumentos e vozes; não era permitida a conversa ou outros ruídos durante a apresentação dos artistas; cada noite de Peña configurava-se em um verdadeiro painel da cultura local, com a presença de um grande número de artistas, muitas vezes mais de trinta apresentando-se em solo ou em pequenos grupos; e o serviço de comidas – sempre locais – era feito na forma de entradas, caldos e outros pratos leves, evitando-se o serviço de jantares completos que distraiam a atenção da música. Na Peña Eme-Ene, a pesquisa culinária era uma preocupação constante. Margarida buscava receitas tradicionais dos países sul-americanos e era bastante escrupulosa no preparo delas. As paraguaias eram mais fáceis de obter, por serem já bastante conhecidas na região: locro, bori-bori, chipa guazú. As salteñas bolivianas, além dos pratos dos outros países, - 340 exigiram maior esforço. Com tudo isso, as frequentadoras nativas desses países, que dominassem a arte culinária, tinham uma atenção especial de Margarida, sempre em busca de novas receitas. Evidentemente, devido à preocupação em valorizar o artista, em todas as suas áreas de atuação (inclusive culinária), um tal espaço seria cobiçado pelo músico campo-grandense, uma vez que se diferenciava radicalmente dos bares em que o profissional é obrigado a tocar e cantar por grande número de horas frente a um público que lhe dá mínima atenção. Efetivamente, a Peña, sob a administração estrita de Margarida Neder, bateu-se por uma educação do público pagante, estabelecendo uma rígida diretriz quanto ao silêncio durante as apresentações (havia intervalos estratégicos, em que a conversa era liberada). A este respeito, vemos anotado no livro de freqüência da Peña, passado de mão em mão naqueles encontros: “Abaixo o silêncio da Penha” (ilegível, apud Neder, 1999, fl. 28; em 15/08/1990). Ou: “Em todos os lugares por onde andei, ainda não vi um lugar como êsse. Música, hospitalidade. O silêncio quando se executa a música regional. Que beleza. Campo Grande de parabéns. Peña” (Elias de Sá Lima [Goiânia, GO], apud Neder, 1999, fl. 37; em 19/09/90). Ou ainda: “Mais wisk e menas ditadura [sic]” (anônimo, apud Neder, 1999, fl. 40; em 26/09/90). Os artistas que se apresentavam na Peña Eme-Ene consistiam de músicos, compositores, poetas, declamadores, dançarinos, pintores. Todas as modalidades de fazer artístico eram mostradas naquele espaço cultural, apesar de a ênfase estar nas artes da performance. As artes visuais estavam representadas por cerâmicas Kadiwéu e de outros povos indígenas, quadros, panôs decorativos, esculturas e outras produções – realizadas sempre com materiais ecológicos. Nestes encontros, artistas da MLC tinham a oportunidade de realizar intercâmbios culturais e ideológicos com a grande quantidade de artistas latinoamericanos vindos de países vizinhos e artistas brasileiros de passagem para países sulamericanos. - 341 Por tudo isso, a principal ideia que animava a Peña era a de promover uma integração latino-americana que propiciasse uma identificação do sul-mato-grossense com os países vizinhos. A Peña estabelece uma conexão com a MLC inicial, propondo, junto a esta, um caminho próprio para Campo Grande, a partir de sua posição periférica na América Platina. Confirmando este entendimento, Paulo Márcio Bacha verifica a convergência entre os projetos da MLC e da Peña, compreendendo que a atuação desta propunha a construção de um determinado modelo identitário fundado nesta condição latino-americana: [A Peña] é um ponto de encontro disso. Até serve a comida de fronteira: salteña, boribori, buscando essa comunicabilidade entre esses dois movimentos da identidade sulmato-grossense. A identidade se faz pelo nome, pela estética urbana, pela estética musical, pela comida, por tudo isso. Se cria esse modelo do que é ser sul-matogrossense. (Bacha, 2009) Portanto, a Peña é especialmente relevante por ter estado no epicentro do movimento em torno das definições identitárias por meio da MLC durante a década de 1990, sendo apoiada e encorajada pelos artistas, por certas camadas do público e pelos críticos culturais. Entretanto, o fato de que não houve um estímulo definido da parte do governo, dos políticos ou do empresariado, traduzido na forma de um patrocínio econômico, evidencia a divergência ideológica entre a orientação adotada por Margarida e aquelas predominantes na sociedade. Essa divergência ideológica tem raiz na mediação artística e política a partir da qual se dá o próprio surgimento da Peña. Como foi dito, a iniciativa nasce a partir da inspiração trazida por uma viagem de intercâmbio cultural de Paulo Simões à Bolívia, idealizada como parte da política cultural implementada pelo artista plástico Humberto Espíndola, quando de sua atuação à frente da Secretaria de Cultura do MS (1986-1990). A vinculação discursiva entre o projeto cultural de Margarida e a orientação estratégica de Humberto está expressa pelo próprio, presente em um dos primeiros encontros da Peña, ao legitimar esta iniciativa por escrito, no livro de frequência: Desde que assumi a Secretaria de Cultura, tenho insistido de que [sic] a contribuição cultural de Mato Grosso do Sul à cultura brasileira deve ser a de encarar ou assumir a posição sócio-política e cultural de ser o verdadeiro canal de comunicação entre o - 342 Brasil e a América Latina Índia. Este é nosso destino histórico, inclusive por nossa “destinada” posição geográfica. Nós construímos para o povo brasileiro a amizade entre nossos “hermanos”. Esta “peña” pioneira e indiscutivelmente oportuna é um marco na construção desses ideais. Bienvenida entre nosotros (Humberto Espíndola apud Neder, 1999, fl. 8; de 01/11/1989). O processo de construção de todo o ideário da Peña merece ser relatado de maneira mais extensa, tendo em vista o ineditismo destas informações e a necessidade de fornecer grande quantidade de detalhes úteis para a interpretação do seu desenvolvimento. Isto será feito, aqui, dando voz a um de seus atores principais, Paulo Simões. Na impossibilidade de fazer compartilhar este relato com a perspectiva de Margarida Neder, já falecida, peço licença para reproduzir boa parte do depoimento de Simões feito ao autor. No início da gestão (...) [de Humberto Espíndola, como secretário de Cultura], ele já deu início a um projeto ambicioso e muito bem pensado de estimular o intercâmbio cultural entre o MS e as nações limítrofes, que não existia na época. Nunca havia sido feito nada, que eu me lembre. Existia um intercâmbio espontâneo da vinda dos artistas paraguaios, argentinos, de Corrientes, os bolivianos (...) Antes disso, [os bolivianos] gozavam de invisibilidade social (...). O Humberto tinha promovido uma apresentação do Ernesto Cavour aqui no Rádio Clube Cidade [denominação da sede situada no Centro, em oposição à sede Campo] no início da gestão dele, no início do ano, 1988. Eu fui convidado, já conhecia o charango das minhas viagens, fui assistir a um belíssimo show e fiquei esperando mais desse projeto. Então o Humberto me chamou para dizer que estava promovendo dois shows de uma delegação sul-mato-grossense. Um seria em Assunção e o outro em La Paz. Eu não conhecia Assunção. Meu conhecimento do Paraguai era daquelas duas quadras em que todo mundo entra se sentindo seguro em Pedro Juan Caballero [cidade paraguaia separada por uma rua, na fronteira com a cidade brasileira de Ponta Porã, onde fica o comércio e o Cassino voltados para o turista brasileiro]. Tinha a maior vontade de conhecer Assunção, minha música, minha arte tem uma interface muito grande com a cultura paraguaia, eu era co-autor de “Sonhos guaranis”, uma música que foi um pouco pioneira – ou pioneira demais, talvez [risos], em abordar a parte encoberta do iceberg – então eu achei que, naturalmente, estava escalado para Assunção. E, para meu espanto, e uma certa rejeição, o Humberto me disse que pretendia que eu fosse para La Paz. A Tetê [Espíndola] participava das duas delegações por ser, na época, uma grande estrela, com “Escrito nas estrelas”, ou por estar inserida entre as estrelas, o Almir [Sater] participaria do show de Assunção, e eu e o Celito, que andávamos juntos, tínhamos o Expresso Arrasta-Pé, que é uma outra vertente do trabalho, iríamos para La Paz. Eu ainda reagi, resisti, disse, “Humberto, eu já conheço La Paz, já estive lá duas vezes, quatro, na verdade, duas na ida, duas na volta [das viagens ao Peru], e me interessaria muito ir para Assunção, que é um lugar que não conheço e onde acho que posso cavar coisas, descobrir outras jazidas”. Mas ele falou que não poderia abrir mão. Talvez ele já tivesse escalado, e [disse] que ao mesmo tempo eu era um dos autores de “Trem do Pantanal”, que é uma das poucas músicas icônicas [isto é, não ufanistas, citando o Pantanal apenas como um ícone] e ainda não cômicas – de tantos ícones as coisas estão ficando cômicas. Que eu deveria ir para La Paz porque eu tinha na manga a poderosa arma de ser o autor de “Trem do pantanal”. Eu não vou dizer que eu saí prejudicado com isso porque as circunstâncias permitiram que eu tirasse proveitos não previstos. O primeiro deles foi que (...) eu fui convidado pelo Humberto (...) para ir na - 343 equipe precursora, com Carlos Marques, Celito Espíndola e eu. Nós tínhamos que ir com alguns dias de antecedência para arrumarmos o som, cuidar da parte técnica da organização, que era de extrema responsabilidade porque era patrocinada pela Embaixada do Brasil, e não é muito comum a Embaixada do Brasil promover shows, ainda mais a Embaixada de La Paz. Isso me permitiu ter a oportunidade de conhecer a Peña do Ernesto Cavour, da qual ouvi falar pela primeira vez no voo para La Paz. O Carlos Marques, sabendo que eu tinha estado no show do Ernesto Cavour [em Campo Grande], comentou comigo (...) que uma das primeiras coisas que eu tinha que fazer em La Paz era conhecer a Peña do Ernesto Cavour. Foi a primeira vez que eu ouvi a palavra “peña” empregada com um significado misterioso (...). E, realmente, a gente chegou e uma das primeiras coisas que a gente fez foi ir à Peña do Ernesto Cavour. Eu não entendia muito, nem perguntei tudo, porque preferi absorver o momento. Entrei num lugar escuro, corredores, corredores, corredores, La Paz tem muitos desses ambientes, e num fundão, num lugar pequeno, tinha umas mesinhas, tudo pequenininho, uns banquinhos de madeira meio desconfortáveis, para longos prazos, e eu perguntando, “Carlinhos, o que que vai rolar?”, e ele, “São apresentações da cultura boliviana”. Eu firmei a vista, não vi nenhum microfone, nada, eu e o Celito olhávamos, nada, nada, nem uma caixinha de som. Aí veio um sujeito, muito elegante, o mestre de cerimônias, como diria o funk carioca, e fez uma apresentação rápida, sucinta, da Bolívia, da cultura boliviana, da música, e começou um desfile de artistas, de várias subetnias bolivianas, não excessivamente didático, mas didático o suficiente para não parecer que era só um show... Não era de gente bonita (...) no sentido hollywoodiano, midiático do termo. Eram pessoas do povo, vestidas com roupas do povo. Um pouco mais brilhantes, coloridas, em função de tradições que eles queriam representar. Mas não era um show, era uma apresentação, parecia também um laboratório. Eu achei aquilo muito interessante, e a primeira coisa que me ocorreu, referente ou relativa ao MS, Campo Grande, foi que Campo Grande merecia, e deveria ter um espaço como aquele, pelo fato de reunir tanta criação musical, enriquecida pela diversidade étnica populacional da cidade, e absolutamente invisível em Campo Grande. Artistas eventualmente captavam este zumbido da identidade local ou alguma coisa que transcenda, que venha do inconsciente coletivo e nos torne sul-matogrossense, mas esses artistas não poderiam manifestar isso a não ser esporadicamente, num show aqui, outro show ali, talvez num disco acolá. Numa entrevista para a TV eu saquei na hora que Campo Grande já tinha um local preparado por natureza para abrigar um negócio desses. Por acaso era a loja Eme-Ene, da minha tia Margarida Neder – Simões Corrêa Neder, irmã do meu pai, uma pessoa com uma vontade de trabalhar esta massa cultural amorfa que existia, a ponto de ter criado uma loja pioneira (...) no discurso da moda regional. Criava modelos próprios, com desenhos, com temas regionais. E ela tinha também, assim que eu me mudei para cá em 1980, numa das visitas que eu fazia [a ela] – ela me oferecia um monte de coisas exóticas, que eu não vou nem me lembrar... Chipas, sopas paraguaias... Era uma loja de roupas mas que tinha uma organicidade que chegava na cozinha... – E ela me perguntou, numa de minhas primeiras visitas, se eu tinha alguma ideia, como artista, para dar para ela, além de ela me pedir, para eu dar autorização, e eu, o Almir [Sater] e todos nós demos, para ela usar letras das nossas músicas em camisetas temáticas. E eu respondi honestamente, na verdade, que eu não tinha nenhuma ideia naquela ocasião, mas assim que a tivesse eu a repassaria com o maior amor e boa vontade. Então, voltando à cena em La Paz, eu pensei na hora, “Isto é o que minha tia Margarida poderia fazer no espaço Eme-Ene em determinados momentos”. Só que eu me envolvi com a produção do show, que mereceria uma pesquisa à parte, por tudo o que aconteceu, e, por causa disso, só tive uma oportunidade de voltar lá [na Peña de Cavour], que foi quando chegou o resto do elenco, Tetê [Espíndola], Carlos Colman, outros que não vou lembrar facilmente, Toninho Porto, voltamos com eles, aí eu já era, assim, um especialista [risos], “Vocês precisam conhecer a Peña do Ernesto Cavour” (...). Aí fomos lá, todo mundo, aprofundei algumas observações, mas não muito. Eu devia ter - 344 perguntado mais lá. Porque quando eu cheguei aqui, em Campo Grande, e procurei minha tia, e falei disso, os olhos dela brilharam e ela já tava vendo a Peña funcionando numa versão bem mais... isso foi em 1988. Na verdade eu voltei no réveillon de 1988 para 1989, portanto eu já a procurei em 1989. Eu falei, “Calma, minha tia. Eu estou te dando uma ideia bruta de algo que eu vi meio que en passant 1 e en passant 2. Mas eu não poderia lhe dizer o que é exatamente uma Peña, se tivesse que colocar num release”. Mas aí, passamos um período elocubrando como seria uma Peña. Eu pesquisei, não tinha Google, não tinha internet na época, teria sido de extrema valia. Eu cheguei a pedir para a minha mãe, então viva, que procurasse no Rio de Janeiro (...) na Biblioteca Nacional (...) e não tive nenhum resultado. [Aparte, A.N.: Olha, se ajuda, eu estava ano passado [2008] no congresso internacional da SIBE – Sociedad de Etnomusicología – na Espanha, e um pesquisador apresentou um trabalho sobre as Peñas flamencas, um trabalho que, inclusive, mostrou como aquilo funcionou como uma resistência à ditadura de Franco (Martín, 2008). Eu perguntei um pouco sobre os dados históricos, porque eu já estava fazendo esta pesquisa, e eu queria alguma coisa das fontes históricas, e ele não soube me dizer absolutamente nada. Um trabalho de doutorado]. PS – Então isso deixa bem clara a situação que eu estava. Eu abri a caixa de Pandora [risos] diante de minha tia, que, a partir desse momento, não ia sossegar sem fazer uma Peña. Mas eu pisava em ovos conceituais porque eu sabia o quanto eu não sabia. E juntei todas as minhas lembranças, deduções, conversas com alguma outra pessoa. Um artista plástico chamado Julio Baptista, paraguaio, que morava aqui e me deu um incentivo, se dispôs a ser o apresentador da primeira Peña. Houve até a questão do mestre de cerimônias, era importante. Eu saquei que dependia muito de quem fosse lá explicar o inexplicado. Seja como for, nós fizemos uma Peña teste, uma Peña aberta, com esse artista plástico, espero que esteja dizendo certo o nome dele, e convidei artistas que tinham um perfil... Alguns que tinham estado lá e visto a Peña, o que era uma vantagem. Carlos Colman, Miska... A Miska não tinha estado lá conosco, tinha ido a Assunção, mas sabia do que se tratava, sempre foi muito ligada à cultura andina, sul-americana... Então eu juntei também um grupo paraguaio, com harpa, e fiz umas primeiras experiências e a coisa foi pegando. Tive discussões com minha tia por causa dos bancos de madeira. Ela fez algo que o Ernesto Cavour e qualquer boliviano talvez rejeitasse, que foi colocar algumas almofadinhas para não judiar dos espectadores. Insisti e fiz que ela oferecesse um drinque gratuito, que era um costume... Desconfiei que essas coisas não aconteciam por acaso. Era um costume ancestral. Depois eu tive informações de que este costume veio (...) dos hábitos de viajantes nas montanhas, provavelmente na Espanha, a própria palavra “peña” é ibérica e sugere uma raiz ibérica, então, provavelmente, era um hábito na Espanha de viajantes pararem à noite – nunca foi fácil viajar à noite, ainda mais nas montanhas – e se abrigarem atrás de uma rocha, “peña” em espanhol, e ficarem zoando [risos], cantando, bebendo, e esse costume foi chegando às periferias, às cidades, e foi se espalhando pela contribuição ibérica pela América Latina inteira, então teve uma época que eu já sabia que teve peñas de Cuba até, praticamente, a Patagônia. Mas sabia que, no Brasil, só havia uma em São Paulo, na periferia de São Paulo, não sei se no Embu das Artes, em algum lugar assim fora de mão... E eu levei anos para conhecê-la... E muitas no Rio Grande do Sul, já com um viés mais gauchesco. Mas, fora isso, não havia registro de Peñas no Brasil. E nesta Peña [Eme-Ene], pela própria natureza (...) houve a oportunidade para eu fazer as minhas observações pessoais sobre a questão do nosso registro de identidade musical. Eu não propus uma Peña exclusivamente regional, fronteiriça ou o que fosse... Ela sempre esteve aberta para manifestações de outras musicalidades. Porque, também, a função da Peña é abrigar viajantes, transeuntes, e nunca poderia dizer não!, aqui não há espaço, não tem um prato de sopa para um artista, uma pessoa que esteja passando por Campo Grande. Seria trair a ideia que eu tinha da Peña. Mas, mesmo assim, eu não deixei que a coisa se descaracterizasse para se tornar um barzinho com música ao vivo. Deixei bem claro que – e minha tia reforçou mais ainda - 345 isso – quem fosse lá não ia ouvir alguém tocar Djavan, Gilberto Gil, Caetano Veloso, a não ser por um motivo muito especial, talvez o próprio Gil, o próprio Caetano Veloso, ou Djavan pudessem tocar músicas que se ouvem em qualquer lugar. Na Peña era uma coisa mais íntima, pessoal... Entre outros artistas, que eu me lembre, o Tavinho Moura se apresentou lá, e adorou, o Almir [Sater], algumas vezes, alguns estrangeiros que eu não sei... Marcelo Loureiro, quando era guri... O Michel, que é um dos sanfoneiros do grupo Tradição... O pai dele o levou lá com a tenra idade de uns oito anos, perguntou se ele podia tocar, tinha que consultar o Juizado de Menores... Mas foram também Délio e Delinha, Bete e Betinha, Aurélio Miranda... Não havia um elenco fixo a não ser o apresentador, tarefa que eu, já, quando aceitei começar, deixei claro que não poderia responder por ela porque eu tenho uma vida cheia de viagens e compromissos que nem eu sei quando e onde serão. Mas eu já pensava em pessoas como a Miska, a Lenilde Ramos, confiei basicamente nessas duas, uma vez ou outra pode ter sido apresentada pelo Carlos Colman ou Celito... E sugeri um formato que preservasse porcentagens de música paraguaia, fronteiriça, porcentagens de música andina, se tivesse, porque sempre foi mais difícil... Uma porcentagem de criação musical contemporânea daqui, de preferência a mais entrelaçada com essas raízes, também um segmento disponível para a música sertaneja, de preferência a música tradicional feita aqui, e não a de consumo... Mas isso tudo era uma grande e pesada tarefa para mim, se eu me metesse a ser o organizador. Eu fui o diretor musical no início. Mas desde o início eu disse que eu era um “sugeridor”. Eu não tinha tempo pra ficar entregue à labuta semanal de como se montar uma Peña. Com o agravante de minha tia Margarida Neder – Neder Simões Corrêa ou o inverso – ser um tanto ou quanto obcecada, obsessiva, em relação às suas metas. Muito conversadora, mas pouco afeita ao diálogo [risos]. Uma das coisas que eu teimei, até me afastei para deixar bem clara minha discordância, era o fato de ela não prever na agenda anual um período de descanso, também chamado de “férias”. Falei para ela, “escolhe qualquer época que você ache menos movimentada, estatisticamente, e dá um mês”, depois baixei pra quinze dias, “de descanso”. É chique dizer, “A Peña está em recesso”. Ela não, em nenhum momento, se rendeu a uma evidência, apesar de eu usar argumentos como “o Scala de Milão fecha”, “o Louvre fecha”, “a Natureza fecha no inverno”, “os ursos hibernam”, eu chegava a ir na janela e dizer, “olha as estações do ano, minha tia!” Não adiantava. Ela achava que a Peña tinha que acontecer religiosamente toda quarta-feira. Eu sugeri a quarta-feira, inclusive, por ser a noite em que havia a feira tradicional, normalmente as pessoas teriam onde ir comer depois (...) Outra coisa que a Peña tinha de diferente de barzinho, essas coisas, era que tinha começo, meio e fim. Tinha horário para acabar, podia passar um pouquinho... E a principal coisa musical foi que eu insisti no formato que eu vi na do Ernesto Cavour, que era totalmente acústico. Eu soube depois que tem Peñas com laser, aparelhagem de som, pode ter o que quiser. Eu achei que, pela natureza original da nossa música, a Peña permitia uma viagem de volta ao passado-presente-futuro, trazendo de volta a interpretação musical, o fenômeno da música ao vivo para sua raiz original, de não haver mediação nenhuma entre a emissão e a recepção. Embora eu seja um compositor que transitou por vários estilos e adoro uma boa banda de rock, mas não ouça tão alto a ponto de prejudicar meus ouvidos, sempre há mediação elétrica ou eletrônica que cria uma outra relação física entre a emissão da música e sua recepção. É como a diferença entre cinema e vídeo. No cinema a luz é projetada por trás da gente, se reflete na tela e você vê o reflexo. No vídeo a informação sai de dentro do tubo, da tela, do que seja, e vai para sua retina. Da mesma forma, uma música mediada não é mais a música pura. Nada contra. Só que são duas coisas diferentes. E eu sentia lá na Peña do Ernesto Cavour essa possibilidade de se criar uma ponte para o som original, cru, o som da caverna, o som que se ouvia na caverna, quando alguém batia dois fêmures de dinossauro e levava uma levada legal pro povo [dançar]. Isso pra mim serviu como uma reeducação musical e postural. Eu nunca fui um cantor dotado de grandes recursos físicos de voz, mas nas Peñas, pelo fato de não haver mediação, eu aprendi a encarar qualquer plateia - 346 em qualquer planeta da Via Láctea. Inclusive, exigia das pessoas que estão lá para ouvir, que ouçam. Dar a elas a chance de falar, nos intervalos, mas é uma coisa combinada, você foi lá para ouvir artistas se apresentarem, e os artistas que vão lá se dispõem a cantar sem véus, merecem ser ouvidos de outra maneira. Isso foi uma das coisas que mais me deu prazer em toda a longa trajetória da Peña. Foi me reeducar reeducando aos reeducáveis com relação à sensação de você absorver música pelos poros, pela retina, sem que ela viesse amplificada – e toda amplificação gera uma distorção, ou na emissão ou na recepção. Então a Peña foi uma forma de eu ver desfilar, durante bastante tempo, as diversas traduções dos nossos sentires, dos nossos amares, desamares, quase matares, esganares [risos]... e coisas que vão até acima e além disso, as coisas espirituais... Eu passei por momentos bastante emocionantes e emocionados na Peña. Infelizmente essa experiência não deixou seguidores. Talvez o mais próximo disso seja o Sarau do Zé Geral, mas que não prescinde da mediação elétrica e eletrônica. [Aparte, A.N.] – Além, também, em termos de estilos, de tendências...] PS – Sim, mas o simples fato de se haver essa mediação, embora existam Peñas que a utilizem, pra mim, acho que trai a ideia original. O conceito original de Peña é algo íntimo, é um círculo de pessoas que se unem durante algum tempo pra compartilhar emoções engatilhadas e detonadas por artes e cultura popular, não só música, a poesia também, a dança, teve espaço suficiente para grupos de dança, como o Sarandi [Pantaneiro], que tem um trabalho de desbravamento da dança regional, grupos paraguaios... E também a Peña foi um hotel a céu aberto, um albergue musical para muitos músicos anônimos que desceram do trem, dos ônibus, pra encarar uma cidade crescentemente grande como Campo Grande e procurar, assim, um lugarzinho em que pudesse ser ouvido, e a Peña Eme-Ene ofereceu isso pra muita gente (...). A Peña ocasionava, nuns mais, noutros menos, mas praticamente em todos, em algum grau, uma reflexão, uma oportunidade de reflexão sobre suas próprias origens e identidades. Como o artista se apresentava desnudo, sem iluminação – a iluminação era de lâmpadas [comuns domésticas]. Inclusive colocadas atrás da gente. A ideia não era “brilhar”, brilhar a pessoa, e sim a exposição que ela fazia de alguma criação musical, poética... Também teve teatro, pouquíssimo teatro, alguma dramaturgia, e eu acho que foi um período extremamente fértil pra mim, pra observações, de treinamento, para lidar com essa multiplicidade de fatores, e, como eu disse, infelizmente não deixou seguidores. De vez em quando, alguém me pergunta se eu toparia entrar [em algum projeto desse tipo], e eu sou obrigado a dizer que não, porque eu sei o quanto isso é envolvente. Eu tive uma experiência intensa na Peña Eme-Ene, com minha tia, tive assim um alto custo emocional [risos] pra manter a distância correta que eu achava que devia ter entre a Peña e eu, e achava também que, além de não poder assumir responsabilidades que eram necessárias, também não podia imprimir uma marca muito pessoal minha. As duas coisas se completavam: se eu não estava disponível para a Peña, por que a Peña deveria ter a cara que eu achava que ela tinha que ter? Então eu me afastei na medida do possível, mas sempre que estava aqui e podia, e eu era chamado para apagar incêndios, eu ia lá... Como falei, é uma experiência provisoriamente suspensa. (Simões, 2009) Margarida Simões Corrêa era filha de uma família de pequenos proprietários rurais descapitalizados no sul do atual MS, tendo vivido na fazenda de seus pais até a idade de sete anos, quando então foi morar no Rio de Janeiro. Posteriormente, mudou-se para Campo Grande, onde veio a se casar com o médico Alfredo Neder. Entretanto, apesar de permanecer residindo nessa cidade por todo o restante de sua vida, com um estilo de vida urbano, a vida - 347 rural permaneceu como um forte traço identificatório de sua personalidade. As lembranças das tradições da região onde vivera – a comarca de Nioaque, a sessenta quilômetros de Maracaju, portanto plena região dos ervais – eram mantidas afetivamente, embora encontrassem poucas oportunidades de realização em sua atribulada vida doméstica. Isso porque, tendo inicialmente dedicado sua vida à maternidade, criou seis filhos próprios e seis filhas adotivas – duas das quais, Norma Jornada, e Ivette Ângela Lemes, como já foi dito, se tornariam suas sócias na Eme-Ene e na Peña que levaria o nome da loja. Aos 50 anos de idade, considerando ter completado sua missão maternal, decidiu tornar-se produtora de moda e cultura regional. Assim, desde os anos 1970 Margarida vinha desenvolvendo peças de vestuário que refletissem valores regionais, ou sua percepção deles. Uma dessas peças foi a chamada saia pantaneira, algo que, no entanto, foi criado exclusivamente por sua imaginação, uma vez que não existe tal item no vestuário tradicional. A saia pantaneira consistia de uma saia de algodão cru (tecido utilizado largamente nas altas temperaturas do Pantanal) com um modelo singular, bastante ornamentado (Margarida o projetou para ser apropriado para se andar a cavalo) e pintado à mão com motivos pantaneiros da artista Anna Bellatore. A pintura à mão de Anna, com seus significados de recusa à produção em massa participando de um ideário aurático de “autenticidade”, era uma característica marcante de praticamente toda a produção da Eme-Ene, a loja de Margarida. Inteiramente produzidos na loja e pintados à mão eram também itens como panos de prato, redes, aventais, bolsas, costumes completos de algodão cru para homens e mulheres, além de camisetas. Estas, pintadas à mão com motivos da flora e fauna do Pantanal, confirmavam os discursos do paraíso edênico. O tecido inteiramente preto, sobre o qual eram colocados os motivos coloridos, significava um protesto ecológico contra a devastação daquele ecossistema. Outra presença marcante, aqui nas produções em silk-screen da Eme-Ene, eram as letras de música da MLC, conforme lembrado por Simões, em seu depoimento. - 348 Como resultado da mediação exercida por Humberto Espíndola, Margarida, que não tinha veleidades intelectuais, deixou-se seduzir pela noção de que Campo Grande tinha uma missão histórica de aproximar o Brasil dos países da América Platina. De certa forma, isso se apoiou na própria proximidade efetiva do sul do antigo MT, em que vivera desde sua infância, com o Paraguai. A região em que se situava a fazenda de seus pais, como já foi dito, situavase nas terras dos ervais, e, como tal, tinha bastante presença do elemento paraguaio – país distante cerca de apenas cem quilômetros dali. Inclusive, sua sogra era paraguaia, de maneira que a cultura paraguaia era cultivada com afeto por Margarida. Tomando as diversas influências da América Platina ao seu alcance, Margarida concebeu, à sua maneira, uma orientação que desse forma e conteúdo à Peña. É de se ressaltar a ideia de propor um panorama que envolvesse as diversas culturas latino-americanas, visando a uma integração. Esta característica era evidente a outras pessoas, como Miska. Emilce Thomé Gomes, cantora e artista visual, partilhou com Lenilde Ramos a apresentação da Peña durante a maior parte da existência do encontro semanal, como lembrou Simões. Para Miska, a importância da Peña residia na integração latino-americana realizada ali: Ouso dizer que a Peña foi o lugar onde realmente esta integração latino-americana em Campo Grande, MS, aconteceu. Porque ali, eu, como apresentadora e cantora, conheci gente do mundo inteiro na Peña. Da China, Japão, Índia, Alemanha... Porque todo mundo que vinha para o MS e passava por Campo Grande ia na Peña. Porque era o lugar que todo mundo sabia que acontecia essa integração. Onde eles iam ver uma coisa genuinamente sul-americana, latino-americana, sul-mato-grossense. Ali não só você ouvia essa mistura que hoje gera a polca-rock, que gera o trabalho do Almir [Sater]... Tanto que todos esses nomes que a gente falou da música sul-matogrossense, que hoje são os nomes [mais importantes], todo mundo sentou naquele banco da Peña. Todo mundo tocou ali e de graça! Todo mundo ia ali pra curtir. (Thomé, 2009) Ou seja, na Peña não se ouvia apenas a MLC, mas também músicas de toda a América Latina, com o intuito de ressaltar a posição periférica de Campo Grande, suas relações com os países vizinhos, mais do que com as metrópoles brasileiras – daí as observações de Simões, sobre a importância de “não deixar que a coisa se descaracterizasse para se tornar um - 349 barzinho com música ao vivo”, de não deixar tocar na Peña “músicas que se ouvem em qualquer lugar”. A citação anterior de Miska fornece, também, uma comprovação adicional à afirmação de que a Peña foi um espaço fundamental de mediação por, além de outras características, impor um novo respeito e autoestima para as produções marginalizadas, locais e latinoamericanas. Isso fica confirmado pelo fato de que os artistas praticamente nada ganhavam para lá se apresentarem e, no entanto, faziam questão de privilegiá-lo. Como foi dito, a Peña era um espaço pequeno, em que a lotação girava em torno de 60 pessoas. Com isso, dado