COMENTÁRIO DE JOÃO INTRODUÇÃO Bem-vindos ao Estudo do Evangelho de João, do Novo Testamento! O Evangelho de João ocupa um lugar de destaque no Novo Testamento. Nenhum outro livro nos apresenta Jesus como João o faz. No decorrer da história, milhares e milhares de comentários a esse magnífico Evangelho foram escritos. A primeira obra da qual temos conhecimento apareceu aproximadamente 50 anos após o Evangelho ser concluído. Foi um herege gnóstico¹ do século dois, chamado Heraclião, que escreveu um comentário ao Evangelho de João. ¹A palavra gnóstico vem do termo grego “gnosis” que significa conhecimento. O gnosticismo se aplica a um grupo de religiões surgidas do séc. 2 em diante, que enfatizava a importância de receber o conhecimento secreto para salvar-se do mau: isto é, do mundo material. Imaginem a quantidade de interpretações escritas no mundo todo durante os quase dois mil anos decorridos, desde esse primeiro comentário! Somente no ano 2006, em uma única editora alemã, foram anunciadas três novas obras sobre João Evangelista. A grande maioria das interpretações é elaborada por teólogos em sua linguagem às vezes difícil para leigos. Muitas vezes os comentários se perdem em questões secundárias, que não são prioridade para leigos. Falando de igual para igual, cremos ser possível lermos este Evangelho e sermos abençoados com uma compreensão muito mais profunda da pessoa e da obra de Cristo. É isso que a UMBET está procurando fazer. O Evangelho de João é diferente dos três anteriores e exige mais estudo. Ele foi escrito quando os outros três (Mateus, Marcos e Lucas) já eram conhecidos, em grande parte das comunidades cristãs, com seus autores já falecidos há dezenas de anos. Escrever mais um comentário sobre João somente se justifica com o nosso propósito de colocar em suas mãos um resumo que aborda algumas questões que geralmente são ignoradas em comentários não-teológicos para leigos. Até hoje não há, e provavelmente nunca haverá, um comentário digno para esse Evangelho divino. O Evangelista João, ao contrário de seus colegas Mateus, Marcos e Lucas (que nos passaram suas impressões do homem Jesus Nazareno e de seus feitos extraordinários), fala do “logos de Deus”, do Deus Encarnado. Como a razão humana e a língua humana não são capazes de “explicar” o Divino, o Evangelista João preferiu falar em metáforas. Alguém, com razão, disse que o Evangelho de João inteiro é uma metáfora (uma mensagem indireta, através de imagens). Em grande parte encontramos monólogos de Jesus 1 Caro(a) leitor(a) Esses comentários foram elaborados no intuito de ajudá-lo(a) no seu estudo do “Evangelho segundo João”, quer seja estudo pessoal ou em grupo. Tomamos a liberdade de usar o texto extraído de diferentes edições da Bíblia, optando por aquela que, fiel ao original, nos pareceu ser mais fácil para compreensão. Consultamos as edições RA (Revista e Atualizada) da “Almeida” (SBB); a NVI (Nova Versão Internacional) da Ed.VIDA; a “Século 21” da Ed.VIDA NOVA; a “Bíblia de Genebra” da Ed.”Cultura Cristã/SBB” e a “Bíblia de Jerusalém” da Edições Paulinas (veja bibliografia no final do texto). Embora tenhamos deixado o texto citado do Evangelho, na maioria das vezes sem alteração, por uma questão de respeito, quando comentamos esses textos, tomamos a liberdade de grafar com a primeira letra em maiúsculo os termos “Eu”, Ele”, “Seu”, “Sua”, “nEle” etc... , se esses termos se referirem a Deus, a Jesus, ou ao “Parácleto” (Espírito Santo). O estudo é de propriedade da “União Missionária Brasileira – UMBET” e está sendo disponibilizado a todos os interessados, gratuitamente, em forma de CD. Para os devidos fins, esclarecemos que é proibida sua venda. Revisão final: José António de Castro Mogi das Cruzes, S.P., agosto de 2010 O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO CONTEÚDO pág. Introdução I caps 1-11 > o jovem João 3 > o velho Ap.João 4 > Conteúdo do Ev. 6 > o legado de João 8 > Consid.históricas 9 > quando foi escrito 11 Cap 1.1. 13 Cap 1,2-5 18 Cap 1.6-9 21 Cap 1.10-13 24 Cap 1.14 27 Cap 1.15-18 32 Cap 1.19 35 Cap 1.19-28 40 Cap 1.29-34 45 Cap 1.35-42 48 Cap 1.43-51 53 Cap 2.1-11 55 Cap 2.11-12 60 Cap 2.13-22 63 Cap 2.23-35 67 Cap 3.6-12 72 Cap 3.13-15 75 Cap 3.16-21 81 Cap 3.22-30 84 Cap 3.31-36 87 Cap 4.1-17 91 Cap 4.18-29 96 Cap 4.30-42 100 Cap 4.43-45 105 Cap 4.46-54 108 Cap 5.1-9 112 Cap 5.9-18 117 Cap 5.19-24 125 Cap 5.25-30 129 Cap 5.31-40 132 Cap 5.41-47 137 Cap 6.1-4 140 Cap 6.5-15 144 Cap 6.16-29 148 Cap 6.30-40 152 Cap 6.41-52 156 Cap 6.53-59 161 Cap 6.60-66 165 Cap 6.67-71 168 Cap 7.1-13 Cap 7.14-24 Cap 7.25-36 Cap 7.37-39 Cap 7.40-52 Cap 7.53-8.11 Cap 8.12-20 Cap 8.21-30 Cap 8.31-47 Cap 8.48-59 Considerações I Considerações II Cap 9.1-7 Cap 9.8-23 Cap 9.24-34 Cap 9.35-41 Cap 10.1-8 Cap 10.9-18 Cap 10.19-42 Conclusão Parte I 172 177 180 186 190 194 199 206 212 217 223 228 233 238 242 247 251 256 262 269 Introd.II caps 12-21 Cap 11.1 Cap 11.1-16 Cap 11.17-31 Cap 11.32-44 Cap 11. Suplemento Cap 11.45-57 Cap 12.1-11 Cap 12.12-19 Cap 12.20-28 Cap 12.28-36 Cap 12.37-43 Cap 12.44-50 Cap 13.1-11 Cap 13.12-17 Cap 13.18-30 Anexo: JUDAS Cap 13.31-38 Cap 14.1-3 Cap 14.4-6 Cap 14.7-14 Cap 14.15 Cap 14.15-24 Cap 14.25-31 Cap 15.1 Cap 15.1-8 Cap 15.9-13 Cap 15.14-16 Cap 15.17-26 275 278 281 285 290 296 301 308 313 318 322 325 330 333 339 342 348 349 355 359 363 367 373 379 384 388 394 398 401 Cap 15.27-16.4a Cap 16.4b-11 Cap 16.12-15 Cap 16.16-22 Cap 16.23-24 Cap 16.25-33 406 408 412 416 419 422 Cap 17. Introdução Cap 17.1-5 Cap 17.6-12 Cap 17.13-19 Reflexão caps 1-17 426 431 436 440 446 Cap 18.1-2 Cap 18.3-5 Cap 18.4-13 Cap 18.14-16 Cap 18.17,18/25-27 Cap 18.19-24 Cap 18.24 Cap 18.28-29 Cap 18.30-38 Cap 18.38 – 19.5 Cap 19.6-12a Cap 19.12b -16 Cap 19.17-18 Cap 19.19-24 Cap 19.25 Cap 19.26,27 Cap 19.28-30 Cap 19.31-37 Cap 19.38-42 450 454 458 462 466 470 475 479 483 489 495 500 505 510 515 519 525 531 536 Cap 20 Introdução Cap 20.1-10 Cap 20.11-16a Cap 20.16-18 Cap 20.19,20 Cap 20.21-23 Cap 20.24-29 Cap 20.30,31 Cap 21.1 Cap 21.1-10 Cap 21.10-14 Cap 21.15-19 Cap 21.20-22 Cap.21.23 Cap.21.24,25 543 547 553 556 560 565 569 573 578 583 588 593 598 601 604 Bibliografia 609 trabalhados dentro de narrações que, por si sós, também poderiam ser metáforas. Nunca sabemos exatamente onde as palavras de Jesus se transformam em palavras do próprio Evangelista. Tampouco sabemos se o acontecimento narrado é histórico ou, em parte pelo menos, também uma metáfora, criada pelo Evangelista para poder transmitir e tornar “visível” a mensagem do “logos”. No Evangelho de João, o próprio Deus está nos falando através de Jesus. Veja o que Jesus respondeu a um de seus seguidores, que almejava ver a Deus. “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me ve, ve o Pai” (14,9). Toda a leitura desse Evangelho e a nossa “especulação” a respeito do sentido das palavras de João devem acontecer com profundo respeito, consciente do fato de encontrar o Deus Pai na face e nas palavras do Cristo joanino. Antes de começar com a leitura, convidamos você a conhecer algo do contexto histórico e religioso em que o autor recebeu a inspiração Divina para a elaboração desse maravilhoso Evangelho. Essas informações nos ajudarão na compreensão e na formação do nosso próprio entendimento. A fé que brota como resultado da leitura do Evangelho não consiste em saber sobre Jesus, mas em conhecer pessoalmente (existencialmente) a Deus espelhado na pessoa do nosso Senhor e Salvador. Essa fé pessoal transformará também a sua vida! Vamos à obra? 2 O JOVEM JOÃ0 O símbolo do Evangelista João é a águia. Com o seu Evangelho, João alcançou alturas indescritíveis, deixando para trás tudo o que é terreno, passageiro. Santo Agostinho demonstrou a impressão que esse Evangelho lhe causou nas seguintes Palavras (tradução livre): “Subiu acima de todas as alturas terrenas, de todo espaço do ar, passou por todos os astros, deixou para trás todos os corais e legiões de anjos. Pois, se não tivesse deixado para trás o que fora criado, nunca teria chegado Àquele pelo qual tudo fora criado”. De todos os Evangelistas, a pessoa de João é a mais acessível, tanto pelos Evangelhos em si como por farta tradição extrabíblica. João nasceu em uma família de pescadores. Nada ou pouco sabemos de seu pai Zebedeu - ao contrário da mãe Salomé, uma mulher profundamente religiosa. Encontramo-la entre as seguidoras do Senhor, sendo mencionadas várias vezes nos Evangelhos. Salomé assistiu à crucificação “de longe” e foi ela que comprou as especiarias destinadas a embalsamar o corpo de Jesus (Marcos 15.40 e 16.1). Quando o Batista clamou no deserto, João tornou-se seguidor dele e por ele foi batizado no Jordão. Conheceu desde cedo o radicalismo do “Batista”. Destacando-se não somente pela roupagem e alimentação, mas acima de tudo pela sua mensagem, João Batista anunciou “o machado posto à raiz”, isto é: o Juízo iminente; a eliminação dos maus estava à porta (Mateus 3.10). Dali vem a fascinação do futuro Evangelista pelo Absoluto. O período que João passou junto com o Batista lhe serviu de preparo para algo maior. Naquela época, João era muito jovem, ainda moço. Na companhia do Senhor, mais tarde, seria conhecido como o mais jovem entre os Doze. Nas pinturas sempre reconhecemos João pela sua pouca idade, pelo seu rosto ainda imberbe e seus traços finos. João nunca esqueceu a hora em que Jesus o chamou. Dezenas de anos mais tarde ainda se lembrou dos mínimos detalhes daquela “décima hora do dia”, isto é: duas horas da tarde (João 1.39). Foi quando o jovem João, junto com seu irmão André, seguiu timidamente atrás de Jesus e este repentinamente se virou e perguntou aos dois moços: “O que vocês estão procurando?”(1.38). Embaraçados, não sabendo o que responder, gaguejaram: “Mestre, onde moras?”. Naquele momento, Jesus olhou fundo nos olhos de João e este nunca mais esqueceu aquele encontro. Em tudo o que o futuro Evangelista escreveria mais tarde, ele usaria o termo “ver” como sinônimo de “compreender na sua totalidade”. O “ver” de João compreende o homem como um todo, com corpo, alma e espírito. Quando já idoso, João iniciou sua “Primeira Carta” com as palavras: “... o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida...essas coisas vos escrevemos, para que o vosso gozo se cumpra” (1.João.1.1/3). 3 Tudo em João gira em torno da encarnação. Ele a viveu e testemunhou. Não era sempre o discípulo maduro e sereno, representado nos seus escritos. Tornou-se “santo” e exemplar somente através de uma vida longa, onde aprendeu a ser transformado; não numa vida de natureza do tipo efeminada como a arte gostou de reproduzi-lo. Seu nome, herdado de seu pai, era “filho do trovão”. Seu temperamento, como convém aos jovens, era absolutista. Jovens costumam aceitar somente aquilo que corresponde às suas próprias metas. Jesus teve que lhe ensinar o que significa ter um coração aberto, quando lhe disse: “Quem não é contra nós, é por nós” (Marcos 9.40). Na ocasião, quando o grupo não foi bem recebido numa vila samaritana, o jovem João ficou tão revoltado que sugeriu ao mestre: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?” (2 Reis 1,10/Luc.9.54). Ninguém menos que Elias, o maior dos profetas, era parâmetro para o jovem seguidor. João queria resolver a questão logo, queimando todos aqueles que não os acolheram bem. Tinha que ouvir a repreensão que não esperava: “Vocês não sabem de que espírito vocês são”, ou em outras palavras: “Vocês não percebem que não é o Espírito de Deus que vos sugere essa resposta?” Para o jovem João era o “tudo ou nada”. Esse “tudo ou nada” encontramos também no idoso Evangelista, só que “santificado” (1 João 5,12). Mais um incidente ilustra a personalidade do jovem João. Quando sua mãe lançou o pedido para dois lugares especiais em favor de seus dois filhos no Reino de Deus e Jesus lhe perguntou: “Eles também podem beber o cálice que eu terei de beber?” o jovem João, sem hesitar, afirmou: “Sim, posso!” (Mateus 20.22). João teve que amadurecer na escola do Senhor. Começou pouco a pouco a entender o ministério de seu Senhor como uma única e infinita paixão. No jardim Getsêmani, João dormiu também, fugiu também, mas depois, enquanto Jesus sofria, procurava estar o mais perto possível do Mestre, como o único dos Doze. O VELHO EVANGELISTA JOÃO No seu Evangelho, João revela sua proximidade com Maria, mãe de Jesus. A tradição diz que João cuidou de Maria até a morte dela, que não sabemos ter acontecido em Jerusalém ou em Éfeso. A tradição não o deixou claro. Por sua proximidade com a mãe de Jesus, Orígenes (254 d.C.) viu em João a síntese personalizada de virtudes masculinas e femininas. É por essa razão que Leonardo da Vinci, na sua conhecida cena da Ceia no cenáculo, deu a João traços andróginos, representando tanto os homens como as mulheres. Não é Maria de Magdala recostada em Jesus como sugere Dan Brown no seu “Código da Vinci”. É o jovem João, representando o eterno jovem. Correu mais rápido que Pedro, quando a notícia do túmulo vazio chegou aos amedrontados discípulos trancados no seu esconderijo. Foi o primeiro a reconhecer Jesus na sua aparição junto ao mar da Galileia (João 21), quando cochichou ao ouvido de Pedro: ”É o 4 Senhor!”. Sempre reconheceu primeiro, chegou primeiro, sentou mais perto. Ele entendeu o Evangelho, a “Boa Nova”, como mensagem do Amor de Deus (3,16). Na Bíblia, “amar” e “conhecer” sempre andam juntos; eles são sinônimos. A tradição sabe do ministério final de João em Éfeso, cidade do filósofo pré-socrático Heráclito. A cidade abrigava o famoso “Templo de Ártemis” (Vênus), uma das sete Maravilhas do Mundo Antigo. O Apóstolo passou ali por grande perseguição e da qual a tradição guardou inúmeras lendas que, em parte, contêm alguma possível essência histórica. Após seu exílio em Roma e, mais tarde, na ilha de Pátmos (onde escreveu o “Apocalipse”), o velho João voltou em triunfo para Éfeso. As palavras em 1.João 3.14 expressam bem o que o velho Apóstolo sentiu, quando após longo exílio voltou à sua Igreja em Éfeso: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos”. Durante sua segunda estadia nessa cidade aconteceu um incidente bem documentado. Irineu o menciona em sua “Obra contra as Heresias” (III.4) e Eusébio (de Cesaréia) a incorporou na sua “História da Igreja” (XXVIII): “O Apóstolo João, certa vez, entrou num banho (público) para se lavar; mas ao saber que Cerinto ali estava, saltou do lugar e correu pela porta, não suportando estar sob o mesmo teto que “este”, e exortou os que estavam com ele a fazer o mesmo, dizendo: ‘Fujamos para que o banho não caia sobre nós, já que Cerinto, aquele inimigo da verdade, está lá dentro’”. Cerinto era um importante representante da “Gnose”. Para a ciência da Gnose, espírito e carne nada têm em comum. O que importa, é o conhecimento (iluminação) espiritual. Para Cerinto, Jesus não era o Deus encarnado, como João o viu (João 1,15). Por essa razão é, que o Apóstolo, na sua Segunda Carta, verso 10, diz: “Se alguém vem ter convosco e não traz essa doutrina (que na pessoa de Jesus veio Deus em forma humana), não o recebais em casa, nem lhe deis as boas vindas”. O velho João era implacável, quando se tratava da revelação do mistério da encarnação. No verso 7 da mesma Carta, ele diz: “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo afora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo”. A Igreja primitiva ainda sabia opor-se a qualquer movimento de sincretismo (= Fusão de concepções heterogêneas); era uma questão de sobrevivência, não de mesquinharia. Seria muito bom, se a Igreja de hoje o soubesse também! Muitos anos depois da morte do Apóstolo apareceram os assim chamados “Atos de João”, onde relatos com possíveis cernes de verdade se misturam com absurdas fantasias gnósticas. Nelas encontramos vários contos acerca do velho discípulo, dos quais alguns fazem parte da tradição. A tradição nos conta que o Apóstolo, quando já idoso, resolveu dar forma à maior obra hagiográfica de todos os tempos: seu Evangelho. Naquela época, Marcos já havia morrido, Mateus e Lucas também; somente João, a última testemunha ocular do ministério de Jesus, estava 5 vivo. Durante seus longos anos de vida, João havia meditado sobre o que significava tudo aquilo que teve oportunidade de viver e testemunhar. Agora, perto do fim, essa história havia se tornado transparente para o velho discípulo. João escreveu seu Evangelho historicamente longe, mas espiritualmente muito perto do seu Senhor. CONTEÚDO DO EVANGELHO No “Evangelho de João”, os diálogos de Jesus muitas vezes passam a ser monólogo. João era capacitado para tal, porque a “fala joanina”, na realidade, correspondia à maneira como Jesus falava. Vez e outra no seu Evangelho não sabemos onde termina a fala de Jesus e começam os comentários de João (leia João 3.3 até 21, e diga-me até onde o Apóstolo cita Jesus, e onde começam os comentários de João, Evangelista)! São as palavras de Jesus, que ocupam no Evangelho o espaço principal. Nelas se revela a “mística joanina”. Nenhuma Cristologia (= Definição do Kyrios, “SENHOR”) posterior chegou a tal altura. Cristo se denomina “Pão da Vida” – o mistério da eucaristia; “Luz do mundo” – ilumina a nossa existência; “Bom Pastor” – segurança. Ele se diz “Videira Verdadeira”, sendo seus seguidores as uvas; “a Porta” que leva à vida eterna. “Eu sou o Caminho” – para o Pai. Ele promete “Outro Consolador”- que ficará conosco “para sempre”. Em todas essas orações, Jesus usou símbolos que compreendem a realidade. Sua mensagem real está muitas vezes nas entrelinhas; podemos compará-la ao “ruído do mar” que, aparentemente, escutamos quando colocamos uma concha ao nosso ouvido: um ruído infinito e eterno. Eusébio († 340 d.C.) refletiu muito sobre o “porquê” João escreveu um quarto Evangelho, uma vez que já havia três outros, reconhecidos e em circulação. Os três Evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas são chamados “sinóticos”, porque semelhantemente tratam da anunciação do Reino vindouro. Os três trabalham a história, cada um a seu modo. O Evangelho de João é diferente. Há somente quatro eventos nele registrados em comum com os Evangelhos sinóticos; no mais, o Evangelho joanino apresenta uma nova dimensão, desconhecida até então. Não que ela seja menos exata; pelo contrário, suas indicações geográficas são mais precisas, o que aponta para uma testemunha ocular. Os Pais da Igreja procuravam entender em quê João era diferente dos demais Evangelistas. Eusébio pensou que João, sendo solicitado por muitos, resolveu anotar tudo o que os outros três Evangelistas deixaram de registrar. Lutero, meditando sobre a notável diferença entre o estilo dos sinóticos e o de João, chegou à conclusão que os sinóticos principalmente se ocupavam com os feitos de Jesus, enquanto João enfatizava suas palavras, em detrimento das obras. Os dois eruditos notaram diferenças reais, mas não chegaram ao principal. O evangelho de João é a própria interpretação 6 (exegese) dos sinóticos; é a visão da Salvação contida na história, escrita por uma testemunha ocular em uma época de desenfreada especulação gnóstica, que ameaçava engolir a genuína mensagem dos Evangelistas. No seu Evangelho, João não se contenta com a realidade pragmática, com acontecimentos notáveis; ele eleva tudo à esfera superior. Nos diálogos, Jesus sempre responde num nível acima daquele do seu interlocutor. Jesus sempre conduz a conversa. Tudo na obra joanina gira em torno da grande questão: “Quem és tu?” (João 8.25). “Até quando nos deixarás a mente em suspenso? Se tu és o Cristo, dize-o francamente!” (10.24). A epifania do Cristo (manifestação de Deus) é o grande tema do Evangelho, em torno do qual o Evangelista serena e magistralmente desenvolve a história da Salvação. Ele só conhece um único alvo: a glorificação de Cristo, cujo advento iluminou a história e cuja hora havia chegado. João não faz distinção entre um “Jesus humano” e um “Cristo Divino”; os dois nele são um. “Jesus Nazareno” é, para João, também o “Senhor glorificado”. Seu santo Evangelho quer tornar visível o Deus invisível na pessoa de Cristo Jesus; esse é o conteúdo do Evangelho de João. História e mistério se unem, e a solução do mistério é o “Sou eu” (6.20). O Evangelho de João não é uma obra filosófica a ser compreendida racionalmente. Suas palavras são imagens, raramente termos racionais. Ao contrário da dialética (arte de dialogar) que o Apóstolo Paulo desenvolve nos seus escritos, temos em João a meditação, a visão interior, que correspondem, presumivelmente, ao espírito de Jesus. O que no pensamento racional é distinto, João vê como unido. Presente e futuro, temporal e eterno estão juntos. Nas palavras de João encontramos o “conhecer intuitivo” e o “conhecer discursivo” unidos. A “mística joanina” é um mistério (João 17.23): “Eu neles e Tu em mim”. Bonaventura¹ nos deu o seguinte conselho: “se você quer saber como isso acontece, pergunte à Graça, não à ciência; à saudade, não à razão; ao gemido da oração e não à leitura investigativa; ao noivo e não ao professor; a Deus, não ao homem; à escuridão e não à clareza; não à luz mas sim aquele fogo que se inflama pela unção mística e o amor que, queimando, transforma-se em Deus. Esse fogo é Deus e seu foco é Jerusalém” ¹ Bonaventura Somma, compositor italiano, 1893-1960), em seu “Livro do peregrino”. O grande Orígenes chamou o Evangelho de João de “Evangelho pneumático”. Santo Agostinho pregava sobre este Evangelho. Lutero, o Reformador alemão, o considerou “o Evangelho verdadeiro, infinitamente preferível aos demais”. Zwinglio, o reformador suíço, disse: “Tiram o evangelho de João e vocês eliminam o sol que ilumina o mundo”. Quando será que, na história, aparecerá o “cristão joanino”, sem qualquer ambição ao poder? Se tivesse aparecido, a História da Igreja teria sido outra. A cristandade, infelizmente, não seguiu ao chamado do coração, não “viu” e “ouviu” com o coração, como João o fez; ela preferiu o poder e a fama. 7 O LEGADO DE JOÃO EVANGELISTA Desde tempos remotos há discussão acerca da pessoa do autor. Foi João, o discípulo, ou foi um hipotético “João, o Presbítero”? Irineu (125202 d.C.) que ainda conheceu Policarpo (†166 d.C.), que, por sua vez, disse ainda ter conhecido, pessoalmente, o Apóstolo, afirma: “Finalmente João, discípulo do Senhor,... escreveu seu Evangelho enquanto estava em Éfeso, na Ásia Menor”. A tradição sabe de um “João Presbítero”, sucessor do Apóstolo. O termo “Presbítero”, naquela época não indicava, como hoje, um cargo ou responsabilidade na hierarquia da Igreja. Ele entende o mesmo que “ancião”, ou, “pertencendo à geração que ainda conheceu Jesus”. Será que este, após a morte do discípulo, editou o livro que o Apóstolo deixou inacabado? Algumas teorias apontam nessa direção. Outros põem em dúvida a existência desse “João, Presbítero”. Para nós, neste presente momento, não importa. Trataremos do assunto mais adiante. Façamos força para ver e ouvir as palavras que chegaram até nós. O Evangelho joanino nos leva ao coração do Senhor. Para “os de fora”, ele continuará mistério. Para “os de dentro”, o Evangelho de João é transparente (W.Nigg). Há uma linda anedota que a tradição, bem documentada, nos transmite. Jerônimo a menciona e ela tem toda a probabilidade de ser autêntica. Lessing (dramaturga alemã, 1729-1781) denominou-a “o Testamento de João”. João, quando velho e já fisicamente debilitado, continuava firmemente a participar dos cultos na sua Igreja em Éfeso, sendo apoiado por dois homens, um de cada lado. No fim de cada “culto” (ainda não se conhecia a “missa” tal qual ela existe hoje), ele costumava sussurrar aos presentes mais próximos: “Filhinhos, amem-se uns aos outros!” Com o decorrer do tempo, e João sempre repetindo as mesmas palavras, os cristãos começavam a reclamar: “Mestre, o que é isso? Por que o senhor repete sempre a mesma coisa?” João emudeceu, pensou por um tempo, depois respondeu: “Assim foi que Deus ordenou e cumprir isso é o suficiente”. E imediatamente emendou: “Filhinhos, amem-se uns aos outros!”. O termo “filhinhos” aparece na Primeira “Carta” do Apóstolo e nada tem a ver com “criancice”. “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos! ... Filhinhos, já é a última hora...!” (caps. 5.21 e 2.18). Espiritualmente maduro, João compreendeu como futilidade todo ativismo religioso, qualificando-o de “presunção infantil” e comparando-o às criancinhas que, brincando na areia, facilmente partem para briguinhas desnecessárias. Corria a fama de que João não morreria antes da volta do Senhor. No último capítulo do seu Evangelho, o autor do livro procurara corrigir 8 essa opinião, escrevendo: “Tornou-se corrente entre os irmãos o dito de que aquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não dissera (a Pedro) que tal discípulo não morreria, mas: ‘Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa?’ ” (21.21-22). Diz a tradição que João, perto de seu centenário, sentiu a morte se aproximar. Ele se lembrou da palavra de Cristo: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (11.25). Mandou preparar sua sepultura e quando pronta, desceu devagar os degraus para sua cripta. O famoso artista alemão Lucas Cranach, Pai, (1472 – 1553) esculpiu essa serena cena em madeira. Assim que o ancião se deitou, expirou. Ainda hoje é mostrado o lugar de sua sepultura nos restos da “Igreja São João” que sobraram no meio das ruínas da antigamente importante cidade de Éfeso (Turquia). Quem ler este santo Evangelho, ainda perceberá o sopro do Apóstolo. Aquele que olhar a placa simples do jazigo de João nas ruínas de Éfeso, se lembrará das palavras finais do seu Evangelho: “Muitas outras coisas Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (21.25). Lembrar-se-á também das palavras de Jesus: “Tenho ainda muito que lhes dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da Verdade, ele vos guiará a toda verdade, porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (16.12,13). Nunca chegaremos a esgotar a sabedoria desse Evangelho; sempre continuaremos perante o “mistério joanino”. Assim como voa a águia, João voou alto, tão alto que, por pouco, não escapou da nossa vista. Com Santo Agostinho podemos afirmar: “É João que nos anuncia cousas sublimes, quando contempla a luz íntima e eterna com seu firme olhar. É necessário às águias jovens serem provadas, sendo agarradas pelas garras dos pais e expostas à luz do sol. Aqueles entre eles que olharem firmemente para cima serão reconhecido como filhos. O que, porém, mesmo por um instante só, palpitar, será considerado estranho e as garras o soltarão para o abismo.” (Contra Celso, VI.6). Grandiosas, e ao mesmo tempo assustadoras, são as palavras de Agostinho! Há séculos estamos sendo mantidos suspensos pela visão joanina. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS O quarto Evangelho continua um enigma para qualquer investigação racional. Como dissemos, ele deve ser lido “vendo” e “ouvindo”. Milhares de livros a respeito da obra de João foram lançados e nenhum comentário chegou à altura do Evangelho. Todos eles estão como que só roendo as margens e devemos mostrar a humildade que nos compete ao procurar 9 ouvir a mensagem do Evangelista. O melhor dos comentários não dispensa o estudo cuidadoso e pessoal do próprio Evangelho. Acontece, no entanto, que muitos crentes, ao estudarem a Bíblia e considerando cada palavra como “inspirada e infalível”, se assustam quando percebem que a Palavra, assim como ela foi aceita e perpetuada no Cânon Neo-Testamentário, já é resultado de um longo processo histórico. Há trechos da Palavra que permitem mais do que uma única maneira de interpretação. Há trechos que continuam enigmáticos e que não devem ser “explicados” à força. O pior comentarista é aquele que “explica tudo”. Sempre corremos o risco de estarmos equivocados; portanto: humildade. Estamos diante de alguém maior de que nós. A teologia moderna (contemporânea) está dissecando a Palavra de Deus, desmistificando-a. Tudo que não tem uma explicação racional, cai fora. Assim, nada mais restará da mensagem que Deus nos quer passar. Para estudá-la, é primeiramente necessário ter humildade. Como o próprio João diz em 3.8: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.” Dependemos desse “sopro” para “ouvir” e “ver” a mensagem de Deus, principalmente no Evangelho joanino. Mesmo se começarmos a “ouvir” e a “ver” a mensagem de João, devemos ter claros na nossa mente alguns fatos, sejam eles históricos ou culturais. Nada tem a ver com “a mensagem” em si. Essa continua eterna. As questões que abordaremos hoje se referem às circunstâncias históricas e culturais em que João compôs a sua obra. De certo modo, podemos vêlos como uma moldura dentro da qual João faz a sua exposição. O Evangelho de João revela uma visão diferente da dos três Evangelhos sinóticos. Até aqui, todos concordam. O cristianismo que nos dá a conhecer o quarto Evangelho, difere do cristianismo dos sinóticos e das Epístolas de Paulo. Por quê? Para explicar a diferença entre a visão dos sinóticos e a visão joanina partiu-se, durante muito tempo, da seguinte hipótese, hoje claramente descartada: A) O cristianismo nasceu do judaismo na Palestina. Era um movimento judaico-cristão, partindo da situação relativamente homogênea religiosa e cultural judaica que os sinóticos nos mostram: Fariseus e Saduceus contra Jesus, e o povo ignorante. B) Mais tarde, em terras fora da Palestina, através da influência grega, teria surgido um cristianismo helenizado, diferente. A tese comum era que, desse cristianismo helenizado, o Evangelho de João teria surgido como resultado. Como o Evangelho de João contém incontestavelmente alguns elementos helenísticos, ele até 10 foi datado em um período mais tardio. Para alguns, o quarto Evangelho foi escrito só no segundo século. Neste caso seria pouco confiável quanto ao “Jesus histórico” e mais um resultado da “Interpretação Cristológica” de uma época posterior. Hoje, quando sabemos que o Evangelho de João foi escrito ainda no primeiro século da era cristã (veja abaixo), surge a seguinte pergunta: como João desenvolveu a sua visão, se ela fora uma contemplação do judaismo que conhecemos através dos Evangelhos sinóticos, sem nutrir-se de uma corrente judaica com elementos espiritualistas já presentes? Os achados de Qumran dos últimos anos trouxeram à luz textos judaicos com nítidos traços, digamos “esotéricos” (não confunda com o que hoje se entende por “esotérico”). Como mostra Oscar Cullmann em sua obra “Das Origens do Evangelho” (Ed. Novo Século. 2000), o Evangelho de João finca suas raízes neste judaismo “esotérico” já presente quando Jesus vivia. Para concluir e para não estender muito essas considerações (pois nada acrescentam ou tiram do conteúdo da mensagem de João), convém saber que, no tempo de Jesus e durante o surgimento da igreja judaicocristã, havia muitas e diferentes correntes religiosas judaicas paralelas. Tivemos o movimento farisaico e com diversas facções; havia os Essênios, presentes na comunidade; existia a seita de Qumran com a sua rígida política contrária ao sistema sacerdotal no Templo e mais os assim chamados “gregos”, judeus hostis ao Templo. O Evangelho joanino tem sua base numa síntese de alguns desses movimentos presentes na época de Jesus. Pouco ou nada ouvimos a respeito desses movimentos nos Evangelhos sinóticos. Resumindo: O Evangelho de João não é um produto de uma Cristologia posterior, tardia, helenizada. Ele é o testemunho genuinamente judaicocristão, mesmo com sua influência do pensamento grego. Quem quer que seja o autor, o Evangelho foi composto enraizado numa das correntes judaicas presentes no primeiro século e adaptado para cristãos de origem gentílica (não judaica). QUANDO O EVANGELHO FOI ESCRITO? Baseado na suposição errônea de uma cultura joanina tardia, tinhase como certo que o Evangelho de João datava do segundo ou até terceiro século cristão, sendo mais “resultado do processo cristológico na igreja primitiva gentílica” do que “testemunho evangelístico”. As descobertas arqueológicas trouxeram luz a esta questão. 11 Em Medinet el-Fajum, às margens do deserto da Líbia, local que pertence ao Egito e, portanto, muito distante da Palestina, foram encontrados em escavações efetuadas nos anos 20 do século passado muitos papiros bem conservados. Para você ter uma ideia: o achado mais antigo é um “Contrato de Casamento” do ano 311 antes de Cristo!!! Na ocasião, o cientista americano Grenfell adquiriu na região alguns pequenos pedaços de pergaminho. Não encontrou tempo para examiná-los a fundo enquanto vivia. Seu sucessor, C.H. Roberts, conseguiu decifrá-los e, em 1934, determinou a idade do pedaço de papiro com grande precisão. A surpresa era total: o papiro data dos anos 100-120 d.C. Na face frontal dele constam algumas frases do texto do cap.18 (versos 31-33) do Evangelho de João. No outro lado do papiro, as palavras dos versos 37 e 38¹, portanto partes da história da paixão segundo João. Consta no verso: “Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade, ouve a minha voz...” Imediatamente, o texto foi comparado com o da nossa Bíblia: era idêntico! Com esse achado encontramo-nos perante partes da cópia mais antiga conhecida do Evangelho de João! Resumindo: Com esse e outros achados extraordinários, as teorias de um “Evangelho joanino tardio” (isto é = escrito no segundo ou terceiro século) começavam a ruir. Se no ano 125 d.C. já circulavam cópias do Evangelho joanino no distante Egito, o original certamente foi escrito bem antes, ainda no primeiro século. Hoje se tem como certo que o Evangelho de João foi escrito antes do fim do primeiro século, podendo, assim, ter sido escrito pelo próprio Apóstolo. Historicamente nada prova o contrário, como demonstrou John A.T.Robinson (um teólogo liberal) na sua grande obra “Redating the New Testament” (SCM-Press,London, 1976). ¹ a divisão do texto bíblico em capítulos só foi introduzida por Estevão Langton (Arcebispo de Cantuária), em 1214; a divisão em trechos em 1263, por Hugo de Saint-Clair e a divisão em versículos, universalmente aceita, foi realizada em 1551 por Robert Stevens. 12 O EVANGELHO DE JOÃO (NVI)¹ (1.1) NO PRINCÍPIO era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Watchman Nee († 1972), martirizado pelo regime comunista chinês através de trabalho forçado e por causa de sua fé, fez uma valiosa observação com a qual iniciamos o nosso estudo do Evangelho de João. “Uma sã doutrina pode envaidecer-nos, tornando-nos orgulhosos de nosso conhecimento ou de nossas opiniões. Ou podemos esquecer a verdade, afastando-a de nós por meio de argumentos elaborados ou métodos de terceira categoria. Contudo, a visão é algo revolucionário. Comparadas a ela, todas as outras coisas tornam-se pequenas. Uma vez que tenhamos visto o Senhor, nunca mais iremos esquecê-lo! Diante dos crescentes ataques de Satanás e dos falhos conselhos de amigos, é somente o conhecimento interior de Deus que nos manterá firmes em tempos de provação. Por um ou dois anos após minha conversão, tive medo de encontrar um modernista ou um ateu que provasse para mim que a Bíblia não era perfeita nem confiável. Pensava que, se isso ocorresse, tudo estaria acabado. Minha fé não teria sentido, e eu queria crer. Mas agora tudo é paz. Se todos eles aparecessem e apresentassem o maior número de argumentos contra a Bíblia, como os projéteis que existem nos arsenais do mundo, minha resposta seria uma só: “Você tem muita razão naquilo que diz – mas eu conheço meu Deus. Isto me basta.” (W.Nee. Uma Mesa no Deserto. Editora dos Clássicos, 2002) (1.1) NO PRINCÍPIO era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. O Evangelista Marcos, o primeiro que escreveu um relato sobre Jesus, começa sua obra com a palavra “Princípio’: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo”. Marcos se refere ao princípio (início) do ministério terreno de Jesus de Nazaré. O Evangelista João também se refere ao “início” (Princípio); só que ele olha muita mais para trás, ele começa retratando CRISTO NA ETERNIDADE, antes que o mundo existisse. Podemos dizer: ele olha para a eternidade passada e ali ele já vê o “Logos de Deus” habitando na presença de Deus, sendo ele mesmo Deus. “No Princípio, a “Palavra”(em grego:‘logos’) estava com Deus...” Compare agora a primeira palavra da Bíblia, no Antigo Testamento: “No Princípio, Deus criou...” (Gen. 1.1). Quando os céus e a terra foram criados, o logos “já estava com Deus e “a Palavra” era Deus”. Numa clara referência 13 a Gênesis, o “logos” já existia, e esta é uma maneira de afirmar a eternidade do “logos” e que só Deus possui. Quem é essa “Palavra”, o “logos” que sempre existia e que “estava com Deus e era Deus”? (1.1). O que o termo, com o qual João abre seu Evangelho, significa? Conforme a tradição, o Evangelho de João foi composto em Éfeso enquanto a nova igreja cristã vivia um período de intenso confronto com heresias gnósticas. A fé dos crentes estava sendo minada pelos erros de novas teorias “espiritualistas” (gnósticas) a respeito da pessoa de Cristo. Cerinto, por exemplo, que viveu nos dias do Apóstolo e um dos adversários mais ferozes de João, gozou de grande influência e ensinava que Jesus era meramente um ser humano, filho por geração natural de José e Maria; que não era mais justo ou sábio do que qualquer outra pessoa; e que no batismo, “O Cristo”, na forma de uma pomba, havia descido sobre ele, mas o havia deixado novamente antes de seu sofrimento, de tal maneira que não foi “O Cristo” quem sofreu e foi martirizado, mas sim o homem Jesus, vindo de Nazaré. A “gnose” que existe sob muitas formas, até hoje, valoriza “o conhecimento encoberto”, digamos, o aspecto espiritual desse “Cristo”, desconsiderando o lado material, humano. Com esse ensino, a gnose está em rota de colisão com o judaismo (e posteriormente com o cristianismo) nos quais o homem é uma unidade inseparável. Por essa razão, João põe tanta ênfase no fato de Jesus Nazareno ser o Cristo Eterno, o Filho de Deus, e que este Cristo não apenas desceu meramente sobre Jesus Nazareno (sem ter entrado em uma união real e profunda com ele), mas que, verdadeiramente, o “Logos” assumiu a forma humana, se encarnou na pessoa de Jesus Nazareno que o Apóstolo conheceu e que nunca renunciou sua natureza humana. Quem morreu e ressuscitou, foi Deus em forma humana, o “Logos encarnado”. Até meados do século 20, tinha-se como certo que o Evangelho de João, em parte surgiu, como acima descrito, como reação ou defesa contra o movimento gnóstico. Hoje sabemos que esse movimento só chegou ao seu apogeu (maior força) após João e que os termos usados por João não são emprestados do ambiente gnóstico, mas singelamente joaninos. O termo “logos” não é um termo semítico. Tanto João quanto os hereges gnósticos falaram do “logos”. Embora o termo seja o mesmo, o seu sentido para os gregos era diferente do dos cristãos. Fílon, judeu, o grande Filósofo Alexandrino († 40.d.C.), usou o termo logos e de seus sinônimos mais de 1300 vezes em seus escritos, sem jamais ter tomado conhecimento do movimento cristão. Nas suas alegorias sobre o Antigo Testamento ele falou, sem conhecer a Cristo, da “sofia” (sabedoria divina, feminina), através da qual o único e amado filho da 14 divindade, isto é, a criação, veio a ser como fruto maduro, porém, através de dores. Um século antes, a mística judaica já usou o termo “shekina” (Glória de Deus) como sinônimo da sofia, e não podendo ser separado de Deus. O livro apócrifo de Enoque disse de sofia: “Quando a sofia veio para estar entre os filhos dos homens e não encontrou moradia, ela voltou ao seu lugar entre os anjos” (Enoque,42,2). Fílon viu o logos como “a sabedoria divina”, ou como “ponte entre Deus e o mundo, sem ser idêntico com nenhum dos dois lados, mas compartilhando a natureza de ambos”. Sem o saber, ele preparou com seus escritos o terreno para a igreja cristã. Na filosofia grega, como um todo, “logos” era tido como “razão” ou “lógica”, força abstrata que representa a ordem perfeita do Universo. Onde lemos “logos” no grego, o hebraico, anterior ao grego, diz “dawar” (o que está perfeito), atributo que somente pode ser atribuído a Deus. Alguns comentaristas citam as palavras de Provérbios cap. 8.27-30, como o mais belo comentário da primeira afirmação joanina, já no Antigo Testamento. Aqui o escritor, falando da sabedoria como pessoa (sofia), estava anunciando (sem ter consciência do fato) a “Palavra”, o “Logos”: “Quando ele preparava os céus, aí eu estava; quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima; ... quando compunha os fundamentos da terra; então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia eu era suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo”. Será que a “sabedoria não criada de Deus”, a sofia, é sinônimo de Cristo? Vejamos um pouco da história da mística sofiana até aos dias de hoje. Primeiro a encontramos nos livros neotestamentários, embora mais discretamente. Muitos nem mais a notam. Quem já meditou sobre a palavra do próprio Jesus em Mateus 11,10b: “... mas a sabedoria é comprovada por suas obras”. Será que Jesus, conhecedor profundo das Escrituras, entendeu a si próprio como a sabedoria divina (sofia) – visível entre os homens, assim como o Evangelista a apresenta no primeiro verso de seu Evangelho? Encontramos no Evangelho de Lucas (11,49) uma personificação de sofia nas palavras do próprio Jesus: “Por isso diz a sabedoria de Deus: eu lhes mandarei profetas e Apóstolos...eu vos digo, esta geração prestará contas”. O Apóstolo Paulo menciona Jesus como sofia de Deus: “...Cristo é o poder de Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1,24). Na época de Paulo, a sabedoria não era vista como algo vago; a sofia de Deus era vista como real e manifesta em Jesus. 15 Os Pais da Igreja ainda sabiam desse mistério do qual João 1,1 nos fala. Irineu (Contra... IV, 20,3) disse: “Já demonstramos suficientemente que o Filho estava permanentemente no Pai. A presença da sofia, isto é, do Espírito que estava junto, antes da criação, é afirmada por Salomão”. Percebemos que, para Irineu, a sofia era idêntica ao Espírito Santo. Nisso ele diverge do entendimento de Paulo, que identifica a eterna sabedoria com Cristo, como sempre é o caso na mística sofiana. Não devemos ver discordância nas palavras de Irineu e Paulo no que diz respeito à Trindade. Os dois entendimentos são aspectos distintos da mesma realidade. O Espírito de Deus é idêntico com o Filho, e na concepção que Irineu teve de sofia, ela representava a presença invisível de Cristo. No decorrer dos séculos, a mística sofiana desapareceu em maior parte da vida da igreja do Ocidente. Santo Agostinho ainda falou dela em “Confissões” (XI,9) e “Soliloquia” (I,22). Depois, ela ficou cada vez mais esquecida no vasto campo da teologia ocidental. Na Idade Média, ela ainda veio a brilhar em alguns hinos. Na Igreja Ortodoxa (russa), ela continua viva. Muitas Igrejas são consagradas a ela. Lembramos da “Hagia Sophia” (“Sagrada Sabedoria”) em Istambul (Constantinopla)”, levantada entre 532 e 537, sendo até o séc.15 a maior e mais famosa Igreja Cristã do Império Romano. Em 1453 foi transformada em Mesquita, após ser tomada pelos turcos. Desde 1935 ela serve como museu. Nos ícones venerados na igreja ortodoxa, a sofia aparece muitas vezes junto com Maria e João Batista. Os maiores representantes da sofiologia moderna eram o escritor Solowjew e também Pawel Florensky, os dois mortos pelos comunistas. Florensky não mais entendeu a sofia como sinônimo de Cristo. Para sua mística sofiana, presente ainda hoje na igreja ortodoxa, a sofia “participa da vida íntima da Trindade, sendo participante do amor divino”, mas não como um quarto agente da Divindade. Carson, no seu “Comentário a João” (Shedd), argumenta que o logos de Fílon (sinônimo de sofia) não tem personalidade distinta e, isso é decisivo, não se encarnou. De acordo com Carson, o Evangelista João dificilmente falou de sofia quando usou o termo logos. Sofia e Cristo, para João, não são sinônimos. Cristo é a sabedoria não criada de Deus que não pode ser visto como um distinto do outro, como é o caso na concepção da sofia. O logos de João estava no princípio com Deus; e o logos (= a Palavra) era Deus. João era judeu. Com a primeira sentença do seu Evangelho ele deixa claro que “o logos” não é uma invenção da filosofia grega nem dele mesmo, quando o aplica a Cristo. “Logos” é traduzido por “verbo” ou “A Palavra”. Como uma designação neotestamentária vemos Cristo presente já no Antigo Testamento como “descrição da pessoa, vontade e ação de Deus”. Ali a “Palavra de Deus” é representada como uma Pessoa. A personificação da 16 “Palavra” torna-se vivida nos escritos judaicos da Antiga Aliança. “Pela Palavra de Jeová, os céus foram feitos e pelo sopro de sua boca, o exército dele” (Salmo 33.6). Desde o Princípio, Deus agiu através “da Palavra”. “Disse Deus: haja...e houve...” (Gênesis 1.3,4,9,...). “A Palavra” expressa ou reflete a mente de Deus e a revela aos homens. Essa “Palavra”, o “logos”, a manifestação da Vontade Divina, é assim definido na Nova Versão Internacional: “... aquele que é a Palavra, Ele estava com Deus, e era Deus” (1.1). A “Palavra”, que atuou na Antiga Aliança, entrou na história através da “encarnação do logos (da Palavra)”. João afirma que as duas afirmações são verdadeiras: A Palavra estava com Deus, e ela era Deus. A preposição “pros”, traduzida por “com” (Deus), aponta em direção a alguém. Nisto entendemos que “a Palavra” está orientada em direção a Deus (confira João 14,6b), em um relacionamento bastante íntimo. Assim entendemos que o Evangelista, mais tarde, diz que a “Palavra” de que ele está falando, é uma pessoa com Deus e, portanto, se diferencia de Deus, e a qual desfruta de um relacionamento pessoal com ele (Carson). Confira João 7,28b. No mais: a Palavra era Deus. Não há como traduzir a sentença de maneira diferente. Os teólogos se dividem na interpretação desse “era Deus”. Para nós, leigos, não é a falta de artigo (o Deus) que decide pela leitura, mas um raciocínio lógico. Se João dissesse que a Palavra era Deus (ênfase em “Deus”), diria que nenhum ser divino poderia existir separado da Palavra; o que não é o caso. Se, no entanto, lermos: “a Palavra era Deus” (ênfase em “era”) não somente confirmamos a declaração do Evangelista (com Deus), como afirmamos que a “Palavra” em si não constitui toda a Trindade; não obstante a divindade que pertence ao restante da Trindade pertence também à Palavra” (Tasker). “A Palavra estava com Deus, a eterna companheira de Deus; a Palavra era Deus, o próprio ser de Deus” (Clowney). Se olhamos como o Evangelista introduz Jesus como “logos” (verbo, melhor: a Palavra), notamos que pouco se importa com a compreensão particular do termo logos por seus contemporâneos, sejam eles gnósticos ou gregos cultos. Ele usa a base que o próprio Antigo Testamento já tinha colocado. João deseja que todo do seu Evangelho seja lido e interpretado à luz desse entendimento. João evita, por enquanto, a denominação “Filho de Deus”. O tempo dele e a cultura pagã na qual ele está inserido conhecem muitos “filhos de deuses”, gerados por deuses (gregos). Demonstrando que “o Logos no princípio e sempre estava com Deus”, João está excluindo qualquer identificação de Jesus com um dos muitos deuses venerados na época. 17 Cap. 1.2-5 (2) Ele estava com Deus no princípio. (3) Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe terá sido feito. (4) Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (5) A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram. Os versos 1 até 18 do cap. 1 do Evangelho de João são conhecidos como “Prólogo”. Nesse Prólogo encontramos definido em poucas e elevadas sentenças quem o autor reconhece na pessoa de Jesus e o que este significa para o mundo. O estilo dessa passagem de alto teor poético contrasta com o resto do Evangelho, escrito em grego simples e claro. Esse “poema” fala do “Verbo de Deus” que existiu desde o princípio e sempre foi Deus e se “fez carne” (encarnou) em Jesus Cristo. Nunca mais Jesus é chamado de “Verbo” em outra passagem do Evangelho. É possível, mas não provável, que esse “Prólogo”, vindo de outra fonte e trabalhado por João, ou sendo um hino da Igreja primitiva que fora acrescentado pelo autor do Evangelho como um início apropriado ao seu livro, já editado na sua forma inicial. (2) Ele estava com Deus no princípio. Na eternidade passada, “no Princípio”, o logos (Palavra) estava com Deus. Criaturas tornam-se pessoas distintas quando falam. Palavras enunciadas por alguém revelam e expressam pensamentos, sensações e vontade. Como acontece conosco, quando falamos, estamos nos identificando por palavras e esperamos ser ouvidos. O Verbo, melhor: A “Palavra” (o “logos”), sempre estava com Deus e agora quer ser ouvido. Quando o autor da “Carta aos Hebreus” inicia sua epístola aos cristãos de origem judaica, ele diz: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho...” (Hebr. 1.1). Deus falou através da encarnação do “logos criador”. (3) Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe terá sido feito. O autor de João diz: “O “logos”, isto é a “vontade expressa de Deus”, está por trás de toda a criação. O mesmo “logos” que hoje está por trás de todo o Universo, estava com Deus antes que houvesse Universo, não importando o ”quando” dessa criação. Quando o Universo veio a existir, o “logos de Deus” já existia. O logos não é criado; ele é Deus, e poderíamos dizer que esse “logos” era o agente de Deus na criação de tudo que existe. A identificação do logos personificado com a poeticamente personificada “Palavra de Deus” em Is.55,11 representa uma interpretação elucidadora do texto do Antigo Testamento. 18 De acordo com Carson, o grego do verso 3 poderia ser mais bem traduzido como: “Todas as coisas foram feitas por ele, e o que foi feito, de alguma forma, foi feito sem ele”. “Assim como em Gênesis capítulo 1, em que, por causa da Palavra falada de Deus tudo veio a ser, e assim como em Provérbios 3,19; 8,30, em que a Sabedoria (sofia) é o meio (personificado) pelo qual tudo existe, também aqui, a “Palavra” de Deus, entendida no Prólogo como um agente pessoal, criou tudo”. (4) Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. A “Vida” (não a vida no sentido da criação), a Vida “estava” (passado!) nesse “logos” pré-existente. Vida e Luz aparecem como dois termos condicionais para a criação. Notamos que o verbo está no tempo passado: “estava”. Luz e Vida como representantes do mistério da criação não são somente bens escatológicos (das últimas coisas); são bens protológicos, isto é, bens preexistentes. Eles são a origem de tudo. A Luz brilhou desde a eternidade. O primeiro livro da Bíblia, Gênesis, inicia o relato da criação com as palavras: “Disse (logos) Deus: Haja luz; e houve luz” (Gen.1.3). A vida do logos de Deus é a luz dos homens. A visão de João é universal. Para ele não há religiões ou confissões predestinadas a possuírem Luz e Vida. A luz dos homens... o termo “homem” aparece no sentido judaico, como “pessoas”. Por essa razão é que a vida contida no logos de Deus é para todos os homens. O Prólogo fala de “todos” (verso 7); de “todo homem” (verso 9); e de “todos quantos” (verso 12). Esse logos divino é a Luz para todos os homens, independentemente de como alguém viesse a se posicionar: abraçando-a como Luz ou odiá-la e fugir. Nenhuma cultura ou religião pode separar-nos da presença do logos; Em todas as circunstâncias ele está presente como Luz. “Vida” e “Luz” são símbolos religiosos quase universais. Para João são formas de focalizar as excelências da “Palavra”: “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens”. Carson chama a atenção ao relacionamento entre Deus e a “Palavra” no Prólogo. Ela é semelhante ao relacionamento entre Pai e o Filho no restante do Evangelho. Ambos (1,4 e 5,26) insistem em que a “Palavra/Filho” (logos) compartilha da vida de Deus, mas tem existência própria. Mais tarde, Jesus afirma que ele é ambos: a Luz do mundo (8,12; 9,5) e a Vida (11,25; 14,6). Nas fontes judaicas, tanto a Sabedoria (sofia) como a Torá são geralmente associadas com Vida e Luz. O Evangelista João as une a Cristo, a “Palavra” (logos). O Prólogo nada fala da caída do homem, do pecado original, do abismo entre Deus e Sua criação. Para João, a Luz brilhou desde a eternidade passada e continua brilhando. Deus, no Antigo Testamento e Seu Filho, no Novo Testamento, quando se identificam com o “Eu sou”, (que sempre simultaneamente é um “Eu serei”) não podem ser reduzidos 19 ou presos a determinada época, seja ela o período antes da queda do homem ou a época da revelação do logos em forma humana na pessoa de Jesus Nazareno (ainda não identificado por João). Deus e seu logos não estão sujeitos a categorias de tempo. A Luz brilha – e sempre! Essa Luz se fez presente entre os homens, ela se “encarnou”; ela, que brilha desde a eternidade passada, e agora resplandece entre os homens! (5) A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram. Repentinamente aparece o termo “trevas”. Nada nos é dito sobre sua origem. O Prólogo não está interessado em um dualismo especulativo como a Gnose, por exemplo. Na Gnose, Luz e Trevas são duas realidades em constante conflito. E para a “Seita de Qumran”, os “Filhos da Luz” estão combatendo os “filhos das trevas”. A forte doutrina judaica da criação evita, radicalmente, o dualismo do qual o mito e a tradição (cristã) estão impregnados. Para João, a Luz brilha, serenamente, a despeito das trevas. Não somente “no Princípio” o Logos estava presente; ela brilha agora, na situação em que a igreja, melhor, em que você se encontra. Agora, a Luz é revelada, manifestada, recebe um nome, aparece na altura da compreensão humana. O Apóstolo não tem palavras dignas o suficiente para expressar sua exultação. Ele inicia sua “Primeira Carta” com a afirmação jubilosa: “... o Verbo da Vida, e a vida se manifestaram, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada” (1.João 1.2). “As trevas não a derrotaram (ou: não prevaleceram contra ela”...) A tradução com o termo “compreenderam” apresenta alguma dificuldade, pois não transmite seu conteúdo com termos usados hoje em dia. Não nos é dito que as trevas não venceram a Luz. Não havia luta e a luz saiu vencendo. Na procura da melhor definição aparece o termo “subjugar”. A Luz está brilhando e treva nenhuma consegue apropriar-se dela. O propósito de Deus não é alterado ou prejudicado pelas trevas existentes. O caráter e a capacidade das trevas consistem exatamente na revolta contra a luz. Não é por acaso, que a primeira Palavra enunciada por Deus, no primeiro dia da criação (Gen 1,3) criou a Luz e no verso quatro “Deus fez separação entre a luz e as trevas”. Somente essa separação tornou presente as trevas como que são (Thyen). Elas, em si, são um “nada”. Elas existem – implicitamente – como rebelião contra a luz. Como trevas somente existem como “oposição” a Deus, elas nunca poderão nem entender, nem reconhecê-lo jamais. Não devemos identificar “o mundo” com as trevas; o mundo e os homens nele são alvos do amor incondicional de Deus (João 3,16). A sentença: “e a luz resplandece no mundo” nos 20 afirma que o brilho dessa luz é permanente e onipresente. O Evangelista fala do caráter vitorioso dessa luz: as trevas não prevaleceram contra ela. Elas nunca prevalecerão. A mensagem da Luz é uma mensagem de vitória. No Prólogo (1,1-18), João atribui a luz à “Palavra”, ao logos personificado de Deus. Citando Carson: no Prólogo, a vida inerente à “Palavra” (logos) parece estar relacionada com a criação. A vida com existência própria da “Palavra” foi tão dispensada na criação que ela se tornou a Luz da raça humana (“de seres humanos”). Por enquanto, João está mais interessado na fonte da Luz (a Vida da “Palavra”) e seu propósito para a raça humana, que no modo ou propósito, de sua “distribuição”. Mais adiante, no resto do Evangelho, os termos “luz” e “vida” se relacionam com a “salvação”. • Como você entende a ação de Deus no mundo e, especificamente, na sua vida? Você a entende como uma luta entre forças quase iguais, entre o bem e o maligno? Ora ganha um, ora o outro. Você acha que são os demônios que estragam tudo? Será que eles são fortes demais? • Ouça as palavras do Evangelista! A Luz brilha! As trevas não a impedem, não prevalecem contra ela. • Assista menos programas “religiosos” da TV que apresentam “luta livre de ‘pastores’ com as trevas” e releia e medite o texto de hoje, no seu contexto, no Evangelho de João! Se há algo impedindo a ação de Deus em sua vida, esse algo é você mesmo! Pois a Luz brilha e resplandece exatamente nas trevas e as trevas não podem se apropriar dela. • A Luz de Deus está presente. Pense nisso! Cap.1.6-9 (6) Surgiu um homem enviado por Deus, chamado João. (7) Ele veio como testemunha, para testificar a respeito da luz; a fim de que por meio dele todos os homens cressem. (8) Ele próprio não era a luz, mas veio como testemunha da luz. (9) Estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina a todos os homens. No exato momento em que a “Palavra” (Logos) juntamente com as palavras “... a luz resplandece nas trevas” entra na história humana, o Apóstolo João introduz o testemunho de João Batista, ex-eremita e profeta e que, repentinamente, apareceu na região sul do rio Jordão, chamando todos para o arrependimento. Este João era o antigo “Mestre” do nosso Evangelista, antes que este conhecesse Jesus. Lembremos: O Evangelista, quando jovem, seguiu ao Batista, impressionado com a mensagem escatológica dele (anunciando a iminente separação dos fiéis verdadeiros 21 dos falsos). Quando o nosso João conheceu Jesus, ele abandonou o Batista. O “Movimento Batista”, caracterizado pelo “batismo do arrependimento para perdão dos pecados”, continuava existindo paralelamente ao de Jesus, mesmo após a morte de seu fundador. Nas cidades de Alexandria e mesmo em Éfeso onde João provavelmente passou seus últimos anos de vida, ainda havia discípulos da “seita batista” na época em que o velho Apóstolo se propôs a escrever seu Evangelho. Os seguidores do Batista “não conheciam o caminho de Deus” (confira Atos 18.25-28 e 19.1-7) e viam no Batista uma figura messiânica. Assim, quando João introduz a pessoa do Batista bem no início do “Prólogo”, ele fala de alguém conhecido entre seus leitores. (6) Surgiu um homem enviado por Deus, chamado João. A natureza exata da obra de João Batista precisava ser esclarecida. O Batista nunca reivindicou para si função messiânica que alguns lhe atribuíam. Ele era profeta, homem, embora “enviado por Deus” e comissionado por Deus para testemunhar a respeito “da luz”. (7) Ele veio como testemunha, para testificar a respeito da luz; Semelhantemente aos profetas no Antigo Testamento, João Batista fora escolhido e enviado por Deus para cumprir uma determinada missão (confira Lucas cap.1.5-23 e 57-80). O Apóstolo não se refere à atividade desse “último e maior profeta” (como Jesus implicitamente o chamou em Mateus 11.11) e focalizada nos Evangelhos sinóticos. Para João, a real função do Batista era “dar testemunho” a respeito da luz, indicar e apontar “aquele que veio e que era antes dele”. As palavras do Batista quando apontou para Jesus, estão registradas no verso 15: “Este é o de quem eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porque já existia antes de mim”. Apontar Jesus era a verdadeira missão do Batista, cujo movimento após a sua morte violenta havia se transformado em seita que praticava o “batismo de arrependimento”. “...a fim de que por meio dele todos os homens cressem. Para o Apóstolo, a única “resposta à altura” diante da luz que veio a “manifestar-se no tempo” (entrar na história) é “crer”. É interessante observar que, enquanto João usa o verbo “crer” mais de cem vezes no seu Evangelho, nenhuma vez ele faz uso da palavra “fé”. O verbo “crer” indica atividade, dinâmica, vida, implica em resposta; enquanto “fé” pode ser um posicionamento estático, morto. O testemunho de João Batista, encravado na história e que no momento da composição do Evangelho já pertencia ao “passado”, apontou para a “luz eterna” que, ainda hoje, “alumia, brilha”. O Batista era o “credencial”, comissionado por Deus para que todos cressem! 22 (8) Ele próprio não era a luz, mas veio como testemunha da luz. Mais uma vez, em atitude apologética (defesa da fé), o autor procura deixar claro que a mensagem do “Cristo ressurreto” está acima da do Batista. A ênfase de João nesse ponto nos mostra que, na época, deve ter havido certa rivalidade entre os dois movimentos. Resumamos como o Apóstolo argumenta: • O Logos era (desde a eternidade) > ... João Batista veio; • Cristo é a “Palavra” > ... João “era homem”; • Cristo era o próprio Deus > ... João era “comissionado por Deus”; • Ele é a verdadeira luz > ... João veio para testemunhar a respeito da luz; • Cristo é o objeto da confiança > ... João era o agente cujo testemunho deveria levar os homens a crer na verdadeira luz. (9) Estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina a todos os homens. O autor do Evangelho mostra a importância do atributo “verdadeiro”. Ele enfatiza a “verdadeira” luz. Mais adiante, Jesus falará da “videira verdadeira” (cap.15); dos “verdadeiros adoradores” (cap.4.23); do “verdadeiro pão” (6.32); do “testemunho verdadeiro” (21.24) etc. A “verdadeira Luz” contrasta com outras luzes, figuras messiânicas, deuses e deusas das quais a Antiguidade estava repleta. Todas elas sucumbiram no tempo. A “luz verdadeira”, porém, da qual João fala, continua a iluminar “todo homem”. Há divergências entre os comentaristas quanto à interpretação desse “todo homem”. Vamos ficar com a versão que nos parece a mais sensata e verdadeira: O Evangelista não focaliza o homem; ele está falando da luz e da autoridade e universalidade dela. Essa luz é exclusiva. Não há outra luz que pudesse iluminar ou concorrer com a verdadeira luz. Não existe condição humana que pudesse excluir alguém do alcance da verdadeira luz. Quem se abrir, em qualquer condição, cultura ou época, será iluminado pela luz verdadeira. • Todo homem está sendo iluminado! • Você já culpou Deus ou outrem qualquer pela sua condição miserável ou falta de Deus? Lembre: A verdadeira Luz ilumina todo homem! Abra, portanto, sua vida para “A Palavra”; a “luz verdadeira”! 23 Cap.1.10-13 (10) O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. (11) Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. (12) Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, aos que creem no seu nome; (13) os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (10) O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. A partir daqui, o Evangelista passa a falar do Verbo no tempo passado. O Verbo estava no mundo. Para os helenistas, mundo (lit.cosmos) significava a “ordem universal”. João usa o termo “cosmos” para o “Tudo” que fora criado desde o Princípio, incluindo a humanidade. O Verbo, pelo qual tudo veio a existir, estava presente nesse cosmos. João já está falando claramente de “alguém”, embora ainda não o tenha apresentado. Fala da inexplicável inimizade entre “ele” e seu “cosmos”. Ele não questiona nem especula sobre o “porquê” dessa incompatibilidade. Simplesmente consta o fato: A criação não “conheceu” seu criador. O termo “conheceu” é importante. João usa o termo de acordo com o pensamento judaico, bíblico, ao contrário do pensamento grego de sua época e da cultura que ele conhecia e o considerava no sentido científico, objetivo, racional, sem envolver-se, portanto, no campo subjetivo, ético. Enquanto o grego pensa com a razão e a Gnose especula, a Bíblia “conhece” no nível ético-pessoal, desde o Antigo Testamento. Conhecer significa também “eleger” (confira Jeremias 9.3 ou Isaías 1.3) e sua negação seria “rejeitar”. Até a relação sexual entre marido e mulher é chamada “conhecer-se” (que em português é sinônimo de “unir-se”). O uso negativo do verbo “conhecer”, aplicado à humanidade, acentua o antinatural do seu comportamento. Ela não O conheceu – ela O repudiou! (11) Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Aqui a rejeição do “logos histórico” chega ao seu último estágio. Quem eram “os seus” e o que é considerado “dele”? Contrariando a terminologia da Gnose, João fala aqui como judeu (hebreu). Com base no Salmo 24.1, que diz: “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e o que nele habitam”, poder-se-ia pensar na humanidade como um todo, sendo “seu”. É mais provável, porém, que João, judeu e participante da relação especial de JHWH (Deus) com Israel, seu povo, esteja aplicando a tragédia do logos encarnado em Cristo ao seu próprio povo (Salmo 135.4: “Porque o Senhor escolheu a Jacó, a Israel como seu tesouro pessoal”). A eles, Deus havia confiado toda herança (confira Romanos 9.4-5). 24 No mais, todo cristianismo primitivo (no sentido de “inicial”) lia o Antigo Testamento à luz do Cristo encarnado. Existe uma tragédia maior do que não ser recebido pelos que são “seus”? (12) Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus;... João não especula sobre a sorte dos que têm rejeitado a Luz. Ele vê “através do horizonte” (uma afirmação africana para quem vê onde aparentemente não há nada). Nem todos têm rejeitado a Luz! A expressão “a todos quantos” equivale a “qualquer um”, seja ele judeu ou não-judeu, culto ou ignorante, rico ou pobre. “Receber Jesus”? Se tomamos a palavra “receber” no seu sentido literal, ela fica mais clara. Veja: não há visitantes que recebemos em nossa casa e outros que evitamos receber? “Receber Jesus” implica em um comprometimento pessoal. Se você recebe uma visita, é porque a convidou. O mesmo se aplica no caso da Salvação. Hoje, o termo “aceitar Jesus” não tem essa forte conotação, porque aprendemos a pensar de maneira diferente da do judeu. Aceitar alguém ainda não implica em relacionamento pessoal com ele. É simplesmente tolerá-lo. Por essa razão, e porque João conhecia o pensamento helenista (do qual somos herdeiros) é que João (e com ele todo o Novo Testamento) nunca convida a “aceitar” Jesus. Você deve “recebê-lO”! “Mas a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; ... João entende a salvação como “adoção”. O adotado recebe o direito de ser chamado pelo nome de seu novo pai. Não é assim no campo social? Somente honrado pelo “direito de ser chamado filho” alguém se torna filho legítimo de um pai. Para João não somos todos filhos de Deus. Somos, sim, todos criados por ele. “Somos todos filhos de Deus” é pensamento helenista, como a citação do “Fenômeno de Arato” (séc. 3 a.C.), usada por Paulo em Atos 17.28. Ninguém se torna “Filho de Deus” por herança (membro do povo eleito) como os Rabis ensinavam, nem por esforço ético ou código moral (religião) ou sabedoria oculta (Gnose = espiritualismo), muito menos por ritos sacramentais, como batismo e crisma. Somente sendo “agraciados” – “recebendo dele o poder de ser feito filho” - nós nos tornamos Filhos de Deus. Os judeus vangloriavam-se de seus direitos hereditários e chamavam a si mesmos filhos de Abraão. 25 Agora, os que “recebem a Ele”, recebem um direito (o poder), o direito de se tornarem filhos (uma comparação tipicamente joanina) não apenas de Abraão, mas de Deus. “... a saber, aos que creem no seu nome” Ainda não aparece o nome Jesus, mas já se torna claro de quem o Prólogo fala. A “adoção”, ou “o poder para ser feito filho de Deus” corresponde ao “crer em seu nome”. Esse termo é próprio do Evangelho joanino e mais profundo do que o “crer” nos três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Nesses, a fé sempre está relacionada a algum feito, a uma cura, a uma revelação de poder ou a determinadas palavras de Jesus. No Evangelho de João e nas suas “Cartas”, o objeto da fé sempre é a pessoa de Jesus. Na intimidade, a confiança demonstrada ao recebermos a pessoa de Jesus leva-nos a um relacionamento de confiança filial, ingênua, com o Deus Pai. (13) “... os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. A fonte ou a origem da filiação Divina não dependem da ação nem do homem nem da mulher; ela é contrária a qualquer esfera humana. Onde lemos “carne”, o original diz: “fluxo sanguíneo” (sangue), o que identifica a parte feminina. Com essa exclusão genérica da espécie humana, mais uma vez, fica evidente que a filiação Divina é dádiva Divina e não resultado de esforço humano. Em primeiro plano, João nega o pensamento e o ensino rabínico judaico que condicionam propriedade Divina à filiação israelita, à sucessão hereditária, à genealogia judaica. João abole, de uma vez por todas, essa “teologia do sangue” (Schlatter). Uma leitura antiga da Igreja primitiva, posteriormente não aceita como autêntica, diz: “... o que não nasceu” (no masculino, singular) ao invés de “... os quais não nasceram...” (plural, geral). A primeira versão fora usada para argumentar em favor do nascimento virginal de Cristo, uma vez que o masculino singular obviamente se referia a Cristo. Apesar de ignorar “o sangue” (mulher) - que era uma parte no nascimento de Jesus João não argumenta com um nascimento virginal. Simplesmente não lhe interessa. “O verbo se fez carne....e a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus...”: essa é a proclamação solene do Prólogo. • Você já pensou a respeito de sua identificação “cristã”? • Você é filho de Deus ou - adepto de uma religião? • Lembre-se do “...a todos quantos” de João! Convide e receba-O! 26 Cap.1.14 (14) E o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. Um entre seis pastores da Holanda não mais crê em Deus ou nem acredita que Deus exista (Fonte: Reformierte Presse, outubro 2006). Na Igreja Católica Romana, a riqueza da liturgia, as regras eclesiásticas e a vivência rigorosamente estruturada na hierarquia eclesiástica ainda não permitem ao religioso pensar abertamente, tão livremente; mas como indivíduo, na solidão do nosso mundo póscristão, nem ele está a salvo dos ataques da dúvida e da incredulidade. Onde esse “cristianismo contemporâneo” começou a se desligar de sua fonte? O cristão só pode falar de “seu Deus” a partir do aparecimento desse “seu” Deus, até então considerado um “Deus tribal” do povo israelita. Como e onde é que esse “Deus de Israel” tornou-se Nosso Deus e “habitou entre nós?” Quem no-lo - garante como Verdadeiro? Para responder a essa questão voltaremos às palavras de João. (14) E o verbo se fez carne e habitou entre nós, ... Até agora, o Evangelista usou termos pouco concretos; falou do Princípio, do verbo, da luz, da vida. A partir do verso 14 ele muda. O “estava no mundo” muda para o concreto e real: “se fez carne (físico, portanto limitado e mortal) e habitou entre nós”. Com essa declaração, o Apóstolo se distancia de vez da interpretação helenista (em moda, na época) em que as divindades, deuses e deusas se camuflavam por curto período de tempo como se fossem homens ou mulheres comuns para, após realizarem algum feito entre os mortais, voltarem ao seu lugar de origem, livres do peso da falsa humanidade. Quando João diz “carne”, ele aponta para a fraqueza e para a limitação, para o sofrimento e para a realidade da morte inerente à carne. “Carne” pertence definitivamente a esse mundo. Veja quando Isaías, em 40.6, reflete a respeito da vida humana: “Toda a carne é erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor...” João afirma: O impensável aconteceu: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Somente porque Deus se tornou “carne” houve história, e o relatório do Evangelista (da Boa Nova) podia ser escrito por João e os demais Evangelistas. Os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) viam mais em Jesus o cumprimento das profecias, o “Messias prometido por Deus”. João, diferentemente deles, vê em Jesus o Deus encarnado. Deus em forma de pessoa humana? Perguntamos: Isso tem somente valor simbólico? É possível imaginarmos que Deus, O Eterno, apareça em pessoa humana, assumindo o peso dessa humanidade, levando-o até ao final mais trágico e pesado possível? 27 Tudo depende da resposta a essa questão. Onde está o “limite da possibilidade Divina” de abaixar-se até à Sua criação humana? Renomados pensadores das religiões judaicas e cristãs procuravam por alguma elucidação. No melhor dos casos esse esforço apenas permitia um vislumbre das possibilidades de conhecimento da verdade. Filo de Alexandria (30 a.C até 40 d.C.) nada ainda sabia da crença cristã da encarnação. Confrontado com a tendência do imperador Gaio Calígula para a “Apoteose” (Divinização do homem), ele sentenciou: “A transformação da natureza criada e corruptível em natureza Divina e incorruptível consiste para a nação judaica na mais horripilante blasfêmia. Antes Deus se transforme em homem que homem em Deus” (LegGai118). Se Filo houvesse tido conhecimento da crença cristã, certamente ficaria surpreendido e teria repensado seu pronunciamento. Em 160 d.C., Justino Mártir argumentou contra a tradição judaica, já formada, que considerava a encarnação de Deus algo absolutamente impossível (Dialogus cum Tryphone Judaeo). Com o cristianismo em ascensão, o judaismo (geralmente com fins polêmicos), afirmava a impossibilidade da encarnação. Em tempos posteriores, esporadicamente, Apoteose (movendo de baixo para cima: homem declarando-se Deus) permaneceu como blasfêmia absoluta (giddûf) enquanto que, para um judeu, uma encarnação de Deus (movendo de cima para baixo) poderia ainda ser, de alguma maneira, compreensível. O professor de filosofia, judeu de linha ortodoxa, Michael Wyshorogod diz (resumidamente): “O judeu não pode aceitar a encarnação porque a Palavra como é ouvida no Judaismo não lha diz e porque a fé judaica não a confessa. Se a Igreja (cristã) a aceita, acontece não por ela ter descoberto o fato, mas sim, porque ouviu que essa fora a determinação soberana e isenta de Deus – uma decisão impossível a ser prevista pelo homem. ..Interessante é que sob o ângulo de vista da soberana liberdade de decisão de Deus, que as duas religiões admitem, as diferenças entre as duas religiões não desaparecem, mas entrem em certa coerência...” “A encarnação, do ponto de vista do Antigo Testamento, não era nem anunciada nem esperada. Ela deve ser vista como o presente mais inesperado e imprevisto. Só após ter acontecido o inesperado, - post festum – podemos discutir sobre se a encarnação vai contra o Espírito da Antiga Aliança ou não. Um Deus livre e onipotente; se Ele decidir tornarse homem, quem O pode reprimir ou contradizer?” (§ 151-154 Thoma, Clemens. Teologia cristã do judaismo). 28 Nenhuma Cristologia (nem a joanina) pode ignorar o ponto principal judaico: A obra de Cristo não pode ir contra o Domínio e a Autoridade do Único Deus Pai. O Apóstolo Paulo, como fariseu e bom judeu, não deixou em nenhum de seus escritos a menor dúvida a respeito. Vemos isso no trecho de 1.Cor.15.20-28 quando no último cumprimento da história da redenção, acontece “a sujeição do Filho Àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”. Leia o texto indicado! Ele lhe ajudará a entender melhor Jesus em relação a Deus Pai. (14) E o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. “... e habitou entre nós” O original diz “tabernaculou” entre nós. Tabernacular é morar “por enquanto”, assim como o povo “tabernaculou” durante seus 40 anos de peregrinação no deserto, após ter saído do Egito. Como pode Jesus estar presente entre nós? Cada um de nós tem sua ideia a respeito. Uns imaginam Jesus como participante invisível numa reunião; outros O veem pairando sobre a Igreja e outros mais entendem Jesus habitando “neles”, fazendo parte de seu espírito. Vejamos como a Bíblia nos mostra os estágios da presença Divina. Na época antes do primeiro Templo em Jerusalém, Davi, após apaziguar a cidade de Jerusalém, declarou: “... O SENHOR, Deus de Israel, deu paz ao seu povo e habitará em Jerusalém para sempre” (1.Cr.23.25). Quando seu filho Salomão edificou uma casa para o SENHOR (o primeiro Templo), ele confessou na sua oração de inauguração: “...mas, de fato, habitará Deus com os homens na terra? Eis que os céus e os céus dos céus não te podem conter, quanto menos essa casa que eu edifiquei... Quando houver...ouve tu dos céus, do lugar de tua habitação e perdoa...” (2.Cr.6.18,30,33,35,39). Diz a Bíblia que “a Glória do Senhor” (shekinah) encheu o Templo e não Deus pessoalmente. Agora João anuncia que “O Verbo” pessoalmente habitou entre os homens. Paulo, na sua “Carta aos Filipenses” explica o que esse fato significava: “..não julgou como usurpação o ser igual a Deus, antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fil.26-8). Não havia dúvida nem em João nem em Paulo da verdadeira “encarnação” do Verbo. Por um tempo, até a sua execução por parte dos homens, o Verbo “tabernaculou” entre os homens. Dali em diante, como ressurreto, Ele continua habitando entre nós, mas em um nível diferente. Paulo pergunta aos cristãos em Corinto: “... vocês não sabem que vocês são o santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1.Cor 3.16). Jesus havia prometido aos seus (João 14.16) que o “Consolador” viria no lugar dele. Popularmente dizendo, o Consolador viria como sucessor da pessoa de Jesus; não existe sucessor humano! 29 O final da habitação de Deus, quando o Filho tiver devolvido ao Pai tudo o que Este lhe sujeitava, como lemos pouco antes (1.Cor.15.20-28), vemos descrito no Apocalipse: “Então ouvi grande voz, vindo do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus mesmo estará com eles. Eles serão povo de Deus e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá , já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (Apoc.21.3-4). Numa intensidade crescente, numa revelação cada vez maior, até chegar “à nova criação” descrita por João em Apoc. 21, Deus se fez e fará presente entre os homens. João, Apóstolo, afirma a respeito dos três anos vividos junto com seu Mestre: O Verbo habitou entre nós cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. A Palavra encarnada era cheia de graça e de verdade. João está dirigindo seus leitores para Êxodo 33-34. Lá Moisés implora a Deus: “Peçote que me mostres a tua glória” (Ex.33,18). O senhor responde: “Diante de você farei passar toda a minha bondade, e diante de você proclamarei o meu nome: o SENHOR(YHWH). Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericordia, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (Ex.33,19). A glória de Deus, portanto, é supremamente sua bondade. “E passou diante de Moisés, proclamando: SENHOR, SENHOR, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado” (Ex.34,6-7). João aplica o termo “Graça” diferentemente do homem. Nós vemos na graça sinal de compaixão quando olhamos de baixo para cima. João olha de cima para baixo, ele usa a visão de Deus na Sua encarnação. No mover-se de cima para baixo, da “Doxa” para “os que estão nas trevas”, ele reconhece a “Graça” que nos alcançou. Nunca a Glória de Deus se manifestou nos reinos desse mundo, na pompa ou no poder temporal. Assim como Deus havia escolhido o mais insignificante e menor povo para Si, Ele revelou Sua Glória em “fraqueza e loucura” (1.Cor1.25). A ‘verdade’ é aquilo que é real, contra o que é irreal e engano. O salmo 89,14 canta da “Graça e Verdade” que precedem a ele. Na tradução de Lutero o termo “verdade” é interpretado por “fidelidade”. A verdade não se altera nunca, ela é fiel. ... e vimos a sua glória,... 30 “Até esse ponto, o leitor de João pode ser desculpado por pensar que a glória manifesta na Palavra encarnada era abertamente visível – que o Jesus que está para ser apresentado por nome andou pela Galileia e pela Judeia com um tipo de luminescência que o distinguia, pois não era um mortal comum, mas o Filho de Deus. Mas, à medida que João prossegue com seu Evangelho, torna-se cada vez mais claro que a glória que Cristo manifestou não foi percebida por todos (...); os olhos da fé eram necessários para ‘ver’ a glória que era revelada pelos sinais. Desse modo, à medida que o livro avança, a revelação da glória de Jesus está especialmente ligada à cruz de Jesus e à exaltação (ressurreição) que se segue...” (Carson, fim da citação) Nós vimos... Vimos o quê? Muitos haviam visto o Nazareno e classificado-o de “samaritano” (isto é, infiel); “herege” (traidor da fé); “endemoninhado”; “louco” (João 7.20;8.48;8.52;10.20) ou simplesmente “filho de carpinteiro”; um ninguém no mundo da religião. Outros o viam como homem sábio, um mestre entre muitos outros, cuja sabedoria possivelmente vinha de Deus. João via algo totalmente diferente: havia visto a “doxa” (Glória), que no Antigo Testamento significa “pesado, monumental, honrado”. O Deus do Antigo Testamento era acima de tudo “pesado, grande, glorioso”. João e seus amigos viam no homem sofredor que foi torturado e morto “a Glória” de Deus; do único Deus capaz de sofrer junto com sua criação sem alegar para si vantagens ou direitos especiais que o libertassem daquilo mesmo que ele colocara sobre o ombro de suas criaturas. João viu no crucificado Aquele que devia ser “levantado para que todo o que nele crê, tenha a vida eterna” (João 3.14,15). A Glória aparece em forma humana. A glória (doxa) corresponde ao hebráico “kabôd”, uma palavra usada para denotar a manifestação visível da autorevelação de Deus em uma teofania (Ex.33,22/ Dt 5,22). Jesus foi supremamente ‘glorificado’ em sua morte e exaltação (7,39/12,16.23/13,31.32). ... glória como do unigênito do Pai. João reconheceu na pessoa de Jesus o “Verbo, cheio de graça e de verdade”, como do “unigênito” do Pai. A palavra estranha “unigênito” é resultado de um processo de tradução da palavra “mono-genes”. O sentido mais próximo a essa expressão encontramos em: “único no seu modo de ser”. O Evangelista lhe apresentará através desses estudos seu relato a respeito “... do que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da Vida...” (1.Carta de João 1.1). • Quem é Jesus para você? • Você enxerga “através do horizonte”? 