o grande número de artistas, o rateio do ingresso – que custava o equivalente a um show acessível em teatro – nunca representava um cachê comparável ao proporcionado por bares comerciais. No entanto, os artistas sempre disputaram a possibilidade de se apresentarem na Peña, pois viam ali a perspectiva de se mostrarem ao público através de uma perspectiva que os dignificava, e ao seu trabalho. Miska finaliza sua entrevista lembrando, assim como já o fizera Simões, que o trabalho da Peña suscitou, sem sucesso, iniciativas posteriores que buscam continuá-la – o que é uma evidência tanto da influência da mediação exercida por ela, quanto da ausência de patrocínios que pudessem viabilizar essas iniciativas: Era um lugar onde a gente tinha muito prazer em tocar. Tanto que, hoje, várias iniciativas já foram pensadas em fazer como se fossem a Peña. E ninguém conseguiu fazer. Porque é um trabalho de formiguinha. Hoje a gente herdou a Praça Bolívia [onde ocorrem encontros para a promoção da cultura boliviana e latino-americana em geral] e a gente está fazendo um trabalho ali todo segundo domingo do mês com uma parceria com a Fundação Municipal de Cultura, um som ao ar livre, ninguém ganha nada, ninguém ganha cachê, tem uma feira de arte e artesanato, comida típica, aberto pra todo mundo que quiser participar, e a gente toca. Talvez seja o lugar onde acontece este tipo de encontro [que ocorria na Peña]. Veio um grupo da Colômbia, a gente levou lá. Vem grupo paraguaio, a gente leva lá. E que talvez seja o mesmo papel [da Peña], de fazer essa pesquisa. Todos esses grupos mais folclóricos que chegam aqui vão tocar onde? no Mercadão [o mercado popular do produtor], na feira central [Feira dos Japoneses], então lá são os lugares que a gente já tem como antena, que era a mesma coisa que acontecia na Peña. A gente via um grupo tocando numa esquina, todo mundo falava, “vai tocar na Peña!” E eles iam procurar a D. Margarida. Então, realmente, Alvaro, se tem um lugar que funcionou, e não é esquecido como referência... é a Peña... me emociona... (Thomé, 2009) - 350 Confirmando a ideia de ausência do estabelecido, característica discursiva histórica da cidade de Campo Grande, Lenilde Ramos, ao contextualizar o surgimento da Peña, indica que este traço se materializou, no setor da cultura, pela descontinuidade e abandono das tentativas: Sempre os altos e baixos não deixaram esse processo ficar coeso. Na época da divisão a gente falava, “Finalmente nós vamos poder dar visibilidade pra essa nossa identidade”. Os primeiros anos da administração pública no MS foram anos de grandes descobertas, de grandes pesquisas, porque a gente ia para o interior do estado, descobria poetas, descobria todas as formas de arte, os artesãos, os cantadores, os contadores de histórias, os primeiros cineastas... Tudo isso começou com uma força muito grande. Depois mudava a administração, quando tinha sorte [os projetos] continuavam, mas em geral a gente não tinha sorte e caía tudo por terra. Depois dessa primeira queda [por exemplo], Almir [Sater] foi para São Paulo. (Ramos, 2009) Assim, enquanto na MLC o discurso da indeterminação significava a procura de caminhos próprios e inovadores, no terreno das políticas públicas para a cultura não havia nem mesmo clareza suficiente, por parte das elites dirigentes, de como instrumentalizar este setor adequadamente aos seus propósitos. Com isso, na visão de Lenilde, sucediam-se períodos de “renascimento” e períodos em que “tudo ia por terra”: Então a gente teve um auge (...) Ao mesmo tempo que a gente fez um rastreamento da arte no estado e começamos a percorrer cidade por cidade organizando eventos e fazendo as pessoas se apresentar, de repente caiu tudo por terra. Aí começou aquela época de trazer músico de fora, porque juntava muita gente, dava muito público, essa história de que cultura dá público... [ou seja, dá voto]. Quando a gente podia dar força para o nosso, a gente enfraqueceu o nosso para poder trazer os artistas de fora (...). Por exemplo, quando o Humberto Espíndola conseguiu ser nomeado secretário de cultura, houve um processo de renascimento. Ele fez contato com o Mercosul, ele levou os músicos daqui para Assunção, levou para La Paz, trouxe os músicos de lá... Foi a época que nós tomamos conhecimento do que era a Peña, o nascimento da Peña, ele colocou a [atriz sul-mato-grossense] Aracy Balabanian para circular mais por aqui, conseguiu fazer um teatro – tinha o Glauce Rocha, mas naquela época estava fechado, passou oito anos fechado para reformas –, fez o [teatro] Aracy Balabanian, e começou um processo de renascimento, depois caiu tudo por terra de novo. Então, a nossa coesão está sempre por acontecer. (Ramos, 2009) Uma das iniciativas mais importantes surgidas na área da cultura do MS foi o Festival da América do Sul, idealizado como um momento de intercâmbio cultural sul-americano, além do Festival de Bonito, voltado para o Brasil. No entanto, até estes grandes eventos não conseguem constância de objetivos: O próprio Festival de Bonito tinha como interesse discutir a cultura do MS, depois com a intenção de se fazer o Festival da América do Sul, também com a intenção de se discutir, de uma forma mais latina, o nosso contexto estratégico e cultural, e colocar o - 351 MS no cenário latino-americano... O que eu vejo agora? Eu vejo esses dois projetos se transformarem em entretenimento. Eu acompanhei praticamente todos eles. Algumas vezes participando, outras vezes como público... Em 2007, no governo do André [Puccinelli], eu tentei, dentro da Fundação de Cultura, manter este cunho científico e esse cunho de divulgação desses dois projetos, homenageando Manoel de Barros no Festival América do Sul, mas eles estão se diluindo. Os objetivos desses dois grandes projetos estão se diluindo. (Ramos, 2009) Com isso, a conclusão de Lenilde é a de que “infelizmente, todos os processos que a gente viveu foram todos processos truncados. Nenhum deles teve uma sobrevida suficiente”. Este é o contexto em que se insere a Peña. Para Lenilde, a Peña teve mérito por colocar em prática o que se estava teorizando a respeito da identidade sul-mato-grossense, e por juntar todos os elementos separados e integrá-los: A Peña foi uma fortaleza onde a identidade do MS procurou sua expressão da forma mais prática possível. Porque enquanto todo mundo ficava discutindo muito sobre identidade, buscando os elementos, o que a D. Margarida fez? Ela juntou no mesmo espaço todos esses elementos. Ali estava a literatura, porque tinha os poetas, ali estava a culinária, ali estava a música, ali estava a raiz, ali estava a modernidade, então a Peña foi o elemento que catalisou de uma maneira real. Porque ali, o debate era feito ao vivo. Ao vivo. Não era um debate teórico. Na Peña a gente não teorizava. Na Peña a gente realizava. Então essa foi a grande contribuição que a Peña deu para a cultura do MS. (Ramos, 2009) O aspecto pedagógico da Peña, de apresentar uma certa visão – um debate, como expressou Lenilde – a respeito da cultura do MS como se fosse, realmente, um quadro definitivo, e de propagar este suposto consenso, se verifica implicitamente na fala de Lenilde: “Quando os turistas entravam lá, enxergavam uma expressão própria do MS”. O potencial de propagação desta visão é demonstrado pela compositora ao salientar que, durante os dez anos de sua existência, com encontros semanais, a Peña teve a oportunidade de influenciar quantidade expressiva de formadores de opinião: Interessante que era um lugar pequeno, que reunia poucas pessoas de cada vez, quando tinha sessenta pessoas parecia que aquilo estava lotado e que não cabia mais gente. Mas quem ia à Peña eram formadores de opinião. Eram as pessoas que trabalhavam em congressos, nas universidades, os artistas, as pessoas que trabalham com a área de turismo, essas pessoas estavam ali na Peña. Talvez ela nem tivesse necessidade de abrigar mil pessoas de cada vez. Porque ela repercutia. As coisas que aconteciam ali naquele pequeno espaço repercutiam. Eu atribuo o trabalho da D. Margarida com a mesma força de um trabalho que foi feito com a divisão do estado. O trabalho do Humberto Espíndola, de querer colocar o MS no cenário nacional, no cenário do Mercosul. Ela tem essa mesma importância. Porque foi um elemento altamente definidor. Quando as pessoas [queriam conhecer] a cultura do MS, a - 352 expressão do MS, [falava-se,] “Vai lá na Peña! Vai lá, você vai ver o que é cultura do MS”. (Ramos, 2009) Devido a ser um espaço pequeno e representar um entretenimento a custo relativamentente elevado, desde o início a Peña caracterizou-se como uma iniciativa cultural de cunho elitizado. Atraiu, assim, um público de formadores de opinião, como diz Lenilde, que teriam grande inserção no projeto ideológico estimulado pelas elites, de invenção de uma identidade cultural do MS: A Peña sempre foi uma referência garantida. Se tinha um grande congresso na Universidade Federal [UFMS], ou na FUCMT/ UCDB, ou na Secretaria de Turismo, ou até o gabinete do governador, estava recebendo visitantes... “Onde vamos levar esse povo?” Na Peña! Era um caminho garantido. E eles sabiam! Por que que eles iam levar na Peña? Não no restaurante do Rádio Clube, não em algum outro restaurante que tinha um cardápio todo elaborado, com mil garçons para servir, ar condicionado e coisas assim. Mas lá eles não iam ver o que esses agentes formadores de opinião queriam que essas pessoas vissem. Porque, depois que eles levavam os turistas, eles levavam congressistas, eles levavam políticos, eles levavam professores (...), eles saíam de lá extasiados, porque eles tinham cumprido o dever deles de mostrar a cultura do estado deles. (Ramos, 2009) Como consequência, a mediação exercida ali, em defesa de uma cultura sul-matogrossense híbrida, feita a partir do encontro das diversas correntes migratórias que demandaram o sul do antigo MT (gaúchos, mineiros, paulistas, paranaenses, etc.) e dos países sul-americanos, especialmente Bolívia, Paraguai, Argentina e Chile, tudo isso processado a partir da globalização, de que era evidência a MLC, teve grande propagação na sociedade. Assim, para Lenilde, a Peña foi um elemento que ela classifica como “definidor” da cultura do MS, porque sintetizou traços dispersos e insistiu na representação desses traços de maneira duradoura e persistente (ou seja, performativizou discursos representacionais), o que resultaria no estabelecimento de certos consensos: Porque ela juntou a colcha de retalhos. E a partir daí a gente fez essa fusão. O grande caldeirão cultural nosso foi a Peña! Existiram os festivais, existiram vários eventos mas não eram coisas que aconteciam toda a semana. Durante vários anos seguidos. Pelo menos dez anos seguidos eu acompanhei toda quarta feira a Peña acontecendo. Talvez foi a única tentativa não truncada desse processo. Olha, isso é uma coisa que eu admito mesmo, e assumo. Todos esses processos grandes, maravilhosos, foram coisas que aconteceram um vez aqui, cinco anos depois acontecia de novo, aí mais quatro anos depois acontecia outra vez, ou às vezes, no máximo, dois anos seguidos, depois não acontecia mais... O resultado dessa fusão aconteceu na Peña. Eu não tinha - 353 tido noção dessa responsabilidade que a Peña tem nesse processo todo. Foi o único não truncado. (Ramos, 2009) Neste sentido, a Peña realizou uma política de representação, nos termos definidos no Anexo, contribuindo para colocar as músicas e culturas sul-mato-grossenses e latino-americanas em uma posição de destaque. Estas representações afirmadas pela Peña de maneira consistente ao longo de anos, atuaram como discursos críticos, contestadores dos discursos dominantes há décadas, que, na defesa de seus interesses econômicos e políticos, procuraram desvalorizar as culturas platinas. Por seu turno, Candido acredita que a Peña se tornou uma referência pois foi por meio dela que, pela primeira vez, países periféricos da América Latina, como o Paraguai e a Bolívia, puderam ter sua cultura sistematicamente apresentada para a sociedade brasileira. A Peña funciona como uma referência... [Foi] a primeira vez que um país periférico da América do Sul, como é o caso do Paraguai – que influencia sem a gente ter a consciência de que influencia com sua música, que é fortíssima –, e a Bolívia – [que] manda um de seus ícones que são as Peñas folclóricas fundadas por Ernesto Cavour, para o Brasil. Então eu acho que aí sim há uma diferença. (Fonseca, 2009) É muito importante notar que, imbuídos do objetivo de desenhar um panorama de união da cultura latino-americana a partir de Campo Grande, os organizadores da Peña começaram a organizar e desenvolver uma narrativa que teria grande poder de convencimento junto ao público, atingido, repetidamente, ao longo de anos, pela via da emoção. Lenilde explica o desenvolvimento gradual dessa narrativa: Nessa parte da música, o que eu comecei a perceber, era que todas aquelas tendências que estavam se apresentando naquele palco estavam contando uma história. Nós começamos a juntar os pedaços desta história e surgiu a seguinte: a Peña tem origem, na América Latina, (...) nos altiplanos andinos, e é muito comum na região da Bolívia, subindo Cochabamba, Peru (...) A Peña desceu dos penhascos (...) e veio para as cidades. Então Santa Cruz de la Sierra tem peñas (...) e no Rio Grande do Sul tem as peñas nativas (...) Então (...) a história que a gente começou a contar [na Peña EmeEne] foi a seguinte: a música do MS está aqui dentro deste espaço. Aqui nós temos todas as fontes que compõem a (...) atual música do MS. Então, começava com a música caipira (...) do interior de São Paulo (...), a viola caipira, e nós procurávamos na cidade as pessoas que tinham essa ligação com aquela música caipira mesmo, as modas de viola. Então a gente contava a história e mostrava a música. Depois a gente falava do outro lado da música caipira, que é a música que veio do interior de Minas Gerais. Vinham aqueles batidão [sic], também, que acompanhavam aquela coisa da viola, então tinha sempre as músicas dessa região também. As músicas antigas, - 354 também. Foi muito interessante, porque a Peña cultivava muito a pesquisa. A gente conseguiu recolher muitas coisas da década de 30, da década de 20... Aí nós falávamos sobre a grande influência da fronteira do Paraguai. Aí, puxa, como aqui nós temos músicos paraguaios à beça, e tínhamos ligação inclusive com o próprio pessoal da produção da Peña, tinha uma senhora que era casada com um harpista, nós tínhamos o melhor da música paraguaia legítima dentro do palco da Peña. O palco ficava até pequeno com harpa e tudo, e cada pessoa vinha já caracterizada, vestida de acordo com o trabalho que ela estava apresentando. (Ramos, 2009) Como já foi dito, na Peña era exigido estrito silêncio durante as apresentações, que eram feitas para turistas, visitantes ilustres trazidos por membros dos três poderes, professores universitários e para a classe média local. Essa representação performática da cultura local funcionava como uma mediação, por apresentar essas músicas – a música paraguaia, andina, caipira – de maneira respeitosa, quando esses músicos estavam habituados a se apresentar na rua, no Mercadão, em churrascarias e em outras situações pouco destacadas. Por isso, a mediação exercida pela Peña teria reflexos sobre a recepção da música do Peru e da Bolívia, que ocupava lugar especial nessa narrativa desenvolvida ali. Nós falamos também (...) da grande importância da Peña como espaço para a música andina, que foi o único espaço decente que a música andina teve nesse MS, quando muitos músicos (...) Nós tivemos assim dezenas e dezenas de grupos de música do Peru e da Bolívia que desciam pela Rota do Sol, como é chamada, e passavam por Campo Grande, principalmente na época que a Noroeste estava viva [antes de o transporte de passageiros ser interrompido, permanecendo apenas o de cargas], porque eles vinham, todos, de trem. Nós tínhamos grupos de jovens, que se dedicavam à música andina, nós tínhamos músicos daqueles grupos mais antigos, que já tinham 40, 50, 60 anos, que não iam até a Europa, mas tentavam ir até São Paulo, e nós vimos muitos grupos, também, de famílias. Eram verdadeiros ciganos, porque era o pai, a mãe, o filho, a filhinha, e todos eles, cada um pegava um instrumento, tocavam, cantavam, e as famílias sobreviviam dessa forma. Algumas vezes a gente tentava até encontrar lugar para essas pessoas ficarem, pois chegavam aqui, encontravam a Peña e não queriam ir embora logo pra São Paulo, queriam ficar aqui por alguns dias mais, pra tentar ficar duas quartas-feiras, três quartas-feiras, então a gente sempre tentava colocar na casa de algum amigo, numa pensãozinha barata, para que essas pessoas, principalmente essas famílias, pudessem ficar mais tempo por aqui (...). (Ramos, 2009) Verifica-se, assim, que a música andina era tão valorizada na Peña, não apenas por suas influências culturais no MS, mas por seu valor em um projeto que visava integrar os países da América Platina a partir da cidade de Campo Grande, MS, atuando em oposição aos discursos de desvalorização dessa região: - 355 Então, a música andina teve este espaço [na Peña] porque no nosso cancioneiro matogrossense do sul não tem uma influência da música andina. A gente não sente isso. Porque a música paraguaia praticamente domina, como fonte musical, e os outros ritmos também, mais caipiras. Mas a música andina passou mais como uma apresentação. Tanto que, mesmo que Corumbá esteja do lado da Bolívia, a dois passos da Bolívia, nem Corumbá tem influência da música andina, o povo de Corumbá é sambista mesmo, como se morasse lá dentro do Rio de Janeiro, e não na fronteira com a Bolívia. Então, o que nós temos de conhecimento da música andina é mesmo como uma coisa quase que turística. Mas na Peña ela teve um espaço especial. (Ramos, 2009) Essa presença dos países andinos centrais Bolívia e Peru terminou por ser simbolizada na canção composta especialmente para a Peña Eme-Ene, “Peña”, música de Paulo Simões e letra de Guilherme Rondon. De seus versos foi tirada a palavra “latinidad”, que, acrescida da letra “p” para especificar o universo platino, consta do título desta tese. Mais uma vez, Lenilde ressalta que esta evocação não é resultado de uma influência cultural marcante sobre o estado ou a região como um todo, deixando ver que se prende à proposição de um projeto de integração latino-americana: [Quanto à Bolívia], nós conversávamos bastante, D. Margarida, eu, Norma, principalmente, alguns músicos, também mais interessados, nós vimos [a Bolívia] mais como um desenho geográfico do que como um desenho musical. Então, nesse desenho geográfico, a Bolívia tinha um espaço muito importante, até pelo fato de ser fronteira (...) aqueles instrumentos, as zampoñas de vários tamanhos, aqueles tambores, aquela indumentária toda... Então, nós começamos primeiro com um desenho geográfico. Esse desenho geográfico foi que nos clareou em relação a um desenho mais musical. Porque depois que a gente via os caipiras, tava todo mundo assim, embolado, se apresentando (...). Aí nós começamos a sentir na música de quem ficava por último, que era o Paulo Simões, o Geraldo Roca, quando aparecia por lá, eram músicos que a gente sentia, olha essa fonte aqui, essa música veio lá do interior de São Paulo, ou esse detalhe aqui tá vindo muito mais lá de Minas, essa batida aqui é totalmente paraguaia... Tanto que o que ficou de retrato da música andina – porque ficou alguma coisa – foi na música do Guilherme Rondon. Não foi por conta da presença da música andina na Peña, porque a música-símbolo da Peña é uma polca paraguaia, mas ela tem uma coisa assim que remete muito aos altiplanos, à Bolívia, quando a gente toca essa música com tambores ela vira uma música andina (...). Então essa música representou bem a mescla, essa fusão toda, essa mistura toda. (Ramos, 2009) Na gravação, as referências musicais à Bolívia e Peru são evidentes (ouvir em anexo), bem como certas linhas de baixo influenciadas pelo rock progressivo: “Peña” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) - 356 Não é moda passageira Que todos vão olvidar Pois venha lá do estrangeiro Ou seja aqui do lugar No es so tener diñero A senha pra se entrar Hay que ser compañero E querer participar Da misteriosa corrente Que nem todo mundo vê Aquilo que a pele sente Unindo alguém a você Quanta gente se reúne Para celebrar Alegria verdadeira Rara de encontrar Vem de longe Essa herança Da latinidad País que não tem fronteira Ou terras por conquistar Só uma sala pequena Consegue nos abrigar Nos seus barcos de madeira Apenas devem sentar Amigos e compañeros Que venham compartilhar Da misteriosa corrente Que nem todo mundo vê Aquilo que a pele sente Unindo alguém a você Quanta gente se reúne Para celebrar Alegria verdadeira Rara de encontrar Vem de longe Essa herança Da latinidad Já o chamamé inseria-se de maneira mais intuitiva neste tentativa de integração, a partir de grande influência cultural exercida a partir do Paraguai e Argentina e, também, devido à imigração gaúcha, pois o gênero é extremamente popular no RS: E nós partíamos depois para a região [argentina] de Corrientes e Entre Rios, (...) províncias que são o berço do chamamé. Nós sempre fazíamos questão de mostrar o chamamé autêntico. E nós tivemos algumas vezes oportunidades, através do Elinho do Bandoneón, que é um chamamezeiro por excelência, estudou muito o ritmo, e não só estudou aqui, ele procurou, nas condições que ele tinha, de ir para a Argentina, várias vezes, e estudar com os mestres do chamamé de Corrientes. Tanto que um dos filhos dele é afilhado do [Transito] Cocomarola, [famoso compositor de chamamés, como “Kilómetro 11”] (...) Ele conseguiu, algumas vezes, também, trazer grupos chamamezeiros de Corrientes para Campo Grande, e com certeza a Peña foi o principal espaço para esses grupos se apresentarem. (Ramos, 2009) Evidenciando a influência da concepção da MLC inicial – que não colocava limites às possibilidades de hibridação das músicas encontradas no MS com gêneros transnacionais – a relação dos músicos e tendências que se apresentavam na Peña salienta a busca de propor uma integração latino-americana a partir de Campo Grande, em diálogo e conflito com as influências da globalização: O Almir [Sater], no primeiro momento da carreira dele, quando a agenda dele não estava tão superlotada, era uma pessoa que aparecia por lá, sempre dava uma canja maravilhosa, e a geração toda dos músicos do MS, mesmo os músicos com aquela tendência mais roqueira, mas foram músicos que passaram por lá, e da forma acústica como eles mostravam suas canções, era nítida a maneira que a gente via de que fonte - 357 que ele tinha bebido. Celito Espíndola, Geraldo Espíndola, Geraldo Ribeiro, Guilherme Rondon, que não é roqueiro mas tem um trabalho musical mais elaborado, Carlos Colman, que é bem ligado às raízes, o grupo Acaba, que é bem ligado às raízes, também (...) Mas nós tivemos até um músico italiano que tinha (...) o estilo do Stanley Jordan, na época ele tinha feito dois CDs com dez músicas dos Beatles, Lanfranco Malagutti, é um músico conhecido, citado na Billboard. E eu falei pra ele, “Vamos levá-lo pra Peña”. E qual não foi a nossa surpresa quando ele chegou na Peña, só ele e o violão dele, e fez Pixinguinha, fez coisas que a gente jamais imaginava (...) E quando ele voltou pra Itália, ele lançou depois de oito, nove meses mais um CD e mandou pra nós, e (...) se chamava “Campo Grande”! [Com uma das faixas dedicadas à “Margheritta” (Malagutti, 1992)]. E sempre assim, lembrando aquele espaço, porque foi o único lugar que um músico desse naipe se apresentou, foi na Peña. Conseguimos depois levá-lo para fazer uma matéria na TV Morena, mas nenhum teatro, nenhum outro espaço, ele só se apresentou lá na Peña. (Ramos, 2009) Por intermédio do livro de frequência da Peña, já mencionado, percebe-se que estas representações produzidas pelos discursos verbais e musicais propostos pela Peña, que vêm sendo discutidos até aqui, atingiam profundamente as pessoas, tornando-se, assim, mais convincentes. O livro, que era passado regularmente de mão em mão por todos os participantes na plateia ao final de cada encontro, foi desde o início uma tradição rigorosamente observada na Peña Eme-Ene, e é de especial auxílio para evidenciar a influência da Peña sobre a recepção da MLC e a tentativa de implantar uma concepção de representação cultural do MS a partir de uma integração latino-americana. Percebe-se a intensidade com que o público foi atingido não apenas no tom dos agradecimentos, das mensagens de estímulo e encorajamento, muitas vezes eloqüentes. A força da experiência é também captada pela expressão da surpresa dos presentes de encontrar ali, perto de casa, um novo e desconhecido universo, que era, no entanto, percebido como muito arcaico, vital, visceral, arquetípico mesmo. A Peña funcionava, assim, como um espaço em que múltiplos discursos (aqueles favorecidos por Humberto, por Simões, ou por Margarida, ou por Lenilde, ou por Norma, por Miska, cada músico, local ou de outro país latino-americano, cada participante do público) entravam em um diálogo, e o resultado era a construção de uma representação de Mato Grosso do Sul. A construção desta representação começava com uma seleção/ definição dos - 358 elementos visuais e decorativos do espaço onde o público era recebido, de representações da fauna e flora, de uma estética imagética, de materiais e suportes. Da ambientação (bancos e mesas com ar de galpão de fazenda, mas com requintes de limpeza e conforto como almofadas recapadas de algodão cru), da maneira de músicos e apresentadoras vestirem-se e dirigirem-se ao público. E, finalmente, de um repertório de canções escolhidas e de uma estrita diretriz sobre possíveis gêneros e estilos interpretativos que poderiam ou não fazer parte das apresentações. Esta confluência de discursos constituía-se em verdadeira pedagogia de valores culturais, na medida que era recebida por grande parte do público nativo como uma aula que houvesse cabulado no passado. Em outras palavras, muitos sul-mato-grossenses maravilhavam-se com o que viviam na Peña, e seus comentários deixam transparecer a ideia de que ali estavam pela primeira vez entrando em contato com seu verdadeiro estado. De que estavam sendo apresentados pela primeira vez à sua verdadeira cultura, até então inteiramente desconhecida para eles, apesar de sua vivência em primeira mão de vida inteira no local. Vêse no livro a este respeito: Estou simplesmente maravilhado com a beleza de nossa terra e nossa cultura, sinceramente não era muito fã de músicas regionais, mas agora pela primeira vez na Penha me sinto apaixonado pelo local e por nossa pouca divulgada cultura (Paulo Borges, apud Neder, 1999, fl. 27; em 09/08/1990). Que bom!! conhecer a nossa música de maneira bem descontraída, num lugar acolhedor (ilegível, apud Neder, 1999, fl. 67; em 08/05/1991, grifo meu). Peña... um ambiente descontraído, onde mostra a cultura do povo sul matogrossense que nem todos conhecem (Cleusimar Mazina, apud Neder, 1999, fl. 87; em 31/07/91). Já outros expressam sua emoção por ter revivido na Peña uma realidade familiar e tradicional, no entanto há muito esquecida na terra: Na Peña eu me encontro comigo mesma, com o meu chão, a minha terra, com todo o meu povo, a minha gente. Aqui, na porta do pantanal, a Peña é o nosso próprio coração, pulsando forte, falando o amor, cantando o amor, encontrando os irmãos da terra. Parabéns Margarida, mulher forte e sensível. Continue sempre! Parabéns, equipe da Peña, sempre dedicada. Meu beijo de irmã e admiradora, irmã da terra (Sônia Maria Alves, apud Neder, 1999, fl. 29; em 09/01/97). - 359 É a minha primeira visita, mas como legítimo pantaneiro, hoje vivendo no asfalto, aqui reencontrei as minhas raízes. Vocês estão de parabéns! (Henrique Rondon, apud Neder, 1999, fl. 94; em 04/09/91). Aqui pudemos sentir a força, a esperança, o amor e a alegria de ser campograndensse (Dulce, apud Neder, 1999, fl. 96; em 11/09/91). Quanto aos não-mato-grossulenses, neste caso a ilusão era completa, e julgavam ter participado de uma reencenação ancestral de uma cultura autóctone, “pura”, e neste contexto surge espontaneamente a palavra “educação”: Es la primera vez que conozco una peña. Realmente lo he disfrutado porque me ha permitido conocer y compartir lo propio de esta región y sus fronteras. Les deseo que continuen con esta tradición. Con Cariño, una visitante que espera algún día volver (Martha Leal, apud Neder, 1999, fl. 28, v. 3; em 24/10/96). Esta peña para mi es interesante, ya que pone en relieve la música típica de este estado de brasil, que tiene un rasco Guarani muchas veces desconocido, me parece muy buena educación (Ramón Serro F. [Santiago, Chile] apud Neder, 1999, fl. 13 v. 3; em 31/01/96). A posição de Guizzo em relação à Peña se fez conhecer quando participou de um dos encontros. Neste dia, deixou também registrada no livro suas apreensões, já discutidas. Por um lado, de que as elites urbanas se voltaram historicamente para modelos identitários metropolitanos, desprezando elementos culturais singularizadores. De outro, de que isso levasse à perda da “pureza” que deveria ser preservada: Paulinho, mais do que ninguém você sabe do valor de sua Penha. Ela serve, principalmente, como um reduto de preservação de nossos referenciais de cultura na área da música regional. Em outras palavras: ela serve de instrumento contra a importação dos padrões culturais das grandes metrópoles. Só esse traço justifica a sua criação. Longa vida à sua Penha (José Octávio Guizzo apud Neder, 1999, fl. 11, em 14/11/1989). A mediação de Guizzo, de cunho essencialista, se encontra com as características subjetivas de Margarida, de seus vínculos pessoais com as elites agrárias do MS. Como resultado de múltiplas mediações, como essas e seus contrários, a Peña terminou por favorecer uma representação contraditória do estado. Ela produziu, decididamente, uma representação crítica a partir da mescla com as culturas latino-americanas e do Centro-Sul, informada pelo transculturalismo que já era constituinte da MLC e suas influências midiáticas - 360 (rock, reggae, etc.). Simultaneamente, procurou menos um projeto crítico voltado para o futuro e mais a celebração nostálgica das raízes, indo, neste sentido, ao encontro dos interesses das elites. Como resultado, detecta-se, no tecido polifônico da Peña, vozes discordantes representadas pelo mito fundador do Pantanal, a defesa e dignificação da realidade híbrida e índia da fronteira latino-americana, as preocupações ecológicas, a busca de uma fusão rural/ urbano, a aceitação tácita de um sistema econômico fundado no latifúndio e tornado poético pela estetização da fazenda, e também sua crítica. Neste sentido, tais discursos são abertos a dissensões e idiossincrasias. Algumas destas são a busca de uma fusão erudito/ popular representada pela poesia erudita, as referências folk rock, globalizantes e contraculturais, as disputas pelo poder econômico e político e a crítica ao latifúndio (presente na música de Geraldo Roca e Geraldo Ribeiro, entre outros). Sendo a Peña um espaço cuidadosamente construído para fabricar, amplificar e difundir uma pedagogia cultural, o estudo e compreensão dos debates ali circulantes tornam possível uma melhor compreensão sobre o complexo processo de construção dos discursos sobre representação cultural em disputa no estado. Margarida, falecida em 26 de agosto de 2003, foi e ainda é reverenciada pelas pessoas que a conheceram e admiraram (ver Jornada, 2006, para maiores detalhes sobre sua vida). Alguma referência pelos agentes culturais do estado foi feita, até pouco depois de seu falecimento. Uma dessas menções foi feita na notícia publicada em 17/08/2006, “Projeto Peixe Vivo cria ‘Prêmio Margarida Neder’ na Capital”, em que se destaca a saga combativa de uma pessoa legitimando uma tradição inventada através de sua