31 Cap.1.15-18 (15) João testemunha a respeito dele e exclama, dizendo: “Este é o de quem eu disse: ‘o que vem depois de mim, tem, contudo, a primazia, porque já existia antes de mim’. (16) Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça. (17) Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. (18) Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. (15) João testemunha a respeito dele e exclama, dizendo: Este é o de quem eu disse: o que vem depois de mim, tem, contudo, a primazia, porque já existia antes de mim. Observe que em todo o Evangelho de João nunca aparece o discípulo com esse nome. O Evangelista, que compôs a obra que estamos estudando, nunca se apresentou nominalmente. Pelo fim da obra ele aparece, falando na terceira pessoa, usando o pseudômino “o discípulo que Jesus amava”. Nos últimos estudos desse Evangelho veremos o porquê. No presente momento, porém, basta enfatizar que “João” se refere à pessoa de João Batista e não ao Evangelista João. João que batizava o povo, o “último e maior profeta” (como Jesus o chamou em Mat.11,11), era o precursor de Jesus, aquele que teve a honra de batizar Jesus (Mat. 3,13-17). Não sabemos se o próprio Jesus, por um tempo, havia sido seguidor do Batista antes de pedir seu batismo. Os primeiros discípulos de Jesus também vieram do movimento batista, como veremos mais adiante. O Evangelista João, que agora está dando seu relato, era seguidor do Batista, mas abandonou o movimento batista para seguir a Jesus. O Evangelista, através do Prólogo, descreve a primazia de Jesus sobre João Batista, seu precursor, cujos seguidores, meio século após a sua morte ainda viam no seu antigo mestre uma figura messiânica. O Evangelista volta a lembrar a primazia do Verbo encarnado sobre o Batista. Através do “Apocalipse de Adão” (um escrito apócrifo do primeiro século) sabemos de um “movimento batismal judaico” (do Batista) que se congregava perto do rio Jordão. Pelo “Oráculo Sibilino Quarto” (obra apócrifa do fim do primeiro século) conhecemos sua “teologia”. O batismo era um pré-requisito para a salvação. O autor da obra acima exorta “os infelizes (judeus) mortais” a “abandonar a conduta licenciosa” (confira a pregação do Batista) e “a lavar seus corpos inteiros em rios perenes” (SibOr 4.165). Depois desse batismo garante-se o perdão e a aceitação de Deus; os justos serão então ressuscitados para um julgamento que será presidido pelo próprio Deus. Essa era a doutrina dos grupos batistas na época em que o quarto Evangelho foi composto. O Apóstolo João se refere indiretamente a esses grupos, quando no verso 15 novamente aponta para o fato do “Verbo” ter existido na 32 eternidade passada e, portanto, ser anterior ao Batista, fato que o próprio Batista teria reconhecido na época. Não sabemos se a afirmação do verso 15 vem do próprio Batista ou se ela é uma conclusão do Evangelista a respeito do que ele mesmo viu e ouviu. Lembremos: O Evangelista João conheceu os dois Mestres. Ele estava presente quando o Batista encontrou-se pela primeira vez com Jesus. Era testemunha quando Jesus foi batizado por João. Ele viu como o Batista apontou Jesus a seus próprios seguidores como o “cordeiro de Deus” e essa indicação levou João, antes discípulo do Batista, a abandonar seu antigo mestre e seguir a Jesus (João 1.35-36). (16) Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça. Assim como as ondas na praia do mar se seguem, sem fim, uma após outra chegando e esvaziando-se por inteiro, assim provém graça sobre graça da plenitude do Verbo. A Graça não tem fim e não está condicionada. Recebemo-la sem merecê-la. Para João não existem trevas que, de alguma forma, pudessem limitar a graça. Você aprendeu a olhar assim a Graça que vem de Deus? Ou você conhece “as graças” somente como porções homeopáticas, condicionadas, cujo efeito benéfico depende do seu esforço e que, ao menor sinal de fraqueza de sua parte, podem ser canceladas? Não é assim que João viu a graça vinda da plenitude do Verbo. (17) Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Até então, a presença de Deus estava condicionada à Lei de Deus. De acordo com a obediência ou a rebeldia a ela, Deus concedia ou retirava Sua graça. Sim, a Lei sabia de misericórdia e de graça, mas elas eram temporais e reservadas aos que andavam de acordo com a Lei. A entrada do Verbo na história humana colocou o relacionamento do homem com Deus sobre uma base totalmente nova. O fator determinante não é mais a Lei. A Lei conhecia “obediência” e “desobediência”, “bênção” e “castigo”; porém ela não conhecia o “perdão”. A Lei exige observância e, quando essa falha, resta o sacrifício ou a hipocrisia. O hipócrita é a pessoa que quer observar a Lei, mas não o consegue. Então, opta pelo fingimento. A Verdade não pode vir junto com a Lei; ela só pode se tornar realidade quando vem junto com a graça, o perdão. A Lei foi dada. A graça e a verdade vieram. Na Antiga Aliança os salmistas já cantaram da graça e misericórdia do Senhor. “Bondade e misericórdia certamente me seguirão, todos os dias da minha vida...” (Salmo 23.5). Como posso “alcançar” essa misericórdia, que me segue, conforme diz o salmista? A encarnação do Verbo, aqui pela primeira vez chamada pelo seu nome “Jesus Cristo”, trouxe a graça e a verdade. A imagem de Deus não 33 mais é determinada pela “Santa Lei”, mas pela “Graça”. Isso significa para você: Para poder relacionar-se com Deus, você é perdoado; recebe Graça. Você percebe? Comunhão com Deus não mais fica restrita aos que são perfeitos. Ela se abre para pessoas falhas como você e eu. Com essa nova base, a Lei não é mais o “tutor” que ameaça com castigo; ela continua perfeita e boa, mas não mais exclui do amor de Deus, revelada em Jesus (Leia Romanos 8,38.39). Na pessoa de Jesus, o Evangelista viu essa comunhão perfeita com Deus Pai, onde graça e verdade se tornaram realidade. Nem a criação (natureza) nem a história humana são capazes de revelar-nos a mente de Deus. Nem a natureza nem a história conhecem perdão; elas funcionam na base de “causa e efeito”; por si só são cruéis; não conhecem “graça”, portanto não podem revelar-nos a Verdade. A pergunta do “por quê?” ficará eternamente sem resposta. (18) Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou. João escreveu seu Evangelho quando diferentes filosofias e especulações gnósticas com seus mitos procuravam definir o abismo entre o espiritual e o natural. A tese “Ninguém jamais viu a Deus” era comum ao ensino da Gnose. O Deus desconhecido era parte da Gnose. A Lei de Moisés, por sua vez, ensinava que era perigoso procurar vê-lo (Deut. 4.11ss). Moisés nunca viu a Deus; a Bíblia diz que Deus falava com Moisés “face a face”, isto é, diretamente, sem intermediário (confira Paulo em 2.Cor.3.7). Deus é Espírito, nenhuma criatura humana pode “vê-lo”. Deus nunca e de nenhuma maneira está “disponível” ao homem. Quem então podia conhecê-lo? Na íntima comunhão entre Jesus e seu Pai, o posteriormente Apóstolo conheceu um lado de Deus que a Antiga Aliança não podia revelar, pois a base dela era a Lei. João entendeu o que era “graça”, quando o amor do Pai não cessou por causa da cruz. Na revelação dessa disposição até então desconhecida do Pai – amar o que não merece ser amado – ele reconheceu Jesus como parte existencial de Deus. A única comparação adequada ao que ele viu em Jesus era a imagem do Filho eterno com seu Pai. Não é mais “mito” ou “revelação” o que determina a relação homemDeus. No seu lugar entrou a experiência da Graça e Verdade na pessoa histórica de Jesus. A “Lei”, interina (provisória, temporal), confiada a Moisés, encontrou na pessoa de Jesus seu cumprimento. A mesma “Palavra” (Verbo) que estava presente quando Deus chamou o Universo a existir (Gen 1.3) entrou na história, visível na pessoa de Jesus. O Apóstolo João conhecia bem as palavras do profeta Isaías. Compare as palavras do profeta com o “Prólogo” do Evangelho de João e 34 que acabamos de estudar. “O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz. Sobre os que habitavam a terra da sombra, brilhou uma luz. ... Porque o jugo que pesava sobre eles, a carga de seus ombros, a vara do exator, tu os quebraste....Porque nasceu para nós um menino, um filho nos foi dado. Ele tem a soberania sobre seus ombros e será chamado: Conselheiro, Deus forte, Pai da eternidade, Príncipe da paz...” (Isaías cap.9). Somente aquele que veio do Princípio pode nos revelar o coração do Pai. Agora podemos conhecê-lo. João escreveu para “o mundo”, isto é, para todos, não somente para Israel. O Verbo revelou-nos um Deus Pai que ama o mundo (João 3.16). O “Deus de Israel” havia se revelado “Deus do Universo”. Sua imagem não mais era a de Juiz, ligado à Lei de Moisés, mas sim de um Pai que emana “graça sobre graça” sobre qualquer homem ou mulher que clama por ele, independentemente de sexo, raça, cor ou posição social. Na Antiga Aliança, Deus não tinha nome que Seu povo podia pronunciar; Seu nome era “inefável” (não pode ser pronunciado pelo homem) e quem se atrevia a pronunciá-lo teve que morrer, pois blasfemou contra Deus (Lev.24.16). O judeu usa atributos Divinos quando se refere a Deus, como “O que salva”; “O que cura”; “O Eterno”; “Senhor dos Exércitos”, etc. Em Jesus, Deus nos deu um nome pelo qual podemos chamá-lo. Não mais seremos castigados e eliminados ao pronunciar seu nome. “Manifestei o teu nome aos homens...” (João 17.6). • “Abba” (querido Pai)! • Você pode clamar “ao Pai” e será ouvido! Cap.1.19 O autor do Evangelho muda o estilo de sua escrita a partir do verso 19. Enquanto o “Prólogo” (1-18) se assemelha a um poema composto em estilo de alto teor poético (sendo possivelmente um hino cantado nas primeiras comunidades cristãs), a partir do verso 19 o autor do Evangelho muda para um grego simples e claro. Por um bom tempo acreditava-se que, inicialmente, o Prólogo não fazia parte do Evangelho e tenha sido adaptado e acrescentado posteriormente por alguma hipotética “escola joanina”. Hoje se sabe que, tanto o “Prólogo” como o capítulo 21 (considerado um anexo), já faziam parte das mais antigas cópias de que temos conhecimento. Você, que junto conosco está lendo e meditando este Evangelho magnífico, poderia perguntar do por que não copiamos simplesmente um 35 dos milhares de comentários do Evangelho de João que estão no mercado. Vou procurar indicar-lhe algumas razões. Um amigo teólogo nosso, com razão nos disse: Esses comentários!... Eles explicam o que está óbvio e nada dizem a respeito de trechos onde surgem dúvidas. É fácil encontrar quem pregue a Palavra usando os chavões conhecidos, decorados, que nada dizem aos leigos: “Jesus morreu na cruz pelos seus pecados”, por exemplo. Embora seja essa uma grande verdade, será que alguém pode me traduzir isso numa linguagem que faça sentido para mim? Nos nossos estudos estamos tentando pensar junto com você. Não traremos tudo prémastigado. Ajudaremos você a descobrir a mensagem que o Apóstolo apresenta. Procuraremos, ao máximo, evitar “chavões”. As lições, como você deve ter percebido, desafiam você a pensar. Crer é pensar, também! Nessa batalha pela “fé” (no bom sentido) encontraremos dificuldades. Numa época em que assistimos ao deboche de tudo que é santo e reto, limpo e verdadeiro, como podemos confiar no que cremos? O sermão do pastor nunca poderá salvá-lo, mas deve despertar seu desejo de ir correndo buscar a vida, da qual o pastor falou, na sua fonte. Essa fonte é Deus. O pastor pode indicar-lhe o caminho, apresentando-lhe a Palavra de Deus. Essa palavra virá a seu encontro. A compreensão da Palavra não será imparcial, senão sua resposta a um chamado. Você se lembra? “A luz brilha nas trevas e as trevas não prevaleceram contra ela”. Ninguém e nada pode impedir que você encontre essa vida do qual o Apóstolo fala. Vêm de lados opostos os perigos que o estudioso da Palavra corre: Desde o século 19, teólogos renomados estão tentando provar que a vida e a mensagem de Jesus eram totalmente diferentes do que até então cremos. Quem lê a Bíblia e a toma por “verdadeira” é considerado fundamentalista bitolado. Você se lembra dos pastores holandeses do estudo 11, cuja fé em Deus morreu? Como será que eles conseguem atuar como “pastores” nas suas paróquias, se nem acreditam em Deus? C.S.Lewis, um dos maiores pensadores cristãos do século 20, nos contou como os sacerdotes anglicanos estavam, segundo eles mesmos, lidando com a questão. Os pastores trabalham com dois tipos de “verdades”: uma expressa em “imagens”, usada para a pregação e que pode ser interpretada à vontade pelas ovelhas – a arte da ambiguidade moderna que deixa o crente ouvir o que ele quer – e a outra “verdade”, usada no intercâmbio entre os religiosos, livre de lendas e mitos, mas esotérica em sua essência. Segundo esses teólogos, não há e não houve milagres; esses seriam mitos ou imagens que deveriam ser devidamente interpretadas pela psicanálise. Será que esse questionamento das verdades bíblicas “cola”? Veja de perto a questão do milagre ou da profecia. Se você, a priori, afirma que 36 milagres ou profecias não existem, você de início exclui boa parte dos Evangelhos. Se há ou não há milagre ou sobrenatural, no entanto, é uma questão puramente filosófica, não científica. A maior autoridade do mundo em questão de religião não fala nesta questão com maior autoridade que você! A premissa: “sobrenatural não existe” é trazida por eles, de fora, aos textos; não é conclusão do estudo dos mesmos. A conclusão de toda a autoridade dos críticos da Bíblia junta não tem peso maior do que a sua própria conclusão; os dois são resultados do espírito da época e os que sentenciam contra a Palavra o fazem como pessoas influenciadas por ele. Por isso, não se assuste quando aparecer a próxima manchete anunciando a morte de Deus ou quando se vir perante o próximo ataque à autoridade da Bíblia! O Espírito Santo de Deus que fala a você (quando você der ouvido ao Evangelista) é o mesmo que falará ao maior teólogo do mundo; portanto ouça e tenha coragem! Deus vai falar com você! Uma lei da comunicação diz que “a mensagem” sempre é aquela que a pessoa que a recebe, entende. O Apóstolo escreveu em termos que lhe foram familiares quando ele, inspirado por Deus, procurou guardar em palavras humanas o mistério que testemunhara. Pense naquilo que o Apóstolo afirma e diga-o, usando suas próprias palavras. Procure termos adequados, que fazem sentido para você, mantendo o sentido da mensagem do Evangelista. Assim, repentinamente, o autor começa a falar com você. Antes, você só decorava textos. Não decore somente! Somente entre os anos 1980 e 1984 foram lançados nada menos de 35 livros de líderes teólogos dedicados à “Pesquisa sobre o Jesus histórico”. Quem realmente era aquele homem que no Novo Testamento aparece como “Jesus de Nazaré?”. Será que viveu mesmo? A pergunta em si é lícita. A procura do “Jesus histórico” trouxe resultados inesperados. Jesus viveu mesmo! Cada vez mais, temos provas em mãos que trazem à luz fatos e informações daquele tempo e que até hoje eram desconhecidos, - circunstâncias culturais, por exemplo, que justificam determinadas ênfases nos relatórios dos Evangelistas. Sabemos hoje muito mais sobre costumes, religiosidade e a cultura do povo na época de Jesus do que há 50 anos. Embora interessante, será que as descobertas nos ajudam em nossa procura do Jesus Vivo? A História nunca poderá nos revelar o mistério de Jesus, do qual o Evangelista era testemunha. Ela nunca nos dará a resposta à pergunta: Quem era esse Jesus? Para responder a isso precisamos de palavras de testemunhas da época. A história pode nos dar a moldura, nada mais. Ela até ajuda entender muitos “porquês” dos relatórios evangelísticos. A imagem dentro da moldura continua sendo o Evangelho, naquele gênero de literatura distinta, como nos é apresentado. C.S.Lewis, professor de línguas medievais e antigas, considera impossível uma crítica ou uma leitura melhor da que os próprios Evangelistas fizeram daquilo que viam e viviam (Essays on Christianity, Collins, 1975). Segundo Lewis, não é dada ao 37 homem compreensão além do momento presente, do “agora”. Nem essa realidade ele consegue captar satisfatoriamente, sem cair em contradições. Cuidado então com “comentários científicos” a respeito da pessoa e mensagem de Jesus! Você crê na Bíblia? Crê mesmo? Ouça: nem Deus nem Jesus mandaram crer “na Bíblia”. Você deve crer (isto é: confiar incondicionalmente) em Jesus como o Cristo revelado na Bíblia. Quem confunde as duas coisas, com muita razão está sendo chamado de “Biblicista”. Nós temos a mensagem da Bíblia e, no nosso caso, do Novo Testamento, como regra de fé e vida. Ela é luz no caminho na medida em que nela reconhecemos “a Luz do mundo”. Nós não cremos “na Bíblia”; cremos, sim, em Jesus. Provas objetivas (de que Jesus viveu mesmo ou de que a Bíblia é autêntica) não lhe trarão a fé, pois todo resultado de pesquisa sempre é por aproximação. Não existe prova matemática em matéria da fé. Nenhum resultado de pesquisa lhe trará a fé viva, pois resultados são obtidos pelo estudo “neutro”, sem envolvimento pessoal subjetivo. Fé pertence ao subjetivo, é tesouro pessoal, é dada ao que anseia apaixonado pela verdade – a quem arrisca crer “apesar” de... Crer é suportar a dúvida. Os Evangelistas eram humanos. Tenha isso sempre em mente. Cada Evangelho foi escrito por uma pessoa humana, inspirado pelo Espírito de Deus e com um determinado desígnio. Cada Evangelista tinha sua própria visão de Jesus e de acordo com essa ele compôs seu relato. É por essa razão que os quatro Evangelistas, às vezes, parecem não dizer a mesma coisa. Marcos enfatizou o completo abandono de Jesus em face da morte (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”). Os intérpretes discordam em suas explicações de por que Marcos escolheu enfatizar isso. Lucas, por sua vez, ensina uma lição diferente. É possível que ele tenha querido dar um exemplo aos cristãos perseguidos sobre como eles deviam encarar a morte, na plena certeza de que Deus está a seu lado em todos os seus tormentos (“hoje mesmo estarás comigo no paraíso” / Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”). Mateus, após provar a seus compatriotas judeus que Jesus era o Messias prometido, enfatiza o discipulado e o comprometimento pessoal e voluntário (“venha após mim e farei de vocês pescadores de homens/ quem não deixar....não pode ser...”). Sobre o “porquê” dessas ênfases distintas, os comentaristas discordam e há diversas maneiras de entendê-las. O Evangelho de João é totalmente diferente de cada um dos três primeiros (chamados sinóticos). O autor tem uma só preocupação: “estes...sinais foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o 38 Filho de Deus, e, para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20.31). Tudo que serve a esse propósito, João relata. João vê Jesus na história de Deus com o mundo, não mais como o Messias dos judeus. João fala do Salvador do mundo. Meio século após os Evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, ele já tem outra visão de seu Mestre. Ele pressupõe que seus leitores conheçam os outros Evangelhos (ou parte deles); não relata o que naqueles Evangelhos já foi contado, mas acrescenta. No Evangelho todo ele olha Jesus como a encarnação de Deus. Jesus é Divino. Tudo que poderia levar seu leitor a duvidar desse fato, João deixa de relatar. Ele não quer suscitar dúvidas. Assim, o Apóstolo nunca vê seu Senhor em estado de fraqueza; Jesus sempre é Senhor da situação, até na cruz (“Está consumado!”). Se queremos “provar” que o os Evangelhos, como um todo, são fiéis e sem erros, não o fazemos misturando todos os quatro de tal modo que Jesus acaba dizendo e fazendo tudo o que cada um dos escritores indica. Por exemplo, juntando as palavras de Jesus dos quatro Evangelhos faladas numa determinada ocasião e alegando que Jesus falou em seguida tudo que cada um dos Evangelistas relata a respeito. Quem interpretar os Evangelhos desse modo está tolhendo a fala de cada autor; quem quer que faça isso não está lendo os Evangelhos – ele está inventando um novo Evangelho que nada mais tem a ver com aqueles que nos foram transmitidos. Infelizmente, a maioria das pregações que ouvimos se baseia nessa unificação falsa. Queremos saber mais do que cada um dos Evangelistas sabia. (Um Exemplo: As sete palavras de Jesus na cruz, juntando as exclamações transmitidas por todos os Evangelistas.) São quatro, entre inúmeras visões diferentes, cada uma pertencendo a uma determinada compreensão do Cristo, “verdadeira” dentro daquela compreensão. Nenhuma descrição humana é capaz de englobar todo o mistério de Deus. O que o homem é capaz de perceber, são “flashes” de luz. Se não fosse assim, não haveria necessidade de revelação, discernimento e fé. Sabe como devemos encarar as aparentes diferenças na apresentação de palavras e atos de Jesus? Deixando a miopia espiritual de lado (com a qual queremos empurrar todos os registros numa só caixa e anunciar somente aquilo - com medo de errar -, como “fidedigno”; aquela única interpretação permitida seja ela ditada pelos inúmeros líderes de seitas, ou pelo seu representante maior em Roma). Devemos, sim, saber e reconhecer que tudo aquilo e muito mais podia ser visto em Jesus, muito mais, e que os relatórios dos Evangelistas são flashes, frações, imagens às vezes; são aquilo que aquele ser humano (João) na condição de discípulo, naquela hora, era capaz de perceber. Havia e há muito mais! Esse “mais” entenderemos somente na eternidade futura (1.Cor.13.12). 39 “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (João 21.15). O Evangelista João, com sua distância histórica maior, era capaz de ver mais nitidamente o Cristo no seu verdadeiro contexto Divino, o que aos sinóticos, cinquenta anos antes, por estarem perto demais, ainda não fora possível. Se você, na leitura do Evangelho de João considerar os dois fatores: • a limitação humana: João menciona aquilo que lhe serve para seu propósito (“...para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus...”) e • a visão ampla e profunda espiritual dada ao velho Apóstolo, ultrapassando os demais, voando como seu símbolo, a águia, a visão que você terá de Jesus será assustadoramente real e viva. Estamos orando para que seja dada a cada um de nós a ousadia espiritual e a humildade humana, ambas necessárias, para ouvir a mensagem de João. Cap.1.19-28 (19) Este foi o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para lhe perguntarem: “Tu quem és?” (20) Ele confessou e não negou; confessou: “Eu não sou o Cristo”. (21) Então, lhe perguntaram: “Quem és, pois? És tu Elias?”. Ele disse: “Não sou”. “És tu o profeta?” Respondeu: “Não”. (22) Disseram-lhe, pois: “Declara-nos quem és, para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes a respeito de ti mesmo?” (23) Então, ele respondeu: “Eu sou a voz do que clama no deserto: ‘endireitai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías”. (24) Ora, os que haviam sido enviados eram de entre os fariseus. (25) E perguntarem-lhe: “Então, por que batizas, se não és o Cristo nem Elias nem o profeta?” (26) Respondeu-lhes João: “Eu batizo com água; mas, no meio de vós está quem vós não conheceis, (27) o qual vem após mim, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias”. (28) Estas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando. Por duas vezes, João já havia mencionado o Batista. Aqui ele nos apresenta o testemunho dele. Devemos saber que a fé judaica não conhece nosso “individualismo cristão”. A fé judaica é uma unidade, assim como o povo israelita também é um. As pregações e a prática de batismo desse “Profeta João” (portanto chamado o “Batista”), haviam despertado a atenção da mais alta corte religiosa em Jerusalém. O “Sinédrio” (Assembleia composta de 71 membros, presidida pelo sumo sacerdote, 40 responsável pela doutrina da fé), decidiu examinar o movimento que vinha se espalhando por “toda a Judeia até Jerusalém” (Marcos 1.5). Contrariando a praxe, o Sinédrio não citou o Batista para prestar esclarecimentos em Jerusalém, provavelmente porque a atividade dele, como o Evangelista observa, estava fora da área de sua jurisdição religiosa; o Batista batizava “do outro lado do Jordão” (28). (19) Este foi o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para lhe perguntarem: “Tu quem és?” Jerusalém tinha a obrigação de examinar o movimento batista, pois este havia se alastrado, tomando forma de um reavivamento religioso. Quem foi que enviou “sacerdotes e levitas” para examinar o Batista? Sabemos que somente o Sinédrio tinha essa competência. Sacerdotes e Levitas eram os especialistas em questões de pureza, um assunto sobremaneira importante para o judeu. O batismo, como ritual de purificação, era conhecido para quem entrava para a fé judaica, mas não para judeus, filhos de Abraão. Para quê estes precisavam de nova purificação? O assunto era importantíssimo. O Dia a dia do judeu conhecia, sim, inúmeras purificações rituais, através de um banho, mas nunca como sinal de arrependimento e rompimento com o passado, como era no caso de João Batista. Por que o Evangelista diz: “Os judeus” enviaram..? Não é por antisemitismo, como foi creditado muitas vezes, erroneamente, ao Evangelista. Ele não era inimigo do seu próprio povo. Mas na época em que o Evangelho foi escrito, já havia se formado um abismo intransponível entre “seguidores de Cristo” e “judeus fiéis”. João usa o termo “judeus” fria e objetivamente. Era o termo para designar “as trevas” que haviam rejeitado a Luz. A qualquer judeu, porém, que confessou Jesus Senhor, João reconheceu irmão. Durante o estudo desse Evangelho encontraremos umas 70 vezes o termo “os judeus”. Ora são as autoridades religiosas, ora um determinado grupo de pessoas; João sempre identificou com esse termo geral “pessoas judias que não receberam Jesus”; nunca a nação como um todo. Os especialistas em questões de pureza religiosa não queriam saber a identidade do Batista. Eles precisavam saber “quem” ele era na qualificação religiosa. “Quem és tu?” (20) Ele confessou e não negou; confessou: “Eu não sou o Cristo”. A resposta do Batista implica em uma confissão negativa do Cristo (Messias), figura esperada pelo povo judeu. (21) Então, lhe perguntaram: “Quem és, pois? És tu Elias?” O profeta Malaquias (cap.3.22-24) previa o aparecimento de “Elias” antes da vinda do Senhor. Como hoje ainda sabemos, perto do lugar onde João batizava, encontrava-se o “monte” de onde, pela tradição judaica, Elias foi 41 levado ao céu num carro de fogo (2 Reis 2,9-14). Os inquisidores fizeram as perguntas conforme a ordem do “protocolo”, bem como foram instruídos. Porém, o Batista também negou ser Elias. Ele disse: “Não sou”. Como não judeus que somos, falta-nos o entendimento mais profundo da pergunta acima. A pergunta por Elias era de grande importância; observe, que era a primeira opção pesquisada após o Batista ter negado ser o próprio Messias (o Cristo). O Antigo Testamento conhece duas pessoas do povo de Israel que foram arrebatadas por Deus; isto é, ninguém sabe o lugar de sua sepultura. A primeira personalidade é Moisés, doador da Lei. A segunda é Elias, o maior dos profetas, cujo arrebatamento em carro de fogo está descrito em 2.Reis 2,1-12. Seu arrebatamento levou a uma forte crença popular em Israel: O grande profeta não morreu; ele está dormindo em algum lugar e na hora do maior perigo, reaparecerá! Essa crença faz parte da religiosidade popular de Israel, presente até aos dias de hoje. Não havia como aceitar seu desaparecimento! Essa espera pelo reaparecimento do profeta Elias entrou no Antigo Testamento: “Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o dia do Senhor, grande e terrível” (Mal.3,23). Também “Jesus Siraque” sabe dele. A ele caberá a grande tarefa de converter o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais (3,24). O novo Elias não mais seria o homem temido que clamou fogo dos céus. Sua tarefa seria fundamentalmente outra: a de pacificador. No judaismo posterior encontramos muitas lendas sobre Elias, cuja personalidade aparece fundamentalmente transformada. O “profeta do fogo dos céus” apareceu cada vez mais como figura benévola, bondosa, despertando no povo o respeito e o amor, a saudade e o orgulho. Conforme a tradição judaica, após seu arrebatamento o profeta tornou-se o Anjo da Aliança. Através de sua presença em cada cerimônia de circuncisão (ritual no 8º dia de vida para cada menino), uma parte da alma de Elias tomaria lugar no menino circuncidado. Na véspera do pessach (passah), na refeição solene, há sempre uma cadeira vazia, talher e prato e um copo cheio de vinho, prontos para Elias, afim de que, quando “ele” entrar pela porta da casa, tudo encontrasse preparado. A lenda do retorno de Elias não tem valor de revelação, mas vai além de ser somente um rumor, um boato. Ela é o sonho religioso sem o qual o povo de Israel não poderia viver nem suportar sua sofrida existência. Quando Jesus perguntou aos seus discípulos: “No dizer do povo, quem é o Filho do homem?” (Mateus 16,14), eles responderam, entre outras: “que sejas o Elias”. O aparecimento de Jesus, Filho do Homem, deixou o povo tão impressionado, que o tinham como o Elias reaparecido. Quando no monte Tabor aconteceu a transfiguração mística de Jesus e seu rosto “brilhava como o sol e suas roupas se tornaram brancas como a luz” (Mateus 17,1-13), apareceram-lhe Moisés e Elias. Somente três discípulos foram testemunhas da revelação do segredo messiânico, aos quais Jesus proibiu formalmente contar algo do que viam. Eles, porém, perguntaram a Jesus: “Como, então, dizem os escribas que tem que vir primeiro o Elias?”, referindo-se à lenda da volta do profeta que deveria aparecer antes do Messias. Ao contrário do Batista que antes – veja a nossa leitura - o negava, Jesus lhes respondeu: “Elias já veio e não o reconheceram. Fizeram com 42 eles o que quiseram”. Os discípulos entenderam que Jesus se referiu ao Batista como o Elias reaparecido. A resposta de Jesus confirma a existência da lenda do retorno do profeta. Jesus não se interessava pelo “Elias histórico” – sua interpretação tinha como base o Elias legendário. Para Jesus o Elias não era uma figura do passado; não, era uma pessoa presente. Essa saudade judaica se cumpriu no Evangelho. Elias não mais está sendo esperado; ele já veio. Esta é a diferença de interpretação sobre Elias entre judaismo e cristianismo. Outra vez o nome de Elias aparece no Evangelho. Quando Jesus gritou na cruz, “Eli,Eli, lamá sabactâni” algumas pessoas não entendendo as suas palavras, opinaram:” Ele está chamando por Elias!”(Mat.27,47). O Apóstolo Paulo menciona Elias (Romanos 11,2-4) e Tiago em 5,17-18. O processo místico em volta do profeta Elias chegou ao seu fim com os Pais da Igreja cristã, baseados nas palavras de Jesus: “Elias já veio” (Mat.17,13). Na igreja católica ortodoxa o profeta Elias ainda vive nos ícones e festas. O grande Dostojewski, em sua febre religiosa, escreveu: “traremos o paraíso do milênio e dele sairão os novos Enoques e Elias” (Fülop-Miller. O Dostojewski desconhecido, 1926) - Fonte: Nigg, Hagiografias, 1974, Editora Walter,Olten “És tu o profeta?” Respondeu: “Não”. Na Lei de Deus, em Deut. 18.15-18, Moisés prometeu um profeta escatológico (do fim) “como eu” (Moisés). Junto com a esperança no aparecimento de “Elias”, a religiosidade da época conhecia a figura do “grande profeta”, igual à de Moisés. Os inquisidores fizeram todas as perguntas que, como representantes da Lei, deviam fazer. Resultado: o homem cuja mensagem e atividade batismal haviam chamado a atenção do Sinédrio não era “o Cristo”, nem “Elias”, nem “o Profeta”. (22) Disseram-lhe, pois: “Declara-nos quem és, para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes a respeito de ti mesmo?” O Batista sabia que qualquer autodenominação ou justificação de sua atividade não seria reconhecida pela corte religiosa. Ele só podia responder em termos da Torá e dos profetas, comumente chamadas de “Lei”. (23) Então, ele respondeu: “Eu sou a voz do que clama no deserto: ‘endireitai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías”. O Batista cita o profeta Isaías, quando este fala da futura libertação do povo de Israel: “...uma voz clama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estrada para nosso Deus ... escala um alto monte, pregoeira da boa-nova, Jerusalém, ergue a voz sem medo! Proclama às cidades de Judá: ‘Eis aí o vosso Deus!” Eis que o Senhor Deus vem com poder e seu braço lhe assegura a soberania...’”(40.3,9,10ª). Citando Isaías, o Batista respondeu ao comitê inquisidor. (24) Ora, os que haviam sido enviados eram de entre os fariseus. Críticos das Escrituras argumentam que os fariseus não tinham 43 autoridade para “enviar uma comissão para averiguação”. Isso, de fato, confere. Ao contrário dos levitas e sacerdotes, que fizeram seu trabalho de colheita de informação “profissionalmente” sem envolver-se pessoalmente com o resultado (essa tarefa cabia ao Sinédrio em Jerusalém), os fariseus eram o que hoje diríamos “realmente muito religiosos” e preocupados com o dia a dia da vida religiosa do povo e do cumprimento da Lei. Dos sinóticos sabemos que havia fariseus vindos ao batista; discutindo com ele e recebendo duras críticas. De alguma forma, as perguntas que se seguem não mais visam a pessoa do Batista. Elas questionam a prática dele. Será que ele tinha autoridade para fazer o que fazia: batizava judeus ?! (25) E perguntarem-lhe: “Então, por que batizas, se não és o Cristo nem Elias nem o profeta?” Os fariseus não ficaram satisfeitos com o resultado do questionamento pelas “autoridades de Jerusalém”. Eles conheciam as Escrituras e sabiam que os profetas previam um período de purificação batismal como sinal do anúncio do Reino de Deus (Jer.4.14; Ez.36.25; Zac.13.1 e outros). De onde vinha a autoridade desse homem para batizar, se não era nem o Cristo, nem Elias, nem o Profeta? Eram teólogos preocupados, questionando. (26) Respondeu-lhes João: “Eu batizo com água; mas, no meio de vós está quem vós não conheceis, (27) o qual vem após mim, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias”. João Batista não batizava porque alguém lhe havia dado autorização para fazer isso. Implícito na resposta do Batista está o testemunho de uma missão a cumprir, missão que recebeu de outrem, maior que ele. Este “outro” estaria tão acima dele que nem para o serviço reservado ao escravo João se considerava digno. O mais interessante é que nem ele, o Batista, e muito menos os da comissão inquiridora, conheciam esse “outro”. Com outras palavras, João Batista agiu em obediência a uma ordem que recebera de Deus, tendo sido preparado para tal missão durante anos no deserto (Lucas 1.80). Não sabemos nada sobre as circunstâncias desse chamado. Não sabemos se o Batista, mais cedo, teve contato com os essênios, uma seita que rejeitava o serviço sacerdotal no templo; que dividia os homens em “Filhos da Luz” e “Filhos das Trevas”, sem condição de reconciliação, e era organizada em comunidades sob a liderança de um “Mestre da Justiça” e que esperavam duas figuras messiânicas: Uma da linha de Arão (sacerdotal) e outra para Israel (rei). Mais adiante ouviremos novamente dos essênios. (28) Estas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando. O autor do Evangelho mostra conhecimentos geográficos e circunstanciais como nenhum dos outros Evangelistas, o que reforça a tese do discípulo João ser o autor do Evangelho. Ao mesmo tempo, às vezes ele generaliza, o que dá margem à tese de “outro ser o autor”, talvez um discípulo da escola joanina. O uso do termo “os judeus” deixa claro que o autor mesmo se via distanciado de seu povo. Outras generalizações podem ter sua razão na pouca importância que o autor lhes atribuía, tendo em vista a cultura de seus leitores. 44 Indicações exatas quanto a localidades que somente testemunhas conheciam, encontramos, por exemplo, em 6.59; 8.20; 10.40-42. Não mais se conhece a localidade “Betânia do outro lado do Jordão”. O que se sabe é que o local encontrava-se na região sul, nas proximidades do Mar Morto*. Para o autor era importante mencionar o local. Sua missão, ao escrever o Evangelho, era colocar a missão do “Verbo encarnado”, com exatidão, no seu contexto histórico. • Veja literatura recente: RIESNER Rainer, Betanien jenseits des Jordans (Betânia do outro lado do Jordão), Brunnen, 2002. Cap.1.29-34 (29) No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! (30) É este a favor de quem eu disse: ‘após mim vem um varão que tem a primazia’, porque já existia antes de mim. (31) Eu mesmo não o conhecia, mas, a fim de que ele fosse manifesto a Israel, vim, por isso, batizando com água”. (32) E João testemunhou, dizendo: “Vi o Espírito descendo do céu como uma pomba e pousar sobre ele. (33) Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, este é o que batiza com o Espírito Santo. (34) Pois eu, de fato, vi e tenho testificado que ele é o Filho de Deus.” Por Marcos (1.9) sabemos que Jesus, ao ouvir sobre a atividade do Batista, veio da Galileia (norte) ao sul e que provavelmente acompanhou por um tempo o movimento intenso em volta do Batista: “Saiu a ter com ele (Batista) Jerusalém, toda a Judeia e toda a circunvizinhança do Jordão e eram por ele batizados no rio Jordão, confessando seus pecados” (Mateus 3.5,6). Tanto Mateus como Marcos e Lucas mencionam que Jesus também pediu o batismo por intermédio de João. Lembremos que João, Apóstolo, inicialmente era um jovem seguidor do Batista. Ele era testemunha dos vários encontros de seu Mestre com Jesus. Sabemos por Lucas (cap.4) que Jesus, logo após receber o batismo, procurou a solidão, sendo guiado pelo Espírito Santo ao deserto, para ser tentado. (29) No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! No dia seguinte a quê? Alguns comentaristas entendem “no dia seguinte ao batismo”. João, porém, não menciona o batismo de Jesus. Este é tido como conhecido. João não volta a mencioná-lo, porque este fato poderia ser interpretado como sujeição de Jesus ao Batista (veja estudo João cap.12). João tampouco menciona a principal atividade do Batista, sua pregação poderosa, seus batismos de arrependimento. Aquela atividade servia de preparação para a chegada do Reino de Deus. O Reino de Deus já veio! Quando o Apóstolo escreveu, toda a pregação do Batista não mais fazia sentido. O único que ainda importava a 45 João era que o Batista havia apontado a Jesus como “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Há quem questione que houvesse necessidade de Jesus ser batizado “para o perdão dos pecados”. Essas considerações são antigas. Nas primeiras décadas do segundo século (aprox. 50 anos após o Evangelho de João ser escrito) apareceu um falso “Evangelho dos Nazarenos”. Nele, Jesus se recusa claramente ser batizado. Quando sua mãe O convida ao batismo, Jesus teria dito: “Onde foi que eu pequei, que me obrigue a ir e ser batizado por ele?” Nessa escrita apócrifa já percebemos como o fato do batismo de Jesus por um “homem pecador”, embora profeta, intrigava as mentes. A resposta simples é dada pelo próprio Batista: “o cordeiro, que tira o pecado do mundo”. Jesus já havia retornado do deserto onde havia rejeitado as ofertas de um ministério fácil. Ele havia aceitado sua condição de instrumento na mão de Deus “para tirar o pecado do mundo”. Até ao momento em que Jesus pediu seu batismo, João Batista anunciava julgamento severo, um Juiz que “recolheria o trigo no celeiro, mas queimaria a palha em fogo inextinguível” (Mateus 3.12). No lugar de um ser Forte, que botasse ordem na situação religiosa, apareceu “o Cordeiro”. Em que cordeiro o Batista podia estar pensando? Será nos dois cordeiros que diariamente sangravam no Templo? (Num. 28.3,4). O Apóstolo Paulo (1.Cor.5.7) e João (19.36) fazem alguma alusão ao “cordeiro pascal”. O “pecado do mundo”, no entanto, somente o “servo sofredor”, o cordeiro levado ao matadouro, de Isaías, cap.53, pode tirar o pecado. Este “justificaria a muitos porque as iniquidades deles levará sobre si” (verso 11). O Evangelista reconhece no Jesus histórico, temporal, o “cordeiro de Deus” de Isaías 53 e o Verbo preexistente em Deus, atemporal, eterno. (30) É este a favor de quem eu disse: ‘após mim vem um varão que tem a primazia’, porque já existia antes de mim. A obra e o destino de Jesus se cumpriram no seio da história universal, sujeita ao exame do historiador. João, Apóstolo, porém vê no que Deus fez em Cristo – sua vinda, sua paixão e sua glorificação – o acontecimento escatológico (determinando o que há de vir). Jesus é “o que há de vir”, e não temos que “esperar outro” (Mateus 11.3). “Porém, ao chegar a plenitude dos tempos, enviou Deus a seu Filho” (Gálatas 4.4); “Esta é a condenação: que veio a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz...” (João 3.19). O mesmo João, no seu Apocalipse, viu no seu exílio na ilha de Patmos a Jesus como “o Cordeiro”: “Digno é o cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Apoc. 5.12). (31) Eu mesmo não o conhecia, mas, a fim de que ele fosse manifesto a Israel, vim, por isso, batizando com água” (Palavras do Batista). Na compreensão do Evangelista, a única missão do Batista com seu ministério de batismo era tornar Jesus manifesto a Israel. Mateus 3.11 confirma que o próprio Batista enfatizava essa missão: “... anunciar aquele 46 que, conforme as Escrituras, havia de vir”. Mais tarde, quando preso e na Solitária, o próprio Batista foi afligido por dúvidas. “És tu (mesmo) aquele que estava para vir, ou havemos de esperar outro?”(11.3). É interessante que o Evangelista João nada menciona dessas dúvidas posteriores do Batista, das quais sabemos pelos Evangelhos sinóticos. A sua visão por ocasião do batismo de Jesus lhe era suficiente. (32) E João testemunhou, dizendo: “Vi o Espírito descendo do céu como uma pomba e pousar sobre ele. (33) Eu não o conhecia; aquele, porém, que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, este é... Ainda no deserto, Deus havia passado uma ordem ao Batista: “Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, este é ...”Quando Jesus foi batizado, o Batista recebeu a visão: ele viu o Espírito “como uma pomba” descer e permanecer sobre Jesus. Realidades espirituais só podem ser transmitidas através de imagens acessíveis às nossas faculdades. Os Evangelistas usam a imagem de uma pomba suavemente pousando sobre Jesus. O Batista viu e depois testemunhou: “Vi o Espírito descendo do céu como uma pomba e pousar sobre ele...” Somente João menciona o “permanecer”, condicional. Na Antiga Aliança o Espírito “veio sobre os profetas” em determinadas ocasiões e depois se afastou de novo. (confira 1.Samuel 16.13 e 14 etc). Agora o Espírito permaneceu. “, ... este é o que batiza com o Espírito Santo. (34) Pois eu, de fato, vi e tenho testificado que ele é o Filho de Deus.” Daqui em diante o Evangelista falará muito “do Filho”. Até agora o Apóstolo desenvolveu, cuidadosamente, a imagem de Jesus, começando nos termos místicos como Logos, a Palavra, depois apresentou “o Cordeiro” anunciado pelo Profeta e agora passa das realidades atemporais (eternas) para o temporal na pessoa histórica de Jesus, Nazareno, verdadeiro “Filho de Deus”. O “Filho de Davi”, o esperado Messias dos judeus, não podia “levar o pecado do mundo”. Somente o “Filho de Deus” o podia. Este não mais seria limitado ao batismo com água (arrependimento), mas batizaria com o Espírito vivificador. Após a lavagem (arrependimento), o poder de Deus vivifica qualquer pessoa. Mais uma vez João pensou em termos universais. Ele deixou para trás a visão nacionalista dos Evangelhos sinóticos; ele viu o mundo. João viu a Jesus como o “Filho de Deus” que veio da eternidade, do “seio do Pai”. Com essa visão ele deixou para trás a tradição de Marcos, que considerou o batismo como a confirmação do seu chamado (Marcos 1.11). Ainda hoje encontramos as duas visões representadas no cristianismo. João escreveu sob a forte impressão de que “muitos enganadores têm saído pelo mundo afora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne., assim é o enganador e o anticristo” (2João 7). Nos seus muitos anos de vida, no exílio e na prisão, havia meditado de contínuo sobre o que viu e 47 viveu. Na sua mente amadureceu o que tinha testemunhado e hoje temos em nossas mãos a maior e mais bela obra jamais escrita a respeito da pessoa de Jesus: vista de cima, como pelo olhar de uma águia, quando ela voa em direção ao sol. Cap.1.35-42 (35) No dia seguinte, estava João outra vez na companhia de dois de seus discípulos (36) e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!” (37) Os dois discípulos, ouvindo-o dizer isto, seguiram Jesus. (38) E Jesus, voltando-se e vendo que O seguiam, disse-lhes: “Que buscais?” Disseram-lhe: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde assistes? (39) Respondeu-lhes: “Vinde e vede”. Foram, pois, e viram onde Jesus estava morando; e ficaram com ele aquele dia, sendo mais ou menos a hora décima. (40) Era André, o irmão de Simão Pedro, um dos dois que tinham ouvido o testemunho de João e seguido Jesus. (41) Ele achou primeiro o seu próprio irmão, Simão, a quem disse: “Achamos o Messias (que quer dizer Cristo), (42) e o levou a Jesus. Olhando Jesus para ele, disse: “Tu és Simão, o filho de João; tu serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro). (35) No dia seguinte, estava João outra vez na companhia de dois de seus discípulos. No mundo judaico-palestino da época, cada um dos muitos Mestres religiosos (Rabis) tinha em sua companhia jovens aprendizes, discípulos que o seguiam, aprendendo e assistindo-o. Às vezes, o número de “discípulos” era enorme - como no caso de Jesus que, à certa altura, decide escolher de dentro da multidão doze seguidores “para ficar com ele” (Marcos 3.14). O carisma do Batista também fez com que jovens das regiões mais distantes fossem atraídos; homens que, como o Batista, esperavam o libertador anunciado. Enquanto, no dia anterior, João aparentemente havia se dirigido a uma multidão, neste dia em particular estava com dois de seus jovens aprendizes. (36) ... e, vendo Jesus passar, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!” Enquanto conversavam, o Batista viu Jesus passar e imediatamente o apontou aos dois jovens. (37) Os dois discípulos, ouvindo-o dizer isto, seguiram Jesus. Esta sentença curta resume uma decisão imediata e um passo decisivo do qual os dois jovens se lembrariam pelo resto de suas vidas. O Batista havia dispensado os dois e eles correram atrás de Jesus, que estava indo embora. Cada Rabi tinha algo como a ”sede” de sua “escola”. Será que esse homem, intitulado por João Batista como “Cordeiro de Deus” ia para sua casa? Esta seria uma oportunidade única para ouvir mais dele pessoalmente. Curiosos e ansiosos ao mesmo tempo, os dois olharam para Jesus. Será que seriam aceitos a fim de ouvir mais sobre o significado do misterioso termo “Cordeiro de Deus”? Ainda não eram discípulos; somente seguiam a um desconhecido. Quando Jesus percebeu que estava sendo seguido por dois jovens, Ele parou. 48 (38) E Jesus, voltando-se e vendo que O seguiam, disse-lhes: “Que buscais?” Jesus fixou os dois e eles pararam. A pergunta que dirigiu aos dois jovens é interessante: “O que vocês estão buscando?” Ele não perguntou a quem estavam procurando, mas o que estavam querendo. Disseram-lhe: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde assistes? A única pergunta que ocorreu aos dois jovens foi a (parafraseada): “Mestre, onde é que o senhor mora? Queríamos ter com o senhor uma oportunidade para conversarmos sem sermos interrompidos. O assunto é importante. Foi nosso mestre João que nos indicou o senhor”. “O que vocês buscam?” é a primeira palavra que ouvimos da boca de Jesus no Evangelho de João. Em certo sentido, esta sempre será a primeira palavra dirigida a qualquer pessoa, ainda hoje. “O que você procura em Jesus?” Dependendo do que você procura em Jesus, você vai encontrar ou não. A resposta de Jesus foi a melhor que alguém poderia sonhar. (39) Respondeu-lhes: “Vinde e vede.” “Venham e vejam!” Jesus não começou examinando, querendo saber quem eram e qual que era o posicionamento religioso deles. Ele começou convidando. A partir do momento em que, atendendo ao convite, andavam atrás de Jesus, ainda que ansiosos, já o estavam seguindo. Ainda não como “discípulos”, mas já como bem-vindos. Sem convite não há como ser seguidor de ninguém. (Você já percebeu que o Evangelho todo é um convite, lançado a você, pessoalmente, aqui e agora?). Foram, pois, e viram onde Jesus estava morando; e ficaram com ele aquele dia, sendo mais ou menos a hora décima. Como é sutil a maneira como o Evangelista relata seu primeiro encontro com Jesus. Nunca mais o futuro Apóstolo esqueceu aquela hora com Jesus. Ele não relata a conversa que tiveram. Se o Evangelho tivesse sido inventado, neste momento teríamos a exposição e defesa da fé. Nada disso acontece. A conversa ficou gravada nos corações. Quando Jesus fala, Ele fala ao coração. Cada um de nós tem (se tem) uma história pessoal, distinta e inconfundível do primeiro encontro com Ele. João nunca esqueceu aquele momento crucial: Era mais ou menos a hora décima. (Você tem uma data gravada no seu coração, data ou hora em que Deus lhe falou, confidencialmente?). Quanto à hora relatada no Evangelho, os comentaristas nunca chegarão a um consenso. Pelo método judaico teria sido às quatro da tarde (a contagem começa às 6 horas da manhã). João, no entanto, escreve para gentios em terra grega, e muito provavelmente usaria o horário romano (que conta a partir das doze horas, assim como hoje o fazemos). É mais provável, portanto, que a “hora décima” do Evangelista indique dez horas da manhã. Assim faz sentido quando se diz que “ficaram com Ele aquele dia”. 49 Somente a esta altura João nos revela o nome de um dos dois jovens: (40) Era André, o irmão de Simão Pedro, um dos dois que tinham ouvido o testemunho de João e seguido Jesus. O autor tem como certo que seus leitores sabem quem é “Simão Pedro”, pois André está sendo identificado como irmão do conhecido grande Apóstolo Pedro. Quando João escreveu, Pedro já estava morto, mas a lembrança do grande líder ainda estava viva. O nome do segundo jovem ainda não é revelado. Os dois jovens ficaram tão impressionados com o que viram e ouviram que saíram (talvez ainda na mesma noite), cada um correndo à procura de seus próprios irmãos. (41) Ele (André) achou primeiro o seu próprio irmão, Simão, a quem disse: “Achamos o Messias (que quer dizer Cristo), (42) e o levou a Jesus. Entendemos pelo texto que os irmãos, tanto de André (Pedro), quanto do outro, estavam nas proximidades, juntos atraídos pelo movimento Batista desde a distante Galileia. Imaginemos como André, aproximando-se correndo do seu irmão exclamou, ainda sem fôlego: “Achamos o Messias!” A pessoa do Prometido por Deus ocupava a mente de todos os envolvidos no movimento batista; estavam esperando ansiosamente por “Aquele” anunciado pelo Batista. Imediatamente Pedro se predispôs a voltar com André, pois se essa notícia fosse consistente, todo o mais podia esperar. A compreensão do termo “Messias”, a esta altura, ainda é limitada. Por enquanto ele é aplicado ao “anunciado por João Batista”. Seu significado tornar-se-á mais profundo - o que levará tempo - até novamente ser pronunciada por Pedro em 6.67-69, mas dessa vez com maior respaldo. Mesmo assim, não persistiria perante a realidade da cruz. A nossa fé também levará tempo; ela precisa crescer, ser alimentada, provada, até que “cheguemos ao pleno conhecimento do filho de Deus,... à medida da estatura completa de Cristo” (Ef.3.14). Observe: André o levou a Jesus! A relativa intimidade com Jesus já permitia que André levasse outros a Jesus. Você não pode levar ninguém a Jesus se não teve primeiro, um encontro pessoal com Ele. E se teve: Você está levando outros a Jesus? Olhando Jesus para ele, disse: “Tu és Simão, o filho de João; ...” Se você prestar atenção à sequência do chamado vocacional dos primeiros seis discípulos e como este está se desenvolvendo, você notará que João enfatiza em cada encontro o prévio conhecimento de Jesus da pessoa e da personalidade daquele que foi “achado”. Saindo por um instante do relato, pensando na nossa própria visão de cristão, vemos que nenhum dos seguidores de Jesus se tornou discípulo por decisão própria. Todos eles foram convidados por Jesus. Se você se considera cristão, saiba que você somente o é, se sabe que, antes, 50 havia um chamado. Seu cristianismo ou seu “seguir a Cristo” é a resposta a um chamado. Hoje, na pregação e na leitura, a própria Palavra de Deus consiste em um chamado, e ser cristão corresponde à resposta pessoal e responsável. • Ninguém nasce cristão! Voltemos ao relato do Evangelista: Jesus sabe quem é o homem apresentado por André; Ele conhece até a sua descendência. Como? Aqui se dividem as interpretações. Comentaristas tradicionais veem em Jesus o “homem-Deus”, que milagrosamente sabe de tudo. Nada lhe fica oculto. Esse Jesus não é muito diferente de um mágico. Um Jesus assim não “se esvaziou a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens, e, sendo encontrado em forma humana, humilhouse a si mesmo e foi obediente até a cruz” (Fil. 2.7,8). Observe que os seis primeiros discípulos, que formarão o núcleo dos seguidores e posteriores Apóstolos, conforme João, são reconhecidos imediatamente por Jesus. Vemos nisso a mão de João, cujo objetivo era convencer o leitor, através de cada detalhe de seu relato, de Jesus ser o Cristo de Deus. Essa visão do Jesus-Verbo, do Cristo, no entanto, é a visão da época em que o Evangelista escreve. Mas ela não o era ainda no momento relatado. A palavra de Jesus: “Tu és Simão, filho de João” pode bem ser uma resposta à apresentação feita por André, pois Jesus, mirando atentamente este homem, acrescenta uma promessa: “... tu serás chamado Cefas” (que quer dizer Pedro). Jesus sabia o que faria deste homem. Hoje, Cristo sabe o que fará de cada um de nós, caso lhe dermos espaço. Se olharmos Jesus como um tipo de “mágico”, que tudo sabia de antemão, invalidamos o fato da encarnação. Em tudo Jesus foi feito homem, menos no pecado (Hebr.4.15). Jesus de Nazaré havia aceito as limitações humanas. O que o fez diferente de nós todos era Sua íntima e permanente comunhão com o Pai. Essa é que o Evangelista quer demonstrar com o conhecimento prévio de Jesus quanto aos jovens apresentados. Por enquanto, seus novos seguidores nada perceberam a respeito; eles simplesmente ficaram surpresos com o discernimento de Jesus. O velho Evangelista, com seu conhecimento de Jesus como “Filho de Deus”, interpreta o passado à luz do depois. Quando Jesus, olhando Simão, dirigiu-lhe a promessa: “tu serás chamado Pedro”, João reconheceu nela toda a história posterior do grande Apóstolo inclusa na promessa. Escrevendo seu Evangelho, João escutou e viu o que os homens àquela altura não podiam perceber. O verso 41 diz que “André encontrou primeiro...” A palavra no original grego não deixa claro se o “primeiro” deve ser seguido por um “segundo, depois” ou se quer dizer “antes” do seu colega encontrar seu próprio irmão, Tiago. A segunda opção parece válida, pois está implícito no 51 texto que o outro jovem, ainda sem nome, também partiu à procura de seu irmão, encontrou-o e o trouxe, pois mais adiante encontramos Tiago, irmão de João, na lista dos quatro primeiros seguidores. João até ali, discretamente, omitiu seu próprio nome. Ainda estamos na região sul onde João Batista pregava e batizava. Quatro homens, dois pares de irmãos, haviam sido apresentados a Jesus: André, Pedro e Tiago, João (ainda sem nome). Ao retornar para o norte, mais dois homens se juntarão ao grupo. Veremos mais adiante. Quem comparar a história da formação do grupo dos Doze nos Evangelhos sinóticos com o relato de João, verá que há concordância até aqui. Pelos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) somos informados que, após o contato inicial com Jesus, os dois pares de irmãos voltaram à sua ocupação profissional como pescadores. Ouvimos que o Batista fora preso por Herodes. Quando Jesus, após seu retorno ao norte (Galileia), andava junto ao “Mar da Galileia” possivelmente já com outros seguidores, Ele deparou-se com os dois pares de irmãos que, tempos atrás, havia encontrado, novamente trabalhando como pescadores e os convocou para segui-lo de vez. Imediatamente, os quatro deixaram sua profissão e seus parentes para trás e, dessa vez definitivamente, juntaram-se a Jesus (Mateus 4.18-22). Sabemos através da nossa própria história de vida, quantos encontros com Jesus, quantos chamados e correções são necessários até que o chamado definitivo nos consegue colocar na nossa carreira atrás do Mestre. O Evangelho de João, preocupado com sua mensagem principal, só dá umas rápidas pinceladas do período inicial do ministério de Jesus. João não menciona o afastamento temporal dos quatro, e quanto ao crescimento paulatino do grupo de seguidores, o Evangelista nada mais informa. As tradições sinóticas discordam entre si quanto à ordem de escolha e os nomes dos demais discípulos finalmente escolhidos. Fontes de tradição oral diferentes e caminhos diferentes até serem finalmente registradas são a razão. Os demais seis discípulos podem ter seguido Jesus dentre a multidão bem antes de serem escolhidos a dedo, momento em que o Evangelho os menciona. Para o nosso estudo e para a mensagem do Evangelho como um todo, isso é insignificante. João se interessou exclusivamente para o chamado dos primeiros seis seguidores, todos vindos da esfera de influência do Batista, pois a eles o Batista havia dado seu testemunho a respeito de Jesus. Quatro deles já conhecemos; outros dois virão na leitura que se segue. Cap.1.43-51 (43) No dia imediato, resolveu Jesus partir para a Galileia e encontrou a Filipe, a quem disse: “Segue-me”. (44) Ora, Filipe era de Betsaida, cidade de André e Pedro. (45) Filipe encontrou a Natanael e disse-lhe: “Achamos aquele de quem Moisés 52 escreveu na Lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno, filho de José. (46) Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré, pode sair alguma coisa boa?” Respondeu Filipe: “Vem e vê”. (47) Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!” (48) Perguntou-lhe Natanael: “Donde me conheces?” Respondeu-lhe Jesus: “Antes de Filipe te chamar, Eu te vi , quando estavas debaixo da figueira. (49) Então, exclamou Natanael: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! Ao que Jesus lhe respondeu: “Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás”. (51) E acrescentou: “Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”. Chegou o último dia de Jesus nas proximidades do Batista. Ele se preparou para partir, de volta à sua terra que dista 70 ou 80 quilômetros em direção norte - a Galileia. Havia encontrado muita gente de sua terra na companhia do Batista. (43) No dia imediato, resolveu Jesus partir para a Galileia e encontrou a Filipe, a quem disse: “Segue-me”. (44) Ora, Filipe era de Betsaida, cidade de André e Pedro. Entendemos que a ordem de Jesus foi prontamente obedecida por Filipe, mais ainda tratando-se de um conhecido, proveniente da mesma região. Betsaida era uma vila na margem norte do “Mar da Galileia”. (45) Filipe encontrou a Natanael e disse-lhe: “Achamos aquele de quem Moisés escreveu na Lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno, filho de José. (Obs: Natanael, do Evangelho de João, corresponde ao Bartolomeu nos Evangelhos sinóticos). Natanael era de Caná, a vinte e cinco quilômetros ao oeste de Cafarnaum, na região montanhosa da Galileia. Ele também veio pedir o batismo por João Batista e estava ansioso pelo aparecimento daquele que “batizaria com o Espírito” (1.33). Observe como Filipe, no seu grande entusiasmo, transmitiu a Boa Nova: A sentença começa com o “encontramos” e termina com “Nazareno, filho de José”. Os dois conceitos eram totalmente contraditórios. “Aquele de quem Moisés e os profetas escreveram”... Natanael entendeu: As promessas se cumpriram! Grandioso! Mas quando ele ouviu o final da mensagem, “... filho de José, de Nazaré” – uma vila absolutamente insignificante que nem constava na Lei e nos profetas - (46) Perguntou-lhe Natanael: “De Nazaré, pode sair alguma coisa boa?” Natanael conhecia bem as Escrituras. Da Galileia, e menos ainda de Nazaré, não viria nenhum Messias. A promessa valia para a pequena “Belém” na Judeia. E quem era o tal de José, pai desse tal Jesus? Observe que o Evangelista João nada sabe ou nada menciona de um “nascimento virginal” de Jesus. Muito naturalmente Jesus é apresentado como “Filho de José”. Nem Paulo sabe de um nascimento virginal, quando diz : “... nascido de mulher, nascido debaixo da Lei...” (Gal.4.4). O “Messias” dos judeus era esperado da linhagem de Judá, descendente de Davi, portanto humano. Quando João escreveu seu Evangelho, ainda não havia nenhuma doutrina a respeito, muito embora o texto de Mateus 1.18-25 já devesse ser conhecido. 53 Filipe ofereceu a Natanael a melhor resposta possível nesta situação: Respondeu Filipe: “Vem e vê”. Realidades não podem ser passadas a outros através de argumentação. É preciso verificar para chegar à certeza. Quando Natanael, sendo levado por Filipe, aproximou-se de Jesus, este o observou atentamente. (47) Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!” Poderíamos argumentar que o uso de artimanhas para adquirir vantagens pessoais caracterizou não somente o velho Jacó (Gen.27.35), mas também seus descendentes (inclusive a nós). Um judeu realmente honesto, transparente, sem duplicidade, tinha se tornado uma raríssima exceção. A imediata disposição de Natanael de ir ver “a coisa vinda de Nazaré” testemunhou a seu favor. Um homem que tivesse menos integridade poderia ter, gentilmente, agradecido a Jesus pela forma elogiosa com que fora cumprimentado. Com grande sinceridade, (48) Perguntou-lhe Natanael: “Donde me conheces?” Será que Filipe havia suprido Jesus com informações a seu respeito? Respondeu-lhe Jesus: “Antes de Filipe te chamar, Eu te vi, quando estavas debaixo da figueira”. “Estar debaixo da figueira” era sinônimo de “estudar a Lei”. O Evangelista retorna aqui ao mesmo estilo literário como o verificado na saudação de Pedro, isto é, ele enfatiza o imediato conhecimento que Jesus tinha das pessoas que o cercavam. Foi este o caso, pois Natanael, sabendo que fora observado enquanto estudava, acabou sendo desarmado. Sua desconfiança inicial havia se transformado em um grande deslumbramento. (49) Então, exclamou Natanael: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!... É difícil não reconhecer a mão do autor quando ao escrever seu Evangelho anos mais tarde, ele acrescenta o título “Filho de Deus” à resposta entusiasmada de Natanael. Sim, Natanael reconheceu nesse homem de Nazaré o “Mestre” e “Rei de Israel”. João reforçou a exclamação de Natanael com o título “Filho de Deus” que acabara de apresentar no seu Evangelho (1.34). Para que os discípulos chegassem a essa conclusão, no entanto, ainda haveriam de passar por muitas experiências, provas e derrotas; a última delas foi quando fugiram em face da prisão de Jesus. Somente após a ressurreição de Jesus é que a compreensão deles chegará a tal ponto. João, o Evangelista, na sua paixão pelo seu Senhor, olha o passado com os olhos da fé madura e assim ele escreve. Ele não está relatando fatos... ele está pregando! Ao que Jesus lhe respondeu: “Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás”. A base para a fé de Natanael era estreita demais. Uma única experiência pessoal não 54 sustenta uma vida de fé. Amorosamente, Jesus corrigiu e ampliou a visão inicial de Natanael. (51) E acrescentou: “Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”. Vinte e cinco vezes o Evangelista usará no seu Evangelho a expressão “em verdade, em verdade”. Esse termo duplo corresponde ao “Amém, amém” do Antigo Testamento, onde é usado para confirmar uma maldição ou uma bênção (confira Num.5.22;, aliás Neemias 8.6). Hoje diríamos: “Certamente...”. O que Jesus está prometendo aos seus primeiros discípulos? O mesmo que Jacó viu no seu sonho (Gen. 28.10-13.7) tornar-se-á realidade para eles. Eles serão testemunhas de um céu aberto, de uma comunhão perfeita e constante do Pai com o “Filho do Homem”. O termo “Filho do Homem” em geral é muito controvertido. Aqui ele está usado de acordo com o pensamento joanino: Através desse Filho do Homen, Deus mesmo entrará em comunhão permanente com os homens. Com essas palavras João encerra a narração do início do movimento. Os primeiros seis discípulos, como que atraídos por uma força maior, haviam se juntado ao seu Mestre. Todos os títulos de honra que o movimento messiânico conhecia e criava foram aplicados a Jesus: O “Verbo preexistente”; “Cordeiro de Deus”; Habitação do Espírito; “O que batiza com o Espírito”; “Filho de Deus”; ”Filho do Homem” (Dan.7); “Rei de Israel”. Sob este último título, mais tarde, Ele seria condenado à morte (João 19.19). Cap.2.1-11 (2.1) Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, achando-se ali a mãe de Jesus. (2) Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. (3) Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. (4) Mas Jesus lhe disse: “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora”. (5) Então, ela falou aos serventes: “Fazei tudo que ele lhes disser”. (6) Estavam ali seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações, e cada uma levava duas ou três metretas. (7) Jesus lhes disse: “Enchei de água as talhas”. E eles as encheram totalmente. (8) Então, lhes determinou: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”. Eles o fizeram. (9) Tendo o mestre provado a água transformada em vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a água), chamou o noivo (10) e lhe disse: “todos costumam por primeiro o bom vinho e, quando já beberam fartamente, servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho até agora”. (11) Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. O Evangelho de João continua sendo um mistério na sua beleza e sua profundidade espiritual. Como já mostramos em outro lugar, enquanto o lemos, às vezes não temos como saber quem é que está 55 falando. O velho João, na medida em que meditava, identificou-se a tal ponto com seu Senhor que, sem que o leitor perceba, acrescenta suas próprias palavras às de Jesus (Exemplo: 3.5-21). João é Oriental; ele prefere uma linguagem de imagens e responde a perguntas fundamentais com uma estória onde a coerência dos fatos externos fica sujeita à mensagem em si. Você já percebeu que João não nos transmitiu nenhuma parábola do Senhor? Parábolas foram o principal meio que Jesus usou para transmitir verdades. Por que João não as usou? O próprio estilo do seu Evangelho às vezes se aproxima ao da parábola e, novamente, fica difícil descobrir em que altura o texto passa da narração de fatos reais ao mundo irreal e figurativo de uma parábola. João viu além do horizonte; ele leu nas entrelinhas, e assim é que ele escreveu. Sua obra se assemelha a uma obre de arte, a um bordado extremamente belo, e com isso encontramos várias parábolas trabalhadas no próprio texto. Outra característica desse Evangelho é sua variedade de fontes. Por razões desconhecidas e sobre as quais só podemos especular, o Evangelista às vezes inseriu na sua matéria tradições anteriores. O leitor atento às vezes percebe que não é o estilo do autor. Nesses textos intercalados João é o redator. O Evangelista usou uma tradição anterior e a adaptou ao seu fim, introduzindo-a na melhor maneira possível no fluxo da narração. Como dissemos, tudo que tornaria manifesta a “glória do SENHOR revelada em Jesus” interessa ao velho discípulo. Ele quer que o leitor também saiba e creia no mistério que ele viu e ferozmente defendeu perante as várias correntes gnósticas de seu tempo. No texto de hoje estamos, muito provavelmente, diante de uma tradição que não veio da mão do Apóstolo, mas era redigida e adaptada por ele, assemelhando-se assim, em parte, a uma parábola. (2.1) Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, achando-se ali a mãe de Jesus. (2) Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. As especulações sobre o “três dias depois de quê”? não tem relevância. O verso deveria ser traduzido corretamente “no terceiro dia”. Cada judeu sabe que casamentos judaicos se celebram “no terceiro dia” (nossa terça-feira), no único dia do relato da criação (Gênesis 1,10 e 1,12) no qual Deus duas vezes disse “E viu Deus que isso era bom”. Os Rabis sábios veem nisso uma benção dupla, uma para a noiva e outra para o noivo (Fonte: Pinchas Lapide). Como o Evangelho de João foi escrito para a comunidade gentílica que não conhecia a cultura judaica, o “terceiro dia” transformou-se em “três dias depois”. 56 Jesus já se encontrara ao norte, na Galileia, com alguns de seus seguidores. Nada, também, nos é dito quanto à razão da presença de Maria na festa. Jesus também foi convidado como filho mais velho, substituindo o pai, que aparentemente não existia mais. A hospitalidade oriental tem como certo que “amigos do amigo”, neste caso os discípulos, naturalmente estivessem incluídos no convite. O que primeiro chama a atenção é a ignorância do fato da ruptura de Jesus com sua família biológica, atestada nos Evangelhos sinóticos (Marcos 3.31-35). Nenhum outro Evangelho sabe de uma convivência de Jesus com sua família após o encontro com João Batista. Não sabemos, portanto, onde historicamente encaixarmos o relatório. Como concluímos através do verso cinco, a mãe de Jesus parecia ter alguma posição hierárquica na casa dos noivos: ela dava ordens aos empregados. (3) Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. Festas de casamento judaicas são celebradas na casa do noivo e perduram, às vezes, até sete dias, durante os quais amigos e parentes estão chegando e saindo. (Uma dica: Você quer ter uma ideia de um casamento judaico? Assista em DVD o filme “O violonista no telhado”). Os comentaristas mais renomados discordam quanto à razão do recado dado a Jesus. Muitos querem nos fazer crer que Maria, ansiosa para ver um milagre realizado pelo seu filho, aproveitou a oportunidade. A premissa do conhecimento da amplitude do chamado de seu filho não tem base bíblica; ela é fruto da tradição posterior. Outros, mais sóbrios, veem como absolutamente normal sua observação. Jesus, como filho mais velho, poderia talvez ajudar na situação constrangedora? Falta de vinho, no casamento, seria uma humilhação para o novo casal. É o pedido de ajuda de uma mãe preocupada que, de alguma forma, fez parte responsável da comunidade festiva. (4) Mas Jesus lhe disse: “Mulher, que tenho eu contigo?... A concluir pela resposta, Maria errou. A expressão “mulher”, nesse contexto, não revela falta de respeito, mas sim de uma ordem, que pede respeito. Jesus rejeita com uma expressão clara a intromissão de sua mãe. Expressões semelhantes são usadas nos textos da Antiga Aliança sempre que houve intromissão, como em Juízes 11.12; 1 Rei 17.18 ou 2 Crônicas 35.21. Confira também Marcos 1.24. Com o uso da palavra “mulher” em lugar de “mãe”, Jesus deixou claro, de uma vez por todas, que os laços biológicos não tinham valia no seu ministério. Por que, então, Ele estava junto com Maria na festa? Não sabemos. 57 Ainda não é chegada a minha hora”. A essa altura, a linguagem de João volta-se para o simbólico. Em todo seu Evangelho a “minha hora” é tida como sinônimo da hora da morte, da cruz, da glorificação do Pai no Filho (compare: João 7.30/ 8.20/ 12.23 e 27/13.1 / 17.1). “Essa hora” Jesus entendeu no seu íntimo como “sua hora”. Ou será que uma dádiva de vinho teria alguma ligação com a Sua morte? Deixaremos a resposta para depois. O texto deixa claro que Maria nada disso considerou. Ela interpretou a resposta de Jesus como um simples “ainda não”. Disso dá prova sua ordem aos empregados da casa: (5) Então, ela falou aos serventes: “Fazei tudo que ele lhes disser”. Uma das características no Evangelho de João são as repetidas interpretações falhas das palavras de Jesus. Enquanto Jesus fala em um nível, os discípulos ou seus interlocutores, não entendendo, respondem em um nível humano, inferior, inadequado; provas da falta de compreensão deles. (6) Estavam ali seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações, e cada uma levava duas ou três metretas. Repentinamente o autor introduz seis enormes talhas de pedra. Uma metreta corresponde a 39 litros. Seis delas correspondem a um volume total de aproximadamente 600 litros. Em virtude do conhecimento da Santidade de Deus e da própria necessidade de purificação, o judeu conheceu muitos ritos de lavagem ritual (Mat.15.1-20 ou Marcos 7.1-4). A purificação das mãos, por exemplo, não acontecia através de lavagem. Deixava-se correr uma pequena quantidade de água pelas mãos, a partir do pulso, conforme ritual cuidadosamente estabelecido. Não se tratava de higiene, mas de um ritual. Até hoje não existe água corrente na região de Caná. Toda a água vinha do poço e era limitada. Uma festa de casamento de vários dias em uma região quente, e na qual havia inclusive os obrigatórios banhos rituais dos noivos, exigia muita água. Como parece, as talhas mencionadas já estavam vazias, quando o vinho ameaçou faltar. Nenhum comentarista encontrou até agora uma explicação razoável para o número de talhas. O número de seis não faz sentido, nem alegoricamente. Se imaginarmos o tamanho das vasilhas, peças raríssimas, caras, que casa nobre seria essa? (7) Jesus lhes disse: “Enchei de água as talhas”. E eles as encheram totalmente. Encher seis talhas desse tamanho com água trazida do poço, escasso, leva tempo. Ninguém parece ter percebido. (8) Então, lhes determinou: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”. Eles o fizeram. (9) Tendo o mestre provado a água transformada em vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a água), chamou o noivo... 58 Não há descrição do milagre. Esse simplesmente é presumido. Ninguém percebeu transformação alguma. Quando o mestre-sala (geralmente um escravo responsável pela ordem na sala) provou a água (que havia se transformado em vinho), ele não demonstrou conhecimento do perigo de fim de estoque; ele o provou pensando em se tratar de um segundo lote que havia sido aberto. (10) e lhe disse: “todos costumam por primeiro o bom vinho e, quando já beberam fartamente, servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho até agora”. Acaba a narração. A crítica do mestre-sala, contendo um elogio, serve para provar que houve transformação. Nem o mestre-sala, nem os convidados e muito menos os noivos percebem o milagre. Saboreiam, sem saber, o precioso líquido. Nada ouvimos da mãe de Jesus, antes tão preocupada; nada de Jesus. Ele e sua família desaparecem. E novamente percebemos que estamos envoltos no irreal, misterioso, contraditório. O mais estranho é o presente, a quantidade de vinho fino. Como Jesus (recentemente vindo do encontro com o Batista), que pregava abstinência e ascetismo (Lucas 1.15), presenteia uma festa de casamento com tal quantidade de vinho? Isso era responsável? Alguém, com muita razão disse que, se o tal casamento acontecesse no Brasil, chamaríamos Jesus para transformar o vinho em água. Crente não bebe (na presença de outros crentes)! Os pastores, ao querer justificar esse milagre palavra por palavra, são obrigados a torcer a Palavra. Lemos os seguintes comentários: Jesus queria presentear o casal com uma reserva grande de vinho, ou: Somente as camadas superiores nas talhas haviam se transformado em vinho, ou: O mestre-sala simplesmente se enganou e o vinho em seguida acabou, e outros consideram que o autor da história poderia ter exagerado um pouco para aumentar o tamanho do milagre. Tudo isso não convence, menos ainda quando se alega expor a “Palavra de Deus” (2 Tim.3.16). (11) Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. Para o Apóstolo parece não existir escrúpulos. Ele menciona que os seguidores de Jesus creram porque viam nesse milagre um sinal de Sua glória. Logo em seguida (isso é típico de João), ele relativiza a natureza dessa fé que nasce de milagres (2.23-25). Se fechássemos aqui o estudo do milagre do vinho, ficaríamos insatisfeitos. Temos que admitir que, lendo o texto da maneira como o fizemos, ele não nos abriu os olhos. Considerando-o como um todo, fica a impressão de uma irrealidade nebulosa. Ao mesmo tempo, ele nos fornece dados exatos, detalhes que não sabemos encaixar. Ficam perguntas sobre 59 perguntas, sem respostas. O maior inconveniente em tudo isso é a motivação do milagre, que não aparece. Enquanto nos outros muitos milagres relatados nos quatro Evangelhos, a ação de Jesus nasce quase exclusivamente da misericórdia Divina perante a miséria ou o sofrimento humano, aqui não podemos, mesmo se formos apreciadores de um bom vinho, descobrir um sentido real, benéfico. Em certa altura da narração, a história novamente parece ter entrado no âmbito de uma parábola. Mas qual seria seu sentido? O enigma no Evangelho de João ainda continua. Cap.2.11-12 (11) Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. (12) Depois disto, desceu para Cafarnaum, ele, e sua mãe, e seus irmãos, e seus discípulos, e ficaram ali não muitos dias. “Não há nenhuma explicação natural para o que aconteceu”. Esse comentário não satisfaz. Uma “pérola” entre os comentários encontrados é a advertência feita para que alguém, “falhando inteiramente na compreensão da verdade gloriosa ensinada, ouse usar este texto para advogar indulgência no uso de bebidas alcoólicas. Essa pessoa deveria ler e guardar no coração as passagens de 1 Coríntios 8.9;9.12 e 10.23-24,32-33...” Para justificar bebedeira com esse milagre, haverá, pensamos, necessidade de uma medida de burrice fora do comum. A esse leitor, o Evangelho de João certamente jamais dirá nada. A preocupação com a bebedeira, recorrente nas cartas de Paulo, pertence ao mundo grego; não é desse vinho que João nos fala na história do casamento em Caná. João escreveu seu Evangelho na Ásia Menor, cercado da cultura grega que conheceu muitas lendas de divindades. Há comentaristas que chamam a atenção à lenda do culto a Dionísio. Ele era o deus do vinho, transformava água em vinho e essa “epifania” o credenciava como deus. João certamente conheceu essa crença. Será que o Evangelista usou uma antiga tradição síria - porque sabia que Jesus não desprezava a alegria para legitimá-lo como “Filho de Deus”? Tudo que sabemos de João fala contra essa possibilidade. Jesus nunca seria colocado em pé de igualdade às “divindades” gregas. Constatamos que tampouco desse vinho João nos fala. Onde, então, está a “verdade gloriosa ensinada” nesse texto? passo, vamos considerá-la: Passo a 60 (11) Com este, deu Jesus princípio a seus sinais em Caná da Galileia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele. O Apóstolo chamou o fato ocorrido de “um sinal”. Um sinal aponta para um fato, uma verdade oculta a ser considerada. Em 20.30-31, o Apóstolo definiu a razão dos sinais: “... muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro; estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome”. (12) Depois disto, desceu para Cafarnaum, ele, e sua mãe, e seus irmãos, e seus discípulos, e ficaram ali não muitos dias. A história do casamento em Caná é a única tradição que temos recebido do período em que a ruptura entre Jesus e a sua família biológica ainda não havia acontecido (quer dizer antes do início de seu ministério de pregação pública). Os três Evangelhos sinóticos vão diretamente do batismo de Jesus ao seu ministério. Fora do relato da festa em Caná nada sabemos do período entre a volta de Jesus à Galileia e o início de sua atividade de pregação. Jesus iniciou sua atividade quando ouviu que a voz do Batista, por ordem de Herodes, havia sido silenciada (Marcos 1.14). Nesse lapso de tempo entre o batismo e a prisão do Batista, devemos procurar a festa de casamento em Caná como possível fato histórico. Não podemos esquecer que os seis primeiros discípulos de Jesus vieram de entre os seguidores de João, asceta, abstinente radical. Dificilmente, àquela altura, eles poderiam ver na quantidade de vinho um sinal da glória de Jesus, uma vez que já haviam aprendido com o Batista a desprezar a bebida forte. Tudo isso nos leva a crer que se trata de uma tradição muito antiga, do relato de uma festa da qual Jesus participou, que foi adaptada por João e transformada em uma parábola. João não diz que os seus discípulos viram a Sua Glória. Ele diz objetivamente que Jesus revelou Sua Glória. Dos discípulos ele diz que “creram nele”. Ainda era uma fé em estágio inicial e imaturo (2.23-25). Segundo a tradição, Maria, mãe de Jesus, viveu seus últimos dias em Éfeso, junto com o Apóstolo João. Ali se venera ainda hoje uma pequena casa na encosta de um morro como “casa de Maria” (simbólica somente e que o atual papa bem como o anterior visitaram por ocasião de suas visitas à Turquia). A possibilidade de uma tradição posterior, cuja fonte é creditada à própria mãe de Jesus, embora improvável, não pode ser excluída de vez. A historicidade da permanência de Maria em Êfeso é duvidosa. Os dois ou três primeiros séculos da igreja primitiva conheciam um túmulo de Maria em Jerusalém (RIESNER, Essener u.Urgemeinde in Jerusalém, Brunnen,1998). A primeira chave para o entendimento do texto está ligada de alguma forma com a palavra misteriosa de Jesus: “minha hora” ainda não chegou. Aparentemente existe alguma ligação da morte de Jesus com a doação abundante de vinho. Alguns teólogos procuravam ver no vinho o 61 anúncio do vinho da eucaristia, o que não convence. O entendimento de João quanto aos sacramentos não o permite. Outro detalhe que chama a nossa atenção são as vasilhas para purificação, vazias, que se transformaram em fonte abundante de vinho. A água, antes, servia para rituais de purificação, meros esforços humanos simbólicos, que tinham um sentido de poder agradar a Deus. O Filho de Deus anuncia, através de um “sinal”, que acabou a escravidão do medo. Não mais há necessidade de “rituais de purificação”. No seu lugar há fonte de alegria e liberdade no sentido mais amplo. As vasilhas estavam vazias. Com Jesus há abundância de perdão. O ritual simbólico e ineficaz, celebrado para ser contemplado com o perdão, foi abolido e substituído pela realidade do perdão, o que aconteceu quando a “Sua hora” chegou. João viu a festa em Caná e todo seu passado com Jesus com os olhos da fé, adquiridos por toda uma longa vida. Ele viu o que nem os outros, nem ele, naquele momento perceberam. O seu Evangelho tem que ser lido com os mesmos olhos com que o Evangelho foi escrito. A abundância do vinho... O vinho como sinônimo de alegria; as bodas como símbolo da união entre Deus e os homens; a alegria nupcial que marca uma festa de casamento... João viu seu Evangelho como “o Evangelho das bodas” (Nigg), da alegria que marca essa festa da qual canta Novalis no seu hino: “... se eles tivessem provado uma única vez, teriam deixado tudo para trás”. Quanto mais avançamos no Evangelho de João, melhor percebemos a estrutura que o Apóstolo tem dado à sua obra. Vários comentaristas entendem o milagre de Caná como prelúdio ao capítulo três, logo adiante. Naquele capítulo, o Evangelista abordará a transformação que o Espírito Santo opera no homem, levando-o ao “novo nascimento”. A transformação da água em vinho de melhor qualidade, em abundância, já nos fala daquilo que acontece quando Jesus é convidado (2.2: ... “Jesus também foi convidado”). Os primeiros relatos de João assim fundamentam todo seu Evangelho: abundância de perdão e transformação na presença de Jesus. As linhas de divisão entre relato histórico e parábola são indistintas; as duas categorias se confundem. Graças a isso podemos ver “a Glória de Jesus” revelada de várias maneiras. Com Sua vinda, Sua presença, nos chegou o anúncio do fim do ritualismo como ordenança perante Deus e vieram a abundância da Graça e a transformação. O momento em que se cumpriu a “minha hora” nos trouxe alegria: “... vós ficareis triste, mas a vossa tristeza se converterá em alegria; ... o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar... pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa!” (confira cap. 16.20-24). O próprio Senhor não comparou nas Suas parábolas dos Evangelhos sinóticos a “Sua Hora” e Sua “Glorificação” com uma festa de bodas? 62 Cap.2.13-22 (13) Estando próxima a Páscoa dos judeus, subiu Jesus para Jerusalém. (14) E encontrou no Templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas e também os cambistas assentados; (15) tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do Templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas (16) e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai daqui estas coisas; não façais da casa do meu Pai casa de negócio”. (17) Lembraram-se os seus discípulos de que está escrito: ‘O zelo da tua casa me consumirá’. (18) Perguntaram-lhe, pois, os judeus: “Que sinal nos mostras, para fazeres estas coisas?” (19) Jesus lhes respondeu: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”. (20) Replicaram os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este Santuário, e tu, em três dias, o levantarás?” (21) Ele, porém, se referia ao santuário de seu corpo. (22) Quando, pois, Jesus ressuscitou dentro os mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto, e creram na Escritura e na Palavra de Jesus A ação de Jesus no Templo, melhor, no átrio do Templo, consta em todos os Evangelhos. Mateus, Marcos e Lucas registram a assim chamada “purificação” do Templo como tendo ocorrido na semana da crucificação de Jesus. Alguns comentaristas sugerem que Jesus “limpou” o Templo duas vezes: uma vez no início de seu ministério (relatada em João) e, uma segunda vez, no final de seu ministério (registrada nos Evangelhos sinóticos). Eles o fazem porque temem suscitar dúvidas sobre a fidelidade das Escrituras. É evidente que os relatos dos sinóticos e de João se referem ao mesmo acontecimento. Há, porém, diferenças marcantes de “avaliação” da ação do Senhor. Para que as entendamos, temos que dar uma olhada no relato de Marcos. Ele representa a visão dos sinóticos. Ali, a ira de Jesus se volta contra abusos cometidos nos negócios necessários para o funcionamento do Templo. Seu brado: “Não está escrito: A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos? Mas vocês fizeram dela um covil de ladrões!”, revela zelo pelo Santuário. Jesus se referiu aos profetas Isaías (56.7) e Jeremias (7.11). Ao derrubar as mesas dos cambistas, expulsar comerciantes, não permitindo que se manchasse a santidade do Templo, Jesus agiu com os melhores motivos em favor dos interesses de seu Pai, cuja casa era o Templo (Lucas 2.49). A intervenção de Jesus da qual o Evangelista João nos fala, tem um enfoque diferente. Nela não se trata de expulsar comerciantes desonestos do Templo. A Bíblia de Estudo de Genebra recomenda considerar essas purificações (sinóticos e joanina) como incidentes diferentes. Com isso ela sugere que devamos pensar em duas ações distintas. Veja, Jesus não agiu ora com uma motivação e mais tarde com outra, totalmente contrária. É muito mais provável que os Evangelistas faziam avaliações diferentes e assim relataram o incidente com significados diferentes, até contraditórios. Só assim entenderemos a mensagem de João, novamente muito mais ousada do que a dos outros Evangelistas. Vamos passo a passo: 63 (13) Estando próxima a Páscoa dos judeus, subiu Jesus para Jerusalém. Por que razão João coloca a subida para Jerusalém e a intervenção de Jesus no “comércio sagrado” como introdução ao seu ministério público, quando na realidade aconteceu no seu final? O registro feito por João da purificação do Templo imediatamente depois do milagre em Caná oferece uma importante chave para todo o ministério de Jesus. Nos dois eventos é assinalada a substituição da antiga ordem (água para purificação cerimonial) e Templo de Herodes pela nova ordem (vinho de salvação, Is.25.6-9 e o Cordeiro ressurreto como o Novo Templo, Apoc.21.22), conforme citação da “Bíblia de Estudo de Genebra”. Para o entendimento dos capítulos seguintes, principalmente caps.3 e 4, haverá necessidade de considerar que, segundo João, com a vinda do Senhor, o Serviço sagrado no Templo de Herodes havia perdido seu significado. Esta será a chave para o entendimento do pensamento joanino dos próximos capítulos. João não escreveu como historiador, ele está pregando o Evangelho. (14) E encontrou no Templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas e também os cambistas assentados; João está dando detalhes que não temos nos sinóticos; ele especifica os tipos de animais comercializados. Este comércio fazia parte do serviço sagrado, pois aos peregrinos não era permitido trazer seu animal consigo; tiveram que comprá-lo no átrio do Templo. Há uma informação antiga de que havia dois grandes ciprestes no monte e sob um deles havia quatro tendas para a venda de animais para os sacrifícios. Havia fedor, sujeira, balido e mugido dos animais destinados ao sacrifício. Sob o outro cipreste havia pombais. As pombas eram especialmente procuradas, sendo esta a oferta sacrificial dos proletários que não podiam se permitir ofertas mais caras (Levítico 5.7). Havia também, sem dúvida, tendas para a venda de incenso, vinho, óleo e farinha pura – artigos estes concomitantes aos sacrifícios (Levítico 2.5-7). Os cambistas convertiam as moedas trazidas pelos peregrinos em siclos (ou meio-siclos), o único dinheiro que circulava como doação prescrita no Templo. O “dinheiro judaico” era necessário para a realização dos vários ritos de purificação. Todo este aparelho barulhento e mal cheiroso fazia parte fundamental para o serviço religioso no interior do Templo. Sem os ritos e cerimoniais de sacrifício, todo o serviço religioso perderia sua razão de ser. (15) tendo feito um azorrague de cordas,... O ingresso nas dependências do Templo era proibido até mesmo “com bengalas, sapatos, maletas ou com pés empoeirados”. Como era proibido entrar com bengala ou vara, Jesus resolveu improvisar, “in loco”, um chicote (azorrague) de cordas e expulsou todos do Templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas (16) e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai daqui estas coisas; não façais 64 da casa do meu Pai casa de negócio”. “Tirem daqui estas coisas! Não façam da casa do meu Pai casa de negócio!” – Tirar daqui “todas estas coisas” não era nada menos que acabar com o serviço sacrifical. O que seria do Templo sem os sacrifícios contínuos? Estes, permanentemente, aplacavam a ira de Deus! Quinhentos anos atrás, o profeta Zacarias já previu o fim do culto sangrento (14.21,22). E ali estava ele, em pleno funcionamento! Enquanto nos sinóticos a intervenção de Jesus parece ser resultado da constatação de irregularidade comercial, em João é diferente. Jesus não atacou condições objetivas como transações ilegais; Ele dispensou o comércio como um todo. A casa de Seu Pai é casa de oração e não lugar de comércio! Ao opor-se ao espírito de negócio, mesclado ao serviço sagrado, Ele atacou o culto como um todo. Se o comercio era útil, melhor, necessário para a manutenção do culto sacerdotal, era insuportável para Jesus juntar negócio com adoração. As experiências das religiões, e também da religião cristã, mostram como negócio e religião na prática se mistura, tornando-se uma só coisa. O pior é que nem mais percebemos que cometemos pecado grave. Os discípulos (somente aqui ouvimos que Jesus estava acompanhado) observam a intervenção enérgica de seu Mestre com sentimentos mistos, que vão de admiração ao medo. (17) Lembraram-se os seus discípulos de que está escrito: ‘O zelo da tua casa me consumirá’. Angustiados, lembravam do salmo 69 que projetava opressão e dificuldades extremas ao que, “consumido pelo zelo, entrava na casa do Senhor”. Que final teria essa atitude extrema dele? Para piorar a situação, apareceram as autoridades responsáveis pela ordem no “átrio dos gentios”, a “Polícia do Templo” – única tropa permitida aos judeus – ou então, sacerdotes, pedindo que Jesus justificasse sua ação drástica (que deveria ter causado um tumulto enorme no já confuso “comércio sagrado”). Lembramos que as autoridades religiosas interpelaram da mesma maneira a João Batista quanto à autoridade para sua atuação (João 1.19). (18) Perguntaram-lhe, pois, os judeus: “Que sinal nos mostras, para fazeres estas coisas?” Ao contrário dos sinóticos - que situam esse pedido de sinal para prova de autoridade nas discussões com os religiosos na Galileia - , João lembra que fora ali no Templo que foi lançado esse desafio. Pedir um sinal é uma atitude típica judaica (cf. 1 Cor.1.22). Quem pede sinais é um “racionalista supraracional”; ele quer ver, não crer. Se queremos levar pessoas a Cristo apresentando “provas”, estaremos desafiando-as a encontrar argumentos contra. Lembremos que a reação dos religiosos às expulsões de demônios por Jesus não os convenceram de nada; somente os levaram à outra conclusão: “ele expele os demônios pelo maioral deles”. (19) Jesus lhes respondeu: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”. A resposta de Jesus, nesta forma, é chamada de “mashal”, isto é, um dito paradoxal, um comentário velado, um enigma. Ela, propositalmente, permite duplas interpretações. Jesus, como parece, 65 condiciona seu sinal a uma atitude por parte deles e considerada como impossível: destruir este Templo, orgulho dos religiosos, sua razão de ser. Como não puderam entender o significado do “mashal”, eles responderam questionando-o. (20) Replicaram os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este Santuário, e tu, em três dias, o levantarás?” As palavras de Jesus, quando falou em “destruir” e em “reconstruir”, permitem interpretações diferentes. Elas servem para indicar destruição física ou restituição, ressurreição. O dito de Jesus ficou marcado nas mentes tanto dos discípulos como dos sacerdotes, pois mais tarde, no julgamento, ele será levantado na acusação contra Jesus. (21) Ele, porém, se referia ao santuário de seu corpo. Este templo, ao qual Jesus se referiu, “os judeus” destruiriam e com isso anunciariam, sem o saber, o final do culto no Templo de Herodes. Você observou como Jesus se expressou quando falou em “reconstruir”? Ele não disse que Deus o ressuscitaria, mas que “Eu o reconstruirei”. A visão de João a respeito da autoridade do Filho é absoluta. Veja as palavras de Jesus em João 10.17,18. “... dou a minha vida para tornar a tomá-la... ninguém tira a minha vida de mim, eu mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la. ..” Enquanto Paulo e o Novo Testamento em geral nos trazem a visão de Deus ressuscitando a Jesus (“...Deus, que também ressuscitou o Senhor, nos ressuscitará a nós pelo Seu poder”, 1.Cor.6.14), João vê tanto no Pai como no Filho a mesma Vontade e o mesmo Poder. “O Pai e eu somos um” (João 10.30). A Bíblia deixa as duas interpretações válidas. São, como sempre, resultados da limitação humana de compreensão racional, não de contradições bíblicas! (22) Quando, pois, Jesus ressuscitou dentro os mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto, e creram na Escritura e na Palavra de Jesus. Só João entendeu com toda a clareza que, com Jesus, o culto sangrento do Templo de fato chegou ao seu fim. Os sacrifícios haviam se tornados meros rituais; não mais correspondiam a uma realidade espiritual. Eles eram indignos da “Casa do Pai” que, por sua parte, estava condenada à destruição no tempo determinado (como aconteceu anos 60 d.C.). • Na lição anterior entendemos Jesus como fim do ritual religioso. • Na leitura de hoje vimos anunciado o fim do culto sacrificial no templo. Agora entendemos por que João colocou esse episódio no início do ministério de Jesus. As verdades sublinhadas por João serão premissas em todo seu Evangelho. 66 Passo a passo, João abrirá a nossa mente para a visão “do Filho”. Na sequência do estudo de João perceberemos que segue a futilidade do esforço religioso. E isso veremos na próxima leitura. Cap.2.23 - 3.5 (23) Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome; (24) mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. (25) E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana. (3.1) Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. (2) Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele”. (3) A isto, respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus”. (4) Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez? (5) Respondeu Jesus: Em verdade , em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. (23) Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome; Notamos que o Evangelho de João não desenvolve a história de Jesus no sentido biográfico, começando no início (batismo) e crescendo paulatinamente até alcançar o auge de sua popularidade na Galileia (como em Marcos). João está preocupado em nos mostrar quem era Jesus. Os acontecimentos e sua ordem cronológica ficam em segundo plano. Pelo que sabemos a intervenção de Jesus no Templo não causou nenhuma reação por parte das autoridades. Pelo contrário, “muitos” dos peregrinos demonstravam simpatia com ele; “seu nome” ficou cada vez mais popular. Fé com base em milagre perdura enquanto durar o milagre. Ela não merece confiança, pois na hora da provação, ela desaparecerá. Os milagres em si não apagam a ambição pessoal. Pelo contrário, milagres muitas vezes a reforçam. Em seu Evangelho, João está fazendo uma nova avaliação da antiga “fé nos milagres”. Fé em milagres não salva, pois fica presa no “sinal”, ao invés de penetrar até o milagre real: revelação da perfeita união entre Pai e Filho presente na pessoa de Jesus. Essa revelação resulta em fé; ela salva, ela nos leva a uma entrega incondicional. De “observador” passamos para “participante”. (24) mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. Jesus sabia interpretar a “onda” de simpatia entre os peregrinos. Não a julgou como fé. Ele a viu como aquilo que era: emoção temporária, sede do espetáculo místico, hoje tão presente como no tempo de Jesus. 67 Há um abismo intransponível que separa Jesus de todos nós. Jesus não podia confiar no homem. Ele só podia morrer a favor do homem, fechando assim o abismo que separa o homem de Deus. Parece que os discípulos estranharam o discernimento de seu Mestre, pois João observou: (25) E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana. Ainda hoje encontramos as mais variadas interpretações e compreensões distintas dentro do cristianismo. Cada uma alega ser a verdadeira. E em todas elas se revela somente “o velho homem” como ele é. Conhecimento parcial, interesses próprios, sede pelo poder, rejeição de autoridade... A Luz revela quem é esse “ser humano” que, no seu íntimo, está negando sua origem e continuamente está falhando na sua destinação, perdido na escuridão. (3.1) Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. O cristianismo, infelizmente, tem desenvolvido uma interpretação negativa do termo “fariseu”. Nos sermões ouvimos que eles eram astutos, egoístas, orgulhosos, intolerantes e hipócritas. As imagens que temos através da interpretação superficial dos Evangelhos é que eles eram uns legalistas teimosos e inflexíveis. Infelizmente, a partir da separação definitiva da igreja cristã de sua origem judaica, as duas comunidades começaram, mutuamente, a desenvolver imagens negativas uma da outra. Os fariseus, no entanto, não apenas fizeram parte dos “principais sacerdotes, escribas e anciãos”, que são mostrados como os perseguidores de Jesus, mas também das massas mostradas como admiradores de Jesus. A única queixa que as autoridades podem ter tido é a de que Jesus agira sem autoridade ou competência formal. Não apenas Jesus se movia e se sentia à vontade na companhia dos fariseus desde a infância (Lucas 2.46); Ele continuou a ensinar diante de “fariseus e mestres da Lei... vindos de todas as aldeias da Galileia, da Judeia e de Jerusalém (Lucas 5.17) presumivelmente para ouví-lo e com Ele estudar. Jesus fazia suas refeições ‘shabat’ nas casas dos fariseus e prontamente aceitava seus convites, o que sabemos por Lucas. Os fariseus eram homens prudentes, preocupados, sobretudo em guardar toda a Lei de Deus. O homem que João nos apresenta com o nome de Nicodemos, era membro do Sinédrio, da mais alta corte religiosa e ainda Rabi, isto é, Mestre no ensino. Numa ocasião posterior (7.50), na discussão entre religiosos, Nicodemos tomará abertamente partido em favor de Jesus. Na ocasião da preparação do corpo de Jesus para o sepultamento (19.39), é ele que trará uma grande quantidade de bálsamo caríssimo; portanto era homem rico. 68 (2) Este, de noite, foi ter com Jesus... Aos Rabinos era recomendado estudar durante a noite. Essa deverá ser a razão principal da visita noturna e não o medo de ser visto, como, querendo desqualificar esse homem, se costuma alegar. Um membro venerado da autoridade religiosa judaica consultou a Jesus. Jesus já fora interpelado pelos fariseus muitas vezes, nem sempre para ser apanhado em algum erro (como costumamos interpretar), mas para ouví-lo a respeito de assuntos controversos entre os fariseus. Estes gostavam de discussões sem fim sobre cada detalhe da Lei e assim, Nicodemos, quando procurou a Jesus, veio preocupado com um determinado assunto a ser discutido, importante o suficiente para conhecer a opinião de Jesus. ... e lhe disse: “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; ... O título “Rabi” usado por um dos mais altos líderes religiosos demonstra respeito por Jesus. Embora não autorizado oficialmente como Rabi (e aborrecendo alguns dentre os fariseus), Jesus estava sendo reconhecido por Nicodemos e uma facção dentro do Sinédrio, porque o consideravam “vindo de Deus”. ... porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele”. Para o judeu, é o sinal (milagre) que confirma a Palavra profética e a doutrina rabínica, ou com as palavras de Nicodemos: “prova que Deus estava com Jesus”. Imaginemos agora os dois homens sentados, à noite, frente a frente, prontos para um profundo diálogo teológico. João não menciona se houve testemunha presente que pudesse relatar a conversa entre os dois. Ele só nos transmite pedaços do início da conversa que, após poucas sentenças, quase sem que o notemos, passará a ser pregação joanina. A figura de Nicodemos logo desaparecerá e o Apóstolo desenvolverá o assunto levantado inicialmente pelos dois homens: “Como entrar no Reino de Deus”. O termo “Reino de Deus” faz parte da fé judaica; ele aponta o domínio soberano de Deus, onde Deus, e unicamente Deus, é Senhor sobre tudo e todos. Só duas vezes o Apóstolo usa esse termo judaico (versos 3 e 5); mais adiante ele prefere o termo “vida eterna”. Jesus não esperava elogios, Ele foi direto ao cerne da questão. Antes que a pergunta certamente pronunciada por Nicodemos aparecesse (João no-la omite), Jesus já colocou a condição preliminar. (3) A isto, respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus”. A expressão de Jesus, iniciado com o duplo “amém, amém” descarta toda e qualquer possibilidade de “melhoramento humano” ou “aprofundamento espiritual” como condição para perceber (ver) esse Reinado, esse Domínio de Deus, atuante já agora. Os meios humanos disponíveis para ter acesso a esse Reinado estão descartados, pois “nascer de novo” significa que tudo que temos e somos não serve para esse fim. A 69 palavra “de novo” usada por João, no grego, pode significar tanto “de novo” como “de cima”. Há uma condição básica para qualquer manifestação de vida cristã: um “novo nascimento”. Sem esse não teremos nem condição de opinar a respeito do Domínio de Deus, pois não podemos nem percebê-lo. Jesus não falou de reencarnação em outra vida; Ele diz respeito a essa vida que vivemos hoje, aqui e agora. (4) Perguntou-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” Nicodemos, talvez avançado em anos, ficou indignado. Ele veio preocupado em elaborar, junto com Jesus, uma melhor compreensão da qualificação necessária para o Reino. Como fariseu e como Mestre, Nicodemos estava consciente da necessidade de vida irrepreensível. Ele sabia que havia algo a mais; será que o “Rabi Jesus” tinha uma opinião a respeito? A resposta de Jesus o havia deixado perplexo, pois essa condicionou o acesso ao Reino a nada menos que uma renovação total do ser humano, desde a sua raiz, semelhante a um novo nascimento. Pior ainda, ela é um “passivum”; nada podemos fazer a seu favor. Quem de nós contribuiu para sua própria existência? Se nos é vetado começar tudo de novo no sentido físico-natural, muito menos o será no sentido ético, espiritual. Não é possível ao homem determinar a si mesmo um novo começo, como se nada houvesse tido antes. O ser humano está preso à sua existência. O judaismo não conhece reencarnação para uma nova vida terrena. Jesus rejeitou claramente essa possibilidade de interpretação em Lucas 13.4ss. A reencarnação, como uma esperança do mortal em outra oportunidade na terra, é a pior forma de escravidão. Sendo herança das religiões orientais ela condena, ao invés de redimir. (5) Respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo: ’Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus’”. Apesar de reconfirmar a exigência para a entrada no Reino de Deus, Jesus atende de certa forma ao protesto de Nicodemos, especificando a natureza do “novo nascimento”. Este é um nascimento “da água e do espírito”. Com isso ficou claro que o nascimento não acontece na esfera física, mas é resultado de uma ação “de cima”, portanto espiritual. Duas linhas de comentários se dividem aqui e as duas, de acordo com seu ponto referencial, procedem. A maioria dos comentaristas quer nos dizer que Jesus, nestas palavras, esteja falando sob a visão pós-pentecostal. Ele falaria de acordo com a experiência da igreja após a 70 descida do Espírito Santo. Conforme a profecia de Ezequiel, cap. 36. 2532, o batismo nas águas vai junto com a ação renovadora de Deus. Como João, nos versos seguintes, não mais menciona a água, falando somente sobre a ação do Espírito, fica claro que João viu a predominância do Espírito sobre o sacramento do batismo, embora o considere necessário. O Espírito Santo, como experiência da igreja, seria o agente que operasse a mudança de natureza. Essa depende sempre de Deus e nenhum esforço humano poderá resultar em “nascimento de cima”. A outra linha de raciocínio vê as palavras tanto de Jesus como de Nicodemos dentro da realidade histórica em que os dois se encontravam. Como Jesus poderia falar com Nicodemos de acordo com experiências que este ainda não teve? Quando falou de água, deve ter falado da água que Nicodemos conhecia; o mesmo vale para o Espírito. Por duas vezes até agora, a água apareceu no Evangelho: a primeira vez nas vasilhas usadas para purificação em Caná. Neles, também os fariseus cumpriram os rituais de purificação, sabendo que uma purificação parcial era necessária. A água também lembrava o batismo de João. Todos que foram a ele pedindo o batismo concordavam com a necessidade de uma lavagem integral, completa. Todos eles, até mesmo alguns religiosos, apelaram ao perdão de Deus. Nicodemos, você foi a João, pedindo “a água”? Você sabe que também, apesar de ser religioso precisa do perdão integral de Deus? Esse aspecto seria o significado da água nas palavras de Jesus a Nicodemos. Este conhecia as Escrituras; ele conhecia a promessa de Isaías em 44.3 “... porque derramarei água sobre o sedento e torrentes sobre a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção, sobre os teus descendentes”. A ação do Espírito Santo está sempre ligada à água, enquanto a água equivaler a “arrependimento”. Jesus deixou claro que não devemos somente “ver” a Soberania de Deus: seu Reino; devemos “entrar” nele, viver nele, consciente da Santidade de Deus (confira Is. 33.14-16). • Você já sentiu que ser cristão é mais do que ser batizado? Ainda mais, se você foi batizado sem o seu consentimento, quando você nem o percebia!? • Você notou que o batismo clama por outro passo que independe de seu esforço: a ação do Espírito Santo em sua vida, transformando-o(a) em uma “nova criatura”?(2.Cor.5.17) • Você está vivendo sua vida neste Reino, no Reino do Domínio de Deus? Você entrou nesse Reino na base de quê? Cap. 3.6-12 (6) O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. (7) Não te admires de eu te dizer: “importa-vos nascer de novo!” (8) O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é 71 todo o que é nascido do Espírito. (9) Então, lhe perguntou Nicodemos: “Como pode suceder isto?” Acudiu Jesus: (10) Tu és Mestre em Israel e não compreendes estas coisas? (11) Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho. (12) Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” Carne e Espírito são duas realidades cujos âmbitos mutuamente se excluem. Eles são termos usados principalmente por Paulo nas suas doutrinas. No judaismo, o homem é visto como “alma”, como uma Unidade. Para sublinhar a incompatibilidade do humano com o que é Divino, João recorreu a esses termos que têm sua origem no pensamento helenista. “Carne” compreende tudo o que é humano: Fraqueza, temporalidade, pecado, rebeldia e imperfeição. O humano nunca poderá ultrapassar seus limites ao ponto de chegar ao âmbito daquilo que tem sua origem em Deus. Na 1ª “Carta” de Paulo aos Coríntios, Paulo declara que “carne e sangue nunca poderão herdar o Reino de Deus (15,50). Tanto o conhecimento de Deus como o acesso à Sua realidade estão, definitivamente, vetados ao homem. Carne continuará carne. A religião com todos os seus ritos religiosos representa a mais sublime tentativa humana no sentido de aproximar-se a Deus; mas ela continua carne. Ela sempre será como uma torre de Babel, como uma escada, cujo fim se perde nas nuvens e nunca chegará ao céu. Religião pertence ao homem; ela é um fenômeno social que tem sua raiz na consciência humana que sofre com sua limitação e procura perfeição. Os rituais mais místicos e solenes pertencem ao que é humano, ao mundo emocional e sua sede do sobrenatural. A religião atende a profundos anseios humanos e, com suas cerimônias e práticas, aproximase da magia (observe certos ritos em determinadas Igrejas). Ela nunca chegará a ser Espírito. O homem não tem Deus na sua mão! (6) O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Enquanto o cristianismo continua sendo somente “religião”, em nada difere das tantas outras religiões: é ópio para o povo, serve para mantê-lo dentro de parâmetros morais e éticos. Ela constitui um dos métodos mais eficientes de manipulação das massas. O cristianismo somente tornar-se-á diferente quando ele penetra até à Pessoa de Cristo. Jesus Cristo como “fundador de uma religião” é uma coisa; Jesus Cristo como Encarnação de Deus, como “Verbo” que nos deixou Seu Espírito, é outra coisa. Obedecer aos mandamentos da Bíblia por fidelidade religiosa é uma coisa; obediência aos mandamentos de Jesus porque neles reconhecemos e vivemos a Vontade do Cristo em nós, é diferente. A palavra de Jesus é chocante e clara. Ela acaba de vez com todo esforço humano, considerando-o insuficiente e nulo quando se trata de penetrar as coisas espirituais. A vida de Deus não nasce dentro do homem. Ela vem de cima; ela é dádiva que nos é concedida, não porque a 72 mereçamos, mas porque Jesus no-la concede quando O reconhecemos Senhor. Essa intervenção de cima é o “novo nascimento”. As duas áreas “carne” e “espírito” são duas esferas que compõem o homem. A esfera “carne” é determinada geneticamente, humanamente, ela recebe sua forma pela cultura, a convivência social e a educacional. Ela é necessária, mas ela não serve para conquistar o “Reino de Deus”. A esfera espiritual, por sua vez, é determinada por Deus e pelo que Deus, na Sua Vontade e determinação, concede a cada um. O homem não se encontra perante uma bifurcação, com poder para escolher (como a comunidade de Qumran ensinava). O homem não pode escolher. O batismo pelo Espírito só lhe vem como dádiva, sobre a qual ele não tem autoridade. O homem só pode pedir; ele não está em condições de alcançá-lo, exigi-lo ou providenciá-lo, nem para si mesmo e muito menos para outros! (repare nos eventos, onde a Igreja e seus representantes alegam providenciar esse batismo espiritual com hora marcada). Essa dádiva de cima providenciará ao homem uma nova maneira de ver e uma nova maneira de ser, onde não mais será a “carne” que predomina, mas o Espírito de Deus. Sem o “novo nascimento” o homem continuará inevitavelmente excluído do “Reino de Deus”, isto é, da condição de salvo. (7) Não te admires de eu te dizer: “importa-vos nascer de novo!” Nicodemos, pertencendo aos fariseus, chamados “separatistas” por terem uma vida reconhecida santa e impecável, não compreendia a vida religiosa dessa forma. Jesus havia declarado como inútil todo seu esforço para entrar no Reino, subindo degraus de santidade. O homem não pode chegar a Deus subindo. É Deus que desce e se reconcilia com o homem, porque Ele assim o quer, não porque o homem assim decidiu. Sem essa ótica, ritos e cerimônias religiosas são relativados àquilo que são: expressão de gratidão e submissão a Deus e não moeda com a qual compramos a entrada no Reino. Não somente Nicodemos ficou chocado e admirado ao mesmo tempo. Muitos de nós ainda acreditamos ter a passagem para o céu no bolso: Fomos batizados; crismados; confirmados; não fazemos mal a ninguém e nos esforçamos; somos membros da Igreja X... Todos esses dados são relevantes para a sociologia, mas não impressionam a Deus. “Importa nascer de novo!” Como? (8) O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito. Tanto no grego (pneuma) quanto no hebraico (ruach) o “vento” mencionado aqui significa “espírito”. O vento é misterioso; não sabemos de onde vem. Ele tem liberdade total e ninguém pode dispor dele. Assim, disse Jesus, assim acontece com aquele que nasceu de novo. Você percebe 73 algo diferente nele, mas não sabe o que é. Você não pode negar esse “algo”, tampouco explicá-lo. Nicodemos era um homem experiente e sábio; ele conhecia a vida. Certamente percebeu este “algo” na pessoa de Jesus. Foi isso que o havia atraído ao Mestre. Até nós percebemos em certos crentes algo que gostaríamos de ter. Mas como chegar lá? (9) Então, lhe perguntou Nicodemos: “Como pode suceder isto?” Esse “como?” é a pergunta de todos os homens de todas as épocas. Nos dias atuais, os livros de autoajuda (“cristã”) que estão em moda, procuram explicar “como” você chegará lá, tornar-se-á rico, feliz, saudável e célebre. Os conselhos ficam todos limitados ao que é “humano”. Nicodemos, porém, procurou investigar o como chegaria ao que é espiritual se, de acordo com as palavras de Jesus, o espírito era autônomo e “a religião” não o alcança. Acudiu Jesus: (10) Tu és Mestre em Israel e não compreendes estas coisas? Jesus havia acabado de declarar solenemente que, pelo caminho do esforço humano, ninguém entraria no Reino de Deus; isto é, ninguém conseguirá viver dentro da realidade do Domínio de Deus. A pergunta de Nicodemos revela seu bom senso, mas provocou uma resposta de reprovação da parte de Jesus. (11) Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho. (12) Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como creireis, se vos falar das celestiais?” Não sabemos se esta frase ainda fez parte da conversa com o nobre fariseu, pois Jesus já está usando o plural. Jesus está dizendo, parafraseado: “Uma coisa lhe direi: Como vocês procuram entender coisas espirituais, se vocês nem dão crédito às minhas palavras quando lhes falo de coisas terrestres? Eu tenho autoridade porque falo daquilo que Eu vi e do qual Eu fui testemunha”. A Sinagoga havia falhado na questão fundamental da salvação, da “entrada no Reino de Deus”. A Torá, sua autoridade máxima, sobrecarregava o homem com as exigências de observância da Santa Lei de Deus. Nicodemos deve ter entendido que havia um abismo intransponível entre sua maneira de encarar o “serviço a Deus” e a mensagem de Jesus, que sujeitava a obediência à Torá ao Domínio do próprio Deus. (João continua desenvolvendo o assunto, e Nicodemos não mais é mencionado). Alguns comentaristas veem nos versos 11 e 12 o Evangelista falando como representante e responsável na igreja primitiva: “Eu sou testemunha, falo daquilo que eu vi e “vocês” (provavelmente os leitores do Evangelho) 74 ainda não querem crer naquilo que dizemos”? Observe o plural: “nós”; “temos visto” ou “vocês não creem”. Seja como for, a resposta de Jesus serviu para Nicodemos e serve para toda a Igreja. Queremos santidade e bênção; ousamos sermos considerados filhos de Deus, mas não atentamos às palavras que o Filho nos dirige. • Você é um daqueles cristãos que vivem do “pré-mastigado” de seus mestres religiosos ou você tem os “ouvidos para ouvir” o que Jesus lhe fala? Seu Santo Espírito fala através de Sua Palavra, hoje e agora. Você está disposto a aceitar Suas palavras? • Tenha coragem e diga a Deus quem você realmente é e que você, desesperadamente, precisa da intervenção de cima. Cap. 3. 13-15 (13) Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem (que está no céu). (14) E do modo porque Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, (15) para que todo o que nele crê, tenha a vida eterna. Pouco termo na Bíblia e, principalmente, no Novo Testamento tem levado a interpretações tão controvertidas como o “Filho do Homem” do verso 3,13. Encontramos esse “título” umas oitenta vezes nos quatro Evangelhos, sem exceção, sempre proferidas por Jesus; jamais usado por discípulos, seguidores ou até inimigos. “Filho do Homem” até parece ter sido a autodenominação preferida de Jesus e, com exceção de 12,32-36, sempre na terceira pessoa singular, impessoal. Em todo o Novo Testamento, fora dos Evangelhos, somente quatro vezes o encontramos. No Antigo Testamento ele aparece uma única vez. O que este termo significa? O verso 3,13 tem causado, desde cedo, enormes dificuldades para os interpretadores da Bíblia. Até metade do século passado, (Bultmann e outros) tinham como certo que foi a igreja primitiva que inventou esse predicado e o aplicou a Jesus. Segundo a grande maioria de teólogos foi a hipotética “Comunidade joanina pós-Páscoa” que colocou esse termo na boca de Jesus. Será que isso é verdade? Nos últimos 50 anos, melhor, desde o achado de manuscritos antigos nas cavernas de Qumram, muita coisa mudou. A compreensão do título honorário “Filho do Homem” sofreu profundas mudanças. Sua 75 história está cheia de suspense. Para termos uma compreensão melhor dessa predicação temos que mergulhar um pouco na história. Vamos? Nos livros apócrifos de Enoque (livros que não fazem parte da nossa Bíblia) se faz referência a esse “Filho do Homem” em forma de parábolas. 1 Enoque 37-71 descreve o filho celestial do Homem, o Messias, o Eleito e o Justo. É claro que são quatro termos para o mesmo intermediário de Deus. Enoque falou de um “Filius hominis absconditus”, escondido no presente tempo no reino celestial e que no dia de sua epifania (aparecimento) em poder e glória vingar-se-ia nos inimigos de Deus. Em nosso Antigo Testamento canônico, o termo “Filho do Homem” aparece uma única vez, em Daniel cap. 7.13-14: “...eis senão quando, com as nuvens do céu, vinha vindo um como Filho do Homem; ele avançou junto do ancião (Deus) e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados domínio, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o serviam. Seu domínio é eterno e não acabará, seu reino jamais será destruído” (Vozes). A palavra de Daniel a respeito desse alguém “um como homem” é anterior a de Enoque, porém parece falar da mesma figura apocalíptica. A literatura apocalíptica fala da chegada da era futura. Os “apocalipsistas” tenderam a serem vingativos, apelando muitas vezes a Deus para que destruísse os inimigos dos judeus. No entanto, semelhantemente a Jesus, partilharam um interesse pelos oprimidos. Tanto Enoque quanto Jesus predisseram punição para os ricos (1.En 94:8-9; 96:4-8 confira com Marcos 10,23-25). Tanto os “apocalipsistas” como Jesus salientaram a transformação e a redefinição da ordem: por exemplo, o autor de 2 Baruque (outro livro apócrifo) e Jesus disseram que “os primeiros seriam os últimos”. Os dois, os antigos apocalípticos e Jesus puseram-se ao lado dos pobres contra os ricos (Marcos 10,21); pregaram conduta justa, promulgaram bem-aventuranças (p.e. 2En 42; Mat. 5) e exigiram pureza de coração (cf. 2 Em 45 com Marcos 7,14-23). O que tudo isso tem a ver com o termo “Filho do Homem”? Os achados de Qumram provaram que a expressão “Filho do Homem”, que aparece tão conspicuamente nas Parábolas de Enoque, já era empregada por judeus palestinos antes e durante o período de Jesus. Não eram composições cristãs do terceiro século! O mais surpreendente – e, para os eruditos, espantoso – acontecimento nas pesquisas sobre os Pseudo-epígrafos, é a mudança decisiva na avaliação do caráter e da data das Parábolas de Enoque (1 Em 37-71) que descreve o filho celestial do Homem, o Messias, o Eleito de Deus. Jesus conhecia, sim, esses escritos e a figura apocalíptica do “Filho do Homem” de Enoque. O termo era popular nos dias de Jesus. A citação de Daniel cap. 7.13-14 que descreve a entronização do “Filho do Homem” não interessava ao Evangelista João. Quando Jesus se 76 autodenomina “Filho do Homem”, Ele não se refere a Daniel 7. Por que não? Veja o raciocínio do Apóstolo: Por que razão alguém deveria ser entronizado no céu e lhe serem outorgados todo o poder e glória no fim dos tempos, a Ele que era com Deus desde o início, sim, que era Deus (João 1,1), alguém que se entende como o “EU SOU” e declara “Eu e o Pai somos Um” (João 10,30), um pelo qual todas as coisas foram criadas (1,3)? Para João, a entronização de Daniel já está no passado. Muitas teorias a respeito foram levantadas; não perderemos nosso tempo com elas. No aramaico (idioma que Jesus falava), o termo “Filho do Homem” (bar-enasch) ou no hebraico (bem-adam) significa simplesmente “filho de Adão” (qualquer um) ou simplesmente o gênero. “Filho do Homem” era a autodenominação preferida do próprio Jesus. Ele nunca se apresentou como “Messias” ou similar; Ele até corrigiu algumas vezes os seus, substituindo o título “Cristo” (ou “Messias”) pelo preferido “Filho do Homem” (confira Marcos 8.29-31). Como já vimos várias vezes na leitura de João, Jesus via além do horizonte. Embora tenha vindo para “seu povo” e “a salvação vem dos (através dos) judeus” (1,21 e 4,22), o Evangelista não se cansa em apresentá-lo como “Salvador do mundo”. Assim, entendemos porque Jesus, em nenhum lugar, afirma ser o “Messias” que os judeus esperavam. No momento crucial, quando fora interpelado em julgamento perante o Sinédrio, se era “o Cristo (Messias) de Deus” (Marcos 14,62), Jesus não afirmou ser esse Messias projetado e esperado por eles, mas identificou-se como “Filho do Homem”. Foi essa a razão de sua imediata condenação. O Sinédrio todo sabia o que esse termo aparentemente comum (homem) na sua ambiguidade significava: “...domínio, glória e realeza...” Veja em Atos 7,56, qual a palavra decisiva que levou (além da relativação da instituição do Templo) ao apedrejamento de Estevão: “...o Filho do Homem de pé à direita de Deus”. Eram atributos do Altíssimo! Jesus conhecia a tradição apocalíptica (o que sabemos somente desde meados do século 20) e certamente a usou conscientemente e com plena compreensão do seu significado. Desde os achados dos manuscritos em Qumram fica difícil argumentar que Jesus não reivindicou autoridade Divina ou que não sabia quem era. Ele não usou o título “Filho do Homem” em especulação apocalíptica, com a qual podemos concordar ou não. Ele o usou como prerrogativa de soberano, como título de majestade do Grande Desconhecido, vindo de cima, no qual ou cremos ou não. Após a morte e a ressurreição de Jesus, quando mais e mais judeus e até “muitíssimos” sacerdotes (Atos 6,7) começavam ajuntar-se aos Apóstolos, os líderes judaicos que muito bem entendiam o significado do 77 título “Filho do Homem” na boca do maldito crucificado, tomavam providências para a eliminação desse termo. Assim, já na época apostólica, os fariseus procuravam por meios contra o autopredicado de Jesus. Era importante tirar das menções do “Filho do Homem” a ideia de um ser humano. O Sinédrio reinterpretou o termo “Filho do Homem” citado no livro de Daniel e futuramente o aplicava coletivamente ao “povo de Deus”(Israel). A última menção desse título na literatura judaica (60-80 d.C) aparece no 4º livro de Esdras. Esse livro fazia parte dos livros lidos na Sinagoga. Sua leitura e menção nas Sinagogas foram vetadas para evitar a interpretação que os cristãos lho começavam a dar. O “Grande Sinédrio de Jannina” (entre 80 e 100 d.C.), sob liderança de Gamaliel II, finalmente declarou guerra a esse título. Rabi Abbahu, na sua polêmica contra os cristãos, sentenciou no “Talmude de Jerusalém”: “Se um homem diz: ‘eu sou o Filho do Homem’ ele terá um fim de que se arrependerá” (j Taan 2,1). Com isso, o livro ficou oficialmente vetado. Os primeiros cristãos entre os judeus começavam a aplicar a Jesus o “Filius hominis incognitus” mencionado em Enoque, pois Ele havia cumprido muitas das profecias: ! Viveu incógnito no meio de seu povo, seus seguidores, insignificante, incompreendido e como escândalo, sim, desprezado (Lucas 7.34;11.31; Marcos 9.9). ! Ele, “Filius hominis incognitus” era Senhor sobre a Torá; tinha autonomia para julgar e para perdoar pecados (Marcos 2.10,28; João 5.27). ! Ele foi amaldiçoado e condenado (Lucas 6.22ss; 12.10). No posicionamento perante sua pessoa se decidirá tanto o futuro de seu povo quanto a sorte eterna do homem (Marcos 8.38; Lucas 12.8). ! Ele era indefeso e manso, sem casa, perseguido e traído (Lucas 9.58; 22.48). Veio para procurar o que se havia perdido, veio para salvar e não para escravizar; veio para servir e dar sua vida para redenção de muitos (Lucas 19.10; Marcos 10.45). Se Jesus preferia referir-se à sua pessoa como “Filho do Homem”, é porque assim Ele se considerava. O título “Messias” (grego: Cristo) era carregado de projeções nacionalistas judaicas. Seria aquele que colocaria ordem no mundo, restauraria o Reinado da Casa de Davi para sempre e vingar-se-ia nos inimigos de Deus; exatamente como João Batista o havia projetado: o “Messias dos judeus”. Mas Jesus não se via assim. Por isso nunca permitiu ser anunciado como o “Messias” dos judeus. 78 Com o avançar do tempo, a igreja entre os não judeus não mais fazia uso dogmático do título com que Jesus se autodenominava, pois não mais o entendeu. Ele não servia na cultura grega. A igreja como um todo preferiu empregar o título “Cristo (Messias)” em clara oposição aos judeus para os quais o Messias ainda não apareceu. Os livros de Enoque, no entanto, continuavam sendo lidos nas igrejas cristãs até o quarto século, quando o “Cânon” do Novo Testamento foi definido (a escolha dos livros que fariam parte dele) e os livros de Enoque foram excluídos. Nem nos Tratados dos primeiros Pais da Igreja aparece mais o título “Filho do Homem”. Havia se tornado sem sentido para as igrejas cristãs não judaicas. (13) Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem (que está no céu = acréscimo posterior). O Evangelho inteiro deve ser lido como o protocolo de uma controversa jurídica de Deus com seu povo através da pessoa de Jesus. Por essa razão é que o Apóstolo apela às Escrituras como testemunha válida em favor do Enviado. Quando procuramos pelo testemunho das Escrituras quanto à afirmação de Jesus em 3,13 que se refere à subida e descida do Filho do Homem, a melhor interpretação (Burkett) aponta para Prov.30,1-4. O diálogo ambíguo em Pv.30,4 só tem uma única resposta que é: “Somente Deus”. Enquanto Jesus se identifica com quem responde às perguntas em Prov.30,4, reivindicando tudo que compete ao “homem” da parábola, temos implicitamente o que Jesus, em 10,30, explicitamente afirma: “Eu e o Pai somos Um”. O Evangelista fala como quem já conhece toda a história da Salvação: Vinda, vida, glorificação e volta ao Pai. Nenhum dos deuses gregos aos quais o povo atribuía subida ao mundo espiritual, nem os gnósticos, podiam dizer que antes de lá tinham descido. Somente o “Filho do Homem”, glorificado na cruz, antes já fora “apresentado ao ancião (Deus) recebendo do mesmo poder, glória e domínio eternos” (Daniel 7). Os “apocalipsistas” tendiam a situar Deus cada vez mais longe do mundo humano dos vivos. Diferente deles, Jesus salientara a proximidade, na verdade a presença de um Pai cheio de compaixão, que podia ser chamado de forma íntima, Abba (Paizinho querido). O Evangelista João entendeu: No seu Evangelho, o futuro Reino já se faz presente. (João 1,5 e 12 e 13) 14) E do modo porque Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, (15) para que todo o que nele crê, tenha a vida eterna. A referência a Num. 21.8 como tipologia da obra de Deus em Cristo Jesus é menção única no Novo Testamento. João lembra a serpente “levantada” no deserto. Todos os que, picados pelas cobras venenosas, 79 ergueram seu olhar à serpente levantada, à espera de ajuda dela, foram curados. Em todo seu Evangelho e assim também no contexto da conversa com Nicodemos, João usa o termo “levantar” quando fala da crucificação, onde Jesus foi levantado à vista de todos, como à elevação que corresponde à glorificação do Filho na Sua volta ao Pai. Havia necessidade de Jesus ser “levantado” como “escândalo”; havia necessidade da cruz para ser “levantado” à glória. O Espírito Santo, vivificador, não podia vir antes que a cruz, Páscoa e pentecoste preparassem o caminho. A reconciliação do mundo, obra de Deus, era prerrogativa para a entrada no Reino. Essa, em essência, seria a resposta a Nicodemos. Somente uma única vez o Evangelista lembra como Jesus usou o termo “Filho do Homem” na primeira pessoa de singular, pessoal (12,3236). Quem, contra toda argumentação racional, olhar àquele que foi levantado, aceitando a justificação que vem de Deus somente (isto é crer), terá a “vida eterna”. (15) para que todo o que nele crê, tenha a vida eterna. Haverá um escândalo, disse João, em que seu olhar decidirá sobre vida ou morte. A morte de Jesus, levantado da terra, será um escândalo para a inteligência (1.Cor.1.23). Ela, no entanto, será o meio através do qual o poder e a glória de Deus se manifestarão. Pela primeira vez, João recorre ao termo “vida eterna” como sinônimo da “entrada no Reino de Deus”. O termo “eterno” aqui não é o contrário filosófico de “tempo”, tempo sem fim, algo aterrorizador. “Eterno” quer dizer “pertencendo ao novo ‘aeon”’, com as características do mundo por vir, do “Reino de Deus”. Nós não procuramos uma vida sem fim. O que Jesus nos oferece é uma vida pertencente ao “aeon” (época, era) de Deus, que desconhecerá temporalidade e corrupção. O capítulo 3 de João não é um texto apocalíptico, nem gnóstico. Os termos “novo nascimento” e “vida eterna” não apontam para alguma revelação de conhecimento (Gnose). Eles falam de salvação, de libertação, isto é, da intervenção de Deus na minha vida e no mundo. Pela fé no que foi “levantado” já temos “vida eterna”, vida pertencente ao “aeon” de Deus, ao Domínio dele. • Você pertence a quem ? Fontes principais (3.13-15): THYEN, Das Johannes-Evangelium. Mohr-Siebeck. 2005 CHARLESWORTH. Jesus dentro do Judaismo. Imago 1992 Cap. 3. 16-21 80 (16) Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (17) Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. (18) Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. (19) O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porquanto as suas obras eram más. (20) Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não serem arguidas as suas obras. (21) Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus. (16) Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. O termo nessa sentença, que deve exigir a maior atenção, aparece (em português) no meio da sentença. Ele deveria estar no começo: “de tal maneira Deus amou”; “assim Deus amou, que deu...” Somente Deus é capaz de amar de tal maneira um mundo (o cosmo) em estado de inimizade. Não fomos nós que, analisando o comportamento de Deus, descobrimos o Seu amor. Através do amor de Deus para com “o mundo” podemos aprender em que consiste o “amor”. Esse amor de Deus para com o “cosmos” não tem sua razão no mundo, nem na maneira com que este eventualmente se posiciona perante Deus. O amor jorra abundantemente e aparentemente sem motivo, considerando o inimigo como “amado”. ...que deu o seu Filho unigênito... Em outro lugar já mencionamos que entendemos mais fielmente o “unigênito” se o percebemos como “da mesma essência”. Deus se deu a si mesmo. “Todo aquele” que nele crê... incondicionalmente, portanto algo possível ao mais fraco e indigno, pois não exige poder e força. Todo aquele não perecerá (não se perderá na escuridão do “aeon” futuro, mas terá “a vida eterna”). Não se trata de uma eternidade filosófica (tempo sem fim). Trata-se da vida “sob o domínio do Deus Eterno”, aqui e agora. A declaração de 3.16 compreende o Evangelho todo. Observe: “Deus amou o mundo”, um fato que não tem sua origem na compreensão de João. Em nenhum outro lugar o Apóstolo repete a afirmação de que Deus amou “o cosmos” que, conforme suas palavras, está nas trevas. A vinda do Filho tem sua origem no amor de Deus para com esse “mundo”. Quem vê esse fato e nele “aposta” (confia) já “tem vida eterna”, já entrou no “Domínio de Deus”, no “Seu Reino”. (17) Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Mesmo que Israel, e com ele o Batista, O esperassem como “Aquele que tem na sua mão o machado e a peneira para limpar e purificar a Israel” 81 (Mat.3.10,12), a mensagem de Deus através do Filho não é Juízo, mas Salvação. Os Evangelistas sinóticos ainda viam Jesus como futuro Juiz. João corrigiu: Sua vinda significa salvação – para o mundo! (18) Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. O Julgamento que o Batista e os sinóticos vislumbravam num futuro distante é reinterpretado por João: de uma ação passiva externa ele é transformado para o ativo e o “agora”; ele se define no posicionamento íntimo de cada um. Cada indivíduo se julga a si mesmo, ativamente; essa é a visão joanina do julgamento. Salvação é a visão da dupla “elevação” do Filho (compare com a leitura anterior). Quem tiver essa visão, não mais será julgado, pois “passou da morte para vida” (João 5.24). A rejeição dessa luz é vista como oposição, cuja raiz é o orgulho do homem que dispensa a manifestação amorosa de Deus. Esse homem já está julgado. O julgamento escatológico (futuro) em João 5.29ss somente ratificará a decisão que o próprio homem tomou a seu tempo. O Apóstolo Paulo, antigo fariseu, comparou esse momento de decisão íntima com o radiar da luz em nosso coração “para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo” (2 Cor 4.6). W.Nee¹ diz: “O que é Salvação? É o irromper da luz Divina. O apagar desta luz significa perdição. Contudo, Deus resplandeceu no coração de pessoas como nós, que estavam perecendo; e a simples visão é salvação. Somos salvos tão logo vemos a glória no rosto do Salvador. Se simplesmente entendermos a doutrina e concordarmos com ela, nada acontece, pois não vimos Aquele que é a Verdade. Entretanto, tão certo como a impressão sobre um filme se segue à abertura do obturador de uma câmara fotográfica, assim é o momento em que realmente O vemos como Salvador – neste momento inicia-se a transformação interior, e o que era para nós “a visão celestial” (Atos 26.1) torna-se, por sua vez, em “Seu Filho revelado em mim” (Gal.1.16). Não há necessidade de lembrar-nos desta viva experiência. Não há como esquecê-la. ¹(W.Nee.Uma Mesa no Deserto, Ed.dos Clássicos, 2004). (19) O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porquanto as suas obras eram más. (20) Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não serem argüidas as suas obras. Voltando aos termos usados no “Prólogo”, João declara a natureza do julgamento: a vinda da Luz para esse “cosmos”. A luz preexistente revela a verdade. O homem natural rejeita essa luz, porque quer viver por si mesmo. O mal de que João fala não é primordialmente moral. A condição de escuridão determina as obras do homem; portanto, suas obras 82 também são más. Não porque o homem peca, ele é mal. Ele aborrece a luz porque dela se esconde na escuridão. (21) Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus. Que é a verdade? Você conhece a pergunta de Pilatos. A Verdade é uma pessoa; ela determina o comportamento daquele que a tem. Aquele que a pratica é atraído a Jesus. Somente nesse caminho, em direção da Luz, o homem conhecerá o arrependimento. Somente chegando à Luz ele se vê como é. Esse processo acontece de maneiras diferentes de pessoa para pessoa. Cada um de nós tem sua estrutura, seu passado. A piedade e seu modo de desenvolvimento é algo tremendamente individual. Veja a diferença entre o Apóstolo João, ex-pescador e o Apóstolo Paulo, ex-fariseu: Paulo nunca poderia ter escrito João 3.21. Ele, ex-fariseu, conheceu a miséria de alguém quebrantado pela Lei. João nada disso sabia. Paulo, em Romanos 7, aparece torturado na sua luta íntima. Ele conheceu a ruptura traumática com seu antigo modo de religiosidade. João, no entanto, parece livre, relaxado. Nada das lutas de Paulo notamos em nosso Apóstolo. Paulo alcançou a paz através e após uma luta feroz. João, desde seu chamado, parece repleto de uma permanente sobriedade feliz. A teologia de Paulo é a Teologia do Livro. A teologia de João é a Teologia de um desenvolvimento positivo na direção da Luz de Cristo. Os dois grandes homens dão testemunho da mesma Luz, da mesma paz, da mesma Salvação. Os dois conheceram uma transformação interior, uma renovação do ser, operado pelo mesmo Espírito de Deus. Os dois conhecerem o “Novo Nascimento”, mas de maneiras diferentes. O “Novo Nascimento” - para encerrar o nosso estudo que deu seu início com a visita de Nicodemos -, o “Novo Nascimento” não se realiza através de um ato mágico-sacramental. Não há forças da natureza atuando nesse processo (como os livros de autoajuda sugerem). Ele acontece aonde alguém se volta, em decisão responsável e pessoal, ao “Filho de Deus” que apareceu em forma humana na pessoa de Jesus Nazareno. A marca daquele que “nasceu de novo” é sua visão de Cristo Jesus e essa visão se chama “fé”. • Você já iniciou seu caminho na direção da Luz de Cristo? Você já sabe quem você é? Você já foi vencido pelo amor revelado em Cristo Jesus? Você tem a marca do Novo Nascimento? Caso não, procure alguém com quem falar sobre essa decisão de sua vida. Vá a alguém em quem você nota aquele “algo” de que tratamos duas lições atrás! Procure vida, não teologia! Cap. 3.22-30 83 (22) Depois disto, foi Jesus com seus discípulos para a terra da Judeia; ali permaneceu com eles e batizava. (23) Ora, João também estava batizando em Enom, perto de Salim, porque havia ali muitas águas, e para lá concorria o povo e era batizado. (24) Pois João ainda não tinha sido encarcerado. (25) Ora, entre os discípulos de João e um judeu suscitou-se uma contenda com respeito à purificação. (26) E foram ter com João e lhe disseram: Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando, e todos lhe saem ao encontro. (27) Respondeu João: O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada. (28) Vós mesmos sois testemunhas de que vos disse : eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. (29) O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. (30) Convém que ele cresça e que eu diminua. (22) Depois disto, foi Jesus com seus discípulos para a terra da Judeia; ali permaneceu com eles e batizava. Os três Evangelistas sinóticos pouco sabem das atividades de Jesus na Judeia. As informações deles parecem sugerir que o ministério de Jesus não passou de um ano. Informações adicionais que João fornece, às vezes parecem corrigir os sinóticos, mostrando que o ministério de Jesus estendeu-se por três anos, aproximadamente. Em João 1.34 lemos que Jesus, após seu primeiro encontro com o Batista e seu próprio batismo e experiência no deserto, deixou o movimento batista, sendo acompanhado nesse ato pelos seus primeiros seis discípulos, todos oriundos do movimento batista. Ele voltou para o norte, para sua Galileia. O velho Apóstolo lembra que, posteriormente, Jesus retornou ao Jordão, permanecendo ali por um bom tempo. A mensagem do Batista, a anunciação do Reino de Deus por Deus ordenada, também movia a mente de Jesus. Embora Ele não tenha se ligado diretamente ao movimento batista, viu o batismo como condição inicial (indicando o arrependimento) como tão indispensável que, por alguns meses, permitiu aos seus discípulos uma atividade similar. Ali Jesus foi procurado por muita gente. (23) Ora, João também estava batizando em Enom, perto de Salim, porque havia ali muitas águas, e para lá concorria o povo e era batizado. Ele havia mudado seu campo de ação mais para o norte. Jerônimo (350-420 d.C.), trezentos anos mais tarde, ainda identificava o lugar da atividade do Batista. (24) Pois João ainda não tinha sido encarcerado. Com essa frase intercalada João corrige a informação inconsistente de Marcos de que Jesus somente iniciou sua atividade ministerial após o Batista ser preso (Marcos 1.14). Por aproximadamente oito meses tanto João Batista como Jesus ministravam no Jordão, independentes, mas com o mesmo ministério, embora à certa distância. Os seguidores do Batista não viam de bons olhos a atividade do grupo de Jesus. Eles entenderam como traição o fato de alguns de seus antigos companheiros terem aberto outro campo 84 sob a liderança de Jesus. A situação agravou-se quando o movimento de Jesus começou a crescer, ultrapassando o do Batista. (25) Ora, entre os discípulos de João e um judeu suscitou-se uma contenda com respeito à purificação. (26) E foram ter com João (Batista) e lhe disseram: Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando, e todos lhe saem ao encontro. Não sabemos exatamente qual foi a “contenda”. Pelo que entendemos, “um judeu”, provavelmente após ser batizado por Jesus, resolveu questionar junto aos seguidores do Batista o valor do cerimonial da purificação destes (o batismo de João). Os seguidores do Batista, contestados por este tal “judeu” recorreram, então, ao seu mestre em busca do apoio para as suas argumentações. Levaram a ele não só a denúncia da atividade “desleal” de Jesus que se realizava a alguns quilômetros mais ao sul, como também a preocupante informação de que “todos lhe saem ao encontro”. Em linguagem popular isso quer dizer: “Ele está virando moda e nós vamos ficar para trás, sobrando, pois todo mundo corre para lá”. Para entendermos melhor a atividade paralela de João Batista e de Jesus durante oito meses aproximadamente, lembramos que o batismo de João era (conforme Mateus 3,7) um “sacramento escatológico” (que preparava para o que vinha). O arrependimento e o perdão baseados no ato batismal de João anunciavam a iminente chegada da “era messiânica”. Pelo Evangelista sabemos que Jesus não somente aprovava esse ministério, como permitiu aos seus discípulos cumprirem a mesma tarefa durante meses. Servia-lhes de preparo. Jesus pessoalmente não batizava (João 4.2). O batismo posterior, aquele da Igreja, seria em nome de Jesus; o batismo de quem falamos aqui, ainda era preparativo. O batismo cristão tem sua raiz no batismo de João Batista, sendo este substituído e tornado ineficaz com a posterior morte e ressurreição de Jesus. Mas no presente momento do nosso estudo, os dois movimentos tanto o do Batista como o de Jesus e seu grupo - andavam paralelos e movidos pelo mesmo Espírito. Essas correções do Evangelista eram necessárias como argumentos contra o Movimento Batista, ainda presente no fim do primeiro século, época em que o Evangelista escreveu sua obra. Como testemunha, o Evangelista simplesmente dispunha de melhores informações que seus colegas a respeito do início. Mateus ainda não tinha sido convocado a juntar-se ao grupo; Marcos e Lucas dependiam de informações de segunda mão. João é a fonte mais confiável quando as informações nos quatro Evangelhos não condizem. Voltemos aos seguidores do Batista que vieram reclamar perante seu mestre a “deslealdade” do grupo de Jesus, formado por ex-companheiros. 85 O posicionamento do Batista, “o maior dos nascidos de mulher”, como Jesus o definiu em Mateus 11.11, uma figura impressionante na divisória das duas épocas, na passagem da Antiga para a Nova Aliança, é comovente. Livre de orgulho e necessidade de reconhecimento público, ele reafirma sua posição já dada em 1.22 – 27,30. Ele novamente se definiu “precursor de outro maior”. Os seus seguidores parecem não ter dado a devida atenção às palavras de seu mestre. (27) Respondeu João (Batista): O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada. O Batista viu no resultado crescente de Jesus a obra de Deus. Todo esforço humano nas coisas de Deus dará em nada, se o próprio Deus não estiver agindo. Para o Batista essa era uma verdade óbvia. (28) Vós mesmos sois testemunhas de que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor. Não havia razão alguma para inquietação entre seus seguidores. João era o precursor, aquele que abriu o caminho. Ele havia chegado ao limite de sua atuação. O movimento crescente em volta de Jesus configurava sua própria missão como cumprida: ele havia anunciado Aquele que seria maior do que ele. (29) O que tem a noiva é o noivo; o amigo do noivo que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo. Pois esta alegria já se cumpriu em mim. A imagem de bodas era comum em Israel, quando se referia à chegada do Messias. As raízes dessa imagem vêm de Cantares. Aquele que tem a noiva é o noivo. A Jesus pertencia o Reino anunciado, não ao Batista. No entanto, o “amigo”, a pessoa mais importante do lado do noivo, a pessoa enviada para buscar a palavra da noiva, era o paraninfo. Assim que conseguiu conduzir a noiva ao noivo, sua alegria havia chegado ao clímax. Não havia outra alegria maior. “Esta alegria já se cumpriu em mim”, disse o Batista. A imagem das bodas como imagem escatológica entrou também no Novo Testamento. Jesus a usou várias vezes. João, Apóstolo, compara no seu Apocalipse o estabelecimento final do “Reino do Senhor nosso Deus” a uma festa de casamento. “Alegremo-nos, exultemos e demos glória, porque se aproximam as núpcias do Cordeiro. A Esposa está preparada...” (Apoc.19.7). (30) Convém que ele cresça e que eu diminua. Era propósito divino que o Batista, uma vez concluída sua missão, recuasse. “Convinha” diminuir. Logo, sem que nesse momento ele o soubesse, irá sucumbir num cárcere úmido e escuro e perder sua vida por causa do ódio de uma mulher (Marcos 6.14-29). Não fora isso que ele previa. Queria continuar a alegrar-se com o crescimento do ministério de Jesus. Não lhe fora reservada essa alegria. Nas suas últimas horas até dúvidas quanto à sua 86 missão o castigavam, mas Jesus, através dos mensageiros enviados, o lembrou das profecias. Importava a ele diminuir. Se desejamos que Cristo cresça em nossa vida, “convém” a nós que diminuamos. O exemplo do Batista nos mostra que esse “diminuir” não consiste em martírios voluntários, escolhidos por nós. Deus mesmo se ocupará em fazer o nosso “ego” murchar; inclusive nas assim chamadas “atividades religiosas”. • • • Você está disposto a permitir que Ele cresça? Você não pode crescer junto com Cristo, enquanto não o segue! Antes de reinar com Ele, Ele vai ensinar-lhe o “discipulado”, isto é: seguir atrás. Uma metáfora contada por R.Wurmbrand ilustra o nosso assunto: O Rei Ibrahim procurou Deus e não O encontrou. Uma noite, ele ouviu alguém usando botas pesadas andando no telhado do palácio. Subindo para ver quem era, viu que era o seu melhor amigo, que conhecia a sua busca espiritual. O Rei perguntou a ele: “O que você está fazendo aí em cima?” “Procuro camelos.” “Que tolice procurar camelos no telhado de um palácio”, exclamou o Rei, ao que o amigo respondeu: “Tolice é procurar Deus sentado num Trono”! (Richard Wurmbrand. Alcançando as alturas. Ed.Voz dos Mártires, pág.12) Cap. 3.31-36 (31) Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos (32) e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. (33) Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro. (34) Pois o enviado de Deus fala as palavras dele, pois Deus não dá o Espírito por medida; (35) O Pai ama ao Filho, e todas as coisas tem confiada às suas mãos. (36) Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho, não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus. Para quem, atentamente, estuda a vida de Jesus através dos quatro Evangelhos “canônicos” (aceitos pela Igreja, quando foram nomeados os livros que fariam parte do Novo Testamento) encontra grandes contrastes. Enquanto João, por várias vezes (assim em 1.10 ou 3.19), diz que “o mundo não o aceitou” e que “os homens amaram mais as trevas do que a luz”, os Evangelistas sinóticos não cansam de mencionar as multidões que o seguiam, querendo ouví-lo. Entendemos que o fato de alguém “estar em moda” não diz necessariamente respeito à aceitação do seu testemunho 87 (3.32). Muitos seguiram a Jesus, assim como hoje, quando observamos “a moda” de usar o nome de Jesus para tudo enquanto rende alguma coisa. O velho Apóstolo escreveu seu Evangelho com visão retrospectiva. Ele se lembra de tudo que viveu e na sua avaliação não consegue esconder sua profunda dor e a horrível impressão de que, afinal de tudo, Israel como um todo, havia rejeitado seu Senhor. Houve, sim, alguns que o aceitaram, testemunhando com sua fé a confiança na Palavra do Filho (1.12). A figura do Batista merecia especial admiração do Evangelista. Obediente à missão a ele confiada, não competiu pelo primeiro lugar. Ainda quando o Apóstolo, no fim de sua carreira, compôs a sua obra, ele sabia-se em íntima concordância com a visão espiritual que percebeu no seu antigo mestre. Ao encerrar suas considerações a respeito do Batista, o Evangelista resume para a Igreja aquilo que o Batista havia testemunhado perante seus seguidores. (31) Quem vem das alturas certamente está acima de todos; Entre Jesus e o Batista, junto com todos os “Grandes” no Reino de Deus, não há somente uma diferença gradual naquilo que “de cima” receberam. O que os diferencia é qualitativo, substancial. Quem vem da terra é terreno e fala da terra; Tanto o Batista quanto o Evangelista, você, seu pastor ou bispo ou papa, todos nós somos daqui, “da terra”. Essa condição determina todo nosso ser e nem os mais sublimes esforços religiosos e resultados mais exultantes nos permitem sair dessa condição “terrena”. A nossa autoridade na fala é limitada pela natureza à qual pertencemos; por aquilo que somos: humanos. Quem veio do céu está acima de todos. A superioridade, por assim dizer, é resultado da procedência. “Ser da terra” ou “vir de cima” constitue um contraste total e absoluto. Nenhum ser evoluído, partindo da terra, jamais conquistará no seu testemunho a autoridade daquele que veio “de cima”. A Gnose (ainda hoje) está em rota de colisão com as palavras do Evangelista João. De acordo com a filosofia grega, desde Platão, habita na alma de cada ser humano algo “de cima”, preso pelo corpo que, por sua vez, “é da terra”. Libertação da alma do cárcere do corpo significa “redenção”, assim diz a Gnose. O “Evangelho de Judas” (escrito meio século após o Evangelho de João como resposta dos “gnósticos” ao Evangelho de João) reafirma que: “... o espírito (humano) é uma centelha divina e por meio dele Deus pode viver no coração de qualquer humano. O corpo é sua prisão e da qual é desejável libertar-se. Jesus teria confessado a Judas que qualquer um de nós poderia se tornar um só com Deus por meio do 88 conhecimento do nosso espírito (da centelha divina). Bastaria encontrála, viajando dentro de si. A pessoa de Deus cai fora, pois o que dele precisamos já temos em nós. Não há necessidade de um sacrifício substituto (de Jesus); cada um pode livrar-se por si mesmo. Jesus teria se libertado pela destruição do seu corpo; Judas, por sua vez, sacrificou-se por lealdade ao mestre (VEJA, 27.12.06, “O homem que compreende Judas”). A religião católica romana guarda nas suas doutrinas restos da Gnose, parte da filosofia grega, quando afirma que em cada pessoa há uma “centelha” (restinho) “de Deus”. Simplificando poderíamos dizer assim: A Igreja ajudaria com seus meios no aperfeiçoamento dessa centelha divina e perdoaria o resto através de méritos, ritos e sacramentos. Não há necessidade de um “novo nascimento”; a Igreja melhora o que somos o suficiente para merecermos a entrada no céu. E Cristo crucificado? Na eucaristia estaria presente, garantindo “manter o padrão”! O Evangelho de João acaba de vez com esse estranho sincretismo. O homem todo é da terra. Salvação não é libertação de “algo preso em nós”. O homem inteiro precisa ser salvo, tanto no nível físico-corporal, psíquico (alma) quanto espiritual. (32) (Ele) testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. (33) Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro. O Evangelista reiterou no verso anterior que Jesus “veio de cima”. Jesus não é “mensageiro”; Ele representa Aquele que o envia (Deus). Há quem diz que Jesus se lembrava de como era no céu e graças às recordações que guardava de cima, enfrentou seu destino. Essa é uma concepção infantil. Não é isso que João afirma quando diz que Jesus (ao contrário dos demais servos de Deus) testificava o que tem visto e ouvido. Não foram “lembranças” que Jesus guardava. Era a comunhão ininterrupta e perfeita que mantinha com Seu Pai e a dependência (fraqueza) que O fez falar somente o que o Pai lhe disse e realizar somente aquilo que o Pai lhe mandou fazer. O Evangelista resumiu com grande tristeza: “...ninguém aceita Seu testemunho”; para imediatamente, como antes já fez, lembrar que “havia alguns” que, com sua decisão de fé, declaravam que Deus é verdadeiro. O homem pode “certificar” (atestar) que Deus é verdadeiro? Sim, ele pode: crendo. Com sua fé ele certifica que Deus não engana e não mente. Certa vez, Jesus classificou a incredulidade o maior pecado possível. Por que será? A negação de crer nas Palavras do Filho equivale à nossa declaração de que Deus é mentiroso. (34) Pois o enviado de Deus fala as palavras dele, pois Deus não dá o Espírito por medida; 89 Jesus é o verdadeiro Enviado por não falar nada de si; Ele fala somente “as palavras de Deus”. Somente o Filho pode falar palavras divinas, porque é Um com o Pai. Os profetas recebiam o Espírito “por medida”, exatamente para a execução de seu ministério. O Filho, porém, o recebeu “sem medida”, isto é: inteiro, completo, permanente. Ele não fala como um vendedor, que mede bem o estoque antes de vender certa quantidade do seu produto a seu cliente. No Filho temos “abundância”. (35) O Pai ama ao Filho, e todas as coisas tem confiada às suas mãos. (36) Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; ... João não diz: “quem crê em Deus...”; tampouco ele diz: “quem crê no Pai”... Menos ainda ele diz: “quem crê nos dogmas da Igreja...” Deus quer (ou pode) ser encontrado somente no Seu Filho. “Quem crê no Filho...”! Você agora entende melhor a palavra a respeito do caminho que leva ao Pai: “...ninguém vem ao Pai senão por Mim!”? (João 14.6) Confiando nas palavras do Filho, “temos a vida eterna”, ou melhor: vivemos dentro do Domínio de Deus. Não se trata de uma futura vida sem fim. Quando cremos, entramos no “aeon” (era) de Deus e estamos sob o Seu domínio. ... o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho, não verá a vida, João não diz: “... quem não crê...”. Ele vê fé como “obediência”, assim como o Apóstolo Paulo o fez em Romanos 1.16. Crer não é a concordância arbitrária (pode ou não concordar) com certas doutrinas e regras. Fé é obediência perante Aquele que nos trouxe a Luz. Não crer é manter-se rebelde, pois o Filho é Autoridade. Chegamos mais perto da realidade quando entendemos fé como ser conquistado pela verdade à qual agora obedecemos. “... mas sobre ele permanece a ira de Deus”. Esta é a única vez em que João fala da “ira de Deus”. Como pode o autor do “Evangelho do amor” falar em “ira de Deus”? Veja, o amor de Deus tem seu valor e eficiência somente quando reconhecemos como a nossa natureza o encara: rejeitando-o. E, apesar dessa nossa rebeldia, Deus nos ama. Esse último verso do capítulo 3 nos torna consciente da séria consequência que a nossa incredulidade (rebeldia) nos trará. Todos nós sabemos como é viver o pesadelo de pesadas dívidas. Viver sob a ira de Deus é incomparavelmente pior, pois vai para a eternidade. 90 É para aplacar a ira de Deus sobre a sua, sobre a minha cabeça, que Jesus morreu; pois quando aceito que Deus em Cristo o fez por mim, por amor e não por merecer, estou certificando que Deus é verdadeiro (3.33). Assim você, com corpo, alma e espírito, está livre para servir ao Deus verdadeiro. O corpo não é prisão, ele será templo do Espírito de Deus. Sobre isso falará a nossa próxima leitura. Cap. 4.1-17 (4.1) Quando, pois, o Senhor veio a saber que os fariseus tinham ouvido dizer que ele, Jesus, fazia e batizava mais discípulos que João (2) (se bem que Jesus mesmo não batizava, e sim os seus discípulos) (3) deixou a Judeia, retirando-se outra vez para a Galileia. (4) Era lhe necessário atravessar a província de Samaria. (5) Chegou, pois, a uma cidade samaritana, chamada Sicar; perto das terras que Jacó dera a seu filho José. (6) Estava ali a fonte de Jacó. Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte, por volta da hora sexta. (7) Nisto, veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber”. (8) Pois seus discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos. (9) Então, lhe disse a mulher samaritana: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana (porque os judeus não se dão com os samaritanos)? (10) Replicou-lhe Jesus:” Se conheceras o dom de Deus e que é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pediras, e ele te daria água viva”. (11) Respondeu-lhe ela: “Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? (12) És tu, porventura, maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, e , bem assim, seus filhos, e seu gado?” (13) Afirmou-lhe Jesus: “Quem beber desta água, tornará a ter sede; (14) aquele, porem, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der, será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. (15) Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise virar aqui buscá-la”. (16) Disse-lhe Jesus: “Vai, chama teu marido e vem cá; (17) ao que lhe respondeu a mulher: “Não tenho marido.” Replicou-lhe Jesus: “Bem disseste, não tenho marido; (18) porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”. O grupo de fariseus responsáveis no Sinédrio já havia observado com preocupação as atividades de João Batista, examinando-o por uma comissão enviada a ele (1.24ss). Se o Batista os preocupava, mais ainda foi o caso com Jesus que, aparentemente aumentando o movimento batista, continuava ministrando no Jordão. (4.1) Quando, pois, o Senhor veio a saber que os fariseus tinham ouvido dizer que ele, Jesus, fazia e batizava mais discípulos que João (2) (se bem que Jesus mesmo não batizava, e sim os seus discípulos) (3) deixou a Judeia, retirando-se outra vez para a Galileia. Jesus procurou evitar uma confrontação antes da hora. Aceitando que essa fase inicial de seu ministério tinha sido cumprida, voltou para sua terra ao norte. Assim como hoje a Cisjordânia praticamente divide o 91 Estado de Israel em duas partes (nordeste e sul), assim no tempo de Jesus, a região dos “Samaritanos” se interpôs entre a Judeia (no sul) e a Galileia (ao norte). O caminho mais rápido e mais curto do sul para o norte atravessava a tal “Samaria”. O historiador Josefo relatou: “Os apressados terão que usar a rota pela Samaria, pois só dessa maneira será possível, partindo da Galileia, alcançar Jerusalém no prazo de três dias” (Vita 52§ 269). O caminho alternativo pelo vale do Jordão era penoso e pouco usado. Os judeus ortodoxos, os fiéis, porém, o preferiam, pois desprezavam e, pior ainda, odiavam os Samaritanos. “Quem comer pão dos samaritanos é semelhante ao que come carne de cachorro” diziam as más línguas rabínicas. Os judeus fiéis à Torá esmeraram-se em evitar qualquer contato contaminador com os samaritanos. (4) Era lhe (Jesus) necessário atravessar a província de Samaria. Antes de continuarmos e para podermos captar a real mensagem de João transmitida nesse capítulo quarto, veremos primeiro quem foram os tais “Samaritanos” e como surgiram no meio da Palestina. No ano 722 antes de Cristo, os assírios destruíram a antiga Israel como nação unida, levaram embora a elite do norte e permitiam somente a um grupo de agricultores analfabetos permanecer no país. Em troca, trouxeram em cinco levas colonizadores assírios que, com o tempo, misturaram-se com o restante judeu (confira 2 Reis, 17.41). Aos olhos dos judeus de “Judá” (Jerusalém e região sul) os moradores da Samaria eram todos pagãos, pois os assírios haviam trazido consigo suas divindades. Mesmo assim, os da Samaria lutavam para serem reconhecidos como judeus. Como o acesso ao Templo em Jerusalém ficou-lhes vetado e para não continuar sem centro religioso, o governador assírio Sanballat mandou seu genro Manassés levantar no Monte Gerazim um templo com um sistema sacerdotal semelhante ao de Jerusalém. Com isso, a Samaria tornou-se independente quanto ao culto em Jerusalém. Com o decorrer do tempo, as divindades trazidas da Assíria perderam seu peso e, quando em 128 a.C. (durante a reforma dos Macabeus no sul), o sumo sacerdote judaico Hircano I mandou destruir o templo do Monte Gerazim, os samaritanos ficaram sem santuário para cultuar. Após uma devastação através de uma invasão de leões, os samaritanos resolveram retornar à religião antiga, judaica, e declararam o “Pentateuco” (os primeiros cinco livros do antigo Testamento) como sua “Torá”, sua “Lei”. Desde então, o culto samaritano com somente o Pentateuco como “Palavra de Deus”, continua a ser celebrado nas Sinagogas samaritanas. Foi essa a situação na época de Jesus. Ainda hoje existe na Cisjordânia uma pequena comunidade samaritana, uns 550 membros, que cultua na sua Sinagoga tendo como base o Pentateuco, desconhecendo todo o resto do cânon do Antigo Testamento. O tratado rabínico sobre Kutim (= samaritano) considera, portanto, uma parte do culto samaritano como “pagã” e outra como “judaica”. 92 O encontro de Jesus com a mulher samaritana costuma ser interpretado por alguns comentaristas como exemplo de um aconselhamento espiritual, psicologicamente bem estruturado, com uma pobre mulher moralmente arruinada. Como resultado do aconselhamento, costuma ser apontado o verso 24 (adoração a Deus em espírito e em verdade). Essa explanação moralista e superficial, pensamos, nada tem a ver com a mensagem de João. Veremos as provas do que dissemos: Não ouvimos nem uma única palavra de reconhecimento de culpa ou arrependimento da parte da mulher e nada de perdão, que nem é procurado, nem concedido. Nenhuma censura do relacionamento do concubinato atual da pobre pecadora que, conforme a Lei de Deus merecia o apedrejamento. Temos que admitir: Não nos vemos perante um aconselhamento espiritual ou moral. A interpretação psicológica da conversa é falha. Tampouco as repentinas mudanças de assunto são tentativas da pobre mulher para escapar de um julgamento. Toda a conversa serve ao Evangelista para levar Jesus a revelar-se perante a samaritana como Aquele que é: “Sou eu, que falo contigo” (v.26) e a marcar o momento histórico do início do trabalho missionário entre os samaritanos (conforme Strathmann, Cullmann e outros). Não há a menor dúvida de que houve um encontro entre Jesus e uma mulher samaritana. O texto faz parte da tradição “samaritana-cristã” do início do movimento cristão. Percebemos, no entanto, que a conversa como um todo, semelhante ao relato do casamento em Caná, deixa a impressão de que, por detrás do óbvio, existe outra mensagem e que o Evangelista a transmitiu no seu estilo típico de duplo sentido, usando um acontecimento para enriquecê-lo com a sua mensagem principal. (5) Chegou, pois, a uma cidade samaritana, chamada Sicar; perto das terras que Jacó dera a seu filho José. (6) Estava ali a fonte de Jacó. Jesus escolheu o caminho mais curto pela Samaria, contrariando os costumes dos judeus fiéis. Uns vinte minutos a pé antes de chegar à cidade de Sicar (hoje: Askar), ao pé do Monte Gerazim, encontra-se, ainda hoje, a “Fonte de Jaco´”. Não há menção direta dessa fonte no Antigo Testamento, mas tanto os samaritanos quanto os judeus estão seguros de que fora Jacó que cavara essa fonte. Trata-se de um poço não comum, cavado na parte inferior da rocha. Sua água, portanto, sobe do lençol freático, jorra do fundo e é fresca. Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte, por volta da hora sexta. (7) Nisto, veio uma mulher samaritana tirar água. A maioria dos comentaristas quer entender a hora sexta por “meiodia”. Conforme o calendário que se utilizar (que não sabemos qual foi o 93 usado por João) poder-se-ia tratar também tanto de seis da manhã como das seis da tarde. Costumava se tirar água dos poços no declinar do dia. Para nosso estudo não é de relevância se foi meio-dia ou seis da tarde: Veio uma mulher da cidade, embora essa cidade tenha sua própria fonte. Aqui já vemos como a figura da mulher samaritana começa a representar “os samaritanos” como comunidade distinta. Ela veio à procura de uma água melhor. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber”. (8) Pois seus discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos. (9) Então, lhe disse a mulher samaritana: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana (porque os judeus não se dão com os samaritanos)? A observação do Evangelista quanto aos discípulos ausentes é outro sinal. Não havia ninguém que nos poderia relatar a conversa, a não ser a própria tradição samaritana-cristã. O pedido de um judeu cansado, sentado junto ao poço, provocou a resposta, tanto admirada quanto cínica, da mulher (parafraseada): “Tu, judeu, (pois te reconheço pelas “quastas” no teu manto) quebras dois mandamentos culturais; primeiro, falando com uma mulher e, segundo, pedindo água a uma samaritana tida como “pagã”? Será que você quer água de uma samaritana mesmo?” Não sabemos toda a conversa que se criou entre a mulher e Jesus. A tradição nos deixou as frases principais que marcaram o encontro. Jesus respondeu a uma possível imposição da mulher, vendo-se solicitado por água por um judeu desconhecido, no sentido de que Ele também poder-lhe-ia oferecer água, mas outra água, melhor. (10) Replicou-lhe Jesus:” Se conheceras o dom de Deus e que é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pediras, e ele te daria água viva”. Ou a mulher não escutou bem ou ela não levou muito a sério “esse judeu”. Novamente sua resposta demonstrou uma mistura de cinismo e curiosidade. Como é que “esse judeu” lhe daria água “viva”? Nas regiões desérticas do Oriente Médio e, portanto, para a mulher, a “água viva” era a água do fundo, ali onde ela jorrava da pedra. Para pegar daquela “água viva” havia necessidade de equipamento, cuja presença ela não notou no judeu. O poço tinha uns trinta metros de profundidade (e ainda hoje a tem). Costumeiramente se tira água somente da superfície da água. Isso exige menor esforço. A curiosidade despertada inspirou a mulher a empregar na sua resposta o título “senhor” (não no sentido cristológico como SENHOR, mas como sinal de reverência). (11) Respondeu-lhe ela: “Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? (12) És tu, porventura, 94 maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado?” Outras traduções dizem “tu nem tens balde para tirar...”. A mulher não se deu por vencida. “O senhor quer ser maior que nosso pai Jacó, querendo que eu lhe peço por “água viva” uma vez que essa água fora boa o suficiente para ele, nosso pai, seus filhos e até seu gado?” (13) Afirmou-lhe Jesus: “Quem beber desta água, tornará a ter sede; (14) aquele, porem, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der, será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. Novamente percebemos como o Evangelista fala de maneira um tanto metafórica; na verdade, ele já está pregando. Para nós, que lemos seu Evangelho, Jesus diz que a “água que Ele der” acaba de vez com a nossa eterna procura por sentido na vida e tudo que isso implica. Mais ainda, essa água jorra “para a vida eterna”. Alguns comentaristas querem entender que a “água” (apontando para os sacramentos) jorraria para a vida eterna no sentido de “ajuda na conquista” dessa vida. De maneira alguma era isso que Jesus estava dizendo! A água dada por Ele jorra e desemboca na vida eterna. Ela já é o penhor da vida eterna. A mulher, no entanto, entendeu mais uma vez outra coisa. Sua visão limitada, tanto cultural como socialmente, fez com que ela ouvisse o seguinte: “Água milagrosa!” Ela imediatamente enxergou a possibilidade de um fim das andanças diárias, cansativas e repetitivas, em busca de água! Fim da eterna sede que sempre se renovava. Será que esse “judeu” tinha poderes mágicos que tornariam possível tudo isso? Supersticiosa, como ela (e como são todas as pessoas religiosas) era, imediatamente pediu: (15) Disse-lhe a mulher: “Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise virar aqui buscá-la. Ainda hoje muitos cristãos entendem a religião dessa forma. Prosperidade, que “milagrosamente” livra “o crente” do peso da ética e do peso da obediência à Palavra. Um milagre tornaria isso tudo desnecessário. Só importa saber “os truques”! (Precisamos enumerá-los aqui? Começou com o copo de água; depois veio a rosa benta; o sal grosso; o corredor dos pastores... e, pode ter certeza de que nunca acabarão enquanto houver religião como empreendimento...). Absolutamente não foi isso que Jesus havia sugerido à mulher samaritana. O diálogo foi tão impressionantemente mal sucedido, que entrou na tradição da Igreja e acabamos de tê-lo no Evangelho de João. A essa altura Jesus resolveu abrir o entendimento da mulher de outra forma. A imagem da água não conduzia a nada. 95 Quando conversamos com alguém, às vezes temos que mudar “o caminho” para chegar ao que queremos abordar. Foi esse o caso com a mulher samaritana. Aparentemente sem ligação direta com a conversa sobre a “água viva” (16) Disse-lhe Jesus: “Vai, chama teu marido e vem cá; (17) ao que lhe respondeu a mulher: “Não tenho marido.” O que Jesus queria com essa ordem? O que o marido da samaritana tinha com a questão da “água viva”? Pense a respeito! Cap. 4.18-29 (16) Disse-lhe Jesus: “Vai, chama teu marido e vem cá; (17) ao que lhe respondeu a mulher: “Não tenho marido.” Replicou-lhe Jesus: “Bem disseste, não tenho marido; (18) porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”. (19) “Senhor”, disse-lhe a mulher, “vejo que tu és profeta. (20) Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. (21) Disse-lhe Jesus: “Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. (22) Vós adorareis o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. (23) Vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. (24) Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. (25) “Eu sei”, respondeu a mulher, “que há de vir o messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas”. (26) Disse-lhe Jesus: “Eu o sou, eu que falo contigo”. (27) Neste ponto, chegaram os seus discípulos e se admiraram de que estivesse falando com uma mulher; todavia, nenhum lhe disse: “que perguntas?” ou :”por que falas com ela?”. (28) Quanto à mulher, deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àqueles homens: (29) “Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?!” Como vimos na leitura anterior, a mulher não conseguiu entender o que Jesus lhe queria dizer com o termo “água viva”. Presa mentalmente ao seu mundo cotidiano, a imagem de água era uma só. Jesus percebeu a limitação da mulher e assim Ele mudou o foco da conversa, pedindo à mulher que lhe apresentasse seu marido. A partir desse momento, todo o diálogo assume características metafóricas; isto é, o Evangelista está fazendo uso de imagens para transmitir sua mensagem. Jesus havia notado que a essa mulher não interessava tanto a água, mas sim, o que “esse judeu” tinha a mais do que ela; em que a religião dele era mais correta do que a dela. Se alguém pudesse ajudá-la na elucidação dessa questão talvez fosse este judeu. Ele era diferente. Não se envergonhara de dialogar com ela - coisa abominável para judeus fiéis. Como já sabemos, Jesus havia solicitado à mulher samaritana a apresentação do marido, ao que esta respondeu que não tinha. 96 Replicou-lhe Jesus: “Bem disseste, não tenho marido; (18) porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”. Ao invés de demonstrar humilhação ou até vergonha perante as revelações de Jesus, a mulher concordou, entusiasmada. Demonstrou espanto e admiração: (19) “Senhor”, disselhe a mulher, “vejo que tu és profeta”. Nenhuma palavra a mais quanto à sua vida pessoal é proferida e não notamos qualquer interesse de Jesus em avaliar ou repreender a mulher. Se Ele lhe havia dito o que era realidade na sua vida particular, seguramente lhe poderia com a mesma clareza falar da razão do desprezo dos judeus pela sua religião samaritana. (20) Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. Jesus não se mostrou interessado em definir o lugar certo para adoração. O Evangelista veladamente desenhou em seu relato da (suposta?) conversa de Jesus com a samaritana a situação religiosa dos samaritanos. Como judeu, ele deve se lembrar que os cinco maridos que a mulher já teve e o marido atual que “não era seu marido” correspondiam perfeitamente à situação da Samaria descrita em 2 Reis 17.24-34. Com efeito, depois da destruição do reino do norte, cinco tribos babilônicas se estabeleceram na Samaria. Elas trouxeram suas divindades; porém, depois, adoraram igualmente JHV (Jahwé). As relações matrimoniais da samaritana têm, sem dúvida, no conjunto do relato, a finalidade de ilustrar, seguindo o exemplo do profeta Oséias, o culto “ilegítimo” de Samaria, cujos habitantes, segundo Siraque 1.25-26, “não são um povo”. O problema dessa mulher era muito mais espiritual do que matrimonial. (21) Disse-lhe Jesus: “Mulher, podes crer-me que a hora vêm, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Antes de tudo, Jesus levantou a esperança da mulher ao anunciar que certamente viria a hora em que as diferenças entre judeus e samaritanos não mais seriam essenciais, mas secundárias. Qualquer culto ligado a um determinado lugar perderá sua validade. (22) Vós adorareis o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Na atual situação, mesmo com todo o Pentateuco nas mãos, vocês, samaritanos, ainda não conhecem Aquele ao qual procuram adorar. Na segunda parte do verso, o Apóstolo João fala não mais só com a mulher, mas com toda a Igreja como quem já viu a Salvação. Ele usa o “nós”. Quem eram esses “nós”? Certamente não os judeus na sua religião legalista e cega. 97 “Nós adoramos o que conhecemos” (“... o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da Vida... e dela damos testemunho...” 1.João 1.1,2). Você percebe? João não fala mais como judeu, nem são as palavras de Jesus à samaritana proferidas neste verso: são as palavras do Apóstolo à Igreja primitiva cristã. “... porque a salvação vem dos judeus”. Durante o terror nazista, essa parte do verso teve de ser eliminada em todos os livros e Bíblias oficiais do “Terceiro Reich” de Hitler. Na constatação acima não se trata de um anexo posterior, como alguns comentaristas racistas sugerem. Por que razão a Igreja acrescentaria essa frase “provocante” aos manuscritos, quando “os judeus” (no sentido usado por João) mais e mais se tornavam “inimigos” (por causa de Cristo) da nova igreja cristã? Não, Jesus deixou claro que, apesar de que no Reino de Deus não mais haveria discriminação racial e que todas as condições humanas, exteriores, se tornariam sem valor, a Salvação em si viria do povo eleito. Para todos os “não judeus” o fato de o Salvador vir do povo judeu era e continua sendo um “escândalo”. Esta realidade faz parte do Evangelho ( 1 Cor 1.23). (23) Vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. (24) Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. Em compensação à resposta negativa do verso 21, o Evangelista fala da adoração verdadeira que Deus - tanto da parte dos samaritanos quanto da dos judeus e dos gentios – , quer. Não será esse um culto de adoração mística, contemplativo, nem de festa e barulho (como já fora condenado na Antiga Aliança pelos profetas Isaias (1.11) e Amós (5.20ss)). Qualquer culto exterior não atenderá à adoração em espírito e verdade, pois é humano e, portanto, inverídico. Deus é espírito. O que essa afirmação quer dizer? No sentido de João ela significa que, se Deus é a Luz que alumia o homem, Ele não deixará o mesmo na escuridão (1João 1.5) ou: se Deus é amor (1.João 4.8), Ele, incondicionalmente, ama aos homens. Se João diz que “Deus é espírito”, ele aponta para a maravilhosa obra de Deus no interior do homem, dando-lhe Seu Espírito e providenciando-lhe o “Novo Nascimento”. Somente dentro dessas “condições da Graça” podemos, melhor, “devemos adorar a Deus” (verso 24). Qualquer culto de adoração produzido pelo homem, fora dessa condição, revela-se ultrapassado com a Vinda do Filho. (25) “Eu sei”, respondeu a mulher, “que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas”. A mulher entendeu que Jesus estava falando do tempo vindouro, mas não 98 prestou atenção no “... a hora já chegou”. Para a mulher samaritana tudo ainda era visão escatológica. Ela, como samaritana, também esperava o Messias (para eles é o “Ta’eb” = “aquele que está retornando”). Mas quando será que “ele” virá para anunciar também a eles “todas as coisas”? Você percebe: Agora ela estava na condição de “ouvir” aquilo que, com a conversa a respeito da “água viva”, não havia sido possível. (26) Disse-lhe Jesus: “Eu o sou, eu que falo contigo”. A mulher não mais precisava esperar! A Igreja não mais precisa esperar! A uma mulher samaritana fora revelado o que ao próprio povo de Jesus ainda continuava desconhecido. Nessa autorrevelação de Jesus perante uma “pagã” está o ponto culminante da conversa toda. A arte literária do Evangelista é fenomenal. Está nos abrindo a mente, passo a passo, junto com a mulher samaritana. Quem era esse viajante cansado sentado junto ao poço? Um judeu? Um senhor que merecia respeito? Um profeta com poderes mágicos? Um judeu que falava bem das coisas de Deus? Agora ela aceita: É o Messias, esperado tanto pelos judeus quanto pelos samaritanos. (27) Neste ponto, chegaram os seus discípulos e se admiraram de que estivesse falando com uma mulher; todavia, nenhum lhe disse: “que perguntas?” ou: “por que falas com ela?”. Magistralmente o Evangelista encerra o diálogo entre Jesus e a mulher samaritana. Seus seguidores chegam, animados e munidos com alimentos. Eles estranham encontrar seu Mestre conversando com uma mulher samaritana. “Indigno para o homem é conversar com mulher” (Provérbios dos Pais, 1.5). Mas o respeito para com o seu Mestre impede que lhe abordassem a respeito. Com a chegada dos homens, a mulher se levanta e sai correndo, esquecendo até seu balde com o qual pensava tirar água. (28) Quanto à mulher, deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àqueles homens: (29) “Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?!” Até a chegada dos amigos e vizinhos da mulher, curiosos pelo estranho relato da samaritana, passará certo tempo. Jesus aproveitará esse intervalo para ensinar aos seus seguidores alguns princípios básicos para qualquer serviço missionário. Você percebeu que Jesus, pessoalmente, iniciou a missão cristã na terra dos samaritanos? 99 O trecho de 31 a 39 abrirá a nossa visão, pois aparecerão ramificações no Evangelho de Lucas e nos Atos dos Apóstolos. Quem serão esses “outros” do verso 38? • Você está pronto para outra aventura nos passos do Evangelista João? Cap. 4.30-42 (30) Saíram, pois, da cidade e vieram ter com ele. (31) Neste ínterim, os discípulos lhe rogavam, dizendo: “Mestre, come!” (32) Mas ele lhes disse: “Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis”. (33) Diziam, então, os discípulos uns aos outros: “Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer?” (34) Disselhes Jesus: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra. (35) Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois já branquejam para a ceifa. (36) O ceifeiro recebe desde já a recompensa e entesoura o seu fruto para a vida eterna; e, destarte, se alegram tanto o semeador como o ceifeiro. (37) Pois, no caso, é verdadeiro o ditado: “Um é o semeador, e outro é o ceifeiro. (38) Eu vos enviei para ceifar o que não semeastes; outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho. (cont) (39) Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, em virtude do testemunho da mulher, que anunciara: “Ele me disse tudo quanto tenho feito”. (40) Vindo, pois, os samaritanos ter com Jesus, pediam-lhe que permanecesse com eles; e ficou ali dois dias. (41) Muitos creram nele, por causa de sua palavra, (42) e diziam à mulher: “Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo.. O Apóstolo João se interessava de maneira especial pela origem da pregação do Cristo ressurreto para um povo que não era o judeu: a missão em Samaria. Ele quer pôr em evidência que esse trabalho teve como autor o próprio Jesus, se bem que Este durante sua vida tenha recomendado aos seus evitar “as cidades de Samaria”. Esse relato de João 4 respondeu à acusação que certamente foi suscitada entre os primeiros cristãos de origem judaica após a morte de Jesus: a missão nesse país semijudeu, tão infiel ao plano divino, corresponde à vontade de Jesus? Reinava um forte sentimento de rejeição aos samaritanos e os discípulos, futuros Apóstolos, não ficaram isentos a ele. Mateus registra a ordem expressa de Jesus: “Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em nenhuma cidade de Samaria” (Mat.10.5). Os Doze guardaram essa ordem nas suas memórias. Lembramos que os samaritanos não reconheceram mais do que o Pentateuco, do qual haviam, ademais, modificado o texto. No mais, recusavam o culto do Templo de Jerusalém. 100 Após a morte de Jesus, Samaria representou a primeira etapa no trabalho missionário pós-Páscoa. Era sumamente importante para os primeiros cristãos terem a certeza de trabalharem segundo a vontade de Cristo quando se dirigirem a esse país. Lucas, que escreveu seu Evangelho com base em informações colhidas, nos traz material que não consta nos Evangelhos. Ele lembra, certa vez, da intenção de Jesus de fazer em sua viagem à Jerusalém um descanso em Samaria. Enquanto que os discípulos, ante a atitude dos samaritanos de não quererem recebê-lO e por isso pedem que desça fogo do céu para eliminar esses samaritanos, são repreendidos por Jesus (Lucas 9.51ss). No mesmo Evangelho lemos em 10.30ss a parábola do “bom samaritano”, que implicitamente condena preconceitos raciais e colocou os deveres para com o serviço no Templo em segundo plano. Em Lucas 17.1ss lemos que, entre dez leprosos curados por Jesus, somente o samaritano se prostrou diante dEle para dar-lhe graças. Temos de um lado a ordem de Jesus aos seus seguidores de não entrarem na Samaria enquanto Ele viver. Sabemos que esta ordem não fora resultado de sentimentos de superioridade, pois várias vezes na sua fala Jesus colocaram o samaritano acima do judeu (veja exemplos acima), fato esse que deve ter aborrecido bastante seus ouvintes judeus. Em João 12.20ss lemos de alguns “gregos” que queriam ver Jesus. Esses “gregos” tinham vários pontos de vista em comum com os samaritanos; também rejeitaram o culto no Templo. Jesus não os atende, dizendo que era chegada a hora da glorificação e que o grão tinha que, primeiro, cair na terra para dar fruto. Em outras palavras, o mesmo Jesus que, pessoalmente iniciou o trabalho missionário na Samaria (cap.4), não queria que seus seguidores iniciassem o trabalho ali antes de sua morte e glorificação. O texto que lemos hoje nos dará algumas dicas a respeito. Enquanto Jesus estava acima de ressentimentos religiosos e culturais, seus discípulos ainda não estavam. Jesus não se revelou interessado na propagação do “Messias”, pois essa notícia sem a consumação da redenção (morte e ressurreição) e sem a descida do Espírito Santo levaria a nada. Os discípulos fora de Israel, em “terra pagã” (e Samaria era vista como tal), somente anunciariam o Messias judaico, superior ao “Ta’eb” dos samaritanos. Para atuar entre gentios, anunciando-lhes a Boa Nova da mesma condição de aceitação no Reino como era válida para os judeus, Deus ainda tinha muito trabalho a realizar nos próprios discípulos (confira Pedro em Atos 10)! Enquanto as pessoas alertadas pela mulher samaritana não chegaram, o Evangelista aborda no seu estilo metafísico verdades básicas proferidas por Jesus quanto ao trabalho missionário, especificamente aplicados ao povo da Samaria. 101 (31) Neste ínterim, os discípulos lhe rogavam, dizendo: “Mestre, come!” (32) Mas ele lhes disse: “Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis”. Os discípulos, certamente apressados e com sua mente ocupada com a refeição merecida, encontraram o Mestre visivelmente desinteressado. Mais ainda: Ele parecia estar em outro mundo, alheio à boa vontade dos discípulos. Sua fome já não existia. Jesus ainda via na sua mente a mulher saindo correndo com a notícia de que havia encontrado, quem sabe, o Messias anunciado. Nunca Jesus havia notado no seu próprio povo tal disposição em saber do Enviado! (33) Diziam, então, os discípulos uns aos outros: “Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer?” Presos mentalmente, assim como a mulher à água do poço, os discípulos procuraram interpretar as palavras enigmáticos do Mestre. Será que alguém os precedeu em alimentá-lo? Podemos imaginar sua decepção; foram correndo em busca de alimentos e agora o Mestre lhes revela possuir outra comida, obviamente melhor e desconhecida por eles! (34) Disse-lhes Jesus: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra. O que os discípulos podiam perceber era uma mulher que saiu correndo. Havia conversado com seu Mestre e, como era contra a tradição, eles não haviam aprovado no seu íntimo essa atitude do seu Mestre. Sim, a vontade do Pai era santa e sublime e esta seu Mestre estava prestes a realizar. Conversar com uma mulher pagã era obra do Pai? Desde quando? Uma conversa valia como alimento? Antes, na sua caminhada pelo campo rumo a Sicar, eles haviam observado as plantações à beira do caminho. Na Palestina as semeaduras acontecem em outubro ou novembro e a colheita é feita em abril. Os campos que Jesus e seus discípulos viam diante de si quatro meses antes da ceifa, todavia estavam verdes. Era dezembro; ainda faltavam quatro meses para a ceifa. Jesus lembrou seus seguidores da conversa que tiveram enquanto andavam. (35) Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois já branquejam para a ceifa. Enquanto Jesus falava, Ele levantou o braço. “Erguei seus olhos!” – Ele referiu-se a outro campo: com o dedo Ele intentou assinalar o grupo de samaritanos aparecendo, vindos correndo de Sicar por causa do testemunho da mulher. Esses vieram para conhecer o homem do qual a mulher disse que lhe “dissera tudo”. Empregando a imagem dos campos, Jesus completou: “veja, já são brancos para ceifa!”. Ele comparou o grupo que vinha se aproximando com um campo pronto para colheita. 102 (36) O ceifeiro recebe desde já a recompensa e entesoura o seu fruto para a vida eterna; e, destarte, se alegram tanto o semeador como o ceifeiro. Conquanto normalmente decorra um tempo entre semeadura e colheita, Jesus viu o campo onde o semear e a colheita coincidem: nos samaritanos, o tempo da colheita já tinha chegado. A colheita feita por Jesus no momento em que o povo de Sicar aflue em direção a Ele não foi mais que uma antecipação da verdadeira colheita que, depois da morte de Jesus, ficou reservada aos Apóstolos em Samaria (Atos 8.14ss). (37) Pois, no caso, é verdadeiro o ditado: “Um é o semeador, e outro é o ceifeiro. No campo de trigo o dito é verdadeiro: um é o semeador, outro é o ceifeiro. Na visão histórica da Igreja será assim; mas não para o indivíduo. A história exige tempo. O Apóstolo João, na sua idade avançada, entrou no campo onde Paulo havia semeado com muitas dificuldades (Éfeso). Assim um semeou e outro colheu. Na verdade, tanto semeamos o que outros mais tarde colherão e colhemos o que outros semearam. No encontro pessoal com o Filho não é assim. Não, com a Presença da Palavra, a semeadura e a colheita acontecem juntas. “Em verdade. Em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para vida (João 5.24). • Você já ouviu o chamado do Senhor Jesus? Siga-O! Você quer tempo para ver se algo cresce ou não? Não é assim! O campo de trigo é uma coisa; seu coração é outra. Aqui o chamado e a resposta se unem; aqui é que acontece o julgamento (confira 3.18). (38) Eu vos enviei para ceifar o que não semeastes; outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho. Por detrás dos Apóstolos que mais tarde colherão, se encontra, todavia, Jesus. O mesmo que aconteceu junto ao poço de Jacó, onde Jesus semeou e colheu ao mesmo tempo, se repetirá em breve na missão que os discípulos organizaram depois de sua morte. Esse verso, dito à Igreja com a autoridade do velho Apóstolo, quer dissipar os preconceitos existentes relacionados a esta obra missionária que se embasava, provavelmente sem razão, sobre a frase de Jesus, referida por Mateus: “Não entreis em nenhuma cidade de Samaria”. Quem seriam esses “outros” que trabalharão e no campo deles os Apóstolos depois entrariam? Como o nosso estudo se limita ao Evangelho de João faremos só um breve resumo a respeito desses “outros” que precederão os Apóstolos e mencionados por João. 103 O livro de Atos nos diz que a missão em Samaria foi inaugurada pelos “helenistas”, em particular por Filipe, um dos “sete” (diáconos) e que só depois os Apóstolos Pedro e João se fizeram responsáveis pelo seu campo. “Os Apóstolos em Jerusalém, ouvindo que Samaria havia aceitado a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João” (Atos 8.14). Outro “helenista” da primeira geração cristã era Estevão. Pelo discurso de Estevão (Atos 7) conhecemos as ideias teológicas particulares desse grupo; eles condenavam o Templo. Estevão apresentou, como cúmulo da infidelidade do povo judeu, a construção do Templo de Salomão, enquanto que “o todo poderoso não habita no que é feito por mãos humanas”. Essa ideia valeu a Estevão o apedrejamento por parte dos judeus e estas mesmas ideias estão na base da primeira perseguição aos cristãos (Atos 8,1). Os “Doze” não compartilhavam das ideias helenistas sobre o culto do Templo e não foram solidários com os helenistas no momento da perseguição, podendo permanecer em Jerusalém. “...e todos, exceto os Apóstolos, foram dispersados pelas regiões da Judeia e Samaria” (Atos 8.1). Só conhecemos os nomes dos “sete” (Atos 6.5). Havia mais “outros” que levaram o Evangelho à Samaria como a primeira região “pagã”. O fato de os samaritanos também rejeitarem o culto do Templo lhes facilitava o início de seu trabalho. Posteriormente os Apóstolos assumiram a responsabilidade. (Mais informações específicas sobre este tema você encontra no livro: Oscar Cullmann, Os origens do Evangelho, Ed.Novo Século, 2000) (30) Saíram, pois, da cidade e vieram ter com ele. (39) Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, em virtude do testemunho da mulher, que anunciara: “Ele me disse tudo quanto tenho feito”. (40) Vindo, pois, os samaritanos ter com Jesus, pediam-lhe que permanecesse com eles; e ficou ali dois dias. (41) Muitos creram nele, por causa de sua palavra, (42) e diziam à mulher: “Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo. O título “Salvador do mundo” aparece só duas vezes no Novo Testamento. Nas duas vezes é João que o emprega. Na segunda vez o encontramos na sua “Primeira Carta” 4.14. “... temos visto e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo”.Você se lembra de outra menção do mundo como objeto de amor divino? Certo! João 3.16! “Deus amou o mundo ...”. Você percebe que está incluso nesse amor incomparável? O papel da mulher samaritana é reconhecido. Ela serviu de testemunha. Mas no encontro pessoal com Jesus “muitos samaritanos” creram nEle, porque O ouviram. 104 • Você creu porque sua amiga, seu amigo lhe falaram? Ou - como no caso dos samaritanos -, “você mesmo tem ouvido a Sua voz no Evangelho” e respondido, crendo? • Comida previamente mastigada pinguim recém-nascido. pode ter utilidade para • A você, Deus está para falar pessoalmente através de Sua Palavra que você tem em suas mãos. Não fuja, não se esconda, não finja “esperar a hora certa”. – Responda a Ele! Cap. 4.43-45 (43) Passados dois dias, partiu dali para a Galileia. (44) Porque o mesmo Jesus testemunhou que um profeta não tem honra na sua própria terra. (45) Assim, quando chegou à Galileia, os galileus o receberam, porque viram todas as coisas que ele fizera em Jerusalém, por ocasião da festa, à qual eles também tinham comparecido. (43) Passados dois dias, partiu dali para a Galileia. (44) Porque o mesmo Jesus testemunhou que um profeta não tem honra na sua própria terra. Passados dois dias de extensas conversas com os cidadãos samaritanos, Jesus dirigiu-se à Galileia, sua terra, ao norte. Os comentaristas bíblicos, em sua grande maioria, entendem da seguinte forma algo aparentemente contraditório nos verso 44 e 45: “Porque” Jesus sabia que em sua própria terra não chamaria tanta atenção (tal qual acontecera quando ministrava na Judeia onde chamou a atenção perigosa das autoridades religiosas, cap.4.1,2), e desejando ministrar sem correr o risco de novos confrontos, Ele decidiu voltar à Galileia. Ali, com exceção de Nazaré, onde havia sido expulso da Sinagoga (o que sabemos por Marcos 6.1-6), Ele fora bem recebido pelos seus compatriotas. (45) Assim, quando chegou à Galileia, os galileus o receberam, porque viram todas as coisas que ele fizera em Jerusalém, por ocasião da festa, à qual eles também tinham comparecido. João não especifica quais foram tais “todas as coisas” que Jesus operava em Jerusalém. Esses feitos, todavia, haviam impressionado profundamente os peregrinos vindos da Galileia, que agora receberam de braços abertos o seu compatriota famoso. • Você considera muito difícil acreditar em tudo que o Evangelista quer apresentar? Você tem a sua própria opinião? Não estamos, afinal, naquele tempo obscuro!? Você tem seu próprio julgamento das palavras da Bíblia - em nosso caso, do Evangelho? 105 Vamos, mentalmente, dar um salto na história e vir para a metrópole francesa do século 21. Um turista percorre entediado as galerias de arte do Louvre, em París, e comenta com um dos guardas: “Não vejo nada de excepcional nestes quadros”. O guarda lhe respondeu: “Não somos nós, senhor, quem julgamos os quadros; são eles quem nos julgam”. Quando consultamos certos teólogos modernos, percebemos que eles não estão vendo “nada de excepcional” no Evangelho. Dois mil anos após o fato e sem nenhum conhecimento direto da cultura e das questões linguísticas da época de João, eles fazem seus julgamentos; ousam saber discernir o que era fato e o que era mito. São os turistas que nada de excepcional percebem no “quadro de Cristo” que o Apóstolo nos apresenta. Trazem o Santo Evangelho ao nível de sua formação intelectual (limitada e condicionada), ditada pelas correntes da teologia contemporânea. Eles não enxergam o sol. C.S.Lewis fez um comentário memorável a respeito da ignorância, cegueira e altivez dos que “desossam” o Evangelho, querendo julgar seu conteúdo com a mente do século vinte (Fern-seed Elephants and other Essays on Christianity. Hooper/Collins, 1975). Quanto mais meditamos no Evangelho segundo João, mais nitidamente percebemos o enorme cuidado do Evangelista na compilação dos primeiros capítulos de seu relato enquanto dissecou “o rosto do Cristo Eterno”. A composição da obra, seguramente, estendeu-se por anos e anos. João deixou de lado o que os Evangelistas sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), décadas atrás, já haviam relatado e acrescenta cuidadosamente o que, de acordo com a sua própria compreensão, ainda faltava. Não foram os dados biográficos que preocupavam a mente do Discípulo idoso. Pesava sobre ele a responsabilidade da situação da Igreja que havia começado a se formar e a desenvolver suas próprias crenças. O Apóstolo viu os perigos que essas congregações corriam. Era necessária uma abordagem que definisse de vez quem era Jesus para a Igreja, pois esse reconhecimento decidiria sua sorte perante as demais crenças ofensivas. Os comentários cínicos de Celso sobre os “bandos de idiotas e incultos” nos dão uma ideia de como eram vistas as primeiras congregações cristãs pelos seus oponentes e como havia necessidade de uma luz (Orígenes contra Celso, 3.44-55). Veja com que cuidado João estruturou a base da fé nos primeiros quatro capítulos de seu Evangelho e como ele apresenta a pessoa de Jesus. Faremos uma breve recapitulação do que, até agora, temos lido: O leitor sabe, pelo primeiro capítulo, que Jesus é o Verbo Eterno, o “Logos” de Deus. Jesus não é resultado da evolução. Ele veio de fora, da Eternidade, do Pai (observação: os textos bíblicos foram divididos em capítulos aproximadamente mil anos mais tarde; João não conheceu as nossas sub-divisões). No segundo capítulo entendemos que, com Jesus, o ritualismo como condição religiosa havia chegado a seu fim (Caná) e que Deus não exige e nunca exigiu sacrifício, mas sim, obediência. Sacrifício já previa, 106 por si só, desobediência e servia tão somente como meio emergencial para retornar à presença de Deus. Mas a prática do sacrifício havia assumido o lugar do verdadeiro “culto”. É por essa razão que o Apóstolo teve a coragem de colocar o incidente no Templo (a assim chamada “Purificação do Templo”) no início do seu Evangelho - quando historicamente seria mais correto deixá-lo como acontecimento anterior à última Páscoa, como o fazem os Evangelistas sinóticos. No terceiro capítulo (conversa com Nicodemos) João deu um passo a mais: A vida eterna, isto é, a vida “sob o domínio de Deus”, não é resultado de uma subida em degraus na santidade (religião!), mas resultado de uma renovação completa e radical, um “novo nascimento” operado pelo Espírito de Deus, aonde há verdadeiro arrependimento (água!). Essa transformação é fruto da fé. No capítulo quarto, o Evangelista definiu a natureza da fé. Os samaritanos, visto como pagãos, “creram” na Palavra de Jesus. Eles não exigiam sinais como o faziam os da Judeia e como era a fé inicial dos discípulos (2.11). Fé na Palavra de Jesus é o primeiro estágio, mas não é seu final. No texto que segue, o Evangelista dará o último passo rumo à definição da pessoa de Jesus e da natureza da fé. Não será mais fé por causa de um milagre (cap.2), nem fé por causa de palavras, mas, sim, fé na pessoa de Jesus. A fé das comunidades surgidas no tempo de João, assim como a nossa fé - se verdadeira -, tem sua razão numa pessoa: Jesus, Filho de Deus. Fé é a obediência (sem questionamento), inabalável, em Deus; manifestada na prática da vida, fundamentada nos ensinamentos, ações e atitudes do Senhor Jesus. Somente essa fé é capaz de crer quando nada se vê, quando nada acontece, e quando Deus continua calado. A fé em Jesus independe das circunstâncias. Ela é a confirmação ativa da nossa parte de que “Deus é verdadeiro” (João 3.33). • Reflita sobre o caráter de sua fé! Compare-a à confiança de uma criança pequena na sua mãe. A pequena não questiona nem exige prova. Ela descansa na presença da mãe. Sua fé é assim? • ou ela está cobrando alguma coisa de Deus para ser “efetiva”? • Você crê nos milagres, bênçãos, promessas e respostas de oração ou você crê na pessoa de Jesus, assim como o neném crê na presença e onipotência da mãe? • Você agora entende por que “crer” é “descansar”? “Senhor, ajuda-me na minha falta de fé!” (Marcos 9.24). 107 Cap. 4.46-54 (46) Dirigiu-se, de novo, à Caná da Galileia, onde da água fizera vinho. Ora, havia um oficial do rei, cujo filho estava doente em Cafarnaum. (47) Tendo ouvido dizer que Jesus viera da Judeia para a Galileia, foi ter com ele e lhe rogou que descesse para curar seu filho, que estava à morte. (48) Então, Jesus lhe disse: “Se, porventura, não virdes sinais e prodígios, de modo nenhum crereis”. (49) Rogou-lhe o oficial: “Senhor, desce, antes que meu filho morra. (50) “Vai”, disse-lhe Jesus, “teu filho vive”. O homem creu na palavra de Jesus e partiu. (51) Já ele descia, quando os seus servos lhe vieram ao encontro, anunciando-lhe que o seu filho vivia. (52) Então, indagou deles a que hora o seu filho se sentira melhor. Informaram: Ontem, à hora sétima a febre o deixou. (53 Com isto, reconheceu o pai ser aquela precisamente a hora em que Jesus lhe dissera: Teu filho vive; e creu ele e toda a sua casa. (54) Foi este o segundo sinal que fez Jesus, depois de vir da Judeia para a Galileia. (46) Dirigiu-se, de novo, à Caná da Galileia, onde da água fizera vinho. João atesta que Jesus voltou à Caná, vilarejo de onde veio seu discípulo Natanael (21.2) e onde Jesus e sua família foram convidados a um casamento – dias ou semanas atrás (cap.2). A notícia da chegada do famoso “operador de milagres” logo chegou à Cafarnaum, cidade de Tiago e João. Ali havia um Centro de Coleta de Impostos e provavelmente alojava um posto militar romano. Ora, havia um oficial do rei, cujo filho estava doente em Cafarnaum. O “oficial do rei” mencionado por João era oficial do tetrarca Herodes Antipas, o mesmo “Herodes” dos Evangelhos (exceto Mateus 2 e Lucas 1). O filho desse homem importante encontrava-se gravemente enfermo. A medicina, naquela época, conheceu poucos recursos. Não sabemos se o homem era judeu (pouco provável) ou se ele pertencia aos “gentios”. Em nosso Estudo de Marcos citamos algumas práticas dos curadores judaicos daquele tempo. Sem artifícios mecânicos ou químicos à disposição, o Talmude (Livro da Tradição Judaica) reconheceu como métodos lícitos: • • “murmurar” sobre o doente, sempre que a doença não indicava implicação demoníaca; imposição das mãos; tocar a parte enferma do corpo ou massagem ou esfregar saliva com as mãos. • Como melhor recurso para o judeu havia a prece, pois o êxito de uma cura sempre dependia da graça Divina. Não sabemos se o oficial era romano; neste caso o pai não se via em condições de recorrer à ajuda de curadores judaicos, pois, por causa da contaminação cerimonial, a nenhum judeu era permitido entrar na casa de gentios. Os romanos tinham suas próprias práticas, talvez um pouco mais adiantadas, mas, no caso específico, a febre do filho gravemente enfermo não baixava, apesar de todo o esforço do desesperado pai (confira verso 52). 108 (47) Tendo ouvido dizer que Jesus viera da Judeia para a Galileia, foi ter com ele e lhe rogou que descesse para curar seu filho, que estava à morte. O autor mostra conhecimento geográfico. O próprio oficial, tendo recebido a notícia da chegada do homem curador nas montanhas da Galileia, se pôs a caminho. No seu desespero venceu a subida tortuosa e cansativa até Caná, a 27 km de distância em linha reta. Esse oficial era um homem acostumado a dar ordens. Enquanto apressadamente subiu, martelava na sua mente o seguinte pensamento: Esse Jesus terá que descer imediatamente, pois meu filho esta à morte. Se Jesus atrasar e o filho vier a morrer, tudo está perdido. Diz João, que o oficial exausto “rogou para que Jesus descesse para curar seu filho”. Imagine a cena! Uma só preocupação movia o oficial: Curador Jesus, salve meu filho! Há alguns comentaristas que querem ver falto de fé “reta” no homem, porque estava interessado somente na cura de seu filho. Até o acusam de não ter tido levado em conta que Jesus também poderia ressuscitar o filho caso esse morresse antes da chegada de Jesus e que, portanto, não havia razão para tanta pressa! Ridículo! Pergunto: Estamos com os nossos pés no chão ou não? Quem de nós não clamaria, da maneira como o oficial o fez? Este nem exigiu uma prova do desconhecido curador para recorrer a ele. Assim, portanto, não revelou fé? Sim, foi fé no poder milagroso de Jesus. O que mais o oficial poderia apresentar? O que ele fez de errado para provocar o seguinte desabafo de Jesus? (48) Então, Jesus lhe disse: “Se, porventura, não virdes sinais e prodígios, de modo nenhum crereis”. O Apóstolo usou esse incidente (e deve ter havido muito outros semelhantes) para levar o leitor, passo a passo, à compreensão da natureza da verdadeira fé. Só pela forma gramatical usada por João (plural) vemos que Jesus não repreendeu o oficial. Seu clamor é o clamor do Apóstolo João contra a mentalidade reinante. Nem na sua Galileia Jesus ficara em paz! De todos os lados as pessoas vieram procurá-lo. O Evangelho de Marcos que nos fornece muitos detalhe sobre o ministério de Jesus na Galileia, não cansa de relatar como “as multidões O seguiam”, clamando por ajuda. Agora que o oficial, ao cair da noite e exausto da longa e cansativa caminhada, clama por ajuda, Jesus arrancou do íntimo de sua alma uma constatação válida tanto naquele tempo quanto hoje (parafraseando): “Se vocês (!) não virem milagres e maravilhas (a seu favor), vocês não estão interessados na fé”. Ou, talvez, a dura constatação: “A vocês só interessam milagres!” 109 O oficial imediatamente reforçou seu pedido. Ele não queria milagre, ele quis ver seu filho salvo. Ele o amava; talvez fosse seu filho único. O lamento de Jesus permite presumir que, no momento em que o oficial lhe lançou seu pedido, às sete da noite, Jesus já tinha sido solicitado por outros muitos. (49) Rogou-lhe o oficial: “Senhor, desce, antes que meu filho morra”. A confiança e o sofrimento do homem comoveram a Jesus. (50) “Vai”, disse-lhe Jesus, “teu filho vive”. Ao invés de atender o oficial, dispondo-se a acompanhá-lo – o que era de se esperar –, Jesus, certamente cansado, fitando-o com seu olhar, só disse uma única frase. “Teu filho vive”. Não disse: “Seu filho viverá”. Novamente, imagine-se na situação do oficial! Foi praticamente um ultimato que Jesus lhe deu. Ou creia e vá – ou, volte as costas ao falso e insensível milagreiro! O oficial teve que decidir. Como militar era acostumado a tomar decisões. A reação, transmitida por João em poucas palavras foi: O homem creu na palavra de Jesus e partiu. Que prova maior de fé o oficial poderia ter dado? O Apóstolo sabiamente introduziu com essa frase o primeiro estágio da fé, do qual falamos na lição passada: deu crédito à Palavra de Jesus. Nunca esqueça: o oficial não sabia que esse Jesus era o Verbo, o Salvador, quem morreria e ressuscitaria no terceiro dia. Facilmente erramos quando julgamos a fé de pessoas mencionadas nos Evangelhos. A disposição deles em crer, às vezes, era fantástica. Nós é que estamos em falta. Sabemos tudo sobre a história da salvação. Temos os quatro Evangelhos, o testemunho dos Apóstolos e suas Cartas, nas quais os aspectos práticos da vida cristã são abordados, e mesmo assim alegamos ter dificuldades em poder crer como deveríamos. Voltemos ao relato do Evangelista! (51) Já ele descia, quando os seus servos lhe vieram ao encontro, anunciando-lhe que o seu filho vivia. (52) Então, indagou deles a que hora o seu filho se sentira melhor. Informaram: Ontem, à hora sétima a febre o deixou. Você leu que o oficial creu e partiu. A que horas ele partiu, se os seus servos observavam que a febre desapareceu “ontem à hora sétima”, sendo essa a hora em que Jesus falou com o oficial? Com a maneira civil romana de computar as horas, a “sétima hora” corresponde às sete horas da noite. Não mais havia como alcançar Cafarnaum até o dia seguinte, pois a passagem dos aproximadamente 30 quilômetros de “estrada” em zona rural montanhosa levaria pelo menos seis a sete horas. Assim temos que imaginar que o oficial, depois de ouvir dos lábios de Jesus que seu filho estava vivo, decidiu pernoitar em Caná e partir logo na manhã seguinte. Depois de ter caminhado apressadamente por alguns quilômetros, encontrou os seus servos à sua procura. Ouvindo a notícia da melhora de seu filho, a fé do oficial se transformou. Até então ela se 110 sustentava na Palavra de Jesus. Agora, porém, ele não creu mais em uma palavra, mas passou a crer na pessoa. A partir daquele momento, tudo que Jesus lhe diria teria validade, vendo ou não um resultado momentâneo. (53 Com isto, reconheceu o pai ser aquela precisamente a hora em que Jesus lhe dissera: Teu filho vive; e creu ele e toda a sua casa. Com as palavras acima, o Evangelista pode definir a fé. Fé nasce da Palavra e a Palavra aponta para a pessoa de Cristo. Quando João diz que “toda a casa do oficial veio a crer”, ele não quis dizer que toda a casa creu em determinadas palavras enunciadas por Jesus (ou, no caso da Igreja à qual João dirigiu seu Evangelho, em “doutrinas” elaboradas), mas sim, que toda a casa veio a confiar na pessoa de Jesus. O que mais é a fé do que uma ilimitada confiança em alguém? (54) Foi este o segundo sinal que fez Jesus, depois de vir da Judeia para a Galileia. Na composição da obra, além de suas próprias recordações, o velho Apóstolo recorreu a outras fontes de tradição que se unem no seu Evangelho. Enquanto na leitura anterior ouvimos de “muitos feitos” (milagres) por ocasião da festa em Jerusalém, João retorna neste relato a uma outra fonte anterior, onde os milagres de Jesus eram enumerados. Após o sinal em Caná, considerado o primeiro milagre realizado por Jesus na Galileia, esta tradição considera a cura do filho do oficial como “o segundo sinal desde que voltou para a Galileia”. Qual foi, então, o terceiro? Não precisamos perder tempo com hipóteses a respeito. Fato é que João não deu continuação a essa contagem. O Apóstolo não cedeu à tentação de tentar provar a Divindade de Jesus com a enumeração de “sinais”. Como primeiro “teólogo” do cristianismo ele os observou “de cima”, como a águia – seu símbolo, e a qual, durante seu voo, tem a visão da paisagem como um todo. João procurou decifrar a mensagem que estes sinais, em conjunto com as palavras, lhe trouxeram. Vistas na perspectiva de Deus, as peças se juntaram e o Evangelista podia concluir sua obra mais tarde com as palavras que usou: “... muitos outros sinais que não estão escrito neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20.30,31). Os comentaristas, em geral, entendem que o episódio corresponde à narração de Mateus em cap. 8.5-13. Pequenas diferenças não invalidam essa hipótese. Para João, teólogo, o acontecimento com o oficial serviu-lhe como exemplo de fé madura. Será que, de propósito, escolheu esses estágios crescentes no seu Evangelho? Partiu da incredulidade e “fé” em milagres entre os judeus em Jerusalém e subiu para a fé na palavra, sem necessidade de milagres, dos samaritanos desprezados pelos judeus, chegando à fé madura da parte de um oficial romano. Os exemplos de fé vieram todos de “não Judeus”! Será que a sequência alude à sua observação em 1.11,12: “... veio para o que era seu, e os seus não O 111 receberam; mas a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; aos que creem no Seu nome” ? O Evangelista definitivamente tirou Jesus do contexto judaico e O apresenta como Senhor e Salvador de todos os povos e nações, enquanto nos Evangelhos sinóticos era visto, primeiramente, como o Messias dos judeus, no qual as antigas profecias se cumpriam. Ainda hoje encontramos verdadeira fé não necessariamente circunscrita às Igrejas nominais. Essas, no curso da história, têm negado demais a Jesus e comercializado e administrado o eterno “Logos” através de seus rituais e seu poder, seja este místico, político ou financeiro. Que equívoco! A fé em Jesus com base na Palavra pode nascer em você agora e ela não conhece a necessidade de “pré-santidade”, como provam os casos dos samaritanos e do oficial romano. Olhe para Jesus; procure a Jesus! • Não O confunda com os que dizem representá-lO! • A verdadeira Igreja é o conjunto de todos que nele creem! • Na Palavra de Deus, no Evangelho, na sua Bíblia, Ele ainda lhe fala! Cap. 5.1-9 (5.1) Passadas estas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu para Jerusalém. (2) Ora, existe ali, junto à Porta das Ovelhas, um tanque, chamado em hebraico Betesda, o qual tem cinco pavilhões. (3) Nestes, jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos (4) esperando que se movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse. (5) Estava ali um homem enfermo havia 38 anos. (6) Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito tempo, perguntou-lhe: “Queres ser curado?” (7) Respondeu-lhe o enfermo: “Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce outro antes de mim. (8) Então, lhe disse Jesus: “Levanta-te , toma o teu leito e anda”. (9) Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. No segundo século, certo Tatiano colocou na sua compilação dos quatro Evangelhos o texto do capítulo sexto antes do capítulo quinto. Realmente, o primeiro verso do cap. 6 parece ser a continuação de 4.54. Vários comentaristas, ainda hoje, defendem a inversão dos capítulos 5 e 6. O teólogo U. Wilckens apresenta uma teoria que, de vez, responderia a muitas perguntas. Segundo Wilckens, o Apóstolo podia ter deixado sua obra incompleta quando veio a falecer. Na ocasião, tanto os trechos que compreendem os caps. 5 e 6 quanto o trecho de 7.15-24 ainda não haviam sido colocados em ordem e os discípulos do grande Evangelista, por uma 112 questão de respeito ao Apóstolo, haviam deixado a obra sem alterar a sequência dos relatos. Várias questões, até teológicas, assim ficariam mais claras. Contra essa hipótese pesa o fato de que até os mais antigos manuscritos desde sempre nos apresentam o Evangelho na ordem atual. Seja quem for a quem devemos essa obra, apesar de vários “vazios” cronológicos, o autor deve ter lançado o Evangelho convencido da coerência e da veracidade do seu conteúdo. Seguiremos, portanto, à ordem tradicional dos capítulos. (5.1) Passadas estas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu para Jerusalém. O calendário festivo judaico conhecia três festas de peregrinação, dias em que os israelitas procuravam ir a Jerusalém, seguindo a ordem contida em Deuteronômio 16.16: “Três vezes por ano, todos os seus homens se apresentarão ao SENHOR, o seu Deus, no local que ELE escolher...”. São a Páscoa, a Pentecoste e a Festa dos Tabernáculos. A festa em que os judeus fiéis, impedidos de peregrinar três vezes por ano, de maneira alguma podiam faltar no Templo, era a Páscoa. Com o artigo indefinido “uma festa”, o Evangelista não nos revela qual era a festa e quando é que Jesus subiu para Jerusalém, que fica a 818 metros acima do nível do mar. Qualquer caminho para a cidade Santa trilhava montanha acima. Assim, a ida a Jerusalém na Bíblia sempre é apresentada como “subir à cidade”. O Evangelista tampouco nos dá alguma indicação a respeito da duração do período que se passou desde que se deram os últimos acontecimentos que foram relatados no capítulo quarto. Entendemos que pelo menos nove meses se passaram, período que compreende a extensa atividade de Jesus na Galileia apresentada nos Evangelhos sinóticos. Nada nos é dito a respeito dos discípulos e não sabemos se Jesus subiu sozinho. (2) Ora, existe ali, junto à Porta das Ovelhas, um tanque, chamado em hebraico Betesda, o qual tem cinco pavilhões. Os primeiros restos do reservatório que formava o referido “tanque” foram descobertos em 1888 por ocasião da obra de restauração da “Igreja de Sant’Ana”, ao norte do antigo Templo. Nos dias de Jesus, ele tinha cinco pavilhões ou “colunas cobertas”. Escavações posteriores trouxeram à luz restos de dois tanques, separados por uma parede de 6,5 metros de largura. A área do banho, que cobria aproximadamente 5000 m², era circundada por quatro pavilhões, um de cada lado. O quinto pavilhão encontrava-se por cima da parede larga de separação. A “Porta das Ovelhas” cujos restos foram identificados perto do atual “Portão de Santo Estevão”, não distante das instalações do banho, deve ter recebido seu nome porque através dela muitas ovelhas eram conduzidas, diariamente, para serem sacrificadas no átrio do Templo. Pela “Porta das Ovelhas” chegava-se ao bairro de “Bezethá” (cit. Josefo). Quanto ao nome do banho, os manuscritos antigos divergem. O texto grego de “Nestlé” menciona “Bethzatá”. Somente em fevereiro de 113 1952, quando nas cavernas de Qumran foi descoberto o “Rolo de Cobre” (3Q), confirmou-se a tradição bíblica. Este rolo hoje está exposto no Museu de Amman (Jordânia). Nele, o tanque é mencionado com seu nome “Betesda” (Casa da Misericórdia) na forma gramatical dupla, o que confirma a existência de um tanque duplo. Como explicamos anteriormente, os nomes citados estão todos em aramaico, idioma da época e não em hebraico. (3) Nestes, jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos. Nos cinco pavilhões cobertos em volta dos dois tanques, os enfermos podiam descansar, protegidos do clima inclemente. Imagine a sala de espera de qualquer hospital público em dias de greve. Uma multidão de inválidos, de diversas categorias (particularmente cegos, coxos e paralíticos - esses últimos chamados na Bíblia de “ressequidos”), jazia nessas galerias a espera de um milagre. (4) ... esperando que se movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse. Dificilmente o Apóstolo escreveu o texto do verso quatro que encontramos hoje nas Bíblias. Este não consta em nenhum dos mais antigos manuscritos. O primeiro autor que menciona o conteúdo do verso 4 foi Tertuliano (145-220 d.C). Trata-se de uma observação baseada na religiosidade popular, acrescentada à margem da Escritura e incluída posteriormente numa cópia subsequente (o que na Bíblia várias vezes aconteceu). A observação de João em 9.32 mostra claramente que não se conhecia em toda Jerusalém algo como um tanque cuja água curava “qualquer doença”. Com a observação no verso quatro, o copista certamente visava explicar melhor ao leitor da época do Evangelista sobre o que consta no verso sete, isto é, a convicção pessoal do homem doente. (5) Estava ali um homem enfermo havia 38 anos. O Evangelista nem se interessa pela crença popular da força mágica da água, mas imediatamente aponta um homem, enfermo há 38 anos, jazendo ali. Não sabemos quanto tempo esse homem já esperava nas instalações do banho; o que sabemos é que há 38 anos ele estava doente. Você já imaginou o que trinta e oito anos de doença significam em uma época em que não se conhecia bons remédios e nenhum sistema de saúde pública, por pior que fosse? Já os Pais da Igreja meditaram sobre esse lapso de tempo. Na margem de um antigo manuscrito consta a observação de Deuteronômio 2.14,15: “Passaram-se trinta e oito anos entre a época em que partimos de Cades-Barneia, ... período no qual pereceu do acampamento toda aquela geração de homens de guerra, conforme o Senhor lhes havia jurado. A mão do SENHOR caiu sobre eles e por fim os eliminou completamente do acampamento”. É o tempo da história do pecado de Israel, tempo em que, por causa de seu pecado, vagaram no deserto até a total eliminação daqueles que saíram do Egito, exceto Josué e Calebe. Os 38 anos do doente lembram o tempo que Israel perdeu no deserto por causa de sua 114 rebelião. As palavras de Jesus dirigidas ao homem curado e contidas no verso 14, talvez também tenham algo a dizer-nos a respeito. (6) Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito tempo, perguntou-lhe: “Queres ser curado?” Por alguma razão, Jesus olhou exatamente esse homem no meio da multidão. Observe o conteúdo da breve sentença: “... vendo-o deitado ...” Por que razão Jesus focalizou exatamente este homem entre todos os demais que ali jaziam? Por que razão Jesus olha para você, exatamente, quando há milhares e milhões do seu lado? É o mistério da Graça! Certamente sendo informado do período de sofrimento daquele homem pelos outros em situação semelhantemente triste, Jesus lhe dirigiu uma pergunta, que a primeira vista parece tola: “Queres ser curado?” A psicologia das profundidades sabe que há doentes que, apesar de todas as suas lamentações, temem no seu íntimo o restabelecimento da saúde porque, com ele, a sua condição especial, que os tornam protegidos perante os múltiplos desafios da vida, terá fim. Será que Jesus, com sua pergunta, chamou o doente para fora de sua letargia, apelando à vontade de ser curado? Cremos que havia mais na pergunta de Jesus do que o simples desejo de um diálogo. Para Jesus havia alguma relação, misteriosa para nós, entre a doença desse homem e seu pecado. Não que Jesus, ao contrário de seus discípulos, em 9.2, acreditasse no dogma farisaico da vingança Divina, mas sua advertência ao curado constante no verso 14 aponta nessa direção. Alguns críticos da Bíblia querem ver uma incoerência de Jesus na advertência ao curado (v.14), vendo nela a convicção farisaica do “Dogma da Vingança Divina” confirmada, quando em 9.2, Jesus explicitamente nega qualquer correlação entre os dois. Mais um tiro a esmo! Nem no caso do homem paralítico que estamos estudando, nem no do que nasceu cego (cap.9) trata-se de leis absolutas. Trata-se de situações reais e pessoais de indivíduos. Como Aquele que é Um com seu Pai (10.30) e que não depende do testemunho de outrem, porque “bem sabia o que havia no homem” (2.25), Jesus fala ao curado em Betesda como quem conhecia sua história de pecado e, no cap.9, Ele contradirá o “Dogma da Vingança Divina” alegado pelos seus discípulos para encontrar culpa no caso do homem cego, afirmando que nem o pecado do cego nem o de seus pais consistiram na causa de sua doença. (7) Respondeu-lhe o enfermo: “Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce outro antes de mim”. Parece que a regra naquele tanque era: “Cada um por si e Deus por todos!”. Ninguém jamais ajudara esse pobre homem a locomover-se, quando conforme a crença popular, chegara o momento certo para receber a cura. (8) Então, lhe disse Jesus: “Levanta-te, toma o teu leito e anda”. 115 Ao contrário da situação do paralítico constante em Marcos cap.2, onde amigos, vencendo obstáculos tremendos, levaram o doente à presença de Jesus, esse doente não tinha ninguém. A sua mente estava presa à superfície da água no tanque. Nem sabia quem era o homem que ora o abordou com a sua curiosa pergunta: “Queres ser curado?” Ele não tinha nenhuma razão para demonstrar fé. Ao contrário, ele havia expressado sua frustração quanto à impossibilidade de ter a sua chance de cura. Da mesma forma como em João 2.7 e em 4.50, a ajuda ao homem acontece em forma de uma ordem: “Levanta-te, toma o teu leito ( melhor: colchonete) e anda!” No texto original em grego, o termo usado tem uma conotação um tanto vulgar, como se disséssemos: “Pega a tua trouxa e sai daqui!” (H.Thyen). O que nos chama atenção, é que João usa literalmente os mesmos termos com os quais Jesus se dirigiu ao paralítico em Marcos 2.9! Como já lembramos na introdução ao Evangelho de João, temos boa razão para crer que os três Evangelhos sinóticos não só eram conhecidos por João, mas até citados nas congregações. Quando Mateus e Lucas relatam o milagre de Marcos 2, eles, discretamente, substituíram o termo um tanto vulgar - “trouxa” - por um termo mais respeitoso (o termo usado por João aparece no NT somente ainda em Mc. 6.55 e Atos 5.15 e 9.33). Ao invés de procurar alguma fonte ominosa anterior a João e aos sinóticos (Q, Semeia ou outra), preferimos crer que o Apóstolo, propositalmente, tirou os termos do Evangelho de Marcos, que lhe era familiar. O homem doente tinha duas opções, semelhantemente ao oficial romano citado no capítulo anterior. O ato de “crer” não acontece como resultado de meditação e cuidadosa avaliação, mas sim numa resposta imediata, responsável e sem medida do ser humano à Palavra ouvida. Surpreso, e sem saber o que lhe acontecia, o homem obedeceu. (9) Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. João raramente usa o termo “imediatamente” tão familiar a Marcos. Neste caso, a obediência foi imediata. O homem levantou-se e se foi. Também a brevidade do relato é impressionante. E mais: o Apóstolo não chama esse milagre de “sinal”, como tem feito até então. Alguns teólogos querem ver nisso um propósito do autor. Ele quer demonstrar que, após ter sido recebido bem na Samaria e na Galileia (sua terra desprezada pelos que moravam na capital), no centro religioso, na própria Jerusalém, Jesus não recebeu o reconhecimento devido. Com essa hipótese (não é mais do que isso) eles interpretam o texto que se segue de várias maneiras. Jesus, ao contrário do caso do paralítico constante em Marcos 2, não disse: “...e vai para casa”. Ele disse: “anda!”. Será que Jesus simplesmente o despachou (no sentido de “vá”) ou será que Ele mandou que o homem com seu colchonete sujo andasse pelas ruas, chamando a atenção? O texto no original permite as duas maneiras de interpretação. 116 A continuação na próxima leitura mostrará as implicações das duas maneiras de entender a ordem de Jesus. Cap. 5.9-18 (9) Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. E aquele dia era sábado. (10) Por isso, disseram os judeus ao que fora curado: “Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito”. (11) Ao que ele lhes respondeu: “O mesmo que me curou me disse: Toma o teu leito e anda”. (12) Perguntaram-lhe eles: “Quem é o homem que te disse: Toma teu leito e anda? (13) Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus havia se retirado, por haver muita gente naquele lugar. (14) Mais tarde, Jesus o encontrou no Templo e lhe disse: “Olha que já estas curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior”. (15) O homem retirouse e disse aos judeus que fora Jesus quem o havia curado. (16) E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. (17) Mas ele lhes disse: “Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também”. (18) Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus. Terminamos nosso estudo anterior com a pergunta: Será que Jesus simplesmente despachou o homem curado (“se vá!”) ou Ele mandou que o homem, com sua esteira suja, andasse pelas ruas chamando a atenção? Magistralmente, João faz uma simples observação adicional no verso 9, criando uma nova dimensão de conflito: “E aquele dia era sábado”. O mandamento da guarda do sábado era o mais importante de todos, pois era “sinal da aliança entre Deus e Israel”. Êxodo 31.13.s diz: “Diga aos israelitas que guardem os meus sábados. Isso será um sinal entre mim e vocês, geração após geração ...”. O profeta Jeremias já havia determinado: “Assim me disse o SENHOR: ‘Vá colocar-se à porta do povo ... e diga-lhes: Ouçam a palavra do SENHOR: ... Por amor à vida de vocês, tenham o cuidado de não levar cargas nem de fazê-las passar pelas portas de Jerusalém no dia de sábado. Não levem carga alguma para fora de casa nem façam nenhum trabalho no sábado, mas guardem o dia de sábado como dia consagrado ...’” (Jer.17.19-27). A guarda do sábado tinha significado escatológico. Enquanto ele não for totalmente observado, o Messias não podia vir. Tinha-se como certo que, se Israel, por uma única vez, guardasse o sábado da maneira como Deus o previu, o Messias apareceria. Assim, qualquer transgressão, mesmo que fosse leve, era punida com o apedrejamento (Num.15.32-36). Por amor à causa, os escribas haviam determinado minuciosamente o que era considerado “trabalho proibido” e o que era permitido fazer no sábado. Carregar um colchonete, indubitavelmente, era proibido. O que o homem curado estava fazendo era uma transgressão pesada à Lei de Deus. 117 (10) Por isso, disseram os judeus ao que fora curado: “Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito”. João, como judeu, conheceu bem a “Mishna” (hebr. “schana” = aprender repetindo). A Mishna, porém, só reconhecia uma acusação se a transgressão era precedida de uma advertência. Essa advertência da parte dos “judeus” está sendo feita ao homem curado no verso 10: “Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito”. Somente a partir daí e se ele insistisse em pecar cairia no julgamento. (11) Ao que ele lhes respondeu: “O mesmo que me curou me disse: ‘Toma o teu leito e anda’”. O homem havia recebido a cura exatamente obedecendo à ordem de Jesus de ir carregando seu colchonete. “Alguém que me devolveu a saúde após 38 longos anos tem o direito, mesmo no dia de sábado, de dizer o que era para fazer”; assim o homem deve ter argumentado na sua mente. (12) Perguntaram-lhe eles: “Quem é o homem que te disse: Toma teu leito e anda? “Quem é esse “camarada” que se opõe ao que Deus mandou?” A cura do homem não interessava aos “judeus”; eles precisavam, para o bem de Israel, chegar ao culpado e extirpar o grande mal. (13) Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus havia se retirado, por haver muita gente naquele lugar. O homem curado, por sua vez, não sabia responder. Nunca antes havia visto Jesus e esse tinha desaparecido na multidão. Aqui voltamos à questão deixada em aberto na leitura anterior. O que, exatamente, Jesus ordenou ao homem, quando lhe disse: “... anda!” ? Lutero entendeu que Jesus simplesmente liberou o homem no sentido “vá embora!” Algumas traduções interpretam a ordem de outra forma: “... anda por aí ”. Nesse caso, Jesus teria, conscientemente, ordenado a quebra da Lei sabática. A pergunta fica sem resposta. Comentaristas liberais dizem que João “inventou” o sábado para criar a oportunidade para encaixar uma coleção de Palavras de Jesus, onde Ele dá testemunho de Sua autoridade (versos 19 – 47). Aproximadamente meio século depois dos Evangelhos sinóticos, João ainda lembra que a quebra do sábado era a razão principal da inimizade e da crescente perseguição que Jesus sofria da parte dos “judeus” (confira Marcos 3.6). Na ocasião do paralítico curado num dia de sábado, o Evangelista menciona (pela primeira vez na sua obra) esse fato. (14) Mais tarde, Jesus o encontrou no Templo e lhe disse: “Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior”. Não notamos qualquer acusação contra o homem curado, nem da parte de Jesus nem do autor. A frase “olha, que já estás curado; não 118 peques mais...” indica que, junto com a cura física houve perdão dos pecados. A advertência de Jesus faz sentido, se nos lembramos dos 38 anos no deserto. A sua nova vida deveria ser nova também no que tange ao seu relacionamento com Deus; caso contrário, a “coisa pior” seria a mesma que acontecera à geração de seus pais no deserto: não viria a terra prometida; não haveria comunhão íntima com Deus. A presença do homem no Templo nos sugere que ele foi apresentarse aos sacerdotes como testemunha de cura ou para agradecer através de uma oferta qualquer. Observe que a iniciativa do encontro com o curado novamente partiu de Jesus. Sempre é com a misericórdia de Deus que alguém inicia o caminho, nunca será com a ameaça do inferno. Somente quando compreendemos o tamanho do amor incondicional de Jesus teremos condições de “não pecar mais” e de andar em um novo caminho. (15) O homem retirou-se e disse (lit. anunciou) aos judeus que fora Jesus quem o havia curado. A observação no verso 15 é ambivalente. O Evangelista deixa em aberto como devemos interpretá-la. Será que o homem confessou publicamente Jesus como seu médico? O nome de Jesus já era conhecido nos arredores do Templo. O fato é que o verbo usado por João no verso 15 (anunciar), assim como em 4.24 e 16.13,14,15, sempre tem conotação positiva e leva a essa conclusão. Ele não denunciou aquele que o autorizou para carregar seu colchonete (esteira); ele anunciou quem o curou. Alguns comentaristas veem na atitude do homem curado, em reação à advertência, uma denúncia com o fim de livrar-se da pena pela profanação do sábado. Tendo sido obrigado por Jesus a desobedecer à Lei, ele mesmo escaparia do castigo. Seja como for, o Evangelista deixa em aberto a resposta a essa questão. (16) E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Novamente João fala dos “judeus”. Na situação política/social em que Israel se encontrava, o judaismo tinha nos fariseus seu alicerce. O movimento dos fariseus zelava pela Lei de Deus. Com que autoridade Jesus podia passar por cima da Lei de Moisés? Os versos 16 e 17 têm de ser lidos juntos. Não sabemos como e onde, mas entendemos que “os judeus” exigiram de Jesus se explicasse (talvez numa reunião fechada). No verso 17 temos a resposta dada aos “judeus”. (17) Mas ele lhes disse: “Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também”. Podemos parafrasear a resposta do “acusado” da seguinte forma: “Assim como meu Pai trabalha sem interrupção, assim também eu trabalho sempre” (Thyen). O tempo gramatical no imperfeito, usado por João no verbo trabalhar, mostra que a afirmação de Jesus não se restringiu somente à cura recente; ela é característica pelo seu posicionamento perante a Torá. Karl Barth, o maior teólogo protestante do século vinte, parafraseou a declaração de Jesus da seguinte forma: “Eu 119 faço ...o que, como Filho de meu Pai, tenho obrigação de fazer e o posso, sem levar em consideração a Lei dada aos homens e válida para eles, como dever do Filho e direito de Salvador conforme o direito que não quebra a Lei de Moisés nem a revoga, mas como “ius divinum” determina tanto sua origem quanto seu limite (Decl. 275). Embora difícil de entender, a declaração acima nos dá uma ideia da autocompreensão de Jesus. Releiaa e reflita sobre ela! (18) Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus. A discussão dos Rabinos com respeito a Gen. 2.3, chegava à conclusão de uma ação ininterrupta de Deus, uma vez consumida a criação inicial. A blasfêmia de Jesus consistiu em advogar para si mesmo o atributo que, única e exclusivamente, cabia a Deus. No mais, “os judeus” ouviram muito bem como Jesus não falava de Deus “nosso Pai”, mas explicitamente o chamou de “Meu Pai”. Uma leve quebra do sábado talvez pudesse ser abolida através de um sacrifício ritual no Templo; a blasfêmia enunciada por Jesus, “fazendose igual a Deus”, porém, exigia o apedrejamento conforme Lev. 24,10ss e Num. 15.30ss. Deut. 21.22s ainda previa que o cadáver do executado fosse pendurado em uma árvore até ao anoitecer. Essas práticas ainda estavam em discussão no tempo de Jesus (conforme Josefo e Filon) mas não sabemos até que ponto eram praticadas. Posteriormente, os registros rabínicos (Mishna Sanhedrin 7.4) limitavam o apedrejamento à enunciação consciente do inefável nome de Deus (Deut. 24.15s). Pode ser que você, até hoje, nunca prestou atenção à declaração de Jesus no verso 17 e nunca pensou em suas implicações. Peço-lhe que leia novamente este verso e a interpretação que o segue. Fica-nos a pergunta: Jesus era louco, megalômano, colocando-se no mesmo nível de autoridade de Deus? Mateus, Marcos e Lucas observavam a pessoa de Jesus na visão horizontal: na Sua ação social, no Seu poder extraordinário, no Seu amor ao próximo e na Sua fidelidade até à cruz. Como lhe dissemos na introdução, João entendeu Jesus diferentemente. Sua visão se assemelha à da águia - seu símbolo na história da igreja. A visão de João é vertical, de cima para baixo. 120 Certamente você já encontrou dificuldades em compreender como e por que Jesus seria Deus, como a Igreja o professa. Pergunto: Jesus é Deus mesmo ou são duas pessoas distintas? O que João nos quer dizer? Essas e outras perguntas que surgirão, procuraremos deixar mais claras através das leituras seguintes. Antes, porém, teremos que fazer uma breve consulta histórica. Quem são esses “judeus” que o Evangelista sempre nos apresenta como inimigos de Jesus? O Novo Testamento, principalmente o Evangelho de João, tem conotação antissemita, como dizem na atualidade? Com a visão histórica correta a respeito entenderemos melhor as observações do Evangelista e as implicações das (para ouvidos judaicos) declarações chocantes e blasfemas de Jesus. • voltemos ao verso 18! (18) Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus. Quem são “os judeus” apontados no Evangelho de João como inimigos de Jesus? Cada época histórica deixa suas características nas suas obras literárias. Portanto, faremos uma rápida análise da situação em que o cristianismo recém-nascido se encontrava, quando o Evangelho de João foi escrito. Tanto nos próprios Evangelhos quanto nos escritos dos rabinos e dos Pais da Igreja encontramos a partir dos anos 70 d.C. indícios de um crescente afastamento do movimento cristão do próprio judaismo. O medo dos judeu-cristãos perante os judeus, que rejeitavam a crença em Jesus e a ameaça de serem excluídos das Sinagogas, reflete-se nos quatro Evangelhos. Marcos e Mateus já consideravam o perigo de, por causa da fé em Jesus, alguém ser açoitado nas Sinagogas (Mc 13.9; Mat. 10.17). O Evangelista João relata em 9.22 que seria expulso da Sinagoga quem confessar Jesus como o Cristo (confira também João 7.13/ 12.42/ 19.38/ 20.19). Em João 16.1s, o próprio Jesus projeta esse futuro para seus seguidores. Com todos esses textos, os Evangelistas procuravam preparar seus leitores para futuras perseguições. Textos que, com certeza, datam de antes de 70 d.C. já mostram que, desde o início do ministério de Jesus, havia confrontos isolados com determinados grupos ou pessoas. Ninguém, porém, pensava em excluir Jesus ou seus seguidores da comunhão do povo de Israel; as polêmicas eram sinais de confrontos internos, dentro do próprio judaismo. Os textos de João datam de após 70 d.C. e são redações que, em parte, refletem a tradição que o jovem movimento cristão já havia recebido. São expressões do susto da igreja primitiva. A crescente perseguição e 121 dificuldades internas na igreja existentes no fim do primeiro século (quando João escreveu), e a rápida ascensão do farisaísmo que, após a destruição do Templo deixou a condição de seita para trás e assumiu com mão firme a liderança espiritual do judaismo, tudo isso significava para a igreja judáica-cristã o fim da comunhão nas Sinagogas. Atos 15.5 diz que vários fariseus haviam crido (reconhecendo Jesus SENHOR) e criado, com sua inclusão no movimento judaico-cristão, não poucos problemas. A problemática coexistência entre judeus “crentes” e judeus fiéis à Torá fora testada muitas vezes. Um exemplo é a execução de Tiago, irmão do SENHOR, no ano 63, sob Agrippa II. Não devemos confundir essa execução com a de Tiago, irmão do Apóstolo João, sob Herodes, em 44 d.C. (relatado em Atos 12.2), com motivação política. Josefo Flávio nos relata a respeito do acontecimento, motivado pela questão religiosa entre judeus pró ou contra o movimento cristão (resumindo): “... Ananus, sumo sacerdote, membro da seita dos saduceus, aproveitou o período entre a morte de Festo e a chegada de seu sucessor Albino para estabelecer um exemplo. Convocou em caráter de urgência o Sinédrio e apresentou o irmão daquele, que da parte dos cristãos é chamado Cristo, junto com alguns outros transgressores da Lei e mandou apedrejálos...”. O interessante é que um grupo “dos mais fiéis observadores da Lei” (Fariseus/Essênios?)) protestou perante Albino tanto contra a convocação ilegal do Sinédrio como contra o assassinato “jurídico” de Tiago, representante da facção cristã dos judeus no Templo. Talvez os fariseus protestassem por causa de seu zelo pela Lei somente, ou contra a ação ilegal e precipitada dos saduceus, mas quem sabe, talvez alguns estavam a favor do ilegalmente executado líder da comunidade judaica-cristã, Tiago. Se essa hipótese for correta, tratou-se da última manifestação farisaica em favor dos compatrícios cristãos (a versão de Eusébio da morte de Tiago merece menos confiança, pois é parcial e Eusébio era inimigo dos judeus Hist.Eccl. II,23). A partir desse momento, as portas das Sinagogas (e até a destruição, também as do Templo) ficaram fechadas para os judeus-cristãos. Durante os anos do ministério do ex-fariseu Saulo, até sua morte em 67(?), a distância entre as duas comunidades aumentou. Com sua teologia que rejeitava toda e qualquer necessidade de pré-requisitos, lugares santos, locais ou qualidade racial para receber a Graça soberana de Deus, Paulo cravou uma cunha profunda no caráter comunal do judaismo. Na mensagem cristã, a Graça alcança o indivíduo; no judaismo alcança a comunidade. Perante o rápido crescimento do movimento cristão, passando de uma seita judaica para um movimento supranacional e perdendo suas características judaicas, o movimento farisaico decidiu, entre 60 e 100 d.C., declarar herética a condição judaica-cristã. Nos anos 90/100, época 122 na qual o Evangelho de João é datado, aconteceu sob a liderança do Patriarca Gamaliel II um sínodo, no qual, entre outros assuntos fora discutido e aprovado uma maldição formal e a excomunhão dos judeus que confessassem Jesus SENHOR. O último assunto tratado no sínodo foi a hoje denominada “birkat há-mînîm”, uma maldição contra os “Nazarenos“ (Nosrîm). Existem várias versões dessa maldição, chamada “Bênção sobre a heresia”. Ela foi colocada como 12ª Beracha na oração que, com essa inclusão, tornou-se a atual “Oração das 18”, oração principal que cada judeu fiel faz três vezes ao dia. Há versões diferentes da maldição. A mais conhecida é a recensão palestinense, encontrada em 1890 na Geniza do Cairo (Egito). Ela diz: “Aos renegados e traidores (Mesûmmadim) nenhuma esperança. Desarraiga o reino da arrogância (makhût zadôn), rapidamente, nos nossos dias! Os Nosrîm (Nazarenos = cristãos judeus) e os Mînîm (hereges), sejam eles aniquilados num único instante. Apagados sejam do livro da vida. Não sejam eles inscritos juntos com os justos. Louvado sejas Tu, SENHOR, que abaixas os insolentes” (cit. Salomon Schechter, JQR 10, 1898). A “recensão babilônica” do século três já não mais menciona explicitamente os Nazarenos. Nela, estes estão incluídos nos “traidores em geral”. Da parte dos cristãos havia várias reações. Justino, Mártir, menciona entre 150 e 161 d.C. a maldição no seu “Dialogus cum Tryphone” e o Bispo Epiphanius (315-403) escreveu em Haer 24.9 que: “... ... três vezes por dia, quando os judeus oram nas suas Sinagogas, eles amaldiçoam os crentes em Cristo, dizendo que Deus os repudia”. Em outro lugar ele diz: “Amaldiçoam dia e noite o Redentor e, como já disse outra vez, sob o nome de Nazarenos cobrem os cristãos com ultrajes todo dia”. Essas e muitas outras citações nos mostram o ambiente hostil que se foi estabelecendo entre judeus (de onde Cristo veio) e a Igreja cristã. Apesar de ser triste vemos, porém, que naquela época os cristãos se identificavam plenamente com Cristo (e não com uma doutrina). Maldições contra eles eram maldições contra Jesus. Hoje em dia, o nome e a pessoa de Jesus estão sendo ultrajados sem limites e a própria Igreja nem reage mais. Se alguém ainda levanta a voz, é a liderança da Igreja Católica Romana. As outras igrejas cristãs nem se tocam mais. Que testemunho triste! O único que, aparentemente, percebeu um crescente antissemitismo, dentro da igreja de Roma da época, foi o Apóstolo Paulo. Com esse fundo histórico e preocupado, ele escreveu os magníficos capítulos 9 – 11 da “Carta aos Romanos”, tratando da questão, aproximadamente 30 anos antes de João compor seu Evangelho. Paulo vinha dos fariseus e sentiu na carne o grande drama do afastamento mútuo. Leia Romanos 9-11! Naquele momento da história, o “escândalo da cruz” (1.Cor.1.1.23) era a única razão da cisão entre judeus e cristãos. A invocação do “Nazareno” como SENHOR ia diretamente contra o conceito judaico do Monoteísmo. A UM só pertencia o direito de ser chamado SENHOR (Êxodo 123 20.3-7). A Carta escrita pelo meio-irmão do Senhor Jesus, martirizado em 63 d.C. (a “Carta de Tiago”) no N.T., pelo seu conteúdo, bem podia pertencer ao Antigo Testamento, se não mencionasse duas vezes a Jesus, chamando-o de SENHOR (1.1 e 2.1). Era o que separava os judeus. Infelizmente, no decorrer da história, inúmeros “escândalos desnecessários” foram acrescentados pela igreja cristã. Com a tentativa de descrever (definir) o caráter de Deus foi elaborado dois séculos mais tarde o “Dogma da Trindade de Deus” (que não consta assim no N.T.). Esse Dogma deu e está dando, até hoje, razão para muitos mal-entendimentos entre judeus, muçulmanos e cristãos. Não que estivesse errado, mas é (que me perdoem) a definição “menos falha” possível do Deus no N.T. (“Quem jamais ousasse definir o Deus desconhecido?”). Deus nos deu Jesus para conhecermos a Ele! (confira Col. 2.9). Com o verdadeiro “panteão” de “mãe de Deus” e centenas ou milhares de Santos e Santas venerados em Templos dedicados a eles, o “cristianismo” não merece mais se enquadrar entre as religiões “Monoteístas” (confira Ex.20.3-6). Essa é a visão do judeu. O nosso Evangelho foi escrito quando a crescente controvérsia entre “Judaismo fiel à Torá” e a “Igreja com o escândalo da cruz de Jesus” marcou o ambiente. Como desde os anos 70 d.C. não mais havia diferentes seitas e autoridades religiosas no Judaismo, como Saduceus, Escribas, Sacerdotes nem Sinédrio, somente o “Rabinato dos Fariseus” como única autoridade, os leitores do Evangelho só conheciam uma autoridade judaica e o Apóstolo não faz diferença exata entre facções que, por ora, não mais existiam. Ele simplesmente disse “os judeus” e, hoje, o leitor do Evangelho, para não cair no pecado do passado, tem de perguntar cada vez que aparecem os tais “judeus”, quem realmente eles representavam na ocasião. Sejam quem forem; nunca foi o povo judaico como um todo. Esse amava Jesus! Hoje, a “Bênção sobre a heresia” (Ketzersegen), isto é, a maldição na “oração das 18” do judeu, usa termos gerais. Na edição de 1920, ela diz: “Permita aos errantes que voltem para ti, faça desaparecer logo toda a brutalidade da terra e acaba com a loucura injuriosa nos nossos dias. Louvado sejas Tu, Eterno, que quebras a violência e humilhas a arrogância” (Trad. livre, cit.Clemens Thoma. Christliche Theologie des Judentums, §181). A nova “Teologia do Holocausto” procura esclarecer o como e o porquê do antissemitismo surgiu dentro da própria Igreja e se consumou no Holocausto do “Terceiro Reino” de Hitler (1930-1945), justificando o extermínio de seis milhões de judeus com a aprovação indireta da Igreja Oficial. A Igreja, a partir do quarto século d.C., quando se tornou “Estado”, começou a perseguir e humilhar “os judeus” de todas as formas possíveis, justificando seu comportamento vergonhoso com citações dos Evangelhos, identificando “os judeus” como raça de assassinos do Senhor Jesus. Quem tem alguma dúvida sobre o tratamento dado aos judeus em geral pela 124 Igreja Católica Romana até o passado recente leia o livro: David I.Kertzer. O VATICANO E OS JUDEUS. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 2003. A Igreja protestante, no seu todo, não ficou muito atrás. Eram poucos os que se levantaram contra o assassinato em massa. Os autores de hoje que alegam encontrar a fonte do antissemitismo nos Evangelhos, (por exemplo Marcos 12.1-12; Mat. 22.114; Mat. 27.24; Lucas 23.27-31 e principalmente João 8.44), devem estudar melhor a história judaica e colocar as palavras nos seus contextos, tanto formal quanto de tradição. “O clarão do forno de cremação de Auschwitz* é para mim o farol que conduz todos meus pensamentos. Ó, meus irmãos judeus, e também vós, meus irmãos cristãos, vocês não creem que esse clarão se confunde com outro clarão, o da cruz?” * Campo de concentração e extermínio de judeus na Polônia. São essas as duas últimas frases do livro de Jules Isaak, escritas nos anos de 1943- 46, no anonimato (ISAAK JULES. Jésus et Israel, Paris, 1946). Fontes: Clemens Thoma, Christliche Theologie dês Judentums, Pattoch-Verlag, Aschaffenburg, Band 4ª/b, 1978 e Franz Mussner, Traktat über die Juden, Kösel, München, 1979. Cap. 5.19-24 (19) Então, lhes falou Jesus: em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. (20) Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis. (21) Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer. (22) E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo julgamento, (23) a fim de que todos honrem o Filho do modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que O enviou. (24) Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida. A partir do verso 19 até o término do capítulo, no verso 49, Jesus está falando. Você pode perguntar: “Como o Apóstolo podia lembrar-se de todas as palavras de Jesus, meio século mais tarde” (quando o Evangelho foi composto)? Assim, muitos teólogos veem nas palavras acima meramente palavras de João. Segundo eles, o “Jesus histórico” não pode ter dito o que acabamos de ler; seriam meras considerações do autor do Evangelho. A nossa resposta é a seguinte: Primeiro: Não existe prova negativa. Ninguém pode provar o que alguém não disse. Podemos, sim, procurar ouvir o que Jesus disse, ainda que meio século separe o autor do evento. Segundo: É obvio que no nosso texto o Evangelista esteja falando. Ele relata as palavras que ouviu e que durante dezenas de anos ocupavam a sua mente. Quando Jesus as pronunciava, os discípulos 125 deram pouca atenção ou simplesmente não entenderam (fato que os Evangelistas sinóticos afirmam várias vezes). O “discípulo amado” (João) ouviu diferente. Não sabemos se Jesus pronunciou de uma só vez o que consta do verso 19 até 49. Muito provavelmente temos diante de nós uma compilação de palavras, pronunciadas em ocasiões diferentes. João, o mais sensível entre os discípulos, ouviu aquilo que os sinóticos não captaram. Na época em que João escreveu seu Evangelho, ele se viu na obrigação de não deixar nenhuma dúvida a respeito de Jesus, pois o movimento cristão estava sendo atacado de todos os lados. Somente TODA a verdade salvaria a igreja. João não procurava salientar pontos em que a crença cristã estava de acordo com seus oponentes. Não afrouxou as declarações de Jesus. Principalmente hoje suas palavras nos colocam na parede. Rendemo-nos a esse Jesus apresentado por João, ou preferimos manter a ideia do “nosso Jesus”? Na maioria das Igrejas encontramos hoje “outro Jesus” (se ainda o encontramos). Leia com atenção e descubra se o Jesus que você diz conhecer é idêntico ao Jesus a respeito do qual João está dando seu testemunho. Você está disposto a submeter-se a esse Jesus? A maioria dos cristãos de hoje olham desconfiados ou até assustados, se você afirma que Jesus é Deus encarnado. Nós, cristãos, estamos diante de um julgamento pesado da parte de um professor contemporâneo de teologia, judeu - portanto não cristão – , a respeito da nossa RELIGIÃO VAZIA. Ouça o que o professor observa: “Os ‘cristãos’ não levam à sério, não creem realmente no mistério da encarnação de Deus, assunto deste Evangelho. A aceitação desse fato, a encarnação de Deus no ‘Nazareno’, junto com todas as suas implicações palpáveis, traria vida, colocaria carne nos secos ossos doutrinários dos teólogos. O cristianismo novamente se tornaria uma realidade de fato, o que hoje não é mais.” (Pinchas Lapide. Interpretação judaica dos Evangelhos. GTB.2002). (19) Então, lhes falou Jesus: em verdade, em verdade, vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. A alegação (pretensão ou ilusão de ser igual a Deus) representava (e representa) para o judeu “O” pecado em si, presente, portanto, já no Jardim do Éden (Gen.3.5). Na cura do paralítico (verso 18) Jesus havia reivindicado autoridade divina ao curar em dia de sábado, chamando Deus de seu próprio Pai. Na exposição que se segue (provavelmente na Sinagoga, sendo questionado pelos religiosos escandalizados), Jesus passa a usar a terceira pessoa do singular, quando fala de si mesmo. Com isso, faz do acontecimento concreto da cura um sinal objetivo de sua missão. Por três vezes encontramos da parte deles a acusação contra Jesus: “tu te fazes 126 Deus a ti mesmo” na mesma forma gramatical do verbo. Confira 5.18; 10.33 e 19.7. Enquanto “os judeus” veem na afirmação de Jesus um pecado, pelo qual não havia possibilidade de expiação, o leitor do Evangelho já sabe que eles estavam errados. Sabemos desde as primeiras sentenças do Evangelho que “O Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (João 1.1). Jesus não precisava “fazer-se” algo que Ele já era desde a eternidade passada e consistiu na destinação de sua missão. Vejamos como Jesus defendeu as suas palavras e ações, começando com o solene “amém, amém”, que indica autoridade de revelação. Assim como uma criança nada pode fazer senão imitar aquilo que está vendo o pai fazer, assim Ele estava agindo. O Filho viu permanentemente o Pai perante si. Quando falava, não se referia a um passado, ao tempo místico preexistencial; não se referia a lembranças do Pai. Jesus se referia ao olhar, agir e falar no presente momento (confira 3.11 e 3.32). Jamais Jesus foi mero observador e depois “imitador” do Pai na terra. Desde a eternidade passada, o Pai tudo fez por e através dele (1.2,10). Vemos que o Apóstolo não está falando de duas pessoas, de Pai e Filho como pessoas distintas. Ele quer nos mostrar como Pai e Filho agem “igual” (“simultaneamente” ou “sincronizadamente”). Quem vê o Filho, vê o Pai (confira 14.9). (20) Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis. Em 3.35 já lemos que, por amor, o Pai confiou tudo ao Filho. Pela mesma razão revelará “maiores obras” do que estas. Quais seriam essas obras maiores? Será que o Evangelista, dentro de seu Evangelho, se referiu a 2.23 ou à ressurreição de Lázaro ainda por vir (cap.11)? Provavelmente familiarizado com os Evangelhos sinóticos, o Evangelista poderia pensar na posterior ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5.22) ou na do filho da viúva de Naím (Lucas 7.11). Não sabemos. Todas essas obras seriam obras maiores, convidando “os judeus” a se maravilharem. Note: a promessa de ver obras maiores estava sendo dada aos “judeus” presentes na interpelação, a seus acusadores. O Evangelista não falou de obras num futuro indefinido, mas do iminente. (21) Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer. À primeira vista aparecem nesse verso duas pessoas distintas: o Pai e o Filho e as duas parecem ter poder diferenciado. A segunda Berakha da oração Schmone Esre do judeu, na reza que desde a época dos Macabeus era feita diariamente, o judeu proclama a esperança na “vivificação” (ressurreição) dos mortos. Citamos uma parte: “...Tu, Eterno, que vivificarás os mortos, ... que abasteces os vivos e vivificas os mortos, venha a nos socorrer subitamente, louvado sejas Tu, JHWH,* que vivificas os mortos” (Versão palestinense). O fariseu sempre manteve a esperança da ressurreição dos mortos para o Juízo no último dia deste aeon. Somente a Deus competia ressuscitar mortos. 127 *(JHWH – Jahwe- nome de Deus, lido pelos judeus como se estivesse escrito “adonai” (Senhor), por precaução para não pecar contra o terceiro Mandamento, Ex.20.7) O escândalo causado pela afirmação de Jesus de ter parte nesse atributo que somente pertencia a Deus já era enorme, mas a afirmação seguinte levou o espanto dos religiosos ao clímax: (22) E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo julgamento, (23) a fim de que todos honrem o Filho do modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que O enviou. Pela declaração de Jesus, o poder escatológico de vivificar mortos foi confiado a Ele pelo próprio Pai com uma finalidade específica: “a fim de que todos honrassem o Filho do modo como honram ao Pai”. As obras maiores anunciados aos “judeus” seriam sinais somente; sejam elas a posterior ressurreição de Lázaro ou outras obras quaisquer. Esses milagres espontâneos eram sinais de alguém que passou adiante e deixou suas pegadas, como rastros na areia. Somente o Espírito pós-Páscoa abriria os olhos aos “Seus”, ainda cegos a essa altura, permitindo-lhes ler nas pegadas, as quais têm sido a Glória de Deus (Shekinah) e que, na pessoa “Daquele que o Pai enviou”, havia passado. O Evangelista sabia que as palavras de Jesus perante seus oponentes naquela hora ainda não faziam sentido. Escrevendo, ele se posiciona no lugar dos leitores de seu Evangelho após Pentecoste, aos quais o Espírito de Deus tinha aberto os ouvidos, antes surdos, aos irmãos que nas palavras do Filho puderam ouvir a voz do Pai. Eles, sim, foram capazes de honrar o Filho assim como honram o Pai. (24) Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida. Aos que O acusaram de blasfêmia, Jesus lançou, solenemente, o convite para a fé e vida eterna. A você, que lê neste presente momento o Evangelho, o mesmo convite está sendo feito. Observe que, no verso 24, o passado e o presente se fundem, apontando para o futuro. A promessa de vida eterna contrasta com a condição dos que não creem. A palavra no texto grego, traduzida com “não entra em juízo”, quer dizer “que não haverá julgamento” para os que ouvem o Pai nas palavras de Jesus. A condição contrária não será um processo judicial com possibilidade de defesa (alegando-se obras ou outros méritos), mas condenação. Você, como tem “ouvido” as palavras do Filho? Tem reconhecido nelas a voz do Pai? Tem honrado o Filho, porque nele somente você conhecerá ao Deus desconhecido? Ou tem, na sua vida diária, dispensado essa voz, pensando poder barganhar diretamente com Deus através de sacramentos, por exemplo? 128 • Na “Boa Nova” dos Evangelhos você ainda hoje pode ouvir a voz de Deus através das palavras do Filho! Cap. 5.25-30 (25) Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão. (26) Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. (27) E lhe deu autoridade para julgar, porque é Filho do Homem. (28) Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: (29) os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para ressurreição do juízo. (30) Eu nada posso fazer de mim mesmo. Julgo como ouço e meu juízo é justo pois não procuro minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. Continuemos assistindo a Jesus na defesa de sua ação perante “os judeus” (neste caso provavelmente fariseus). Não vemos as palavras relatadas como meras reflexões do Evangelista, mas como “resumo” do que Jesus proferiu perante os religiosos escandalizados. (25) Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão. Quem seriam os mortos que “ouvirão a voz do Filho de Deus e viverão”? Calvino, o grande Reformador, estava convencido de que Jesus tenha se referido aos “espiritualmente mortos” e que “ouvir a voz do Filho de Deus e começar a viver” corresponderia ao ato da conversão, ao Novo Nascimento. A maioria dos comentaristas, até hoje, tem seguido essa interpretação. Excepcionalmente, ousemos discordar do grande teólogo da Reforma. A interpretação dada por Calvino não corresponde à terminologia bíblica, melhor, judaica. Os judeus não conheciam uma “morte espiritual”, como o Apóstolo Paulo a usava figurativamente nas suas Cartas à Igreja helenizada. Na boca de Jesus, essa terminologia soaria muito estranha. Jesus era judeu. O Antigo Testamento não conhece a morte espiritual. Este é um termo que mais aponta para a Gnose e somente faria sentido muitos anos mais tarde. No presente momento, nós nos encontramos entre judeus, cuja referência era o Antigo Testamento (Lei e Profetas) e Jesus, que se expressou dentro da visão escatológica do Antigo Testamento. A palavra “ouvir”, usada no verso 25, no original grego significa “escutar atentamente, ou concordar”. O mesmo termo encontramos em 3.8 (voz do vento); em 10.3,4,5,16,27 (voz do bom pastor); 18.37 (...aquele que é da verdade, ouve a minha voz); 3.29 (...o amigo se regozija na voz do noivo) ou em 11.43 onde Lázaro ouve a voz de Jesus. No verso 25 temos “... a voz de Jesus que chama alguns.” e no verso 28 será a mesma voz que 129 chamará todos à vida. Todos esses eventos falam de uma voz conhecida e reconhecida a qual merece confiança. Não devemos, portanto, “espiritualizar” o trecho que estamos estudando. Ele não se refere à “volta do filho pródigo” (Lucas 15), tampouco à imagem da “morte em pecado e vivificado junto com Jesus” da teologia paulina, mas sim da segurança da fé de quem ouvir a voz do Pai, reconhecida no Filho. Quem ouvir e reconhecer essa voz, será vivificado quando Ele vier. Somente no contexto farisaico da ressurreição geral no fim dos dias, as palavras de Jesus podiam, embora não aceitas, serem contextualizadas pelos “judeus”, eles que, diariamente, clamaram pela chegada desse “último dia”. Você observou uma diferença nos assuntos “dos últimos dias” entre os Evangelhos sinóticos e o de João? Nos Evangelhos sinóticos vemos Jesus vivendo a expectativa escatológica iminente (a qualquer momento). Os primeiros cristãos participavam dessa esperança das “últimas coisas à porta”. Jesus os advertia por várias vezes a vigiarem (confira Mateus 24.36). O grande Apóstolo Paulo contava com o retorno de Jesus ainda durante seu tempo de ministério. Agora, meio século mais tarde, com o último dos Apóstolos (João) ainda vivo e Jesus ainda não tendo voltado e, portanto, não ter chamado os mortos à vida, João entende que já podemos ter parte desse Reino de Deus a ser revelado, quando “ouvimos e cremos nas Palavras do Filho”. A escatologia (“esperança das últimas coisas a acontecerem”) perdeu no decorrer do tempo seu lugar prioritário na igreja, sendo substituído paulatinamente pelo “sacramentalismo”, no qual a igreja alegava (e alega) possuir e ministrar aquilo que os primeiros cristãos ansiosamente esperavam do céu. De onde a Igreja recebeu essa autoridade? Após dessa observação histórica voltemos ao texto. Jesus se dirigiu a judeus dentro do que lhes era conhecido, pelas Escrituras, portanto dandolhes uma nova, absolutamente nova dimensão. (26) Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. O que para os “judeus” soou como blasfêmia, digna de morte, o leitor do Evangelho já conhece como realidade (confira 1.4). O Filho tem vida em si mesmo assim como o Pai a tem. Não há como pensar ou expressar mais radicalmente a unidade de Pai e Filho. Se levássemos esse pensamento até ao fim, poderíamos até nos perguntar quem ressuscitou Jesus dos mortos? Considerando a unidade de Pai e Filho, não há contradição. As Escrituras, na sua maioria, dizem que “Deus O ressuscitou”. Em outros trechos, elas não deixam claro se Jesus se ressuscitou a si mesmo ou se foi Deus que O chamou. Encontramos até o “neutro:” “Ele ressuscitou”. Deixemos esse mistério com Deus. O importante é o fato, não sua interpretação humana. 130 (27) E lhe deu autoridade para julgar, porque é Filho do Homem. Não ao apocalíptico “um como Filho do Homem” (Daniel 7.13), que “apareceu junto com as nuvens e é conduzido até à presença do ancião” (Deus), mas sim, ao Filho amado foi dado o poder de julgar. Ainda não fora respondida a pergunta do “porquê” do verso 22. O verso 27 nos responde: “Porque era homem” (confira Atos 17.31). O sentido do verso 27 é o seguinte: Exatamente porque o Deus encarnado no Filho (Jesus Nazareno) tornou-se homem igual a nós (Hebr. 2.17 e 4.15), o Pai entregou a esse Filho-homem o poder de julgar os homens. A acusação “dos judeus” de que Ele se fazia igual a Deus – ele, homem como era – encontra seu clímax na resposta do verso 27: Exatamente por ser homem entre homens, Deus lhe podia delegar a “maior de todas as obras”, isto é a ressurreição no final dos tempos, quando todos os mortos serão chamados para o Juízo Final. (28) Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: (29) os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para ressurreição do juízo. A ressurreição de todos os mortos está além do alcance do nosso Evangelho, pois não mais se restringirá à mencionada em 4.23 e 5.25. Assim como a voz do Filho dará aos que a ouçam uma nova condição de vida (2.Cor.5.17), incluirá todos os mortos desde o tempo de Adão, sejam eles enterrados, queimados, engolidos ou simplesmente “sumidos”. O Evangelho de João foi escrito para cristãos aflitos, colocando em primeiro plano os homens e sua reação à palavra e missão do Filho. Cremos que a nova criação abranja o cosmo como um todo, uma vez que este propositalmente está ligado no Prólogo com Gênesis 1. A palavra do verso 30 reconduz ao início dessa primeira parte das palavras de Jesus, reforçando o dito no verso 19, fazendo a ponte para a seguinte “legitimação” nos versos 31-40, onde Jesus não mais fala na terceira pessoa singular, mas identificando-se como “eu”. (30) Eu nada posso fazer de mim mesmo. Julgo como ouço e meu juízo é justo, pois não procuro minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. O juízo dele é justo porque Sua ação está fundamentada no ininterrupto “ouvir” (presente!) da voz do Pai. Ele age como Deus encarnado e, portanto, com justiça. 131 Cap. 5.31-40 (31) Se eu testifico a respeito de mi mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro. (32) Outro é que testifica a meu respeito, e sei que é verdadeiro o testemunho que ele dá de mim. (33) Mandastes mensageiros a João, e ele deu testemunho da verdade. (34) Eu, no entanto, não aceito humano testemunho; digovos, entretanto, estas coisas para que sejais salvos. (35) Ele era a lâmpada que ardia e alumiava, e vós quisestes, por algum tempo, alegrar-vos com a sua luz. (36) Mas eu tenho maior testemunho do que o de João; porque as obras que o Pai me confiou para que eu as realizasse, essas que eu faço testemunham a meu respeito de que o Pai me enviou. (37) O Pai que me enviou, esse mesmo é que tem dado testemunho de mim. Jamais tendes ouvido a sua voz, nem visto a sua forma. (38) Também não tendes a sua palavra permanente em vós, porque não credes naquele a quem ele enviou. (39) Examinai as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. (40) Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida. As palavras que se seguem podem ser vistas como “legitimação” do próprio Jesus. Lembremos que, na presente exposição, temos um judeu se identificando perante outros judeus. As duas partes são conhecedoras da Lei e dos Profetas; as duas partes estão interessadas e zelando pelas coisas de Deus. De um lado temos Jesus, tido por sábio entre muitos dos fariseus, até “enviado por Deus, não temendo os homens” (confira 3.2). Do outro lado, religiosos, escandalizados pela aparente profanação do dia de sábado e com a autoridade que Jesus demonstrara nas palavras e ações. Não sabemos exatamente quando e onde os “mestres da Lei” confrontaram Jesus, mas com certeza aconteceu após a cura do homem paralítico no tanque de Betesda (confira na primeira parte do capítulo 5). Tampouco ouvimos da reação dos “judeus” às palavras proferidas por Jesus. Olhando, porém, o conjunto dos versos 19 a 47 como um todo, percebemos que, na medida em que o acusado (Jesus) fala, defendendo sua missão e legitimando-se, os próprios interrogadores transformam-se em acusados. (31) Se eu testifico a respeito de mi mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro. A credibilidade de testemunhas, isto é, sua “legitimação”, é básica e decisiva na legislação forense. No Evangelho de João podemos perceber a importância que o autor confere a “testemunhas” e “testemunhos”. Através de suas declarações, denominadas “testemunhos”, o autor quer tornar “judicialmente válido” – provar - aquilo que diz (veja como João resumiu seu Evangelho, por exemplo, em 21.24). Como bom judeu, Jesus concorda com seus oponentes no princípio de que o testemunho do próprio acusado em favor de si mesmo é inválido. (32) Há outro que testifica de mim, e sei que o testemunho que ele dá a respeito de mim é verdadeiro. 132 No Evangelho todo, Jesus aparece como testemunha em causa própria, porém sempre sob a premissa de, por si mesmo, não falar ou fazer alguma coisa (5.19; 30). Na realidade, não é Ele que advoga em causa própria: é “outro” que o faz. O teólogo suíço, Karl Barth (1909-1968) o expressou da seguinte forma: “Nisso consiste a soberania de Jesus... A tarefa, o fardo, a preocupação de dizer, de anunciar, de proclamar: ‘estou aqui e sou Eu’ – não pesa sobre Ele. ‘Um outro’ faz tudo isso para Ele...” (Barth, Decl.289). Inicialmente, somos levados a identificar João Batista com “esse outro”. Os versos seguintes parecem confirmar essa hipótese. Mesmo assim, pressentimos desde já, o que no verso 37 virá a ser explicado: ‘O outro’ – e nisso consiste o paradoxo – é o Pai que, pela boca, por palavras e obras desse Seu Filho testifica a Seu favor. Em 8.14, em um contexto semelhante, Jesus novamente se refere ao seu testemunho e imediatamente explicita a razão da validade de seu testemunho (confira 8.15-19). Não é o testemunho do “filho de José, carpinteiro”, o qual os judeus dizem conhecer (6.42), mas sim, o testemunho do Pai. O “lógico, judicialmente correto” de 5.31 transforma-se em “irreal lógico” pela revelação de 8.16 (confira!) (33) Mandastes mensageiros a João, e ele deu testemunho da verdade. João Batista fora martirizado (Marcos 6,14ss). Jesus fez se lembrarem desse homem. Àquela altura, os religiosos haviam enviado uma comissão de inquisição a João, querendo saber quem, no plano de Deus, ele seria. Foi feito um interrogatório (confira 1.19ss). Através da “confissão negativa” do Batista de “não ser nem o Messias, nem Elias e nem o profeta anunciado por Moisés”, quem “tinha ouvidos para ouvir”, naquele tempo já poderia ver o Batista apontar para um “outro” no seu meio, ainda anônimo. Mais ainda: pela “confissão positiva” do Batista, os judeus foram informados de que ele nada mais era do que um precursor e sua mensagem não podiam ir além do “Arrependei-vos, pois depois de mim vem o mais forte do que eu... que batizará com o Espírito Santo” (Marcos 1). O Batista havia dado testemunho da verdade. Jesus, sabiamente, antes de revelar a identidade desse ‘outro’ cujo testemunho seria decisivo, lembrou seus colegas religiosos do testemunho do profeta, reconhecido por eles como homem de Deus. A voz do Batista, há anos, silenciara. Seu solene testemunho de não ser nem o Messias, nem Elias nem “o profeta” anunciado por Moisés em Deut.18.18ss implicava em reconhecer que, agora, visível para todos, com Jesus todas as promessas mosaicas estavam sendo não só cumpridas, mas superadas. Eles, fariseus e mestres da Lei, que reconhecidamente e com grande esforço perscrutavam as Escrituras, deveriam ter, pelo menos, olhos abertos para entender o que se deu com a aparição de Jesus: o cumprimento da palavra de Moisés (Deut.18,18): “Vou suscitar para eles (judeus) um profeta como tu (Moisés), do meio de seus irmãos. Colocarei as minhas palavras na sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhes 133 ordenar. Caso haja alguém que não ouça as minhas palavras, que este profeta anunciar em meu nome, eu próprio irei acertar contas com ele...”. Quem, senão esses religiosos, que estavam se escandalizando com Jesus, deveriam saber que nenhum profeta jamais poderia legitimar-se de outra maneira do que apontar para O que o enviou, destinando-o para a dura tarefa de profeta. Ser enviado por Deus não é tarefa fácil; não serve para abastecer o “Ego”, como nos “Apóstolos” atuais. Pelo contrário, é dura tarefa. Veja Amós 3.8 no Antigo Testamento. Veja as palavras do Apóstolo Paulo em 1.Cor. 9.16! (34) Eu, no entanto, não aceito humano testemunho; digo-vos, entretanto, estas coisas para que sejais salvos. Com a menção do Batista e de seu testemunho altruísta a favor da verdade, junto com a declaração de que “outro” testificaria em favor dele, Jesus parecia identificar o Batista como “aquela outra testemunha” a seu favor. Ao dizer que não depende de testemunho de mortal, Jesus descartou tal conclusão através de duas observações. Primeiro: No verso 32 Jesus falou do testemunho a seu favor no tempo presente: agora mesmo “aquele outro” estaria testificando a seu favor, enquanto o testemunho do Batista pertence ao passado. Segundo: Jesus fez menção do Batista com o intuito de chamar atenção às palavras dele, para que esses seus compatriotas “sejam salvos” aceitando as palavras do Batista. O que Jesus queria, trazendo o Batista à memória e depois se distanciando dele? Parafraseando com Karl Barth poderíamos dizer assim: “Não como palavras de homem aceito o testemunho do Batista a meu favor, nem reconheço nas palavras dele o testemunho “daquele outro”. Homem nenhum é capaz de dar a favor de outrem o testemunho do qual Eu preciso. Nem João Batista o podia. Não estou falando do testemunho de um homem, quando vos lembro do Batista. Estou lembrando do testemunho dele a fim de que vocês sejam salvos! Ser salvo, porém, ninguém pode, a não ser “por aquele” que através do Batista já lhes falava; não o Batista, mas sim “aquele outro”. Vocês não ouviram “aquele outro” quando o Batista lhes falava?” (Barth, Decl. 291s). (35) Ele era a lâmpada que ardia e alumiava, e vós quisestes, por algum tempo, alegrar-vos com a sua luz. Jesus não estava falando de qualquer luminária, quando mencionou a candeia que era João. Falando a judeus conhecedores das Escrituras, todos sabiam a que trecho Jesus se referia: “... seus fiéis exultarão de alegria. Ali farei brotar uma linhagem de Davi,e prepararei uma lâmpada ao meu Messias...” (Salmo 131.16b,17ª) ou Bíblia católica Salmo 132. 134 O Batista era a luminária colocada por Deus a fim de iluminar o Cristo, o Messias; essa era sua real missão, o conteúdo da verdade pela qual ele dava testemunho. Mas, ao invés de exultar de alegria “por aquele” que foi enviado por Deus e apontado pelo Batista e cegos, como eram, “alegraram-se por um pouco de tempo” na trêmula luz do próprio João Batista. Ao reconhecer a alegria temporária dos judeus no Batista – mesmo que não tenham compreendido a finalidade dessa luz –, o próprio autor do Evangelho deixa claro que sua obra se opõe primeiramente a um judaismo que há muito incorporou a figura do profeta Batista como “seu”, mesmo não entendendo sua mensagem. Da mesma maneira a Igreja hoje nomeia (incorpora) “Santos” sem se minimamente preocupar com a mensagem da parte de Deus através daquelas pessoas extraordinárias. (36) Mas eu tenho maior testemunho do que o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que eu faço, testificam de mim, que o Pai me enviou. Não havia dúvida de que o testemunho de Jesus, do Filho de Deus, que batiza com o Espírito Santo e ressuscita mortos, era maior do que o de João, cuja ratio essendi (razão, função) era diminuir, enquanto “aquele outro” tinha que crescer (3.30). O Batista não era qualquer um. Era o homem eleito por Deus para dar testemunho daquele que, desconhecido ainda, havia aparecido no meio de Israel como “a luz do mundo” (1.5/8.12). Por essa razão, Jesus lhes apontou a possibilidade de “salvação”. Os dois, o Batista e Jesus, foram mal entendidos; os dois encontravam ouvidos fechados, surdos para a voz “dAquele outro” e cegos para a obra que no Filho fora consumada. Ao invés disso, haviam incorporado o profeta como um deles e a Jesus também consideravam como um “igual a eles”, embora merecedor de morte por causa de suas palavras. Se você ainda considera Jesus mero “alguém”, ainda que grande, importante, evoluído, sábio conselheiro ou seja lá o que for, mas não vê e escuta nele “Aquele outro”, você perde tudo. “A vida histórica de Jesus (o “Jesus histórico”) sem revelação de seu significado teológico e escatológico; toda a “história de Jesus”, - enquanto o testemunho “dAquele outro” está sendo rejeitado (ou ignorado) ... não é mais de que qualquer outra história”. (K.Barth). Pergunto: O que visa o ensino na sua “Escola Dominical? Ele traz conhecimento ou salvação? Ele abre seu entendimento a fim de poder “ouvir” e “ver” “Aquele outro” na pessoa do Nazareno? Ouvir e ver é diferente de “aprender”!! Ouvindo e vendo, você está ligado à fonte. Aprendendo, você só repete e, como sabemos, até papagaios conseguem tal façanha! 135 (37) O Pai, que me enviou, esse mesmo é que tem dado testemunho de mim. O próprio Pai dera testemunho pelas obras realizadas por Jesus. Os judeus, conhecedores das Escrituras, não viram sendo cumpridos os sinais que os profetas anunciavam? O próprio profeta João Batista não realizou nenhum milagre; nenhum sinal dele consta nas Escrituras. Era o Batista que anunciara o “maior” que viria após ele. E agora não querem aceitar o cumprimento e testemunho do próprio Pai! Como podiam crer nas Escrituras se não as reconhecem sendo cumpridas? Também não tendes a sua palavra permanente em vós, porque não credes naquele a quem ele enviou. Jamais tendes ouvido a sua voz, nem visto a sua forma. (38) E a sua palavra não permanece em vós, porque naquele que ele enviou, não credes. Quanto às afirmações de nunca terem ouvido ou visto a Deus, os Rabinos certamente concordariam com Jesus. Na época do Novo Testamento, os Rabinos, zelando pela absoluta transcendência de Deus, (pertencendo a outra realidade) haviam migrado para a interpretação de todas as “teofanias” (aparições de Deus) das Escrituras como manifestações do “Anjo do Senhor”. Onde as Escrituras mencionam a voz de Deus, eles a entendiam como “eco da voz de Deus” (Thyen). O próprio Deus de Abraão, Isaque e Jacó não podia nem devia ser identificado nem pela sua voz nem pela sua forma de aparência. Quando Jesus declara que seus oponentes nunca tinham visto a Deus, Ele estava de pleno acordo com seus oponentes (“Deus nunca foi visto por alguém”, João 1.18). A declaração de nunca terem ouvido a Sua voz, no entanto, deve ser considerada como dita a determinadas pessoas antagônicas, numa determinada ocasião, e nunca como negação generalizada referente ao povo de Deus. Jesus sabia que Deus, qualquer que tenha sido a forma, tinha falado com Israel, seu povo, e com Moisés, pessoalmente, “como um homem fala com outro, face a face” (Êxodo 33.11). Quando Moisés entrou na Tenda da Reunião, ouviu a voz falando, e quando Moisés no Sinai falou com Deus, “Este lhe respondeu no trovão”. Abraão e Isaías viam Sua Glória. O Evangelista não podia negar as Escrituras. Moisés ouviu a voz que falou da sarça ardente, revelando-lhe seu nome “Eu sou aquele que é” (Êxodo 3). Podemos nos perguntar se o que os Rabinos interpretavam como aparições do “Anjo do Senhor”, não eram manifestações da Glória do “Verbo”, do Filho, do único no qual Deus se revelou ao homem? Independentemente do que alguém diz, o “som” de sua voz identifica a pessoa que fala. Antes de a mensagem ser captada, aquele que fala é identificado pela sua voz. O Deus transcendental (do outro lado) não pode 136 ser identificado pela voz com que fala, nem pela sua aparência, pois é Espírito Criador; não pode ser definido. Os acusadores de Jesus nunca podiam ter a palavra desse Deus “permanecendo” neles. A mensagem, sim, a Sua Palavra na Torá, eles conheciam. Eles podem ouvi-la (através da Torá) e guardá-la, bem como esquecê-la. Somente o Filho pode ser reconhecido pela sua voz. “As ovelhas ouvem a Sua voz e O seguem... pois conhecem a Sua voz” (10.4). A esse enviado, no qual vemos o Pai, não cremos?! (39) Examinais as Escrituras, porque cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam. (40) E não quereis vir a mim para terdes vida. O Salmo 1 fala do homem que “dia e noite medita na Lei de Deus, pois nele tem o seu prazer”. Neste sentido positivo, Jesus está afirmando aos que O ouvem que estejam realmente perscrutando as Escrituras. Só que, ao invés de procurar vida Naquele do qual essas Escrituras dão testemunho, eles procuram “a vida” na própria Escritura. Exatamente como fizeram com João Batista. Alegraram-se na luz do profeta, mas não percebiam que a luz do profeta foi dada por Deus para que, através dela, notificassem a presença do Cristo de Deus. Cap. 5.41-47 (41) Eu não aceito glória que vem dos homens, (42) sei, entretanto, que não tendes em vós o amor de Deus. (43) Eu vim em nome do meu Pai, e não me recebeis; se outro vier em seu próprio nome, certamente, o recebereis. (44) Como podeis crer, vós que aceitais glória uns dos outros, e, contudo, não procurais a glória que vem de Deus único? (45) Não penseis que eu vos acusarei perante o Pai; quem vos acusa é Moisés, em quem tendes firmado a vossa confiança. (46) Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. (47) Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras? No trecho de hoje, os papéis se invertem. Aquele que pelos “judeus” fora rejeitado e acusado de transgredir a Lei de Moisés, repentinamente assume papel de acusador. Novamente não sabemos onde e quando esse confronto aconteceu e que João, no seu Evangelho, resumiu em poucos versos, porém pesados. Notamos como o Evangelista praticamente assumiu a personalidade de Jesus, falando por ele. Toda a consternação do Evangelista contra os religiosos, bitolados na Lei e cegos para aquilo e Aquele que veio de Deus, está contida nos versos 41 a 47. O assunto é atualíssimo. Não conheço você, que está lendo este texto. Não sei se você anda contente e se jubilando com sua igreja ou se você sofre com ela. Qual a doença das nossas igrejas, como um todo? 137 Onde é que começa aquilo que acaba com tudo onde estamos: onde todos falam de Deus, todos falam em nome de Deus, prometem, proclamam e assumem perante seus seguidores ares divinos, glória, títulos e honrarias e, claro, o bem-estar e o reconhecimento do mundo? Não é à toa que determinado comentarista secular definiu toda essa atividade frenética (limitemo-nos aos “evangélicos, pois não somos chamados para avaliar os irmãos católicos) como uma “masturbação religiosa”, dando e recebendo a si mesmo. Com que autoridade os nossos líderes evangélicos falam de Deus – se eles jamais ouviram a voz do Filho? Se tivessem ouvido e obedecido, o nosso “mundinho evangélico” daria outro “testemunho” perante um mundo espiritualmente faminto. E nós, simples “cordeirinhos”, daríamos outro exemplo na nossa vida diária. (41) Eu não aceito glória que vem dos homens, (42) sei, entretanto, que não tendes em vós o amor de Deus. Pouco antes, no verso 34, Jesus havia declarado que não aceita humano testemunho a seu favor. Agora Ele parece dizer: “Não estou atrás de vosso reconhecimento. Entendi muito bem todos vocês! Vocês não têm nenhum amor singelo para com Deus nos seus corações”. O teólogo Karl Barth diz: “Se os judeus pensavam que o Nazareno estivesse interessado em lhes provar no sentido histórico sua autoridade, falando como humano e procurando reconhecimento também humano, estariam redondamente enganados... Jesus estava se referindo unicamente ao testemunho “daquele outro” e para tanto, levantou “o testemunho” do Batista, para lembrá-los que aquele “outro” testemunho já lhes havia sido dado, e através de homens...” Continuando parafraseando as palavras de Jesus por Karl Barth: “Vocês podem admirar o Batista, podem ficar espantados com meus sinais (milagres), lembrar das antigas promessas das Escrituras, estudar teologia – mas vocês não amam a Deus! O Sujeito de todos esses testemunhos não lhes interessa! Outrossim, não seria possível não me reconhecer, não aceitar, eu que vim em o nome desse Sujeito, em o nome do Deus Único – não como outra testemunha, mas sim, como Aquele de quem todos os testemunhos falavam” (Decl. 295). Quando Jesus disse “vós”, Ele não se referiu à nação judaica como um todo. Ele apontou aos oponentes nesse seu discurso. É deles que Jesus não procura honra; das testemunhas das Escrituras, no entanto (sejam eles Moisés ou o Batista), Ele já as recebeu, porque nas vozes deles já fora possível ouvir a Palavra do Pai. (43) Eu vim em nome do meu Pai, e não me recebeis;... No solene “em nome do meu Pai” ouvimos mais do que uma mera qualificação de profeta. O “meu Pai” aponta para o mistério do “Filho Único”. Na oração de Jesus, quando estava para voltar ao Pai, Ele resumiu todo seu ministério nas palavras: “Manifestei o teu nome aos homens que 138 me deste do mundo” e na mesma oração pouco depois (36): “Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles também”. Não podemos deixar de lembrar da “voz de Deus” na sarça ardente (Ex.3.14): “EU SOU O QUE SOU” sem lembrar das várias declarações de Jesus: “Eu sou...” lembradas por João no seu Evangelho. ... se outro vier em seu próprio nome, certamente, o recebereis. Muita especulação já foi feita tentando entender quem seria “este outro” que viria em seu próprio nome. Será que João (que com grande probabilidade conheceu bem o Evangelho de Marcos) se refere aos mencionados em Marcos 13.6? Ou ele falou de experiências próprias, ou dos “zelotes” na grande rebelião contra Roma, ou até mesmo do levante sob “Bar-Kochba (último Príncipe de Judá), quando muitos dos judeus criam ter nele “o Messias” prometido? (Schlatter). Outro comentarista apontou para o próprio diabo com base em 8.44 (Odebrecht). O problema nas hipóteses históricas está em que o Evangelho foi escrito anos antes desses acontecimentos. Ao invés de especular, faremos bem em, humildemente, entender que somos vulneráveis a “outros” em detrimento do Verdadeiro. (44) Como podeis crer, vós que aceitais glória uns dos outros, e, contudo, não procurais a glória que vem de Deus único? Se perdemos de vista a Glória devida ao Deus Único - revelado na pessoa de Jesus somente -, tendemos a procurar e aceitar honras uns dos outros e em nenhuma esfera isso se constata melhor do que na da religião. Essa sentença é geral, e durante toda a história da Igreja ela tem sido um juízo contra ela. Não precisamos apontar para Roma, onde honras devidas a Deus estão sendo perpetuamente roubadas. Basta olhar para os milhares de gordos “minipapas” do mundo Evangélico, tidos como “Anjos do Senhor” e muito mais... (45) Não penseis que eu vos acusarei perante o Pai; quem vos acusa é Moisés, em quem tendes firmado a vossa confiança. A missão de Jesus não é a de acusar. Sua missão é a de salvar (3.17). Os judeus têm plena confiança na missão atribuída a Moisés, a de ser em favor do povo no dia do Juízo Final; isto é, na sua intervenção como mediador ou advogado perante Deus. Assim ocorreu no passado durante a peregrinação no deserto, quando Moisés várias vezes conseguiu desviar a ira de Deus (por exemplo, em Êxodo cap. 32). Este advogado, em que os judeus confiam, é quem os acusará. A esperança do judeu em Moisés é vã. (46) Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. (47) Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras? 139 Não cremos que temos de “colher” determinados versos do “Pentateuco” (livros de Moisés) para provar que eles apontam para o Cristo. O Apóstolo João viu toda a Escritura, da primeira até a última palavra, como “a história de Deus com o seu povo”. Já o Prólogo do Evangelho faz referência à Criação. Podemos ver em João 1.16-17 o paralelismo entre a figura de Moisés, intermediador da Graça Divina limitada para seu povo, e a pessoa de Jesus que, pela Graça escatológica revelada em si, supera a Graça de Deus na Antiga Aliança. Assim, Moisés já falava de Jesus, embora indiretamente, anonimamente. Assim como Moisés vivia a tensão entre a Lei de Deus, a eleição do povo e seu testemunho para o mundo, assim também Jesus viveu. Há uma identidade íntima entre a figura do legislador anterior (Moisés) e o da nova (Jesus). É obvio que não se trata de uma relação histórica, mas, sim, de conhecimento ou revelação. Quem entender a figura de Moisés conhecerá a Jesus. Da mesma forma, há uma relação íntima entre o profeta Isaías (que escreveu, sem O conhecer, sobre Jesus) e o Salvador. Finalizando o conjunto das palavras de Jesus, lembramos que o Evangelista introduziu Jesus (cap.1) como o “Logos”, trans-subjetivo, qualificativo. Para o Evangelista, não há como conhecer Deus sem o Cristo. O nosso, o seu encontro com Jesus, revelará, seja onde for, se devidamente ouvimos e entendemos a Palavra do Eterno Pai. No encontro de Jesus com Filipe (1.45), este imediatamente reconheceu em Jesus Aquele de quem Moisés já escrevera. Cap. 6.1-4 (6.1) Depois destas coisas, atravessou Jesus o mar da Galileia, que é o de Tiberíades. (2) Seguia-o numerosa multidão, porque tinham visto os sinais que ele fazia na cura dos enfermos. (3) Então, subiu Jesus ao monte e assentou-se ali com os seus discípulos. (4) Ora, a Páscoa, festa dos judeus, estava próxima. Para quem estuda mais a fundo o Evangelho segundo João, não há como ignorar o parentesco, às vezes literal, com o Evangelho de Marcos, o mais antigo dos três sinóticos. O capítulo 6 serve para muitos comentaristas como “prova” do conhecimento e seu uso por João. Nos dois Evangelhos encontramos não somente as mesmas palavras (6.7,20,69), mas sobretudo a mesma ordem literária. Temos no capítulo 6 do Evangelho de João uma abordagem joanina, portanto simbólica, daquilo que Marcos nos relata no seu próprio estilo, tecnicamente preciso, até nos detalhes. Na sua visão cristológica, João segue a mesma ordem dos acontecimentos que Marcos, dezenas de anos atrás, havia escolhido e que formam uma unidade temática. São eles, na ordem seguinte: o milagre do pão (Marcos 6,32-44); o andar sobre as águas (Marcos 6,45-52); o pedido 140 de um sinal por parte dos fariseus (Marcos 8,11-13); as palavras de Jesus a respeito do pão (Marcos 8,14-21); a confissão de Pedro (Marcos 8,27-30); o anúncio do sofrimento por Jesus (Marcos 8,31) e, finalmente, a palavra quanto a Satanás (Marcos 8,32s). No decorrer do estudo faremos referências a Marcos onde nos parecem fazer sentido. (6.1) Depois destas coisas, atravessou Jesus o mar da Galileia, que é o de Tiberíades. O grande lago, chamado nos quatro Evangelhos comumente “Mar da Galileia”, aparece só três vezes relacionado com a cidade de Tiberíades e, as três vezes, somente no Evangelho joanino (6,1;23 e 21,1). A cidade de Tiberíades, na margem oriental do lago, foi fundada por Herodes Antipas nos anos 26/27 d.C. em homenagem a César Tibério, como cidade helenista (= com costumes gregos). Como ela fora levantada na região de um antigo campo de túmulos, foi considerada “impura” pelos judeus e Herodes teve que usar a força da lei para que ela fosse habitada, preferencialmente por não-judeus. Somente no século 3º a cidade foi declarada “pura” pelos fariseus e tornou-se, sob Jehuda Há-Nasi, sede do patriarcado judaico. A menção dessa cidade recém-levantada nos dias de Jesus, no presente contexto, permite-nos entender que Jesus havia se retirado para um lugar seguro, perto de sua terra natal, a Galileia. Os discursos no capítulo anterior dão margem à ideia do perigo que Jesus corria em Jerusalém, principalmente por causa de suas declarações, que acabamos de estudar nas lições anteriores. Devemos ter bem claro que havia vários momentos em que Jesus, literalmente, teve que fugir. Os Evangelhos não usam esse termo (confira em Mateus 15,21; Marcos 3,7; Lucas 4,29.30; 5,16 e 9,10 e João 6,15). Eles, respeitosamente, dizem “retirou-se”. Na referência de Lucas 4.29,30 tratou-se claramente de uma fuga. Jesus escapou aos que lhe foram no encalço. (2) Seguia-o numerosa multidão, porque tinham visto os sinais que ele fazia na cura dos enfermos. Não nos é dito por qual caminho Jesus havia chegado à margem oriental do Mar da Galileia. A numerosa multidão que O seguia (“porque tinham visto os sinais que Ele fazia”) constituiu-se provavelmente dos mesmos peregrinos festivos que já O acompanhavam com suas famílias quando Ele subiu para a festa (cap. 5.1). João menciona “os sinais” que Jesus fazia “na cura dos enfermos”. Pelo seu Evangelho, no entanto, sabemos somente de dois (a cura do servo do oficial e a do paralítico em Jerusalém), mas podem ter sido muitos mais. O Evangelista não se interessava em enumerar curas. Ele citou alguns sinais, provavelmente os dos quais teve informações concretas ou de que fora testemunha ocular, e usou-os para levar o leitor à conclusão que tinha em mente ao escrever seu Evangelho: Abrir os olhos deles para a “Glória de Deus” na pessoa de Jesus de Nazaré. O termo grego que o Evangelista usou para qualificar a “multidão” mencionada é um termo quase técnico e que mais precisamente significa: 141 “seguidores” (não: “discípulos”). Com este termo ele os qualificou, desde já, como pessoas que O seguiam enquanto viam nisso alguma utilidade, mas logo depois O abandonaram, considerando Suas palavras “duras demais” (6.60s). (3) Então, subiu Jesus ao monte e assentou-se ali com os seus discípulos. (4) Ora, a Páscoa, festa dos judeus, estava próxima. Jesus chegou a subir a uma colina (monte) com seus discípulos (somente), provavelmente procurando descanso. É neste momento, em que o Evangelista observa a proximidade da festa da Páscoa. Todo o Evangelho de João deve ser lido na perspectiva da Páscoa. Desde o começo, o autor mostra Jesus como Aquele que cumpre a missão que o Pai lhe outorgou. A Páscoa, por assim dizer, já estava acontecendo espiritualmente quando o Batista anunciou: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (1.29) e ela se consumiu quando Jesus, por amor aos seus, morreu na cruz, exatamente na hora da matança dos cordeiros pascais no Templo. Ainda mais: como ordena a “Halacha da Páscoa” (ordem cultual judaica), não lhe fora quebrada nenhuma perna (19.31s). A denominação “Páscoa, a festa dos judeus” corresponde ao uso comum e não indica que João quer se distanciar “dos judeus”. Além de ser usada várias vezes (2.13; similarmente em 7.2), o historiador judaico Josefo também a usou na sua descrição da Festa dos pães asmos, quando disse que esta era chamada “Páscoa pelos judeus”. Essa Páscoa é o grande tema do Evangelista: a hora em que o Pai mesmo faria expiação pelo seu povo e pelo mundo. Confira neste contexto Hebr. 9,11-22, antes de continuar o estudo. Assim, você entenderá melhor o significado dessa Páscoa do Senhor para o judeu cristão. Levantando os olhos, Jesus vê uma multidão se aproximando. De longe O haviam seguido e nem o cansaço os havia levado a desistir de ir atrás desse “Jesus de Nazaré”. Antes de olhar a própria descrição do “sinal dos pães” (na próxima lição) convém pensar a respeito de dúvidas sempre levantadas e dificilmente respondidas num sermão dominical. Comparando os quatro Evangelhos, encontramos várias contradições. O sinal em si não é contestado: aconteceu, mas não foi compreendido logo, nem pelos discípulos, nem pelo povo saciado. O que chama a nossa atenção é que Marcos relata duas alimentações, enquanto João só conhece uma. Além do mais, nos detalhes há diferenças. No relato de João é Jesus aquele que age, ordena, observa, enquanto em Marcos a iniciativa parcialmente parte dos discípulos. O sinal em si é o único milagre que todos os quatro Evangelhos contam. Ele está fora de dúvida; aconteceu e foi compreendido somente muito mais tarde. A tradição reconheceu neste sinal o clímax do ministério de Jesus, o que, de fato, é o caso. Assim, cada Evangelista procurou descrever da melhor maneira e servindo ao propósito de seu Evangelho 142 aquilo que, de fato, aconteceu naquele dia. Todos os Evangelistas sabem que, após a refeição, Jesus ordenara que os restos fossem recolhidos. Só que em Marcos, no relato mais remoto, foram 12 cestos na primeira e sete na segunda alimentação enquanto João somente conhece doze cestos. Não há dúvida de que os Evangelistas querem transmitir uma mensagem através do número de cestos cheios recolhidos das sobras. Não somente isso: Marcos sabe de 5 pães e dois peixes na primeira e de 7 pães e “alguns peixinhos” na segunda alimentação, enquanto João lembra de 5 pães e dois peixinhos disponíveis inicialmente para a alimentação da multidão. O que significam esses números contraditórios? Como pertencemos a uma geração estranha ao simbolismo judaico, sendo uma “geração racional”, que desaprendeu a entender símbolos e está presa a números exatos, encontramos dificuldades no texto. Não as resolvemos apenas mandando “crer” que sete é igual a doze. Dependemos, de um lado, do conhecimento das Escrituras da Antiga Aliança e, de outro, de humildade perante o mistério. Como já mencionamos, podemos ter como certo que João conheceu o Evangelho de Marcos e o usou como fonte de informação. Observamos que o nosso Evangelista nada repete do que Marcos já disse. Uma possível explicação das diferenças encontradas é a seguinte, apresentada por H.Thyen no seu “Comentário do Evangelho de João (2005): Parece que João reuniu os dois relatos de Marcos (6,35s e 8,1-9) num só. Marcos, por sua vez, parece ter usado o caminho contrário: da tradição e do conhecimento mais remoto, ele por razões que ora não podem ser definidas, criou dois acontecimentos. Chamam atenção os números diferentes de cestos nos dois acontecimentos relatados por Marcos. A alimentação dos cinco mil com 12 cestos cheios parece apontar para a esperada reunião dos doze tribos (ainda espalhados) de Israel, enquanto os sete cestos na alimentação dos quatro mil representam a totalidade dos povos, vindos dos quatro cantos do mundo. Marcos compreendeu, ao escrever seu Evangelho, que a Páscoa apontava para a consumação do tempo. João, por sua vez, meio século mais tarde, entendeu que a reunião e consumação só seriam possíveis pelo Senhor ressurreto e Seu Espírito, concedido a Seu povo. Portanto reuniu as duas narrações de Marcos numa só. Salientamos que as considerações acima devem ser vistas como uma hipótese provável, não como instrução bíblica. João, Evangelista, conheceu com certeza as Escrituras e, ao relatar a alimentação, lembrou-se do mesmo sinal (milagre do pão) do profeta Eliseu (2.Rei 4,42-44) quando menciona os “pães de cevada” do menino (6.9). 143 O autor do livro de 2 Reis 4.42 conta que “veio um homem de BaalSalisa e trouxe ao homem de Deus pães das primícias, vinte pães de cevada, e espigas verdes no seu alforje. Disse Eliseu:’Dá ao povo para que coma’. (43) Porém, seu servo lhe disse: ‘Como hei de por isto diante de cem homens?’ Ele (Eliseu) tornou a dizer: ‘Dá-o ao povo, para que coma; porque assim diz o Senhor: Comerão, e sobejará. (44) Então, lhes pôs diante; comeram, e ainda sobrou, conforme a palavra do Senhor”. No capítulo anterior ouvimos como Jesus apontou “as Escrituras” como testemunha fiel a seu favor. Sendo assim, a semelhança do acontecimento acima não pode ser desprezada. Mais ainda: Pão de cevada era comida típica de gente pobre: comida de disciplina para maus soldados, alimento para escravos e gente insignificante. Fonte: Bauer, Com.92. Sendo assim, entendemos melhor que Deus do “nada” faz alguma coisa para sua Glória. Ele não precisa do pão de ricos; Ele usa você e eu e nos transforma de acordo com Sua soberana vontade. Cap. 6.5-15 (5) Então, Jesus erguendo os olhos e vendo que grande multidão vinha ter com ele, disse a Filipe: “Onde compraremos pães para lhes dar a comer?” (6) Mas dizia isto para o experimentar; porque ele bem sabia o que estava para fazer. (7) Respondeu-lhe Filipe: “Não lhes bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um seu pedaço.” (8) Um de seus discípulos, chamado André, irmão de Simão Pedro, informou a Jesus: (9) Está aí um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta gente?” (10) Disse Jesus: “Fazei o povo assentar-se; porque havia naquele lugar muita relva. Assentaram-se, pois, os homens em número de quase cinco mil. (11) Então, Jesus tomou os pães, e, tendo dado graças, distribuiu-os entre eles; e também igualmente os peixes, quanto queriam. (12) E, quando já estavam fartos, disse Jesus aos seus discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca. (13) Assim, pois, o fizeram e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada, que sobraram aos que haviam comido. (14) Vendo, pois, os homens o sinal que Jesus fizera, disseram: “Este é, verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo”. (15) Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte. (5) Então, Jesus erguendo os olhos e vendo que grande multidão vinha ter com ele, disse a Filipe: “Onde compraremos pães para lhes dar a comer?” (6) Mas dizia isto para o experimentar; porque ele bem sabia o que estava para fazer. Semelhante ao relato de Marcos foi Jesus quem tomou a iniciativa. Agora, no momento em que o Evangelista compõe seu Evangelho, olhando para trás, ficou-lhe fora de dúvida que aquela pergunta de Jesus não foi lançada à procura de um conselho, mas sim, para “experimentar” Filipe. Como Filipe iria encarar a situação de tanta gente, seguramente faminta 144 após a longa caminhada? Como sabemos de João 1,43-45, fora Filipe que havia anunciado a Natanael que acabara de encontrar aquele de quem Moisés havia escrito, quando prometeu um profeta que seria igual a ele. Não sabemos se Jesus lhe dava oportunidade de confirmar sua convicção inicial; ou isso já seria especulação? Não sabemos. Respondeu-lhe Filipe: “Não lhes bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um seu pedaço.” Enquanto em Marcos os discípulos ainda perguntaram se era para ir comprar pão por duzentos denários, João já de início declara que nem tanto ia ser o suficiente. Duzentos denários correspondiam praticamente ao salário anual de um trabalhador. O Evangelista transmite ao seu leitor a situação de fato: uma total impossibilidade de socorrer com alimento ao povo. (8) Um de seus discípulos, chamado André, irmão de Simão Pedro, informou a Jesus: (9) Está aí um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta gente?” A impossibilidade perante a qual Jesus com seu grupinho de discípulos se encontrou, é reforçada com a observação da presença de uma quantidade totalmente insignificante de pães e peixinhos; um lanche somente estava disponível. (10) Disse Jesus: “Fazei o povo assentar-se; porque havia naquele lugar muita relva. Assentaram-se, pois, os homens em número de quase cinco mil. Com essa observação, magistralmente o Evangelista leva o leitor de seu relato a duas conclusões: primeiro, que Jesus sabia o que faria e, segundo, por mencionar o número aproximado de pessoas ao derredor, deixou evidente a situação crítica. Observe que Marcos (e Mateus) menciona o grande número de pessoas somente após a refeição. João, ao contrário, aumentou o suspense com a informação da grande quantidade de gente que esperava algo “do profeta”. Somente um sinal do céu podia lhes mostrar uma saída. Lembre que o relato foi escrito depois que o Evangelista havia testemunhado, refletido e compreendido a manifestação “do pão”. Por essa razão, ele escolheu compor o relato dessa forma. Na hora do acontecimento, porém, não sabemos como ele avaliou a situação. (11) Então, Jesus tomou os pães, e, tendo dado graças, distribuiu-os entre eles; e também igualmente os peixes, quanto queriam. Enquanto Marcos (com base em relatório de Pedro) diz que Jesus mandou os discípulos distribuírem os alimentos, João (provável testemunha ocular) lembra que Jesus, segundo a tradição judaica, deu graças pelo pão e, em seguida, distribuiu Ele mesmo o alimento. João sempre se lembra de seu Senhor como Aquele que agiu, decidiu, ordenou. Ele não podia mais, na altura em que compôs o seu Evangelho, ver no seu 145 antigo e amado mestre somente o homem Jesus de Nazaré. Escrevendo, ele vê perante si o Filho, o Verbo, o Deus encarnado. Dessa visão, que os Evangelistas sinóticos ainda não tinham alcançado, nascem muitas das diferenças em detalhes que encontramos nos quatro Evangelhos. João escreveu vendo. Lembre-se do símbolo que a igreja concedeu a João: a águia. Os demais Evangelistas escreveram como quem relata fielmente acontecimentos e palavras. Há opiniões divergentes quanto ao significado eucarístico do verso 11, apontando para o cap. 21,12.13, onde Jesus ressurreto novamente aparece como Aquele que distribui o pão e o peixe. Não cremos que aqui houvesse base para o “partir do pão” (eucaristia), pois no “partir do pão da igreja” temos o pão como lembrança do corpo do Senhor, que está sendo dado, enquanto aqui, à margem do Mar da Galileia, o Senhor dava alimento perecível, cujos restos tinham que ser guardados. Discussões desse tipo não trazem crescimento espiritual. Na Igreja Romana é somente o padre que, como ministro, está apto para distribuir o pão, enquanto a Igreja Protestante reconhece o “sacerdócio universal” e, no partir do pão (embora infelizmente, na prática, ela tenha andado para trás), os próprios crentes participam e não precisam de ministrante. O Novo Testamento não conhece ministrante na ceia. É a mesa do Senhor; não é da Igreja e nem da denominação. Seja como for, aprendamos do nosso Evangelista João! Somente aquilo que vemos com os nossos olhos espirituais tem algum valor. Tradição nunca trará vida! Ela sempre será somente a concha. Essa concha pode tanto estar vazia ou, se nela habitarem “a graça e a verdade”, estar cheia de vida (1,14). (12) E, quando já estavam fartos, disse Jesus aos seus discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca. (13) Assim, pois, o fizeram e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada, que sobraram aos que haviam comido. Nem os cinco mil, nem os discípulos e menos ainda nós, leitores, podemos dizer a que altura ou onde ou como “o milagre” aconteceu. A denominação “multiplicação dos pães” não é correta, pois em nenhum lugar o Evangelista diz que os pães se multiplicaram! O sinal não aponta para os pães e nem para os cestos cheios de restos, que podem ter seu significado na linguagem metafórica. O sinal aponta para Aquele que agiu. Quem olha para os pães não vê nada que possa aplicar na sua vida diária. Agora, quem olhar para Aquele que alimentou a multidão de tal forma, que sobrava mais do que inicialmente estava disponível, talvez seja capaz de entender também os acontecimentos seguintes e as palavras de Jesus nas próximas lições. 146 Há inúmeras tentativas para explicar esse sinal; do ridículo (que cada um havia trazido seu lanche) até à completa negação do acontecimento. A luz nunca se impõe; ela nasce no coração daquele que a procura na própria pessoa de Jesus. A dádiva que o homem não é capaz de produzir, também não é capaz de dar nem de administrar, já está, contudo, presente no Verbo, na Palavra, na alimentação dos cinco mil, metaforicamente na suprassuficiência (mais que necessário) do pão, ou no sinal em Caná, na suprassuficiência (quantidade) e qualidade incrível do vinho. Não precisamos esperar para “um dia”, no futuro, em que tivéssemos o nosso encontro com Jesus como Senhor e Salvador. Hoje é dia de salvação! O que o Apóstolo nos diz em todo seu Evangelho bendito é que “ o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de Graça e de verdade, glória como do unigênito do Pai (1,14). E mais: “... e todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (1.12). Tudo como fatos consumados. Tudo para que você, que é chamado a dar seu passo, o dê também! (14) Vendo, pois, os homens o sinal que Jesus fizera, disseram: “Este é, verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo”. As pessoas entenderam corretamente que com o “Logos” (ainda oculto), o profeta prometido por Moisés tinha chegado (Deut.15,15.18). Como somente enxergaram a qualificação mosaica em Jesus, interpretaram aquilo que correspondia ao seu ponto de vista humano, portanto errado. Jesus não veio como rei para libertar Israel do pesado jugo romano, mas sim, usando suas próprias palavras perante Pilatos,: “ ... para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” (18.37b). (15) Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte. Assim como Jesus não podia ou queria fazer-se “igual a Deus”, uma vez que já o era desde a eternidade (5,18s), tampouco podia ser proclamado rei dos judeus, pois já o era (1.49). Novamente Jesus teve que “retirar-se”, deixando seus discípulos talvez ocupados com a multidão. Ele precisava ficar a sós com seu Pai. O sinal tinha seu significado principalmente e primeiramente para Ele mesmo! 147 Cap. 6.16-29 (16) Ao descambar o dia, os seus discípulos desceram para o mar. (17) E, tomando um barco, passaram para o outro lado, rumo à Cafarnaum. Já se fazia escuro, e Jesus ainda não viera ter com eles. (18) E o mar começava a empolar-se, agitado por vento rijo que soprava. (19) Tendo navegado uns vinte e cinco a trinta estádios, eis que viram Jesus andando por sobre o mar, aproximando-se do barco; e ficaram possuídos de temor. (20) Mas Jesus lhes disse: “Sou eu. Não temais!”. (21) Então, eles, de bom grado O receberam, e logo o barco chegou ao seu destino. (22) No dia seguinte, a multidão que ficara do outro lado do mar, notou que ali não havia senão um pequeno barco e que Jesus não embarcara nele com seus discípulos, tendo estes partindo sós. (23) Entretanto, outros barquinhos chegaram de Tiberíades, perto do lugar onde comeram o pão, tendo o Senhor dado graças. (24) Quando, pois, viu a multidão que Jesus não estava ali nem os seus discípulos, tomaram os barcos e partiram para Cafarnaum à sua procura. (25) E, tendo o encontrado no outro lado do mar, lhe perguntaram: “Mestre, quando chegaste aqui?” (26) Respondeu-lhes Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes”. (27) Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo. (28) Dirigiram-se, pois, a ele, perguntando: “Que faremos para realizar as obras de Deus?” (29) Respondeu-lhes Jesus: “A obra de Deus é esta: “que creiais naquele que por Ele foi enviado.” (16) Ao descambar o dia, os seus discípulos desceram para o mar. Ao cair da noite, tendo perdido Jesus de vista e sem Ele, os discípulos desceram para onde possivelmente haviam deixado o barco ancorado. (17) E, tomando um barco, passaram para o outro lado, rumo a Cafarnaum. A forma gramatical do original diz que “pretendiam passar” para o outro lado. É possível que a travessura tenha sido iniciada às pressas, no intuito de encontrar Jesus talvez em Cafarnaum, de onde saíram. Já se fazia escuro, e Jesus ainda não viera ter com eles. (18) E o mar começava a empolar-se, agitado por vento rijo que soprava. O esforço físico em lutar contra o vento deixava os discípulos apreensivos. (19) Tendo navegado uns vinte e cinco a trinta estádios... Um “estádio” corresponde exatamente ao cumprimento do famoso estádio olímpico em Atenas, isto é, entre 185 e 192 metros. Quando já tinham vencido mais da metade do caminho, mais ou menos cinco quilômetros, repentinamente viram algo muito estranho: ... eis que viram Jesus andando por sobre o mar, aproximando-se do barco; e ficaram possuídos de temor. Era noite. Marcos, no seu relato que corresponde ao que Pedro lhe passou, diz que os homens temiam que se tratasse de um fantasma e gritaram de medo. Para poder enxergar alguém, à noite, no meio de uma tempestade e com a água das ondas salpicando em seus rostos, esse alguém deveria ter irradiado alguma luz. 148 O Evangelista João é menos detalhista que Marcos e Mateus. Ele não viu necessidade de detalhar novamente o que os sinóticos já tinham feito. Pelo relato de Marcos temos a impressão que as palavras desse “fantasma” ainda aumentaram o horror dos homens, pois ele anotou que eles ficaram “atônitos”. Enquanto Marcos e com ele Mateus, além do “sou Eu” nos transmitiram outras sentenças, João se limita às poucas palavras que importavam e que, na ocasião, os discípulos angustiados não conseguiam compreender “porque seus corações estavam endurecidos”, como disse Marcos (8,52). (20) Mas Jesus lhes disse: “Sou eu. Não temais!” Ao contrário de Marcos, em cujo relato ainda havia alusão à possibilidade de um “fantasma”, para João não restava dúvida. Tanto nós quanto os leitores que na época de João liam seu Evangelho, ao terminar a leitura da obra não terão mais dúvidas: aquilo que os discípulos angustiados ouviram era nada mais nada menos do que a identificação do “Sou eu”; era a mesma identificação que Moisés ouviu da sarça ardente (Ex. 3,14). Era o mesmo “EU SOU” dos capítulos João 8,24.28.58; 13,19 e 18,5.7.8 (confira!). Lembre-se das palavras iniciais cada vez quando Deus falava com alguém! Somente alguns exemplos no NT: Lc.1,30/Luc 2,10/Atos 18,9. O Evangelista viu claramente o que chamamos de uma “teofania” (quando Deus, sob alguma forma, manifestava-se “presente”). Anos mais tarde, quando João compôs seu Evangelho, ficou evidente para ele a ligação do “sinal do pão” com esse encontro. No corre-corre daquele momento não havia como entender a presença do Deus Vivo, mas para João, refletindo, tudo ganhou sentido: era outro sinal de Deus, confirmando seu Filho. As descrições do que aconteceu junto com o aparecimento de Jesus, são contraditórias. Parece que não havia lembrança exata do que e como aconteceu, o que é bem compreensível. João percebeu outra circunstância misteriosa: (21)Então, eles, de bom grado O receberam, e logo o barco chegou ao seu destino. A nossa tradução não é exata. O texto diz que, no mesmo instante em que receberam Jesus, já haviam chegado ao seu destino. Onde ficaram os mais ou menos quatro quilômetros a serem remados? Há algo como que um véu sobre o acontecimento. O sinal do pão e o da teofania no lago estão intimamente ligados. João, ao contrário de Mateus, não enriqueceu o relato do encontro no meio da tempestade com detalhes dramáticos. A visão do “Filho glorificado” era suficiente, e era o que lhe importava salientar. No decorrer do tempo surgiram as mais tolas teorias, como por exemplo, de uma “camada de gelo, sobre a qual Jesus andava” (“Seminários de Jesus”) e outras; ou considerações de que tudo não passava de uma fantasia, ilusão ou simplesmente de um mito. 149 Para quem, como João Evangelista, reconhece na aparição de Jesus “como andando sobre as águas” uma manifestação da pessoa de Deus (teofania), não mais é necessário especular sobre “como” e “o quê”, como fazem alguns comentaristas que não aceitam Jesus como o “Logos de Deus”. Uma solene segurança inunde o coração daqueles que, como João, tem seus olhos espirituais abertos. (22) No dia seguinte, a multidão que ficara do outro lado do mar, notou que ali não havia senão um pequeno barco e que Jesus não embarcara nele com seus discípulos, tendo estes partindo sós. Este verso, desde cedo, tem dado razão para muita confusão e tentativas de interpretação. De que lado do mar João estava falando? A versão mais plausível é a seguinte: No lugar onde o povo fora alimentado na tarde anterior havia um só barco, e as pessoas se lembravam de que os discípulos, sim, mas não Jesus havia nele embarcado. O certo seria: “...no dia anterior haviam notado que ali (no lugar da alimentação) não havia senão um pequeno barco. O Evangelista muda seu foco e continua a contar o que aconteceu com as pessoas que presenciaram a distribuição do pão. Muitas delas, a esta altura, já deviam ter voltado para o lugar de sua origem. Os que pernoitaram no lugar, notaram a ausência tanto de Jesus quanto de seus seguidores mais íntimos. (23) Entretanto, outros barquinhos chegaram de Tiberíades, perto do lugar onde comeram o pão, tendo o Senhor dado graças. (24) Quando, pois, viu a multidão que Jesus não estava ali nem os seus discípulos, tomaram os barcos e partiram para Cafarnaum à sua procura. Não havia ocupação tão urgente que impedisse um número não definido de pessoas resolverem ir atrás “do profeta”. A alimentação no campo tinha sido uma experiência tão maravilhosa; quem sabe, outras manifestações estariam à vista!? (25) E, tendo o encontrado no outro lado do mar, lhe perguntaram: “Mestre, quando chegaste aqui?” Pela resposta de Jesus concluímos que a pergunta, aparentemente motivada pela curiosidade e querendo descobrir o como e quando “o profeta” tinha chegado, era puro disfarce. O que os interessava eram mais maravilhas! O Evangelista deixou para seus leitores bem claro aquilo que lhe havia causado a mais profunda impressão: a revelação do “Logos”. Essa revelação seria verbalizada pouco depois por Pedro (verso 6.69). A multidão aqui, em complementação com a mencionada no verso 15, não havia visto nenhum sinal apontando para a pessoa de Jesus; o que a interessava era a satisfação física: o alimento, raro e valioso. 150 (26) Respondeu-lhes Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes”. O duplo “amém, amém” de Jesus na sua resposta não admitiu contestação. Jesus não censurou o povo pelo fato de ter sido saciado e, portanto, satisfeito. Ele lhes apontou sua incapacidade de pensar além do pão e não ter reconhecido o doador, o Pai, nem ter-lhe dado graças. (27) Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo. Parafraseando: Não gastem suas forças e seu tempo na procura do pão que rapidamente perece. Vão atrás daquele alimento que lhes dá vida eterna (= comunhão no Reino de Deus)! Eles não haviam notado o sinal através do qual o Pai acabara de confirmar diante da multidão Aquele que lhes daria esse outro “pão”! Certamente alguns dos presentes se lembravam do maná “do céu” que Moisés no deserto havia dado aos israelitas. Ali Deus já os avisou: “Ele (Deus) te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conhecias, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do SENHOR, viverá o homem” (Deut.8,3). A lição do maná aparentemente ainda não havia transformado a mente das pessoas ao redor de Jesus. (28) Dirigiram-se, pois, a ele, perguntando: “Que faremos para realizar as obras de Deus?” Na medida em que os presentes perceberam que Jesus estava referindo-se à “outra comida”, a “algo da religião”, eles imediatamente concluíram que essa referência espiritual deveria estar relacionada com algum esforço, cumprimento de voto, promessa, sacrifício. Jesus corrigiu essa interpretação tipicamente judaica. (29) Respondeu-lhes Jesus: “A obra de Deus é esta: “que creiais naquele que por Ele foi enviado.” Deus não exige e nem espera uma determinada quantia de boas obras (pois essa ética é a tônica da religião mosaica, do judaismo); Ele unicamente espera e exige que creiamos na “obra dEle” , isto é, na pessoa do Seu amado Filho, através do qual ELE se revelou e continua se revelando. • • Quais as suas obras para “merecer” o céu? Será que elas são suficientes? ou você está disposto a colocar toda sua confiança unicamente no Filho amado, no qual Deus também se revela a você? O próximo estudo lhe dirá por que você estará seguro, confiando naquilo que Deus fez por você. 151 Cap. 6.30-40 (30) Então, lhe disseram eles: “Que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti? Quais são os teus feitos?” (31) Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: ‘Deu-lhes a comer pão do céu.’” (32) Replicou-lhes Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. (33) Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. (34) Então, lhe disseram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão.” (35) Declarou-lhes, pois, Jesus: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede. (36) Porém eu já vos disse que, embora me tenhais visto, não credes. (37) Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. (38) Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou. (39) E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia. (40) De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. (30) Então, lhe disseram eles: “Que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti? Quais são os teus feitos?” (31) Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: ‘Deu-lhes a comer pão do céu.’” A teologia farisaica tinha como certo que o milagre do pão do céu durante a peregrinação no deserto, sob a liderança de Moisés, novamente se manifestaria na era messiânica. O pão que Moisés lhes tinha dado vinha do céu; assim eles entendiam, pois Êxodo 16.4 diz: “... eis que vos farei chover pão do céu; sairá o povo e colherá a porção de cada dia, a fim de que...”. A Sinagoga farisaica reconhecia em Moisés o seu primeiro libertador e esperava o segundo libertador - o “Messias”. Aquilo que as pessoas ao redor de Jesus haviam comido no dia anterior era pão somente, pão de pobres, pão de centeio, enquanto que o pão que Moisés lhes havia dado era pão do céu, conforme o Salmo 78.24,25: “pão dos anjos”. No mais, Moisés lhe tinha dado o “pão do céu” diariamente; não uma só vez, como foi o caso de Jesus no dia anterior. É interessante notar que ontem haviam crido na pessoa de Jesus de tal forma que já pretendiam proclamá-lo “Rei de Israel”. No dia seguinte, a impressão causada pela alimentação inexplicável, mas real, já não mais era suficiente. É assim que acontece com a fé baseada em milagres. Hoje, ela é suficiente, mas amanhã já não basta mais. Sempre ela exige outro milagre, e nenhum, por maior e maravilhoso que seja, será suficiente para convencer a tal ponto que, daí em diante, a fé seja equivalente ao descanso, à certeza inabalável, não mais dependendo daquilo que se vê. A legitimação da afirmação incrível de Jesus de que Deus não esperava uma multidão de obras, mas uma só, a saber, dar crédito a esse Rabi, lhes soou estranha demais e exigia uma confirmação maior. Será que Jesus era capaz de lhes providenciar novamente pão, mas “pão do céu”, dessa vez? 152 (32) Replicou-lhes Jesus: “Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. (33) Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. A réplica de Jesus aberta com o duplo “amém, amém”, excluindo assim qualquer contradição, vai de encontro a duas falhas na argumentação. Primeiro não foi Moisés, mas sim Deus, que no deserto, dava aos seus pais o maná (pão), como Êxodo 16.4 deixa claro. Toda a devoção a Moisés não justificava confundi-lo com Deus, o verdadeiro doador. No mais, aquilo não era “pão do céu”, pois era perecível (não mais servia no dia seguinte). Verdadeiro “pão do céu” daria vida ao mundo, isto é, geraria vida no reino desse mundo onde impera a morte. João observa bem: esse pão dará vida não somente aos judeus, mas ao mundo. Pão, vindo de Deus, sempre vem “hoje” e não perece. Se aquilo no deserto tivesse sido “pão do céu”, ainda estaria perfeito, presente. Você notou como Jesus chama Deus “seu Pai”, algo estranho e impossível para o ouvido judeu. O verso 33 também pode ser traduzido (literalmente) assim: “O Pão é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo”. Assim, Jesus já seria identificado como esse pão. Nos dois casos, porém, o Apóstolo estaria passando a mesma mensagem. (34) Então, lhe disseram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão.” A resposta dada nos revela dois fatos. Os ouvintes parecem começar a suspeitar que houvesse algo mais em Jesus, pois, enquanto antes o chamaram Rabi (Mestre), agora se dirigem a Ele com o título de “Senhor”. No entanto, continuavam vendo a dádiva separada do doador. João sabiamente usou aqui o mesmo artifício literário que empregou na conversa de Jesus com a mulher samaritana (confira em 4.15). Tanto aquela mulher como agora “os judeus”, ambos tiveram dificuldades de entender que o dom e o doador não podiam ser separados. (35) Declarou-lhes, pois, Jesus: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, jamais terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede. A resposta de Jesus, a primeira entre as sete ocasiões em que Ele usou a identificação reveladora do “Eu sou” (Ex.3.14), é impossível de ser ignorada. Na Sua pessoa veio o dom escatológico messiânico, pelo qual todo o cosmos esperava. Não somente no dia final e reservado para os justos e fiéis Ele viria; mas agora, já hoje, Ele “está”. Assim, o milagre não está no que Jesus fez ou fará; o milagre está no “EU SOU”, agora, presente no crente. Não e nunca será um ensino perfeito, um dogma ou um sacramento que nos dará a vida eterna, tampouco a eucaristia que dará a vida – é o Filho, o Verbo, Jesus, que no-la dá. A eucaristia é a demonstração de um fato que já existe, de um dom que já veio, da 153 presença daquele que nos convidou e que nos passou vida: Jesus. ELE É o pão da vida. Este Jesus faz um convite. É simplesmente “vir” a Ele. Quem vem a Jesus, sai do lugar onde está, deixa um tipo de vida para trás e se junta ao Senhor. Não podemos comer e beber no lugar em que antes estávamos. Temos que ir até ele. Só então que nunca mais teremos fome ou sede – uma imagem de necessidades humanas bem familiares ajudaria a seus ouvintes entenderem. (36) Porém eu já vos disse que, embora me tenhais visto, não credes. O Evangelista parece relembrar-se do que já disse no verso 26, isto é, que seus interlocutores somente O estavam procurando porque no dia anterior ficaram saciados. Não foram à procura da pessoa, mas da bênção. Dessa forma, mesmo que hajam visto o milagre não o compreenderam e, consequentemente, não lhes serviu para despertar a fé. Nos versos 37-40, o Apóstolo desenvolve a doutrina joanina da Predestinação Divina. (37) Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. Você notou que, com poucas exceções (p.ex. nos primeiros versos do cap.1), João costuma falar de duas pessoas aparentemente distintas: o Pai e o Filho. O Filho depende do Pai, vive em absoluta dependência dele e executa a vontade do Pai. Às vezes, o Filho e o Pai são Um só (10.30). Lembramos que o Apóstolo desenvolveu seu Evangelho de acordo com aquilo que ele, como homem, podia discernir. Ele conheceu Jesus como pessoa humana, como Rabi, que de um modo todo diferente de tudo que a religião judaica até então conhecia, vivia em harmonia com Deus Pai. Às vezes, João não mais consegue ver duas pessoas distintas; são os momentos raros, em que é revelado Deus Pai no Filho. Muitos livros foram escritos com o intuito de entender a compreensão joanina da pessoa de Jesus, tão distinta da dos outros três Evangelistas. Mais adiante no texto retornaremos a esse assunto. Nos próximos quatro versos, João procura mostrar “o porquê” da incapacidade dos judeus de reconhecer em Jesus a presença do Pai. “Os judeus”, como taxativamente denomina seus interlocutores no episódio que estudamos, são os Galileus, seus compatriotas. A murmuração e a descrença deles se dirigem contra a revelação do “EU SOU” de Jesus. O desafio contido nessa revelação lhes parece um escândalo religioso. Esse escândalo consiste em Jesus ter vindo ao seu encontro na história, de modo concreto. Eles bem conheciam “os pais” de Jesus. Eram humanos, e o filho deles também nada mais podia ser do que um humano. A alegação de Jesus de ter vindo dos céus lhes parecia blasfêmia ou loucura. Nenhum humano podia alegar ser a Revelação do Pai (em pessoa), pensavam eles. 154 Em nada eram diferentes de muitas pessoas de hoje em dia, para os quais Jesus é escândalo e pedra de tropeço. Percebemos que o Apóstolo João nada sabe de um nascimento virginal de Jesus. Ele não usou esse argumento para defender a natureza de Jesus. Ele mostra que vir a crer não está na mão do homem, mas na de Deus. “Todo aquele que o Pai me dá...”. Quem são esses “aqueles”? Ter os olhos abertos para entender e “receber a Jesus” não é uma iniciativa ou decisão minha. É um presente, uma dádiva, ou simplesmente graça, quando nossos olhos se abrem e vemos “o Filho” na pessoa do desprezado galileu. A esses, aos quais Deus abriu o entendimento e que vieram a prostrar-se, vale a promessa de não serem nunca lançados fora. A nossa tradução não é muito feliz. O texto não afirma que Jesus não recusaria ninguém que viesse a ele, através da ação de Deus. Os melhores comentaristas entendem que não se trata de recusar, mas de guardar. Todos aqueles que o Pai lhe deu, Jesus guardará para sempre. Os versos seguintes confirmam essa interpretação: (38) Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou. (39) E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia. Se o Pai nos atrai para reconhecê-lO em Jesus, Este cuida para que não nos percamos nunca. Esta é a vontade do Pai em Jesus, e na consumação dos tempos não nos perderemos em algum lugar ou no nada: seremos reconhecidos e chamados, ressuscitados por Jesus. Uma única preocupação marca todo o Evangelho de João: que reconheçamos a revelação do Deus invisível, Espírito, na pessoa de Jesus. Jesus entrou na história humana, e dela nos resgatará quando tudo acabar. Não podemos falar de Deus se não O reconhecemos na pessoa de Jesus. (40) De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Que segurança temos em Jesus! Abra seus ouvidos e permita que o Pai o leve à plena revelação de Jesus. O Evangelista aqui menciona o “ver” e depois o “crer”. A fé não aparece milagrosamente ou através de algum esforço humano. A fé não é um pulo no escuro. A obra de Deus no homem acontece no âmbito da fé, que é resultado da revelação que temos, quando vemos Jesus. A tarefa mais urgente não é servir. A tarefa mais urgente é conhecer Aquele que, quando é visto como o que é, salva e guarda. 155 Hoje, em dias difíceis, onde tantos “Jesuses” são anunciados para remediar tantas necessidades temporais, procure conhecer o Jesus que o Apóstolo João anuncia! NEle há vida, hoje, agora, e para toda a eternidade. Uma observação: O filósofo e teólogo dinamarquês, Soeren Kierkegaard, tratou do problema de como, filosoficamente, uma salvação eterna (pertencendo ao metafísico) pode estar ligada a um fato histórico (portanto terreno). Para a razão humana, nenhum fato histórico pode nos dar certeza de uma salvação eterna. Kierkegaard desenvolveu essa questão de maneira fantástica na sua pequena obra “Migalhas filosóficas” (Vozes). Se você gosta de filosofia, trabalhe esse pequeno, mas pesado livro, onde a necessidade de um salvador humano aparece como necessário. O livro não “prova” nada e não nega nada; são pensamentos objetivos muito interessantes e de maneira alguma há o perigo de perdermos a nossa fé; pelo contrário! Cap. 6.41-52 (41) Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. (42) E diziam: “Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu? (43) Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis entre vós. (44) Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer ; e eu o ressuscitarei no último dia. (45) Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim. (46) Não que alguém tenha visto o Pai, salvo aquele que vem de Deus; este o tem visto. (47) Em verdade, em verdade vos digo: “Quem crê em mim, tem a vida eterna. (48) Eu sou o pão da vida. (49) Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. (50) Este é o pão que desceu do céu, para que todo o que dele comer não pereça. (51) Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne”. (52) Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer sua própria carne? (41) Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. Pelo que consta, desde o verso 26 do presente capítulo, as palavras de Jesus não refletem uma discussão, pois não constam respostas dos “judeus” (em nosso caso, galileus, compatriotas de Jesus). Trata-se, na verdade, de vários pronunciamentos de Jesus perante judeus piedosos. Mais adiante, no verso 59, João observa que “disse Jesus estas coisas quando ensinava na Sinagoga de Cafarnaum”. A permissão para ensinar na Sinagoga não se dava a qualquer um. Não sabemos a que altura a fala de Jesus iniciada à beira-mar (6.24) teve sua continuação na Sinagoga, lugar onde a Torá era lida e assuntos quanto à Santa Lei de Deus eram discutidos. Pela observação do verso acima, entendemos que Jesus falava na condição de Rabi (ou “mestre”) e a murmuração mencionada eram considerações dos ouvintes entre si, em voz baixa. A alegação de ser Ele “o pão do céu” lhes parecia, se não blasfêmia, uma afronta contra o bom senso. 