atividade em favor da “divulgação e resistência da expressão cultural de Mato Grosso do Sul”. Como estamos vendo, a ideia de “resistência” foi fabricada por um longo processo de embates discursivos que vimos percorrendo desde o início da colonização do estado, no - 361 século XVI. Esta noção surge, espontaneamente, no discurso do nativo, frente a um sentimento compartilhado por muitos sul-mato-grossenses a respeito da posição subalterna ocupada pelo estado no plano nacional. A preocupação com a autenticidade, por parte de Margarida, nunca foi absoluta. Uma sua frase habitual era, “Para uma tradição existir, basta que seja criada” (Jornada, 2006, p. 51). Esta frase não era apenas uma boutade, mas fica evidente a partir das muitas de suas criações livres, como a “saia pantaneira”, que terminaram sendo aceitas como parte da tradição. A tradição inventada da MLC, com a participação da Peña, responde, então, a uma busca bastante comum, talvez metafísica, por tradições, ainda mais acentuada no MS, devido às características particulares de sua criação autoritária e das angústias relacionadas a ela. Apesar de suas contradições, a tradição inventada da MLC, mediada pelos também contraditórios discursos ativados no interior da Peña, se reveste de um caráter político. Isto se verifica na medida em que, não se reduzindo ao nativismo, esta tradição soube integrar conflitos regionais, nacionais e globais, colocando em discussão a posição periférica do MS como parte da América Platina. A longa citação que se segue, retirada da matéria mencionada nos parágrafos anteriores, é justificada pela riqueza de detalhes que conferem, aos olhos desta tradição inventada, alguns marcos orientadores de um processo de construção representacional de Mato Grosso do Sul: O Projeto Peixe Vivo, desde o ano passado, dedica o mês de agosto à memória de Margarida Neder, a criadora da Peña Eme-Ene, falecida há dois anos [sic] no dia do aniversário de Campo Grande. A Peña Eme-Ene foi um espaço cultural alternativo dedicado à música, poesia, artesanato, culinária, confecção de roupas e acessórios ligados à cultura de Mato Grosso do Sul (...) assim nasceu a Peña Eme-Ene, um movimento de divulgação e resistência da expressão cultural de Mato Grosso do Sul, que conseguiu sobreviver por 15 anos graças à coragem e ao talento de Margarida Neder (...) Pela Peña Eme-Ene passaram, participando ou assistindo aos espetáculos, praticamente todos os nomes que hoje compõem o cenário artístico do Estado, em diversas áreas: da música ao teatro, da literatura à pintura, do cinema à fotografia, além de turistas em trânsito para Bonito e o Pantanal, congressistas, autoridades e amantes da cultura regional (...) Um fato novo relacionado a este já tradicional evento é a criação do "Prêmio Margarida Neder", que será conferido sempre no mês de agosto a dez personalidades que se destacam na luta pela arte e pela cultura do Mato Grosso do Sul. O troféu é uma peça em forma de peixe esculpida em arenito pelo artista Paulo Vicente, um carioca radicado em Aquidauana que aprendeu sua arte com o lendário - 362 escultor José Carlos da Silva, o Índio, falecido há 15 anos em Campo Grande (...) Todos os músicos que participam do Tributo a Margarida Neder passaram pela Peña Eme-Ene e estão ligados às expressões que faziam parte do roteiro musical daquele espaço. Amambay e Amambaí e Tostão e Guarany representam a música de raiz, Helinho do Bandoneon representa o puro chamamé da região de Corrientes na Argentina, Aurélio Miranda representa a herança do interior paulista com a viola caipira, o Grupo Alma Latina representa a música paraguaia e Emmanuel Marinho a poesia que sempre esteve presente na Peña (Pedra, 2006). Assim, desde cedo a Peña se constituiu em um espaço em que uma nova relação de respeito às músicas paraguaias, andinas e caipiras era construída, todas elas, como vimos anteriormente, até então desvalorizadas por grande parte pela população em geral – apesar da atividade pioneira da MLC na valorização dessas músicas. Neste sentido, a mediação de Margarida Neder seria importante nos debates representacionais do estado, por empenhar-se na defesa de uma concepção de diferença sul-mato-grossense construída a partir das relações com os países vizinhos e próximos. Como vimos, a Peña tinha como objetivo principal produzir uma representação sobre a cultura do MS, como resultante do hibridismo formado pelo encontro das correntes migratórias advindas do Centro-Sul e da América Platina, admitindo as transformações e contradições impostas pela globalização. Esta representação incluía o discurso de Humberto Espíndola, em favor de uma modernização pensada a partir da posição periférica do MS no cenário nacional, e, desde 1986, da possível superação dessa posição a partir de sua integração com os países latino-americanos. Tal orientação já havia sido fundamental para a concepção e desenvolvimento da MLC, movimento que teve enorme influência sobre a Peña, e exprimia um discurso de modernização que era discordante com relação à modernização proposta pelos pecuaristas, e também pela burguesia urbana. Ou seja, os discursos da Peña iam no sentido oposto ao movimento de modernização implantado com os trilhos da Noroeste do Brasil, que preconizou laços e trocas com as grandes metrópoles do país e favoreceu a hegemonia da classe dos proprietárias rurais. Também não correspondeu aos desejos da burguesia urbana, com suas referências ao rural e - 363 ao platino. Como evidência de que a ideia de integração latino-americana proposta pela Peña ia de encontro às necessidades das elites dominantes, em torno das quais gravitam os poderes oficiais e o empresariado rural e urbano no MS, pode-se observar que o espaço cultural não obteve, dos poderes constituídos, os meios materiais necessários à sua sobrevivência. Como diz Lenilde, referindo-se às personalidades que, orgulhosamente, levavam convidados para exibir a cultura sul-mato-grossense na Peña, o público usufruiu de braçada, usufruiu mesmo. Era o orgulho de Campo Grande, você poder levar [seus convidados à Peña]. Só que eles saíam de lá, davam as costas, iam para seus lugares, cuidar da vida deles, (...) ninguém falou, “Puxa vida, vamos investir nesse lugar!” (...) (Ramos, 2009) Assim, apesar de ficar evidente, a partir dos depoimentos transcritos, que parte da sociedade local, com destaque para as elites dominantes, não deixava de aprovar sua representação a partir da narrativa encenada na Peña, inclusive expondo parte expressiva de seus visitantes a este discurso, não houve interesse concreto em consolidar e perpetuar sua atuação. Tanto é que a Peña existiu enquanto Margarida Neder se empenhou para isso, mobilizando recursos próprios. Como foi visto, apesar de a iniciativa não ter sido esquecida com sua morte, e ser mencionada a possibilidade de continuidade, isso não ocorreu. Esta evidente ausência de articulação decisiva entre a Peña e os interesses dominantes é entendida, aqui, como decorrência do fato de que os discursos de modernização não hegemônica, pensada a partir de uma região periférica situada no interior da América Platina, não atendiam a tais interesses. É interessante finalizar esta discussão sobre a Peña com a voz de Humberto Espíndola, justamente porque sua visão foi tão importante para ela, bem como para a MLC. Apesar de que tantas vezes o termo “identidade” vem à tona, na verdade creio que todas estas iniciativas fundadas na procura de se voltar para a cultura da América Platina buscam uma reflexão sobre uma diferença local, uma representação divergente colocada em contraposição à hegemonia cultural e econômica do eixo Rio-São Paulo, uma busca de descentralização dos processos - 364 econômicos e culturais brasileiros, ainda excessivamente concentrados nestes dois estados. Esta visão é o próprio projeto de Humberto, que ele levou às mais altas instâncias a que teve acesso: Por isso que essa América Latina, quando fui secretário [de Cultura], fui ao ministro da Cultura, que era o Celso Furtado, propor que fizesse um plano piloto de cultura para o MS, porque era o único estado do Brasil que tinha fronteiras de ficção – fronteiras secas, com dois países ameríndios. (Espíndola, H., 2009) O projeto de modernização alternativa proposto por Humberto busca desenvolver a economia dessa América Platina a partir da cultura (uma inversão da mecânica basesuperestrutura). Possui uma visão crítica do histórico imperialismo brasileiro e dos danos que este imperialismo provoca, ao impedir o fortalecimento do bloco sul-americano e perpetuar divergências: O grande problema do Brasil é a visão imperialista que ele tem e com que os outros países da América do Sul o veem. Você sabe que, hoje, a política externa brasileira combate isso, faz um trabalho em cima disso, e existe uma reação. Você vê o Evo Morales, os paraguaios, há sempre um problema com o Brasil. (Espíndola, H., 2009) Ao contrário, sendo necessário estabelecer um relacionamento dialógico entre os países sul-americanos, Humberto acredita que o MS tem condições estratégicas de contribuir para isso: E o MS foi o estado onde o Brasil teve uma guerra com o Paraguai. O MS foi o estado que teve este relacionamento íntimo com o Paraguai numa recuperação de amizade, pelos casamentos (...) até quando eu era criança se falava o guarani em Campo Grande. (Espíndola, H., 2009) Vistas neste contexto de recuperação de laços e alianças com os países vizinhos e próximos do continente sul-americano, as canções da MLC, com suas letras em guarani, o emprego de gêneros como a guarânia, a polca e o chamamé, os instrumentos da música andina, a Peña e todas as referências a esta banda oriental, não hegemônica, subalterna do continente, adquirem outro sentido – um sentido de recriação, de transformação, de regeneração, trazendo novas perspectivas políticas, econômicas, culturais, por meio de novas alianças: O Paraguai teve uma influência fortíssima na formação de nosso estado, na música, o Rio Paraguai, os sons que subiram nesse rio, chegaram aqui e fizeram uma música diferente, porque tanto a Argentina cristalizou o tango, com exceção do chamamé em - 365 Corrientes, onde teve algumas alterações, e as ditaduras paraguaias cristalizaram as polcas paraguaias principais, então isso se tornou cristalizado. E onde que foi ter uma modificação desses sons que vieram subindo pelo rio? Chegaram aqui em Corumbá, no Pantanal, nessa nossa turma que se diz pantaneira, que assimilou esse som, e fez a primeira geração de músicos sul-mato-grossenses, da qual resultou a Peña da Margarida Neder, que eu frequentava muito lá, que foi uma expressão, um grande momento dessa música, o encontro desses músicos foi lá, e essa música foi a renovação dessa música do rio. A renovação da polca, a renovação do chamamé, foi uma vanguarda em cima daquilo, por isso que essa identidade é tão ligada a essa não criada República Transatlântica, que só existiu por um dia, mas que seria uma república, aqui no centro do continente, onde estariam Assunción, Santa Cruz de la Sierra, Corumbá, Cuiabá, Goiânia e Campo Grande, estariam neste contexto. Então eu acho que essas cidades são cidades chaves para um circuito cultural e identidade, porque nas artes plásticas, que eu conheci e viajei, elas são muito parecidas. Elas têm um tipo de produção, de colorido, de interpretação, de visão de mundo muito parecida. E isso eu venho pregando há anos! Desde que fui secretário. Depois isso foi assimilado de alguma forma, teve o Festival da América do Sul, que é uma grande busca. (Espíndola, H., 2009) Assim, segundo Humberto, a Peña tinha um significado estratégico dentro desta visão, de estabelecer novas formas, mais dialógicas e democráticas, de sobrevivência econômica e cultural, estudando uma diferença a ser apreendida a partir da realidade marginal dos países latino-americanos recalcados pelas elites dominantes brasileiras: Como eu dizia, fui ao ministro para que se fizesse do MS um estado protótipo na cultura pra fazer um programa de relacionamento cultural, porque é através da cultura que você vence os outros obstáculos. De intercâmbio com os dois países que têm fronteira seca com Mato Grosso. E fui pela primeira vez, levei artistas do MS à Bolívia, ao Paraguai, e foi lá na Bolívia que o Paulo Simões, vendo as peñas bolivianas, e como que funcionava, inclusive, o mercado de música, através de fitas cassete, mas dentro das peñas, como os músicos se divulgavam, e como as peñas se renovavam, todos cantavam, tinha espaço para todos se manifestarem, foi essa a ideia da Peña, que é o penhasco mesmo, aquele ponto onde as pessoas se abrigam no momento de tempestade, no momento de salvação. A Peña tem esse sentido, mesmo (...). O significado de “peña”, é o de penhasco, penhasco onde as ondas não atingem, a pessoa que está lá em cima do penhasco, é até bíblico isso, ela está a salvo. Daí vem essa palavra “peña”. E foi assim. (Espíndola, H., 2009) Portanto, os impasses que levaram ao perecimento da Peña Eme-Ene são os mesmos impasses que impediram que a MLC se tornasse sucesso nacional, e são os mesmos impasses que impediram o projeto de Humberto de se realizar. No plano nacional, estas iniciativas não despertaram mais do que a rejeição, por parte dos grupos política e economicamente hegemônicos, uma vez que o projeto delas era prejudicial a seus interesses, articulados ao grande capital global, cujos fluxos são mediados pela hegemonia estadunidense. Tais - 366 interesses têm se concentrado, historicamente, em impossibilitar a ideia de um bloco latinoamericano forte e unido, que pudesse fazer frente ao eixo de influência dominante, exercido a partir dos EUA. Da parte das populações “nacionais”, não houve adesão devido à ausência de identificação com o universo cultural proposto por estas iniciativas, voltado para a realidade transfronteiriça e recalcada dessa região, e não conformado às expectativas de autenticidade desse público no que respeita às produções do Centro-Sul interiorano. Por si só, tal ausência de identificação constitui uma evidência do silenciamento agendado no Brasil com relação ao continente sul-americano, apenas quebrado, principalmente, por representações negativas. Por sua vez, a busca de uma diferença e integração das populações da América Platina, incluindo os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, não pôde prosperar até o momento, frente a obstáculos intransponíveis. Justamente a falta de um intercâmbio mais vigoroso entre as populações desta área constituiria um desses obstáculos, criando uma situação de circularidade de resolução particularmente difícil. O desconhecimento mútuo (inclusive a barreira linguística), acompanhado da desconfiança entre brasileiros e latinoamericanos, impediria relações mais próximas e articulações com fins políticos. O surgimento dessa separação entre o Brasil e os outros países do continente não é, portanto, fortuito: foi deliberadamente construído por diferentes determinantes. Como vimos, tais determinantes se materializaram em campanhas de intelectuais desde o Império, na busca de construção de uma identidade nacional, e no agendamento constante da mídia, silenciando ou divulgando representações negativas dos países vizinhos de língua espanhola no continente. Além de construir, entre as populações brasileiras, um imaginário desinteressado pelas culturas e problemas da América do Sul como um todo, estes discursos fabricam uma política externa de enfrentamento, ao invés de buscar a união latino-americana como forma de fortalecimento político e melhores condições de negociação no plano internacional. Não devemos esquecer que, tanto as motivações de ordem econômica (desenvolvimento local e - 367 nacional do capitalismo), quanto de ordem geopolítica (impedir a intensificação das relações do MS com os países vizinhos, no contexto da hegemonia estadunidense) foram responsáveis por uma intervenção política de envergadura considerável por parte da ditadura militar, a divisão do estado de Mato Grosso e a criação do estado de Mato Grosso do Sul. De certa maneira, a avaliação de Humberto sobre o insucesso de sua iniciativa segue nestes mesmos termos: Eu busquei essa identidade, mas não consegui vingar esse projeto, que eu achava que deveria ter um intercâmbio maior, entre Campo Grande e Assunción, Campo Grande e Santa Cruz, entre ela e Cuiabá, um circuito assim... Várias vezes também eu acho que nossa música, falta um mercado de consumo porque se tende a São Paulo e Rio, o que acontece? Essa música tende a se tornar uma música ao gosto do consumidor do eixo brasileiro, e não fiel às origens que a inspiraram. Se essa música tivesse um mercado voltado para dentro, um circuito interno de distribuição desses artistas, de exposições de arte, de shows musicais mais na região onde isso é querido, em Corrientes, Assunción, se tivesse mais intercâmbio... (Espíndola, H., 2009) Portanto, apesar de que a MLC, a Peña e o projeto de Humberto contribuíram para contestar os discursos dominantes, não há, ainda, condições políticas para uma transformação radical do isolamento entre Brasil e América Platina. Afinal, como o próprio Humberto reconhece, “nós somos periferia do Brasil, tanto Mato Grosso do Sul quanto o próprio Mato Grosso” (Espíndola, H., 2009). Com relação às preocupações geopolíticas dos militares, já vimos que elas provinham desde a década de 1930, e eram motivadas pela suspeita com relação às alianças familares, afetivas e ideológicas mantidas pelas populações dessa região com aquelas dos países vizinhos. Sendo assim, de maneira nenhuma o governo central poderia concordar em uma política cultural construída, justamente, para reforçar esses laços. Da mesma maneira, as oligarquias políticas e econômicas brasileiras não poderiam concordar em ver minada sua hegemonia a partir da perda ou enfraquecimento de seu poderio em toda uma região do país – e que envolveria, conforme já foi dito, toda a parte brasileira da América Platina, ou seja, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, oeste do Paraná, oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. O sucesso de uma articulação transnacional da América Latina apoiada - 368 numa diferença cultural necessita de maior atividade de políticas de representação progressistas, tais como as analisadas aqui. Canções e sentido Tendo sido discutidas algumas das características da poética da MLC no contexto político, social e cultural mais amplo, será dedicado, agora, algum espaço para identificá-las nas composições de Geraldo Espíndola, Paulo Simões e Geraldo Roca. Além disso, busca-se aqui demonstrar a heterogeneidade constituinte dos trabalhos desses compositores, que desautoriza a ideia de que tenham empreendido um projeto discursivo fechado. Como todo discurso constrói múltiplas e diferentes posições subjetivas, foi possível que, sob o influxo de relações de poder, passassem a predominar posições hegemônicas. Além de relativizar a ideia de autonomia da obra e ressaltar a historicidade do movimento, ao ser continuamente ressignificado pelas diversas recepções, esta orientação permite perceber a diversidade, a polifonia (cf. Bakhtin) e a intertextualidade (cf. Kristeva) presentes nos trabalhos destes compositores. Pode-se dizer, entretanto, que as características das poéticas do deslocamento de sentidos da MLC, já discutidas – o movimento, a indeterminação, a vinculação às coisas do ar, a superficialidade, a viagem, a platinidade, o desfronteiramento e a artificialidade – são constantes das produções de todos estes compositores, e, portanto, as unificam, trabalhadas ao modo singular de cada um. Assim sendo, encontraremos um Geraldo Espíndola – destacado em sua forte imaginação melódica e harmônica – como ponto nodal articulador de discursos sobre a metafísica, o realismo mágico e o fantástico (em certos momentos colorido de psicodelismo), e de críticas ao conservadorismo da sociedade local (organizado pelo patriarcalismo característico das classes dominantes agrárias). Com relação às populações não hegemônicas da região, Geraldo propõe uma épica dos indígenas dizimados e um ecumenismo latino- - 369 americano inclusivo dos povos do Altiplano andino (o que não é comum entre os compositores locais, mais preocupados com a herança paraguaia). Entre os três compositores, devido às suas preocupações ecológicas, Geraldo é o que mais inseriu o Pantanal em suas letras, citando sua fauna e flora em canções como “Tuiuiú e jaburu”. Entretanto, a ecologia não está presente apenas nestas suas canções que decantam o Pantanal, e que tão convenientes foram para associar o estado nascente à região descrita como edênica. A natureza, em lugar não especificado e até imaginário, emerge em múltiplas imagens de água, sol, limo, lesmas e caracóis, às vezes com tonalidades mágicas, místicas e misteriosas, outras vezes traduzidas com sensualidade. Paulo Simões, é, principalmente, letrista, e reconhecido pela artesania com que trabalha sua produção, composta por imagens ricas e sutis. Por um critério meramente quantitativo, suas letras são mais voltadas, tematicamente, ao amor romântico (envolvendo romances proibidos, amor puro, fim de caso e ciúme) e a uma celebração da vida no interior (em que surgem festas caipiras, a decantação poética da fazenda e da vida errante, a épica da formação do estado e as raízes). Menos expressivas quantitativamente, mas qualitativamente significativas, são suas canções com temática existencialista (em que figuram com destaque a dúvida, a incerteza e a amizade) e metafísica (nas quais se interroga sobre a natureza do tempo e outros mistérios). Geraldo Roca se destaca por sua visão crítica, irônica, desencantada, niilista, em que ressoam ecos beatniks. Nada em Roca é edificante, e em suas letras, valores usualmente enaltecidos, como o trabalho, a vida no interior, a cidade de Campo Grande e a salvação (seja pela alta cultura europeia, pela globalização, pela fé ou pelo Prozac), são observados por lentes disfóricas e corrosivas. Crítico mordaz de todas as estruturas de poder, entretanto, propõe também momentos de pronunciado lirismo. Musicalmente, tem forte influência do folk rock, do zydeco e das músicas paraguaias e argentinas, que às vezes interpreta como rock, - 370 visando retirá-las de seu espaço-tempo original, relativizado pela comunicação midiática transnacional, e recontextualizá-las na contemporaneidade. Conquanto Almir Sater não tenha feito parte desse grupo pioneiro de compositores da MLC, é participante do movimento desde pouco tempo depois de sua entrada na vida artística. Isto se deu em 1978, quando, logo após o lançamento do álbum Tetê e o Lírio Selvagem, passou a ter participação no grupo. Além disso, o fato de ter alcançado um incontestável sucesso no plano nacional, lhe traz destaque e convida a comparações. A pergunta que norteou o confronto entre este artista e os anteriormente referidos foi: quais as suas diferenças, no plano discursivo, em relação aos outros compositores, que poderiam levar à compreensão da significação de seu sucesso local e nacional? Geraldo Espíndola A primeira dificuldade que o compositor Geraldo Espíndola coloca para seus pesquisadores é sua obra extensa e a falta de registros. Comenta-se que teria mais de 300 composições, mas que são mantidas apenas em sua memória, uma vez que possui, lançados, apenas quatro CDs solo (Espíndola, G., 1991, 1998, 2004 e 2005). Há um famoso caderno em que anota as letras, mas que eventualmente circula entre outros músicos e poderia vir a desaparecer. Fora isso, outras oportunidades de se familiarizar com sua obra são propiciadas pelos bares de Campo Grande, em que ele mesmo executa suas canções, e em situações de maior intimidade, junto aos amigos. De certa maneira, a metodologia aqui adotada, que é a da seleção do material a partir de gravações, simplifica esta parte do trabalho. Embora tal metodologia exclua canções eventualmente importantes e mesmo fundamentais, se o foco aqui é nos possíveis efeitos sociais das canções, e não nas canções em si mesmas, seria difícil proceder de outra maneira. Além disso, são as gravações que permitem a análise de arranjos e concepções determinados, frente a uma história oral extremamente dinâmica. Ao congelar instantâneos sonoros, as - 371 gravações se tornam representações que permitem comparações elucidativas de diferentes maneiras – sociais e culturais – de se imaginar, expressas musicalmente. Já tivemos oportunidade de ouvir Geraldo Roca comentar sobre o caráter inovador de “Cuñataiporã”, expresso em sua letra já transcrita. É bastante, aqui, complementar essa interpretação com um rápido comentário sobre a música. Sendo uma balada pop, gênero que remete à cultura midiática transnacional, o tropo da itinerância já interpela o ouvinte instantaneamente, por meio da comunicação imediata realizada pelo gênero musical. Já o tropo do deslocamento se verifica pelo diálogo entre este gênero e a letra, que situa a ação no sul de Mato Grosso, mencionando as cidades de Corumbá e Ponta Porã, além do Rio Paraguai. Ou seja, os sentidos comumente atribuídos a uma balada pop, em geral ligados às metrópoles, eram deslocados pela menção a cidades do interior de Mato Grosso do Sul. Na época de sua concepção, este tipo de deslocamento era inusitado, e provocou estranhamento. Analogamente, as canções cujas letras mencionavam estas referências locais utilizavam, até então, gêneros sertanejos, portanto os sentidos destas referências também foram deslocados pelo uso do gênero musical. Por outro lado, o uso da linguagem guarani deixa transparecer, na cultura sul-mato-grossense, vozes paraguaias até então silenciadas, contribuindo para a intertextualidade da canção. Da mesma maneira, a nota de passagem cromática fá natural – “é na-que-le trem” –, sendo uma quinta diminuta do acorde de Bm, ou seja, uma blue note, também aproxima a realidade local ao universo do blues. Vemos, assim, que tanto no que respeita à letra quanto à música, “Cuñataiporã”, à época de sua composição, ainda nos anos 1970, desestabilizava construções identitárias fixas sobre o sul de Mato Grosso. Se, hoje, sua escuta não mais causa estranheza, isso diz respeito ao processo de naturalização construído pelas mediações que recebeu, e salienta a extensão das transformações que podem ser operadas a partir da ativação de posições subjetivas díspares dentro do mesmo discurso. - 372 Outro dado a ser levado em consideração nesta canção é seu caráter modal, o que não é uma característica comum das baladas pop. Devido à ausência do trítono e de uma cadência autêntica (que só ocorrem no interlúdio que se segue às partes A e B), em “Cuñataiporã”, a passagem do tempo, das etapas cronológicas, de que a passagem dos acordes é uma analogia, é pouco marcada. A canção evoca, assim, uma atmosfera mítica, em tudo concordante com a referência a uma época indefinida. Ali pairam lado a lado referências contemporâneas (a balada pop, a língua portuguesa atual) e arcaicas (o guarani, as “canções que não se ouvem mais”, a estilização de canto indígena no interlúdio). O trem e o barco, como meios de transporte e ligação, como objetos do passado e do presente, e em seu desinteresse pela velocidade requerida pelo sistema econômico atual, completam este quadro em que o tempo medido, o tempo linear é negado, junto com a narrativa teleológica e voltada para a produção de mercadorias de que faz parte. Uma narrativa da diferença é instituída em seu lugar, em que uma coisa não dá lugar a outra; ao invés disso, a constituição das coisas é vista como coexistência, a um só tempo, de alteridades radicais. À guisa de confirmação dessa leitura, pode-se citar outra canção de Geraldo, “Divindade”, em que vários destes temas são comentados novamente sob a mesma luz. - 373 “Divindade” (Geraldo Espíndola) Divindade Antiguidade das vidas Relíquia das saudades Que nos habitam Que idade é esta? Maravilha de um homem Quando se consegue ser um guri Quando se ri Não se sofre Pela diferença Divindade Inverno cidadino Paladino dos oásis Solidão que acalma Nenhuma procura Nada a achar Tudo de mim mesmo Individual alegria Divindade Controle inteligente Sobre computadores estrangeiros Não deixar se estragar o homem Não ter medo Lentidão Das lesmas e caracóis Peixes ligeiros dos pantanais Sol, imagens hermanas acompanhadas Emoções arrepiadas, pele Carinho indivisível Compreender No prender No te ver Só te querer Divindad, Dentro de mi... Da mesma forma que em “Cunhataiporã”, “Divindade” é uma canção modal, o que coloca em destaque o que foi dito sobre o comentário musical evocativo de uma atmosfera mítica. A instrumentação e a harmonia buscam o universo latino-americano, mais especificamente boliviano, com essa platinidade transfronteiriça citada em “imagens hermanas” e indicando o projeto de integração latino-americana a partir do MS. A referência ao passado que nos habita como alteridade radical é explícita, diferença que, no entanto, não causa sofrimento. A convivência de computadores no inverno citadino com a lentidão de lesmas e caracóis e a velocidade dos peixes dos pantanais é sem medo, com alegria, e a linha melódica, em que o contraste predomina de maneira evidente sobre a repetição, sublinha a diversidade e a diferença. No entanto, a característica do desfronteiramento (definido como índice da intertextualidade e indeterminação na MLC) se apresenta em certas composições de Geraldo independentemente de referências explícitas à latinidade, seja no texto verbal ou musical. Tomando a birritmia da música paraguaia, já comentada, Geraldo a mescla sutilmente a - 374 gêneros transnacionais, com destaque para o blues (que, apesar de notado tradicionalmente em 4/4, é executado em 12/8 com o uso do chamado swing feel). Ao fazê-lo, aproxima dois universos distintos, fazendo o comentário cultural associado ao gênero blues dialogar com a música de Mato Grosso do Sul, buscando, em tal conflito, uma relação constitutiva. Neste sentido, é interessante conferir “Deixei meu matão”, de 1972, em duo com Elza Soares, que inscreve ironicamente música e letra no veio representado pelas melancólicas canções sertanejas sul-mato-grossenses de desenraizamento. A propósito, “ironia”, em termos bakhtinianos, é uma forma de diálogo, tanto quanto a paráfrase (utilizada para aproximar a música paraguaia do blues por meio do swing feel). Serve, assim, a diferentes propósitos. Entre eles, desestabilizar a premissa ideológica profundamente estabelecida de que uma produção cultural (como uma canção) emerge monologicamente de uma consciência singular, colocar em relação dois universos distintos e provocar polêmica (debate, possibilidade de transformação social), como explica Bakhtin: Cada tipo de paródia ou travestismo, cada palavra “com condições anexadas”, com ironia, encerrada em aspas intencionais, cada tipo de palavra indireta é, em um sentido amplo, um híbrido intencional (...) Cada tipo de híbrido estilístico intencional é mais ou menos dialogizado. Isto significa que as linguagens que estão atravessadas nele se relacionam mutuamente como participantes em um diálogo; há uma discussão entre [essas] linguagens, uma discussão entre estilos de linguagem. Mas não é um diálogo no sentido narrativo, nem em um sentido abstrato; ao invés disso, é um diálogo entre pontos de vista, cada um com sua linguagem concreta que não pode ser traduzida para a outra. (Bakhtin, 2004, p. 75-76) 41 41 Every type of parody or travesty, every word “with conditions attached,” with irony, enclosed in intentional quotation marks, every type of indirect word is in a broad sense an intentional hybrid (...) Every type of intentional stylistic hybrid is more or less dialogized. This means that the languages that are crossed in it relate to each other as do rejoinders in a dialogue; there is an argument between languages, an argument between styles of language. But it is not a dialogue in the narrative sense, nor in the abstract sense; rather it is a dialogue between points of view, each with its own