156 (42) E diziam: Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu? Os judeus presentes na Sinagoga não responderam diretamente a Jesus. Discutiam reservadamente, entre si, a respeito desse cidadão tão bem conhecido, filho de José que, como lhes parecia, obviamente mostrava sinais de alteração do “Alter Ego”; confundindo-se com o que, “obviamente”, não era. Falaram sobre Ele na terceira pessoa, mostrando com isso que continuavam considerando-o um deles, em nada maior. (43) Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis entre vós. (44) Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer ; e eu o ressuscitarei no último dia. A palavra “não murmureis entre vós” soava como um convite. Não deveriam escandalizar-se de Suas Palavras. A murmuração, a demonstração de descontentamento, era algo conhecido na tradição judaica. Era a razão dos israelitas terem perecido no deserto, não chegando a ver a terra prometida. Murmurar era e é perigoso, principalmente quando demonstra revolta contra Deus. Os judeus conheciam bem a passagem em Números 14,26-30 e o castigo severo contra os que murmuraram contra o Senhor. No entanto, neste caso não perceberam nada do incompreensivelmente maior (divino) “naquele homem”, através do qual Deus lhes estava tão próximo. Sem a ação de Deus atuando no coração humano ficamos na condição desses “judeus”. Não vemos nada em Jesus, estamos “murmurando” contra sua autoridade. Por essa razão, Jesus logo lhes chamou sua atenção para Deus Pai que eles conheciam e temiam. É como se Jesus dissesse: “Se vocês não atentam para Deus Pai, nunca poderão entender quem eu sou. Só Ele próprio lhes abrirá o entendimento. Com o próprio bom senso e boa vontade somente, vocês nunca vão poder crer. Deus terá que trazê-los a mim.” Os teólogos tem considerado muito a respeito da pergunta: a quem caberia a responsabilidade final sobre a salvação ou não do indivíduo ou, digamos, se o homem é capaz de (pelo bom senso e sua vontade), de “ver Jesus”? “Ver Jesus” não é o mesmo que “decidir-se por Jesus”, como se faz na Igreja após um apelo do dirigente. Decidir-se é uma coisa. Agora, “ver” Jesus, isto é, compreender profundamente quem Ele era e é, é outra coisa. A compreensão de quem é Jesus pode ser dada a um, e negada a outro. Quem, afinal, decide sobre a salvação de uma pessoa? É ela mesma ou é Deus? O teólogo Schnackenburg opinou que qualquer pessoa de boa vontade e bom senso pode decidir-se pela fé. Não! A fé como condição básica para a salvação não se pode “fazer, produzir, decidir”. Ela continua sendo uma dádiva imerecida, dada graciosamente por Deus. Deus não se 157 revela obedecendo à nossa ordem. Quando Ele se revela, é porque Ele o concedeu. “Todo o que é nascido de Deus vence o mundo, e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1 João 5.4). Pense: como o mundo pode nos dar a capacidade de decidirmos pela vitória contra ele? “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer...” O ser “trazido por Deus a Jesus” permite resistência da nossa parte. Podemos resistir ao chamado. Outra tradução válida do “ser trazido” é “ser puxado” e aqui fica até mais visível a possibilidade de disconcordância. Podemos emperrar, negar. Assim, entendemos bem a visão de João quanto à predestinação Divina. Ela não é uma “dupla”, como no Calvinismo. Não há pessoas destinadas por Deus para salvação (1a categoria) e outros tantos predestinados à perdição (2ª categoria). João conhece somente uma predestinação... para a salvação. Deus quer se revelar a todos na pessoa do “Logos encarnado”. Ele nos empurra, traz, puxa para a condição que nos permite ver Jesus como quem era e continua sendo. Essa ação de Deus se chama “Graça adiantada”. Ela acontece por várias vezes na vida de todos os seres humanos, não importa onde estejam. Mas podemos resistir a ela. Jesus continuou provando com a própria Escritura, citando e comentando Isaías 54.13: (45) Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim. “Vir a mim” corresponde a “crer”. Observe a sequência de “ouvir” e “aprender”. Podemos muito bem ouvir, mas deixar de obedecer, não é? Ouvir e aprender da Lei e dos Profetas era exatamente o que interessava ao judeu fiel. Mas nesse caso, no caso do mestre da Galileia como revelação do Pai, o escândalo era demasiado grande. Jesus continou: (46) Não que alguém tenha visto o Pai, salvo aquele que vem de Deus; este o tem visto. O tempo do verbo indica que Jesus não se referiu a uma vaga lembrança pré-natal de Sua condição pré-temporal, eterna. Tampouco se tratava de um “ver” ótico, nem de uma visão mística. Confira 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. Jesus falou tendo o Pai permanentemente perante seus olhos. (47) Em verdade, em verdade vos digo: Quem crê em mim, tem a vida eterna. (48) Eu sou o pão da vida. 158 Retornando ao assunto principal: ao do “pão da vida”, sinal exigido pelos seus ouvintes, Jesus solenemente afirmou, parafraseando: “Amém, amém: aquele que ouve a voz de Deus, seja através dos profetas, da Lei mosaica (ou no nosso caso, pela Palavra do Evangelho), e permite que Deus lhe mostre o Filho, torna-se participante da fé. A esse tal é dada a promessa de ser guardado para sempre. Novamente Jesus desafiou seus ouvintes, declarando ser Ele esse pão exigido pelos judeus, o pão que não morre e dará vida ao mundo. Com uma nova comparação, Jesus volta ao assunto do pão, contrapondo o pão no deserto com a pessoa dEle. (49) Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. (50) Este (que está perante vocês) é o pão que desceu do céu, para que todo o que dele comer não pereça. (51) Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. Nesse jogo das palavras, Jesus confronta a morte física daqueles que comeram do maná no deserto com a permanência na presença do Pai daqueles que comem do “pão do céu”, representado por Ele. Mesmo morrendo fisicamente, serão guardados na presença de Jesus até o dia da ressurreição. Não desaparecerão, diluindo-se no nada. Os pais israelitas no deserto não morreram porque o maná teria sido uma comida inferior. Morreram por terem murmurado contra o Deus e Moisés, seu enviado. “Assim JHWH disse:... nenhum dos homens que, tendo visto a minha glória e os prodígios que fiz no deserto, todavia, me puseram à prova já dez vezes e não obedeceram à minha voz, nenhum deles verá a terra que, com juramento, prometi a seus pais, sim, nenhum daqueles que me desprezaram a verá... neste deserto se consumirão e aí falecerão” (Num 14,22,23,35b). O Evangelista não se refere à morte como destino da criação humana; ele se refere ao que o Apóstolo Paulo chamou de “morte como salário do pecado” (Romanos 6.23). Invertendo o pensamento fica claro que aquele que, ao dar sua vida (pão do céu), pagaria de uma vez esse “salário” na condição de “cordeiro de Deus, que leva o pecado do mundo” (1,29). Todos os que “comerão desse pão” (isto quer dizer, creem nele), viverão eternamente. A morte natural nada mais altera nesse compromisso divino, pois Jesus os ressuscitará (versos 39,40,44,54). Quando isso será? O teólogo Marquart comenta na sua Cristologia II as palavras acima da seguinte forma: “No Jesus ressuscitado vemos “o homem ao qual Deus abriu todas os aeons (tempos) de par a par”; portanto, não adianta especular acerca do quando será que Ele nos ressuscitará. Desde que Jesus passou pela porta da morte, temos nele todos os dias de cada indivíduo sincronizadas com o ‘último dia’ do Universo.” 159 Assim, o verso 51, no seu contexto, deve ser compreendido como metáfora. Parafraseando: Quem ouve a Palavra e não a deixa entrar por uma das duas orelhas e sair pela outra, mas a “incorpora”, assim como Ezequiel “comeu” o livro que lhe foi dado por Deus (Ez.2,8-3,3), tornar-se-á de uma vez participante da vida eterna. Fica patente que, neste trecho, Jesus não se referiu à eucaristia, onde sempre de novo se “come” o pão eucarístico. É um acontecimento único! (52) Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer sua própria carne? Trata-se de uma das repetidas interpretações errôneas das palavras de Jesus por parte dos “judeus”, típicas para o nosso Evangelista. Em nenhum momento Jesus desafiou os judeus à pratica do canibalismo. O “pão” que Jesus lhes daria (futuro!), aponta para a morte única na Cruz, para a salvação do mundo. Não temos nenhuma referência à eucaristia que se repete sem fim, até que Ele volte. “Comer”, isto é, incorporar o Logos encarnado, é o mesmo que, na Antiga Aliança, encontramos nas Palavras: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Deut.6,5). Nesse livro creditado a Moisés, já encontramos o entendimento de que “não só de pão viverá o homem, mas de tudo que procede da boca do Senhor viverá o homem” (Deut.8,3). Jeremias, por sua vez, declarou: “Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para meu coração...” (Jer. 15,16). A Lei de Deus e os Profetas já usaram a metáfora que Jesus aplicou para lhes falar da vida eterna. Só que “os judeus”, conhecendo tão bem as Escrituras, por murmurarem contra a pessoa na qual Deus se lhes fez conhecido, não a entenderam. Lembre-se da advertência de Jesus: “Bem aventurado (muito feliz) é aquele que não achar em mim motivo de tropeço”, isto é: “não se escandaliza na minha pessoa) Mateus 11,6 e Lucas 7,23. Ainda hoje, Jesus representa um escândalo para a maioria das pessoas e, com essa “murmuração”, eles se excluem daqueles que “veem”. Você já sentiu em sua vida que Deus lhe queria falar, mostrando-lhe o Filho, e você deixou para mais tarde ou simplesmente ignorou esses momentos? Há amargura no seu coração, murmuração contra o Altíssimo? Nessa condição, Deus dificilmente poderá levar você a “ver” Jesus, compreender quem Ele era e é. Confesse essa sua atitude e submeta-se ao Seu tratamento; assim Ele poderá abrir-lhe seus olhos. Diga a ele: “Pai, quero ver Jesus!” 160 Cap. 6.53-59 (52) Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer sua própria carne? (53) Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. (54) Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. (55) Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. (56) Quem comer a minha carne e beber o meu sangue, permanece em mim, e eu, nele. (57) Assim como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, também quem de mim se alimenta por mim viverá. (58) Este é o pão que desceu do céu, em nada semelhante àquele que os vossos pais comeram e, contudo, morreram; quem comer este pão viverá eternamente. (59) Estas coisas disse Jesus, quando ensinava na Sinagoga de Cafarnaum. (52) Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer sua própria carne? A murmuração de antes havia se transformado em discussão aberta. O termo “Sinagoga”, como é usado no original, permite duas interpretações: uma que indica o prédio, o edifício onde a Lei de Deus era lida e discutida e, outra, que simplesmente significa “Assembleia” ou “ajuntamento” ou “reunião”. No auditório, ou onde quer que tenha sido, (em Cafarnaum), surgiram opiniões diferentes quanto ao significado real das palavras de Jesus. (53) Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. Antes de começarmos a estudar esse trecho do capítulo 6 queremos definir como entendemos toda a fala de Jesus, do verso 25 a 65. Há uma linha teológica que considera o trecho acima, do verso 53 a 56 (onde Jesus menciona o sangue), como posteriormente introduzido pela igreja primitiva, para justificar a prática da eucaristia. De fato, se você olhar bem, o verso 57 parece fazer continuação direta do 51. Essa interpretação até facilita a leitura mas, na realidade, ela leva a uma tremenda má-interpretação das palavras de Jesus e, consequentemente, a uma desvalorização da fé. Vamos, então, olhar o texto de acordo com todos os manuscritos e textos originais, assim como ele está na sua Bíblia. O verso 51 (Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne) é a chave do “discurso joanino do pão” (cap.6) e que se refere, como hoje a maioria dos eruditos admite, à morte redentora de Jesus, nada tendo a ver com a eucaristia. É pelo menos absurdo interpretar as palavras de Jesus, que era judeu, sendo dirigidas a um auditório composto de judeus, na Galileia, 161 como instruções quanto à eucaristia cristã, algo que somente tomou forma após Pentecoste. Tampouco é uma reinterpretação do rito da eucaristia por João, encaixada na fala de Jesus. É muito importante ter isso em mente quando estudamos o texto. Nos versos 26-50, o auditório fora desafiado a crer nAquele que, por Deus, foi enviado como “pão da vida”. Agora, nos versos seguintes, 51-59, João acentua (intensifica) o paradoxo, mostrando que a fé na missão do Filho, em si, não é suficiente. Deve ser “inteirado”, incorporado “Àquele que daria sua carne e verteria seu sangue” para salvação do mundo. Assim, a fome e a sede de uma vez para sempre serão aplacadas (6,35). Jesus está falando de sua obra consumada na cruz. Se não deixarmos claro esse fato, abrimos a porta para todo tipo de más-interpretações. Escolhemos o comentário de Karl Barth a respeito das palavras de Jesus no capítulo 6: “Não temos nem relatório a respeito da instituição da Ceia (eucaristia) e menos ainda um ensino sobre a tal, mas sim, um equivalente para os dois, uma apresentação do mistério divino, isto é, do comer e do beber, da alimentação da qual a fé recebe sua vida; se, de todo, houver fé: da alimentação pelo Cristo entregue, pela crucificação de sua carne, pelo derramamento de seu sangue” (Decl. 313s). (54) Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. As palavras de Jesus intencionalmente provocaram o auditório. Comer sua carne já não fazia sentido, mas beber seu sangue? A essa altura, ou os judeus começavam a entender que Jesus falava em metáfora, pois, caso contrário, fica difícil acreditar nas palavras de João. Comer carne com sangue já era proibido taxativamente (e continua sendo até hoje), quanto mais beber sangue!!! Em Levítico 7,26.27 lemos: “Não comereis sangue em qualquer das vossas habitações, quer de aves, quer de gado. Toda pessoa que comer algum sangue, será eliminado de seu povo”. Não fazia o menor sentido para o judeu beber sangue de uma pessoa. Por essa razão, concluímos que os judeus começavam a entender o sentido metafórico das palavras de Jesus. Nem por isso o escândalo ficou menor. O que Jesus estava exigindo era que se inteirassem completamente da aceitação da revelação que tiveram diante si, na pessoa do filho de José. Calvino, o grande reformador de Genebra, comenta o verso 54 assim: “Teria sido não somente tolo como absolutamente fora de tempo falar, a essa altura da santa ceia, algo que nem ainda havia instituído (Com.171). A interpretação do “sermão do pão” (João cap. 6) é o real obstáculo que impossibilita, de vez, uma união da igreja Protestante (evangélica) com a Romana. Na Igreja Romana, as referências de Jesus ao “pão” e carne, 162 que daria pela vida do mundo (e semelhantemente do sangue) são todas interpretadas como referências à eucaristia. Enquanto Jesus falou de uma entrega que Ele faria (e fez uma vez na cruz, sendo glorificado) e que o crente deve “comer” (inteirar), essa é uma realidade quando ele crê; na Igreja Romana acontece esse “inteirar” na eucaristia, repetida inúmeras vezes e nunca sendo suficiente. Encontramos na Igreja Romana a visão dos judeus, só levemente espiritualizada, pois a Igreja Romana insiste em que o pão (hóstia) e o vinho se transformam em carne e sangue do Senhor e, assim, o católico fiel “come” a carne e “bebe” o sangue em todas as missas, recebendo dessa forma a vida com Deus (sendo, assim, a única religião na qual se come seu Deus). Aquilo que Deus fez no Seu Filho, independentemente do homem, a missa alega repetir. Com essa interpretação na Igreja Romana, humanos (e, portanto, pecadores!), “administram” o dom de Deus e determinam quem faz parte dos eleitos. Mais ainda: vista dessa forma, a religião cristã seria a única na qual se come o seu deus a cada domingo – concepção essa totalmente pagã. Os reformadores chamavam essa interpretação, onde tudo se engloba na eucaristia como meio de vida, de “blasfêmia”. A ceia, o “partir do pão” aponta para a consumação do tempo, quando novamente com Ele, estaremos unidos. A ceia é celebrada “em memória do ‘pão do céu’” (Jesus). O poder que dá vida não está na hóstia, mas sim no “pão do céu”, dado nAquele que disse “Eu o darei pela vida do mundo” (Verso 51). (55) Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. Encontramos, principalmente no Brasil, outra corrente cristã, espiritualista, que conhece um Jesus espiritualizado. Preferem o Evangelho de João pois ele mostra um Cristo espiritual. As palavras acima chocam e são até repugnantes. O Cristo como ser espiritual é bem-visto. O que João apresenta é um Cristo sacrificado, crucificado, mortificado, dando sua carne para a vida de um mundo perdido. Não é qualquer “elevada comunhão espiritual com Cristo” que nos salva, dando-nos vida eterna. Quem assim pensa do nosso Senhor, ainda não tem a si mesmo reconhecido como “mundo”, “escuridão”, “pecado”, “amaldiçoado” (Gal.3,10). Para os “sem Deus”, pecadores, inimigos (Romanos 5.5s), o Jesus espiritualizado não pode ser a “comida que dá vida”. Jesus salva somente através de “quem comer a minha carne e beber o meu sangue...” (54). (56) Quem comer a minha carne e beber o meu sangue, permanece em mim, e eu, nele. Nos versos 54 e 56, no original o termo “comer” é substituído por “mastigar”, “trincar com os dentes”, termos usados quando animais devoram sua comida. Parece-nos que o Apóstolo quis mesmo forçar a expressão, a fim de excluir qualquer interpretação “gnóstica”, espiritualizada. Muitos querem “estar em Cristo”, interpretando isso com um estado de elevação espiritual, místico. Estar em Cristo, no entanto, é o mesmo que “Cristo em nós”, e somente naquele que entender que tem que 163 aceitar o sacrifício (sangrento) do Logos, feito homem; quem incorporar essa realidade transformadora, terá o precioso dom de ter Cristo nele habitando e, consequentemente, é guardado em Jesus. (57) Assim como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, também quem de mim se alimenta por mim viverá. Encontramos essa relação mútua entre o crente em Jesus e Jesus no crente, várias vezes nos escritos de João (14,20/15,14-17/17,23.26/ 1 João 3,6.24). Essa imanência está assegurada na mútua imanência entre Pai e Filho. (58) Este é o pão que desceu do céu, em nada semelhante àquele que os vossos pais comeram e, contudo, morreram; quem comer este pão viverá eternamente. Retornando ao verso 32 e 49, entendemos que Jesus outra vez exortava seu auditório a crer nAquele que Deus enviou do céu, como “pão da vida”. O paradoxo nos versos 51-58 intensifica a mensagem, deixando claro que a simples “fé” na missão do Filho não é suficiente. Deve, sim, ser incorporada, transformada em vida (existencial), assim como o pão que comemos nos dá vida. Existem teólogos que veem os versos 53 – 57 como acréscimo da igreja primitiva, forçando assim uma base para a prática do “partir do pão e do cálice”. Não há nenhuma base histórica para essa interpretação, embora ela nos simplifique bastante a compreensão do trecho. Os mais antigos manuscritos já contêm todos esse versos na ordem que as acabamos de ler. Portanto, passemos pela porta estreita que as palavras de Jesus colocam à nossa frente: Não será suficiente “crer”; a exigência é “ser transformado, comendo e bebendo”, metaforicamente, o Filho. Assim seremos reconhecidos e guardados por ele. A nossa fé deve ser existencial, não objetiva somente (conhecimento), ela deve transformar, moldar a nossa vida na prática. Aceitando a exortação de Jesus, fica evidente que nenhuma igreja, nenhuma seita ou denominação e nenhum outro ser humano pode fazer isso em seu favor. Não existe “despachante” nas coisas da fé. Não importa o “título” desse “despachante em matéria de fé, nem suas vestiduras. É você que crê e come e bebe, ou ninguém jamais vai fazê-lo em seu lugar. Devemos, outrossim, reconhecer que, a partir da ceia instituída na noite em que Jesus foi traído, e desde então celebrada pelos seus, abre-se para nós uma compreensão mais profunda do texto lido, pois, em memória da morte única, uma vez por todas, comemos e bebemos até que Ele venha (Lucas 22,19). (59) Estas coisas disse Jesus, quando ensinava na Sinagoga de Cafarnaum. 164 Como já mencionamos, a palavra usada no original grego para “Sinagoga” pode apontar tanto para a Sinagoga como o local de encontro e leitura e discussão da Santa Lei de Deus, quanto para uma assembleia de pessoas. Seja como for, o Evangelista nos lembra que todo esse discurso de Jesus perante um auditório de judeus fiéis se deu na cidade de Cafarnaum, na Galileia. Como veremos na próxima leitura, fora ele a razão da ruptura definitiva dos Galileus com seu cidadão ilustre. No entendimento deles, desta vez, o filho de José tinha ido longe demais nas suas afirmações. Cap. 6.60-66 Muitos de seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? (61) Mas Jesus, sabendo por si mesmo que eles murmuravam a respeito de suas palavras, interpelou-os: Isto vos escandaliza? (62) Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar onde primeiro estava? (63) O Espírito é que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. (64) Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. (65) E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém pode vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. (66) À vista disso, muitos de seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele. (60) Muitos de seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? O discurso na Sinagoga de Cafarnaum já era passado. Novamente Jesus encontrou-se a sós com um grande número de seguidores. Erramos se imaginamos Jesus sempre na companhia “dos Doze” somente. Ele era visto como “Rabi” e, como tal, sendo seguido por muitos admiradores ora mais, ora menos. Até esse ponto de seu Evangelho, João nunca fez menção dos “Doze” que, geralmente, vemos como Seus únicos discípulos. Eram muitos, mas variando em número de um dia para outro. Agora que Ele está a sós com seus seguidores, ocorre novamente aquilo que vimos por ocasião do discurso de Jesus na Sinagoga: nenhum dos homens teve a coragem de abordá-lo, expondo sua frustração ou revelando abertamente o que pensava. Conversavam, cochichavam entre si, à parte. Dava para perceber que a maioria deles viu-se escandalizada. Não era o mesmo motivo para escândalo que perturbara os judeus na Sinagoga. Aqueles tiveram seus problemas em aceitar Jesus como o “pão do céu”. Estes, que estavam seguindo a Jesus, já estavam acreditando nEle; criam nas palavras dEle. Queriam vê-lO grande e reconhecido. Ainda estava presente a esperança de que o Mestre subitamente assumisse abertamente a liderança de um movimento, pondo fim à situação de opressão política e social reinante. Não que duvidassem da vinda de Jesus “dos céus”. O que lhes parecia inadmissível, escandaloso ou uma imbecilidade, era a visão que 165 Jesus acabara de revelar quanto ao futuro de seu ministério: a necessidade salvadora de sua morte; a dádiva de sua carne para o mundo pecador; o derramamento de seu sangue para a vida do mundo! E seus seguidores se julgaram muito acima daqueles “do mundo” – para que esse desperdício!? Uma única vez em todo o Evangelho, João usou a palavra traduzida como “duro” (... é ouvir esse discurso). Sim, era duro mesmo!... Todas as suas aspirações alimentadas como seguidores do grande Rabi Jesus prometiam dar em nada! Haviam investido suas esperanças na pessoa errada! (61) Mas Jesus, sabendo por si mesmo que eles murmuravam a respeito de suas palavras, interpelou-os: Isto vos escandaliza? Havia chegado a hora para que os seguidores (com intenções diversas das de Jesus e do Pai) acordassem. Parafraseando, poderíamos colocar as palavras de Jesus dessa forma: “Somente agora vocês percebem qual a minha missão?” (62) Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar onde primeiro estava? O verso 62 permite diferentes interpretações. Será que se trata de uma pergunta ou trata-se de uma proclamação? Alguns intérpretes entendem a fala como uma pergunta, anunciando um escândalo ainda maior. Eles pensam na ascensão de Jesus, quando Ele deixaria os seus sozinhos na terra, de certa forma abandonados e aumentando dessa forma o escândalo projetado. Outros veem nas palavras de Jesus uma proclamação. Mais tarde, quando Ele estiver ali, entenderiam de onde Ele veio. Alguns intérpretes observam que, como o Evangelista relata detalhadamente a ressurreição de Jesus mas nada escreve a respeito da ascensão, Jesus tenha se referido ao Espírito Santo, através do qual viriam a entender tudo. Em todo o seu Evangelho, João usou a crucificação como momento de Sua volta ao Pai, quando pela sua oferta e aceitação da morte violenta, não só foi “elevado” mas também “glorificado”. Confira os textos em João 7,33; 8,14.21f; 13,1.3; 14,28; 16,5.28. Cremos que as palavras de Jesus relatadas no verso 62 devem ser vistas, de alguma forma, neste contexto. (63) O Espírito é que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. Mais diversificadas ainda do que no verso anterior são as interpretações que encontramos para essa palavra, onde Jesus subitamente declara a carne como de nenhuma utilidade. Não disse, há pouco, que devemos comer sua carne para termos vida ? 166 Se relacionarmos o verso 63 com o anterior, as palavras soam como uma maravilhosa conclusão. Ainda não há como “ver” que sua carne era “pão do céu”. Somente como carne “dada voluntariamente como sacrifício” (confira Hebr. 9,14), ela terá utilidade. A carne em si para nada aproveita. Tudo que Jesus tinha dito nos versos 29 a 58 era “vida”. Todas aquelas palavras se tornariam vida quando o Espírito Santo fosse dado. Para tanto, Jesus tinha que voltar ao Pai, “levantado” na cruz e “glorificado”, nas palavras de João. Desta forma, os dois versos 62 e 63 formam uma unidade que aponta para o que, hoje, nos é conhecido; mas para os seguidores, naquele momento, ainda não fazia sentido. (64) Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. Como Jesus já disse no verso 37, Ele sabia que o mistério da salvação estava (e continua estando) nas mãos de seu Pai. Nem todos crerão! O Apóstolo acrescenta uma de suas típicas observações. Ele, o discípulo, tinha certeza de que seu Mestre conhecia quem finalmente lhe daria crédito ao ponto de “inteirar o pão da vida” e quem não. João estava convencido de que, desde já, Jesus sabia quem dos Doze ia traí-lo. João nunca fez segredo da aversão que nutria contra o colega de ministério que teve a ousadia de trair seu amado Mestre. Faz parte do mistério divino que essa traição tenha sido necessária para a “glorificação” de Jesus. Mas João escreveu como homem; percebemos e entendemos sua emoção ao lembrar daquilo que, humanamente, era uma tragédia. (65) E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém pode vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. Jesus não havia deixado claro na Sua palestra em Carfarnaum que somente aqueles que por Deus Lhe seriam dados é que O reconheceriam? Quem conhecer o Pai certamente reconhecerá o Filho! (João 8,47: Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus...). Se você não vê nada de especial e divino em Jesus, faça uma avaliação de seu relacionamento com Deus! Você O reconhece como Deus? Você está ouvindo o que Ele lhe diz? Será que Ele pode lhe apontar seu Filho, ou você ainda está cheio demais de religião? (66) À vista disso, muitos de seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele. Jesus sabia: nada mudaria o plano de seu Pai. A responsabilidade cabia ao Pai e a Ele, Jesus, cabia a obediência. Era necessário descansar nessa certeza frente à ameaça da debandada dos “muitos” que até então O haviam seguido. Se estudarmos a fala de Jesus no capítulo seis, com cuidado, perceberemos o desempenho magistral do relato do Evangelista. 167 O Evangelista escolheu e compeliu as palavras de Jesus numa sequência de seis degraus, todos com a mesma estrutura. Cada degrau ou etapa começa com uma curta observação ou pergunta da parte do auditório, à qual Jesus responde adequadamente. As etapas se seguem crescendo em intensidade, aparentemente provocando cada vez mais. Tudo começa com uma pergunta como que de curiosidade (“Mestre, quando chegaste aqui?”), e vai crescendo até à excitada disputa no verso 52 e a debandada dos seguidores resignados que se sentiam iludidos nas suas projeções pessoais. As necessidades postas por Jesus começam com o convite à fé no enviado de Deus e crescem até chegar à exigência, aparentemente repugnante, de comer sua carne e beber seu sangue como caminho para a vida e mistério revelado na indicação da ação do Espírito, uma vez consumados o sacrifício e a entrega de seu corpo em favor do mundo. Da mesma forma observamos uma constante alteração no auditório. Enquanto inicialmente “os judeus” formavam uma massa indefinida melhor, um grupo de curiosos na beira do lago, na medida em que a conversa avança, as faces tomam a forma de inimigos. E como final restam os rostos profundamente desiludidos e tristes de muitos dos antigos seguidores que agora O abandonam. O que sobra é um grupinho insignificante de homens, doze em número; aqueles que, tempo atrás, Jesus pessoalmente havia escolhido e dessa forma comprometido para com ele. Todos os demais, desiludidos, lhe viraram as costas. • E onde fica você nessa história? Cap. 6.67-71 (66) À vista disso, muitos de seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele. (67) Então, perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis também vós outros retirar-vos? (68) Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; (69) e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus. (70) Replicou-lhe Jesus: Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vocês é diabo. (71) Referia-se ele a Judas, filho de Simão Iscariotes; porque era quem estava para traí-lo, sendo um dos doze. (67) Então, perguntou Jesus aos doze: ... Pela primeira vez, no seu Evangelho, João menciona “os doze”. Ao contrário dos Evangelhos sinóticos, o Evangelista não menciona o momento em que Jesus escolheu os doze para estarem com Ele (confira Marcos 3,14). João nunca usou o atributo “Apóstolo” quando se referia aos doze, pois, para ele, quem os designou para serem Apóstolos foi o Cristo ressurreto. Por enquanto, os doze são seguidores ou discípulos somente. 168 Devemos imaginar os doze em meio à expressão “muitos admiradores”, sempre que os Evangelistas mencionam “uma multidão”. No nosso Evangelho, os doze escolhidos nominalmente por Jesus do meio desses “muitos” que O seguiam, já apareceram discretamente no episódio da refeição milagrosa, que deu início ao longo discurso sobre “o pão do céu”. No fim da refeição, Jesus havia pedido a seus discípulos que recolhessem as sobras, para que nada se perdesse. Foi esse grupo dos doze que, cada um, procurava sobras, para que “nada se perdesse”, somando doze cestos. Esse “nada se perdesse” é importante. Somente João o diz, e esse cuidado em relatar tudo e não perder nada do que viu e ouviu caracteriza o nosso Evangelista. Vimos como na leitura anterior (verso 66), após ouvir as condições que Jesus impôs à fé, a multidão se dispersava, seja por não compreender o sentido metafórico da fala ou simplesmente por não gostar de tal compromisso com a pessoa de Jesus. Este, que observava o afastamento dos “muitos”, voltou-se para seu grupinho. Será que eles realmente estavam dispostos a permanecer com ele, mesmo quando a projeção do futuro apontava para o sofrimento? Ou não haviam compreendido? Perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis também vós outros retirar-vos? Será que esses doze, escolhidos pessoalmente por ele, haviam compreendido suas palavras? (68) Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; ... Como na maioria das vezes, Pedro se adiantou aos demais. Representando o grupo todo, ele expressou o que, na sua opinião, todos eles sentiam. No verso 72 Jesus tinha exortado seus ouvintes a pensarem não somente em comida perecível, mas procurar pela comida “...que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará...”.Pedro havia encontrado em Jesus essa comida que não perece. Para onde iriam, após terem reconhecido em Jesus uma autoridade que não era humana, mas de alguma forma era divina? ... (69) e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus. Todos os quatro Evangelhos relatam a confissão de Pedro. Há, no entanto, diferenças notáveis na fala de Pedro. No Evangelho de Marcos, o mais antigo e, portanto, o mais fiel à compreensão judaica, Pedro chama Jesus o “Cristo” (Messias). Ele era o esperado Messias do Antigo Testamento, do qual os profetas falaram. Em Lucas, Pedro declara Jesus “o Cristo (Messias) de Deus”. Ainda prevalece a visão judaica do Messias. Quando olhamos em Mateus, que foi escrito tendo o Evangelho de Marcos como base, percebemos que o escritor acrescentou (ou os copiadores acrescentaram) a expressão Filho do Deus Vivo ao título “o Cristo”. Aqui já temos “teologia”, uns conhecimentos posteriores, colocado para melhor esclarecimento do leitor da época. 169 Como é que o Evangelista João se lembra da fala de Pedro? O Evangelista João confirma com as palavras de Pedro o que já sabemos do prólogo: Jesus é O Santo de Deus; não a figura do Messias judaico somente, mas, sim, acima da condição de criatura, portanto “Santo”, como Deus é Santo. Na procura de uma expressão digna para Jesus advinda da boca de Pedro, o Evangelista lhe atribuiu a condição que somente concede a Deus. O Evangelista João entendeu que Jesus não somente era o Messias dos judeus, mas, sim, “o Logos” de Deus, em forma humana. Portanto, ele aponta através da afirmação de Pedro para “o Santo de Deus”. Aquela confissão de Pedro, o qual teve seu lugar na história e da qual todos os Evangelistas falam, é relatada por cada um dos quatro Evangelistas de acordo com o contexto cultural, histórico e teológico no qual cada Evangelho foi composto. O mais importante é que Pedro afirma ter “crido e conhecido” essa realidade. Você pode crer (e muitas vezes cremos sem vermos o cumprimento de uma promessa de Deus), simplesmente confiando. O conhecer inicia-se com a fé na pessoa de Jesus. “Conhecer” é um processo lento, mas necessário. Aqui Pedro afirmou conhecer “o Santo de Deus”. Na sua “Segunda Carta” à igreja primitiva, anos mais tarde, ele encerra sua mensagem com a seguinte exortação: “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2.Pedro 3,18). Todos nós devemos crescer, não somente na doutrina, mas na vida. Você está crescendo no conhecimento do Senhor Jesus? A fé é primeiramente existencial, portanto dinâmica, não estática; ela é vida. (70) Replicou-lhe Jesus: Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vocês é diabo. Jesus entendeu a manifestação de Pedro como a de todos os doze, como percebemos na sua resposta, onde se dirigiu a todos. A eleição da qual Jesus falou no verso 44 (ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer) continua um mistério. Já falamos sobre eleição na compreensão joanina. Aqui, no entanto, Jesus lembra os seus de que por Ele foram eleitos pessoalmente, escolhidos da multidão após uma noite de oração. Parece simples demais dizer que Jesus conscientemente escolheu Judas Iscariotes para que este O traísse. Jesus escolheu os doze após falar com seu Pai. Foram escolhidos para serem seus seguidores; todos eles, inclusive Judas. Jesus foi traído! Se Ele o soubesse desde o início, não teria sido traição. Ser traído é ser entregue por aquele em quem confiava. Sabemos como a traição dói. Jesus havia escolhido a dedo seus doze. No decorrer do tempo cresceu-lhe a certeza de que seria traído por um de seus próximos, mas nunca Ele apontou Judas como o traidor. A frase “um de vocês é diabo” não isentou nenhum deles. Vale lembrar que a palavra “diabo” (diabolos) significa literalmente “acusador / caluniador/ aquele que cria confusão” e só mais tarde ganhou o sentido que hoje atribuímos a esse termo. 170 Jesus conheceu os seus, assim como eles começavam a conhecê-lO. Havia observado o comportamento de cada um deles. Quando anunciou veladamente o sofrimento e a morte, quando falou do pão e do sangue, cada um dos discípulos tinha que posicionar-se intimamente. Sabemos que a grande maioria O abandoou ante essa perspectiva de sofrimento e morte e que até os doze começavam a argumentar entre si a respeito. Se, para Jesus, havia certeza de que somente um de seus mais próximos poderia entregá-lo, para os doze não valia o mesmo. A frase “um de vocês” deixou todos eles em suspense. A pergunta “porventura, sou eu”? (Marcos 14,19) pairava sobre todos. A “incerteza salutar” é condição necessária para a certeza da fé (Kierkegaard). Como em nenhum outro Evangelho, notamos em João cap.6 a ruptura entre “seguidores” e discípulos. Essa debandada deixou o Evangelista João profundamente impressionado. Na sua “Primeira Carta” (escrita provavelmente mais tarde), ele a aplicou à igreja, quando escreve: “ ...saíram do nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco...” (1 João. 2,19). Um alerta silencioso ganhou voz para todos que estão com Jesus: tanto o escritor sagrado como o que recebe a promessa divina pode ter plena certeza de que nenhum poder desse mundo será capaz de arrancá-los da mão de Deus (confira Romanos 8,38.39). Dificilmente, porém, terão a mesma certeza no que diz à sua própria fé e convicção e quanto à fidelidade em permanecer com Jesus até ao fim. O teólogo e filósofo Kierkegaard definiu essa incerteza invencível como “complemento invariável e necessária da certeza da fé”. Veja, a relação entre certeza de salvação e certeza da fé é determinada pela incerteza. No momento em que eu tiro o fator da incerteza – a fim de obter uma certeza maior – não ganho uma fé caracterizada por humildade, uma fé mantida em temor e tremor (Filipenses 2,12), mas, sim, me transformo num malvado e obstinado ser que se julga apto para fraternizar com Deus, mas nada dEle conhece. Verdadeiro relacionamento com Deus só existe junto com essa “salutar” incerteza (Kierkegaard). “Senhor, será que sou eu”? Faria muito bem se cada um de nós se conscientizasse das duas condições: da absoluta certeza da fidelidade de Deus e da “salutar” incerteza quanto à nossa própria fidelidade – condição do discípulo que luta para andar sempre perto do Senhor e dEle depende em tudo. Esse discípulo não brinca com o pecado. (71) Referia-se ele a Judas, filho de Simão Iscariotes; porque era quem estava para traí-lo, sendo um dos doze. Mais uma vez, João pensa em voz alta. Naquele momento histórico ainda não sabia quem seria o traidor. Na última ceia, anuindo ao pedido 171 de Pedro, este inclinou-se para Jesus, procurando saber quem seria o traidor. Nunca João escondeu a profunda frustração e condenação por aquele seu ex-colega que ousou trair seu Mestre. Parece-nos que antes nunca havia desconfiado de Judas. O tratamento hostil dado a ele no seu Evangelho nos permite tirar essa conclusão. Com a observação acima, ele adianta ao leitor uma informação que, por enquanto, não era do conhecimento dos doze. Será um deles que trairá Jesus, mas quem? Senhor, serei eu que te trairei? • Procure andar perto do Senhor e submeta-se ao que Ele lhe diz ou destina. Ele será fiel! Cap. 7.1-13 (01) Passadas estas coisas, Jesus andava pela Galileia, porque não desejava percorrer a Judeia, visto que os judeus procuravam matá-lo. (2) Ora, a festa dos judeus, chamada de Festa dos Tabernáculos, estava próxima. (3) Dirigiram-se, pois, a ele os seus irmãos e lhe disseram: Deixa este lugar e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. (4) Porque ninguém há quem procure ser conhecido em público e, contudo, realize os seus feitos em oculto. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo. (5) Pois nem seus irmãos criam nele. (6) Disse-lhes, pois, Jesus: O meu tempo ainda não chegou, mas o vosso sempre está presente. (7) Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más. (8) Subi vós outros à festa; eu, por enquanto, não subo, porque o meu tempo ainda não está cumprido. (9) Disse-lhes Jesus estas coisas e continuou na Galileia. (10) Mas, depois que seus irmãos subiram para a festa, então, subiu ele também, não publicamente, mas em oculto. (11) Ora, os judeus o procuravam na festa e perguntavam: Onde estará ele? (12) E havia grande murmuração a seu respeito entre as multidões. Uns diziam: Ele é bom. E outros: Não, antes, engana o povo. (13) Entretanto, ninguém falava dele abertamente, por ter medo dos judeus. (01) Passadas estas coisas, Jesus andava pela Galileia,... Após a ruptura na sua popularidade, Jesus permaneceu por pelo menos seis meses na Galileia. Esta região afastada de Jerusalém (Judeia) era desprezada pelos judeus mais cultos. O movimento em torno de Jesus encolheu. Não mais o seguiam aquelas multidões como antes o faziam. ... porque não desejava percorrer a Judeia, visto que os judeus procuravam matá-lo. O Evangelista entendeu essa permanência na “província” com o cuidado de Jesus em não se expor desnecessariamente ao perigo. No capítulo 5 vimos como a cura de um paralítico no tanque de Betesda num dia de sábado havia causado tumulto e áspera discussão com os religiosos. Vimos também como Jesus havia justificado a cura (confira estudo João 36). 172 A interpretação da “guarda do sábado” era um assunto de extrema importância entre os fariseus. Havia opiniões divergentes entre eles em torno “do que era e do que não era agradável a Deus” no dia sagrado. Os fariseus nunca chegaram a uma definição final; portanto, havia um espaço amplo para opiniões divergentes. Jesus não foi crucificado por ter transgredido a Lei do sábado. Quando, após a prisão de Jesus, o Sinédrio procurava acusações contra ele, não encontraram nenhuma transgressão digna de morte (Marcos 14.55). Como Jesus não recuava nas suas afirmações, finalmente foi entregue como caso político à autoridade romana, onde sofreu a pena capital segundo a Lei Romana. Se tivesse sido condenado por ofensa contra a Lei de Moisés (por exemplo a quebra de sábado), a pena teria sido de apedrejamento. Retornaremos ao assunto no devido tempo. O nosso Evangelista justificou a permanência de Jesus na Galileia, com o perigo que Jesus provavelmente correria em Jerusalém. Pelas afirmações de Jesus (7.30) entendemos que a demora na província tinha sua razão no fato de ainda não ter chegado a “sua hora”. O Pai ainda não lhe havia dado liberdade para subir (novamente) à capital. A partir desse capítulo, o termo “a hora” sempre aponta para o momento do Seu sacrifício (confira em João 7.30; 8,20;12,23;12,27;16,32). Jesus sabia que o Pai ainda não lhe havia dado certeza quanto ao momento de Sua entrega. (2) Ora, a festa dos judeus, chamada de Festa dos Tabernáculos, estava próxima. Não sabemos por que os Evangelhos sinóticos nunca mencionam essa festa. Existem muitas teorias a respeito. Como cada um dos quatro Evangelhos só relata determinados momentos, nem temos total certeza quanto à duração do ministério de Jesus. Foi um ano somente (os relatos dos três sinóticos cabem todos em um único ano) ou foram três, como entendemos pelo Evangelho de João? Nos três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), Jesus sobe uma só vez para Jerusalém, onde O espera a Sua Páscoa. As atividades de Jesus na Galileia e nas regiões fora de Israel, em terras gentias, hoje pertencendo ao Líbano, à Síria e à Jordânia (“região das Dez Cidades”), são amplamente documentadas. O Evangelista João, porém, focaliza mais a relação entre Jesus e o Templo, para onde por várias vezes subiu, observando e cumprindo a tradição religiosa. João dedica poucos relatos à atividade de Jesus na sua própria terra, a Galileia. A festa mais importante do ano, a “Festa dos Tabernáculos”, havia chegado. Durante a época do segundo Templo em Jerusalém era a festa mais popular e querida dos judeus. A celebração remonta a Levítico 23,3943 e era celebrada entre os dias 15 e 23 do sétimo mês, equivalendo aproximadamente ao nosso mês de outubro. Era uma festa alegre, de ação de graças, relembrando a orientação divina nos anos de peregrinação no 173 deserto e festa de colheita. Como era celebrada imediatamente após o dia da expiação, o senso de alegria pela redenção era proeminente. Numa escala diária decrescente era feito um sacrifício especial de setenta novilhos. As trombetas eram tocadas todos os dias. Havia a cerimônia do derramamento de água de Siloé em comemoração a Êxodo 17.1-7. O pátio interior do Templo era iluminado e a luz de um grande candelabro lembrava a coluna de fogo que, durante as noites no deserto, tinha servido como guia do povo (Num.14,14). Havia uma procissão de tochas. Acima de tudo, os israelitas armavam suas tendas feitas de galhos de árvores nas praças e nos telhados das casas e acolhiam milhares de peregrinos que chegavam de todas as regiões do país. A razão pela qual João menciona essa festa é que ela servia de palco para Jesus, quando proferiu suas palavras em que interferiu nos ritos da água e no da luz, proclamando-se a Si mesmo a verdadeira luz e a fonte de água viva (7,37 e 8,12). Veremos mais sobre isso daqui a pouco. (3) Dirigiram-se, pois, a ele os seus irmãos e lhe disseram: Deixa este lugar e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. (4) Porque ninguém há quem procure ser conhecido em público e, contudo, realize os seus feitos em oculto. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo. (5) Pois nem seus irmãos criam nele. Sabemos de Mateus 12,46, Marcos 3,31 e Lucas 8,19.29, que Jesus tinha irmãos e irmãs. Existe um relatório de Jerônimo (c.Pelag.III/2) segundo o qual os irmãos de Jesus o admiravam. Eles o teriam incentivado positivamente a revelar-se perante o povo, assumindo o trono da realeza judaica por ocasião da festa. Esse relatório é bem posterior ao nosso Evangelho e de pouca credibilidade. Tudo indica que João quis deixar evidente a ironia e a descrença dos irmãos de Jesus. Parecem não saber nada dos sinais que Jesus operou na região, ou são descrentes e O desprezam. Por Sua própria família, Jesus era tido como “fora de si” e, até após a ressurreição, nada mais ouvimos da família dEle no nosso Evangelho. Sua mãe nunca aparece nos Evangelhos participando em favor dEle, mas certamente observava, com angústia, o comportamento estranho de seu filho. Ela não havia esquecido o que lhe fora dito pelo Anjo, em Lucas 1,39-55 (perpetuado no “Magnificat” da igreja), ou por Simão (Lucas 2,25-35), e que aparentemente ainda não fazia sentido. Ela não compartilhava com ninguém, mas o Evangelista diz que ela “guardou aquilo no coração”. Maria só aparecerá mais tarde debaixo da cruz onde seu Filho agonizava. (6) Disse-lhes, pois, Jesus: O meu tempo ainda não chegou, mas o vosso sempre está presente. O Evangelista, usando a mesma tipificação de “tempo” (kairós) tanto para Jesus quanto para seus irmãos, deixou muito claro o abismo que os separava. A “hora”, em que Seu sacrifício mudaria o rumo do mundo, ainda não havia chegado. A hora 174 deles, no entanto, sempre estava presente. Para eles, como para nós, vale o que o salmista diz no salmo 95,7.8: “Hoje, se ouvirdes a Sua voz, não endureçais o coração...” Enquanto é hoje, há oportunidade de procurar a Deus e ouvir a exortação de 2.Coríntios 5,20 (confira!). (7) Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas obras são más. O Evangelho de João deve ser lido da frente para trás e, retornando de trás ao início, novamente. O leitor “ideal” do Evangelho sabe que as palavras do verso 7 são as palavras de despedida de seus discípulos (caps. 15 e16). “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia” (15,18.19). O irmãos (meio-irmãos biológicos) de Jesus, a essa altura do relato do Evangelista, ainda não faziam parte daqueles que Jesus “escolheu do mundo”. Ainda faziam parte dele e, portanto, não podiam ser odiados. Tiago (meio-irmão de Jesus e posterior líder da Igreja em Jerusalém), diz no capítulo 4,4 de sua Carta: “Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo, constitui-se inimigo de Deus”. Temos que escolher a quem pertencemos. Uma pergunta: Será que os Apóstolos erraram? Por que a Igreja de hoje procura ser amiga desse mundo, recebendo dele honras e dinheiro? Quem dos dois está errado: Tiago e João ou esse nosso novo Evangelho da prosperidade que proclama as proezas do mundo? A sentença: “o mundo...as suas obras são más” é marca característica do estilo joanino. Não menos que 19 vezes, nas mais variadas formas, João menciona esse fato nos seus escritos (confira também na “Primeira Carta” de João). A igreja primitiva procurava, através de escritos apócrifos, santificar também os irmãos de Jesus. Parecia-lhe inconveniente demais apresentar à igreja um Senhor que, durante seu ministério, nem era reconhecido nem pela sua própria família. Dois séculos após o Evangelho de João ter sido escrito surgiram, entre outros, o “Evangelho dos Hebreus” e o “Evangelho de Tomé”, nos quais o irmão mais velho de Jesus, Tiago, citado acima, aparece como participante da última ceia. No Evangelho de Tomé, Jesus até aponta a “Tiago, o Justo” como razão da criação da terra e dos céus. Na realidade, Tiago juntou-se à igreja judaico-cristã somente após a ressurreição de Jesus e foi martirizado em 62 pelos enfurecidos sacerdotes do Templo. Não permita que as “descobertas” periódicas de “novos” Evangelhos, exploradas amplamente na mídia, perturbem você!! Esses produtos 175 apócrifos foram reconhecidos como falsos já no século quarto e, por isso, não fazem parte do Cânon do nosso Novo Testamento. (8) Subi vós outros à festa; eu, por enquanto, não subo, porque o meu tempo ainda não está cumprido. A palavras de João têm um duplo sentido (ambíguo). Jesus incentivou seus irmãos a subirem a Jerusalém. Toda ida à Jerusalém era “subir”, pois a capital se encontra a aprox. 700 metros acima da região da Galileia (uma subida aproximada a da “Serra do mar” na região de Santos). Quando Jesus se referiu à Sua pessoa, a palavra “subir” tinha um segundo sentido, ainda oculto. Ainda não havia chegado o “Kairós” (kairós = época) para subir ao Pai. Parafraseando os melhores intérpretes, Jesus lhes dissera: “Não subo (para o Pai) durante esta festa”. Para Aquele que João apresentou como “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, a festa alegre dos Tabernáculos não era “o tempo”. A imagem do “cordeiro” está intimamente ligada à festa da Páscoa e, não, à dos Tabernáculos. Se a morte de Jesus significava o cumprimento final da Páscoa, ritual ordenado por Deus em Êxodo 12, ela deveria acontecer naquele momento. (9) Disse-lhes Jesus estas coisas e continuou na Galileia. (10) Mas, depois que seus irmãos subiram para a festa, então, subiu ele também, não publicamente, mas em oculto. Encontramos uma contradição maior ainda que a de João 2,4 e 7. Dias após a partida de seus irmãos à Jerusalém, Jesus aparentemente mudou de ideia. O que o Evangelista pretendeu com a estranha contradição? Ela demonstra a “dependência”, por parte de Jesus, do Pai. Quando o Pai lhe revelou que ainda havia espaço para testemunho, antes de “subir”, Jesus partiu para Jerusalém também. A peregrinação do povo festivo costumava levar semanas, mas Jesus evitou qualquer companhia e seguiu por outros caminhos, anonimamente, como o Evangelista observa. A saída da Galileia era definitiva; Jesus não voltaria mais. Sua saída da Galileia significava o ponto de transição para o aparente fracasso. Essa consciência pesava; Ele preferiu a solidão. Somente no capítulo 21 ouviremos como ele, após Sua morte e ressurreição, aparece aos seus à margem do “mar da Galileia”. (11) Ora, os judeus o procuravam na festa e perguntavam: Onde estará ele? O Evangelista revela um grande dom como escritor pelo tom dramático contido em poucas sentenças. O termo usado no verso 11 para indicar “os judeus” não permite a identificação do povo festivo. Quem ansiosamente observava a multidão para identificar o Nazareno eram os círculos farisaicos, preocupados com uma eventual intervenção de Jesus nos rituais do Templo. Quem O procurava, eram as autoridades religiosas. 176 (12) E havia grande murmuração a seu respeito entre as multidões. Uns diziam: Ele é bom. E outros: Não, antes, engana o povo. O Evangelista revela a razão da preocupação do clero. A atmosfera de angústia e ansiedade entre a multidão dos peregrinos o preocupava. Todos falavam com voz baixa “dele”, esperando “vê-lo”. Jesus era famoso e conhecido o suficiente. O impessoal “Ele” já O identificava. Esse povo não pensou em termos teológicos, como o faziam as autoridades nas discussões com o Galileu (caps.6 e 8). A eles interessava o geral. Ou era “bom” ou “ruim”!? As multidões de peregrinos “ignorantes”, vistas pelos fariseus com desprezo (cap.7,49: “... esta plebe, que nada sabe da Lei, é maldita”) era uma fonte permanente de preocupação para os fariseus e os sacerdotes do Templo. Enquanto o Evangelista se referiu no verso anterior à elite que temia o poder do povo, mas o via com desdém, vemos nesse verso a indefinição “do mundo”, representada pela massa de peregrinos com suas discussões às escondidas e sua murmuração, apostando às escondidas na chegada “dEle” ou não. (13) Entretanto, ninguém falava dele abertamente, por ter medo dos judeus. A multidão havia tomado conhecimento do fato de que o alto clero não via Jesus de bons olhos. Mas temendo o poder do clero, preferia esperar para ver, sem se expor. Cap. 7.14-24 (14) Corria já em meio a festa, e Jesus subiu ao templo e ensinava. (15) Então, os judeus se maravilhavam e diziam: Como sabe este letras, sem ter estudado? (16) Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou. (17) Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo de mim mesmo. (18) Quem fala por si mesmo está procurando a sua própria glória; mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele não há injustiça. (19) Não vos deu Moisés a lei? Contudo, ninguém dentro vós o observa. Por que procurais matar-me? (20) Respondeu a multidão: Tens demônio. Quem é que procura matar-te? (21) Replicou-lhes Jesus: Um só feito realizei, e todos vos admirais. (22) Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais um homem. (23) E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? (24) Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça. Aqui vamos interromper a leitura por alguns momentos. O Evangelho de João deixa muitas perguntas “técnicas” em aberto. São perguntas típicas para o ocidente com seu pensamento racional. João não escreveu a biografia de Jesus. Não o interessava muito a ordem dos acontecimentos; nem mais era possível determinar com exatidão o desenrolar da história. O que o interessava era nada perder do que ele sabia; ser um fiel administrador daquilo que Deus lhe tinha dado para testemunhar. 177 Desde os primeiros séculos da igreja há especulações quanto à ordem dos capítulos 5,6 e 7. A fala de Jesus, no presente momento, encaixa-se muito bem como continuação de 5,47, onde Jesus também discutiu com os religiosos. Assim, há vários comentaristas que defendem uma troca acidental de capítulos ou trechos durante a composição final da obra, o que não iremos considerar no nosso estudo. Ficaremos com a ordem que os manuscritos nos deram desde o início, sem com isso fazer um julgamento histórico. O conteúdo nos interessa muito mais do que uma certeza da sequência histórica. Essa nunca nos revelará o “Logos de Deus”. Mencionamos essa questão somente para que você não se assuste caso encontre defensores da teoria de uma “intervenção tardia da igreja primitiva”, nos textos. Não é a ordem cronológica dos acontecimentos que nos salva. (14) Corria já em meio a festa, e Jesus subiu ao templo e ensinava. No meio da festa que durava sete dias, mais um dia final especial, Jesus apareceu repentinamente no Templo. Não ouvimos nada de seus discípulos. No pátio interno havia espaço e ali Jesus começou a ensinar publicamente e com toda ousadia. Cada israelita tinha o direito de tomar a palavra no meio da Assembleia. Jesus não somente fez uso de seu direito como judeu. Ele ensinava. Ensinar significa expor a Lei de Deus com autoridade. (15) Então, os judeus se maravilhavam e diziam: Como sabe este letras, sem ter estudado? Não foram alguns conhecimentos elementares que Jesus expôs à multidão; foram conhecimentos específicos, como os que os escribas e fariseus discutiam e transmitiam nas suas escolas. Todos sabiam que Jesus nunca seguiu a um Rabi reconhecido ou frequentou uma escola rabínica. E mesmo assim Ele agia como um Rabi!? O verbo traduzido por “maravilhar” não indica que ficaram entusiasmados. A resposta de Jesus, no próximo verso, demonstra que ficaram meio desconfiados. (16) Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou. A tradição judaica vê como obrigação de um Rabi passar adiante o conhecimento dele sem acrescentar ideias próprias. O que lhe dá autoridade é a escola que ele representa. Quem se apresenta sem ter “cursado” com os fariseus é suspeito de apresentar ideias próprias. Jesus recusou a acusação que o Evangelista no seu texto não transmitiu, mas presumiu. O ensino de Jesus realmente não era uma repetição do ensino farisaico; nem por isso era invenção própria. Como Jesus disse: Ele ouve sempre a voz de Deus que O enviou (confira também 8,26s/38s/ 2,49s/14,10.24). Jesus podia apontar para as Escrituras pela autoridade de quem foi enviado por Deus. Moisés já lhes havia declarado em Num.16,28 como reconhecer a quem fala da parte de Deus. 178 Filon de Alexandria (25.a.C. – 50 d.C.), baseando-se em Deut. 18,15 havia previsto que: o profeta enviado por Deus, quando repentinamente aparecesse, nada dele mesmo diria, pois o profeta é portador da fala de Deus, que está livre para usar os órgãos do profeta para proclamação se Sua vontade (spec.leg.1,65). A resposta de Jesus era sólida e convincente. (17) Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo de mim mesmo. (18) Quem fala por si mesmo está procurando a sua própria glória; mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele não há injustiça. O caráter do conhecimento necessário para poder julgar as palavras de Jesus não é teórico, mas essencialmente prático. Somente quem se entregar com alma e corpo nas mãos de Deus, disposto a fazer a vontade dEle, saberá discernir as palavras de Jesus. Será necessária uma decisão moral, ética, a favor da vontade de Deus ou, em outra palavra: obediência. Cada judeu conhecia essa premissa da Lei mosaica, como logo adiante Jesus lembrará. Não o “saber”, mas, sim, somente a execução da vontade de Deus abrirá os olhos. O fato de não procurar sua própria honra testemunhou a favor de Jesus; pois como Ele já disse em outro lugar: quem fala de si mesmo, procura ser ele mesmo reconhecido e honrado. (19) Não vos deu Moisés a lei? Contudo, ninguém dentro vós o observa. O Deus de Israel lhes havia dado a Lei através de seu servo Moisés par ser observada. Nem o mais básico eles, os religiosos, observavam. Faltava-lhes a disposição para reconhecer o que vinha da parte de Deus; procuravam sua própria honra... e por que procurais matar-me? Não é que Jesus chorava misérias. Ele acusou, apontando de um lado para a Lei e simultaneamente para o interesse deles em livrarse de Jesus. A grande maioria dos peregrinos imediatamente contestou Jesus: (20) Respondeu a multidão: Tens demônio. Quem é que procura matar-te? A multidão nada sabia de planos sinistros do clero. Esse Jesus lhes parecia louco. Foram imediatamente corrigidos por Jesus. (21) Replicou-lhes Jesus: Um só feito realizei, e todos vos admirais. Uma única cura Jesus realizou num dia de sábado – cuja interpretação ainda era assunto de discussões sem fim – e esse ato foi suficiente para optar pela sua eliminação. Novamente encontramos o “admirar” no sentido de “escandalizar”. Vocês ficam escandalizados com uma única cura realizada no dia de sábado, uma ação que Moisés autorizou na sua Lei? (22) Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais um homem. Jesus se revela profundo conhecedor da Lei, superando em muito seus acusadores. A Torá determina em Levítico 12,3 a necessidade da circuncisão dos meninos no oitavo dia, sinal da aliança com Deus (a circuncisão consiste no corte do prepúcio do pênis nos meninos). Se esse oitavo dia cai num sábado, ele suplanta (prevalece) sobre sábado e a Lei é 179 cumprida. “A circuncisão após esse dia levará à eliminação do povo”, assim disse o Rabi Eliezer e concluiu: “Não podemos concluir partindo do mais leve para o mais pesado? Se por um só membro o sábado é suplantado (não considerado), não será também quando se trata da pessoa toda? Rabi Eleazar b.Azarja (100 d.C.) determinou assim: “Se a circuncisão, que trata de um só dos 448 membros do corpo humano, suplante o sábado, quanto mais o sábado é suplantado quando uma pessoa inteira está em perigo de vida”. (23) E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? A acusação contra Jesus de quebrar o sábado, fazendo-se mesmo Deus, carecia de qualquer fundamento. Como a Torá era a base da discussão tanto para os fariseus quanto para Jesus, toda a discussão se reduziu à interpretação da Lei e Jesus provou como as acusações contra Ele careciam de fundamento; mais ainda: era procedimento dentro dos limites colocados pelos próprios fariseus . (24) Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça. A própria lei dos fariseus aprovou aquela cura no tanque de Betesda. Como agora queriam usá-la contra Jesus? Faltava-lhes reta intenção e assim foram duramente censurados por Jesus. A intensa discussão no meio do átrio começou a chamar a atenção dos responsáveis pela ordem. Veremos na próxima leitura como os fariseus tentavam silenciar a voz que, abertamente, os acusava em dia de festa. Cap. 7.25-36 (25) Diziam alguns de Jerusalém: Não é este aquele a quem procuram matar? (26) Eis que ele fala abertamente, e nada lhe dizem. Porventura, reconhecem verdadeiramente as autoridades que este é, de fato, o Cristo? (27) Nós, todavia, sabemos donde este é; quando, porém, vier o Cristo, ninguém saberá donde ele é. (28) Jesus, pois, enquanto ensinava no Templo, clamou, dizendo: Vós não somente me conheceis, mas também donde eu sou; e não vim porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis. (29) Eu o conheço, porque venho da parte dele e fui por ele enviado. (30) Então, procuravam prendê-lo; mas ninguém lhe pôs a mão, porque ainda não era chegada a sua hora. (31) E, contudo, muitos de entre a multidão creram nele e diziam: Quando vier o Cristo, fará, porventura, maiores sinais do que este homem tem feito? (32) Os fariseus, ouvindo a multidão murmurar estas coisas a respeito dele, juntamente com os principais sacerdotes enviaram guardas para o prenderem. (33) Disse-lhes Jesus: Ainda por um pouco de tempo estou convosco e depois irei para junto daquele que me enviou. (34) Haveis de procurar-me e não me achareis; também aonde eu estou, vós não podeis ir. (35) Disseram, pois, os judeus uns aos outros: Para onde irá este que não o possamos achar? Irá, porventura, para a Dispersão entre os gregos, com o fim de os ensinar? (36) Que significa, de fato, o que ele diz: Haveis de procurar-me e não me achareis; também aonde eu estou, vós não podeis ir? 180 (25) Diziam alguns de Jerusalém: Não é este aquele a quem procuram matar? (26) Eis que ele fala abertamente, e nada lhe dizem. Os peregrinos da capital que estavam presentes por causa da festa e, como parece, sabendo que Jesus não fora bem visto ensinando no átrio do Templo, não entendiam mais nada. Surpresos em vê-lo falar livremente à presente multidão, sem que as autoridades da Casa de Deus (a saber, a “Polícia do Templo”), interviessem, não arriscavam formar sua própria opinião. Para eles importava saber o que “eles” lá em cima (os fariseus e os sacerdotes do Templo) que não intervinham, pensavam a respeito. Entre os de Jerusalém havia “os mais informados” (como sempre) que ouviram boatos a respeito de um plano para a eliminação de Jesus. De novo não falavam “com” Jesus, mas “sobre ele”, da mesma forma como se referiam aos “lá de cima” através de uma referência impessoal. Esse “eles” (ao invés de “as nossos autoridades”), demonstra bem o abismo que separava o alto clero do povo (semelhante aos dias de hoje). Porventura, reconhecem verdadeiramente as autoridades que este é, de fato, o Cristo? A pergunta não era necessariamente irônica. Será que “eles” haviam mudado de opinião e dado a “ele” permissão para ensinar publicamente durante as celebrações da festa? As circunstâncias apontavam nessa direção. Pois, caso “eles” agora O reconhecessem, seria também mais fácil para eles, os peregrinos, manifestar abertamente sua concordância, ou a sua fé no que “ele” estava dizendo. Imediatamente, alguns dos mais instruídos dentre a multidão tomaram a palavra, contestando a possibilidade dele ser o Cristo. (27) Nós, todavia, sabemos donde este é; quando, porém, vier o Cristo, ninguém saberá donde ele é. A crença messiânica popular vigente no judaismo da época tinha como certo que ninguém saberia de onde o Messias viria. A crença apocalíptica judaica (4.Esdras 7,8;13,22) tinha como certo que o Messias ficaria escondido em algum lugar antes de seu aparecimento. Segundo Justino, Mártir (decapitado em 165 d.C.), o rei Tryphon, um judeu helenizado, já havia especulado, 140 anos antes de Jesus nascer, que o verdadeiro Messias provavelmente já nascera e, desconhecido, estaria pronto para sua missão em algum lugar oculto (semelhantemente a hoje em dia, em que alguns dizem que o Anticristo já nascera e estaria escondido em “algum lugar”). Se o Cristo realmente surgir do anonimato, “este aqui” muito claramente não podia ser o Messias prometido, pois todos em Jerusalém sabiam de onde “ele” veio; era filho de José de Nazaré, um vilarejo insignificante na Galileia. 181 A ideia do Messias oculto não se espelhava na real doutrina farisaica quanto à pessoa do Cristo. Por Gênesis 49,10 sabia-se que Ele viria da tribo de Judá; mais tarde foi revelada sua descendência da linhagem de Davi (Sal.Salom.17,21) e o profeta Miquéias apontou Belém como lugar do seu nascimento (Miquéias 5,1). Assim, a tal “religiosidade popular”, até aos dias de hoje, nem sempre corresponde com as Escrituras e as autoridades nada fazem, pois para eles não importa muito o que “esta plebe, que nada sabe” (7,49) pensa. Jesus respondeu à alegação de que não podia ser o Messias esperado por causa de sua ascendência conhecida: (28) Jesus, pois, enquanto ensinava no Templo, clamou, dizendo: Vós não somente me conheceis, mas também donde eu sou; e não vim porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas aquele que me enviou é verdadeiro, aquele à quem vós não conheceis. O nosso Evangelista usou o mesmo verbo, como em 1,15, onde o Batista dava testemunho de Jesus “clamando”. Era uma proclamação! A resposta de Jesus revelou a profunda ironia. Sim, eles sabiam de onde Ele veio: de Nazaré. Seus pais lhes eram conhecidos. Mas, na realidade, nada sabiam. Assim, até a argumentação da origem desconhecida do Messias se cumpria nele. Sua origem lhes era desconhecida; eles nem conheciam Aquele pelo qual Ele foi enviado. “O Verdadeiro” (Deus) lhes era estranho. O Evangelista deixou isso bem claro: A ignorância dos que com Ele discutiam na festa era consequência natural da falta de conhecimento do Deus Verdadeiro pelo qual Jesus fora enviado. Somente se conhecessem a este Deus verdadeiro que O enviou saberiam quem era Jesus. Até a teologia popular, com a qual alguns haviam argumentado contra ele, estava se cumprindo. João Batista, quando interrogado pelas autoridades enviadas a ele (1,26.31.33), apontava “o desconhecido no meio de vocês” como “o cordeiro de Deus” – enviado por Deus. Imaginem vocês o impacto causado por estas palavras! No Templo, no Santo lugar onde, como criam, Deus estava presente, Jesus lhes declarou que nada dele sabiam. (29) Eu o conheço, porque venho da parte dele e fui por ele enviado. Aumentando mais a indignação entre seus ouvintes, Jesus lhes afirmou que, ao contrário deles, Ele conhecia esse Seu Deus. Por este Seu Deus Ele foi enviado. Esse “conhecer” de Jesus tem sua origem na préexistência dele com o Pai (confira 1,1e 2). Os originais do texto variam entre “par autou”, que significa “da parte dele” e “par auto”, o que seria “com ele”. Não importa como lemos o texto, Jesus afirmou ter um relacionamento único e singular com o Deus adorado no Templo. Da parte desse Deus que diziam conhecer, Jesus veio, e nele afirmou estar em cada momento de Sua vida. Como um mortal podia afirmar ser “da parte de Deus” e simultaneamente “estar com Ele” durante seus dias nessa terra? Ao judeu, palavras como essas só podiam soar como usurpação, presunção, e causar 182 um “ódio santo”. Convenhamos: A única alternativa seria uma entrega incondicional, confessando: “meu Senhor, meu Deus” (João 20,18). Não somente naquele momento histórico Jesus forçou um posicionamento daqueles que O ouviam. O Apóstolo Paulo, antigo fariseu, sabia que ele, você e eu só podemos ou dizer “Kyrios Jesus” (SENHORDEUS Jesus) ou então “Anátema Jesus” (maldito Jesus!). Confira em 1 Coríntios 12. Não há meio-termo. (30) Então, procuravam prendê-lo; mas ninguém lhe pôs a mão, porque ainda não era chegada a sua hora. Os representantes do alto clero entenderam muito bem a reivindicação de Jesus. Para eles, só havia um caminho: deter esse homem antes que Ele causasse mais dano. Jesus não procurou o entendimento, Ele não tentou convencer os seus oponentes aos poucos. Muito pelo contrário, vinha forçando uma decisão, uma crise, sabendo como esta necessariamente terminaria. O fato da não intervenção da Polícia do Templo naquele momento crítico foi visto pelo Evangelista como prova de que “a Sua hora” (a de Jesus) ainda não tinha chegado. Podemos imaginar que a popularidade de Jesus, no presente momento, impedia a intervenção das autoridades. Estas não estavam interessadas em criar uma cisão no povo, o que seria um resultado inevitável de uma prisão de Jesus durante a festa. A opinião pública estava a Seu favor! (31) E, contudo, muitos de entre a multidão creram nele e diziam: Quando vier o Cristo, fará, porventura, maiores sinais do que este homem tem feito? Há um lapso de tempo (talvez um dia ou dois) que separa o verso 31 do anterior. Enquanto os de Jerusalém se opunham Àquele que, na visão farisaica, era um galileu presunçoso e estranho, um número cada vez maior dentre os peregrinos festivos revelou sua confiança na pessoa desse Jesus, questionando seriamente se não seria Ele mesmo o “Ungido de Deus” que tanto aguardavam. Por várias vezes, o Evangelista já havia mencionado que “muitos creram nele”. Os próprios “sinais”, maneira como o Apóstolo denominou os milagres, foram vistos por ele próprio como evidências do senhorio de Jesus. João não menosprezou a “fé” resultante de sinais. Propositalmente havia citado no seu Evangelho alguns deles e encerrou sua obra com a seguinte declaração: “ ...muitos outros sinais, que não estão relatados nesse livro; esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo...” (20,30.31). O primeiro estágio da fé é o posicionamento positivo perante à mensagem de Jesus. 183 Voltemos à situação no Templo. Os peregrinos estavam em desacordo entre si. Segundo a crença popular, o Messias faria inúmeros milagres. Alguém, por acaso, poderia operar mais milagres do que “este”? A ideia da legitimação do Messias por muitos milagres, no entanto, não era correta conforme a doutrina oficial dos fariseus. Estes exigiam do Messias uma prova de sua legitimação e não aquilo que lhes fora dado em Jesus: o testemunho da presença de Deus. A crescente adesão dos peregrinos à ideia de que “este” Jesus pudesse ser “o Cristo” deixou as autoridades cada vez mais preocupadas. Os peregrinos levariam essas ideias perigosas para seu povoado... e então?! Na sua opinião, o povo não tinha a capacidade necessária de discernimento (confira Mateus 12,23). (32) Os fariseus, ouvindo a multidão murmurar estas coisas a respeito dele, juntamente com os principais sacerdotes enviaram guardas para o prenderem. O texto do original diz que os fariseus tomavam conhecimento do fato de “o povo falava a respeito dele reservadamente”, isto é, a popularidade de Jesus crescia “às escondidas”. Os fariseus, para poder acionar a Polícia do Templo (que era a única tropa sob liderança judaica e cuja ação fora restrita à área do Santuário), precisavam entrar em concordância com a casta dos saduceus e os sacerdotes do Templo. Enquanto os fariseus eram, em geral, bem vistos pelo povo, pois eram pobres; verdadeiros judeus que, inclusive, se opunham à opressão política e militar dos romanos, os saduceus fizeram alianças políticas com os dominadores e eram ricos, portanto desprezados pelo povo. Embora em número menor que os fariseus, mantinham junto com os principais sacerdotes o poder político nas suas mãos, representado pelo sumoSacerdote. O texto nos diz que os fariseus, preocupados com a crescente popularidade do galileu e temendo pela perda de sua influência no povo, procuravam o entendimento com o “alto clero” (saduceus e sacerdotes). O Evangelista menciona a convocação das autoridades e uma ordem de detenção, mas deixa no seu relato um lapso de tempo suficientemente grande para o relato dos acontecimentos no último dia da festa. Somente depois a tropa do Templo aparecerá, cumprindo a ordem para prender Jesus. De algum modo Jesus havia tomado conhecimento do esforço dos fariseus em favor de uma ação da Polícia do Templo e programada para depois da festa, possivelmente, como já dissemos, para evitar tumulto entre os peregrinos que lotaram o Templo na última e mais excitante celebração festiva. (33) Disse-lhes Jesus: Ainda por um pouco de tempo estou convosco e depois irei para junto daquele que me enviou. (34) Haveis 184 de procurar-me e não me achareis; também onde eu estou, vós não podeis ir. Ainda por um pouco de tempo... A advertência a respeito do “pouco de tempo” será o tema que dominará a partir de agora todos os assim chamados “discursos de despedida” de Jesus (confira 12,35/ 13,33 / 14,19 / 16,16s). Sempre de novo o Evangelista procura salientar a revelação única, histórica de Deus. Essa “única” revelação consiste no envio escatológico do Filho. Há um “tarde demais!” Existe, sim, a possibilidade de chegar tarde demais! Haverá os que O procurarão e não mais encontrarão. Seu retorno será o julgamento do mundo. Mesmo se aplicarmos esse “tarde demais” somente à presença física da pessoa de Jesus Nazareno, o retorno da pessoa do Espírito Santo será juízo, pois Ele “convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo...” (João 16,8). Pela primeira vez no seu Evangelho, Jesus falou abertamente de Seu retorno ao que O enviou, ao Pai. O tempo urgia! Percebemos o peso dessa afirmação pouco adiante, quando Jesus, em 12,35, exorta: “Ainda por um pouco a Luz está convosco. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos apanhem...”. O clamor de Jesus lembra às palavras de Isaías: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar!” (Is.55,6). O que mais pesou na palavra de Jesus era o: “... aonde estou, vós não podeis ir”. Jesus usou a forma gramatical do presente. Ele sempre está com o Pai e, quando não mais estiver entre eles em forma humana, não haverá mais como seguí-lO. Não poderemos entrar na Glória do Pai como humanos. (35) Disseram, pois, os judeus uns aos outros: Para onde irá este, que não o possamos achar? Irá, porventura, para a Dispersão entre os gregos, com o fim de os ensinar? É fácil perceber como Jesus fora mal-interpretado. Ironizando, eles “uns aos outros”, isto é, entre si, gozavam das palavras de Jesus. Por acaso, “este” vai à diáspora (aos judeus no exterior)? O problema dos ouvintes estava no fato deles terem reduzido a advertência de Jesus ao próprio horizonte limitado, não atentando ao “... junto daquele que me enviou”. Através de uma carta escrita por Gamaliel I, em grego, sabemos que os judeus aqui não se referiam, como à primeira vista pudéssemos pensar, a compatriotas no exterior, mas, sim, aos “pagãos gregos” (Schlatter, Gen.R 76,3). Todo o desprezo que, repentinamente manifestaram, está contido na argumentação: “Ele está desesperado! Como nós o desmascaramos; ele poderá tentar ver se os pagãos caem na cilada da sua pregação!? Que ensine a estes!” (36) Que significa, de fato, o que ele diz: Haveis de procurar-me e não me achareis; também onde eu estou, vós não podeis ir? 185 As palavras de Jesus, no entanto, continuavam martelando a mente dos ouvintes. O que Ele queria, mesmo, dizer? Para o Evangelista, o verso 35 já soou como profecia cumprida. Na época em que ele escreveu seu Evangelho, a igreja entre os gregos já tomara forma. Jesus tinha chegado a eles também. Cap. 7.37-39 (37) No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. (38) Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. (39) Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado. Qual era o “último, o grande dia?” Não temos como chegar a uma resposta conclusiva sobre se era o sétimo ou o oitavo dia da festa. Mencionamos brevemente qual era o ritual nesses dias e veremos em que o oitavo dia era distinto dos anteriores. Os sete dias da Festa dos Tabernáculos eram caracterizados, entre outras coisas, pela habitação em tendas, pela entrega de ofertas numa escala decrescente - no primeiro dia, além dos outros sacrifícios, treze novilhos; no segundo dia, doze novilhos; no terceiro dia, onze novilhos, etc (Números 29,12-34) e pela retirada de água do poço de Siloé. Nos primeiros seis dias, um sacerdote enchia uma jarra de ouro com água desse poço. Ele retornava ao Templo acompanhado por uma procissão solene; e, em meio ao som de trombetas e gritos de alegria da multidão, derramava a água, junto com o conteúdo de uma taça com vinho, através de um funil, que a conduzia até ao altar dos sacrifícios. O povo estava jubiloso, pois a cerimônia os fazia lembrar as bênçãos que haviam sido concedidas a seus pais no deserto quando a água brotou da rocha, como também apontava para o futuro, para as bênçãos da era messiânica: “Vocês, com alegria, tirarão água das fontes da salvação” (Isaías 12,3). Um detalhe interessante nos mostra a rigidez com que era guardada a tradição. O sacerdote levava na mão direita um ramo de murta, um galho de carvalho e um ramo de palmeira; na esquerda, uma cidra ou outra fruta semelhante. Os ramos de árvores cítricas, ou os frutos cítricos que o sacerdote carregava na mão esquerda estavam ali, prontos para serem usados como corretivo, quando um sacerdote tentasse aperfeiçoar, por conta própria, o ritual estabelecido da festa (como um tal sacerdote de nome Alexandre Janneus, 104-78 a.C., descobriu, para sua consternação, quando estava sendo golpeado por eles). No sétimo dia, havia sete procissões ao redor do altar, enquanto que nos dias anteriores, havia apenas uma. Nessas procissões, os sacerdotes cantavam: “Salva-nos, ó Senhor, nós te pedimos: ó, Senhor, concede-nos prosperidade” (Salmo 118,25). Era o dia do grande “hosana”. 186 Era o último dia em que o sacerdote tirava água do poço de Siloé e também o último dia em que as pessoas moravam em tendas (uma lembrança das estadias no deserto). Disseram em Israel:” Quem nunca viu a alegria do apanhamento da água não viu alegria nenhuma”(cit.Thyen). O oitava dia era o dia de descanso e de “assembleia solene” ou “santa convocação”. 2 Macabeus 10,6 lembra que a festa durava oito dias, e o historiador Flávio Josefo (Antiquities of the Jews III,x,4), também. Como as citações na Lei de Deus falam de sete dias de festa, acrescentado o oitava dia solene (Lev.23,36) preferimos entender o sétimo dia da festa como “o grande” que o Apóstolo menciona. Há aproximadamente 550 anos antes de Jesus, o profeta Ageu trouxe “no sétimo mês, ao vigésimo primeiro dia do mês”, uma mensagem de conforto aos judeus, entristecidos com as condições precárias em que o pequeno segundo Templo ainda se encontrava (Ag.2,6-9). Essa palavra de ânimo do profeta deve ter sido proclamada não muito distante do mesmo lugar onde Jesus, agora, mais de cinco séculos depois, se encontrava (“no sétimo mês, no vigésimo primeiro dia”), também e clamou, convidando os sedentos a irem a Ele para beber. (37) No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Imaginemos ver Jesus sentado, observando a cerimônia final com o derramamento da água. As águas da salvação ... derramadas no altar... A palavra de Isaías estava presente na Sua mente: “Vocês, com alegria, tirarão água das fontes da salvação...” (Isaías 12,3). Assim, no momento mais solene da procissão, Jesus se levantou e “exclamou” em alta voz! Sua voz ecoou enquanto o sacerdote derramava a água do poço sobre o altar. A atenção dos peregrinos foi desviada da cerimônia e atraída para o Galileu! Escândalo! Lembramos o que Jesus dissera à mulher samaritana (cap. 4,14): “... aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna”. Agora, por ocasião do derramamento da água pelo sacerdote, Ele clamou: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba”. Você percebe a provocação contida nessa afirmação contra todo o cerimonial no Templo? Note também o condicional “se”. Cada um pode ser “esse alguém” com sede. Não há precondições no convite de Jesus. Outrossim, percebemos o porquê nem todos virão. “Somente quem tiver sede” irá a ele. – Por acaso, alguém, querido seu, não quer ouvir de Jesus? Ore por sede e fome. Deus tem meios para criar nessa pessoa a sede. Somente que tem fome é que come, e, semelhantemente, somente quem tiver sede, beberá. 187 (38) Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva (tradução comum). Uma das mais recentes publicações teológicas sobre o Evangelho de João dispende nada menos do que cinco páginas (em letras minúsculas) na questão do entendimento do verso 38. A pergunta é a seguinte: O termo “do seu interior” se refere a Jesus ou, ao que nele crer? Desde os primeiros anos do cristianismo, até aos dias de hoje, há opiniões diferentes. Orígenes (185-253 d.C.), optou por ”Jesus” e Cypriano (? - 258.d.C.) optou por “ao que crê”. Os Pais da Igreja já pensavam diferente a respeito. Jesus acabou referindo-se às Escrituras. Só que não encontramos nelas nenhuma sentença neste sentido. Como nos textos originais não havia pontuação, e existem três versões diferentes que fazem jus ao texto. Duas delas fazem sentido. Qual será a “certa”? A nossa tradução convencional “... “do seu interior”, pensando no crente, vem de Lutero. Jesus proferiu essas palavras em aramaico, seu idioma, e o que temos como texto original é somente a tradução para o grego. Da forma que a exclamação de Jesus consta nas nossas Bíblias, e como está comumente usada nas pregações e promessas, é do crente que fluirão rios de água viva; uma compreensão totalmente oposta ao que, até agora, entendemos. Como um crente poderia assumir o que somente é concedido ao Filho? Esse aparente erro na tradução (vindo de um copista, talvez) não resiste quando o comparamos com as demais palavras de Jesus. Para encurtar a discussão, traremos somente a versão que hoje é compartilhada pela maioria dos eruditos e que condiz com as demais afirmações de Jesus. O verso 37 deve fazer parte do verso anterior e, na tradução excessivamente literal do aramaico para o grego, ele deve ter sofrido uma inversão de seu sentido. Se compreendemos pelo verso 37 (como em 19,34) que Jesus, o Messias, traz a água da vida, fica evidente que é do interior de Jesus que fluirão rios de água viva para quem vier a ele. O Apóstolo Paulo entendeu a palavra também assim. Ele identificou a pedra que seguia a Israel no deserto, jorrando água, com Cristo: “... e a pedra era Cristo” (1.Cor 10,4). Nas catacumbas romanas, a rocha da qual jorrava água é o símbolo que mais aparece (Braun,Komm.I,150). Os Rabis judaicos viam na profecia de Zacarias, quando se referia à fonte aberta para remoção de pecado e aos dois rios de água viva nascendo em Jerusalém a representação da rocha no deserto; portanto, a imagem da rocha que jorra água era intimamente ligada com a Festa dos Tabernáculos. Eles interpretavam a Festa com seus apanhamentos de água como representação da visão escatológica do derramamento do Espírito de Deus e o início da época messiânica (veja Zacarias 13,1 e 14,8). O que o Apóstolo nos quer dizer com as palavras transmitidas de Jesus? Em termos teológicos, entendemos que Jesus Nazareno, o Filho de 188 Deus, como figura histórica (e não Jesus como hoje O conhecemos, como o Glorificado, como Deus), pôs fim ao simbolismo do culto judaico porque com suas palavras a profecia da vinda da era messiânica se cumpriu ( Zac. 14,8). (39) Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado. O Evangelista falou partindo de sua perspectiva pós-pascal do crente e na certeza da presença do “Glorificado”. A “glorificação” de Jesus e Sua ressurreição e o cumprimento da profecia da vinda do Espírito de Deus no fim dos tempos haviam se realizado na Sua glorificação a ser consumada (Ez.39,29, Joel 2,28); elas aconteceram “no tempo” e são acontecimentos históricos. Permita-me uma observação necessária para nós, que lemos o Evangelho composto pela mão de João. Quando ele mencionou a proclamação de Jesus quanto aos rios de água viva fluindo, ele e seus leitores já pertenciam ao tempo pós-Páscoa. As águas fluindo do Jesus glorificado já eram realidade; as Escrituras se haviam cumprido. Quando Jesus Nazareno as proclamou no Templo (e como o Espírito “até aquele tempo o Espírito ainda não fora dado”), as palavras ainda anunciavam a realidade futura, quando Ele for “glorificado”. Veremos mais tarde, a partir do capítulo 13, como João começa cada vez mais nitidamente a ver a realidade da igreja, Cristo e Deus e Espírito não mais reduzida à categoria “tempo”. O que seguirá para a igreja não mais será preso a acontecimentos, ao tempo, à dimensão na qual todos nós, como humanos, ainda vivemos. O Evangelista escreveu para sua igreja, melhor, para todas as igrejas. Seus leitores já sabiam da morte e da ressurreição do Senhor e ainda da descida do Espírito Santo no Pentecoste. Com o verso acima, o Evangelista procurou fazer a ponte entre a situação descrita (portanto histórica) da nossa leitura, versos 37 até 39, e da realidade espiritual, atemporal, na qual a igreja de todos os tempos vive. 189 Cap. 7.40-52 (40) Então, os que dentre o povo tinham ouvido estas palavras diziam: Este é verdadeiramente o profeta; (41) outros diziam: Ele é o Cristo; outros porém, perguntavam: Porventura, o Cristo virá da Galileia? (42) Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi? (43) Assim, houve uma dissensão entre o povo por causa dele; (44) alguns dentro eles queriam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos. (45) Voltaram, pois, os guardas à presença dos principais sacerdotes e fariseus e estes lhe perguntaram: Por que não o trouxestes? (46) Responderam eles: Jamais alguém falou como este homem. (47) Replicaram-lhes, pois, os fariseus: Será que também vós fostes enganados? (48) Porventura, creu nele alguém dentre as autoridades ou algum dos fariseus? (49) Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita. (50) Nicodemos, um deles, que antes fora ter com Jesus, perguntou-lhes: (51) Acaso, a nossa lei julga um homem, sem primeiro ouví-lo e saber o que ele fez? (52) Responderam eles: Dar-se-á o caso de que também tu és da Galileia? Examina e verás que da Galileia não se levanta profeta. (40) Então, os que dentre o povo tinham ouvido estas palavras diziam: Este é verdadeiramente o profeta; ... Em Êxodo 16, Deus, através de seu servo Moisés, revelou seu poder através do milagre do Maná (pão) e, no capítulo seguinte (Ex.17), os sedentos beberam da água que jorrava da pedra. A sequência desses dois milagres constituía o clímax da tradição bíblica-judaica (confere Salmo 105,40.41). Em Deut. 18,15.18, Moisés havia prometido ao povo um “outro profeta, semelhante a ele, a quem deveriam ouvir, caso não queiram morrer”. Alguns de entre o povo que ouviram a Jesus clamar, refletindo, mostraram-se convencidos de que “este” realmente era “O profeta” anunciado por Moisés. Na interrogação do Batista pela delegação enviada de Jerusalém (1,19s), a figura desse profeta era distinta da do Cristo. No “profeta” não se tratava do Messias (em grego: o Cristo), libertador intensamente esperado. Existia extensa literatura sobre essas duas figuras na crença judaica. (41) ... outros diziam: Ele é o Cristo; Quando falava de Jesus, o nosso Evangelista nunca se referiu à figura prometida do profeta. Quando o povo, após a “multiplicação do pão” queria ver em Jesus “o profeta prometido” e procurou proclamá-lo rei (6,14), Jesus teve que retirar-se às pressas. Ele não permitiu ser instrumentalizado pelo povo. O nosso Evangelista sempre fez clara distinção entre “o profeta como Moisés” e “o Messias, da descendência de Davi” (1,21s/6,14s/7,40-44). Nunca ouvimos, no seu Evangelho, qualquer referência dos discípulos ou de outras pessoas quanto a Jesus ter sido tratado como o profeta escatológico. Havia somente algumas conjecturas de pessoas desconhecidas quanto à possibilidade de Jesus poder sê-lo. 190 Muito ao contrário, ouvimos que o reconhecimento de Jesus como o Cristo (Messias) levaria à excomunhão (exclusão) da Sinagoga (9,22/34!/ 12,42) e conforme 16,1s, até ao martírio. Ao apresentar Jesus, desde o início de seu Evangelho, como o “Logos” que está (presente!) no seio do Pai, o nosso Evangelista considerou Jesus infinitamente mais digno do que “o profeta”. Tampouco encontramos em lugar nenhum alguma indicação que permitisse interpretar “o bom pastor” como “o profeta como Moisés”. Quando João apresenta a figura do bom pastor, ele muito claramente se referia a Ezequiel 34,23s: (“... suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor”). A identificação de Jesus por João culmina em João 10,30 com a sentença que resume o Evangelho todo : “Eu e o Pai somos Um”. ... outros porém, perguntavam: Porventura, o Cristo virá da Galileia? (42) Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi? Um terceiro grupo questionava as duas interpretações com indicações que revelaram algum conhecimento das Escrituras. Enquanto na discussão durante a Festa haviam negado a Jesus seu título porque, como diziam, do Messias ninguém saberia de onde Ele viesse, agora negaram-lhe a condição messiânica por causa de sua descendência da desprezada Galileia. É evidente que são as pessoas que argumentam, e não o Evangelista. Este, junto com os leitores de seu Evangelho sabiam pelos sinóticos do nascimento em Belém e de sua ascendência de Judá. É interessante notar que João não argumentou contra, não lembrou seus leitores dos fatos reais, como costumava fazer quando “explicava fatos”, como p.ex. na leitura anterior, quando lembrou a respeito da descida do Espírito Santo. Na tradição messiânica e na crença judaica, o nome de Belém não tinha nenhuma importância e Miquéias 5,2, em relação ao nascimento do Messias, nunca fora citado pelos Rabinos antes do quarto século cristão. Com uma certa ironia, o Evangelista perpetuou a ignorância “dos judeus” na sua crença falha de que, como Jesus cresceu na Galileia, também teria nascido ali. Para João era de pouca ou nenhuma importância o lugar onde Jesus nasceu. Para ele, a única questão era se, de fato, Ele vinha da presença de Deus, da eternidade, ou não. Da mesma forma, João nunca argumentou com o nascimento virginal como prova de coisa alguma. A ele, como para o Apóstolo Paulo, interessava a revelação de Deus em si. A fé que precisa de provas não subsiste. Quando queremos ganhar pessoas para Cristo, a enumeração de “provas” não as levará à fé verdadeira. O dom humano de convencer, tão enfatizado hoje em dia, não levará à água viva de Deus. As pessoas precisam conhecer Aquele que vive para poder responder com sua fé. Você 191 percebe o quanto dependemos da ação do Espírito Santo na tarefa de evangelização?! Somente podemos e devemos apontar para Cristo. Não podemos intermediá-lo. “Quando Ele – o Espírito Santo – vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais; do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado” (16,8-11). (43) Assim, houve uma dissensão entre o povo por causa dele; (44) alguns dentro eles queriam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos. A multidão continuou confusa. Formara-se uma cisão entre os que lhe deram algum crédito e outros que exigiam Sua prisão. Mas onde estavam os responsáveis pela ordem, enviados para pôr fim à pregação do Galileu? (45) Voltaram, pois, os guardas à presença dos principais sacerdotes e fariseus e estes lhe perguntaram: Por que não o trouxestes? (46) Responderam eles: Jamais alguém falou como este homem. No verso 32 ouvimos que os fariseus, junto com os saduceus e sacerdotes, haviam acionado a Polícia do Templo. Essa, após observar por algum tempo o movimento em volta de Jesus, retornou com mãos vazias aos responsáveis pela ordem de prisão, justificando seu procedimento com uma sentença curta e precisa, que deixou evidente o quanto ficaram impressionados pela pessoa e as palavras de Jesus. Enquanto prestavam atenção, haviam simplesmente “esquecida” a ordem dada pelos seus mandantes. (47) Replicaram-lhes, pois, os fariseus: Será que também vós fostes enganados? A perplexidade dos fariseus perante a desobediência e a justificação dada pelos seus subordinados se espelhou na pergunta retórica que questionava a fidelidade deles: “Será que vocês apostataram da fé verdadeira também? Caíram na cilada daquele que continua a seduzir o povo?” Eram pesadas as acusações contra o Galileu: fazia-se igual a Deus (5,18); fazia a si mesmo Deus (10,33), seduziu o povo à apostasia de JHWH, do único Deus verdadeiro! A denominação de Jesus como sendo um “sedutor” ou embusteiro parece ter sido praxe por parte das autoridades. (48) Porventura, creu nele alguém dentre as autoridades ou algum dos fariseus? (49) Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita. Os fariseus responderam, eles mesmos, à sua pergunta com uma arrogância sem igual: Somente esta plebe que não conhece a Lei e, portanto, não as autoridades, dava crédito a “ele”. Malditos que são! O termo traduzido com “plebe” (na literatura rabínica: am-há-arez) indicava inicialmente o povo como um todo, sem sentido pejorativo, ou então o povo distinto daqueles que o governavam. Na época em que os exilados 192 voltavam da Babilônia, sucedeu uma mudança considerável. Sob Esdras e Neemias, mais tarde representados pelos Rabinos, o termo no plural apontava de forma depreciativa para aqueles que durante o exílio da elite judaica permaneciam na sua terra. Eles ficaram longe do desenvolvimento do conhecimento e da sabedoria da Torá dos que voltaram. As mudanças da religião de JHWH sob a influência do Deuteronômio e do Exílio lhes eram totalmente estranhas e assim nasceu o significado desprezível do termo “plebe”, não somente aplicado aos das regiões da Galileia e da Samaria, mas, aos poucos, a todos os iletrados. A projeção do clero quanto à pessoa do Messias tinha sua base na Lei Mosaica. O novo profeta, de acordo com a profecia mosaica, traria a Lei Messsiânica e, ao mesmo tempo, numa pessoa só, seria também o Rei poderoso que livraria Israel da opressão dos estrangeiros e daria início, a partir de Israel, à era messiânica e ao domínio do mundo. De maneira nenhuma Jesus se encaixava nessa projeção! O Evangelista João não aceitou a ideia do Messias com suas bases na Lei de Moisés ou nas esperanças e crenças do povo judaico. A Lei de Moisés não conhece um Salvador vindo de preexistência com Deus para o mundo, e que aceitaria a forma e as limitações humanas e que caminharia na terra como estranho até que a consumação de sua missão se desse numa cruz romana, voltando então ao Seu Pai. A visão de João transmitida no seu Evangelho não encontrava base na Lei de Moisés. Ela era e continua sendo considerada “mitologia blasfema” até aos dias de hoje e inaceitável nas Sinagogas do mundo inteiro. A glorificação de Cristo (chamada “Cristologia”) já fazia parte da igreja primitiva cristã antes do Evangelho de João ser escrito. Os trechos de Filipenses 2,5s; 1.Cor.2,8; Romanos 8,3 e Gálatas 4,4s. (confira!) foram todos compostos ou registrados por Paulo pelo menos 30 anos antes do Evangelho de João nascer. A grande contribuição de João consiste em ter dado à jovem igreja a base histórica da Cristologia através de seu Evangelho. (50) Nicodemos, um deles, que antes fora ter com Jesus, perguntoulhes: (51) Acaso, a nossa lei julga um homem, sem primeiro ouví-lo e saber o que ele fez? Havia exceções entre os membros do Sinédrio. Lemos em 12,42.43: “Contudo, muitos dentro das próprias autoridades creram nele, mas, por causa dos fariseus, não O confessaram, para não serem expulsos da Sinagoga”. Nicodemos, um deles, que procurou Jesus durante a noite (veja cap.3), era um deles. Este nobre membro do Sinédrio recorreu às normas da Lei (Deut. 1,16s; 17,4) que proíbe condenar alguém antes de ouví-lo, mas sua intervenção foi em vão. 193 Sabemos de 18,15 que o então discípulo João era conhecido do sumo sacerdote. Por alguma via de parentesco ou amizade ele tinha trânsito entre os “de cima”. Os detalhes nos encontros ou rixas com as autoridades (às vezes impressionando pela sua exatidão e relatados somente no Evangelho de João), permitem a hipótese de informações dadas pós-Páscoa por membros do Sinédrio e sacerdotes que se juntavam à igreja primitiva judaico-cristã (José de Arimateia; Nicodemos e outros, conf. Atos 6,7). (52) Responderam eles: Dar-se-á o caso de que também tu és da Galileia? Examina e verás que da Galileia não se levanta profeta. Os Sinedristas, julgando-se com a razão, apontaram para resultados dos estudos farisaicos quanto ao Messias. Nenhum texto messiânico das Escrituras fez referência à afastada Galileia, se bem que 2.Reis 14,25 menciona um profeta de nome “Jona bem Amittai” como vindo daquela região. Aparentemente, os Sinedristas estavam com a razão. Não havia necessidade de atender à petição de Nicodemos; para eles, Jesus era e continuava sendo considerado um embusteiro, um profeta falso, cuja eliminação rápida só podia contribuir para o bem de Israel. Cap. 7.53- 8.11 (53) E cada um foi para sua casa. (8.1) Jesus, entretanto, foi para o monte das Oliveiras. (2) De madrugada, voltou novamente para o Templo, e todo o povo ia ter com ele; e, assentado, os ensinava. (3) Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos, (4) disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. (5) E na Lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? (6) Isto diziam eles tentando-o, para terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo. (7) Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra. (8) E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. (9) Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos, ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava. (10) Erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém mais além da mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? (11) Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais. Nos estudos recentes vimos Jesus envolvido em uma veemente discussão com os religiosos na área do Templo. Celebrava-se a Festa dos Tabernáculos. Lembramos que a longa discussão apresentada nos capítulos 7 e 8 do Evangelho de João tiveram seu início em 7.15., quando os peregrinos ficaram perplexos perante a autoridade com a qual Jesus publicamente ensinava no pátio do Templo, sem nunca ter estudado numa escola 194 rabínica. Vimos, mais adiante, como a tentativa dos responsáveis pela ordem no santuário fracassou em acionar a “Polícia do Templo”. Não lhes fora possível pôr fim à agitação. Os próprios guardas haviam ficado maravilhados de tal forma, pelo que ouviram, que não ousaram prender Jesus. Somente no capítulo oitavo, verso 12, o Evangelho voltará à discussão em andamento no Templo, a qual mais tarde, abruptamente, teve fim com a tentativa de apedrejamento de Jesus. Este era o castigo exigido pela Lei de Moisés em casos de blasfêmia ou, mais exatamente, caso alguém ousasse pronunciar o inefável nome de Deus. O Evangelista observou que, a essa altura, “Jesus se ocultou, saindo do Templo” (versos 52 e 53). Em outros termos, Jesus teve de sumir apressadamente para não correr risco de vida. Mas isso será o tema das próximas leituras. Hoje, continuando na leitura do texto assim como o encontramos nas nossas Bíblias, nos deparamos com um acontecimento que nada tem a ver com a discussão no Templo, que ora acompanhamos. A “história da mulher adúltera” (versos 1-11 do capítulo oitavo) originalmente não fazia parte do Evangelho de João, ainda que se encontre neste lugar na maioria dos manuscritos. Outros originais encontrados trazem-na no Evangelho de Lucas, capítulo 21, após o verso 38. Eusébio, na sua “História da Igreja” (III 39,170), a considerava parte do “Evangelho dos Hebreus”, obra que não entrou no Cânon do Novo Testamento e se perdeu. O manuscrito “Bodmer II” (um dos mais antigos, datado do século 2º) nem conhece esse episódio. O incidente com a mulher é indubitavelmente verídico; ele respira o Espírito de Jesus de modo soberano. Seu estilo de linguagem é estranho ao grego simples usado por João. O estilo literário é diferente também; ele é similar ao que encontramos nos Evangelhos sinóticos. Por alguma razão desconhecida, o episódio com a mulher flagrada em adultério entrou nos manuscritos do Evangelho de João, no lugar onde hoje a encontramos e antes da definição do cânon, realizada no século 4º. O estilo do trecho que vamos ler é o dos sinóticos. Nos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) seguem-se “perícopes” (histórias sequenciadas), ligando assuntos distintos um ao outro. O Evangelho de João é diferente. Ele trata, dos primeiros versículos até seu fim, de um único tema, de uma única questão, a saber: da revelação do Logos, da encarnação de Deus no homem Jesus de Nazaré. Até os poucos “sinais” (mais facilmente visíveis no capítulo 2, nas bodas de Caná com Seu milagre da transformação da água em vinho) são envoltos em mistério; são metáforas que fazem parte da revelação principal. Em João, tudo aponta para a “Glorificação do Filho”. Quanto aos termos, o relato do encontro de Jesus com a “mulher adúltera” aplica qualificações que João nunca usou, como “escribas” (verso 3) ou indicações geográficas, como “monte das Oliveiras” (verso 1). Na 195 época de João não mais havia nem escribas, nem saduceus e nem sacerdotes. Todos eles desapareceram com a destruição do Templo ocorrida nos anos 70, quer dizer, antes do Evangelho de João ser composto. Portanto, a história da mulher fazia parte de uma obra anterior ao Evangelho de João e, por razões hoje desconhecidas, foi incluída nele mais tarde por ser reconhecida como autêntica. Hoje se acredita (hipótese) que a história da mulher perdoada fora colocada nesse exato lugar do Evangelho de João por causa da declaração de Jesus na discussão com os religiosos: “eu a ninguém julgo”, como consta mais adiante, no verso 15, e como veremos na próxima lição. Voltemos agora a nossa atenção para o texto. (53) E cada um foi para sua casa. Não sabemos a que este verso se refere; se é um resto que pertencia à perícope original anterior ou se foi concebido como meio de introdução ao que segue. (8.1) Jesus, entretanto, foi para o monte das Oliveiras. (2) De madrugada, voltou novamente para o Templo, e todo o povo ia ter com ele; e, assentado, os ensinava. Os versos 8,1-2 lembram muito a Lucas 21,37ss momentos antes da Páscoa: “Jesus ensinava todos os dias no Templo, mas à noite, saindo, ia pousar no monte das Oliveiras. E todo o povo madrugava para ir ter com ele no templo, a fim de ouví-lo”. A história que segue só podemos imaginar ou ao ar livre ou dentro de um dos muitos átrios exteriores do Templo (com chão batido). Num desses dias de ensino, (3) Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos, (4) disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Jesus ainda é chamado de “Mestre” pelos fariseus. Isso indica que o acontecimento se deu antes do momento atual (Festa dos Tabernáculos), onde Jesus não mais era reconhecido como “Mestre”, mas abertamente acusado de embusteiro pelo clero. Conforme manda a Lei mosaica em Lev.20,10 e Deut.22,22, o adultério devia ser punido com a morte. Observamos que nas duas referências, tanto o homem como a mulher deviam ser mortos: “Se um homem adulterar com a mulher de seu próximo, será morto o adúltero e a adúltera” (Lev.20,10). Geralmente a execução era pública e acontecia por apedrejamento (exatamente como ainda hoje é praticada, sob a lei da Sharia islâmica, no Irã e na Arábia Saudita e países africanos islâmicos). O corpo do condenado é enterrado até a cintura com os braços para trás. A parte superior do corpo é coberta por um saco. Importa que as pedras 196 sejam atiradas a começar pela maior autoridade presente e durasse até a total deformação do corpo da vítima (não exposta por causa do saco). Imagine a situação: Escribas (estes eram fariseus em posição de destaque) e fariseus, zelosos pelo cumprimento da Lei de Moisés, arrastam uma mulher e a apresentam à multidão, ”fazendo-a ficar de pé no meio de todos”. Aqui estava a mulher adúltera, exposta à vergonha (e, onde estava, por acaso, o adúltero, igualmente responsável segundo a Lei? Ninguém parecia lembrar-se dele). (5) E na Lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Uma mulher pega em flagrante era um caso resolvido e o veredicto definido por Moisés. Os responsáveis pela observação da Lei que, por inúmeras vezes já se tinham aborrecido ao tomar conhecimento da amizade do Nazareno com os “pecadores”, perguntavam pela opinião do “Mestre”. (6) Isto diziam eles tentando-o, para terem de que o acusar. O escritor procura chamar a atenção do leitor à situação embaraçosa em que o Mestre se encontrava. Esta parecia fazer com que Jesus negasse a obediência à Lei Mosaica ou perdesse de vez a fama de “amigo de pecadores e publicanos” e, com isso, toda a sua popularidade. “Tu, pois, que dizes?” Ali estavam os guardiões da Lei, em posição de autoridade e exigindo o veredicto. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo. Ao invés de responder-lhes e nem dando atenção à ordem dos representantes da Lei, Jesus abaixou-se e começou a “escrever” na terra. Jesus não só não respondeu, mas ignorou por completo os representantes do clero. Não parecia interessado em expor-lhes o seu ponto de vista sobre o caso. O verbo traduzido por “escrever” pode, também, significar “pintar”. Jesus começou a desenhar linhas ou círculos no pó do chão; não escreveu nenhum veredicto. Muito pelo contrário, através de sua atitude aparentou um total desinteresse. Não foi um desesperado “ganha-tempo” como poderíamos pensar. Era pura provocação. Enquanto Jesus continuou escrevendo no pó da terra, os venerandos fariseus começavam a perder a paciência. Perguntavam de novo, e de novo,... (7) Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra”. (8) E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. Como insistissem na pergunta... Jesus se levantou e, ao invés de proclamar o veredicto da mulher, fitou seus acusadores e com uma única e inesperada sentença, desmoralizou por completo os acusadores, os quais, através dessa mulher, queriam registrar um exemplo que, de vez, fizesse cair o Nazareno em desprezo público. Sim, a Lei Mosaica estava valendo. A mulher merecia ser apedrejada. Que começassem com o linchamento! 197 As poucas palavras de Jesus haviam transformado os acusadores em acusados. De maneira soberana e aparentemente desinteressada, Jesus novamente abaixou-se, dispensando dessa forma os fariseus e escribas e voltou à sua “atividade sem importância”, mexendo com seu dedo no pó da terra. Era impossível haver uma humilhação maior para os acusadores presunçosos. (9) Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos, ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava. O autor somente procurou registrar fatos, mas não resistiu e acrescentou o obvio: “... acusados pela própria consciência...”. (10) Erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém mais além da mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? (11) Respondeu ela: Ninguém, Senhor. Soa como ironia santa a palavra de Jesus. Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno;... Parecia dizer: se nem esses homens santos e rigorosos, quanto à Lei, te condenam, nem eu preciso fazê-lo. Consenti com a Lei e o castigo, mas também concordo com o perdão concedido pelos responsáveis da Lei. Observe: O Único que podia jogar a pedra, não o fez. Com autoridade de juiz Ele proferiu o “vai” e como Salvador acrescentou o “e não peques mais”. Um comentarista, opinando sobre isso, disse que talvez nem Jesus se sentia suficientemente sem pecado algum e por isso não iniciou a matança. O pobre teólogo parece não ter lido e nada “visto” do que o Evangelho de João nos revela sobre o Filho! Não percamos tempo em opinar sobre o porquê da ausência do adúltero, sobre o possível machismo apesar da Lei ser específica. Há algo muito mais importante para quem procura conhecer esse Jesus, do qual os Evangelhos nos dizem, e que hoje é Senhor. O relato da mulher apanhada em adultério novamente nos coloca perante o paradoxo na vida de Jesus. No sermão da montanha (Mateus caps. 5-7) Ele radicalizou os mandamentos de Deus e, ao mesmo tempo, era amigo de “pecadores e publicanos”. Ou, invertendo: Como ele, que no caso dessa mulher em adultério concordou com o pleno perdão podia declarar que um único olhar com intenção impura já era “adultério consumado”? (Mateus 5,28). Jesus viu, vê e considera o pecado como algo tão radical, vindo de raízes profundas, que torna sem razão qualquer distinção entre “justos” e “pecadores”. Esta distinção não existe na visão de Jesus. O Apóstolo Paulo definiu essa visão revolucionária e a função do Evangelho assim: “... não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo 198 justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus...” (Romanos 3,23.24s). Os homens santos entre os fariseus da nossa história certamente guardaram-se do adultério. Mesmo assim, eles caíram sob o julgamento de Deus. Eles, a mulher apanhada, eu e você, ninguém entrará na presença do Pai, a não ser: “...sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus...”. Esse verso da “Carta aos Romanos” levou o Reformador Lutero à redescoberta do Evangelho que, pela tradição humana, havia se pervertido em “religião de merecimentos”, religião comprada e vendida, como novamente é o caso nos dias de hoje entre evangélicos e católicos. A mulher ouviu a palavra de perdão porque ficou em pé perante Jesus. Ela não fugiu. Você já fez o mesmo, apresentando-se a Deus e reconhecendo-se pecador? Então ouça o que o Evangelho hoje lhe apresenta: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo...”. Não está escrito: “teremos”; esta escrito: “temos”. Também está escrito: “... por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (uma obra consumada), (Ro.5,1s), e não “por meio da intercessão de quem quer que seja” ou por “piedade, rezas”, etc., sempre relativas e nunca eficientes o suficiente. Você já agradeceu, seja qual for o seu passado, por você ter em Jesus um Deus que hoje ama você, aceita você, justifica você, ouve você e responde a você no tempo oportuno? Se ainda não teve coragem para tanto, faça-o agora! Cap. 8.12-20 (12) De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue, não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida. (13) Então, lhe objetaram os fariseus: Tu dás testemunho de ti mesmo; logo, o teu testemunho não é verdadeiro. (14) Respondeu Jesus e disse-lhes: Posto que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou; mas vós não sabeis donde venho, nem para onde vou. (15) Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo. (16) Se eu julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, porém eu e aquele que me enviou. (17) Também na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas testemunhas é verdadeiro. (18) Eu testifico de mim mesmo, e o Pai, que me enviou, também testifica de mim. (19) Então, eles lhe perguntaram: Onde está teu pai? Respondeu Jesus: Não me conheceis a mim nem a meu Pai; se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai. (20) Proferiu ele estas palavras no lugar do gazofilácio, quando ensinava no Templo; e ninguém o prendeu, porque não era ainda chegada a sua hora. A noite do último dia da Festa (algumas fontes indicam o primeiro dia) impressionava a todos. O pátio das mulheres ficara todo iluminado por tochas. Como o Templo se encontrava no topo do monte Sião, ele podia ser visto de longe, irradiando sua luz na escuridão. A tradição festiva dos Tabernáculos juntava o pensamento bíblico da água da vida e o da luz, 199 vendo nela simbolicamente confirmada a profecia de Isaías 60,1.19: “Dispõe-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a Glória do Senhor nasce sobre ti.- Nunca mais te servirá o sol para luz do dia, nem como o seu resplendor a lua te iluminará; mas o Senhor será a tua luz perpétua, e o teu Deus, a tua glória.” A alegria dos festivos se baseava na consciência de posse desses valiosos bens. Eles “tinham” a luz, enquanto sobre os povos sem JHWH pairava a noite. Não sabemos quanto tempo de discussões e debates o Evangelista João resumiu nos capítulos 7 e 8. Certamente não lhe era possível trazer tudo à memória no seu Evangelho. No entanto, alguns momentos cruciais das proclamações de Jesus por ocasião da Festa dos Tabernáculos ficaram guardados na sua mente e na sua obra. No capítulo 7 encontramos Jesus falando à multidão, tendo por trás os representantes do clero que observavam preocupados a agitação causada pelas declarações de Jesus. Agora, no capítulo 8, a situação é outra. Jesus não mais fala aos peregrinos festivos. A festa já pertencia ao passado e a multidão se foi. Percebemos que Jesus parte para o confronto direto com os representantes da Lei. O ambiente fica pesado e o capítulo termina com a tentativa de apedrejamento do Nazareno e do qual, mais uma vez, milagrosamente escapa. Numa das leituras anteriores vimos como os fariseus, entre si, haviam silenciado a Nicodemos com as palavras: “Examina e verás que da Galileia não se levanta profeta”. Para eles, o simples fato de Jesus proceder da Galileia “gentia” lhes servia de prova contra ele. O Evangelista João conheceu bem o livro de Isaías. Ele viu que o profeta, no capítulo 42, descreveu o que agora, em Jesus, estava para se tornar história. A profecia de 8,23-9,1 cumprindo-se (apesar do julgamento falho dos fariseus): “... mas a terra que estava aflita não continuará a obscuridade. Deus, nos primeiros tempos, tornou desprezível a terra de Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos (isto é, agora!) tornará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios. O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz ...”) Sim, a Galileia estava no plano de Deus! (12) De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; Jesus entrou pessoalmente na discussão, enfrentando os fariseus. Como um trovão ecoou sua autoproclamação, usando o predicado EU SOU (o nome de Deus) perante os religiosos escandalizados. Vejamos a razão desse escândalo: O Deus de Israel era Senhor Único. Com as palavras: “...EU SOU o Senhor, e não há outro” (Is.45,18); e: “Eu, o Senhor, falo a verdade e proclamo o que é direito” (v.19) e, em 22: 200 “Olhai para mim e sedes salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro”, Ele não deixava margem para outro EU SOU. Não havia e não há outro Deus; essa confissão é absoluta, exclusiva, e constitui-se a base da religião judaica. Enquanto os judeus esperavam a figura do Messias como salvador exclusivamente para o seu povo, o mesmo Deus Espírito, invisível, que ninguém jamais viu e ninguém poderá ver, também dera promessas para todas as nações. E mais: somente através da revelação desse Salvador (e não através de supremacia judaica) os não judeus teriam acesso a Deus. Isto era impensável para os representantes da Lei de Moisés. Não havia, para os sacerdotes, necessidade de incluir os não judeus no pacto da salvação. O profeta Isaías viu esse “príncipe da paz” (cap.9) através do qual o Deus Único se revelaria a Israel. Em 42,6 ele profetizou a respeito desse Alguém: “Eu, o Senhor, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei mediador da aliança com o povo e luz para os gentios” – “... pouco é o seres meu servo, para restaurares os tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel; também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação até a extremidade da terra”(Is.49,6). Com a proclamação de Jesus: “EU SOU a luz do mundo” estava se cumprindo o que o profeta havia previsto. A proclamação de Jesus também era absoluta, exclusiva, como as do próprio Deus. Pura agressão aos ouvidos dos sacerdotes, cuja função profissional era administrar “as coisas de Deus”. Eu sou a luz do mundo... Era inaudito! Aquilo que Israel pensava possuir, celebrando no seu Templo, Jesus advogava para si mesmo. E mais: Não que Ele brilhasse como luz somente. Ele pessoalmente era essa luz! Os conhecedores das Escrituras imediatamente se lembravam do Salmo 27,1: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo...” ... quem me segue, não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida. O simbolismo da Festa dos Tabernáculos lembrava ao auditório essa luz que os ancestrais tinham experimentado como guia no deserto. Aqueles que a tinham seguido tinham chegado à Canaã; os outros ficaram prostrados no deserto. A luz física (como a que havia no Templo) provia somente a iluminação exterior. Jesus Cristo, como nossa luz e o objeto de nossa fé, torna-se nossa possessão interior: nós O temos, e O teremos para sempre! Nem todos seguem o caminho da luz. Há uma separação, uma divisão de caminhos, uma antítese absoluta, como indicam as palavras 201 “quem me segue não andará em trevas; pelo contrário, terá a luz da vida”. Alguns seguem à luz; muitos permanecem nas trevas. João introduziu aqui o dualismo que marca seu Evangelho: a luz como oposto à escuridão. Esses dois termos, mutuamente excluindo-se, eram conhecidos nas comunidades de Qumran, na região do Mar Morto, e no movimento da Gnose. É importante percebermos que a visão de João era contrária à da Gnose. Para João, o dualismo no seu Evangelho está subordinado ao único Deus. Deus está acima dos dois caminhos. Na gnose (como no recentemente publicado livro apócrifo “Evangelho de Judas”) existe um deus ruim, o Demiurgo, o Deus tirano da Antiga Aliança, e um Deus bom, atrás, oculto, verdadeiro, mais poderoso. Há dois reinos, o da luz e o das trevas. Os dois reinos estão em conflito. O dualismo na Gnose entende-se de forma absoluta e cosmológica (= determinando a ordem no Universo). Na gnose, cada caminho tem seu deus. O Evangelista chama a atenção do leitor à responsabilidade pessoal. Haverá necessidade de uma decisão entre um caminho ou outro. Os religiosos, que entendem religião como um complexo de regras de conduta podem andar na escuridão, porque a Lei a ninguém justifica; ela condena. Os que, religiosamente ou não, andam atrás de outras luzes, caminham nas trevas. Os que seguem à luz representada por Jesus, terão a luz. O entusiasmo contido nas palavras de Jesus quando disse “EU SOU a luz do mundo”, anunciou a chegada da salvação, a salutar presença de Deus entre os homens, hoje. Na possibilidade de seguí-lo, a salvação já chegou ao homem; “salvação” não mais está em algum lugar do futuro. Somente a fé pode corresponder à revelação escatológica da Luz na pessoa de Jesus. O futuro em “... terá a luz da vida” não é mais no sentido apocalíptico (tempo do fim); esse futuro se refere à caminhada da fé diária e à “chegada em casa”, como veremos nos capítulos 13 – 17, onde Jesus se despede de seus discípulos. (13) Então, lhe objetaram os fariseus: Tu dás testemunho de ti mesmo; logo, o teu testemunho não é verdadeiro. Os fariseus nem mesmo entraram no assunto da luz, mas questionaram a validade geral de suas palavras. Como se Jesus não soubesse que o testemunho em seu favor, conforme a legislação judaica, não era válido! Nas discussões após a cura do paralítico em 5,31, fora Ele mesmo que o disse: “Se eu testifico a respeito de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro”. Por isso, havia acrescentado em 32: “Outro 202 é que testifica a meu respeito, e sei que é verdadeiro o testemunho que Ele dá de mim”. Naquela oportunidade foram as obras (milagres) através dos quais “o Outro” (Deus) havia confirmado o testemunho de Jesus. Na circunstância atual, Jesus não argumenta contra. O testemunho de Jesus necessariamente tinha de ser o testemunho próprio, tal qual foi dado na proclamação do “EU SOU a luz do mundo” anterior. Como palavra do próprio Deus, somente podia ser testemunho sobre si mesmo. Se precisasse de qualquer confirmação não seria palavra divina! Como o “Verbo encarnado” podia apelar à confirmação humana ou mesmo à de autoridades religiosas? O Evangelista deixa o leitor, por si mesmo, chegar a essa única conclusão possível. (14) Respondeu Jesus e disse-lhes: Posto que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou; mas vós não sabeis donde venho, nem para onde vou. A afirmação de Jesus era, assim, o testemunho do próprio Deus a Seu respeito. A “verdade” de seu testemunho a seu próprio favor tem seu fundamento no seu conhecimento de sua origem e lugar. Como Ele sabe de sua missão “porquanto Deus enviou seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (3,17) e, como já afirmou em 5,34, que não aceita testemunho humano, é inevitável que tenha de testemunhar por si mesmo. “Vós, nem sabeis donde venho, nem para onde vou”. (15) Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo. Em outras palavras: “Embora vocês não tenham o conhecimento necessário para me julgar estão constantemente me julgando de acordo com a aparência exterior e seus preconceitos religiosos. Por vocês, não há nada de “luz do mundo”, mas, sim, apenas o cidadão da Galileia, filho de José. Por meu lado, embora Eu saiba da minha missão e seja capaz de julgar, a ninguém julgo”. Como os antagonistas de Jesus nada sabem da missão do Filho (3,16) só podem julgar segundo as aparências. (16) Se eu julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, porém eu e aquele que me enviou. Complementando o que disse no verso 15 (Eu não julgo ninguém), Jesus afirma que, quando é obrigado a julgar, julgará segunda a verdade, pois não é Ele somente a julgar, mas consigo está Aquele que O enviou. Esse “julgamento verdadeiro” não acontecerá em algum futuro longínquo, mas agora, tanto na hora da composição do Evangelho quanto no dia de hoje; sempre no “hoje”. 203 Como podemos conciliar a aparente contradição entre os versos 15 e 16? Vimos em 3,18 (“quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus”) que a recusa do Filho consiste em julgamento. Dessa forma também interpretamos 5,22 onde Jesus afirmou que o Pai confiou todo julgamento ao Filho. (17) Também na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas testemunhas é verdadeiro. (18) Eu testifico de mim mesmo, e o Pai, que me enviou, também testifica de mim. Em Deut.17,6, a Lei de Moisés determina que “ pelo depoimento de duas ou três testemunhas será morto o que houver de morrer”. Quanto à referência à Lei, mencionada como “vossa” Lei, não há concordância entre os estudiosos. Alguns, principalmente os tradicionais, querem ver na qualificação “vossa Lei” um consciente distanciamento de Jesus da Torá (“é vossa Lei, não a que Eu considero”). Projetamos assim uma argumentação “cristã” na boca de Jesus! Teólogos contemporâneos (Thyen, Augenstein) veem o contrário: o compromisso afirmado “ad hominem” tanto de Jesus como o de seus oponentes com a Lei. A indicação da Lei (Deut.19,15), neste contexto, deve ser interpretada como um “argumentum a minore ad maiorem” (do menor para o maior). Se, conforme a Lei já basta o testemunho de duas pessoas humanas para confirmar uma decisão como verdadeira, quanto mais compromete o testemunho análogo do Pai e de Seu Filho: “Eu testifico de mim mesmo, e o Pai, que me enviou, também testifica de mim”!? (19) Então, eles lhe perguntaram: Onde está teu pai? Em discussões, às vezes uma das partes envolvidas repentinamente chega à conclusão de que não adianta continuar argumentando; é “falar com surdos”. A sardônica pergunta no intuito de ridicularizar o Galiléu, de vez, revela que não entenderam nem estavam interessados em compreender. A pergunta: Onde está teu Pai? (que você alega como responsável), talvez até acompanhada com gestos de desdém, revelou que Jesus, de fato, estava falando com “surdos”. No caso dos fariseus, envolvidos na atividade mais perigosa que pode existir entre os seres humanos, isto é, alegar representarem os interesses de Deus, a surdez espiritual era evidente. O mesmo acontece hoje, a começar pelos próprios “representantes de Deus” do século 21. Endurecimento produz cegueira e ignorância (arrogância) espiritual. Você nota isso quando acompanha a mídia em questão de cristianismo ou quando se trata de Jesus ou do próprio Deus. Os maiores perigos para a igreja não vêm do “mundão”. O próprio João escreveu na sua primeira carta, cap.4º : “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que 204 confessa que Jesus Cristo veio em carne (na forma de humano) é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus...” (2,3). Onde estão os representantes cristãos que estão “cativos pela revelação de Deus em Cristo Jesus”? “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo afora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2 João 7). Quem, hoje em dia, leva a sério as palavras de João e reconhece em Jesus de Nazaré o Cristo de Deus, o “Logos”, é tido como “fundamentalista”, termo depreciativo nos círculos teológicos mais liberais. Os homens não querem curvar-se perante o Filho, mas alegam servir a Deus. “Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto conhecereis o espírito da verdade e o espírito do erro” (essas palavras são do próprio Evangelista na sua 1ª “Carta” 4,5.6). Respondeu Jesus: Não me conheceis a mim nem a meu Pai; se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai. Aqui, sim, a Lei de Moisés está sendo relativada. O acesso a Deus Pai não mais é pela Torá (Lei de Moisés). Essa somente O mostrou “de trás”. Em Jesus, Deus nos chegou “de frente”. Aos religiosos que, como nos dias atuais, estão preocupados em manter o “status quo” da administração do que é divino, Jesus atestou total desconhecimento de Deus. Endurecimento e ignorância quanto a Deus é a fonte da ignorância quanto ao Filho. (20) Proferiu ele estas palavras no lugar do gazofilácio, quando ensinava no Templo; e ninguém o prendeu, porque não era ainda chegada a sua hora. Para o Evangelista, era importante mencionar o lugar onde essa disputa ocorreu: era no lugar do gazofilácio (do tesouro). Havia na parede do pátio das mulheres (que não podiam passar além desse lugar) treze cofres em forma de trombetas, nas quais as pessoas depositavam suas doações. O Templo, além de ser o lugar de culto, era também o mais importante centro financeiro judaico. Nesse espaço, Jesus encontrou-se à mercê de seus oponentes. O Evangelista deixou registrada sua surpresa em ver, mais uma vez, Jesus sendo guardado. Ele entende essa proteção como divina. “Ainda não era chegada a Sua hora”. Foi exatamente no Templo onde a total ignorância dos fariseus se revelou. Para os judeus, o Templo era lugar e moradia de Deus; nele foram celebrados os inúmeros sacrifícios exigidos pela Torá. 205 Com suas palavras, Jesus, indiretamente, também deu seu veredicto sobre o culto em templos. O “EU SOU” de Jesus levou e leva ao fim escatológico não somente do Templo judaico e de seu serviço sangrento, mas da própria religião em si. Na “religião”, o homem serve a um Deus que nem conhece. • Você conhece o Deus a quem diz servir? Cap. 8.21-30 (21) De outra feita, lhes falou, dizendo: Vou retirar-me, e vós me procurareis, mas perecereis no vosso pecado; para onde eu vou, vós não podeis ir. (22) Então, diziam os judeus: Terá ele, acaso, a intenção de suicidar-se? Porque diz: Para onde eu vou, vós não podeis ir. (23) E prosseguiu: Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo, eu deste mundo não sou. (24) Por isso, eu vos disse que morrereis nos vossos pecados; porque, se não crerdes que EU SOU, morrereis nos vossos pecados. (25) Então, lhe perguntaram: Quem és tu? Respondeu-lhes Jesus: Que é que desde o princípio vos tenho dito? (26) Muitas coisas tenho para dizer a vosso respeito e vos julgar; porém aquele que me enviou é verdadeiro, de modo que as coisas que dele tenho ouvido, essas digo ao mundo. (27) Eles, porém, não atinaram que lhes falava do Pai. (28) Disse-lhes, pois, Jesus: Quando levantardes o Filho do Homem, então, sabereis que EU SOU e que nada faço por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou. (29) E aquele que me enviou está comigo, não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada. (30) Ditas estas coisas, muitos creram nele. Talvez você esteja se perguntando porque o Evangelista registrou tanta discussão e não contou mais detalhes da vida de Jesus. Na cultura judaica, principalmente entre os fariseus, discussões sem fim eram comuns, necessárias e, sim, indispensáveis. Cada ponto, ou vírgula, na Lei era assunto digno de interpretação. Jesus foi consultado, questionado e tentado pelos religiosos. O Evangelista entendeu que, através da transmissão das discussões, efetuada do modo mais fiel possível, a verdadeira missão do Filho, do Verbo podia ser revelada. A crescente igreja cristã precisava de definições claras quanto à pessoa de Jesus: quem Ele era e o que Ele significava para sua igreja meio século após a Sua morte. A obra de João revelou ser uma epístola indispensável, não somente para a igreja iniciante, mas para toda a igreja de todas as épocas. Nos capítulos 7 e 8 vemos, passo a passo, como a tensão entre os fariseus e Jesus aumenta. Nas discussões travadas, Jesus identificou-se como o “EU SOU”, a denominação do próprio Deus. Ao clero, finalmente, não mais sobrou alternativa a não ser tratar de como eliminar o Galileu sem causar tumulto entre o povo, que O amava. Os versos 25 e 26 do trecho de hoje são considerados, para sua interpretação, as “talvez mais difíceis” palavras de João (Burkett). Apresentaremos algumas opções válidas, sem poder determinar com 206 certeza a interpretação “certa”. No entanto, indicaremos a que nos parece a mais correta. (21) De outra feita, lhes falou, dizendo: Vou retirar-me, ... Jesus está falando com o mesmo grupo de pessoas e pouco tempo havia passado desde o final da leitura anterior. A tradução do verso 21 para o português não é feliz. No original grego, a frase começa com um enfático “Eu” (Eu vou retirar-me...). Esse “EU” dominará todo o trecho e alcançará seu clímax com seu duplo e absoluto “EU SOU” nos versos 24 e 28. O distanciamento entre Jesus e seus oponentes aumenta. ... lhes falou, dizendo: (EU) Vou retirar-me, e vós me procurareis, mas perecereis no vosso pecado; para onde eu vou, vós não podeis ir. Veladamente, Jesus apontou para sua morte. Ela será uma “retirada” (confira 7,33) e levará a uma separação total. Essa Sua “retirada” terá consequências fatais. “Eles” (os judeus) morrerão nos seus pecados. Há quem veja nessa sentença uma profecia apontando para a catástrofe dos anos 70, quando Jerusalém e o Templo foram destruídos (Strathmann). Será que “os judeus”, a nação toda do tempo de Jesus, como uma massa “perditionis”, morrerá nos seus pecados? Todos que não creram no “Jesus homem” enquanto Ele estava com seu povo, morreriam nos seus pecados? Claro que não. Conforme João 7,39, será exatamente aquela “retirada”, a “glorificação”, que abriu a possibilidade de, sob a condução do Espírito Santo, se crer e se ter parte na vida eterna. Será que por trás das palavras de Jesus há mais um chamado ao arrependimento, uma mão estendida outra vez, uma última convocação para escolher a vida? Os melhores intérpretes veem no termo “retirada” uma alusão à visão contida no verso 21 do livro do profeta Amós, cap.8,11s: “Eis que vêm dias, diz o Senhor Deus, em que enviarei fome sobre a terra, não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor. Andarão de mar a mar e do Norte ao Oriente; correrão por toda parte, procurando a palavra do Senhor, e não a acharão”. (22) Então, diziam os judeus: Terá ele, acaso, a intenção de suicidarse? Porque diz: Para onde eu vou, vós não podeis ir. “Então diziam os judeus...”; novamente não se arriscaram em perguntar-lhe diretamente, mas cochicharam entre si: “Terá ele, acaso, a intenção de suicidar-se, porque diz: para onde eu vou, vós não podeis ir”? Eles não entenderam que Jesus Mesmo assim, as suas considerações caminho para o Pai o levará à morte. No tem poder para tirar-lhe a vida ou, de lhes falou da volta para o Pai. serão ironicamente exatas: seu entanto, como cf. 19,18, ninguém certo modo, Ele morrerá porque 207 assim quer, porém como oferta, em sacrifício, como o bom pastor que dá sua vida pelas ovelhas (10,11). (23) E prosseguiu: Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo, eu deste mundo não sou. (24) Por isso, eu vos disse que morrereis nos vossos pecados; porque, se não crerdes que EU SOU, morrereis nos vossos pecados. Jesus apontou à razão mais profunda do antagonismo (contrário) que, irremediavelmente, os separava: a esfera do mundo com seus valores é contrária às de cima: “Vocês são desse mundo e por isso vão morrer nos seus pecados”. A repetição da morte futura em pecados não significa um julgamento geral, nem sobre o povo judeu como um todo, nem sobre os fariseus. Ser da esfera desse mundo, portanto cair sob o julgamento, é a condição de toda a humanidade adâmica. Só existe uma maneira de escapar dessa condenação geral. É aquela que Jesus apontou a Nicodemos (3.3): o caminho da fé que tem seu início no novo nascimento “de cima”. “Pois, se vocês não creem que EU SOU, todos vocês vão morrer nos seus pecados” (parafraseando o verso 24). Pela terceira vez, Jesus identificou-se com o nome de Deus revelado em Ex.3,14, e conhecido como “EU SOU” desde a época da segunda parte do livro do profeta Isaías. A primeira vez foi em 4,26 perante a mulher samaritana; a segunda vez foi na identificação perante os discípulos angustiados durante a tormenta (6,20) e a terceira é a que consta do verso 24 acima. A identificação teofánica (visualização de Deus) seguirá mais duas vezes: nos versos 28 e 58 do nosso capítulo. Na Antiga Aliança, Deus mesmo havia se manifestado com esse nome. Jesus afirmou a respeito de si mesmo o que só compete a Deus. Por estar em condição humana, Ele revelava Sua total dependência do Pai. Jesus não se identificou com um deus estranho, mas com o “Deus da Antiga Aliança”. No seu Evangelho “o Deus conhecido de Abraão, Isaque e Jacó testificou em favor de seu Filho desconhecido” (K.Barth, Decl.364s). Poucos anos após a composição do nosso Evangelho, um certo Marcion (* 85 d.C.) cristão, profundamente impressionado por Jesus, criou uma cisão ensinando que o Deus anunciado por Jesus era amor, não sendo, portanto o Deus do Antigo Testamento, chamado por ele “O Estranho”, e que seria vingativo e mau. A igreja condenou essa heresia. (25) Então, lhe perguntaram: Quem és tu? Quem és tu, para nos ensinares? Não sabes, por acaso, com quem estás falando? A pergunta cética ou irônica dos fariseus deixou evidente que sua resistência e negação eram conscientes e nunca seriam vencidas com palavras. Cada palavra a mais de Jesus era revelação jogada fora. Respondeu-lhes Jesus: Que é que desde o princípio vos tenho dito? 208 Na procura do real sentido da resposta de Jesus aparecem diversas opiniões. O texto no original grego não nos permite definir com exatidão o que Jesus queria dizer. Três opções nos são apresentados pelos estudiosos. A primeira vê a resposta como uma pergunta aborrecida: “para quê, de todo, ainda falo com vocês”? ... cada palavra era palavra jogada fora! A segunda interpretação é a de uma exclamação: “parece incrível que ainda falo com vocês”! Essas duas opções, no entanto, não fazem ligação com o verso seguinte. Damos preferência à terceira opção que vê uma declaração e uma resposta à pergunta ‘quem és tu?’: “Eu sou o que, desde o início, vos digo” ou, ainda, “desde o começo Eu sou o que vos digo”. Reparemos que Jesus, na Sua resposta, não disse quem Ele era mas o que Ele é. Jesus não somente pronuncia a palavra de Deus; Ele pessoalmente é a palavra de Deus! (26) Muitas coisas tenho para dizer a vosso respeito e vos julgar; porém aquele que me enviou é verdadeiro, de modo que as coisas que dele tenho ouvido, essas digo ao mundo. Aquele que me enviou é verdadeiro e Eu (enfático, no original) só digo ao mundo o que dele tenho ouvido. No decorrer do tempo, muita especulação surgiu querendo especificar onde e quando Jesus tinha ouvido do Pai aquilo que disse estar transmitindo. Uma linha de interpretação (Bousset) quer entender que Jesus pregava o que, na eternidade passada, tinha visto no Pai, antes de Sua encarnação. Esse pensamento é místico. O Evangelho não desenvolve em nenhum lugar pensamentos mitológicos a respeito da entrada de Jesus no mundo. Outra linha de interpretação (Zahn) quer entender que o “ver” e o “ouvir” de Jesus eram as aprendizagens paulatinas, crescentes, do Jesus homem a respeito de Deus Pai (confira Lucas 2,52: E cresceu Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens). Bultmann, finalmente, quer entender as palavras de Jesus, quando ele se refere ao “ouvir” e “ver” do Pai, somente como “instrumento do autor para sublinhar o significado das palavras de Jesus”. Conforme Bultmann, João simplesmente estaria descrevendo a vida e a experiência do homem Jesus e nada mais. Todas essas alternativas não convencem. Aquilo que Jesus “viu e ouviu” não podemos transferir como um todo para uma preexistência mitológica (Prólogo cap.1), nem localizar em algum lugar na vida do Jesus homem. De pouco adianta procurar o “ver” e “ouvir”, a cada vez, de acordo 209 com a forma gramatical (tempora verbi) que o Evangelista usou nas diversas referências. O fato da preexistência de Jesus determina o caráter da palavra como palavra não vinda da esfera humana, mas como desafio ao que a ouve, tornando-se em julgamento sobre vida ou morte. Não podemos facilitar a fé através da localização da origem do conhecimento de Jesus; pelo contrário, suas palavras são escândalo para o homem por serem reivindicações do próprio Deus (Leia Kierkegaard!). No Evangelho de João, as reivindicações de Jesus não têm sua base em alguma “recordação” do tempo antes da encarnação. Elas provêm do conhecimento de Sua existência, de sua submissão ao Pai enquanto homem e da obediência à missão a Ele confiada. (27) Eles, porém, não atinaram que lhes falava do Pai. Eles não entenderam quando Jesus lhes declarou (verso 24) Sua identidade com o Pai. Será que realmente não captaram a reivindicação contida nas palavras acima? Desentendimento proposital é uma arma poderosa. O mesmo acontece hoje em muitos corações. (28) Disse-lhes, pois, Jesus: Quando levantardes o Filho do Homem, então, sabereis que EU SOU e que nada faço por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou. (29) E aquele que me enviou está comigo, não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada. A discussão a respeito da verdadeira identidade de Jesus domina a cena desde o capítulo 7. Com o seu “... quando levantardes o Filho do Homem, ...”, o Evangelista resumiu (em uma única frase dirigida aos judeus nas diversas referências dos Evangelhos sinóticos) o quanto se refere ao “Filho do Homem”. Lemos p.ex. em Marcos 8,31: “... então, ele começou a ensinar-lhes (os seus discípulos) que era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que, depois de três dias, ressuscitasse”. A designação “ser levantado” tem duplo sentido: popularmente significava a morte por crucificação e, para o Evangelista João, de maneira similar significa a “glorificação”, o retorno ao Pai. Considerando essa constatação, vemos o verso 28 como uma promessa. A promessa de Zacarias 12,10 tem a mesma estrutura como a do verso 28. Nas duas citações, o sujeito são aqueles que levaram Jesus à morte. O olhar nas duas referências é dirigido a Jesus e “ver” (conhecer) e “reconhecer” apontam na mesma direção. “... olharão para aquele a quem 210 traspassaram...” A LXX (latim) diz: “... olharão para mim ...”. Essa direção não aponta a uma ameaça de julgamento, mas de salvação. Dificilmente o Evangelista poderia sugerir a esperança de que os fariseus, após a crucificação (quando se sentirão culpados por terem maquinado a “elevação” do Filho do Homem), entendessem e reconhecessem quem era Jesus. Pela sua própria experiência de vida pósPáscoa, Ele sabia que a grande maioria deles não o fez. Mais ainda: na época em que ele compôs o seu Evangelho, “os judeus” como um todo, haviam se transformado, sob a liderança farisaica, em inimigos declarados da jovem igreja cristã. Por que, então, diz que então “saberão quem era o EU SOU”? Os intérpretes veem duas explicações como possíveis. Ou o Evangelista não se expressou claramente e está falando de seus leitores, e não dos judeus, ou ele quer dizer, genericamente, que os judeus aprenderão a verdade “tardiamente” (compare o que o Apóstolo Paulo escreveu a respeito nos capítulos 9 – 11 da “Carta aos Romanos”). A cruz era a resposta última e definitiva dos fariseus a Jesus e sua palavra. “Sempre que o mundo escolhe incredulidade como resposta última, ele “levanta” aquele que lhe trouxe a revelação e assim o terá como juiz” (Bultmann). A essa altura Jesus via, com clareza, o caminho que tinha de andar até ao fim. Ele sentiu-se seguro, pois estava obedecendo. A obediência completa era o segredo de sua confiança total. Entendemos agora por que o Evangelista João não incluiu o brado do crucificado na escuridão das profundezas da morte e abandonado por Deus (Marcos 15,34). Ele não via de que forma aquele grito de desespero (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”) pudesse fortalecer àqueles aos quais estava apresentando o Filho na total confiança ao Pai. Assim, ele omitiu o grito de Jesus na sua epístola. (30) Ditas estas coisas, muitos creram nele. Não sabemos o que aconteceu com esse grupo que creu, mas sobre ele certamente estava a promessa acima mencionada de reconhecimento do Salvador. Você sabe que através da morte e da ressurreição de Jesus, fatos consumados, você também tem seu caminho aberto a Deus? A mesma promessa que acabamos de ler, vale também em sua vida! • Já a reconheceu? Já agradeceu por ela? 211 Cap. 8.31-47 (31) Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; (32) e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (33) Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? (34) Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (35) O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre. (36) Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. (37) Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me, porque a minha palavra não está em vós. (38) Eu falo das coisas que vi junto de meu Pai; vós, porém, fazeis o que vistes em vosso pai. (39) Então, lhe responderam: Nosso pai é Abraão. Disse-lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão. (40) Mas agora procurais matar-me, a mim que vos tenho falado a verdade que ouvi de Deus; assim não procedeu Abraão. (41) Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseramlhe eles: Nós não somos bastardos; temos um pai, que é Deus. (42) Replicou-lhes Jesus: Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me havíeis de amar; porque eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou. (43) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra. (44) Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. (45) Mas, porque eu digo a verdade, não me credes. (46) Quem dentre vós me convence de pecado? Se vos digo a verdade, por que razão não me credes? (47) Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso, não me dais ouvidos, porque não sois de Deus. (31) Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; (32) e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. O grupo, ao qual Jesus se dirigiu no verso acima e que no final da conversa procura apedrejá-lo, não parece idêntico ao da leitura passada. No verso 30 ouvimos que “muitos creram em Jesus”, o que é mais do que “crer no que Ele disse”. Creram na Sua pessoa. As palavras relatadas no trecho acima também foram dirigidas a pessoas que “haviam nele crido”. No entanto, assim que Jesus começou a colocar as condições do discipulado, esse grupo revelou-se opositor. Alguns comentaristas querem ver como “apóstatas” pessoas que, no entusiasmo do momento, tinham se juntado ao Senhor, mas logo haviam retornado à aparente segurança da Sinagoga. O apóstata costuma (quando expõe sua posição e a deixa para trás) transformar-se no mais radical contestador daquilo que antes julgou ser verdade. A esses apóstatas Jesus lembrou: “Se vocês permanecerem na minha palavra, vocês serão verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Não foi o “permanecer” que encontrou contestação. Foi o termo “verdade”. O que Jesus disse é o seguinte: somente se vocês permanecerem no que Eu digo, conhecerão a verdade. 212 Na visão bíblica-judaica, a “verdade” está fundamentada no que Deus fala. Na pessoa de Jesus, essa palavra estava presente. Normalmente temos por verdade aquilo que julgamos real. Assim há verdades distintas para pessoas diferentes. Verdade é um conceito da filosofia do conhecimento, ideológico, portanto relativo. Jesus não falou da verdade relativa como resultado de um julgamento humano. Se Ele, em outro lugar (14,6), disse que Ele próprio é a verdade, a verdade não é predicado (qualificação), mas sujeito. Se disséssemos: “Jesus é verdadeiro”, faríamos um julgamento. Jesus deixaria de ser sujeito (objeto) e conteúdo da verdade e teria que competir com alegações concorrentes, submetendo-se a uma escala de valores com a qual seria avaliado. Conhecer “a verdade” nos termos de Jesus é conhecer quem Ele é. Esse é o primeiro passo para poder falar de liberdade. Liberdade acontece onde reconhecemos em Jesus o EU SOU de Deus. (33) Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? O grupo não gostou da ligação que Jesus fez entre verdade e liberdade, pois essa conjuntura pressupõe a sua necessidade de libertação. A raiz do orgulho nacional e religioso do judeu, sua liberdade religiosa, fora atacada. O judeu não se via como “preso”. Como descendentes do patriarca Abraão não somente possuíam a grande promessa de bênção (Gen. 22,17), mas eram o povo eleito de Deus, propriedade do altíssimo (Deut.14,1/1 Pedro 2,9). De posse da Lei nunca se curvaram sob o jugo alheio. Mesmo sob o domínio político/militar romano não perderam a liberdade íntima, religiosa, e a posse da Lei. “Como dizes tu: “sereis livres?” Somos livres!! (34) Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. João Batista já havia feito a advertência aos judeus: “... não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai Abraão...” (Mat.3,9). Enquanto pecam não são livres; são escravos, escravos do pecado. O chamado ao arrependimento se estendia também a eles. Jesus usou como ilustração a alusão bem conhecida da expulsão da escrava Agar e de seu filho da casa paterna de Abraão: (35) O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre. “Vendo Sara que o filho de Agar, a egípcia, o qual ela dera à luz a Abraão, caçoava (literalmente “brincar com”), disse a Abraão: Rejeita essa escrava e seu filho; porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque, meu filho” (Gen 21,9.10). 213 O Senhor da casa (aqui metaforicamente visto em Abraão) é o Deus de Israel. Como escravos do pecado, nem eles, judeus, ficariam na casa do Pai a não serem libertos, antes, pelo Filho. (36) Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. O Evangelista João, em toda sua Epístola, somente aqui usa o verbo “libertar”. Ele nem emprega o substantivo “liberdade”. Os judeus acabaram de afirmar sua liberdade e Jesus lhas a negou por serem pecadores. A liberdade, e com isso a permanência na casa paterna, somente o Filho lhes podia trazer. O Filho não anularia a autoridade do Pai da casa. Ele liberta da escravidão do pecado e, com isso somente, garante a permanência na casa do Pai. (37) Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me, porque a minha palavra não está em vós. Não havia nenhuma dúvida da descendência biológica desses judeus de Abraão. Jesus no entanto, junto com o Batista (em Mt.9,3), não dava valor a essa relação. Substancial era a obra deles: Ao contrário da hospitalidade de Abraão quando JHWH lhe apareceu na pessoa de três homens em Manre (Gen 18,1s) e lembrando a constatação dolorosa do Prólogo “veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (1,11), esses apóstatas agora procuravam eliminá-lO. Nem negaram a intenção (como ainda o fizeram em 7,19). (38) Eu falo das coisas que vi junto de meu Pai; vós, porém, fazeis o que vistes em vosso pai. (39) Então, lhe responderam: Nosso pai é Abraão. De Abraão, os judeus não tinham mais nada além da descendência biológica. Parafraseando: “A comprovação de que vocês não mais são filhos de Abraão está no fato de vocês aceitarem as insinuações de seu verdadeiro pai (cujas palavras vocês não rejeitam), da mesma forma como eu (Jesus) estou fazendo exatamente o que vi em Meu Pai” – uma expressão pesada e de duplo sentido, sendo imediatamente repelida com a resposta: “Nosso Pai é Abraão”! Disse lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão. (40) Mas agora procurais matar-me, a mim que vos tenho falado a verdade que ouvi de Deus; assim não procedeu Abraão. Jesus argumentou semelhantemente a João Batista em Lucas 3,7-9: “Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão...”. A afirmação dos apóstatas de que eram semente de Abraão constituía-se em mentira, uma vez que havia uma intenção fatal por trás. O crime que acusaram em Jesus era o de lhes ter comunicado a verdade que Ele ouvia de Deus. 214 Mais uma vez, a tradução para o português é falha, propositadamente talvez. O texto do verso 40, não só no original, mas nos outros idiomas também, diz: “... procurais matar-me, homem, que vos tenha...”. O tradutor talvez tenha feito o que muitos antigos copistas fizeram: procurou evitar um mal-entendido, alterando palavras ou omitindo-as. Com o termo “homem”, o Evangelista prepara o chão para o verso 44 onde o diabo será chamado de “homicida”, de assassino. (41) Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe eles: Nós não somos bastardos; temos um pai, que é Deus. Sem ter dado ainda nome ao suposto “pai” do grupo de judeus em oposição a ele, Jesus lhes declarou: “vocês fazem as obras de vosso pai!” Não lhes cabia fazer referência a Abraão como seu pai. O Evangelista João diz noutro lugar, referindo-se aos cristãos: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”(13,35). O mesmo estava ordenado na Lei oral dos judeus: “Ao que se compadecer dos homens, a este está assegurado a descendência da semente do nosso pai Abraão e o que não se compadecer dos homens, a ele está (não menos) assegurado que não faz parte da semente do nosso pai Abraão” (TSota 15,10). Dessa forma, quem intentar matar um homem porque este lhes disse o que ouviu de Deus, não pode pertencer “à semente de Abraão”, mas, sim, é filho de outro. A resposta “não somos bastardos; temos um pai que é Deus” pode ser uma expressão do orgulho judaico, porém, como eles fizeram referência a “bastardo” (lit. mamser , o que fora gerado ilegalmente com culpa de sangue) pode ter sido “uma indireta” à pessoa de Jesus. “Não somos bastardos (como tu)”. Fontes (como ‘Mishna Tratado 4,13’; ‘Orígenes contra Celsum I, 28’), que registram o uso desse argumento contra Cristo, levaram alguns intérpretes a entender a observação dos judeus como uma indireta discriminatória (Barrett, Schwarz). Outros interpretam que os judeus entenderam muito bem que Jesus questionava Deus ser o pai deles, quando se referenciou ao “pai deles”. Na opinião desses outros intérpretes, os judeus negaram que eram filhos de um adultério espiritual com outra divindade. No Antigo Testamento, os profetas sempre viam a relação de Deus para com seu povo como a de um casamento, com JHWH como esposo e Israel Sua única e amada esposa. A quebra do segundo mandamento lhes era como infidelidade matrimonial (Oséias1,1-9). Desse ponto de vista, o protesto dos judeus no verso 41 constituir-se-ia na pergunta: “será que ele, questionando a dependência de Abraão, até nos nega Deus como nosso Pai”? 215 (42) Replicou-lhes Jesus: Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me havíeis de amar; porque eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou. (43) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ovir a minha palavra. O comportamento do grupo contradisse sua afirmação. Se de fato fossem filhos de Abraão, teriam que ouví-lo, reconhecê-lO e não procurar livrar-se dEle. A argumentação de Jesus nos mostra o grau de sua segurança e da ausência de qualquer dúvida quanto à sua missão. Qual fora a razão dessa surdez espiritual dos judeus? Ela não era proveniente do acaso; havia uma incapacidade objetiva presente. (44) Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. A declaração presente é de um rigor assustador. No encontro com a mulher samaritana, Jesus somente disse: “vós adorais o que não conheceis...” e nada disse de diabo. O fato é que a intenção de matar revelou o outro “pai”. Eles realmente não podiam ouvir. “A incredulidade consiste no verdadeiro ser do incrédulo; o homem não existe como algo neutro atrás de sua incredulidade” (Bultmann). No verso 44 temos “o diábolos” como o pai da mentira, homicida desde o início e cuja vontade encontrou ouvidos nos oponentes de Jesus. Há muita controvérsia entre os teólogos a respeito do termo “vós sois do diabo” porque no original grego, traduzido literalmente, se entende: vocês são do pai do diabo”. Extensas pesquisas levaram a diferentes conclusões. Nelas também aparece a figura de Caim, cujo assassinato (Gen.4,8s) deu início à “história infinita das matanças universais” até o dia de hoje, fato esse lembrado pelo Evangelista na sua primeira carta, cap.3,12. (45) Mas, porque eu digo a verdade, não me credes. O “eu” é enfático. Vendo a obra do “diábolos” por detrás da rejeição dos “judeus” (não importando se a menção acima aponta para Caim, ou para a serpente do paraíso, ou para o próprio “diábolos”) não há como esperar que eles dessem ouvidos à verdade. Por trás de toda rejeição e negação de Jesus está o “EU” com seus ouvidos abertos para “o outro”. (46) Quem dentre vós me convence de pecado? Como justo, Ele podia lançar-lhes a pergunta retórica: “qualquer de vocês, por acaso, pode acusar-me de pecado”? O fato de ninguém ser capaz para tal já pressupõe a seguinte declaração: 216 Se (eu) vos digo a verdade, por que razão não me credes? (47) Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso, não me dais ouvidos, porque não sois de Deus. Dar ouvidos é mais do que “ouvir” somente. Na linguagem bíblica do nosso autor, “dar ouvidos” é sinônimo de “obedecer”. Desobedecer a Deus é obedecer a outro que se apresenta na forma do “EU” a todos nós. A transcrição das discussões de Jesus com seus oponentes nos servem como apelo máximo a fim de não nos fecharmos ou resistirmos à palavra de Jesus e que nos decidamos pela verdade e contra a mentira. No fim da carreira de cada um de nós ficara manifesta a substancialidade da nossa escolha. Cap. 8.48-59 (48) Responderam, pois, os judeus e lhe disseram: Porventura, não temos razão em dizer que és samaritano e tens demônio? (49) Replicou Jesus: Eu não tenho demônio; pelo contrário, honro a meu Pai, e vós me desonrais. (50) Eu não procuro a minha própria glória; há quem a busque e julgue. (51) Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. (52) Disseram-lhe os judeus: Agora, estamos certos que tens demônio. Abraão morreu, e também os profetas, e tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra, não provará a morte, eternamente. (53) És maior do que Abraão, o nosso pai, que morreu? Também os profetas morreram. Quem, pois, que te fazes ser? (54) Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória nada é; quem me glorifica é meu Pai, o qual vos dizeis que é vosso Deus. (55) Entretanto, vós não o tendes conhecido; eu, porém, o conheço. Se eu disser que não o conheço, serei como vós: mentiroso; mas eu o conheço e guardo a sua palavra. (56) Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se. (57) Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens 50 anos e viste Abraão? (58) Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU. (59) Então, pegaram em pedras para atirarem nele; mas Jesus se ocultou e saiu do Templo. A avaliação dos representantes dos judeus, à qual João tem chegado no fim do capítulo oito, é a seguinte: Jesus lhes veio como Verdade de Deus em forma humana. Eles, portanto, decidiram pela mentira. Ele veio como Salvador do mundo. Eles escolheram o homicídio desde o início. Fecharam-se perante à Graça revelada. Como isso fora possível? O Evangelista não pode ver outra explicação a não ser a de uma decisão consciente contra a Luz. O Apóstolo Paulo, 50 anos antes, ainda nutria esperança para o seu povo e via a recusa de Jesus pelo seu povo como cegueira espiritual. O Evangelista João já não mais nutre esperança alguma. No capítulo 8 do seu Evangelho se espelha a situação no fim do século 1º; um abismo intransponível entre as comunidades judaicas e cristãs. 217 Leia, se possível, os capítulos 9 – 11 da “Carta” de Paulo “aos Romanos” e observe a dor e a tristeza do Apóstolo por causa dessa situação. Veja também o que João não viu e conheça a visão de Paulo: o avivamento futuro de seu próprio povo e o que esse acontecimento significará para a igreja cristã, quando se cumprir. (48) Responderam, pois, os judeus e lhe disseram: Porventura, não temos razão em dizer que és samaritano e tens demônio? Os judeus sabiam da descendência de Jesus (6,42/7,52). Eles sabiam que Jesus não era samaritano. Assim, o sentido da frase pode ser: “Não temos razão em dizer que você parece um samaritano possesso de demônio” ou, como os samaritanos eram desprezados: “Você nem é melhor que um samaritano” Morris). O argumento de possessão demoníaca já fora usado contra Jesus em 7,20. Em 8,52 e 10,20 ela aparecerá de novo. Pelos Evangelhos sinóticos sabemos da acusação levantada pelos escribas: Jesus é possesso pelo maioral dos demônios e com essa força expele os demônios de outros. Em nenhum lugar o Evangelho de João faz alusão aos exorcismos praticados por Jesus. Não sabemos por que razão João, ao contrário dos sinóticos, não os mencionou. Sem dúvida, eles pertencem aos “muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro” (20, 30). “Samaritano possesso” pode também ser o “troco” dos judeus, uma vez que Jesus os havia qualificado “filhos do diabo”. (49) Replicou Jesus: Eu não tenho demônio; pelo contrário, honro a meu Pai, e vós me desonrais. (50) Eu não procuro a minha própria glória; há quem a busque e julgue. (51) Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. A resposta, com o ”Eu” enfático no início, pode ser parafraseada assim: “Eu (pela minha pessoa) de maneira nenhuma sou possesso por um demônio. Antes, estou dando a honra a meu Pai, honra que vocês me negam, embora sendo eu seu enviado. Ao contrário de vocês, não procuro a minha própria honra. Há outro que está cuidando disso e que julgará (a vocês que me desonram). Digo-vos com toda certeza: Se alguém guardar minha palavra, não verá a morte eternamente” (Thyen). A condicional “se” torna a promessa acessível a qualquer um. Não mais é uma promessa dirigida únicamente às pessoas com as quais Jesus estava discutindo. (52) Disseram-lhe os judeus: Agora, estamos certos que tens demônio. Abraão morreu, e também os profetas, e tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra, não provará a morte, eternamente. 218 Você pode imaginar o que significa “não ver a morte eternamente”? “Não ver a morte”, no uso semita, é sinônimo metafórico de “ter vida eterna”. Os judeus não entendiam. Será que Ele até proclamava imortalidade para si e seus seguidores!? Eles viam confirmado seu julgamento: ele estava louco mesmo! O que eles não observavam era que Jesus havia ligado a sua promessa às palavras pronunciadas imediatamente antes; eles não consideravam o contexto. Neste, Jesus falou dAquele que os julgaria pelo seu posicionamento contra ele. Todos os que mantivessem a palavra dele não seriam julgados e nunca apagados da memória de Deus. A promessa de Jesus estava sendo dada no contexto da honra do Pai. Eternidade não é um acúmulo de tempo. Até mesmo inúmeras vezes muito tempo não são eternidade. A diferença com o tempo é qualitativa, não quantitativa. O sempre presente “EU SOU” se destaca perante à vida limitada e definida de Abraão. (53) És maior do que Abraão, o nosso pai, que morreu? Também os profetas morreram. Quem, pois, que te fazes ser? Jesus não prometia imortalidade, como os judeus a entendiam. Abraão morreu. Os profetas morreram. Quem era “esse Galileu” que se viu acima de seus pais? “Você está se fazendo o quê?” Essa é a pergunta que através dos séculos, até hoje, separa e une. Para alguns, Jesus era e continua sendo nada mais do que um homem, talvez endemoninhado e com uma presunção doentia. Se, por outro lado, reduzimos Jesus a um homem extremamente religioso e bom, exemplar, anulamos suas palavras. Ele foi morto exatamente por não ser um religioso. Em todos os sentidos Jesus rompe os parâmetros. Você tem coragem de levar a sério as Suas palavras? Para você e eu nunca sermos riscados da memória de Deus, Jesus, como homem, teve que morrer. Como sabemos, várias vezes e cada vez com maior clareza Ele havia declarado que daria sua vida pela vida do mundo; que teria de ser “levantado” – “... importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo que nele crê tenha vida eterna” (João 3,14b). Não devemos espiritualizar o que Deus provou na pessoa de Jesus. “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos” (15,13). Em Jesus, Deus se comprometeu brutalmente com esse mundo empírico. A encarnação não é componente teatral, “o exemplo da possibilidade de um ser divino assumir forma humana” (como diz Käsemann), não, a encarnação de Jesus foi revelação com todas as suas dolorosas consequências: o Cordeiro de Deus, morto, levou o pecado do mundo. 