concrete language that cannot be translated into the other. - 375 - - 376 “Deixei meu matão” Geraldo Espíndola Quando eu vim, ninguém sorria pra mim Quando deixei aquilo lá E vim pra cá, não chorei não Graças a Deus Deixei meu matão Deixei meu matão Deixei meu matão Deixei meu matão Vou sentir saudade da velha amizade Dos campos e vacas de lá Ai mamãe não quero chorar Os amigos poucos do meu coração Que vai se tratar, Vai se tratar, Vai se tratar, Vai se tratar, Vai se tratar Se ando sozinho é porque Não curto flor sem espinhos Toda essa manha estranha Não chega aos pés do amorzinho Gozei meu matão Gozei meu matão Gozei meu matão Gozei meu matão Se em “Cuñataiporã” existe a menção explícita de locais encontráveis no MS, que possibilitam alguma ancoragem, no discurso verbal, ao plano local, o mesmo não se verifica em “Rosa em pedra dura”. Nesta canção não se percebe, nem na letra e nem na música, qualquer referência regional, muito embora utilize, também, a imagem de “descer o rio” como metáfora para o movimento e ausência de fixação. Uma canção melodicamente complexa e exigente, “Rosa em pedra dura” tem corte ecológico, apontando para a “consciência planetária” a que aludiram os discursos nativos, bem como à sensualidade. - 377 “Rosa em pedra (Geraldo Espíndola) dura” Água verde, pedras que são quedas Que nos fazem ir mergulhar Nesse rio, corpo molhado esguio Jovem moça desce o rio comigo Conhece, quer meu abraço amigo Nossos beijos de figos maduros Roxos, cor de coração por dentro Céu, luz, verão teu olhar É a noite no dia dentro de mim Morena, água doce quente de sol É o calor que me fez assim Rosa em pedra dura Tanto bate que perfuma Água de nascente, olhos da minha mente Molha ela de repente enquanto sou A semente no corpo estendido E revolto Do ponto de vista composicional, deve-se notar a relação de isomorfismo entre “água”, elemento central no discurso verbal, e o intenso cromatismo que caracteriza esta melodia incomum. A fluidez da água é, assim, captada de maneira feliz pelo compositor, que a transpõe para o universo musical por meio de um cromatismo característico, melodia e letra convergindo para exprimir o constante fluxo, a ausência de fixação. “E Deus criou o vento”, música de 1969 de Geraldo Espíndola e Paulo Simões, é bastante indicativa daquela característica de certas canções da MLC que buscam o que está na superfície, ao contrário da ideia de enraizamento. Este sentimento está expresso, de maneira bastante evidente, na escolha do gênero musical (um blues), mas também na letra, que o nomeia explicitamente: “E Deus criou o vento pra pentear nosso cabelo”. - 378 “E Deus criou o (Geraldo Espíndola/ Simões) vento” Paulo Saudade bateu No meu rock’n’roll E nele gritei morda-se o mundo Desde o minuto Em que você me deixou de luto Vou dar porrada no mocinho E ser vilão com meu cabelo Arrastando no chão As unhas crescendo na direção Do seu velho pescoço Vou dar porrada nessa corja de urubus Vou rebolar pra arrebentar Os nosso tabus Porque nós temos Um coração batendo E dois olhos vendo Porque nós temos O sangue fervendo e não vivemos no gelo E Deus criou o vento pra pentear nosso cabelo Certamente, a insistência de procurar o não-estabelecido, para além de um traço muito anterior, ligado ao desenvolvimento capitalista buscado pelos pecuaristas, indica, também, a influência do ideário contracultural sobre os jovens de Campo Grande. Contra que, perguntase, lançava-se a sensível carga de agressividade que organiza esta e outras canções (como a própria “Deixei meu matão”)? Em busca de repensar sua realidade e seus papéis, reprimidos, justamente, pelo conservadorismo patriarcal derivado das estruturas sociais agrárias, aqueles jovens chamavam a atenção para a importância política da imaginação, da invenção, da criação. Nas palavras de Paulo Márcio Bacha, “eu acho que foi todo esse momento de antena que essas pessoas tiveram, que foram geniais nisso (...) porque havia todo um vir-a-ser que rompia com aquela perspectiva conservadora e atrasada da cultura da época, que era repetir, repetir, repetir...” (Bacha, 2009). Se, como vimos, na música paraguaia é comum a melodia ser binária enquanto o acompanhamento se dá em métrica ternária, em várias canções de Geraldo o acompanhamento obedece a uma métrica binária enquanto a melodia segue um padrão ternário. Este é o caso da parte B de “Amarga solidão” (compasso 24 ao 34): - 379 - - 380 - Outra oscilação entre as métricas binária e ternária que deve ser notada é a alternância entre compassos binários e ternários na parte A. Verificam-se, assim, na música de Geraldo Espíndola, reflexos – parafrásicos, no sentido bakhtiniano – da sensibilidade paraguaia, em sua birritmia. Sua presença nesta canção, em especial, convida a uma reflexão sobre seu sentido. Isso porque é evidente o cunho nacionalista da canção, outro traço marcante na poética de Geraldo. Como também o é a preocupação ecológica com a destruição da natureza inscrita na letra e representada musicalmente por um aumento das durações das notas na parte B, em que a letra é “suas matas cada vez mais longe”. O nacionalismo está expresso de maneira explícita na letra, em que expressões como “Brasil”, “uirapuru”, “Amazonas” remetem a convenções estabelecidas nas produções literárias e artísticas das primeiras décadas do século XX. No entanto, inscreve-se, também, - 381 musicalmente, na repetição constante da “síncopa característica” (cf. Mário de Andrade, conceito problematizado pela etnomusicologia atual), que é pouco encontrável na música tradicional do MS; no caráter percussivo da melodia feita à base de saltos de sexta (estilização de batuque indígena?); na harmonia da parte A; e no uso de compassos alternados, tudo isso sendo reminiscente das representações do Brasil pelos compositores modernistas do período mencionado, especialmente Heitor Villa-Lobos. Contribui para esta recriação do Brasil a partir do modelo modernista a atmosfera amazônica deliberadamente evocada pelos vocalizes da irmã Tetê. Levando tudo isso em consideração, é tentador entender a imbricação de uma sensibilidade paraguaia com símbolos de brasilidade como resultado da situação indeterminada vivida no desfronteiramento. Este tipo específico de intertextualidade não é desconhecido aos habitantes do MS, como já foi amplamente discutido nesta tese. Envolve, inclusive, preocupações de cunho geopolítico com a instabilidade do “caráter nacional” na fronteira, que terminaram desencadeando o processo divisionista a partir das determinações ditatoriais. Assim, “Amarga solidão” sugere-se, também, como um modo mental transfronteiriço encontrado nessa parte do Brasil. Paulo Simões Como compositor, Paulo Simões foi gravado pela primeira vez em 1980, por Sérgio Reis, intérprete da música caipira bastante popular no interior do Centro-Sul. (Reis formaria com Almir Sater, na novela Pantanal, a dupla caipira fictícia Pirilampo e Saracura. É um dos exemplos das boas relações de proximidade e colaboração mantidas entre os artistas caipiras e certa vertente da MLC, que se manteve menos atada ao universo latino-americano e mais indistinta do caipira do Centro-Sul). A canção, “Lobo da estrada”, em parceria com Pedro Aurélio, se tornou um sucesso, especialmente entre os caminhoneiros, a quem decantava: - 382 “Lobo da Estrada” (Paulo Simões e Pedro Aurélio) Cortando a noite Com um farol solitário Um ronco forte que se ouve bem distante Sempre traçando seu próprio itinerário Ele cruza a madrugada Lá vai o Lobo da Estrada Segundo as lendas do Brasil rodoviário Nunca se viu cavalo tão possante E os motoristas, depois da ultrapassada Desejam boa sorte ao Lobo da Estrada Lobo da Estrada E o vento frio do cerrado ensinou-lhe uma canção Que vai de encontro ao coração De tudo que é menina De Goiânia a Ribeirão De Campo Grande até Londrina Elas querem a garupa com o rei da morenada Lá vai o Lobo da Estrada Lobo da Estrada. Quando ele passa em frente às casas de família O pai obriga a filha A dormir antes do horário E a mãe aflita aperta logo o seu rosário Reza até sumir ao longe Acenando no horizonte o Lobo da Estrada Lobo da Estrada E os motoristas depois da ultrapassada Desejam boa sorte ao Lobo da Estrada Lobo da Estrada E o vento frio do cerrado ensinou-lhe uma canção Que vai de encontro ao coração De tudo que é menina De Goiânia a Ribeirão De Campo Grande até Londrina Elas querem a garupa com o rei da morenada Lá vai o Lobo da Estrada Lobo da Estrada.... Sendo uma das canções da MLC em que se percebem vozes sertanejas, com as quais se identificou boa parcela do público deste estilo, é interessante notar o diálogo entre estas vozes e aquelas situadas em segmentos sociais dominantes. A letra já estabelece esse diálogo por intermédio do tropo do movimento. Bastante característico das profissões de peão boiadeiro e caminhoneiro, é também explicitado nesta tese como um traço marcante das poéticas do deslocamento da MLC. Musicalmente, o estilo interpretativo, incluindo a instrumentação com teclados e guitarra, tem marcas evidentes da Jovem Guarda, movimento que influenciou a música sertaneja a partir dos anos 1960. A harmonia da seção A é bastante usual nas músicas caipiras. No entanto, na seção B, temos acordes de empréstimo modal (III e IV graus do tom da - 383 subdominante, exatamente em “[De Campo] Grande até Londrina/ Elas querem a garupa com o rei da morenada”), pouco usuais na música sertaneja. Esta estratégia evidencia o confronto entre dois universos sociais distintos nesta canção que, entretanto, não encontrou empecilhos para transitar entre ambos. A canção foi incluída no primeiro álbum solo de Simões, lançado em 1992. Este lançamento tardio, cerca de vinte e cinco anos após a estreia do autor nos festivais da canção de Campo Grande, é parte de uma marca característica do grupo inicial de compositores da MLC (Geraldo Roca tivera o seu primeiro LP pouco antes, em 1988, e Geraldo Espíndola ainda depois, apenas em 1998). Tal demora em realizar um registro autoral, sendo este um requisito imprescindível para a divulgação do trabalho e a disputa do mercado de shows, salienta as dificuldades encontradas pelos músicos do interior do Brasil para gravar sua produção. Como se sabe, isto era comum, especialmente antes da popularização das tecnologias digitais e dos estúdios caseiros de qualidade. Como o contato com esses artistas evidencia que, desde sempre, o registro em álbum solo representou uma preocupação central para eles, tal demora demonstra, também, que o processo de institucionalização lhes trouxe mais prestígio social do que meios materiais concretos para a promoção de suas carreiras. Justamente no ano de sua estreia em LP solo, Paulo Simões recebeu o Prêmio Sharp como melhor compositor regional, com “Paiaguás”, que teve música de Guilherme Rondon. A gravação, por Guilherme Rondon, no álbum Piratininga, evidencia uma estilização do chamamé com elementos do rock progressivo. Cria, assim, um diálogo com a letra. Com o “avião”, invoca os tropos do movimento e do deslocamento, ao descontextualizar o gênero tradicional. Simultaneamente, estabelece uma polêmica com a letra, que celebra o idílio pantaneiro e um conflito entre natureza/ cultura, com predomínio da primeira. - 384 “Paiaguás” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) Sobre o Taquari Voa um avião Sobrenatural ave de metal Me leva feliz Lá no Paiaguás Por o pé no chão Fruta do quintal, leite no curral Rede pra dormir Bem que eu devia dali nunca nem sair Mundo de aguapé Parece ilusão Água de cristal, doce visual Um céu tão azul Polca ou chamamé Primeira canção Roda o tereré, canta quem quiser Lua vai ouvir Bem que eu queria dali nunca mais sair As canções consideradas aqui como pertencentes à vertente metafísica da produção de Paulo Simões abrangem “Estranhas coincidências” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Geração” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Mais um verão” (Almir Sater/ Paulo Simões), “Não despreze os astros” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões) e “O que passou, passou” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões). “Estranhas coincidências” interroga-se sobre o sentido contido no trajeto que se estende desde a “idade da inocência” ao final da existência (“Nem distâncias tão imensas/ Pra se caminhar”), utilizando-se do chamamé. O isomorfismo entre letra (“Estranhas coincidências”) e música é buscado por meio das surpresas causadas pelo empréstimo modal (bVI em lugar de vi, II em lugar de ii), mais uma vez, deslocando os sentidos do gênero (chamamé): - 385 “Estranhas coincidências” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) Estranhas coincidências Insistem em revelar Essa triste consciência De termos tão pouco a salvar Idade da inocência Não há como retornar Nem distâncias tão imensas Pra se caminhar Avisos e profecias Tentamos ignorar Quando as luzes são intensas Cegam nosso olhar Se os deuses não guardassem Alguns mistérios no céu Seria simples se perceber Que somos distraídas crianças Num carrossel Que não sabemos deter Estranhas coincidências Palavras soltas no ar São sinais e advertências De tudo que vai ter lugar Outra canção que trata da passagem do tempo – logo, focalizando um aspecto do fluxo contínuo – é “O que passou, passou”. Aqui, passado e futuro são justapostos com a perspectiva de reencontrar, no futuro, o passado perdido. A mudança de ritmo e a adição da bateria comenta esta passagem (“Se foram... logo vou...”). - 386 “O que passou, passou” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) Rumo a 2001 O que passou, passou... Rumo a 2001 O que passou, passou Um grande amor guardado Em lugar tão seguro Antes que desse errado Se escondeu no futuro E quando se revelar Vai ser em outro Brasil Tem força de bomba H Desejo que nos uniu Nossos verões dourados Se foram num segundo Tesouros naufragados Em mares tão profundos Logo vou resgatar O que será sempre meu Os mapas que levam lá Sereia me prometeu Não há corações a salvo Do tempo Que é pirata desalmado E atento Sempre transformando calmaria Em vento... a Raio de uma luz que brilha Por dentro Mostra que ainda temos Sentimentos Pra não terminar a fantasia Eu invento... “Mais um verão” faz uso de uma moda de viola para refletir sobre a destruição do planeta. Note-se a oposição entre a crítica à ganância (determinação econômica) e o deslocamento constante (indeterminação), este último marca da MLC (“Poder então/ Por tudo me repartir/ Ser como as folhas de outono/ Que voam sem direção/ Dormindo em qualquer jardim”). A ideia de “mais um verão” (passagem do tempo) é comunicada musicalmente pela sucessão de um gênero tradicional por outro marcado como “moderno”. - 387 “Mais um verão” (Almir Sater e Paulo Simões) Mais um verão Já lá se vai a fugir Por entre os dedos da minha mão E nada guardei pra mim Poder então Por tudo me repartir Ser como as folhas de outono Que voam sem direção Dormindo em qualquer jardim E a geração Que a tudo fez consumir Volta a temer profecias De astros em conjunção Será que chegou o fim? Aflição nem vou mais sentir Se o segredo é se divertir, ai, ai Eta velho mundo louco Não quer mais sorrir Entristeça, pois, enfim Por moedas de ouro e prata Quanta gente ainda se mata, ai, ai Eta velho mundo louco Quer se destruir Aconteça pois assim Mais um verão Já lá se vai a sumir Por entre os dedos da minha mão E nada guardei pra mim Mais um verão E só me resta fingir Ir ao castelo da ilusão Sonhando ser Aladim A incerteza e a indeterminação são os temas de “Geração” (em anexo, a gravação do álbum Pantanal Alerta Brasil), canção em que as metáforas do fluxo e do movimento constante se explicitam na comparação entre rios e destinos. “Geração” (Guilherme Rondon e Paulo Simões) Ventos que movem moinhos Deuses ocultos no ar Qual dentre tantos caminhos Devemos trilhar? Nós que tentamos não ser Como esse mundo pediu Se mudamos foi sem nem saber Por emoção tão sutil Cada tempo em seu tempo de ser Nos seduziu Rios que descem sozinhos Das cordilheiras ao mar Quando esses nossos destinos Irão se encontrar? Já não devemos temer Sobreviver por um triz Algum dia faremos nascer Benção da mesma raiz Esse filho que vem aprender A ser feliz Já o existencialismo se evidencia no próprio “Trem do Pantanal” (Geraldo Roca/ Paulo Simões), além de em “Campos de ilusão” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “No - 388 circo das ilusões” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Ordem natural das coisas” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Velhos amigos” (Paulo Simões) e “Vida bela vida” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões). A celebração da vida no interior é encontrada em “Boa terra” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Carnaval caipira” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Chamamé Comanda” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Comitiva esperança” (Almir Sater/ Paulo Simões), “Horizonte” (Guilherme Rondon/ Iso Fischer/ Paulo Simões), “Interior” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Invernada” (Almir Sater/ Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Morena que vale a pena” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Na subida do balão” (Almir Sater/ Paulo Simões), “No boteco de seu Roque” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Paiaguás” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Pesca Brasil” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Santa Branca” (Geraldo Roca), “Sonhos guaranis” (Almir Sater/ Paulo Simões) e “Terra boa” (Almir Sater/ Paulo Simões). Por sua vez, o amor romântico em suas múltiplas variações é o tema de “Coração teimoso” (Paulo Simões), “Relógio que atrasa” (Paulo Simões/Antonio Porto), “A fera e a bela” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Bolha de sabão” (Antonio Porto/ Paulo Simões), “Cachaça com ciúme” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Circuito fechado” (Geraldo Roca/ Paulo Simões), “Crime e Castigo” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Faminto e Sedento” (Antonio Porto/ Paulo Simões), “Idas e vindas” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Labaredas” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões/ Celito Espíndola), “O prazer e a honra” (Celito Espíndola/ Paulo Simões), “Pele a pele” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Quero quero” (Celito Espíndola/ Dino Rocha/ Paulo Simões), “Riacho dos desejos” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões), “Trem da solidão” (Paulo Simões), “Última boiada” (Guilherme Rondon/ Paulo Simões) e “Vaso quebrado” (Almir Sater/ Paulo Simões). - 389 - Geraldo Roca Escapando de qualquer tentativa de ser associado a uma ideia de grandiosidade ou épica a respeito da formação do estado, Roca propõe uma reconstrução dessas origens que passa pelo prosaico namoro de um índio guarani e uma filha de japonês, em “Japonês tem três filhas (Yoshiko-san)” (Roca, 1997). Não há, aqui, qualquer visão heroica, e até mesmo a noção de trabalho – frequentemente manipulada, em seus aspectos moralizantes, em proveito das classes dominantes – é relativizada, malandramente, pela perspectiva subjetiva do eu lírico guarani, que a atribui apenas ao japonês (“Plantação lá do japonês/ É coisa que eu nunca vi...”). No entanto, o aspecto mais marcante desta canção é a presença dos idiomas japonês e guarani de permeio ao português. Esta é uma maneira indireta, portanto sutil, de apontar para a cultura paraguaia, país bilíngue em que o castelhano e o guarani são, ambos, línguas oficiais. O canto nestas duas línguas, muitas vezes misturadas, é uma característica usual das polcas, guarânias e chamamés (para verificação e exemplos, consultar Higa, 2010). Bakhtin denomina esta característica de poliglossia, definida como a interação de duas ou mais linguagens nacionais no interior de uma dada cultura ou texto, e chama a atenção para o confronto e o conflito característicos deste tipo de discurso: A nova consciência criativa e cultural vive em um mundo ativamente poliglota. O período das linguagens nacionais, coexistindo, mas fechadas e surdas umas às outras, chega a um fim. As linguagens lançam luz umas às outras: uma linguagem pode, afinal, ver-se apenas à luz de outra linguagem. A ingênua e obstinada coexistência de “linguagens” no interior de uma dada linguagem nacional também chega a um fim – ou seja, não mais existe uma coexistência pacífica entre dialetos territoriais, dialetos sociais e profissionais e jargões, linguagem literária, linguagens genéricas no interior da linguagem literária, linguagens de época e assim por diante. Tudo isso coloca em movimento um processo de interiluminação e causa-e-efeito mútuo e ativo. As palavras e a linguagem começaram a apresentar uma sensação diferente; objetivamente, elas cessaram de ser o que haviam sido. Sob estas condições de interiluminação externa e interna, cada dada linguagem (...), por assim dizer, renasce, tornando-se, qualitativamente, uma coisa diferente para a consciência que nela cria. (Bakhtin, 2004, p. 12, grifo meu) 42 42 The new cultural and creative consciousness lives in an actively polyglot world. The period of national languages, coexisting but closed and deaf to each other, comes to an end. Languages throw - 390 “Japonês tem três filhas (Yoshiko-san)” (Geraldo Roca) Japonês tem três filhas Uma é Yoshiko-san Que é sua filha mais nova É uma linda cuña Ela é índia do Oriente Eu sou bugre daqui Falou comigo em japonês Respondi em guarani Plantação lá do japonês É coisa que eu nunca vi Lá nasce pé de pimenta Que mais parece caqui Lá cresce jabuticaba Do tamanho de maçã Mas sua fruta mais linda Se chama Yoshiko-san Wat-su renaide Ela foi me falando assim Respondi Namoai che ro rechave Wat-su renaide Um mistério termina aqui Japonesinha é minha cuñataí Yoshiko-san minha linda Yoshiko-san mi porã Não casaremos na igreja Nossa paixão é pagã Esquece o deus na igreja Venera o sol da manhã Desmaia o corpo na relva E diga pro seu galã Japonês diz que chegamos Nesse Mato Grosso do Sul Eu pelo Estreito de Bhering Ele pelo Atlântico Sul Yoshiko-san não se espanta Com a nossa origem comum Opera o microcomputador E espera a hora do amor Wat-su renaide Ela vem me falando assim Respondi eu então Namoai che ro rechave Wat-su renaide Um mistério termina aqui Japonesinha é minha cuñataí Wat-su renaide Você vai me falando assim E eu direi Namoai che ro rechave Wat-su renaide Um mistério termina aqui Japonesinha é minha cuñataî Japonês tem três filhas O aspecto musical mais evidente desta canção é o gênero, uma polca paraguaia. No entanto, como seria de se esperar, a instrumentação não se prende à tradicional, misturando o usual acordeão, com seu fraseado preservado, à bateria, guitarra e baixo elétrico (o que seria a light on each other: one language can, after all, see itself only in the light of another language. The naive and stubborn co-existence of “languages” within a given national language also comes to an end – that is, there is no more peaceful co-existence between territorial dialects, social and professional dialects and jargons, literary language, generic languages within literary language, epochs in language and so forth. All this set into motion a process of active, mutual cause-and-effect and interillumination. Words and language began to have a different feel to them; objectively they ceased to be what they had once been. Under these conditions of external and internal interillumination, each given language (...) is, as it were, reborn, becoming qualitatively a different thing for the consciousness that creates in it. - 391 transposição, para as “linguagens” musicais, do conceito de poliglossia). Da mesma maneira, a forma de tocar a guitarra não emula a utilizada pelo violão paraguaio, utilizando acordes e contracantos próprios do rock. Curiosamente, no entanto, Roca utiliza em sua performance vocal as notas melódicas de passagem por grau conjunto e salto com portamento tradicionais no canto paraguaio (p. ex., “Lá cresce jabutica-a-ba-a”... 2:10). Trata-se de mais uma homenagem sutil de Roca à cultura paraguaia, colocando em destaque o projeto de integração latino-americana. Tais homenagens são mais evidentes nas suas releituras roqueiras de canções populares paraguaias, como “Paloma blanca” (Roca, 1997). “Paloma Norton) blanca” (Neneto Amanota de quebranto Guyrami jaula pe guaicha Porque nda rekoi consuelo Mi linda paloma blanca Ayumiro ndo rotopai Aperdetema la esperanza Ambuassy voi ro haihu haque Mi linda paloma blanca Mi amor tan decidido Agoniza sin esperanza Che yucata tu inconstancia Ingrata paloma blanca Na hia i cheve assufrive Tanto tiempo esa tristeza Ahe chasse la nde promesa Chendive paloma blanca Sobre a reflexão a respeito do espaço local, merecem menção especial duas canções de Roca: “Litoral central” e “Rio Paraguai”. Ambas canções estão plenamente inscritas na ideia de promover uma reflexão sobre a situação do MS no interior da América Platina. Esta última representa o mais próximo que Roca se aproxima de uma épica da formação do estado, ao lembrar, de maneira afetiva, “O velho mistério (...)/ Os deuses e lições / A lenda recontada na voz / A voz da tradição em nós”. No entanto, a possibilidade de orgulho ufanista é afastada pela menção à participação do Brasil no genocídio paraguaio, testemunhado pelo próprio rio: “E as vítimas da guerra guaçu/ Que a história recolhia ao silêncio do rio”. O verso “O século vinte aportava do sul” faz referência à modernização globalizante que, como já foi dito, utilizou-se da navegação por este rio para atingir o estado de Mato Grosso antes da chegada dos trilhos a Campo Grande. Musicalmente, a alusão à biculturalidade se faz a partir de uma - 392 balada em 6/8, em que a subdivisão ternária associada à música paraguaia contrasta com a pulsação binária. “Rio Paraguai” (Geraldo Roca) A novidade vem atrás da tradição Aquela que não desmancha no ar Eu não Não se mergulha nunca mais No mesmo rio Rio Paraguai A tradição entre nós é você Rio Paraguai Das lendas e canções Na noite guaraniete Saudações Águas do Rio Paraguai O pai do meu pai Navegava no rio Nos tempos da linha Assunção-Corumbá O século vinte aportava do sul Num barco a vapor entre os sons E as dúvidas da paz E as vítimas da guerra guaçu Que a história recolhia ao silêncio do rio Na noite do Rio Paraguai Pelas gerações Mistérios na noite azul Ro hai ru Noites do Rio Paraguai No primeiro mundo A ciência refaz Os rios que a indústria matou Mas então As águas imundas revivem azuis O velho mistério não mais Os deuses e lições A lenda recontada na voz A voz da tradição em nós Guaraniete Rio Paraguai, etc... Rio Paraguai ro hai ru Guaraniete Rio Paraguai Sempre, pra sempre e sempre O Rio Paraguai Rio Paraguai A tradição entre nós é você Meu velho Rio Paraguai Das lendas e canções Da noite guaraniete Saudações Águas do Rio Paraguai Sempre você Por onde a história passou Entre nós Como foi dito, “Litoral central” trata do tema da América Platina. Nesta canção, híbrida de polca e rock, um convite de amor serve como pretexto para delinear a diferença deste espaço singular. - 393 “Litoral Central” (Geraldo Roca) Multidão nunca foi o meu mal Eu tenho um plano de fuga Pra nos tirar dessa roma Se você me acompanhar Além do velho oceano Águas do rio acima Pro meio de nenhum lugar E o que faremos ali A rainha e o rei Você se revelará E eu te conhecerei Te conhecerei Rainha do meio do nada Te seguirei Servo do teu amor Pelo silêncio do mar interior No litoral central No litoral central Multidão nunca foi o meu mal O litoral tem cidades Com ruas cheias de gente Nem vamos desembarcar Retorna eternamente Nosso navio fantasma Segue pro mesmo lugar Brincam na embarcação A rainha e o rei Eu te darei o céu Ontem você foi má Hoje eu sou cruel Rainha do meio do nada Esse nosso amor É a zona de vendaval Na calmaria do mar Interior No litoral central No litoral central Multidão nunca foi o meu mal O litoral tem cidades Palmira, Rosário, Corrientes Não vamos desembarcar No entanto, a perspectiva de Roca sobre o local é contraditória, abarcando também críticas. Elas se fazem mais perceptíveis em músicas como “Sobre a cidade média” (2003). A canção, uma melancólica balada, se refere, evidentemente, a Campo Grande, cidade média cujo coração “não bate não”. - 394 “Sobre a cidade média” (Geraldo Roca) No tédio da cidade média O som de um avião Que decola na madruga Sempre soa como a fuga Pra uma festa sideral Meu filhinho dorme agora E se assusta com o barulhão Do avião e da rapaziada Que reclama com razão Da calçada Cidade média, o teu coração Não bate não Não bate nada Cidade média, o teu coração Não bate não Não bate não Cidade média, o teu coração Não bate não Não bate nada não Nossa saída É embarcar no Corujão... O lado beatnik de Roca se evidencia em seu olhar afetuoso para os marginalizados criativos que não encontram seu lugar na corrida de ratos, como em “Mais loucos do que a média”. Aqui, assume a posição de um ancestral narrador da tradição oral para contar a história de “párias da velha ordem” que não esqueceu. - 395 “Mais loucos do que a média” (Geraldo Roca) Visitantes à minha volta Atenção um instante Que eu vou contar uma história aqui Que é de perdedores e solitários Fabricantes de sonhos De gente que eu conheci Mais louca do que a média Gente assim Que nem Bárbara Ventura Linda e só Que dançou pelos lugares, nua Por uma grama e alguma atenção Era ávida demais Além do permissível Intensa demais Bárbara Ventura Mais louca do que a média Mais louca do que a média Viajantes em volta de mim Me ouçam mais um instante Que eu tô contando uma história aqui De solitários e dinossauros, Párias da velha ordem A quem eu não esqueci Mano Beto era Brilhante, sim senhor Escreveu nove romances Mais um memorial Mas achando irrelevante, ao fim, o material Juntou seus originais e rasgou Lúcido demais, velho mano Beto Mais louco do que a média Mais louco do que a média Amigos em volta de mim Por favor não se cansem Que a minha história vai terminar Mano Beto e Bárbara já se foram Filhos da velha ordem Mas não é necessário chorar Arrivistas e bundões se dão bem Mas o fato não é novo pra ninguém Radicais desorientam a mim também Que ainda espero a revanche pintar É muito devagar A máquina do tempo E é rápido demais Meu cérebro inútil Mais louco do que a média Mais louco do que a média Rápido demais Mais louco do que a média Qualquer visão otimista e autocomplacente é afastada com o niilismo de “Eu vou bem”, com sua ironia crítica à vida ao interior, ao rei do gado, à salvação pela química, ao velho mundo europeu e à globalização – a vida não tem solução e não vai bem em nenhum lugar. Neste contexto, “Eu vou bem”, na primeira pessoa, só pode significar uma ironia voltada ao próprio eu lírico que profere a frase, e, por extensão, aos que se identificam com - 396 sua posição, experimentando a mesma náusea. Também irônico é o comentário musical, um enérgico folk rock que contrasta com o tédio e desencantamento expresso na letra. “Eu vou bem” (Geraldo Roca) Não me aborreço no interior Seus milharais, caipiras canários Falta cultura, grana não tem Aquela terra de ninguém Eu vou bem e No exterior não me incomodam Os seus museus E lei pra imigrantes Caros demais os restaurantes O velho mundo não vai bem Eu vou bem O rei do gado, vem pro leilão Situação de queda na arroba Ligeira alta na cotação Quatorze dólares além Eu vou bem O maioral da exportação Faz o balanço no real e no yen Minha botina é florentina O paletó é nacional Eu vou bem Eu vou bem Caipiras e canários Eu vou bem Eu vou bem Botina florentina Eu vou bem A salvação pela mágica Mistério da luz A luz pela química Prozac, a paz A paz, pela lógica Meio bilhão de reais Isso é paz Não me aborreço no interior No litoral, no exterior No coração do matão, não A noite cai, o dia vem A vida não tem solução Eu vou bem Eu vou bem Não tem solução, não Eu vou bem Outras canções de Roca que não podem deixar de ser mencionadas são “Uma pra estrada” e “Mochileira”. Ambas invocam o ideal andarilho fundamental para a contracultura, e que se articula com a característica central da MLC, o movimento constante. - 397 “Mochileira” (Geraldo Roca) Moça deixe que eu ligue Meu olhar em você Você é mesmo uma cigana bonita Mochileira deite Comigo esta noite Conte alguma velha história De umas noites de mágica Em Machu-Pichu E uns dias dourados na Califórnia O encanto se foi Mas você diz acreditar No bem e na revolução No amor, no pé na estrada, no zen Sua vida é um trem indo embora Trens, estradas, cidades Que a mim já não empolgam Meu bem, a minha alma adoece No Rio ou no Nepal O meu mal, nenhuma certeza O seu a certeza total Dança mochileira então E aquece a minha alma Mochileira, etc. Você tem o dom De viver em qualquer lugar Mesmo quando o medo vem E uma noite nos Andes é fria Mas o frio ele é fácil De espantar e os deuses Sabem que a estrada Ainda é uma farra e depois O trovão não assusta Alguém com essa cara de ser O tipo de cigarra Que canta na chuva Dança mochileira Que eu toco a guitarra “Uma pra estrada” (Geraldo Roca) Agora pra mim Dona Música Porque esse dia foi de amargar Me arranje o gole que acalma Me aplique a dose que salva Uma pra estrada, Dona Música. Faz essa mágica funcionar Já que meu bem não se encontra Eu só consigo pensar O que não me acontece aqui Calor não me acontece, Sem chance de romance aqui Sem ela, não... nenhum romance Música pra ela Música pro cara sem ela Simples assim Uma pra estrada Toque a canção pra mim Dona Música Já que meu bem não se encontra Eu só consigo pensar Uma pra estrada Dona Música Faz essa mágica funcionar Já que meu bem não se encontra Eu só consigo pensar Enquanto uma canção percorre Máquinas e nuvens Eu chego até onde ela está Provando que a ciência é útil Música pra ela Música pro cara sem ela Simples assim Eu penso nela enquanto a noite não acaba Então será eu e você Me arranje algum motivo pra sonhar Pra sonhar Dona Música Almir Sater O estilo de Almir Sater inclui canções bastante sentimentais, românticas e nostálgicas. Fazem parte dessa sua face reinterpretações de sucessos sertanejos no antigo sul de Mato Grosso e - 398 em todo o Centro-Sul caipira, como “Chalana” (Mario Zan/ Arlindo Pinto), “Moreninha linda” (Tonico e Tinoco) e “Cabelo loiro” (Tião Carreiro/ Zé Bonito). - 399 “Chalana” (Mario Zan e Arlindo Pinto) Lá vai uma chalana Bem longe se vai Navegando no remanso Do Rio Paraguai Ah! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor Ah! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor E assim ela se foi Nem de mim se despediu A chalana vai sumindo Na curva lá do rio E se ela vai magoada Eu bem sei que tem razão Fui ingrato Eu feri o seu pobre coração Ah! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas tão serenas Vai levando meu amor Ah! Chalana sem querer Tu aumentas minha dor Nessas águas “Moreninha linda” (Tonico e Tinoco) Meu coração tá pisado como a flor que murcha e cai Pisado pelo desprezo Do amor quando se vai Deixando triste a lembrança Adeus para nunca mais Moreninha linda do meu bem querer É triste a saudade longe de você O amor nasce sozinho, não é preciso plantar O amor nasce no peito, falsidade no olhar Você nasceu para outro, eu nasci pra lhe amar Moreninha linda do meu bem querer É triste a saudade longe de você Eu tenho meu canarinho que canta quando me vê Eu canto por ter tristeza, canário por padecer De saudade da floresta, e eu saudade de você “Cabelo loiro” (Tião Carreiro/ Zé Bonito) Cabelo loiro vai lá em casa passear Vai, vai cabelo loiro Vai cabar de me matar Estou na sombra da noite Pensando na luz do dia O dia inteiro penso estar À noite em sua companhia Você diz que bala mata Bala não mata ninguém A bala que mais me mata É o desprezo do meu bem Casa de pobre é ranchinho Casa de rico é de telha Se ter amor fosse crime Minha casa era cadeia Quanto mais tu me despreza A dor no meu peito inflama Quem eu quero não me quer E quem eu quero não me ama Beija flor que beija a rosa Se despede do jardim Assim fez o meu amor - 400 tão serenas Quando despediu mim de Isso não esgota as características de suas composições e interpretações, pois é, também, bastante influenciado pelas músicas folk e country, gêneros com os quais busca modernizar canções caipiras, como fica evidente em “Moreninha linda” e “Cabelo loiro”. O folk e o country também são veículo para canções mais recentes, como “Cavaleiro do Luar” (Almir Sater/ Joao Bá) e “Índios adeus” (Almir Sater/ Renato Teixeira). Além desses gêneros, Almir incorpora, discretamente, certos elementos do rock progressivo e teclados pop à sua concepção regional. - 401 “Cavaleiro do Luar” (Almir Sater / Joao Bá) Vem o vento e vai Passando pelas folhas Varre o céu e vê o cavaleiro do luar Eu criança No batente da porteira Debruçado na janela das estrelas Também sonho ser o cavaleiro do luar Galopar Pela poeira do caminho Querendo os homens, meninos “Índios adeus” (Almir Sater e Renato Teixeira) Quem chegou primeiro Veio do estrangeiro E os tupiniquins Receberam lindos presentes De pedras baratas, porém Vício bateu Índios ateus, desce então Tudo que se sonha E liberta as asas da imaginação É o que se pratica Nas ondas do tempo Nos astros e lendas Longe do chão Índios ou não, ilusão Repare no firmamento Que o céu azul foi pintado Num letreiro estrelado Procuro onde é que estão Índios ou não, ilusão E o futuro é isso Não serão as guerras Nem será Tupã Restará pra gente As noites ardentes Os dias urgentes Cada manhã Índios jamais, Deus Trovão. Surpreendentemente, sua música é mais identificada com os gêneros mineiros em que pontifica a viola – instrumento no qual é virtuose – do que com os gêneros paraguaios, mais influentes no MS. Esta característica está evidente em canções como “Hora do clarão” (Almir Sater) (da novela Ana Raio e Zé Trovão), “Toque de viola” (Almir Sater) e “Pagode bom de briga” (Almir Sater). Este parece um dado fundamental para a compreensão do sucesso de Almir vis à vis seus companheiros de MLC. Com efeito, na música de Almir não se percebe uma especificidade sul-mato-grossense. Isso lhe traz mais liberdade para incorporar em seu estilo os gêneros de viola mineiros, a música goiana e o caipira paulista e paranaense, além do mato-grossense e do sul-mato-grossense (estes últimos até hoje indistintos para o grande - 402 público). As possibilidades de identificação, por parte dos interioranos de todo o Centro-Sul, são, assim, consideravelmente ampliadas. Outro elemento importante de seu estilo diz respeito ao discurso da pureza primitiva e da autenticidade, partilhada com parceiros constantes como Paulo Simões e Renato Teixeira (compositor e músico consagrado, neo-caipira paulista apaixonado de longa data pela MLC). As canções dessa vertente, com diferentes parceiros ou inteiramente de sua autoria, falam de valores de firmeza moral, simplicidade, constância, generosidade, honestidade e outras virtudes, algumas heroicas, associadas aos interioranos. Com abundância de metáforas agrárias como “plantar e colher”, “esse chão” e “meu lugar”, fornecem as certezas das raízes, ao contrário da perpétua busca angustiada por algo que se desconhece, e que caracteriza a produção da MLC marcada pelo movimento perpétuo, pelo deslocamento dos sentidos e pela superficialidade. Este é o caso, por exemplo, de “Hora do clarão”, “Razões” (Almir Sater e Paulo Simões), “Um violeiro toca” (Almir Sater e Renato Teixeira) e “Milhões de estrelas” (Almir Sater e Paulo Simões). - 403 “Hora do clarão” (Almir Sater) Ana Raio e Zé Trovão diz a sabedoria Tudo o que acontece hoje aconteceu um dia Se esse mundo é o nosso pai o tempo é a magia Que nos mostra a direção sem medo nem poesia Viver é a nossa alegria, seguir é a nossa missão E tudo se resume estar aqui um dia Noutro dia não Ana Raio e Zé Trovão Ana Raio e Zé Trovão mulher e valentia Um conhece a direção a outra a estrela guia Um caminha pela luz a outra se alumia São as cores do destino que os diferencia Um dia, é um dia, é um dia Que nasce do seu coração E tudo se resolve na hora da aurora Hora do clarão Ana Raio e Zé Trovão Ana Raio e Zé Trovão quem disse que sabia Onde andará o vento quando é calmaria Quem decide esta questão quem é que avalia A nascente da canção, a mágica do dia Pensar só nos traz alegria Saber já é outra questão Somente quando sonha o homem vai ao céu E o resto é pelo chão Ana Raio e Zé Trovão “Milhões de estrelas” (Almir Sater) Nesse Mato Grosso Desde os tempos de menino Quando eu comecei a percorrer Os seus caminhos Desse chão eu fiz o meu lugar Nos meus sonhos quis plantar E a colheita há de vir “Razões” (Almir Sater / Paulo Simões) Conte comigo meu amigo Se for pra te dar a mão Mas se for pra correr perigo Que seja boa a razão Conte comigo que eu brigo Se for esta a condição Para que a gente realize então Aquela velha mas sincera ambição Conte comigo eu te sigo Para enfrentar o castigo Ou ter glórias de um campeão Escute amigo um aviso Que eu te dou por precaução Fui educado à antiga E prezo ter reputação Mas conte comigo Eu te sigo ao chegar A decisão E não aceito recompensa Se a gente faz o que pensa Não quer remuneração E a gente vai realizar Pois não, aquela velha Mas sincera ambição Conte comigo eu te sigo Para enfrentar o castigo Ou ter glórias de um campeão “Um violeiro toca” (Almir Sater / Renato Teixeira) Quando uma estrela cai, no escurão da noite, e um violeiro toca suas mágoas. Então os "óio" dos bichos, vão ficando iluminados Rebrilham neles estrelas de um sertão enluarado. - 404 - Como as cachoeiras Nos teus rios cristalinos Toda essa pureza deve ser Um bem divino E pode a nossa sede saciar Nosso campo abençoar Gerações fazer florir Quando o amor termina, perdido numa esquina, e um violeiro toca sua sina. Então os "óio" dos bichos, vão ficando entristecidos Rebrilham neles lembranças dos amores esquecidos. Sou feliz aqui Terra de gigantes Onde bravos índios viviam antes Onde além de ouro e diamantes Tem milhões de estrelas No horizonte Quando o amor começa, nossa alegria chama, e um violeiro toca em nossa cama. Então os "óio" dos bichos, são os olhos de quem ama Pois a natureza é isso, sem medo, nem dó, nem drama Tudo é sertão, tudo é paixão, se o violeiro toca A viola, o violeiro e o amor se tocam... Sou feliz aqui Terra de gigantes Onde bravos índios viviam antes Onde temos ouro e diamantes Nas milhões de estrelas No Horizonte No entanto, a forma com que estes sentidos e significados são comunicados transmite modernidade e atualidade, características com as quais este público se identifica, ao contrário das antigas duplas caipiras, estigmatizadas por esta recepção como símbolo do “atraso”. Sendo assim, se a música caipira tradicional é associada, no imaginário das classes médias nacionais, ao personagem-símbolo Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, a música de Almir Sater celebra certos valores dignificados por aqueles setores sociais, mas apenas após terem passado pelo filtro da modernização desenvolvimentista. Tudo isso junto construiu um estilo marcado pela noção de autenticidade, mas que, ao mesmo tempo, não é especificamente vinculado a um só espaço regional, como o MS. Tomando elementos caipiras de todo o Centro-Sul e modernizando-os com competência, Almir foi capaz de inserir-se em uma recepção historicamente favorável da classe média “nacional” às coisas do campo veiculadas pela indústria cultural, conotadoras da pureza e do paraíso perdidos. Isso é confirmado, entre outras evidências, pela resenha, já discutida, que vê em “Doma” um exemplo musical do “Pantanal legítimo, rústico e belo”. - 405 Por estas razões, colocada no contexto que estamos acompanhando nesta tese, a música de Almir representa a descontinuidade da reflexão voltada para o espaço urbano da cidade de Campo Grande, que caracterizava a MLC. A novela Pantanal, que revelou Almir para o grande público nacional, prestou-se a confirmar os estabelecidos estereótipos do MS rural, indistinguíveis daqueles que representam o restante do Centro-Sul também rural. A música de Almir, portanto, foi um grande achado para a novela, pois veio ao encontro de suas necessidades empresariais. Conforme diz Paulo Simões sobre o parceiro, O Almir (...) surgiu prometendo às gravadoras o que buscavam desde os anos 1970, um sertanejo universitário. Mas o Almir se recusou a ser o líder que as gravadoras queriam, até a hora que botou a cara na novela, o que ocasionou ter sucesso como músico com plateias que em sua maioria relativa vão ouvir o ator que canta. O sucesso que o Almir faz como ator de novelas é desproporcional ao sucesso dele como cantor e compositor, se levarmos em consideração as vendagens dos discos e a execução nas rádios. (Simões, 2009) Portanto, segundo a análise de Simões, Almir foi inserido – ainda que à força – na categoria disponível para ele, que é a de um tipo de sertanejo “universitário”. Esta chancela dos setores dominantes busca legitimar parte da música sertaneja, construindo uma nova categoria que pode ser consumida por aqueles que possuem algum tipo de rejeição com relação ao sertanejo mais tradicional. Verifica-se, no entanto, que não há diferenças fundamentais entre os universos temáticos dos dois gêneros, o que nos permite compreender a popularidade de Almir nos termos de uma modernização e atualização de antigos desejos das populações nacionais com relação ao imaginário pastoral. A reflexão de Simões é importante para manter em mente o fato de que não há explicações causais mecânicas para o sucesso comercial. No caso de Almir, não se pode reduzir seu sucesso às interpretações propostas nesta seção. Há que se considerar uma infinidade de possibilidades, como o fato de que ele alia diversos talentos, de cantor, compositor e instrumentista virtuose. Além disso, possui uma bela estampa, o que foi essencial para seu sucesso nacional, que veio apenas a partir de sua participação nas novelas – de acordo com Simões, as plateias de Almir “vão ouvir o ator que canta”. É necessário, ainda, - 406 para refletir sobre o sucesso, considerar o que muitas vezes é denominado de “carisma”, ou aquele imponderável que faz com que, entre dois artistas de estilo quase idêntico, um seja bem sucedido e outro não. Entretanto, sem pretender oferecer uma explicação única, busco, aqui, apresentar uma interpretação meramente plausível para pensar as diferenças marcantes de popularidade entre estilos diferentes na MLC, que não poderiam ser explicadas por uma falta de talento da parte dos outros artistas. O estilo de Almir busca uma integração do Centro-Sul brasileiro interiorano, ao contrário de grande parte da MLC, que procurou estabelecer uma diferença e um conflito, a partir da situação peculiar da cidade de Campo Grande, com suas hibridações de músicas latino-americanas, brasileiras e transnacionais. A aceitação da música de Almir no eixo RioSão Paulo (que apresenta problemático relacionamento com o chamado “gosto nacional”), frente à rejeição da música dos outros compositores de sua geração, é evidenciada pelo crítico de Veja Okky de Souza, no início da década de 1980: “[Almir] é o que vai mais longe na proposta de tornar o som sertanejo saboroso para o ouvido da cidade” (Okky de Souza apud Guizzo, 1982, p. 24). A música de Almir incorpora as inovações modernizantes que influenciaram a música sertaneja, notadamente a Jovem Guarda, mas preserva seu romantismo característico. Realmente, trata-se de uma música rural com características modernas, atuais, pronta a articular-se à histórica demanda dos centros de consumo por mercadorias que possam, a um só tempo, conotar a suposta pureza primitiva dos sertanejos, desde que aberta à modernização capitalista. Essa demanda é regressiva, na medida em que tende a valorizar o rural modernizado, com suas relações de poder preservadas, desinteressando-se de reflexões que investiguem as razões para a primazia dada ao rural face à urbanização. Tais reflexões, ao contrário, foram - 407 empreendidas pela MLC inicial, uma música tensa, com mais dúvidas do que certezas, correspondendo à procura de um caminho próprio, independente e singular para a urbanização do MS. Residem aí, talvez, em algum grau, explicações para os impasses encontrados pela MLC, bem como para o sucesso nacional de Almir Sater. Terra da Jacarelândia: críticas e movimentos de ruptura. A somatória das mediações introduzidas pela novela Pantanal com a associação da imagem dos compositores e intérpretes a instituições públicas e privadas fez com que surgissem críticas e movimentos de ruptura a esses músicos, denominados com intenção pejorativa de “os prata da casa”. Desde 1982, o Prata da Casa, ao selecionar e valorizar aspectos mais regionais dos repertórios dos artistas, contribuiu para despertar essa oposição. Com efeito, apesar da importância da postura roqueira para vários dos artistas da MLC, como foi mencionado em vários depoimentos sobre suas experiências iniciais, na hora de gravar o disco optou-se por fixar uma imagem em parte bucólica e inofensiva da produção musical do estado. Esta opção está plenamente inserida no processo ideológico discutido até aqui, de construção de uma identidade cultural do estado nascente visando a hegemonia das elites agrárias ascendidas ao controle do aparelho ideológico de Estado. A reação já se fez sentir no mesmo ano, quando do surgimento da banda Poranguetê. Segundo Rodrigo Teixeira, “[o] fato de o Poranguetê batizar o próprio som de 'Rock de Botina' evidenciava a vontade de nomear um estilo e se diferenciar da produção sonora do Prata da Casa” (Teixeira, 2006). No entanto, o Poranguetê não chegou a afirmar o “rock de botina” como um movimento à parte da MLC, passando a inserir-se nesse mesmo movimento, como uma de suas múltiplas e diferentes vozes, em minha opinião. Isso é evidenciado, entre outras coisas, pelo fato de que seus músicos, pelo menos os profissionais, sempre estiveram ligados à MLC, - 408 e assim permanecem até a atualidade. Os integrantes do grupo eram Antônio Porto, ou Toninho Porto (contrabaixo), Pedro Ortale (violão), Geraldo Ribeiro (percussão e violão), Lenilde Ramos (acordeom), Cacá (bateria) e Celso Cordeiro (flauta). A forte conexão de Lenilde Ramos com a MLC já ficou suficientemente estabelecida. Antônio Porto, músico talentoso com uma carreira internacional, participou de diversos momentos importantes do movimento, como o Pantanal Alerta Brasil, e atua como músico, arranjador, diretor musical ou produtor em muitas das realizações atuais da MLC. O baixista Pedro Ortale também sempre esteve envolvido com as produções da MLC. O mais crítico de todos, com relação a este movimento, é o compositor Geraldo Ribeiro. Carioca, radicado em Campo Grande há décadas, com forte envolvimento com a MLC, mesmo assim se vê em liberdade para não se conectar às facetas nativistas e puristas do movimento. Sua música e letras são fortemente irônicas e mesmo sarcásticas, e seu humor ferino se volta contra todos os ícones sentimentais valorizados pela MLC institucionalizada, inclusive os gêneros musicais regionais (como se ouve em “Rabo de arara”, em anexo). Ainda assim, procura explorar, de maneira mais tradicional, a estética da mistura dos gêneros transfronteiriços proposta pela MLC (ouvir “Suíte pantaneira”, por exemplo). Por esta razão e pela sua busca constante de atuação conjunta com representantes da MLC, como se verifica desde o caso do Poranguetê, acredito ser seguro afirmar que Geraldo Ribeiro é uma voz dissonante, mas que se insere, de forma zombeteira, no próprio movimento, como uma consciência crítica, em vez de se constituir como uma negação completa, ou busca de construir algo inteiramente desvinculado e independente. Segundo Teixeira, o Poranguetê foi a primeira banda campo-grandense a se apresentar no Circo Voador, no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 1982 (sendo que Geraldo Espíndola já havia se apresentado lá com o grupo Lodo) (Teixeira, 2006). O testemunho de Teixeira - 409 evidencia uma atitude roqueira do grupo (que não realizou gravações de seu trabalho) claramente destoante da postura, já conservadora, do Prata da Casa: Fui testemunha, sentado na arquibancada coberta do estádio Morenão, da performance do Poranguetê na abertura do show de Kleiton e Kledir, astros na época! A imagem que me vem é a de uma banda de rock rural. Me remetia inclusive ao som do Almôndegas, banda que Kleiton e Kledir tinham no Sul antes de virar dupla famosa. Mas a fusão do regional com a MPB e a postura roqueira estavam ali. (Teixeira, 2006) Ou seja, o Poranguetê se insere nos mesmos interesses dos compositores e intérpretes da MLC desde seus primórdios, ao promover uma “fusão do regional com a MPB e a postura roqueira”. Coloca-se, assim, em oposição a outros músicos e grupos que passaram a surgir nos anos 90 e que se vinculam à música eletrônica ou a diferentes vertentes do rock, recusando explicitamente qualquer referência à MLC ou ao universo musical local. O próprio Teixeira se coloca, inicialmente, em oposição à “geração Prata da Casa”. No seu caso, já há a nítida intenção de constituir um movimento, que foi denominado pelos membros de polca-rock. Toco desde 86 e estou ativo na cena cultural de Campo Grande desde essa época. Comecei tocando com Carlinhos Colman, que era meu professor de violão. Meu primeiro show profissional foi Carlinhos Colman e Olho de Gato, então já comecei pelo lado mais pop, digamos assim, daqui da capital. O Olho de Gato era uma banda que fazia tudo diferente do que era na época, que era uma coisa mais elétrica, arranjos mais pop, aqui o pessoal fazia rock ou fazia essa música “prata da casa”. (Teixeira, 2009a) Rodrigo acredita que o momento em que se inicia na música coincide com o início da mentalidade desenvolvimentista na cidade de Campo Grande. Além disso, ele considera a MLC como um movimento mais antigo, voltado para um som acústico e sossegado, diferentemente do seu, eletrificado e agressivo: E ali peguei de quando Campo Grande começou a querer ser mais urbana. Ter uma visão mais urbana, mesmo, quando começou a chegar mais gente, também. Então foi natural a gente já querer misturar. Não querer dar um prosseguimento a essa geração Prata da Casa, mas já querer incutir uma coisa mais urbana naquela linguagem, e fazer música mais elétrica do que com violão e tal, que era... o DNA mais natural, até então, digamos assim... [Esse som começa a surgir em] 1988. Porque tinha algumas bandas de rock, que eram Alta Tensão, Zutrik, que já era mais antiga, não tinham muitas bandas de rock, eram duas ou três, na verdade. E o que a gente queria era isso, “pô, como que a gente faz pra...” E junto com [o baterista] Caio Ignácio, no final da década de 80, o Caio era muito ligado nas coisas que vinham de fora, já falava do - 410 [instrumentista nigeriano] Fela Kuti naquela época, e essa coisa da mistura. (Teixeira, 2009a) Entretanto, nos projetos de Rodrigo e Caio Ignácio, fica evidente que buscavam também, como a MLC, integrar o regional e o global. Daí surge a polca-rock: E a gente conversava de como a gente fazer uma linguagem mais urbana pra música daqui, que tivesse mais a ver com a cidade do que com o campo, e como utilizar esses elementos da fronteira, que [são] a polca, a guarânia, esse ritmo ternário de uma maneira mais atual e mais urbana mesmo. Como que a gente iria eletrificar a polca, daí que veio a polca-rock. Com esse nome, e tal. Em 88, 89. Por aí, no final dessa época. [O nome do grupo era] Rodrigo Teixeira e Banda, virou Rodrigo Teixeira e Mandioca Loca e depois virou Mandioca Loca (...) Era eu, Fernando Bola [bateria] e Pedro Ortale [baixo]. E o Caio [percussão/bateria]. Que era um núcleo, digamos assim, primeiro. (Teixeira, 2009a) A ideia da polca-rock se torna mais definida com a conexão feita com Jerry Espíndola, que já estava desenvolvendo um trabalho nesse sentido: O Jerry [Espíndola] tinha feito umas músicas já com essa levada em três [em compasso ternário], o Caio tocava [a música] “Colisão”, do Jerry, que era uma música de [19]85 que o Jerry tinha feito com Ciro Pinheiro, de São Paulo, que era o companheiro dele de Incontroláveis, que era a banda em que ele tocava na década de 80. Então aí que foi a fagulha que veio desse movimento... Que eu não falo que é movimento, é uma... uma maneira de tocar daqui diferente, e tal. Que foi chamada de polca-rock. (Teixeira, 2009a) Mesmo não tendo chegado a se consolidar como movimento, produziram um “Manifesto da Polca-Rock”, segundo a pesquisadora Isabella Banducci Amizo (Amizo, 2005, p. 51). De acordo com Caio Ignácio, “era uma proposta de universalização da nossa música, que tinha também como referência alguns movimentos artísticos como a Tropicália, a Semana de Arte Moderna de 22, a vanguarda de Nova Iorque e a Pop Art de Andy Warhol” (Ignácio apud Amizo, 2005, p. 51). Certamente, a adesão da MLC ao discurso regionalista expôs o movimento a esses questionamentos. Na fala dos seus críticos, como estamos acompanhando, a MLC é descrita como “muito voltada ao rural”, “acústica”, “sossegada”. Com certeza, essas características não faziam parte da MLC nos seus primórdios, passando a ser proeminentes de maneira gradual, não-deliberada, quase imperceptível, à medida que seus artistas pressentiam que tais características musicais e poéticas seriam mais valorizadas em um momento em que - 411 predominou a preocupação com a construção de uma identidade cultural do MS. Como tal, a intensa e descompromissada hibridação buscada por Caio Ignácio, e a atitude roqueira mais agressiva preconizada por Rodrigo, inserindo em suas canções as fusões transfronteiriças desenvolvidas pela MLC, participam da preocupação inicial desse movimento. A busca por uma reflexão sobre o processo de urbanização de Campo Grande por Rodrigo e Caio, a partir da posição subalterna da cidade no interior da América Platina, sugere a retomada das inquietações que motivaram os compositores dessa música regional a constituir o movimento. O fato de que percebem ser necessário sacudir as estruturas dele é indicativo da institucionalização e ausência de renovação e energia que passaram a caracterizar a MLC. A agressividade voltada contra o movimento, bem como a busca de elementos musicais que pudessem diferenciar a música das gerações mais novas daquela produzida pelos “prata da casa”, visam também exprimir a insatisfação e a revolta pela não participação nas estruturas e projetos oficiais. A diferença, para os artistas mais jovens, passa a ser buscada ativamente, para exprimir conteúdos que não são parte de uma estética “desinteressada”, mas abertamente ideológicos, buscando o confronto (conflitos geracionais). A identidade regionalista, como objetivo das elites para consolidar sua hegemonia, é o pivô em torno do qual circulam, em atrito, os discursos verbais e musicais vinculados à canção urbana de Campo Grande. E essa polca-rock também pregava essa substituição de gerações. Falava [enfático] “Não existe só os Prata da Casa, a gente tá aqui, a gente tá vivo, porra!”, entendeu? “Vamos virar o disco” e “Tem uma nova galera fazendo aí”, e tal. A pressão dos Prata da Casa nessa época era muito forte. Aqui dentro, dentro dos projetos do governo, dentro da pouca oferta que tinha, sempre tava nos mesmos, mais nesse sentido, né. E que a gente tentava despregar isso, também. Foi quando a gente começou a tentar fazer a Coosmap, que era a Cooperativa dos Músicos de Mato Grosso do Sul... Cooperativa dos Músicos do Pantanal, um negócio assim. Que não durou dois dias... porque não tinha mesmo essa visão. (Teixeira, 2009a) - 412 Portanto, a falta de espaço nas iniciativas oficiais, por parte da geração mais jovem, espelha exatamente o fato de que sua música não se prestava a exprimir a identidade das elites dominantes, ao contrário da MLC institucionalizada. Nessa mesma época, essa geração, chamada de Prata da Casa, seria referida pelo jornalista da cultura Alex Fraga como “Jacarelândia”. O termo pejorativo expressava a tensão existente entre os músicos e a população mais jovem e a primeira geração da MLC, explicitando, portanto, um conflito que se dava basicamente em torno de uma disputa por posições de poder. Entretanto, como a questão do poder está inteiramente vinculada à representação, essa disputa se materializava musicalmente, entre canções tendentes ao nostálgico, campestre e melancólico, e canções mais agressivas. Por meio destes discursos musicais, colocavam-se em embate aqueles que se situavam mais próximos das instâncias decisórias e da aprovação da sociedade mais ampla, com um discurso mais tradicional, e aqueles que procuravam tornar explícita sua revolta, utilizando músicas destoantes desse discurso. No entanto, a iniciativa de implantar a polca-rock nos anos 1990 terminou interrompida pelos projetos pessoais de seus proponentes, sendo reatada nos anos 2000, agora influenciada pelo ideário desenvolvido em torno do movimento manguebeat. Mais uma vez, assumia-se a busca de fusão do regional com o global (que se diferencia da busca de uma identidade regionalista, que é, justamente, o ponto de discórdia problematizado por Rodrigo e seus amigos), buscando um caminho próprio para a urbanização de Campo Grande. E é interessante notar, na fala de Rodrigo, a preocupação em produzir uma reflexão crítica sobre modelos alternativos de modernização a partir das músicas tradicionais regionais, exatamente como propunha a MLC original: E daí, depois, o que aconteceu? A gente foi morar em São Paulo, eu e o Caio, e o Jerry voltou pra cá em [1992]. Daí a polca-rock praticamente parou. Lá em 2001 que a gente voltou e fizemos os discos, o meu, o do Jerry, que chamou Polca-Rock também... Agora que está essa coisa meio que sedimentando esse gênero, digamos assim. E que foi uma coisa pensada mesmo na época do (...) Chico Science. Tava - 413 rolando o manguebeat e a gente tava pensando isso aqui também. Nessa mesma época (...). E que eu acredito realmente que é uma música sul-mato-grossense. Com influência do Paraguai. Por que que a gente não pode fazer essa música com influência do Paraguai? Por que incomoda tanto uma parcela da intelligentsia? Pegar música dos Estados Unidos pode, mas pegar música do Paraguai não pode, porque? É menos minha? Entendeu? E foi muito louco, porque quando a gente foi tocar no Paraguai, em Assunção, em 2004, no festival Gira Palermo, lá, a gente era os mais paraguaios dos paraguaios! Porque a gente chegou e a moçada do Paraguai tava tocando tudo rock, heavy metal, camisa de Led Zeppelin, e a gente tocando polca-rock! A moçada não acreditou, não entendeu nada! A gente tocando 3/4 furioso, véio. E eu lembro que antes do show a gente fez um show aqui em Campo Grande, a moçada ficou tudo olhando, assim, sabe, ninguém entendendo nada [muxoxos de desdém], “ah, que coisa mais estranha”, e tal, e lá no Paraguai os caras piraram [gostaram]. (Teixeira, 2009a) No comentário de Rodrigo, fica evidente que, apesar do lapso temporal de várias décadas, uma música popular feita a partir das influências paraguaias continua inviável no Brasil. Não é provável que a rejeição estética a estas influências, por parte dos brasileiros, se reduza a uma questão de gosto. Uma vez que a estética é parte da ideologia, os processos hegemônicos organizam e hierarquizam discursos estéticos, produzindo desejos e rejeições. Tais processos, justamente por serem hegemônicos, não são determinativos ou impositivos, buscando, ao contrário, consensos, e, com isso, convivem com conflitos e contestações. Não obstante, produzem efeitos materiais, ao dominarem as instituições e práticas. Com isso, não é plausível que o desinteresse pelas coisas platinas no Brasil, da estética à política, esteja dissociada dos mecanismos de poder que vêm sendo levantados ao longo de toda esta tese. A análise da trajetória de Jerry Espíndola, citado por Rodrigo como envolvido na procura de desenvolver a polca-rock como uma oposição à MLC, também contribui para testar esta hipótese básica desta tese. Tendo voltado para Campo Grande em 1992, como diz Rodrigo, Jerry vem construindo sua carreira, que já conta com cerca de 28 anos de duração, sobre a música pop romântica e alguns momentos mais roqueiros, mas mantendo constante cultivo de elementos regionais. O artista vem buscando, então, sucesso comercial nacional à base destes elementos, na música pop, mas, a partir de certo momento, passou a inserir em sua música o material regional de maneira deliberada, como explica: Eu uso muita coisa daqui. E a partir de um certo tempo, de propósito. Não assim de propósito, achando que com isso eu ia me dar bem ou não. Mas de propósito - 414 assumindo a influência. A gente tem um jeito de tocar diferente aqui. E é diferente pro Brasil. Eu só acentuei um pouco isso, no lance da polca-rock, naquele CD com [a banda] Croa [2002], que o Gabriel Sater participa, tocando violão, a gente realmente direcionou um trabalho de pesquisa em cima disso, fazer pop em ritmo ternário, misturando ritmos como polca, chamamé, guarânia... E conseguimos fazer um trabalho que foi percebido imediatamente no Brasil, assim em termos de crítica, num pouquinho que a gente conseguiu mostrar. Na verdade a gente não conseguiu andar muito, né? Mas aonde a gente foi, os artistas que viam nosso show, pessoas que conheceram o disco, a gente sentiu essa resposta positiva (...) em cima da informação inédita, que pra gente não era inédita mas pra todo mundo era. Que são as influências que a gente tem aqui. Eu acho que isso aí, no caso do nosso disco, do Polca-Rock, ela despontou e apareceu, e tá sendo premiada até hoje, estou conseguindo várias coisas por causa desse trabalho, porque realmente ela foi canalizada pra isso, entendeu? (Espíndola, J., 2009) Conforme explica, os resultados de sua música vêm se dando, principalmente, em termos de crítica e premiações. Verifica-se uma dicotomia entre essas críticas e premiações e o sucesso no mercado de massas, que era o objetivo inicial de Jerry. Quando o artista se refere ao “diferencial” de Campo Grande no panorama nacional, que o fez “direcionar” seu trabalho, compreende-se que seja um diferencial útil para inserção em certos nichos de mercado. Tais nichos, sensíveis à diferença e interessados na particularidade, contrapõem-se à maior homogeneidade do mercado massificado: Mas isso que a gente fez, já acontece na música daqui. Todo mundo bebe nessa fonte e todo mundo tem um som que no Brasil é inédito. Todo mundo dessa turma aqui, o Geraldo [Espíndola], sabe, Rodrigo Sater, todo mundo bebe nessa praia que é o ritmo ternário, justamente porque a gente deve ter ouvido demais [risos] o tum, tum, tum das polcas, impregnou na gente e a gente quando compõe faz o três [compasso ternário] com facilidade. O que não é uma coisa comum. Principalmente no mundo pop. Na música popular. Uma coisa que aconteceu bastante lá em Minas [Gerais], no Clube da Esquina, eles usaram bastante o 6/8, usaram o ritmo, mas eles não têm essa influência que a gente tem aqui, de poder pegar um violão de polca e misturar. Porque vai dar certo, porque já tá no nosso sangue. Então, acho que nossa música aqui tem um diferencial muito grande, e eu senti muito isso no meu trabalho a partir do momento em que eu resolvi direcionar... falei, não, eu vou assumir isso aqui. Essa regionalidade, e vamos pesquisar, vamos fazer as músicas. (Espíndola, J., 2009) O momento de assumir a regionalidade, como diz o compositor, foi influenciado pelo compositor e cantor Paulinho Moska, que captou seu potencial de mercantilização da etnia (cf. Robins, 2004): Isso foi em 2001, cara. Numa conversa que eu tive com Paulinho Moska no Rio, que na verdade foi o cara que me deu o start pra começar esse trabalho direcionado. Porque eu tinha feito um disco que tinha uma polca-rock [Pop Pantanal, 2000, faixa “Colisão”]. E o Paulinho gostou justamente da polca-rock [risos]. E ficou me - 415 perguntando o que era, e ele falou abertamente pra mim, “olha, esse trabalho é legal”. “Isso aí é um diferencial, isso aí ninguém faz”. Eu falei “não, lá na minha terra todo mundo faz”. “Não, mas aqui eu nunca vi isso. Se você fizer, você vai ser visto assim, como uma novidade. Ele falou tudo, foi batata. Tudo o que ele previa aconteceu. Ficamos conhecidos no meio artístico, porque essas coisas vão rolando no boca-aboca, muitos artistas viram, gostaram, foi um trabalho curioso pra todo mundo, e depois a gente começou a colher frutos, tipo assim, fomos selecionados para o programa da Petrobrás, aí ganhamos o dinheiro para fazer o segundo disco [Jerry Espíndola & Croa/ Polca-Rock, 2002], pudemos fazer o segundo disco no melhor estúdio do Brasil, masterizamos em Nova York, lançamento aqui e em Cuiabá, eu ganhei uma bolsa da Funarte no final do ano passado [2008], ganhei um prêmio em cima de um trabalho chamado Composição ternária. Quer dizer... muito pouco tempo [depois de] ter assumido essa regionalidade, ela rendeu muito mais frutos do que minha carreira inteira antes, entendeu? Porque eu deixava isso meio de lado, por achar que era uma coisa comum. E era justamente o contrário... [risos] (Espíndola, J., 2009) A trajetória de Jerry, do total descompromisso até “assumir a regionalidade”, justaposta à experiência de Rodrigo e Caio, logo acima, é sugestiva. Enquanto estes evidenciam o pouco interesse das populações atuais com relação a uma música com influências paraguaias, Jerry celebra o fato de que sua música, que possui tais influências, possibilitou-lhe um diferencial, em um mercado pop saturado de produções homogêneas. Talvez uma maneira de compreender estas discrepâncias passe pela identificação do público em questão. Conforme Jerry explicita, seus bons resultados não foram obtidos por um suposto sucesso popular, mas a partir de editais lançados por empresas ou instituições. Esta tem sido uma alternativa recente ao mercado fonográfico e sua recorrente ênfase formulaica. Nos últimos anos, a partir do lançamento de leis de incentivo à produção cultural, a área vem crescendo e se profissionalizando, com o aumento consistente do interesse de empresas em apoiar iniciativas alternativas que possam lhes trazer dividendos de imagem. Como, em geral, tais empresas buscam propostas diferenciadas, originais e criativas, que possam, justamente, individualizá-las aos olhos do público, abre-se uma outra perspectiva para o artista que não deseja depender do mercado massificado. Da mesma maneira, instituições culturais oficiais, sem fins lucrativos, como a Funarte, buscam estimular a criatividade e a diferença cultural associados a comunidades específicas, elementos - 416 importantes das políticas públicas mais contemporâneas. Como evidência a essa afirmação, pode-se citar um dos objetivos do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, uma das iniciativas de âmbito federal mais importantes da área da cultura, nos últimos anos: Potencializar energias sociais e culturais, dando vazão à dinâmica própria das comunidades e entrelaçando ações e suportes dirigidos ao desenvolvimento de uma cultura cooperativa, solidária e transformadora. (Brasil, 2012) Naquilo que interessa, mais diretamente, às questões debatidas nesta tese, o que se pode depreender da experiência de Jerry, Caio e Rodrigo, é que continua sendo inviável o sucesso nacional consistente e não-esporádico, no mercado de massas, com um produto musical com fortes influências paraguaias. Os resultados encorajadores de Jerry indicam que, com a popularização dos debates acadêmicos sobre a necessidade de valorização da alteridade, da diferença, da singularidade, da particularidade, surge uma sensibilidade a estas questões cada vez mais capilarizada no senso comum. Este discurso da diferença é um dado positivo e da maior importância. Tal discurso se materializa institucionalmente na popularização de políticas públicas e privadas de estímulo a iniciativas consideradas multiculturais. No entanto, se esta nova maneira de pensar vem sendo benéfica no plano dos editais lançados por instituições públicas e privadas, não atinge, pelo menos no momento presente, o sucesso massificado em âmbito nacional. Esta é, justamente, a razão para que sejam formuladas políticas públicas que visam à promoção da diversidade e pluralidade. Embora a indústria cultural não “imponha” produtos, nem “manipule” as populações, a espiral de silêncio com relação ao universo cultural latino-americano no Brasil, aliada à excessiva centralização dos discursos cultural, política e economicamente dominantes no eixo Rio-São Paulo, produzem efeitos concretos. Uma vez que o sucesso massificado, em nível “nacional”, é um índice importante dos discursos dominantes, verifica-se que os problemas políticos que interessam às populações do MS no plano nacional continuam existindo. Se, hoje, existe a possibilidade de viabilizar trabalhos alternativos a partir de projetos culturais que objetivem a singularidade, mesmo - 417 assim permanecem os mesmos problemas e impasses com os quais a MLC tem que se haver há décadas. Defrontando-se com essa realidade adversa à diferença cultural, os compositores mais jovens começam a ser cooptados, da mesma forma que o foi a MLC. Para Amizo, por exemplo, o aspecto contestatório da polca-rock se perdeu, tendo sido deixado de lado “o desejo de romper com a música regional e contestar os privilégios dos músicos renomados da cidade” (Amizo, 2005, p. 54). Rodrigo Teixeira confirma a percepção da autora: (...) no primeiro momento era uma coisa mais conceitual, era muito mais intelectual do que concreto. A gente não conseguia concretizar, era novo, inexperiente; não conseguia concretizar aquele monte de pensamentos que a gente tinha. E era uma coisa muito mais contestadora, como foi a Tropicália. A gente estava aqui pra confundir mesmo e meter a boca no trombone. Mas, ao mesmo tempo, a gente nem era reconhecido como os caras da polca rock, como é hoje. Era “os caras novos que estão querendo agitar alguma coisa” (...) Eu acho que, pela saída do Caio da história (porque o Caio era o cara mais contestatório, mesmo, tem uma outra visão) e com a entrada do Jerry na parada, esse lado contestatório acabou completamente. O Jerry não contestava nem naquela época, na década de 80; ele é do time oficial, na verdade... Então, nesse sentido, envelhecemos, no mau sentido. (Teixeira apud Amizo, 2005, p. 54) Para Amizo, a afirmação de Rodrigo de que Jerry “é do time oficial” se prende tanto ao fato do compositor ser da família Espíndola, responsável por parte expressiva da produção da MLC anterior, quanto à constatação de que este “time oficial” representava uma “elite musical” que estava comprometida com um som tecnicamente mais elaborado do que, por exemplo, a música sertaneja e a moda de viola, populares na região, e que acabava alcançando, predominantemente, os meios mais intelectualizados, e não as grandes massas. E a polca-rock, em seu segundo momento, acaba adquirindo esses mesmos traços elitistas que caracterizavam a música regional nas décadas anteriores. (Amizo, 2005, p. 54-55) Nota-se aí que a polca-rock reeditou o impasse vivido desde o início pela MLC: como realizar uma música comercialmente viável, que proponha um projeto de modernização alternativa, não desenvolvimentista, para um estado agrário, incorporando universos culturais multitemporais, cosmopolitas e rurais, centrais e periféricos, evitando a hierarquização, a elitização e a exclusão das populações mais amplas? - 418 Deve-se notar que, em Campo Grande, na atualidade, há, pelo menos, uma experiência de boa visibilidade local com uma música que vem, implicitamente, lidando com esta questão, sendo bastante influenciada pela MLC e, consequentemente, pela música paraguaia e o chamamé. Trata-se do duo Filho dos Livres. Segundo Amizo, [em 2005] o Filho dos Livres tava estourado, tocava direto nas rádios, CDs esgotaram, eles tiveram que lançar uma segunda edição do CD porque tava tocando direto nas rádios, às vezes apareciam na televisão... Tem um projeto, de 15 em 15 dias tem shows na Concha Acústica do Parque das Nações Indígenas. Eles tocavam lá e enchia. Foi um grupo que conseguiu atingir um público muito grande. (Amizo, 2009) O Filho dos Livres é composto de Guilherme Cruz e Guga. Guilherme, nascido em 1975, representa uma nova geração, que se singulariza, em relação às gerações anteriores da MLC, por ter tido formação musical formal e maior prática como instrumentista. No caso de Guilherme, isso incluiu uma temporada em Hollywood, estudando guitarra no Musicians’ Institute. Mais tarde, passou mais dois anos na mesma escola, dedicando-se ao curso de engenharia de áudio e produção musical. Já antes dessa segunda temporada nos EUA, em 1997, havia começado a organizar o embrião do Filho dos Livres com seu parceiro Guga. Voltando dos EUA, teve bastante experiência trabalhando em estúdios de São Paulo, até que voltou para Campo Grande, em 1999, e começou efetivamente o trabalho com Guga (Cruz, 2009). Além do maior preparo como músicos instrumentistas e de conhecimentos de produção de estúdio e palco, o duo traz como diferencial uma postura nitidamente mais técnica e inserida no mercado. Utilizam recursos de marketing no gerenciamento de seu sítio na Internet, e fazem constantes estatísticas dos acessos a suas músicas para planejar os repertórios de suas produções (Cruz, 2009). Não se pode deixar de ver na diferença de idade, com relação à primeira geração da MLC, uma das possíveis variáveis que possam ajudar a explicar a diferença de popularidade. Como se sabe, o público jovem busca se identificar com artistas jovens, sendo mais ativo em seus hábitos sociais e de consumo, organizados de maneira central pela música como marco - 419 identificatório, em torno do qual se constroem amizades e encontros. Não obstante, como seria pouco significativa uma análise que buscasse reduzir a diferença da popularidade à mera questão geracional, é preciso conhecer um pouco mais sobre o trabalho do grupo para interpretá-lo adequadamente. A entrada do Filho dos Livres no mercado campo-grandense é assim descrita por Guilherme: Eu e o Guga já estávamos viajando juntos [como parte de um grupo de rock], já tínhamos material consolidado, e, em 2003 a gente começou a gravação do primeiro CD do Filho dos Livres. Paralelamente, trabalhei em vários projetos, o Polca-Rock do Jerry Espíndola eu que gravei, bando do Velho Jack, Olho de Gato, produzi o CD, o primeiro [CD do] Bêbados Habilidosos, o segundo também, ao vivo, não vou lembrar todos os CDs que trabalhei aqui. Gravamos o Filho dos Livres em 2004 e daí pra frente a história foi muito boa. “Meu carnaval” foi uma música que funcionou bem nas rádios, não só aqui no estado, fizemos muitos shows, vários deles pra multidões de 50, 70 mil pessoas, 30 mil pessoas, aqui no estado. Fizemos o Univershow tocando com Nando Reis, com Leoni, pra 35 mil pessoas, tocamos com Zé Ramalho aqui no MS Canta Brasil, foi o recorde de público do evento... O recorde da Concha [Acústica do Parque das Nações Indígenas] a gente segura também há um tempão, toda vez que a gente toca aqui na Concha Acústica a gente tem lotação (...) (Cruz, 2009) Apesar desses resultados encorajadores, Guilherme admite, de maneira sincera: “Não creio que algum músico daqui viva exclusivamente da sua arte, não. (...) Como as coisas são esporádicas, não tem alguém que vive exclusivamente de música autoral aqui” (Cruz, 2009). Segundo o próprio músico, a música mais vendida no Brasil e no MS é o sertanejo pop, e a música do Filho dos Livres é uma mistura de rock com o “regional”. Sem assumir uma identidade musical, o duo tem composições que ora tendem a um universo próximo da música urbana pop e pop/ rock, ora ao regional, que é bem recebido pelo público do sertanejo universitário: A gente mora bem no meio dessa linha que você colocou (...) [Responsáveis por] muitos dos lugares [para apresentação] falam “Não, isso aqui [a música deles] [não pode], é sertanejo”. Não, nossa música não é sertaneja. Tem guitarra. Tem muita gente aqui no estado que diz “Não, isso aqui é rock, não dá pra tocar no sertanejo, é muito pesado”. Então eu fico realmente feliz com isso, eu vejo dessa forma uma identidade do nosso trabalho. Vejo que ele é único com relação a isso, sabe. Usamos viola de dez cordas, usamos guitarra de doze cordas com afinação aberta, como se fosse uma viola, o pessoal chama de Cebolão, com um ampli[ficador] distorcido, então são características que existem do lado de lá e características que existem do lado de cá. (Cruz, 2009) - 420 - Segundo as pesquisas de mercado do músico e administrador do seu negócio, seu público é basicamente universitário. Isso explica a viabilidade do seu trabalho, ao oscilar entre o pop e o sertanejo, ambos os gêneros sendo apreciados pelos jovens universitários da atualidade: Campo Grande se tornou uma cidade universitária, que é a base de nosso público. Se o meu trabalho fosse o mesmo de hoje há dez anos atrás, talvez ele não teria a aceitação que ele tem hoje, em decorrência das pessoas de outros estados que vieram estudar aqui. (...) A gente atinge um público basicamente jovem, não exclusivamente, de todas as classes sociais, mas eu vejo uma abertura muito grande do público do sertanejo pelas nossas músicas que têm uma raiz mais forte, como “Meu carnaval”, “Como você é”, inclusive a gente dá muita entrevista em rádio, tipo... que só toca sertanejo, e, por incrível que pareça, toca nossa música também, então as pessoas perguntam, “pô, vocês são uma dupla [sertaneja], mas têm nome de banda (...)” (Cruz, 2009) Creio ser aí, na aceitação do trabalho do Filho dos Livres pelo público sertanejo, que reside uma interpretação plausível para certos índices de popularidade de uma música que busca envolvimento com a MLC. Uma vez que Rodrigo e Caio procuraram inserir seu trabalho exclusivamente na música pop/ rock /MPB, eles não obtiveram repercussão palpável. Jerry, por seu turno, buscou o mesmo caminho de Rodrigo e Caio e teve, também, pouco resultado, enquanto disputou exclusivamente o mercado de massas. Foi, apenas, quando procurou direcionar seu trabalho para as áreas mais receptivas à diferença, que conseguiu frutos mais encorajadores. Portanto, deve-se notar que, ao contrário de Jerry, Rodrigo e Caio, que buscaram se lançar, com uma música híbrida, no mercado de música pop, com pretensões ao sucesso “nacional”, o Filho dos Livres procurou incluir em seus esforços, também, o público do sertanejo universitário. No amplo setor da música sertaneja, que, há muitas décadas, desfruta de grande sucesso entre os variados públicos do Centro-Sul, as apropriações brasileiras dos - 421 gêneros ternários platinos, geralmente a polca, na forma conhecida como rasqueado43, são bastante conhecidas e populares. Dessa maneira, é possível compreender a pouca viabilidade de músicas críticas com influências platinas como decorrência dos discursos dominantes que buscam evitar um consenso favorável à união latino-americana. Por outro lado, verifica-se que tais influências não são recusadas entre os públicos das músicas sertanejas, que as apreciam há décadas sem que seus sucessos sejam veiculados no horário nobre. Outras críticas quanto ao regionalismo da MLC possuem diferentes motivações e significados. O grupo de rock Jennifer Magnética, por exemplo, formado pelos compositores Rodrigo Faleiros (Campo Grande, 1983; baixo e voz), Jean Stringheta (Terra Rica, PR, 1977; guitarra e voz) e Diogo Zarate (Corumbá, 1978; bateria e voz), é um power trio que não se vê influenciado por essa música, nem pela música tradicional do estado, e portanto não vê razões para executá-la. Rodrigo – Quando se fala Mato Grosso do Sul, Campo Grande, a ideia que todo mundo tem (...) é aquele modão sertanejo, mas isso é a cultura mais antiga, influência do Paraguai (...) Que não perdura tanto assim hoje em dia (...) Tá, ainda tem uma influência muito forte e tudo mais. Mas [por exemplo] nós três aqui. A gente não cresceu influenciado por isso. Talvez até por conta de muita gente que veio pra cá, na década de 60, 70, gente dos grandes polos, sabe... Meu pai é paulista e minha mãe mineira. Meu pai era roqueiro daqueles de comprar disco de vinil, da década de 60 à década de 80 ele tem praticamente tudo. Então, eu não cresci ouvindo Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho... Cresci ouvindo Beatles, Black Sabbath, então não vou compor uma coisa que (...) não me toca, não é o que sinto realmente. Minha forma de pensar musicalmente é pelo rock. Jean – Estou morando aqui no estado já fazem [sic] uns 15 anos mais ou menos. Eu também não cresci ouvindo a música que é intitulada regional daqui do MS, essa música de fronteira. Inclusive eu acho que estou descobrindo agora. Agora que eu estou ouvindo, estou sabendo mais a respeito dos compositores, então a música tradicional pra mim é... nova, até [risos]. Como eu cresci com o pensamento voltado pra outra música eu não teria competência pra fazer esse tipo de música. A música dita regional. Até acho que não tem mais como você classificar alguma coisa como regional, porque tudo é mundial, né? O que você quiser você consegue no seu computador, tem as TVs, então eu prefiro achar que qualquer coisa hoje tá valendo. Inclusive na banda, qualquer ritmo, qualquer estilo, qualquer ideia tá valendo, a gente não pretende pegar um segmento musical ou então defender uma bandeira. Um subgênero ou algo assim. 43 Segundo o chamamezeiro Elinho do Bandoneon, “Eu acredito que o chamamé que eles dizem que é o chamamé por aqui é o rasqueado puro e limpo, nosso rasqueado antigo que veio da polca e é 3/4 (Elinho do Bandoneon apud Higa, 2010, p. 204). - 422 Diogo – ...soa falso, né. Nós três somos daqui mas os três temos essa característica, de ter crescido ouvindo outras coisas, Beatles e tal, então fazer um rock regional, ou fazer música regional porque nós somos uma banda regional ou nós somos uma banda do estado isso soa falso pra gente, não são nossas influências (...) (Magnética, J., 2009) Representantes diretos dos fortes fluxos migratórios que chegaram a Campo grande após a divisão, como eles próprios declaram, os jovens integrantes da banda são egressos do curso de Licenciatura em Música da UFMS, evidenciam identificações com um espaço midiático transnacional e com os grandes centros nacionais. Dessa maneira, demonstram outros impasses da MLC junto a esses novos moradores, que, voltados para o universo cultural emanado dos grandes centros decisórios brasileiros, não se identificam com o seu projeto de urbanização pensado a partir da situação periférica da cidade de Campo Grande, no interior da América Platina: Rodrigo – Eu não sei se [Campo Grande ou Mato Grosso do Sul] tem uma identidade propriamente dita. Isso não acontece só com a gente. Tá, tem um pessoal que compõe e faz essas modas, influenciado realmente por esses outros ritmos, mas também tem muita gente que compõe como a gente, faz música como a gente. Tem gente que faz outro estilo de música que não tem nada a ver com o nosso ou com aquele outro (...) regional. Bando do Mato [por exemplo], faz soul music, ou dance, aquela coisa Michael Jackson, Madonna, finalzinho dos anos 80, começo dos anos 90. Jean – Eu não conheço, mas quantos DJs têm por aí? Fazem música eletrônica, né? Rodrigo – [Tem uma cena eletrônica na cidade?] Tem. Até onde conversei com pessoas que frequentam essa cena, Campo Grande é considerada uma das grandes cidades no Brasil, da música eletrônica. Mas é uma coisa mais restrita ao pessoal que frequenta. Eu sei que vêm direto esses DJs da Alemanha, da Inglaterra, franceses, enfim... (Magnética, J., 2009) Há também os jovens descendentes das famílias radicadas no estado há gerações. Nestes casos, verificam-se diferenças geracionais que estimulam grande diversidade de gostos e identificações, produto da variedade da oferta cultural proporcionada pelos meios de comunicação de massa no capitalismo tardio. Maira Espíndola, filha de Celito, por exemplo, é também cantora e performer em vários estilos, com ênfase no rock, inclusive punk rock. Não tendo tido uma convivência cotidiana com a família Espíndola, segundo declara, não absorveu a influência musical da família, e também não se reconhece no rótulo de “regional”: Comecei a me envolver com o pessoal do rock. Conheci muitas pessoas, [acabei] montando banda, fazendo música, e não é só o Dmitri Pelz [banda de rock] que é - 423 minha banda, né. Eu tenho outros projetos que nunca saem muito do papel mas que estão ali, né? [risos] que não são necessariamente rock. Mas meu nicho é mais no núcleo do rock’n’roll. Não faço só punk rock, faço rock. Tenho milhares de influências dentro disso, e não só de rock (...) Acredito que qualquer músico que se preste a fazer uma música... criar um produto espontâneo, livre, vai ter muita influência de outro tipo... de outras vertentes ou outros rótulos, seja lá o que for, na obra. (Espíndola, M., 2009) Entretanto, a identificação desses jovens com a cidade em que nasceram facilita um elo com as indagações relativas ao processo de urbanização de Campo Grande, tematizado pela MLC. Assim, Maira constata que, aos poucos, está adicionando elementos deste universo em sua música: Agora escuto muito mais do que na infância a família Espíndola. Nessa semana mesmo a gente sentou, foi fazer um ensaio pra criar música nova, com o Dmitri, saiu uma letra que eu acho que é a cara de algumas coisas que eu já vi da Alzira. Necessariamente não é uma escolha, uma predisposição ou uma limitação que eu tenha me dado (...) Parte da minha limitação, até nem conseguia fazer música como eles fazem. Mas no decorrer do caminho a gente acaba capturando uma coisa ou outra... (Espíndola, M., 2009) Há, no entanto, grupos que não querem ouvir falar de MLC, e não querem saber da posição periférica de Campo Grande, na fronteira, preferindo sentir-se moradores dos grandes centros nacionais. Como comenta Rodrigo Teixeira, [Depois da geração de 80] já tem uma terceira [geração]. Ali na década de 90 começam a surgir as bandas de rock no MS. Com força. E inclusive faz esse pessoal da velha guarda se mexer em termos sonoros, tal. Vem aí a Blues Band, que foi uma banda germinal, que fazia blues e tal, que era o Bosco, Fabinho Brum, o Renato, que hoje é do Bêbados [Habilidosos, banda de blues]. Em 96 começa uma cena da rapaziada novinha mesmo, que não quer saber de Prata da Casa! “Não me venha falar desses caras!” Eles tocam punk rock, é o Incontroláveis. Então, vem em 96 a moçada da Panela Records, cara. Que é o Waguinho (...) o Cebola, entra uma moçada fazendo punk rock, falando de AIDS, que é o cão, tem o HIV, que era uma banda de punk falando de AIDS, cara, as letras, uma coisa muito... Os caras levam ao pé da letra, ao fundo – aquilo que a gente queria! De fazer uma linguagem urbana, só que [diferentemente do que a gente queria,] descolados da fronteira, esses caras da geração de 96. É punk rock, música de 2 minutos, gritando, distorção, pau no cu do trem do pantanal, véio. É a negação, a geração da negação. Surgiram em 95, 96, que é quando acontece aquele boom do sertanejo (...) é meio que uma reação mesmo. [Para a geração dele, o local ainda é uma questão. Para a geração de 96, isso não é mais uma questão]. “Que saco, bicho, puta que pariu, só porque é daqui tem que falar de boi, não vem com esse papo”. (Teixeira, 2009a) Como se vê, a categoria do regionalismo continua sendo central para a vida cultural da cidade, evidenciando relações de poder. Na revolta daqueles que buscam negar a realidade - 424 rural do estado encontram-se, com certeza, razões fundadas na percepção de que a presença dos elementos do campo nas produções culturais é incentivada pelas elites agrárias que detêm grande parcela do poder local. Tal poder é exercido ao fazerem do regionalismo pacífico e inofensivo o operador a separar as iniciativas que podem aspirar aos espaços mais nobres e disputados daquelas que terão que se contentar com circuitos alternativos ou underground. No entanto, na busca de negação da realidade subalterna do estado, verifica-se, também, a cooptação desses grupos pelos discursos dominantes nos grandes centros decisórios brasileiros, com sua promessa idealista de “modernização cultural” de todo o Brasil pairando acima das contradições, desigualdades, diferenças e necessidades de cada região. É evidente que a reflexão sobre o regional não se confunde com o regionalismo. Uma música em que todos os elementos regionais fossem extirpados equivaleria a uma opção por recalcar tais elementos em favor de outros, favorecidos ideologicamente. Como vimos, isso já era feito na cidade desde muitas décadas atrás, sendo que uma importante transformação trazida pela MLC foi, justamente, nomear o reprimido e dialogar com ele. É possível, inclusive, falar do rural de maneira crítica, evitando o conservadorismo, o exotismo e a nostalgia que emprestam suporte ao status quo. Assim, as tentativas de negar a realidade rural do estado manifestam uma ideologia idealista e desenvolvimentista que também termina por ser igualmente acrítica e favorável à manutenção das estruturas de poder vigentes. A ideologia desenvolvimentista produziu e produz forte impacto no Brasil e na América Latina como um todo, continente que abriga países caracterizados por sua condição de antigas colônias, com economia primária e, muitas vezes, extrativista. A expropriação do trabalhador rural nesta região durante o século XX, como vimos, foi uma das causas para o êxodo rural e consequente aumento da urbanização que caracterizou este período. Um dos modelos predominantes idealizados para lidar com o imperativo de prover as necessidades destas populações migrantes foi a industrialização, ponta de lança de um ideário mais amplo, - 425 o desenvolvimentismo. Buscava-se, assim, colocar os países no rumo do progresso, tal como entendido pelo sistema capitalista. Na América Latina, o desenvolvimentismo modernizante – caracterizado pelo esmagamento dos saberes e sensibilidades tradicionais em favor de uma importação de modelos supostamente mais eficientes – decepcionou, de maneira especial, às expectativas que se depositaram nele como promotor do bem estar social democrático. Embora tenha trazido progresso material às elites que detêm os meios de produção, as grandes populações trabalhadoras não usufruem de maneira igualitária deste progresso. Além disso, pagam um alto preço por ele, em termos dos trabalhos perigosos e insalubres, da poluição, das dificuldades de viver em cidades e bairros superpopulosos, com grandes distâncias a percorrer. Como alternativa, Néstor Garcia Canclini propõe, em Culturas híbridas, que qualquer projeto de desenvolvimento para a América Latina deveria levar em consideração os saberes populares e tradicionais. Canclini não sugere, assim, descartarmos a busca de modernização, mas argumenta que esta não deve se processar de maneira exclusionária. Em outras palavras, em vez de uma oposição binária entre tradição ou modernidade (isto ou aquilo), verifica o que está ocorrendo, desde várias décadas, na América Latina, é um diálogo entre os dois termos. Ou melhor: uma hibridação. Nesta região, misturas heterogêneas de temporalidades e saberes envolvem motivos pré-colombianos, artesanato indígena, catálogos de arte de vanguarda, meios de comunicação de massa, imagens da arte colonial, da indústria cultural, computadores e laser, internet, rock, música erudita, asiática e afro-americana. Portanto, envolvem a cultura erudita, a cultura popular tradicional e a cultura de massa, que deixam de ser vistas como estanques e passam a fertilizar-se mutuamente (o que invoca a figura do híbrido). Referindo-se ao pensamento herdado, Canclini menciona as concepções culturais e de projeto cultural e econômico já discutidas aqui. Enquanto alguns se dedicam à busca de um - 426 passado idealizado, congelado na fantasia regionalista, outros pretendem escapar de seus condicionamentos históricos recalcando traços que, entretanto, insistem em retornar: Tanto os tradicionalistas quanto os modernizadores quiseram construir objetos puros. Os primeiros imaginaram culturas nacionais e populares “autênticas”; procuraram preservá-las da industrialização, da massificação urbana e das influências estrangeiras. Os modernizadores conceberam uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais, e confiaram à experimentação e à inovação autônomas suas fantasias de progresso. As diferenças entre esses campos serviram para organizar os bens e as instituições. O artesanato ia para as feiras e concursos populares, as obras de arte para os museus e as bienais. (Canclini, 2003, p. 21) Portanto, no contraditório processo de modernização latino-americana, não é tanto como se tudo estivesse se perdendo. O que se percebe que não tem mais lugar em um mundo feito de misturas de fragmentos e reconfigurações são as ilusões de pureza e as ideias de autonomia autoral ou seu outro, o comunitarismo (cf. Burke, 1989, p. 48-49): O que se desvanece não são tanto os bens antes conhecidos como cultos ou populares, quanto a pretensão de uns e outros de configurar universos auto-suficientes, e de que as obras produzidas em cada campo sejam unicamente “expressão” de seus criadores. (Canclini, 2003, p. 22) O texto de Canclini contribui, portanto, para situar ideologicamente a tentativa, por parte de alguns grupos da atualidade, em Campo Grande, de excluir inteiramente, silenciar ou superar de maneira idealista as tradições que, contraditoriamente, praticam de alguma maneira (o hábito do tereré sendo a mais conspícua), configurando o retorno do recalcado. Questionando o ideário evolucionista, ao mesmo tempo, contribui para problematizar a tentativa de outros grupos de se agarrarem a um passado a-histórico, fundamentalista, uma busca romântica de um mundo perdido que, no entanto, nunca existiu. A análise da parte mais expressiva das composições da MLC evidencia que não se deixam limitar pelo regionalismo. Geraldo Roca, implicitamente, sugere que o regionalismo, no caso da MLC, assumiu tanta importância e recalcou os aspectos experimentais desse movimento devido às dificuldades que uma produção regional original encontra para ser consumida de maneira mais ampla no país: Coisas como Água Verde [“Rosa em pedra dura”], de Geraldo Espíndola, que é cheia de escalas cromáticas, mesmo sendo de um compositor que não conhece cifras, [e que] - 427 dificilmente teria chance de ser ouvida em outra rádio que não seja a Educativa aqui de Campo Grande. Mesmo sendo uma beleza de canção e diferente de tudo que existe na música brasileira. O Geraldo Espíndola é um dos grandes melodistas do Brasil de sempre... (Roca apud Teixeira, 2010b) Estão contidas neste comentário muitas das razões para os impasses encontrados pela MLC, enquanto música que procurou exprimir a situação singular e periférica dos setores urbanos de Campo Grande, MS, às voltas com seu complicado processo de urbanização, na fronteira com países da América Latina mantidos em posição subalterna por uma ampla conjunção de forças. Esse processo de modernização proposto pela MLC, apesar de incorporar a diferença transfronteiriça, se singulariza em relação a ela, ao incorporar repertórios diversos. Residem aí outros impasses: a perda da conexão com as populações mais amplas, cujas vozes, entretanto, de maneira contraditória, buscava incluir por intermédio de seus gêneros musicais, línguas e signos identificadores. América Platina e a incorporação da diferença Presente a um show de rock do Bando do Velho Jack na Concha Acústica do Parque das Nações Indígenas, em Campo Grande, não deixei de achar insólita a mistura de elementos tradicionais e modernos, representada por rock’n’roll, MLC e guampas de tereré que circulavam de mão em mão entre os participantes do público predominantemente jovem. Solicitado, Geraldo Roca comenta: Eu acho genial, é o que eu esperava, quando mudei pra cá [Campo Grande] há 19 anos atrás, é o que eu esperava que acontecesse. Que eu pudesse provocar isso. A gente sempre falou nisso. Desde o ano de 1970, a gente fala disso. Que podia florescer aqui uma coisa legal, uma coisa original. Não precisa ser mato-grossense, basta ser original, entendeu? Basta ser uma coisa que você vai abrir uma porta e não sabe o que vai estar atrás dela, entendeu? A sensação é genial, pô! É boa, é fudida. Não sei se isso vai acontecer, espero que sim. (Roca, 2009) Para Roca, é necessário perder o sotaque, desregionalizar e misturar todas as músicas: Eu quero incorporar a música nordestina, [por exemplo,] sem ter que cantar com sotaque nordestino. Como os folk singers americanos fazem. Eles cantam músicas do Sul, cajun music, eles cantam zydeco, cantam aquela coisa dos mineiros de Minnesota, não há um problema com isso, entendeu? Aqui a gente tá preso, ainda, no regional. Então o sujeito tá com uma sanfona pendurada no ombro, ele tem que tocar, ou polca paraguaia, ou forró. A música folk não tem que respeitar essas fronteiras. Tem que - 428 fazer o contrário, tem que contaminar. E gerar uma terceira coisa, que é o ideal. Isso, as outras coisas já aconteceram aqui, o produto final ainda não. Quem sabe... ele tá a caminho. (Roca, 2009) Essa terceira coisa é exatamente aquilo que desejam muitos dos que colocam a cultura contemporânea de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no centro de suas preocupações. Neste contexto, o tema da América Platina é bastante presente. Buscam-se meios de apagar as fronteiras geopolíticas entre estados e países ligados, de alguma maneira, à cultura platina, unindo-os e a suas culturas locais na elaboração de um produto transnacional que represente as contradições vividas por estes povos no confronto com o global e que possa provocar debate e transformação. De certa maneira, isso é o que propuseram, páginas atrás, Gilberto Luiz Alves, com sua pesquisa sobre a permanência de traços guaranis na cultura sul-mato-grossense, e Humberto Espíndola, com sua proposta de uma identidade guaicuru inventada. Se Roca não se vê como descendente de indígena, isso não o impede de se ver como parte de uma América Platina: A ideia de que o Rio Paraguai é uma espécie de Mediterrâneo, aqui na América do Sul, é uma ideia com a qual eu sempre simpatizei e achei que corresponde a uma metáfora adequada pra gente, o mar interno que os espanhóis achavam que existia quando eles subiam pela bacia do Prata, e rigorosamente não há muita diferença entre a... Lá do Sul, do Uruguai, do Rio Grande do Sul, aqueles rios, rio Uruguai, a bacia do Prata, você vai subindo por ali, você vai encontrar uma cultura que é o vale onde corre o Rio Paraguai e o rio Paraná, com seus tributários. É o gaucho, né, o gaúcho, que vai surgindo, até a indumentária é parecida. O peão pantaneiro, com as devidas adaptações, porque aqui é quente, no RS é mais frio, no pampa, é mais ou menos a mesma indumentária. É uma coisa que veio subindo o rio Paraná e o Paraguai acima. É uma cultura diferenciada, não tem nada que ver com São Paulo, Rio de Janeiro. Nisso eu concordo totalmente com o Humberto [Espíndola] e o Gilberto [Luiz Alves]. (Roca, 2009) Evidentemente, a eleição do tipo do gaúcho como representante dessa diferença platina é tão insatisfatória quanto a de qualquer identidade unitária. O gaúcho, segundo demonstrou Ruben Oliven (1992), é uma tradição inventada, em meados do século XX, pelas classes médias urbanas. Apesar de representativa das estâncias da Campanha, não significa adequadamente a região serrana de colonização alemã e italiana. Da mesma maneira, o - 429 gaúcho recalca outros componentes ativos da colonização do estado, como o índio e o negro. O descompasso se acentua quando se tenta transpor esse modelo para outras regiões. A diferença da América Platina é bem mais complexa de localizar e de significar. Entretanto, e mesmo se descontando a blague, não há como discordar do ponto principal do argumento de Roca, as diferenças dos brasileiros do interior, mais especificamente os traços culturais que unem os habitantes da América Platina, quando comenta que da Rodovia Castelo Branco para cá o Brasil vai ficando cada vez mais mexicano, até que ele vira o México. O brasileiro do interior é muito mais parecido com um mexicano do que com um carioca ou um habitante de Salvador. Isto é um fato. Para bem e para mal. (Roca apud Teixeira, 2010b) Obviamente, a situação não poderia deixar de ser mais nuançada do que se apresenta em tal comentário sintético. Mesmo assim, a declaração é eficaz para explicitar as possibilidades de uma maior coesão entre os povos da América Platina, na qual a música teria um papel estratégico. No que respeita a uma cultura platina, ou uma cultura com traços semelhantes entre os países banhados pela bacia do Prata, e que difere bastante daquela do Rio de Janeiro e São Paulo, parece não haver discordância entre Roca, Alves e também Humberto Espíndola. Expondo seu ponto de vista a respeito, diz Alves: Eu mostrei para você, num certo momento, um texto em que me reporto ao Wilson Bueno, que é um romancista paranaense, e ele tem usado muito o guarani, o portunhol, em alguns de seus romances. Especialmente Meu tio Roseno, a cavalo [Bueno, 2000], que é mais conhecido. E ele fala de uma unidade cultural que existe envolvendo desde o MS, o oeste do Paraná, o oeste de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina e Paraguai. Porque existe uma unidade cultural aí. (Alves, 2009) Alves menciona, inclusive, a viagem de uma música ao longo dessa América Platina, vindo se transformar em outra coisa no MS: E efetivamente, o gaúcho... [que tem forte presença, hoje, no estado, em certas cidades sendo mesmo predominante]. Nós falávamos, por exemplo, da vanerita. Que tem sua origem ligada à habanera cubana. Que chega ao Uruguai, sobe para o Rio Grande do Sul e aí vai se transformar no vanerão. Mas ela vai se transformar noutra coisa, aqui em Mato Grosso do Sul, que é a vanerita, da década de 20, à qual se refere o Hélio Serejo. E isso vai se mudando com o tempo, o gaúcho entra e traz o vanerão, mas no fundo, a matriz é a mesma. Só que as coisas estão se amalgamando de uma forma diferenciada. É o que vai nos dar singularidade hoje. (Alves, 2009) - 430 - Portanto, há consenso de Alves, Roca, Humberto, penso que de Glorinha e da maior parte dos músicos da MLC, sem falar na população mais ampla, de que há, no estado do MS, uma forte influência cultural, que tem a característica de partilhar traços com toda a América Platina, como diz Alves, ou o Litoral Central, como está na música de Geraldo Roca. Quando menciono a população mais ampla, refiro a prática cotidiana do tereré, mesmo dentro da cidade de Campo Grande, mesmo entre as classes médias, mesmo entre os roqueiros e punqueiros que entrevistei. Refiro também o hábito, igualmente partilhado por certas classes médias urbanas de Campo Grande, sem falar das classes populares, da música regional fortemente influenciada pelo chamamé e pelos gêneros gaúchos. Nesse rótulo se inserem diferentes denominações, com destaque para a alta popularidade do movimento dos “baileiros”. Em meados dos anos 1990, eu frequentava, semanalmente, bailes animados por estes grupos, para dançar, e conheci bem os ambientes (enormes galpões, com bastante espaço para dançar), sua música (uma mistura de chamamé, polca paraguaia, gêneros gaúchos como o xote e o vanerão e uma maneira inteiramente pop-axé music de se apresentar e de executar) e a frequência (basicamente, as classes populares). Como diz o músico, compositor e produtor musical Odon Nacasato: A gente precisa falar também (...) do movimento dos baileiros no meio dos anos 90. Logo após a gravação do Mato Grosso do Som [mapeamento da música do estado em três CDs realizado por Odon], já em 95, 96 surgiram vários grupos de baile fazendo a nossa música regional dançante, vamos dizer. Seria a polca paraguaia já com influência gaúcha (...). A vanera começa a se mesclar com a música regional. Os grupos baileiros começaram a mesclar a vanera criando o batidão. Mesclaram a batida do vanerão com a percussão baiana e acabaram criando... O Grupo Tradição [que é local] fez isso muito bem. Faz isso muito bem. Que era aquela música da churrascaria, que a gente ouvia [música feita por grupos tradicionais paraguaios], mas de uma forma um pouco mais jovem, um pouco mais dançante, mais vibrante, mais contagiante. E entraram no meio universitário, também. Com as festas promovidas através das [rádios] FM, o movimento baileiro começa a tomar conta da música no meio dos anos 90. (Nacasato, 2009) - 431 Segundo Nacasato, a popularidade da MLC vai até meados dos anos 1990, quando o avassalador fenômeno baileiro toma conta do estado, e mesmo de várias outras regiões do interior do país: Até o meio dos anos 90, a música regional [MLC] meio que comandava. A partir da metade dos anos 90 quem começa a comandar a música são os baileiros, na parte da popularidade. E numa intensidade muito maior do que a música regional vinha fazendo. Na época, eu me lembro claramente, surgiu o Grupo Uirapuru. Foi o primeiro grupo que começou a aparecer, a fazer as festas, fazer os bailes... O Grupo Uirapuru logo, logo se dividiu, entre o Grupo Canto da Terra e o Grupo Zíngaro. Do Grupo Zíngaro [surge] o Grupo Tradição. Que vem fazer história. Hoje, o Grupo Tradição, em relação à mídia nacional, é o nosso expoente, aqui. Maior que Almir Sater e maior que Tetê Espíndola. Aí o Grupo Tradição já entra naquela esfera do business show, fazendo apresentações em todo o território [nacional]. Entra nas agendas de shows de rodeios, já entra na cultura do rodeio, também, que é muito disseminada no interior de São Paulo, aqui também, em Mato Grosso do Sul. (Nacasato, 2009) Portanto, não resta dúvida de que estes traços da cultura platina são parte integrante da cultura viva de Mato Grosso do Sul, independente de classe social. Isto ressalta o papel estratégico da música na união e fortalecimento dos povos da América Platina. Essa é a intenção expressa no comentário de Rodrigo Teixeira, em entrevista com Roca, de que, em vez de aprofundar a dependência com relação aos grandes centros nacionais, o caminho para a música de Campo Grande passaria por um corredor cultural que ligaria esta cidade, Assunção, Corrientes, Montevidéu, Rosário, Buenos Aires, Porto Alegre e Foz do Iguaçu. Roca retruca com uma análise sobre o porquê de tais possibilidades não terem conseguido se realizar, apesar do esforço empreendido neste sentido pela MLC inicial: A gente olha para o lado errado sim. Misturar a música feita no miolo da América do Sul seria excelente e renderia altas figurinhas. Mas o que não tem é uma indústria para receber isso [, pois o] público [é] de baixo poder aquisitivo. As fronteiras são os lugares mais pobres do continente. (Roca apud Teixeira, 2010b) Deixaremos para comentar a sugestão de Roca sobre as possíveis razões para este impasse nas Conclusões. No entanto, o que considero particularmente interessante na ideia desta unidade cultural platina não é, como se poderia pensar, equivocadamente, à primeira vista, de uma identidade, mas, ao contrário, de uma diferença. Esta diferença impediria que a cultura sul-mato-grossense fosse sugada para o Mesmo representado pela chamada - 432 “identidade nacional”, processo ideológico fabricado pelas elites do século XX. Com base nessa diferença, é possível pensar, como propuseram vários de nossos informantes, no estabelecimento de um circuito alternativo à “música nacional”, o que teria, forçosamente, reflexos políticos. No entanto, por que isto não aconteceu? - 433 - 5. CONCLUSÕES A busca de compreensão da significância social e cultural da Música do Litoral Central (MLC) nos levou ao estudo das relações entre este movimento musical e as várias polêmicas em que se insere. A distinção cultural buscada pela cidade de Campo Grande, desde as primeiras décadas do século XX, era a um só tempo possibilitada pelo desenvolvimento econômico propiciado pelos pecuaristas – então responsáveis pela base econômica do estado –, e evidência da crescente disputa ideológica entre esta classe e os profissionais urbanos da área de serviços. Em oposição aos pecuaristas, a partir de 1968, a MLC colocou-se como porta-voz da procura, por parte destes setores urbanos, de um caminho próprio para a urbanização e desenvolvimento da cidade e a modernização de suas estruturas sociais, marcadas pelo conservadorismo e o patriarcalismo agrário. Tais disputas ideológicas foram importantes para que as forças urbanas gradualmente passassem a tornar-se cada vez mais expressivas, exercendo, como consequência, crescente predomínio em termos econômicos. Como consequência, no decorrer das últimas quatro décadas, estes setores suplantaram a agropecuária no PIB do estado e substituíram a burguesia agrária no comando do Executivo. Foram justamente tais disputas que trouxeram vitórias expressivas para a oposição, nas eleições de 1965, 1966, 1974, 1978, 1982, 1996 e 1998. Esta consistente atuação crítica da população, que culminou na transformação das estruturas sociais, culturais e econômicas do estado, foi resultado das longas lutas políticas dos movimentos sociais, das quais participou a MLC. Com efeito, este movimento se insere nestas lutas sociais desde o momento de seu surgimento. A década de 1960 foi marcada por uma efervescência cultural - 434 que produziu, em Campo Grande, as primeiras universidades, festivais de teatro e música e uma maior atenção à cultura, em oposição à ênfase na atividade agropecuária. Nesta mesma década, nas eleições de 1965, a população do estado rejeitou a ditadura e o candidato que representava a classe pecuarista. Vinculada a esta tendência crítica manifestada em Campo Grande a partir dessa época, a MLC participou da renovação dos papéis sociais, por meio da contestação às estruturas estabelecidas. Atuando no campo discursivo em favor de uma modernização alternativa da realidade do estado, este movimento teve, assim, influência na transformação de suas estruturas políticas e, consequentemente, econômicas. O papel da MLC nestas transformações diz respeito, inicialmente, à sua proposição de uma modernização includente, em oposição à modernização excludente que caracterizou a atuação dos proprietários rurais e, também, dos setores urbanos. Tal convergência entre estes dois atores sociais em conflito se explica pelo fato de que eles não deixavam de encontrar consensos parciais, motivados por sua necessária interdependência. Estes consensos propiciaram um tipo de atualização cultural baseado, desde a segunda década do século XX, na importação de modelos de fora – exatamente a maneira como os pecuaristas procuraram modernizar sua atividade. Assim, enquanto as elites agrárias buscavam a hegemonia, essa mentalidade desenvolvimentista, partilhada com as elites urbanas, buscou se afirmar através da repressão ao diferente, o índio, o paraguaio, o boliviano e o rural, de maneira geral. Coube à Música do Litoral Central um papel discordante, neste ponto, ao consenso estabelecido entre pecuaristas e segmentos dominantes urbanos. Este movimento era idealizado por jovens identificados com ideais cosmopolitas e modernizantes, a contracultura e a ecologia (adaptada à realidade local das fazendas e sua natureza). A MLC foi a primeira produção cultural do sul do então Mato Grosso que vinha realizando, com propósitos críticos, uma reflexão sobre a urbanização de Campo Grande a partir de sua posição periférica no interior do Brasil e na América Platina. Para este propósito, - 435 sintetizava a experiência urbana dos grandes centros nacionais e globais às influências pantaneiras, caipiras e latino-americanas, constituintes do interior do estado e, em menor escala, do cotidiano de Campo Grande. Buscando refletir sobre caminhos próprios a serem seguidos a partir de uma cidade que se pretendia desenvolvida e cosmopolita, embora dependente de uma realidade agrária, esses jovens que se dedicavam ao rock começaram a introduzir elementos de músicas caipiras e latino-americanas em suas criações. Permaneceram marginalizados durante certo tempo, por praticarem uma música contracultural que não encontrava ressonância entre os setores mais conservadores, mesmo das classes médias urbanas. É importante ressaltar este traço de rejeição a essa música, notável ainda hoje. Pois, ao fazer emergir em suas composições e arranjos a imagem musical do outro, recalcado por longo tempo na música própria das elites, realizaram um verdadeiro retorno do reprimido, ou seja, os contingentes expropriados pelo modo de produção, cujos traços tentavam-se apagar. Se a MLC produziu uma crítica contra os próprios setores urbanos, não deixou, também, de exprimir as contradições destes setores com relação aos pecuaristas. Em “Polca outra vez”, de Geraldo Roca, por exemplo, diz o eu lírico: “Polca outra vez” (Geraldo Roca) [trecho] Dança comigo um momento Morena che ro raihu Eu sei que você é filha Do rei do gado zebu Me fala de céu azul Me fala de casamento Que eu quero esse gado todo Na minha balança de pagamento Morena che roga mi Seu pai, ele me conhece Eu sei que ele diz por aí Que eu nunca fiz nada que preste E ele bem sabe que eu morro de rir Do jeito que ele se veste Hipócrita velha peste Diz que sentiu minha falta E tome polca! A análise dos discursos musicais – conceito devidamente demonstrado – é fundamental para esta tese, sendo a música considerada um plano discursivo elucidador, em certos casos, de realidades não ditas/ interditas. Neste caso, não apenas a letra, mas também a música – uma polca paraguaia executada como rock’n’roll – é irônica e mesmo satírica com - 436 relação ao histórico componente da base econômica do estado. Expressam, assim, um sentimento contraditório de parte dos moradores urbanos, que, mesmo dependendo da realidade agrária do estado, veem-se, simultaneamente, pertencendo ao mundo citadino, buscando conexão com os últimos acontecimentos e tendências globais. No entanto, ao evidenciar conflitos, também, com os setores dominantes urbanos, a partir do uso de um gênero paraguaio associado ao tradicional, ao rural e ao “atraso”, esta canção da MLC expressa a busca de se pensar a modernização da cidade a partir de um reconhecimento da situação em que ela se encontra – a América Platina Índia. Hibridizando a polca com o rock, o compositor explicita o contato – muitas vezes violento e desigual – entre a realidade subalterna e o mundo globalizado. A análise dos discursos musicais, em diálogo com os discursos linguísticos na letra da canção e no contexto etnográfico, forneceu várias outras informações pertinentes, discutidas ao longo da tese. Entre elas, o fato de que um dos grupos mais associados ao período divisionista, em cujos discursos verbais estava sempre presente uma forte valorização à criação do Mato Grosso do Sul, em oposição ao Mato Grosso uno, promove, nos discursos musicais de suas canções, a ideia diametralmente oposta, ou seja, a defesa da unificação. Baseadas nas músicas tradicionais siriri e cururu, pertencentes ao patrimônio pantaneiro que coube, na partilha, ao “norte”, ou seja, a Cuiabá, era de se esperar que suas canções não pudessem deixar de evocar associações indesejadas. Ao invés de se construir por oposição ao norte, de que as elites sulistas desejavam se diferenciar, o regionalismo proposto pelo Acaba era pensado, ao contrário, por identificação ao universo cultural familiar aos cuiabanos, soando muito mais como um discurso de unificação do que de separação. O fato de que isto não foi tematizado e nem configurou obstáculo à ascensão do Acaba causa estranhamento. Trazendo-as em suas canções, de permeio a influências musicais nordestinas mais celebradas em Cuiabá que em Campo Grande, o Acaba evidenciou as - 437 possibilidades do processo de invenção de tradições que estava a se desenvolver no novo estado. Como parte desse processo, colocado em movimento pela necessidade de produzir consenso após a criação do MS, foi construída uma recepção que ressignificou estes discursos musicais, tornando-os “legitimamente” sul-mato-grossenses. Esta é mais uma das várias contradições envolvidas nos conflitos travados em torno da MLC, que a análise do material especificamente musical permite divisar. Há muitas outras, que dizem respeito, por exemplo, à análise das hierarquizações a grupos culturais a partir da música que escutam. Diferenças sutis produzem a valorização, por parte das elites, inclusive da MLC, da música sertaneja dita “de raiz”, ou caipira, contra a desvalorização do neosertanejo, ou sertanejo “comercial”. Tais diferenças, conquanto sutis, como se disse, em termos estilísticos, precisam ser abordadas como produtoras de desigualdades que estão fortemente implicadas nos mais sérios impasses encontrados nesta etnografia. Estes impasses dizem respeito tanto à viabilidade artístico-comercial da MLC, quanto à possibilidade de levar a efeito uma contestação do papel, também desigual, atribuído ao MS pelos discursos de poder. Em ambos os casos, e em ainda outros, a análise e crítica dos discursos musicais dizem respeito a transformações sociais profundas, que, potencialmente, envolvem grande número de seres humanos e suas possibilidades de felicidade. Em meio a suas múltiplas contradições, a MLC construiu imagens plurais do matogrossense do sul por intermédio de estéticas próprias, após décadas de intenso esforço da sociedade campo-grandense para recalcar o outro rural, agrário, por meio da importação de modelos de fora. Tais estéticas, apesar de utilizarem elementos regionais, colocavam-se em tensão com o regionalismo (pelo menos por certo tempo), por desvincular-se da ideia de apego à terra – por conseguinte, tanto à propriedade quanto à territorialização. A opção por estes recursos (inclusive os gêneros musicais), por parte da MLC, teve o mérito de nomear o diferente, recalcado pelo desenvolvimentismo impresso pelas elites - 438 agrárias e que se tornou marca registrada da cidade. Isso, no entanto, sem deixar de orientar a reflexão para a busca de novos modos de existir (representados musicalmente por gêneros transnacionais, estilos interpretativos, técnicas de processamento do som, uso sem preconceito da tecnologia disponível, incluindo instrumentos elétricos/eletrônicos). A busca de um projeto de modernização alternativa a partir da incorporação das diferenças estava expressa na inclusão de músicas, línguas, instrumentações e estilos das culturas tradicionais latinoamericanas, chamadas a participar do diálogo oferecido pela MLC. Este movimento propunha, assim, de maneira sutil, um estilo urbano e libertário de vida que, não obstante, assumia, de maneira crítica e irônica, sua situação periférica e subalterna com relação ao plano nacional, representado pelas coisas campestres (lembrar de “Polca outra vez”). Tal estilo, escapando às classificações então disponíveis naquela sociedade, constituiu algo realmente novo. A meu ver, exprimiu a insatisfação com o lugar de produtor primário reservado ao estado pelo arranjo de forças político-econômicas nacionais e globais dominantes, por meio da busca de alianças com os países sul-americanos próximos, na tentativa de deslocar a hegemonia dos grandes centros nacionais mantida sobre o estado. Além disso, vocalizou a recusa ao ufanismo nativista política e socialmente regressivo, representou um elemento importante de libertação de comportamentos rígidos e patriarcais, e influenciou papéis masculinos e femininos, criando novas sociabilidades. Nesse sentido, é importante notar que uma mulher compositora (o que já é uma tensão em um mundo de compositores homens) e negra, Lenilde Ramos, foi uma informante central nesta tese. Sua trajetória, vinda de família operária e ascendendo à posição de articuladora de políticas culturais do estado, é importante para entender como, por meio da MLC – das novas subjetividades viabilizadas por esta música –, foi possível a Lenilde e a outras mulheres construir uma posição a partir da qual passaram a influir com relevância na vida política e cultural de Campo Grande. - 439 À participação nos discursos de classe, soma-se, na fala de Lenilde, a participação nos discursos de consciência negra e de crítica à posição da mulher na sociedade, evidenciando uma posição dissonante com relação ao pensamento dominante. Em seu discurso, o fato de que, na sua família, sempre se praticaram formas de arte consideradas elitizadas, como a poesia e a apreciação da arte visual e música eruditas, se reveste do caráter de uma apropriação ativa, com o sentido de uma contestação aos privilégios das classes dominantes. Pela memória de Lenilde, verificamos que a busca de modernização pelo campograndense envolvia tanto as elites quanto parte dos setores subalternos. Entretanto, o conceito adquiria sentido bastante diferente para estes últimos, marcado por diferentes discursos e diferentes posições. São estes discursos, proferidos de uma posição crítica, que terão influência decisiva sobre a produção musical de Lenilde na MLC, contribuindo para explicitar o caráter plural, polifônico e intertextual do movimento. Com efeito, a própria atitude de Lenilde, de se lançar como compositora, implicou no rompimento de barreiras, internas e externas, produzidas pela ideologia patriarcal em um estado agrário, constituindo-se, assim, em um ato legitimamente político. Com relação à ideia de modernização alternativa, verificamos em sua obra, desde sua primeira composição, “O amor vence a cor”, além do interesse pelo desenvolvimento tecnológico (representado pela atenção aos EUA, aos festivais, à televisão), a preocupação com o racismo, um tema sobre o qual a sociedade local, fortemente dominada pela ideologia agrária, silenciava. A estratégia retórica empreendida pela canção promove a aproximação destes dois contextos – racismo e modernização – com o propósito de reflexão crítica e libertação de uma realidade opressiva. Da mesma maneira, Miska desenvolveu uma atuação importante, tanto à frente de Peña quanto de seu programa Som do Mato, na TV Educativa, que foi fundamental para o levantamento das especificidades culturais do estado. Além disso, promove continuamente a - 440 valorização das culturas latino-americanas e rurais no MS, continuando seu ativismo, hoje, na Praça Bolívia. Assim, é importante analisar a MLC também em termos do que contribuiu nas lutas ideológicas que visam à transformação das posições destinadas às mulheres, às minorias, aos músicos paraguaios, bolivianos e peruanos e populações rurais do estado, bem como às suas populações urbanas, especialmente aquelas formadas por não proprietários de terras, funcionários públicos, comerciantes e prestadores de serviços. Para isto, Lenilde e seus companheiros de MLC buscaram, inicialmente, expressão, por meio de gêneros musicais – com ênfase para o rock – associados às ideologias estudantis circulantes na década de 1960, que questionavam a autoridade, o stablishment, a guerra, a política tradicional dicotomizada entre direita e esquerda, ao mesmo tempo em que procuravam libertar-se da repressão ao comportamento, à sexualidade e à imaginação. Em resposta a uma realidade culturalmente limitada, sentida como sufocante, voltada para a produção agropecuária, a MLC ofereceu uma abertura ao novo, uma possibilidade de atualização cultural, um sentimento de conexão com pessoas e acontecimentos do restante do planeta. Este conjunto de proposições, por parte da MLC, possuiu eficácia política, na medida em que forneceu, a inúmeras mulheres e homens anônimos, sujeitos a uma estruturação opressiva do poder, novas posições subjetivas, a partir das quais puderam se unir para desafiar os rígidos papéis disponíveis. Além disso, parte da MLC permanece, até a atualidade, a propor o deslocamento das alianças e lealdades estabelecidas pelas elites agrárias com os grandes grupos dominantes no âmbito nacional, em favor de uma integração latino-americana, envolvendo os países da América Platina. Este complexo de efeitos políticos produzidos pela MLC são resultado da intertextualidade promovida pela mistura de linguagens, estilos e - 441 universos culturais, com destaque para os gêneros musicais platinos, principalmente a guarânia e a polca paraguaias, e o chamamé argentino. Para compreender as características específicas desta intertextualidade, é fundamental reconhecer nesse movimento seu traço fundamental – a desconstrução identitária. A persona poética das canções da MLC é composta de seres em constante procura, movimento, fluxo, deslocamento, ausência de pertencimento, inacabamento. Interpreto esta indeterminação da subjetividade na MLC a partir de seu papel como manifestação surgida dos múltiplos discursos em conflito em Campo Grande, aos quais se adicionou o intuito de descobrir um caminho ainda inexistente e inclusivo para o desenvolvimento da cidade. A expressão da dúvida, da incerteza, da procura e da indeterminação nas canções da MLC corresponde, então, a esta busca, que envolvia, também, um propósito crítico. O movimento evidencia contradições, tanto em relação às oligarquias rurais e urbanas, quanto à situação subalterna imposta pelos arranjos de forças aceitos por elas a partir de suas alianças com os centros brasileiros mais desenvolvidos. Tais contradições se materializam a partir da incorporação dos elementos rurais, tradicionais e latino-americanos recalcados pelo projeto de modernização capitalista capitaneado por estas oligarquias. Como se parte aqui da constatação de que as canções populares são, primordialmente, maneiras pelas quais as pessoas podem experimentar novas identidades ou mesmo o desaparecimento delas, a desconstrução identitária na MLC se reveste de relevância. Isso porque parece indicar um possível papel propagador a uma forma de produção cultural que inspirou os membros dessa cultura a resistirem aos papéis sociais instituídos. Um dado intrigante, que se reveste de significância em face desta problemática, é o fato de que as canções da MLC surgem repentinamente no interior do Brasil, rompendo com tradições musicais sertanejas de apego à terra e de conformidade ao trabalho na fazenda, seja mandando no empregado, seja a mando do patrão. Enquanto as músicas sertanejas retratavam - 442 protagonistas deterministicamente atados ao seu local de origem, a persona poética de muitas das canções da MLC é composta de seres em constante fluxo, deslocamento de sentidos (ressignificação), ausência de pertencimento, inacabamento. Isto é comunicado não apenas por meio das mensagens comunicadas pelas letras de música ou dos recursos retóricos empregados em suas figuras de linguagem, mas também por meio da música: gêneros musicais, estilos de execução e instrumentação, continuamente ressignificados ao serem descontextualizados e recontextualizados em diferentes planos. A estas configurações construtivas peculiares da Música do Litoral Central, denominei de poéticas do deslocamento. Evidentemente, há uma larga tradição de itinerância na música sertaneja: o eu lírico destas canções é, frequentemente, alguém que está longe de casa, seja em uma comitiva boiadeira, seja trabalhando em uma fazenda distante, seja morando na cidade grande. Note-se, no entanto, que a identidade do trabalhador rural no latifúndio é mantida, mesmo que muitas vezes lamentada. Também a identidade do patrão é preservada nessas canções, sendo frequentemente celebrada. Já no caso desta vertente de canções da MLC, não se pode afirmar com toda certeza qual é a identidade de seus protagonistas. Os tropos do fluxo e do deslocamento de sentidos (ressignificação), constantes em letra e música em numerosas produções do movimento, se comunicam metonimicamente ao ethos dos protagonistas, e o resultado é uma subjetividade em processo, nunca determinada. Esta característica exerceu influência política sobre os elementos culturais mais amplos aqui estudados, transformando as representações dominantes, o que se verifica a partir da constatação e exame, empreendidos aqui, da inserção da MLC nos debates culturais do estado. A partir desse exame, se constata que, sem dúvida, a MLC apontou direções para uma crítica das relações de poder. Seus tropos do fluxo e do deslocamento de sentidos, quando pensados no contexto das subjetividades, conduziram efetivamente a uma desestabilização - 443 irônica das identidades estabelecidas. Abalando a rigidez das hierarquias sociais, isso contribuiu, como já mencionado, para a ascensão de representantes de grupos sociais marginalizados a posições de influência, para uma transformação positiva do estatuto das culturas populares tradicionais na sociedade local, e para uma reformulação progressista dos papéis sociais disponíveis. Como se vê, esta música produziu novos discursos, que entraram em conflito com os discursos dominantes ao propor novas posições subjetivas, a partir das quais os sul-mato-grossenses puderam desafiar tais discursos dominantes e as bases materiais dos quais dependem e que, simultaneamente, os sustentam. O caminho metodológico adotado nesta tese discutiu os projetos que primeiro disponibilizaram a MLC através de concertos ao vivo e também em mídia gravada. Em geral, como o pioneiro Prata da Casa (1982), eram iniciativas da Universidade Federal do MS (UFMS). No entanto, todo o cuidado foi tomado para não entender semelhantes iniciativas institucionais como decorrência de um projeto ideológico coerente, supostamente dominado a partir “de cima” ou “de baixo”. Tendo em vista a necessidade de compreender a atuação de indivíduos isolados em meio a processos não unificados, sujeitos a múltiplas disputas e contestações, dedicamos uma atenção especial à figura do mediador. A gravação em LP do show Prata da Casa, por exemplo, que teve importância fundamental para colocar, pela primeira vez, o apoio da UFMS e do governo do estado à MLC, com decisiva participação da poderosa repetidora local da TV Globo, deveu-se em parte considerável a Candido Alberto da Fonseca e à professora Glorinha. Outro mediador de fundamental importância é o artista plástico Humberto Espíndola. Tendo desenvolvido um projeto político-cultural e artístico para Mato Grosso do Sul, a partir de uma visão estratégica que visava deslocar o eixo de poder que governava o MS a partir de alianças com os grandes centros nacionais, em direção aos países platinos, Humberto foi extremamente influente para todos os primeiros compositores da MLC. Além disso, foi - 444 secretário de cultura do estado do MS, quando se empenhou em colocar em prática sua visão, buscando colocar Campo Grande no centro de uma articulação envolvendo os países vizinhos Paraguai e Bolívia. Num processo em cadeia, outra mediadora imprescindível para a compreensão do lugar alcançado pela MLC na significação da diferença cultural de Campo Grande é Margarida Neder, idealizadora da Peña Eme-Ene. Filiada à linhagem das Peñas de origem andina, a principal ideia que animava a Peña era a de promover uma integração latinoamericana que propiciasse uma identificação do sul-mato-grossense com os países vizinhos. A Peña estabelece uma conexão com a MLC inicial, propondo, junto a esta, um caminho próprio para Campo Grande, a partir de sua posição periférica na América Platina. Foi um espaço fundamental de mediação por, além de outras características, impor um novo respeito e autoestima para as produções marginalizadas, locais e latino-americanas. A Peña funcionava, assim, como um terreno em que múltiplos discursos (aqueles favorecidos por Humberto, por Simões, ou por Margarida, ou por Lenilde, ou por Norma, por Miska, cada músico, local ou de outro país latino-americano, cada participante do público) entravam em um diálogo, e o resultado era a construção de uma definição da ideia de Mato Grosso do Sul. Tendo sido explicitamente legitimada por certos atores sociais para proceder à “descrição” (na verdade, à invenção coletiva) e à pedagogia das diferenças do estado, La Peña Eme-Ene funcionou como um campo onde múltiplos mediadores negociavam definições identificatórias e políticas por meio de discursos musicais e verbais. Tendo em vista sua atuação semanal ininterrupta por dez anos, período em que recebeu formadores de opinião com influência local, nacional e internacional, teve forte influência sobre as representações do MS, da MLC e da América Platina, empenhando-se na convergência destes três elementos para a construção de uma unidade latino-americana no estado. Entretanto, o fato de que não houve um estímulo definido da parte do governo, dos - 445 políticos ou do empresariado, traduzido na forma de um patrocínio econômico, evidencia a divergência ideológica entre a orientação adotada por Margarida e aquelas predominantes na sociedade. Esta divergência ressalta, no plano local, os discursos dominantes, que, historicamente, promovem uma concepção de modernização desenvolvimentista excludente, recalcando o universo rural e desencorajando iniciativas favoráveis à união entre os povos latino-americanos. Não se deve esquecer, também, as mediações exercidas pelos meios de comunicação de massa. Neste aspecto, tem maior relevância, no plano nacional, a novela Pantanal, exibida durante o ano de 1990, e tendo Almir Sater (um dos compositores da MLC) como galã. Pantanal veiculou, em escala nacional, várias das canções produzidas pela MLC, e serviu, inegavelmente, para popularizar esta música em todo o Brasil. No entanto, esta popularização não rendeu frutos concretos para a MLC como um todo. Quem, realmente, foi lançado para o sucesso nacional a partir de sua atuação na novela, foi Almir Sater. Os outros compositores do movimento continuaram desconhecidos do grande público. O sucesso de Almir, como compositor e intérprete da MLC, em uma novela de grande popularidade nacional, bem como o fato de que os outros compositores do movimento, tão criativos quanto o violeiro, não conseguiram atingir a popularidade com sua música, convidam à investigação de suas possíveis razões, tema a que retornaremos. A novela construiu uma recepção, dentro e fora do estado, que passava a perceber a música e identidade desse estado como “pantaneiras”, e como a expressão fiel de uma cultura autóctone. Neste sentido, foi um grande auxílio ao projeto ideológico das elites que visavam a afirmação de um regionalismo adequado aos seus propósitos. Por meio desse regionalismo, os setores dominantes produziram um consenso entre os segmentos rurais, consenso necessário para sua governança, após ascenderem ao controle da máquina estatal, com a criação do MS. Este processo será recapitulado a seguir. - 446 A dicotomia mundo rural versus mundo “desenvolvido”, que se projetava sobre a dicotomia capital versus interior era, desde várias décadas antes do advento da MLC, mapeada a partir dos gêneros musicais em voga nos bailes de Campo Grande. Nesses bailes, era esperado que a programação constasse de gêneros da moda buscados nas capitais brasileiras e internacionais, sendo executados com toda a competência por músicos locais ou trazidos de fora especialmente para a ocasião. No entanto, por volta de meia noite, quando a animação estava no auge, desencadeavam-se indefectivelmente as animadas polcas paraguaias. Conhecidas por “limpa-banco” devido ao furor dançarino que suscitavam, as polcas sempre fizeram muito sucesso, impelindo todos ao salão. Fossem bailes de carnaval, de réveillon ou qualquer outra ocasião durante o ano. Como verdadeira tradução da ideologia dominante, que opunha o rural ao cosmopolita, capital e interior, não havia mistura entre as músicas “da capital” e “do interior”. Ocupavam elas seções claramente delimitadas da vida social. Passado e presente, rural e urbano continuavam a ocupar, assim, partes relativamente estanques da vida social, indicando interditos e segregações. É apenas com a hibridação, em uma mesma produção, do arcaico e do moderno, do campo e da cidade, que se tornaria possível revelar a contradição violenta inerente à superposição destes dois planos no presente da vida urbana contemporânea globalizada. Este seria o achado da Música do Litoral Central, apenas a partir de 1968. Nove anos depois ocorre a divisão do estado. Neste momento, as elites agrárias ascendem ao poder executivo e sentem a necessidade de superar esta dicotomia, elaborando um discurso de integração regional. Isso era necessário, para que se conseguisse a adesão de todo estado ao projeto divisionista: afinal, seria impossível justificar a divisão da unidade federativa sem a proclamação de vantagens inequívocas para toda a população, seja da capital, seja do interior, independente de sua classe social. Assim, os discursos verbais se encarregaram de propor essa integração, ressaltando os benefícios que adviriam ao novo - 447 estado dividido. Segundo esses discursos, os recursos gerados pela vitalidade econômica propiciada pela pecuária sulista deixariam de ser continuamente drenados, de maneira supostamente parasítica, para a sustentação do norte, passando a promover o desenvolvimento do sul. No entanto, faltava ainda um elemento fundamental para este projeto de integração: uma produção cultural significativa do próprio estado. Algo que coadjuvasse a produção de um consenso por meio de um discurso de unificação. No caso, a unificação cultural e política de toda a região futuramente pertencente ao estado de Mato Grosso do Sul, e que lhe desse um senso de identidade. Mas que, ao mesmo tempo, fosse capaz de expressar, prioritariamente, a sofisticação cultural, o cosmopolitismo e desenvolvimentismo exibidos como marcas da singularidade, diferença e liderança das elites dirigentes de Campo Grande, estabelecendo uma clara hierarquia entre capital e interior, classes médias e subalternas. Esta produção viria a ser a Música do Litoral Central. Ela seria instrumental para a produção do consenso requerido, pois sintetizava, como vimos, a experiência urbana dos grandes centros nacionais e globais às influências pantaneiras, caipiras e latino-americanas, constituintes do interior do estado e, em menor escala, do cotidiano de Campo Grande. Buscava, entretanto, um relato fragmentário, que priorizava Campo Grande em relação ao interior, uma vez que, devido a sua dependência direta da economia agrária, o restante do estado estava separado do universo cultural urbano e cosmopolita proposto pela MLC. A incorporação de elementos rurais pelo movimento, portanto, não se fazia isenta de uma hierarquização. Não há dúvida de que sua sensibilidade ao rural nunca poderia ser confundida com a sensibilidade e a perspectiva do próprio trabalhador rural, que se manteve afastado do universo cultural proposto por essa música. Ouvindo as canções da MLC, surge, sempre, a sensação de estarmos frente a uma manifestação das elites, voltadas nostalgicamente ao universo do campo idealizado em tons românticos. - 448 É com essa característica que o movimento viria a ser parcialmente cooptada pelas classes dirigentes a partir da divisão. Conveniente aos seus propósitos, a MLC cumpria a contento a missão de unir elementos tradicionalmente entendidos como definidores da fisionomia cultural do estado a técnicas e procedimentos sofisticados e avançados para a época. Assim procedendo, realizava uma síntese entre tradição e modernidade, traduzindo em música e letra uma narrativa desenvolvimentista liderada pelas elites decisórias da capital que, concomitantemente, integrava o interior do estado a seu projeto. No processo de construção desse consenso entre a população de todo o estado, necessário para a consolidação da hegemonia da classe dominante, percebem-se as motivações de vários atores com relação à busca de uma identidade, que às vezes surge em seus discursos como incerta, indeterminada, não sabida, por inventar, e outras vezes, como algo que já existia, restando apenas ser encontrada, como raízes a desenterrar. Evidentemente, tais motivações não eram coincidentes, havendo desde aquelas mais direcionadas para o interesse pessoal e de certos grupos, até aquelas que visavam o bem comum. Entretanto, o que demonstra o pós-estruturalismo, seja no período estudado no MS ou em outras épocas e lugares, é que não importam as intenções supostamente preconcebidas dos atores, mas as posições que ocupam nos discursos. Os discursos de poder permitem a dominação justamente por oferecer posições a todos, mesmo, em muitos casos, àqueles que pensam estar a contrariálos. Os compositores da MLC, por exemplo, eram parte dos segmentos urbanos que buscavam um caminho singular para o desenvolvimento da cidade, considerando a posição subalterna de produtor primário ocupada pelo estado no plano nacional. Em seu modelo de modernização, o diálogo que preconizavam, entre as vozes silenciadas pelo desenvolvimentismo que se implantou desde o início do século XX, originalmente não se - 449 confundia com um regionalismo ideológico, instrumentalizado pelas elites dirigentes em busca de hegemonia. Entretanto, eram passíveis de serem rearticuladas a esta ideologia. Também passíveis de articulação aos discursos dominantes, com o fim de reforçar o consenso do qual participou a MLC, eram muitas das propostas discutidas nesta tese, citadas a seguir, e muitas convergem para a invenção do Pantanal. Os esforços realizados pelo exgovernador Zeca do PT, no sentido de promover a mudança de nome de Mato Grosso do Sul para Estado do Pantanal, estimulando a confluência dos interesses comerciais e políticos que medeiam a recente (auto)definição de grandes parcelas da população sul-mato-grossense como “povo pantaneiro”. A descoberta do turismo predatório da pesca no Pantanal, incentivado pelo asfaltamento da BR 262 em 1986. A crescente estruturação empresarial do turismo ecológico no MS e sua priorização como fonte de receita, até redundar, recentemente, em um plano de desenvolvimento turístico por parte do governo estadual. O movimento social e ecológico local, regional, nacional e internacional em torno da defesa do Pantanal contra as usinas de álcool, coureiros e mineradores. O Movimento Guaicuru, que tencionava criar um nicho de mercado para o estado e as artes visuais. Também passíveis de apropriação pelos discursos dominantes eram as características da orientação teórica – que enfatizava a construção de uma identidade regional – assumida pelos mediadores que se dedicavam à cultura do estado. Entre eles, podem-se citar Guizzo, Glorinha, sua equipe na Fundação de Cultura, Margarida Neder e a Peña. Guizzo (como representante de uma corrente bastante expressiva de intelectuais, artistas e pessoas comuns), que se afiliava ao ideário de Mário de Andrade, defendia uma identidade regional fundada no Pantanal, frente à suposta invasão de influências importadas, internacionais e nacionais. Como Guizzo, todos os outros atores mencionados possuíram uma atuação desinteressada de ganhos pessoais, mas, ao lutarem pelo estabelecimento de uma identidade regional, permitiram que seus discursos pudessem ser - 450 absorvidos pelos interesses dominantes na construção de um consenso que permitisse o controle do estado. Percebemos, então, que um mesmo discurso identitário foi construído por interesses conflitantes, mas que puderam encontrar pontos de convergência quase arbitrários em torno de símbolos do Pantanal, possibilitando a hegemonia dos discursos dominantes. Esse mesmo discurso identitário, generalizando-se por toda a sociedade do estado, é proferido por grupos discrepantes em sua composição e interesses. Engloba, entre outros, outsiders em geral, músicos contempladores da natureza, pessoas comuns em busca de símbolos geradores de auto-estima e singularização, ecologistas sinceramente preocupados com o conservacionismo, latifundiários em busca de uma apologia de sua atividade e forças políticas e econômicas no mais amplo sentido em busca de ampliação de seus poderes. Analogamente, as preocupações com um hibridismo latino-americano, que percorrem a MLC, são também encampadas por grupos com diferentes agendas. Encontram-se as mesmas preocupações críticas, políticas, líricas e humanísticas assinaladas acima, por Humberto Espíndola, Margarida Neder e a Peña, Lenilde, Miska e músicos latino-americanos, mas, em vista da nova realidade trazida pelo Mercosul, implantado em 1991, percebe-se também a assimilação do discurso de pan-americanismo por segmentos interessados na disputa pelo poder político e econômico sobre a região. Detectam-se, no cruzamento dos discursos verbais e musicais que participaram da construção da hegemonia, diferentes e contrastantes ansiedades. As ansiedades dos jovens alternativos e ecológicos produzidos pelo forte impacto contracultural dos anos 60, e mesmo assim cultores da poesia erudita, que, insatisfeitos com uma auto-definição limitada ao rural buscaram ativamente referências urbanas. As ansiedades econômicas de artistas em busca de um produto a ser comercializado. As ansiedades de uma classe média, pouco orgulhosa de suas origens interioranas e mais identificada com valores das metrópoles. As de outros - 451 segmentos, orgulhosos de símbolos selecionados arbitrária e metonimicamente do imaginário do Sul de Mato Grosso—a influência paraguaia, a mística do Pantanal e a estetização do latifúndio figurando com destaque. E as ansiedades das classes pobres rurais em contínua e crescente transição para a urbanização. A estas ansiedades se vêm juntar as dos promotores de cultura, as dos controladores dos meios de comunicação de massa e as dos detentores das forças decisórias do Estado, em busca de poder político e econômico. No entanto, todos estes agentes possibilitaram a construção de um consenso que permitiu o fortalecimento dos discursos dominantes. O conjunto destas rearticulações ressalta a construção da hegemonia das classes dominantes a partir da incorporação ao seu projeto ideológico de propostas discordantes, mas passíveis de assimilação mediante certos compromissos e consensos parciais. Que, sendo fruto de um processo tão complexo e carregado de antagonismos, estará irreparavelmente entretecido de contradições, o que favorece sua ruptura e dissolução. Envolvidos pelos discursos hegemônicos, alguns compositores da MLC, muitas vezes, se distanciaram da possibilidade de desestabilizar as categorias utilizadas por eles mesmos como desafio a uma sociedade que recalcava o diferente (a fronteira, a polca paraguaia, o peão, a fazenda, o índio, o Pantanal, a região). Para isso, também contribuiu o terem-se defrontado com o desafio adicional representado pelo que lhes pareceu uma necessidade, uma missão histórica, a “nova fé religiosa”, de que fala Elizabeth Travassos a partir de sua análise sobre o pensamento de Béla Bartok e Mário de Andrade. Tendo em mãos “a força capaz de mudar o pouso das montanhas” – a de estabelecer, fixar uma identidade para o estado nascente, que condensasse em si a narrativa épica e a memória que desse sentido à existência nesse estado – alguns compositores da MLC terminaram por reforçar a ideologia dominante. Assim, registram-se, como interesses na busca de uma definição identitária do estado centrada na questão cultural, o foco em um determinado modelo de desenvolvimento - 452 econômico e social, e a luta pela hegemonia política e econômica. Todos estes vetores de forças encaminharam-se para certas direções de consenso que se puderam construir. Face a essa conjuntura, a MLC, identificada inicialmente com uma posição marginal, eminentemente descompromissada com as verdades oficiais, envolvida em uma reflexão crítica sobre a situação subalterna do estado, não conseguiu mais se libertar inteiramente deste discurso, ao qual o tom oficial não era totalmente estranho. Como consequência, passou a sofrer seguidas críticas de músicos, outros artistas e público, notadamente das gerações posteriores. Estas passaram a utilizar o termo “jacarelândia” para unificar protestos contra o que lhes pareceu uma excessiva dependência, por parte da MLC, das benesses oficiais, um discurso ufanista do estado e do mato, da natureza, do tuiuiú, da polca paraguaia e da moda de viola caipira. Se esta foi a participação de MLC no processo de construção do consenso que produziu a hegemonia da classe dirigente do novo estado, como poderíamos entender as heterogêneas tentativas de inserção das diferentes vertentes do movimento na construção da hegemonia dos setores dominantes no âmbito nacional? Como foi dito, Almir Sater foi o único compositor e intérprete da MLC que obteve popularidade nacional, a partir de sua atuação na novela Pantanal. Os outros compositores do movimento, tão criativos quanto o violeiro, não conseguiram atingir sucesso “nacional” com sua música. Pode-se perguntar: por que? De início, deve-se reafirmar que não há explicações causais mecânicas para o sucesso comercial. No caso de Almir, há que se considerar uma infinidade de possibilidades, como o fato de que ele alia diversos talentos, de cantor, compositor e instrumentista virtuose. Possui, também, beleza física, atributo essencial para seu sucesso nacional, que veio apenas a partir de sua participação nas novelas – de acordo com Simões, as plateias de Almir “vão ouvir o ator que canta”, sendo seu sucesso como ator de novelas desproporcional ao seu sucesso como cantor e compositor (Simões, 2009). Há também a possibilidade da interferência do chamado - 453 “carisma”, aquele imponderável que faz com que, entre dois artistas de estilo quase idêntico, um seja bem sucedido e outro não. Apesar de todas essas ressalvas, é provável que, nesta produção discrepante do sucesso “nacional” das diferentes vertentes da MLC, haja a interferência das mediações que atuam, embora de maneira não determinante, na filtragem dos discursos, objetivando a reprodução das relações de poder. Retomando nossa pergunta, sobre o porquê da inserção desigual dos artistas da MLC na mídia nacional, de início, pode-se afirmar que Simões, Roca e Espíndola – consoante a orientação de Humberto Espíndola, a valorização contracultural dos países andinos e a tendência crítica manifestada na cidade quando do surgimento da MLC, nos anos 1960 – estavam comprometidos com a proposta de um modelo próprio de desenvolvimento pensado a partir de Campo Grande, enquanto cidade periférica situada na América Platina. Isto explica a presença conspícua de elementos locais e rurais em sua música, notadamente os gêneros paraguaios e certos elementos bolivianos e peruanos. Tais elementos são historicamente associados ao “atraso” e destinados ao perene escárnio da sociedade brasileira (la garantia soy yo, diz o comercial transformado em popular bordão que visa alegremente associar a cultura paraguaia unicamente ao contrabando e falsificação, quando não ao tráfico de armas e drogas). Tivemos, inclusive, oportunidade de verificar que tais preconceitos são reafirmados continuamente por um processo de agendamento (agenda setting) na imprensa brasileira. Respondendo a esta situação, a MLC incorporou as referências às culturas rurais e latino-americanas de maneira afirmativa, invertendo, performativamente, sua carga pejorativa. Apesar das reservas dos setores dominantes de Campo Grande em se deixar associar a esta música, isso terminou acontecendo de maneira parcial e contraditória. A hibridação entre materiais regionais – rurais e latino-americanos – e cosmopolitas, assim, foi empregada como desafio e recusa da cidade em enquadrar-se na posição subalterna de produtor primário - 454 reservada ao estado como um todo. Por essa razão, a inclusão de tais materiais era importante ao movimento. A incorporação de elementos rurais, entretanto, não se fazia isenta de uma hierarquização. O destino de Campo Grande era idealizado por estas classes médias urbanas como um modelo para o restante do estado, mas não havia, realmente, condições objetivas para a incorporação do interior a este projeto urbanizador. Excluído de seu universo cultural, o interior ignorou largamente a MLC, e, justamente por isso, não poderia dar sustentação econômica e de popularidade ao movimento. Sem tal sustentação, a característica hierarquizante e elitista da MLC permitiu que ela fosse articulada aos discursos dominantes. Ao contrário, o estilo de Almir, inserido na categoria preexistente do “sertanejo universitário”, foi mais conveniente, em termos comerciais, para a novela Pantanal e para a indústria fonográfica, por não expressar uma singularidade fragmentária, uma diferença campo-grandense. Remete-se, ao contrário, a traços genericamente associados aos interioranos de todo o Centro-Sul, sendo capaz de inserir-se em uma recepção historicamente favorável de um amplo contingente nacional às coisas do campo veiculadas pela indústria cultural, conotadoras da pureza e do paraíso perdidos. Por estas características unificadoras, a música de Almir pôde fazer sucesso enquanto mercadoria passível de ser largamente consumida pelo público “nacional”. Tudo isso indica respostas para a pergunta que está na fala angustiada de muitos daqueles envolvidos com a MLC: por que não deu certo? Por um lado, como tivemos oportunidade de salientar por diversas ocasiões, parece evidente que o sucesso de uma música está relacionado com sua eficácia em articular o desejo dos vários segmentos populacionais a que se dirige (o que remeteria à proposição de que as canções populares são, primordialmente, maneiras pelas quais as pessoas podem experimentar identidades desejadas). Assim, o sucesso fora da esfera centralizadora da indústria cultural - 455 “nacional”, representado, por exemplo, pelas músicas dos baileiros, do sertanejo universitário, da axé music, seria devedor da eficácia destes gêneros em exprimir as expectativas de diferentes pessoas, de diferentes grupos sociais, geográficos e culturais das regiões onde estão inseridos. Consequentemente, estas músicas podem permitir-se subsistir basicamente do seu público mais direto. Embora possam contar, também, com muita popularidade no restante do país, sua sobrevivência não depende dos públicos “nacionais”. O mesmo não ocorreu com a música aqui estudada. Poderíamos, portanto, compreender a inviabilidade da MLC no estado como um todo como decorrente de sua opção por um discurso, que, excluindo o universo cultural das populações periféricas da cidade e rurais do restante do MS, em última análise, não chegou a promover efeitos sobre elas. Caso pertinente, esta sugestão ressaltaria o fato de que a proposta de um modelo próprio de desenvolvimento pensado a partir de Campo Grande, com a recusa dessa cidade em enquadrar-se na posição subalterna de produtor primário reservada ao MS, baseia-se na ideia de fragmentação, não de integração. Poderíamos pensar também nestes termos para compreender a aceitação de certa vertente da MLC no plano nacional, a partir do modelo integracionista oferecido pela novela Pantanal e pelo estilo de Almir Sater. Seguindo este modelo, as referências estranhas e polêmicas à América Latina Índia são recalcadas, assumindo prioridade um modelo de caipira modernizado, com características de autenticidade e proximidade à natureza. Inespecífico da realidade singular do MS e MT, este personagem transfere qualidades dos interioranos de todo o Centro-Sul, já testadas e aprovadas pelas audiências “nacionais”, ao novo exotismo representado pelo Pantanal, com apelo irresistível. Afinal, tanto Almir quanto a novela Pantanal propõem uma música e significados culturais passíveis de despertarem identificações por parte de interioranos de todo o Centro-Sul e do público “nacional”. - 456 Por excluir os gêneros platinos, rechaçados pelos interesses do grande capital sobre a região Centro-Oeste, e por estabilizar, em letra e música, uma imagem modernizada do caipira autêntico, a música de Almir não cria atritos com os discursos dominantes e contorna certas dificuldades que poderiam tê-lo impedido de ascender ao sucesso “nacional” (o que, evidentemente, não explica as complexidades inescrutáveis que efetivamente constroem um sucesso). Apesar de a mediação televisiva ter acenado com certas vantagens palpáveis, embora tempo