219 (54) Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória nada é; quem me glorifica é meu Pai, o qual vos dizeis que é vosso Deus. (55) Entretanto, vós não o tendes conhecido; eu, porém, o conheço. Se eu disser que não o conheço, serei como vós: mentiroso; mas eu o conheço e guardo a sua palavra. Se Jesus procurasse ser conhecido como milagreiro, tal qual os curadores ambulantes do seu tempo, Ele nada seria. Jesus via em tudo o Pai. O Pai lhe era presente, Ele lhe falou, e os sinais operados por Jesus eram manifestação do poder do Pai. O Deus cultuado no Templo era um Deus oculto; os judeus sacrificaram a um Deus desconhecido. Sua religião era regida pela Lei, por letras e por liturgias. Para poderem se comunicar com esse Deus precisavam de sacerdotes, de intermediadores. Estes sacrificavam diariamente pelos seus “clientes” a fim de apagar a ira de Deus. Assim, o Deus chamado pelos judeus de “nosso Deus” lhes era estranho. No passado, Ele havia falado através de seus profetas. Mas agora mantinha silêncio. Há mais de 300 anos não mais se levantou profeta em Israel. Quando recentemente apareceu João Batista, não deram ouvidos ao anúncio da chegada do “Cordeiro de Deus”. O Batista silenciou. Seu clamor não havia encontrado ressonância no clero. Assim, eles mentiam quando afirmaram conhecer seu Deus. Nunca sabiam se esse seu Deus lhes era favorável; tiveram que interpretar a sorte e o azar para poder concluir se eram bem vistos lá em cima ou não (como também na nova “Teologia da Prosperidade”). O Pai ao qual Jesus se referia era um Pai presente, conhecido e vivo. Quando Jesus falava do Pai, enunciava as palavras do Pai. Essas eram verdadeiras, ao contrário das dos judeus. (56) Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijouse. Jesus, assim como seus oponentes, viviam na história de Israel. Abraão, Isaque e Jacó, como pais, eram sempre presentes nas suas avaliações religiosas. O que será que Jesus quis dizer quando afirmou que Abraão viu “seu dia”? No judaismo, esperava-se o Messias na sua função humana como libertador e futuro rei de Israel. Assim se falava dos “dias do Messias”, de uma nova “era” (plural de dias). Os profetas, por sua vez, falavam do “dia de JHWH” (singular) quando olhavam para o futuro. Eles viam a consumação das promessas de Deus na história humana. Quando Jesus menciona “meu dia”, Ele se referiu a essa ação soberana de Deus, não a “dias” (plural) em que as esperanças messiânicas do povo fossem concretizadas. Esse “seu dia” seria o dia de Sua 220 glorificação por Deus, quando Ele fosse “levantado”, isto é, Sua morte e Sua ressurreição. Era “o dia” que os profetas anunciavam. É importante observar que Jesus usou o singular: “meu dia”. Esse dia, Abraão viu. Viu e depois regozijou-se. O Evangelista não nos dá a menor “dica” de quando, como e onde Abraão pode ter visto “o dia” de Jesus. Assim, há lugar para muita interpretação fantasiosa. Os Rabinos conhecem tradições que falam de revelações dadas por Deus a Abraão, quanto ao futuro. Rabi Jochanan B.Zakkai disse: “Deus revelou a Abraão este mundo, mas não o futuro”, enquanto que o Rabi Akiba afirmou: “Deus revelou a Abraão este mundo e o vindouro”. Como que olhando do céu, outros interpretam a alegria de Abraão como sendo sua participação no cumprimento das profecias. Há teólogos que querem ver o momento da alegria de Abraão quando este, já morto, fora testemunha, do céu, da encarnação de Jesus (Bernard), e assim por diante. A relação entre Jesus e Abraão é histórica. Quando Jesus disse que Abraão viu e depois regozijou-se, devemos procurar dois eventos na vida de Abraão. Após as promessas dadas a Abraão (Gen 12,3, 15,5s, 17,17) podemos identificar o regozijo dele, quando no lugar de seu filho, um cordeiro escolhido por Deus fora sacrificado (Gen 22,16s). (57) Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens 50 anos e viste Abraão? Com 50 anos, os sacerdotes estavam saindo do serviço no Templo; com 50 anos, a obrigação do imposto para o Templo cessava (Mat.17,24). Os judeus, em nosso caso, pareciam mais interessados em cuidar do memorial de Abraão do que atentar ao que Jesus lhes disse. Abraão se alegrou com a promessa “do dia” e depois, quando o viu simbolicamente em Gen.22,16, alegrou-se. O que os judeus aqui levantam é a inversão da proclamação. Não que Jesus tenha visto a Abraão; este viu “o dia” de Jesus, o dia em que todas as promessas que Deus lhe tinha dado se cumpriam. No entanto e sem saber, os judeus apontaram para uma realidade (7,35; 8,22; 11,50), e essa realidade da preexistência de Jesus foi confirmada formalmente por Ele. (58) Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU. Tampouco como no Prólogo (1,1s), o “EU SOU” aqui tem o sentido narrativo (era uma vez...). O Prólogo define o “Logos” quanto à Sua existência (no princípio era), Sua relação com Deus (estava com Deus) e Sua predicação como Deus (era Deus). Não se trata de narrar uma “história de tempos passados” quando falamos de Jesus. “Era” e “veio a ser” são o eixo em torno do qual todo o Evangelho de João se desenvolve. Esses termos exaltam o ser eterno do “Logos” além de existência e tempo. O “ser” 221 do Logos está além do “vir a ser” e do “acontecimento”. Enquanto tudo na terra tem seu início e também seu fim, o “Eu sou” é sem início e sem fim. Deus, no Antigo Testamento e seu Filho, no Novo Testamento, através do verbo “ser” possuem direitos específicos. Com seus “EU SOU” eles fazem valer seus “direitos divinos” (Kermode). Este “EU SOU” sempre inclui o “EU ERA” e o “EU SEREI”. Assim não há como reduzir o “era” do Prólogo, projetando-o em alguma época temporal, seja no tempo antes da caída do homem (Gen.3) ou até no período do Jesus homem. Não se trata somente do uso de meios de estilo literário de retrospecção, prolepse e antecipação. Deus e seu Logos são Senhores do tempo e não confinados por categorias temporais (Marquard). Em palavras mais simples: Jesus não é sujeito ao tempo que marca a nossa vida. Ele tanto era, é e será. O grupo de pessoas que discutia com Jesus teve de ouvir que não eram verdadeiros filhos de Abraão; que eram filhos do diabo e, portanto, mentirosos que tramavam um assassinato. Tudo isso fazia parte de um bom debate. Agora porém, o limite fora ultrapassado. (59) Então, pegaram em pedras para atirarem nele; mas Jesus se ocultou e saiu do Templo. No momento, em que a honra do Deus da Antiga Aliança, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó estava sendo tocado por alguém que se declarava eterno como Deus, o zelo religioso dos judeus se fez presente. Levítico 24,16 ordena: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará...”. (Sanhedrin 5,3s.) O historiador Josefo (Ant.XVII, 216) sabia de vários apedrejamentos ocorridos dentro da área sagrada do Templo. É algo difícil de se imaginar por nós, que imaginamos o Templo sempre como “lugar de Deus” e tudo nele como santo e ao mesmo tempo metafórico. Durante a vida de Jesus, o Templo estava em constante reforma (por Herodes) e havia pedras o suficiente para tal ação. Sangue, zelo religioso e culto se misturavam. Mais uma vez Jesus escapou. Percebemos o espanto do Evangelista quando ele anota: Jesus se ocultou e saiu do Templo. Por alguma razão, o linchamento não aconteceu. Esse episódio e a paixão de Jesus como um todo, nos revelam a cruz de Jesus como consequência inevitável do encontro de “religião” com Deus. Foram os defensores da religião os que, covardemente, armaram a trama. Ficaram pessoalmente com as mãos limpas, mas passaram “o trabalho sujo” para o “braço secular”, neste caso, os romanos. 222 No decorrer da história, a Igreja “cristã” sempre tem se mantido intocável, dessa mesma maneira, quando desafiada por alguém que amava Jesus mais do que a letra da Lei da instituição denominada “Igreja”. E que, através de todas as suas representações, em todas as épocas, tem eliminado esses “hereges” através das mais horríveis métodos de tortura e assassinatos – em nome de guardiã da “religião”. Os “Reformados” (Protestantes) matavam menos que Roma sim, mas matavam também os que ousaram estar discordando de sua doutrina. Segundo a mídia, nunca morreram no mundo tantas pessoas como vítima de conflitos religiosos como hoje (Spiegel). • • Como você encara alguém que questiona a sua fé? Você tem a disposição necessária para ouvir e reavaliar sua maneira de crer de acordo com as palavras de Jesus? Considerações (I) capítulos 7 e 8 Cara amiga, caro amigo, Será que você teve tempo e disposição para acompanhar os estudos, principalmente os últimos, mais difíceis, onde o Evangelista relata as discussões de Jesus com os fariseus? Você os considera difíceis demais? Temos procurado abordar o texto não em linguagem teológica, mas de uma maneira acessível a pessoas comuns, como você e nós aqui. Será que você dispõe de um lugar na sua casa (ou fora), onde ninguém o (a) interrompa quando tenta estudar o texto? Incentivamos você a procurar um cantinho e um horário que lhe facilitem a leitura. Sem “mastigar” o alimento, ele para nada serve; ele só infla. Assim acontece também com o alimento espiritual; ele precisa ser transformado em vida. Vamos interromper o estudo do Evangelho na procura de uma compreensão melhor de alguns termos que o Evangelista João usou e cujo significado está deformado, seja pela nossa cultura, pela religião ou pelo tempo, simplesmente. Há, também, questões que, com grande probabilidade, se levantam na mente de quem estuda as Escrituras; perguntas que valem a pena serem mencionadas na procura por uma resposta. • Uma ou duas pessoas? Você percebeu que o Evangelho de João inteiro parece falar de duas pessoas que são Uma. Temos o Pai e temos o Filho e, pelas palavras de Jesus, um é distinto do outro. Porém ouvimos Jesus reivindicar o “EU 223 SOU” do Pai. Surgem as perguntas: Deus e Jesus são pessoas distintas? Como podem ser Um só? Jesus se referia sempre ao Pai como autoridade superior - não é assim? Hoje, Deus Pai e Cristo ainda são duas pessoas ou uma só? A igreja, na sua procura por uma definição, chegou através de muita luta à seguinte afirmação: O Pai e o Filho são de uma mesma “substância” (ano 325 d.C.). O que significa isso? Significa que tanto o Pai quanto o Filho são Deus; não deuses, mas um só e o mesmo Deus. Difícil, não é? Faremos umas considerações no intuito de entender melhor quem, na visão do Evangelista João, é o Pai e quem é o Filho. Crer é pensar, também. Há muitas pessoas que têm medo de pensar porque temem a dúvida que consideram “pecado”. Veja: a certeza surge como resposta a uma dúvida e não através de uma imposição, mesmo no campo da religião. Quando em assuntos espirituais chegamos ao limite daquilo que o nosso intelecto é capaz de captar, a melhor resposta ainda é o silêncio que, melhor do que a discussão, ajuda separar a verdade da mentira. Olhemos alguns termos e pensemos a respeito! • Deus Pai Em Jesus não tivemos “o Pai” na terra. Deus continuou Deus, Espírito, invisível, Eterno e Único. Deus não tem tamanho definido ou limitado; Ele não ficou menor enquanto Jesus esteve na terra. O “lugar” de Jesus no céu não ficou vazio. Deus continuou Deus, ilimitado e Único. • Jesus do Evangelho Jesus de Nazaré era humano, portanto visível e sujeito a todas as limitações que caracterizam a criatura humana. Jesus morreu a morte física, a qual cada um de nós terá que aceitar e passar. O mistério e a maravilha que o Evangelista João proclama, é a “encarnação” de Deus na pessoa de Jesus humano. João não trabalhou com fatos místicos; não argumentou com um nascimento virginal de Jesus. O Evangelista simplesmente afirmou o fato: Em Jesus, o Pai se tornou visível, dando testemunho em palavras humanas e compreensíveis. Em Jesus ouvimos a voz do Pai. Jesus era mais que um profeta que enunciava palavras e cujo conteúdo o profeta mesmo, às vezes, nem podia encaixar nas circunstâncias em que vivia como, por exemplo, ocorre com o profeta Isaías. Os profetas falavam do que Deus lhes “sussurrou”, e assim transmitiam mensagens ao povo. Em que Jesus era diferente? Jesus não recebia “mensagens” de Deus. Em Jesus, o próprio Pai nos falou. Percebemos nas leituras anteriores que Jesus e o Pai estavam em constante comunhão, pensando juntos. Jesus era a Palavra de Deus em forma humana, da mesma categoria qualitativa de Deus. 224 Não havia o “era” (uma vez...). Era sempre o “é ” que caracteriza Deus. • Relação entre Deus e Jesus Se Deus estava conosco em forma humana, é obvio que “quem não honra o Filho não honra o Pai” (5,23). Essa é a razão da vital importância de conhecermos Jesus. Ele é a imagem do Deus invisível. (Col.1,15ª). Se Deus nos abençoa com uma mente disposta a crer na pessoa de Jesus, essa pessoa começa a ganhar forma através das palavras do Evangelho de João. • Quem é Jesus após a sua morte e ressurreição? Somente aos poucos, os novos cristãos entenderam que, na pessoa do Nazareno, fora o próprio Deus que estivera presente. O Evangelista João interpretou a “ascensão”, isto é, o momento a partir do qual Jesus não fora mais visto pelos seus seguidores (Atos 1,6-11), como retorno de Jesus ao lugar onde estava desde a eternidade passada, com Deus (confira João 1,1s). Com esse retorno nasce a pergunta: o cristão tem duas autoridades no céu? Há, por exemplo, pontos de vista diferentes a respeito sobre a quem deveríamos dirigir a nossa oração. Alguns, com base no “Pai Nosso”, defendem que todas as orações devem ser dirigidas a Deus Pai, em nome do Filho. Pelo fato de ter sido reconhecido Deus enquanto na terra, e baseando-se em algumas frases do Novo Testamento nas quais Jesus é chamado de Deus (Tito 2,13), outros têm liberdade para dirigir-se a Jesus, quando oram. Qual o modo certo de orar? Se foi na pessoa de Jesus que Deus se nos fez conhecer, por que razão não nos podemos dirigir a Ele, a quem amamos acima de todas as coisas? Se Ele era e é “um” com o Pai, não pode receber nossa adoração? • Escândalos desnecessários e necessários O cristianismo nasceu do judaismo. Ele é um ramo, não o tronco. Paulo, o ex-fariseu, deixou isso claro na sua “Carta aos Romanos” (11,11s). Através do judeu Jesus de Nazaré é que o Deus de Israel se tornou acessível também a nós, não judeus, gentios, “ímpios” (na linguagem dos judeus). Para desgosto deles chamamos o Deus deles, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o nosso Deus, também. Há um escândalo desnecessário para o judeu que crê no Deus da Bíblia, quando ele vê como nós, os cristãos, fizemos da quebra de sua confissão básica, diária, o pecado maior que ele conhece: uma religião! Uma religião com imagens (quebra do segundo mandamento, Ex.20,4.5), 225 com homens e mulheres sendo venerados, adorados; numa religião que se assemelha às religiões pagãs. A esse escândalo triste e desnecessário se junta outro, necessário: Confessar Jesus como SENHOR, e tê-lo “à direita do Pai” (...) é o grande escândalo que o Evangelho não pode evitar de ser (1.Cor.1,22.23s; Gal 3,13). • Deus único e soberano – e Cristo Jesus? O autor do livro “Teologia Cristã do Judaismo”, Clemens Thoma, Professor em Teologia Judaística e consultor para questões da relação entre a igreja cristã e o judaismo, escreve quanto à questão da divindade de Jesus (§ 155): Nenhuma cristologia (aquilo que o Evangelho de João desenvolve) deve ignorar uma posição básica do judaismo: A função de Jesus nunca pode colocar em questão a do único Senhorio de Deus. O ex-fariseu e visionário, o Apóstolo Paulo, prestava meticulosa atenção em todas as suas declarações bíblicas quanto a Cristo, procurando sempre confessar o Senhorio de Deus Pai em toda sua cristologia. Podemos demonstrar isso da forma mais propícia em 1.Cor.15,20-28 (leia!). O teólogo Oskar Cullmann vê nesse trecho de 1.Cor.15 uma “declaração cristológica imensamente elucidativa”. Ele considera como extremamente instrutivo o fato de que, em 1.Cor.15,20-28, o último cumprimento final de toda história da Salvação está descrito como “última submissão do Filho sob o Pai...” Aqui está a chave de toda cristologia neotestamentária. Ela só faz sentido por só podermos falar do Filho considerando a obra salvadora de Deus, não o “ser”, não a posição dele. Nessa ação, na história da salvação, o Pai e o Filho são “um” (João 10,30). • Até quando? Franz Rosenzweig (1886-1929), judeu, escreveu a respeito do trecho de 1.Cor.15,28: “Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”; e João 14,6: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”: O cristianismo não reconhece o Deus do judaismo como Deus, mas como Pai de Jesus Cristo. O cristianismo se orienta no “Senhor”, porque sabe que somente Ele é o caminho para o Pai. Ele (Jesus Senhor) continua como SENHOR junto com sua igreja todos os dias até o fim dos tempos, quando, então, Ele pára de ser SENHOR e se sujeitará ao Pai e Este será, então, tudo em todos. 226 Quanto a isso, no que Cristo e Sua igreja significam nesse mundo, nós, judeus e cristãos, temos o mesmo entendimento: Ninguém vem ao Pai, senão por Ele (Cristo) O Israel (de Deus), eleito pelo seu Pai, espreita inflexivelmente, além de todo mundo e toda história, na direção daquele último ponto, muito distante, onde este seu Pai, Ele mesmo, o Um e Único será “tudo em todos”! > Nesse instante, quando Cristo deixa de ser Senhor, > Israel deixa de ser eleito; > neste dia, Deus deixa de ter o nome através do qual somente Israel o conhece: o Eu sou, > e ELE será tudo em todos...” (Final das citações). A visão escatalógica maravilhosa de Rosenzweig contém um pensamento anticristão, válido para o judeu: a constatação de que o cristianismo não reconhece o Deus de Israel como seu Deus, mas somente como Pai de Cristo. Do ponto de vista cristão, podemos corrigir da seguinte maneira: O cristianismo reconhece o Deus do judaismo, mas como Deus e Pai de Jesus Cristo. O Evangelista João escreveu sua Epístola para sua igreja, a igreja do segundo século. Este Evangelho revelou-se Evangelho para toda a igreja e valendo até o fim dos tempos, quando Deus será tudo em todos. O Apocalipse de João, semelhantemente ao seu Evangelho, mostra as duas pessoas: Deus e o Cordeiro. Embora o capítulo 4 enfatize a posição de Deus como Único Deus, como o “Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim”, (22,9-15), ele fala do trono de Deus e do Cordeiro” (22,3). O visionário do Apocalipse não viu até onde o Apóstolo Paulo enxergou; ele escreveu “dentro do nosso tempo”. Quanto à ação salvadora (função) do Cordeiro e a posição de Deus como Deus temos a mesma visão tanto no Evangelho como no Apocalipse. Você percebe como a visão escatológica do “iletrado pescador” João e a do “intelectual ex-fariseu” Paulo não são exatamente a mesma? Lembrese do fato de que, cada uma deles, tinha sua função na história da salvação e a unidade e infalibilidade da Palavra de Deus não está na letra escrita, parcial, no “livro de papel” que temos nas nossas mãos. A infalibilidade da Palavra de Deus está em Deus, que é infalível. A nossa visão e compreensão sempre serão parciais. • Portanto, nunca brigue sobre trechos isolados das Escrituras! São todas partes de um maravilhoso “todo” e perfeito, como o próprio Deus é perfeito. 227 Na continuação veremos o que a Torá significa para o judeu. Para aquele leitor do Evangelho de João que não conhece a função da “Lei de Moisés, o termo “Torá” corre perigo de ganhar uma conotação negativa. Lembre-se: estamos procurando entender o Evangelho dentro do seu contexto, que é um contexto judeu, para mais adiante fazer um resumo daquilo que, definitiva e tragicamente, separava Jesus dos “judeus” e, aparentemente, da Torá. Considerações (II) Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz para os meus caminhos. (Salmo 119,105) A Torá – a Lei de Deus FONTE: Mussner, Franz. Traktat über die Juden. Kösel, München, 1979 Durante o estudo do Evangelho de João, vez e outra temos encontrado Jesus em discussão com os fariseus, questionando as suas interpretações da Lei (Torá). Para que nós, cristãos, entendamos melhor o judaismo e a maneira de pensar do judeu, temos que conhecer a relação entre este e a Lei de Deus. O termo “tõrã” encontra-se 220 vezes no Antigo Testamento hebraico. Torá significa “lei, instrução”. No campo religioso devemos distinguir entre a “Torá de Deus” e “Torá de Moisés”. 2 Crônicas 15,3 (“Israel esteve por muito tempo sem o verdadeiro Deus, sem sacerdote que o ensinasse, e sem lei”), mostra a equivalência da ausência de um sacerdote que ensinava à ausência do próprio Deus e Sua Torá. A Torá sacerdotal era tida como Torá de Moisés; ela era transmitida oralmente e permitia ao leigo diferenciar entre santo e profano, puro e contaminado, sobre Pessach (Páscoa), lepra, nasireu (votos) etc. O sacerdote se orientava pela tradição e instruções escritas no passado (veja 2.Reis,22,8s). Há uma hipótese de que, sob Esdras, a já presente Torá (de Moisés) foi redigida, conhecida e anunciada no seu todo. Em oposição à interpretação da Torá do sacerdote, os profetas Oséias e Jeremias falavam com determinção da “Torá de JHWH” (de Deus). Oséias não mais a via como o conjunto de instruções para o povo, mas como “revelação inteira da vontade de JHWH”, registrada e imutável. Isaías acusava o povo de desprezar a “Torá de Deus” “... porquanto rejeitaram a lei do SENHOR dos Exércitos e desprezaram a palavra do Santo de Israel”(5,24). Jeremias aplica o termo “Torá de Deus” de forma polêmica contra os sacerdotes e o povo (6,19; 8,8). A alegria da “Torá de Deus” sustenta a base dos “Salmos da Torá”, especialmente do salmo 119. Neste salmo, exalta-se a alegria do justo e do piedoso na Torá e que levou à celebração da “Festa da alegria na Torá” logo após a Festa dos 228 Tabernáculos. A piedade da “Torá de Deus“ constante nos salmos está relacionada com o indivíduo, ao contrário da compreensão anterior da Torá como legislação para o povo como um todo. Vejamos alguns versos desse salmo: • • • “Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas” (119,14); “Terei prazer nos teus decretos; não me esquecerei da tua palavra” (119,16); “Com efeito, os teus testemunhos são o meu prazer, são os meus conselheiros”(119,24); “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o dia!”(119,97) e outros mais (versos 47,77,98,105,111,117165,167 e 174). O conceito “Torá” começou a ser relacionado com o nome de Moisés, principalmente no Deuteronômio e nas Crônicas. Ali não mais encontramos mais instruções específicas, mas, sim, a revelação integral da vontade de Deus para Israel. Isso se expressa em termos como “essa Torá (toda) (Deut.1,5;4,8;17,18 etc; assim como “...todas as palavras desta lei...” (17,19;27,3.8.26 etc). A “Torá de Moisés” (a que Moisés nos deu) (1,5;4,8.44) transformouse paulatinamente em “vontade escrita e imutável de Deus”. Nas Crônicas, encontramos a “Torá de Deus” e a “Torá de Moisés” lado a lado. A partir de então, os dois termos aparecem juntos. Aos poucos, o termo “Torá” tornouse sinônimo de todo o Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia, “livros de Moisés”). A tendência para a interpretação casuística crescia. Aquilo que teve seu início com os profetas Oséias e Jeremias e no Deuteronômio, a saber, a visão do conjunto universal da “Lei”, levou ao entendimento de que a Torá se identificava com todo o antigo Testamento, fato esse bem visível nos muitos salmos que cantam a beleza da Torá, da “Lei de Deus”. O termo “Torá”, podendo ser inicialmente visto como instrução, testemunho, decreto, aparece na tradução do Antigo Testamento para o grego (LXX) sempre como “Lei”, o que faz salientar o caráter legalista da Torá. No judaismo antigo, a Torá veio a tornar-se a base para o relacionamento do povo de Israel para com seu Deus. O compromisso, a obrigatoriedade da Lei, sobrepujavam todas as demais instituições religiosas como o Templo, o conhecimento das Escrituras, ou a atividade sacerdotal. O levante dos Macabeus (revolta dos judeus contra a ocupação grega e romana ocorrida durante os dois séculos antes de Cristo) partiu do zelo pela “Lei” e foi ali que um grupo de homens se formou (ganhando o nome de “fariseus”), comprometendo-se a “guardar a Lei”, custe o que custar e com todas as suas consequências. Na época de Jesus, a “Lei” havia se tornado a instância defensiva e separadora contra o movimento helenista, sendo vista como “parede de separação”, capaz de proteger a cultura e a 229 religião judaica num contexto cultural hostil. A civilização helenista como poder secular em Israel representava um real perigo para o judaismo, perigo que tinha de ser enfrentado. O instrumento de maior eficácia para tal era “a Lei”, junto com todo ensino de sabedoria, o que fez nascer a “Toralogia” (Ontologia “Toraica”). A “sabedoria” (que era a “norma” no mundo antigo) passou a sua função cósmica para a Torá. A visão dos fariseus quanto à Torá era essa: (e continua a ser para o judeu fiel até hoje): • A Torá fora criada antes do mundo vir a ser. • A Torá estava com Deus. • A Torá é de procedência divina (lit: a filha de Deus). • A Torá é o instrumento divino para toda a criação. • A Torá traz vida. • A Torá é luz. • A Torá é verdade. • A Torá é o meio de presença de Deus no mundo. • A Torá representa o próprio Deus. Através do processo de evolução do conceito da “Torá”, ela mesma se transformou em magnitude cósmica. Assim como o mundo era regido pela sabedoria de Deus, a Torá era “Lei mundial”, representando a ordem da criação. Assim, qualquer ataque à Torá necessariamente tinha de ser visto como ataque contra a ordem divinamente instituída. Deus não mais fora visto fora, ou melhor, acima de suas ordens (acima da Torá); Ele mesmo se revelava na Torá. A catástrofe nacional (o exílio), no século 6 antes de Cristo, foi vista pelos profetas como consequência das muitas transgressões do povo contra a “Lei de Deus” (Jeremias, Ezequiel). Após as catástrofes nacionais do primeiro e do segundo século cristão, quando os judeus perderam não somente o Templo mas a própria pátria, além de suas festas lhes sobrou somente a Torá como fator de identificação perante às demais nações. Para o sentimento judaico, a Torá não é “letra morta”, mas sim, a legislação de seu Deus que deve ser observada, caso não se queira trazer maldição divina sobre si mesmo. Aliança e Torá nunca podem ser vistas separadas uma da outra. “Nossa Aliança (com Deus) é nada mais do que entender a Torá” (Mekhilta Ex 12,6). “Moisés nos prescreveu a lei por herança da congregação de Jacó” (Deut.33,4). Lei, estatuto e Aliança sempre foram vistos juntos, inseparáveis: “... porquanto transgridem as leis, violam os estatutos e quebram a aliança eterna” (Is.24,5). A Torá não é um fardo; ela é graça. Para o judeu, cumprir as instruções da Torá é consequência de seu relacionamento com seu Deus e que tem sua base na “emunã” e na obediência perante Deus. 230 O comentário de Habacuque 2,4 “... mas o justo viverá pela sua fé” é visto pelos reformadores protestantes como “viver pela fé no Filho” (revelado em Jesus Nazareno). Este verso é lido diferentemente pelo judeu. A palavra traduzida por “fé” é “emunã”. “O justo viverá pela sua “emunã”. O comentário de Qumran diz o seguinte quanto a este verso: “... a intenção da frase vale para todos os cumpridores da lei na casa de Judá, enquanto Deus os salva da casa do juízo por causa de seus sofrimentos e sua fidelidade perante o mestre da justiça (VIII,1). O judeu vê a vida de acordo com a Lei de Deus de modo totalmente diferente do que, muitas vezes, lhe está sendo atribuído pelos cristãos. Ele não vê a vida “debaixo da Lei” como viver debaixo de um fardo pesado, ou como “juntar méritos” ou “esforço a fim de ser honrado por Deus”. A vida debaixo da Torá, até hoje, se define nos elementos fundamentais que fazem a fé judaica: “emunã”, isto é: concretização (da vontade de Deus) nas obras, santificação do dia a dia. O termo hebraico para “fé” (emunã”) significa, em primeiro plano, “confiar, (melhor: julgar Deus capaz de algo). Fé, segundo o entendimento judaico, é a obediência à Torá que Deus deu a Israel e com isso lhe abriu o caminho para a santificação do dia a dia. No pensamento racional judaico, o verdadeiro sentido das instruções da Torá é esse: Quem diariamente e em tudo se submete ao jugo da Lei, desprofana com isso o dia a dia e santifica a vida inteira em todas as suas manifestações. Judaismo é religião da santidade. A Torá, não sujeita ao tempo, se manifesta no tempo e na história (Friedländer H.). “A Lei do judeu abre um caminho de vida de ascese pessoal. Nenhuma parte da existência humana ou do mundo está sendo excluso” (E.Simon). A vida humana não é sem valor ou banal; ela merece ser dirigida consequentemente, até nas suas menores manifestações, sendo desta forma penetrada divinamente. Cumprir a Lei não acontece debaixo do chicote do legislador. A obediência bem compreendida está na felicidade de, através do cumprimento da ordenança divina, poder agraciar o que é temporal com valor eterno. Nisso se baseia a alegria do judeu na Torá: seu prazer no poder cumprir as instruções de Deus. Não se trata de uma mera obediência formal, ética, como nós, cristãos, muitas vezes atribuímos ao judeu. Vejamos como um verdadeiro judeu pensa da obediência à Torá: “Se você tem cumprido a Torá em tudo, não se ufane, pois para isso mesmo você foi criado” (Rabban Jochanan bem Zakkai), Abot II,8b). 231 “O SANTO, Ele seja louvado, procurou apreciar Israel, e para tanto lhes multiplicou as Suas instruções e mandamentos, pois diz: O SENHOR, pela Sua graça, tinha prazer em fazer grande e maravilhosa sua instrução” (Rabi Chanina, filho de Akaschja; Mishna Makkot III,16). Rabi Jehoschua, filho de Levi, disse: “Quem estiver de caminho e sem companhia, ocupe-se com a instrução, pois ela está contigo” Quem tiver dor de cabeça, ocupe-se com a instrução, pois ela diz: “...ela será diadema de graça para tua cabeça” (1,9b). Quem tiver dor de pescoço, ocupe-se com a instrução, pois ela diz: ‘...é colar para teu pescoço (1,9c). Quem tiver dor no corpo, ocupe-se com a instrução, pois ela diz: “...será saúde para teu corpo” (3,8ª). Quem tiver dores nos membros, ocupe-se com a instrução, pois ela diz:’... será refrigério para os teus ossos” (3,8b) etc. Olhando a história, temos que admitir que o povo judeu sobreviveu como nação e religião somente graças à Torá e, baseado nela, pela guarda do sábado. Ainda hoje a Torá tem seu lugar de honra em cada Sinagoga. Os velhos Rabinos pensavam muito sobre o “porquê” a Torá (Lei de Moisés) ter sido dada não na terra de Israel, mas no deserto, no Sinai. A primeira resposta que encontraram, foi: “Para não dar aos povos do mundo um pretexto para dizer: ‘por ser dada naquela terra, não a reconheceremos’”. Outra resposta: “para evitar brigas entre as tribos; para que um não diga: ‘ela foi dada no meu terreno’ e outro: ’não, foi no meu’”. Por isso foi dada no deserto, como bem de todos, publicamente, num lugar sem dono. Em três coisas a Torá foi dada: no deserto, no fogo e na água. Como essas são comuns e gratuitas para todos os habitantes do mundo, assim também (as instruções) serão sem preço para todos os habitantes do mundo (Mekhilta de Ex.20,1, J.Winter). O caminho escolhido por Deus, para poder chegar com suas instruções a “todos os habitantes do mundo”, vemos apresentado no Evangelho de João. Foi o próprio Deus que abriu este caminho. Os fariseus não perceberam a mão divina trabalhando, apesar de toda Torá. Além da cegueira espiritual que o Evangelista lhes atribuiu, fatores humanos como os que conhecemos por experiência própria, trabalhavam juntos: o legalismo; a obediência, tendo em vista recompensas; méritos; a briga entre uma interpretação e outra. Tudo isso já estava presente na época de Jesus. O passo da “alegria na Torá” para o legalismo e o fanatismo era e sempre será curto; assim que a obediência à Lei se torna mais importante do que o próprio Deus, acabamos no legalismo morto. Não é isso que notamos também no cristianismo? 232 Mais adiante, ao termos mais claro em quê o ensino de Jesus era contrário ao dos fariseus (homens dispostos a obedecer à Lei em tudo, custe o que custar), falaremos da morte expiatória de Jesus. Ali faremos outra consideração sobre a Lei, adicional ao Evangelho, tendo em vista a declaração chocante do Apóstolo Paulo, radical e contrária ao entendimento judaico: “... se a justiça (perante Deus) é perante a Lei, segue-se que morreu Cristo em vão”. A finalidade do texto de hoje fora abrir a nossa mente para um entendimento mais profundo do nosso Evangelho, isto é, no seu contexto judaico. Jesus era judeu, observava a Lei, mas viu seu Pai acima da Lei. Dessa aparentemente pequena diferença nasceu o conflito que estamos acompanhando, passo a passo, através da nossa leitura. Foi com base nessa Lei que Jesus fora julgado e condenado. Pense! “... se a justiça é perante a Lei (através do nosso esforço de obedecer), segue-se que morreu Cristo em vão” (Gal. 2,21b). • Permita-me fazer uma pergunta: “em quê se baseia sua justiça perante Deus?” Observação 09 de março de 2008: Notícia de Jornal após um atentado contra uma Escola rabínica em Jerusalém. A escola vetou a visita de condolência do Primeiro-Ministro israelense Olmert, como segue: “Não podemos receber um Primeiro-Ministro que atua contra o espírito da Torá e aceita que Israel se retire de uma parte da terra de Israel”, declarou à radio pública um dos diretores da Instituição, o rabino Haim Steiner. “A Torá nos proíbe formalmente de entregar a estrangeiros uma só polegada da terra de Israel”, acrescentou o rabino, que acusou Olmert de transgredir os mandamentos divinos e exigiu a retomada da colonização da Cisjordânia. Cap. 9.1-7 (9.1) Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença. (2) E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? (3) Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus. (4) É necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. (5) Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. (6) Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicou-o aos olhos do cego, (7) dizendo-lhe: Vai, lavate no tanque de Siloé (que quer dizer Enviado). Ele foi, lavou-se e voltou vendo. Fora dos relatos do Evangelho (Mat.9,27s; 12,22s; 15,30s; 21,14s; Marcos 8,22s; 10,46s; Luc.7,21s e João 9) não se conhece nenhum testemunho de uma cura de cego em toda a Antiguidade (Morris Com.475). 233 A cura da cegueira era tida como impossível; somente uma ação milagrosa de Deus a tornaria possível. O Salmo 146,8 diz: “O Senhor abre os olhos aos cegos” e tal maravilha faz parte da obra salvadora escatológica (das últimas coisas). O profeta Isaías, quando apontava para o futuro redentor, sempre mencionava esse fato. Confira em Isaías 29,18; 35,4s; 42,6s. O texto em Is. 49,6 já liga o que lemos no capítulo 8 de João com aquilo que agora acontece no nono capítulo. Aquele, sobre o qual “repousará o Espírito do Senhor” (Is.11,2; 42,1) é o mesmo que se apresenta como “luz do mundo” (João 8,12). Ele executa a obra escatológica de Deus num cego de nascença. A designação “de nascença” é de origem grega. O hebreu dizia: cego desde o ventre materno. (9.1) Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença. Se entendemos o relato de João como narrativa de algo que aconteceu, não há como perguntar (como o fazem alguns) como é que Jesus sabia que o homem era cego de nascença. Obviamente tratou-se de uma pessoa conhecida. Um cego não tinha opção a não ser a de esmolar sentado, de preferência na proximidade do Templo, onde havia movimento. O Evangelista pressupõe que tanto Jesus como seus discípulos, como veremos logo adiante, sabiam do fato. Jesus não estava sozinho. Seus Doze o acompanhavam, discutindo o caso desse homem. (2) E os seus discípulos perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Como já mencionamos no comentário de 5,14, há uma correlação misteriosa entre doença e pecado. O título “Rabi” (Mestre) nos mostra que o diálogo seguinte se desenvolveu a nível teológico, religioso e Jesus foi consultado como autoridade no assunto. O dilema, teoricamente insolúvel, consiste em que as Escrituras mencionam a advertência divina de que Deus vingará os pecados dos pais nos filhos até a terceira ou quarta geração (Ex.20,5; Deut.5,9; Num.14,33) e, ao mesmo tempo, declaram cada um como responsável por si. A medicina de hoje sabe que certos desvios, vícios por exemplo, alteram a carga hereditária e futuras gerações pagam por isso. Naquele tempo ainda não havia o conhecimento da causa, mas sim, notava-se o efeito. Filhos e netos pagavam pelo pecado de seus pais ou avós. Contra essa aparente e injusta “responsabilização do parentesco” em nome da justiça, os profetas haviam levantado a sua voz, como Jeremias em 31;29-30:” Naqueles dias, já não dirão: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram. Cada um, porém, será morto pela sua iniquidade ; de todo homem que comer uvas verdes os dentes se embotarão”. Em Deut.24,16 a Lei determina que “os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos, em lugar dos pais; cada qual será morto pelo seu pecado”. 234 A questão da misteriosa relação causa/efeito era assunto de intermináveis discussões entre os fariseus. O povo, em geral, considerava as doenças como castigo divino. As pessoas acreditavam que uma enfermidade ou incapacidade física era uma punição de Deus, seja pelo pecado da própria pessoa ou pelo pecado de seus ancestrais, ou então um mal sinistro, causado pelo inferno. As fontes da época sugerem que a doença física era vista como intervenção divina, enquanto a mental sugeria intervenção satânica (possessão). Essa convicção era tão enraizada nos corações que, ao avistar uma pessoa sofredora, um cego ou paralítico por exemplo, tornou-se habitual exclamar em alta voz: ”Louvado sejas Tu, juiz da verdade” (Boor). A questão da capacidade de um embrião pecar, ainda no ventre de sua mãe, era assunto digno de estudos entre os fariseus – pois, quando alguém nascia com defeito, restavam apenas duas opções: ou, o recémnascido havia pecado ou então, necessariamente, seus pais! Especulações essas nos lembram das hipóteses católicas a respeito do “limbo” e do lugar dos recém-nascidos não batizados. Ensinos espíritas quanto à relação obras/sofrimento pertencem à mesma família de raciocínios enganosos. (3) Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus. Jesus não se mostrou interessado em discutir a questão da correlação entre pecado e doença, da mesma forma como o fez em outra ocasião, quando uma construção ruiu e matou dezoito pessoas (Lucas 13,4-5). Ele considerou o caso conforme Sua estrita visão da economia salvadora de Deus. Ao invés de procurar a definição de causa e efeito, Jesus apontou para o alvo: a vontade de Deus nessas circunstâncias. Quando nós nos vemos em dificuldades ou em situações de desespero, bem-aventurados seremos se, ao invés de nos afundarmos na insolúvel questão da equação causa/efeito, aprendamos dizer tal qual Jesus em 11,4: “essa doença (dificuldade) não é para morte ( fiasco ou humilhação total), e sim, para glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado (que a fé em Jesus se revele viva e Ele seja glorificado nessas circunstâncias). De certo modo podemos dizer que, para o cristão, todas as dificuldades se constituem oportunidade para, ou glorificar a Deus ou a desonrar seu nome. Glorificar a Deus é possível quando o nosso olhar continua direcionado para ele. Isso não acontece automaticamente com o crente; a glorificação do Filho consiste no exercício da fé e da obediência. 235 (4) É necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. (5) Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. A sabedoria dos Rabis judaicos conhecia muitos provérbios que recomendam aproveitar o tempo de vida limitada pela certeza da morte. Aqui porém, devemos ver uma ligação com o prólogo (João 1,3: “E disse Deus: Haja luz! E houve luz”), reforçado com 8,12 (“Eu sou a luz do mundo...”). Devemos considerar o plural “nós” no verso 4. Somente mais tarde, no dia da ressurreição, quando lhes soprava o Espírito Santo, Jesus se dirigirá dessa forma aos seus (20,21). O verso seguinte usa o artigo definido quando menciona a noite, que significa uma determinada noite e não “uma noite qualquer...”. Haverá um final escatológico: quando Deus fechar a porta. “Aquela noite” virá para o mundo, mas, enquanto é dia, haverá luz e Jesus estará conosco. Há uma ligação no sentido escatológico da noite com a sentença do verso 1,3 de Gênesis: “... fez Deus separação entre a luz e as trevas” (1,4). Cada início traz consigo a certeza de um fim. A palavra traduzida no verso 5 por “enquanto” deve ser interpretada literalmente, assim como ela está no original significando “toda vez que” (Thyen). Não podemos ver o usual “enquanto” como se, com a morte de Jesus, a luz se apagasse de vez. Pelo contrário, Sua morte abriu a porta para a vinda do “Parácleto” (Espírito Santo = Consolador) e assim, definitivamente, assegurou a permanência dEle com os homens... até que “aquela” noite venha, determinada por Deus. (6) Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicouo aos olhos do cego, (7) dizendo-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que quer dizer Enviado). Ele foi, lavou-se e voltou vendo. O clamor silencioso do cego havia encontrado resposta em Jesus, sem que o homem formulasse qualquer pedido de ajuda. A iniciativa partiu exclusivamente de Jesus, muito ao contrário da cura do cego na saída de Jericó (Marcos 10,46-52) quando Jesus dirigia-se com determinação rumo à Jerusalém e onde foi interpelado pelo cego, de tal forma que teve de interromper sua marcha. Os relatos dos milagres nos Evangelhos não são, como as más línguas dizem, “variações de um tema” que, além do mais, nunca aconteceram na realidade. A falta de qualquer relato paralelo nos Evangelhos sinóticos desse acontecimento do capítulo nono é a prova do que a cura foi testemunhada por alguém que a deixou registrada neste Evangelho. Essa cura é única. 236 Após as advertências aos seus discípulos presentes e justificar seu proceder como a manifestação necessária da glória de Deus, Jesus fez um lodo do pó da terra e sua saliva. Os Rabinos há muito tempo conheciam a saliva como remédio. Segundo a sua tradição, a saliva do primogênito deveria curar a cegueira do pai, mas não a da mãe (Baba Bathra 126b, Bill.II, 15). No entanto, a cura de um cego de nascença era algo fora de tudo do que se tinha conhecimento. Os primeiros “Pais da Igreja” pensaram muito a respeito da relação saliva/lodo. O lodo feito do pó da terra lembrava-os da criação do homem do necessariamente úmido pó da terra (Gen.2,7). Irineu, Bispo de Lyon, na França (125-202), viu na cura do cego desde o ventre materno a ação complementar do Logos naquilo que, no ventre materno, ainda não podia fazer para glorificar a Deus (Adv.Haer 15,2). Após a destruição do Templo (70 d.C.) chegaram notícias aos fariseus, as quais relatavam a cura de um cego por Vespasiano (o novo imperador romano, 69-79), através da aplicação de lodo nos olhos. Então, o Rabi Akiba, líder religioso dos judeus, proibiu aos fariseus que sobreviveram à catástrofe dos anos 70 a aplicação de lodo nos olhos por ser uma “prática mágica dos gentios”. Aquele judeu que continuasse a praticá-la, seria excluído do aeon vindouro, isto é, do Reino vindouro de Deus (Bill, Beasley-Murray, Com 155). Após aplicar o lodo aos olhos do cego, Jesus lhe ordenou que ele se lavasse no tanque de Siloé. O que significa o acréscimo do Evangelista na identificação do tanque “que quer dizer ‘Enviado’”? A água do tanque de Siloé construído por Ezequias (2.Reis 20,20) servia primeiramente para atividades rituais, como a dupla retirada de água diária durante os oito dias da Festa dos Tabernáculos (cap.7). O tanque era abastecido por um túnel subterrâneo com 514 metros de extensão, que trazia a água da fonte de Gihon. A palavra Siloé, em hebraico, significa “enviado, condução ou escoadouro”, o que, à primeira vista, faz referência à própria água do tanque considerada pelos judeus como “viva, doce e abundante” (Josefo). Observando melhor, percebemos que o acrescimo do Evangelista serviu para, discretamente, uma vez mais aplicar o conceito de “enviado” (ao todo nada menos que 28 vezes no seu Evangelho) à pessoa de Jesus. Ele era o Enviado, que se havia apresentado como fonte de água viva (7,38 e 4,13). A cura do cego não estava na água do tanque, mas no Enviado. Assim, a lavagem no tanque (denominado “enviado”) se transforma em metáfora da identificação com Jesus, o Enviado do Pai. O cego se foi, apalpando ou sendo guiado por alguém, até ao tanque e se lavou. Ainda não disse palavra alguma e não havia nenhuma manifestação de fé da parte dele. O que caracterizou o momento foi a 237 autoridade de Jesus, que manifestou a obra de Deus, e a obediência do homem cego. O Evangelista resumiu em poucas palavras: ele foi, lavou-se e voltou, vendo. A partir da próxima leitura, desencadeia-se um longo processo de profundo sentido espiritual, que nos levará a compreender melhor a natureza do homem natural (cego para com Deus) e da fé como sinônimo de “ter aberto os olhos”. • • • Quais são os obstáculos que impedem alguém de crer? Por que alguns creem e outros não? Em que difere a fé inicial da fé madura? Não desista! Continue conosco descobrindo o Evangelho de João! Cap. 9.8-23 (8) Então, os vizinhos e os que dantes o conheciam de vista, como mendigo, perguntavam: Não é este o que estava assentado pedindo esmolas? (9) Uns diziam: É ele. Outros: Não, mas se parece com ele. Ele mesmo, porém, dizia: Sou eu. (10) Perguntaram-lhe, pois: Como te foram abertos os olhos? (11) Respondeu ele: O homem chamado Jesus fez lodo, untou-me os olhos e disse-me: Vai ao tanque de Siloé e lava-te. Então, fui, lavei-me e estou vendo. (12) Disseram-lhe, pois: Onde está ele? Respondeu: Não sei. (13) Levaram, pois, aos fariseus o que dantes fora cego. (14) E era sábado o dia em que Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos. (15) Então, os fariseus, por sua vez, lhe perguntaram como chegara a ver; ao que lhes respondeu: Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e estou vendo. (16) Por isso, alguns dos fariseus diziam: Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado. Diziam outros: Como pode um homem pecador fazer tamanhos sinais? E houve dissensão entre eles. (17) De novo, perguntaram ao cego: Que dizes tu a respeito dele, visto que te abriu os olhos? Que é profeta, respondeu ele. (18) Não acreditaram os judeus que ele fora cego e que agora via, enquanto não lhe chamaram os pais (19) e os interrogaram: É este o vosso filho? Como, pois, vê agora? (20) Então, os pais responderam: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; (21) mas não sabemos como vê agora; ou quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Perguntai a ele, idade tem; falará de si mesmo. (22) Isto disseram seus pais porque estavam com medo dos judeus; pois estes já haviam assentado que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da Sinagoga. (23) Por isso, é que disseram os pais: Ele idade tem, interrogai-o. (8) Então, os vizinhos e os que dantes o conheciam de vista, como mendigo, perguntavam: Não é este o que estava assentado pedindo esmolas? (9) Uns diziam: É ele. Outros: Não, mas se parece com ele. Ele mesmo, porém, dizia: Sou eu. Os quatro episódios, que seguem, são cuidadosamente trabalhados pelo Evangelista e desenvolvem as contendas em volta da cura que acabara de acontecer. Neles fica evidente que os líderes religiosos do povo (que a si mesmos julgaram os únicos possuidores de discernimento espiritual, uma vez que, propositadamente, fecharam seus olhos perante Aquele que é “a luz do mundo”) eram os verdadeiros cegos. Eles foram julgados pelo seu próprio comportamento. 238 Somente agora o leitor do Evangelho está sendo informado do fato que o cego anônimo era um pedinte conhecido na cidade. As opiniões divergentes dos vizinhos quanto à identidade do homem curado não querem dizer que havia alguma dúvida quanto à pessoa dele. O julgamento negativo de alguns, que alegavam haver somente uma semelhança com o pedinte conhecido, tinha sua razão de ser pela sua firme convicção da impossibilidade de uma tal cura. Uma cura desse porte contrariaria toda a sua experiência de vida: portanto, a única explicação razoável seria a de algum engano quanto à pessoa. Como “o que não pode ser, não deve ser” (Morgenstern), a lógica exigia a existência de um equívoco. O comportamento dessas pessoas, que conheciam o pedinte há anos, confirma o fato de que realmente aconteceu algo “impossível”. (10) Perguntaram-lhe, pois: Como te foram abertos os olhos? (11) Respondeu ele: O homem chamado Jesus fez lodo, untou-me os olhos e disse-me: Vai ao tanque de Siloé e lava-te. Então, fui, lavei-me e estou vendo. (12) Disseram-lhe, pois: Onde está ele? Respondeu: Não sei. O diálogo do homem curado com seus vizinhos atesta um relacionamento de certa confiança habitual entre vizinhos. As perguntas são diretas e o homem curado não procura disfarçar em nada. Assim, como afirmava ser ele mesmo o conhecido, relata o que houve. O pedinte cego, enquanto esmolava, já devia ter ouvido rumores sobre um tal Jesus que operava milagres mas, pessoalmente, não o conhecia e Jesus não mais se encontrava no local. A pergunta imediata dos vizinhos: “onde ele está?”, permite-nos perceber que a história toda lhes soava suspeita. Como leigos, não lhes cabia fazer o julgamento do “impossível”. Além disso, era dia de sábado e aquilo que o homem curado relatou, isto é, fazer lodo e aplicá-lo era considerado “trabalho”, portanto proibido de se realizar. Era melhor levá-lo imediatamente à autoridade religiosa para a devida investigação. (13) Levaram, pois, aos fariseus o que dantes fora cego. (14) E era sábado o dia em que Jesus fez o lodo e lhe abriu os olhos. (15) Então, os fariseus, por sua vez, lhe perguntaram como chegara a ver; ao que lhes respondeu: Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e estou vendo. (16) Por isso, alguns dos fariseus diziam: Esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado. Diziam outros: Como pode um homem pecador fazer tamanhos sinais? E houve dissensão entre eles. Somente no verso 16, o leitor está sendo informado do fato da cura ter sido realizada num dia de sábado. Os fariseus, como autoridade religiosa, viam-se responsáveis pela guarda de toda a Lei (Torá) e o povo os respeitava. Competentes em questões da interpretação da Lei, os fariseus imediatamente interrogaram o homem. Por enquanto não se interessaram pelo milagre em si; o que os preocupou fora o modo pelo qual a cura foi realizada. O homem repetiu, com poucas palavras, talvez, e já um tanto aborrecido, aquilo que já havia relatado a seus vizinhos. Parece que, por 239 alguém de fora, os fariseus já tinham sido cientificados de que a cura impossível havia sido feita em dia de sábado. A avaliação desse fato importantíssimo pelos religiosos levou-os a um cisma sério. Indiferentes e cegos pelo que este sinal pudesse indicar, alguns viam “nesse homem” um transgressor da “parede de separação” (veja pág.228, Considerações II), e pela qual a Lei do sábado estava sendo guardada para o bem do povo e o agrado de Deus. Sua conclusão, baseada no legalismo, foi: “esse homem não é de Deus; ele é pecador, pois não guarda o sábado”. Outros opunham-se ao veredicto de seus colegas com o argumento de que “sinais” como esse homem realizava não podiam ser feitos por um pecador: “como um homem pecador pode fazer tamanhos sinais”? O plural “sinais” indica que alguns de entre os líderes religiosos, há um bom tempo, estavam observando Jesus, procurando entender de modo correto o significado dos milagres denominado pelo Evangelista de “sinais”, pois, através deles é que o Apóstolo procurou demonstrar que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus (20,31). Já no capítulo terceiro ouvimos de um desses homens preocupados com a vinda do Reino, e atentos às palavras e obras de Jesus: Nicodemos, um dos “principais” dos judeus. Uma leitura superficial do Evangelho e a costumeira interpretação negativa do termo “fariseu” podem induzir-nos a uma compreensão incorreta. Os fariseus aplicavam a Lei de Deus sem dó e desse modo procuravam poupar o povo da influência desastrosa da cultura pagã imposta pelos romanos. Sua intenção era correta; sua cegueira espiritual, porém, trágica. Aqui vale uma observação. O crente de hoje não corre menos perigo que esses fariseus quando insensível à ação do Espírito de Deus no tempo presente, defende os “versos bíblicos”. A letra não matou só no tempo do Apóstolo Paulo (2 Cor.3,6)! Quando ministrada sem o necessário discernimento espiritual, ela ainda hoje mata, e sua aplicação “cega” espanta as pessoas do caminho, ao invés de atraí-las para Jesus. (17) De novo, perguntaram ao cego: Que dizes tu a respeito dele, visto que te abriu os olhos? Que é profeta, respondeu ele. Como se não pudessem acreditar que o antes cego havia se transformado em alguém que agora estava enxergando, perguntaram novamente “ao cego” (!). Sua formal investigação a respeito da impressão que “este que te abriu os olhos” lhe havia causado levou à simples e clara declaração do homem: “que é profeta!”. Ainda que Jesus certamente é mais que profeta, temos que entender que com Ele surgira um profeta em Israel. Por trezentos anos Israel ficara sem a voz de um profeta até que, finalmente, com João Batista surgiu um, anunciando outro, maior. Que Jesus era profeta, o homem cego experimentou quando se lavou no tanque de Siloé. O mesmo 240 testemunharam a mulher samaritana (4,19) e a multidão saciada com pão em 6,14 (um dos nossos corinhos cantados antigamente nas igrejas, confere a Jesus os títulos de Profeta, Sacerdote e Rei). (18) Não acreditaram os judeus que ele fora cego e que agora via, enquanto não lhe chamaram os pais (19) e os interrogaram: É este o vosso filho? Como, pois, vê agora? (20) Então, os pais responderam: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; (21) mas não sabemos como vê agora; ou quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Perguntai a ele, idade tem; falará de si mesmo. Como já explicamos em outro lugar, o Evangelista usou o termo “judeus” sem distinção exata de quem se tratava na ocasião. O que seguiu era um interrogatório formal dos pais do homem curado pelos “judeus”, neste caso os fariseus. Assim como alguns vizinhos, também os representantes do clero não podiam aceitar o fato de alguém cego “desde o ventre materno” ter sido curado. Semelhantemente ao procedimento em um processo forense foram citadas testemunhas; neste caso, os pais do homem curado. A pergunta quanto à paternidade era fácil de responder. Sim, tratou-se do filho deles. Quanto ao “porquê”, nada sabiam e nada queriam saber. Nitidamente percebemos a aversão dos pais, pessoas simples, e seu medo de serem envolvidos em complicações sem fim. Não queriam ter nada a ver com toda essa história. Que os fariseus se informassem diretamente da pessoa em questão! (22) Isto disseram seus pais porque estavam com medo dos judeus; pois estes já haviam assentado que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da Sinagoga. (23) Por isso, é que disseram os pais: Ele idade tem, interrogai-o. Na época em que o Evangelho foi composto, era obrigatório a cada judeu amaldiçoar os seguidores “do Nazareno”. No ano 85 d.C. (época em que o Evangelho foi composto) saiu publicado oficialmente a nova versão da “Oração dos 18 pedidos”, na qual o judeu diariamente rezava no “Pedido 12” assim: “... que disperses e que sejam aniquilados os Nazarenos e os minim num ai; que sejam apagados do livro da vida, que nada tenham em comum com os justos...”. Através da oração dos 18, que era obrigatória a cada judeu, concluímos que havia exclusão de todos aqueles que confessavam a Cristo Senhor da comunidade judaica e, necessariamente, das Sinagogas. No presente momento em que os pais do homem curado estavam sendo interrogados pelos fariseus, ainda não existia essa ordem oficial. O que havia, era uma instrução interna do clero por vigilância e cuidado perante os seguidores do Nazareno. O Evangelista apontou a seus leitores a origem da condição humilhante que ora sofriam, sendo excluídos da comunidade judaica e amaldiçoados por eles. Ele projetou essa ordem de volta à memorável cura 241 do cego. Desde aquele acontecimento os seguidores do Nazareno eram discriminados. Os pais do homem curado, com medo de serem contados entre os tais, procuravam manter-se longe das investigações. • Como você está sendo visto na comunidade em que vive? Você, semelhantemente aos pais do homem curado, procura permanecer “no anonimato”? • Você tem vergonha de ser contado entre os que confessam Jesus seu Senhor e Salvador? Cap. 9.24-34 (24) Então, chamaram, pela segunda vez, o homem que fora cego e lhe disseram: Dá glória a Deus; nós sabemos que esse homem é pecador. (25) Ele retrucou: Se é pecador, não sei; uma coisa sei: eu era cego e agora vejo. (26) Perguntaram-lhe, pois: Que te fez ele? Como te abriu os olhos? (27) Ele lhes respondeu: Já vo-lo disse, e não atendestes; por que quereis ouvir outra vez? Porventura, quereis vós também tornar-vos seus discípulos? (28) Então, o injuriaram e lhe disseram: Discípulo dele és tu; mas nós somos discípulos de Moisés. (29) Sabemos que Deus falou a Moisés; mas este nem sabemos de onde é. (30) Respondeu-lhes o homem: Nisto é de estranhar que vós não saibais donde ele é, e, contudo me abriu os olhos. (31) Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende. (32) Desde que há mundo, jamais se ouviu que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. (33) Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito. (34) Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a nós? E o expulsaram. (24) Então, chamaram, pela segunda vez, o homem que fora cego e lhe disseram: Dá glória a Deus; nós sabemos que esse homem é pecador. A interrogação dos pais do jovem curado havia fracassado. Mudando de tática e pela segunda vez, os representantes religiosos convocaram o homem “que fora cego”. Com sua áurea de competência e demonstrando superioridade em assuntos de religião, usaram a fórmula habitual no Rabinato que exigia obediência e confissão de toda a verdade. Foi dessa maneira que Josué, séculos atrás, solenemente havia inquirido a Acã (Josué 7,19). Procuraram intimidar o homem, que agora os encarou. “Dar glória a Deus”, para eles, implicava em calar-se; parar de falar de uma tal cura pois, como “nascido totalmente em pecado” - a prova disso eles viam no seu nascimento como cego –, seu testemunho de cura certamente acobertava algum complô contra a verdade. O julgamento do caso, para eles, já fora concluído. Esse homem, Jesus no caso, era um pecador perigoso, pois mais uma vez não havia guardado o sábado ao fazer e aplicar o lodo - atitude proibida no dia de descanso. Agora tratou-se de dar à investigação um ar de justiça e objetividade. 242 (25) Ele retrucou: Se (ele) é pecador, não sei; uma coisa sei: eu era cego e agora vejo. O homem antes cego não mostrou-se impressionado pelo procedimento autoritário daqueles que se julgaram no direito de interrogálo. Com sua nova capacidade de enxergar seus próximos, aprendeu distinguir entre pessoas e com isso descobriu seu próprio “eu”. Ele era capaz de manter-se e defender seu ponto de vista. Nem entrou no assunto “pecador”, acusação ridícula demais para um cego desde o ventre materno e que teve seus olhos abertos. O que lhe valeu era o seguinte: ele era cego e agora via. (26) Perguntaram-lhe, pois: Que te fez ele? Como te abriu os olhos? (27) Ele lhes respondeu: Já vo-lo disse, e não atendestes; por que quereis ouvir outra vez? Porventura, quereis vós também tornar-vos seus discípulos? Os fariseus perceberam que nada podiam levantar contra o jovem curado; assim tentaram, pelo menos, transformá-lo em testemunha contra o acusado, voltando à pergunta feita no primeiro interrogatório (Verso 15): “O que ele (contigo) fez ? Como ele abriu seus olhos?” Demonstrando uma crescente consciência de seu próprio valor e usando da ironia, o homem voltou-se contra seus oponentes (parafraseando): “Já lhes contei tudo, mas parece que vocês não querem entender. Para que ouvir de novo? Porventura estarão interessados em segui-lo também?” Se observamos bem, percebemos como o homem, cego há pouco, discretamente já tomou posição em favor de seu benfeitor. Olhando novamente para a primeira fase do interrogatório notamos que antes testemunhou com alegria perante seus vizinhos, isto é, como o homem chamado Jesus lhe havia aberto os olhos. Perante os fariseus, no entanto, nem mencionou o nome de Jesus, nem falou do “trabalho” dele ou da ordem de ir lavar-se. Somente disse: “Me colocou lodo nos olhos e eu me lavei e fiquei vendo” (15). (28) Então, o injuriaram e lhe disseram: Discípulo dele és tu; mas nós somos discípulos de Moisés. Ao invés de continuarem com a conversa, os religiosos passaram a insultá-lo, usando de toda a sua presunçosa superioridade. Deixando de lado a impressão de uma investigação objetiva revelaram toda a sua animosidade e insegurança ao começarem a desprezar o curado como seguidor de uma pessoa de origem desconhecida – não quanto à família e lugar – , mas quanto à autoridade de Jesus em assuntos espirituais, negando-lhe a qualidade de “Enviado”. “Você é seguidor daquele homem – observe o sentido pejorativo no indicativo! Nós... (no original posto no início da frase), Nós porém, somos discípulos de Moisés! 243 Ao contrário de seguidor “daquele homem”, os fariseus se orgulhavam de serem seguidores de Moisés - autoridade em revelação fora de dúvida! (29) Sabemos que Deus falou a Moisés; mas este nem sabemos de onde é. A Moisés Deus havia legitimado, pois falava com ele. A Torá o afirma por várias vezes (confira Ex.33,11s; Deut.34,10). Eles, os fariseus, estavam de posse das palavras de Moisés, escritas, preto no branco. Ao contrário desse homem que fazia parte da plebe que nada sabe da Lei (7,49), eram eles os intérpretes competentes da Lei. O questionamento da origem de Jesus de acordo com 8,14 é a chave para qualquer compreensão de Sua missão. Há uma conexão de Sua autoridade comparada com a de Moisés. A origem terrena de Jesus (7,27) eles conheciam, e a usaram como argumento contra sua missão de “Enviado”. O julgamento quanto à missão de Jesus estava decidido há muito tempo: como transgressor da Torá era pecador e por isso não podia ser de Deus. Nós que lemos o Evangelho de João sabemos que Moisés testificou e escreveu de Jesus. Não se pode jogar Moisés contra Jesus, uma vez que os dois, mutuamente, dão testemunho um do outro. Vale a palavra em 5,45s: “Não penseis que eu vos acusarei perante o Pai; quem vos acusa é Moisés, em quem tendes firmado a vossa confiança. Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito...” O leitor do Evangelho também sabe que Deus não somente “falou” com Jesus, como foi no caso de Moisés, senão estava falando o tempo todo e que Jesus somente fez o que viu o Pai fazer, e falou o que o Pai lhe estava dizendo, permanentemente. Assim como o Pai, também o Filho era “Senhor sobre o sábado”; pois a manutenção e consumação da criação não permitem nenhuma interrupção (5,17). (30) Respondeu-lhes o homem: Nisto é de estranhar que vós não saibais donde ele é, e, contudo me abriu os olhos. (31) Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende. (32) Desde que há mundo, jamais se ouviu que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. (33) Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito. O interrogado demonstrou cada vez mais audácia. Com escárnio pouco disfarçado mostrou-se surpreso quanto à ignorância dos representantes do clero numa questão tão básica da fé judaica. O termo mais ousado é o plural “sabemos”. Este homem, que em breve veremos isolado e excluído novamente, incluiu esses seus acusadores no povo como um todo, lembrando-os do conhecimento comum e básico de todo judeu: que Deus não atende pecadores, mas sim somente os que O temem e que 244 fazem Sua vontade (Is.1,15; Sl.65,18; 108,7; Pv.15,29; Jó 27,8s e outros). Esse “nós” não está limitado aos que, por ora, disputaram, nem aos judeus; ele atinge todas as nações do mundo. A ironia do texto está em que um homem que, aparentemente, não conheceu as Escrituras, tinha que lembrar àqueles que se julgavam administradores (ou donos) dela, de conhecimentos elementares, isto é, que somente Deus e seu “Servo Amado” - que Ele colocou como luz para o mundo - são capazes de abrir os olhos dos cegos (Is.42,6). Grande era o espanto do jovem curado quanto à ignorância dos representantes da Lei a respeito da origem desse Jesus. Tempo atrás, um desses representantes, Nicodemos, confessou saber o que agora os representantes no caso ignoravam: “Rabi, sabemos (nós, os fariseus) que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (3,2). Agora, um anônimo homem do povo confessou, à luz do dia, o que Nicodemos disse na escuridão da noite: “Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito.” (34) Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a nós? E o expulsaram. A reação dos fariseus à crítica sarcástica do homem curado foi exatamente aquela que seus pais haviam esperado: Tu és nascido todo em pecado e nos ensinas a nós? Os especialistas em religião não haviam aprendido a lição que Jesus, bem no início, havia dado aos seus seguidores, isto é: nem esse homem, nem seus pais, haviam pecado; a criança nascera cega a fim de que nela fosse revelada a obra de Deus. Pelo contexto entendemos que a expulsão não se limitava ao local onde a discussão fora travada. “Expulsão” significava justamente o que os pais do jovem haviam temido: a ratificação da ordem interna de negar aos seguidores de Jesus a convivência religiosa e social judaica. Incapazes de alegrar-se junto com o jovem que antes era cego e agora via, os fariseus revelaram-se os “verdadeiros cegos” – o que Jesus lhes declarará mais adiante. Sob a influência dos fariseus e escribas, a atmosfera entre o povo (no que diz respeito à tolerância perante os seguidores desse Jesus) mudou rapidamente. Os pais do jovem sabiam disso. Enquanto à altura do cap.12,19, considerando a opinião pública favorável, ainda não havia como atacar os “do caminho”, vemos no livro de Atos como isso mudou rapidamente. Caps.4,21 e 5,26 ainda mostram um ambiente favorável; em 7,56 já nada mais impede o apedrejamento de Estêvão e, em 12,1-2, o rei Herodes matou o Apóstolo Tiago “porque assim agradava aos judeus” e, em seguida, encarcerou Pedro. A opinião pública havia mudado e os 245 seguidores de Jesus estavam sendo excluídos definitivamente do convívio nas Sinagogas. É possível que o nosso autor se lembrou de Lucas 6,22 (escrito bem antes do Evangelho de João), onde Jesus declarava “bem aventurado” todos aqueles que, por causa de seu nome, seriam odiados e expulsos: “Bem aventurados sois quando os homens vos odiarem e quando vos expulsarem da sua companhia, vos injuriarem e rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho de Homem” (Lucas 6,22). A ratificação da decisão de expulsão torna claro que “confessar Jesus como o Cristo” não é o mesmo que ver em Jesus o “Messias esperado dos judeus”. Durante os anos 132 – 135 depois de Cristo, milhares de judeus viam em Simon Bar Kochba o esperado Messias e libertador de seu povo e cegamente se submetiam a ele. Rabi Akiba confirmava: “Este agora é o Rei Messias” – baseado na palavra em Números 24,17 (“...uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel, quebra as têmporas de Moab e o crânio de todos os filhos de Set...”). Num último levante militar contra os romanos, Bar Kochba (filho da estrela) conseguiu manter Jerusalém, por três anos, sob seu comando, mas em 135, ele e seus seguidores foram brutalmente eliminados pelos romanos. Os judeus, convencidos de que este seria agora o verdadeiro Messias, nesse ínterim já haviam cunhado moedas com a imagem do Templo (destruído em 70) a ser levantado novamente e sobre ele colocaram a “estrela de Jacó” (veja imagem). Cidade por cidade foi tomada pelos soldados romanos em luta feroz. O último refúgio para Bar Kochba e os seus foi Bethar, localizada a 10 km de Jerusalém. 580.000 combatentes foram mortos e perto de um milhão de mulheres e crianças judias foram massacradas. Foi o último levante do povo judeu. Bar Kochba e seus seguidores ficaram esfomeados e tiveram a água cortada; assim todos eles morreram e nenhum sobreviveu. Em consequência, e definitivamente eliminados como nação, os sobreviventes mudaram o nome de Bar Kochba para Bar Kosiba (filho da mentira). Provas da existência de Bar Kochba e do seu verdadeiro nome, em forma de restos de manuscritos com ordens militares, placas e moedas, foram encontradas numa caverna somente em maio de 1960 e apresentadas ao então Ministro-Presidente David Bem Gurion e ao alto escalão do Governo do novo Israel, em 11 de maio de 1960. Na ocasião, o Prof. Yagin dirigiu-se ao Ministro-Presidente com as palavras: “Excelência, tenho a honra de apresentar-lhe escritos do último presidente da antiga nação de Israel, datados de 1800 anos atrás”. (A.Schick/Prof.O.Beck/Prof.M.Cross em “Jesus e os rolos de Qumran”, Ed.Schwengeler, 1966). Em nenhum momento encontramos nos diálogos do capítulo nono o termo “Messias” (dos judeus). A ordem de segregação e expulsão tem a ver com a confissão do nosso Evangelho, isto é, que Jesus vinha da parte de Deus (confira 20,31). O Logos, o Verbo, era muito mais do que o Messias 246 esperado pelos judeus - um libertador político (uma figura que nunca apareceu, nem aparecerá). Não basta você crer que Jesus era o Messias dos judeus. Jesus era o Messias de Deus (em grego: Cristo de Deus), o Enviado da parte do Pai, para que todas as nações e raças tivessem acesso a Deus por meio de Jesus. (João 1,12-14). Moeda de 162 d.C. sob Bar Kochba / futuro terceiro templo com a estrela Cap. 9.35- 41 (35) Ouvindo Jesus que o tinham expulsado, encontrando-o, lhe perguntou: Crês tu no Filho do Homem? (36) Ele respondeu e disse: Quem é, Senhor, para que eu nele creia? (37) E Jesus lhe disse: Já o tens visto, e é o que fala contigo. (38) Então, afirmou ele: Creio, Senhor; e o adorou. (39) Prosseguiu Jesus: Eu vim a este mundo para juízo a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos. (40) Alguns dentre os fariseus que estavam perto dele, perguntaram-lhe: Acaso, também nós somos cegos? (41) Respondeu-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum; mas, porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado. (35) Ouvindo Jesus que o tinham expulsado, encontrando-o, lhe perguntou: Crês tu no Filho do Homem? Antes, o homem encontrou-se excluído da sociedade por causa de sua cegueira e seu status de “nascido todo em pecados”; agora excluiramno outra vez. A razão da nova discriminação e rejeição era o que ele se tornou vendo – vendo, no duplo sentido. Não somente sua condição física havia mudado e ele podia enxergar seus próximos. Sua condição espiritual também se transformou: ele viu e reconheceu “o sinal”, vindo de Deus. Não sabemos por que caminhos Jesus ficou sabendo do escândalo e da seguinte exclusão do homem da “comunidade dos justos”. Notícias como tais correm rapidamente. No encontro dos dois (se foi proposital da 247 parte de Jesus ou acidental, não sabemos), Jesus outra vez tomou a iniciativa. Ele abordou o homem que ainda não o conhecia de vista. Nas nossas Bíblias encontramos duas versões da pergunta. Lutero traduziu: “Crês tu no Filho de Deus?” A outra versão: “Crês tu no Filho do Homem”, sem dúvida é a forma original da pergunta e aparece na maioria das Escrituras (Exceção: Scofield e King James). O que o título “Filho do Homem”, nestas circunstâncias, nos diz? Sabemos que, no livro do profeta Daniel (7,13), aparece entre as nuvens “alguém como um Filho do Homem”, um ser celestial e, pelo “ancião dos dias” (Deus), lhe está sendo entregue o domínio eterno. Será que Jesus referiu-se a esse misterioso “Filho do Homem”? Observe que tratamos do termo “Filho do Homem” exaustivamente no cap.3,13-15 (releia!) (36) Ele respondeu e disse: Quem é, Senhor, para que eu nele creia? Sabemos de João 5,27 que a Jesus foi dada autoridade para julgar não porque era o “Juiz universal” de Daniel 7,13, mas sim por ser um homem, um ser igual a nós. Se o “Filho do Homem” fosse o ser escatológico de Daniel 7,13, o homem curado não poderia perguntar por ele, pois sua pergunta pressupôs que este Filho do Homem estivesse presente entre eles. Quando Jesus foi questionado, em 12,34-36, a respeito de sua identidade e foi perguntado pelo “Filho do Homem”, Ele se identificou como Luz, estando todos os dias no Templo, ensinando, isto é presente como pessoa humana. O Evangelista João, desde o Prólogo, passando por Nicodemos (cap. 3) até o cap.12, usa o predicado “Filho do Homem” reciprocamente com a “luz”, a “vida”, a “Palavra”, a “glorificação”, o “juízo” e “comida celestial”. Jesus nunca aplicou este título diretamente a si mesmo na primeira pessoa do singular. Quando Jesus perguntou ao homem curado se ele cria no Filho do Homem, Ele não quis saber se o jovem estava convencido da existência do “Filho do Homem”. Ele queria saber se o jovem estava disposto a depositar toda a sua confiança no Filho do Homem presente, na pessoa de Jesus presente. A pergunta contida na resposta dada a Jesus demonstra claramente que o assunto da fé se desenvolve no aqui e no agora. O cego curado não perguntou pelo ser celestial de Daniel 7,13 mas, sim, por alguém presente, junto com ele. Muitas vezes nos é dito que devemos aplicar títulos messiânicos e escatológicos a Jesus, honrando-O desse modo e crer concordando com estruturas dogmáticas pré-moldadas que, às vezes, nem entendemos. 248 Não é desse modo que chegamos a uma compreensão interior do misterioso predicado “Filho do Homem” contido nas Escrituras. Encontramos na literatura abordagens e opiniões muito distintas para esse título. Para chegarmos a entender melhor a identidade do misterioso “Filho do Homem”, devemos observar e aprender com o Jesus homem, sua vida na carne, suas palavras e suas atitudes na interdependência do Pai. (37) E Jesus lhe disse: Já o tens visto, e é o que fala contigo. Diferentemente da mulher samaritana (4,26) com quem Jesus se identificou na primeira pessoa, Ele usou a terceira pessoa do singular quando se revelou ao homem curado da cegueira. Isso corresponde às referências ao “Filho do Homem” em que Jesus sempre usa a indicação na terceira pessoa. “Você o tem perante seus olhos e Ele fala contigo!” O Logos encarnado se manifestou no Ver e no Falar. Assim restou ao homem novamente discriminado uma única resposta: (38) Então, afirmou ele: Creio, Senhor; e o adorou (lit. caiu aos seus pés). O verso 38 e a introdução no verso 39 faltam em alguns manuscritos antigos. O contexto, contudo, não permite admitir (como alguns fazem) que a confissão: “Eu creio, Senhor” fosse somente um acréscimo da liturgia da igreja primitiva. O homem agora está cumprindo o que antes os fariseus dele exigiam: ele deu glória a Deus pelo que vivenciou. O Evangelista João emprega o título “Senhor” sempre para designar a majestade do Enviado de Deus, do Jesus homem presente. O antes cego reconheceu em Jesus, o Enviado, o Cristo de Deus, presente, chamando-o “Senhor” digno de adoração. Nos escritos do Apóstolo Paulo, diferentemente de João, o mesmo título é usado para O Glorificado-Presente (invisível): O Senhor. Quando, pessoalmente, estudamos as Cartas de Paulo e fazemos comparações com o Evangelho de João, devemos nos lembrar desse fato. (39) Prosseguiu Jesus: Eu vim a este mundo para juízo a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos. Encontramos na história do cego curado um princípio básico da teologia joanina e uma inversão radical das nossas ilusões religiosas: os cegos chegam a ver e os que têm a presunção de ver revelam-se cegos para com Deus. A breve conversa com o homem curado deve ter ocorrido em particular, sem a presença dos fariseus. Logo, porém, alguns deles novamente se aproximaram e a eles foram dirigidas as palavras de Jesus dos versos 39 a 41. 249 (40) Alguns dentre os fariseus que estavam perto dele, perguntaram-lhe: Acaso, também nós somos cegos? (41) Respondeulhes Jesus: Se fosseis cegos, não teríeis pecado algum; mas, porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado. A nova intromissão dos fariseus permitiu ao Evangelista ilustrar os acontecimentos em torno da cura com aquilo que já havia dito a Nicodemos em 3,17s: “Deus enviou seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê, não é julgado; o que não crê, já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus”. Onde brilha a luz do mundo, ali aparecem as sombras escuras. Na criação nada foi feito sem a palavra de Deus agora encarnado em Jesus (1,1s). À palavra “haja luz” seguiu a separação entre luz e trevas (1,4). O mesmo “julgamento” das trevas pela luz continua acontecendo permanentemente na obra do Pai através de seu Filho – até no dia de sábado, até hoje. Desde o terceiro século da era cristã os comentaristas do Evangelho de João apontam para o alto teor alegórico nos seus relatos. “Ver” e “estar cego” são conceitos baseados em “luz” e “escuridão”. Fechar-se para com Deus corresponde ao estar na escuridão; aliás, à condição de cego. No Evangelho de João não encontramos o metafórico e o real em mundos distintos; o simbólico e o literal se constituem mutuamente. Nisso consiste a magistral composição do Evangelista. Quando ele escreveu seu Evangelho, ele literalmente creu no que guardou para a posterioridade. Não há como, dois mil anos mais tarde, separar o simbólico do real. R. Bultmann, um teólogo moderno, vê nos milagres relatados no NT somente mitos, não acontecimentos reais. Embora não concordemos com a visão de Bultmann, lembramos de um comentário justo e útil desse famoso teólogo a respeito do que acabamos de estudar nas últimas lições: “Sim, na verdade, todos eram cegos até o presente momento; pois o verso 41 mostra que os que viam eram somente aqueles que presumiram estar vendo, enquanto os que eram cegos até então foram aqueles que sabiam de sua cegueira, assim como estar cego corresponde com o permanecer na escuridão - sendo a única condição antes da revelação (12,46). Porém, todos eram cegos num determinado sentido provisório. Pela vinda da luz ganha tanto o ver quanto o estar cego um sentido novo e definitivo. Nisso consiste o julgamento: os cegos ganham a condição de ver “crendo na luz”, e cuja capacidade de ver não mais consiste no seu poder próprio de orientar-se na presunção de poder enxergar, mas sim em serem iluminados pela revelação. A condição de cego não mais consiste só em vadiar na escuridão, sempre consciente de sua condição de cego e portanto, sempre havendo a possibilidade de cura, mas tendo exata e definitivamente perdido essa 250 possibilidade. Quem não crê está julgado (3,18) e, exatamente na perseverança da presunção de estar vendo, cumpre-se nele o julgamento. Aos que, desse modo, permanecem conscientemente na condição de cegos, vale a palavra de Jesus: “subsiste o seu pecado”. Esse o paradoxo (a aparente contrariedade) da revelação: para poder continuar sendo Graça, tem que consistir em escândalo e assim tornarse julgamento. Para poder ser Graça, ela deve revelar o pecado e aquele que não permite que este seja descoberto insiste nele e, assim, pela revelação, o pecado definitivamente se torna pecado de fato” (com.259f) (Trad.do autor). • Responda para si mesmo: Sua “vista espiritual” lhe foi concedida pela revelação do Filho de Deus? • ou, como você é “muito religioso, você entende “essas coisas” ? Nisso, somente, consiste o julgamento. Cap. 10.1-8 (10.1) Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e salteador. (2) Aquele, porém, que entra pela porta, esse é o pastor das ovelhas. (3) Para este, o porteiro abre, as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. (4) Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe reconhecem a voz; (5) mas de modo nenhum seguirão o estranho; antes, fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos. (6) Jesus lhes propôs esta parábola, mas eles não compreenderam o sentido daquilo que falava. (7) Jesus, pois, lhes afirmou de novo: em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. (8) Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido. A grande maioria dos intérpretes entende o capítulo 10 como continuação imediata da controvérsia anterior. A indiscreta pergunta de alguns dos fariseus presentes (9,40): “Acaso, também nós somos cegos”? levou Jesus à abordagem do mesmo assunto, não mais no simbolismo de “luz” e “escuridão”, mas através de uma história, num assim chamado “dito enigmático” ou “dito figurativo” de uma situação comum na época, numa mensagem claramente dirigida aos fariseus. Ao contrário da fala de Jesus no capítulo nono, esse dito figurativo (erroneamente chamado de “parábola”) dispensava uma interpretação, pois refletia a vida diária do camponês, com todas as suas características. Através do solene “Amém! Amém!” que destaca algo muito importante dentro de um determinado assunto, Jesus partiu para o ataque. 251 (10.1) Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e salteador. A imagem de pastor e de rebanhos de ovelhas era familiar a todos e amplamente usado no Antigo Testamento para definir o relacionamento entre Deus e seu povo através de seus representantes e reis. A situação cotidiana que Jesus expôs nesse dito enigmático serviu para ilustrar, melhor confrontar o bom pastor com o mau pastor, mercenário e ladrão. Vejamos alguns exemplos onde as Escrituras falam: • do bom pastor Salmo 23.1 “O Senhor é meu pastor...”; Salmo 79,13; Salmo 80,1; Salmo 95,7; Ez. 34,15 inteiro; Is.40,11; • da tendência das ovelhas para se desviar e que, portanto, precisam de pastor, Salmo 119,176 e Is. 53,6; • do mal pastor, que apascenta a si mesmo, ao invés das ovelhas (que realidade!) Jer 23,1s; Ez.34,2; Zac.11,16. O aprisco era um curral sem cobertura, situado em campo aberto. Consistia de um quintal rodeado de um muro de pedras brutas de um metro e meio de altura aproximadamente, com uma porta pesada. Conforme o hábito da época, ovelhas de vários proprietários passavam a noite na segurança desse aprisco. A porta ficava vigiada por um porteiro. Um ladrão (determinado a roubar propriedade alheia) ou um salteador (que usaria violência para obtenção de bens cobiçados) não entrariam pela porta, pois essa encontrava-se fechada e vigiada, mas subiriam pelo muro. Após mencionar as particularidades de pessoas que não usam a porta para entrar no aprisco, Jesus altera o foco da história para o verdadeiro pastor e suas ovelhas, situação comum no dia a dia do criador de gado ovino da época, e familiar a todos os seus ouvintes. (2) Aquele, porém, que entra pela porta, esse é o pastor das ovelhas. (3) Para este, o porteiro abre, as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. (4) Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante delas, e elas o seguem, porque lhe reconhecem a voz; (5) mas de modo nenhum seguirão o estranho; antes, fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos. Na situação histórica concreta da qual o nosso “dito enigmático” emana, não há necessidade de encontrar um significado claro para cada detalhe. O que está focado são: o pastor, as ovelhas e os estranhos que fazem o papel de pastor. Não há um significado espiritual claro para o porteiro; ele está presente na história porque, na realidade, ele sempre faz parte da situação. 252 Somente aquele pastor que mantém um relacionamento com suas ovelhas, entra pela porta. O porteiro o conhece e lhe abre o portão quando o pastor, cedo de manhã, vier buscar as suas ovelhas. Tanto na nossa história como na prática, há animais de vários donos no pátio. Como o pastor reconhece aqueles que lhe pertencem? A solução, ainda hoje, é surpreendentemente simples. O pastor chama as suas ovelhas pelo nome e estas reconhecem a sua voz! As que são dele procuram o portão, onde o pastor as espera e o seguem para fora. “... ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora”(3). Esse “conhecer” atribuído às ovelhas do pastor não implica somente no reconhecimento de seu senhorio; ele se revela na confiança plena, fato que as leva à obediência, ansiosa pelo bem que as espera. Jesus lembrou de outro fato conhecido de todos: se um estranho as chamar, nenhuma ovelha se moverá. Pelo contrário, elas se afastarão dele; o medo e a desconfiança natural da ovelha se manifestarão. Até aqui, Jesus não fez nenhuma aplicação direta; o que Ele contou era do conhecimento de todos. Não se trata de uma “parábola”, portanto não havia necessidade de interpretação. O “dito enigmático” se assemelha a um espelho no qual cada um, conforme sua capacidade e vontade (coragem!), pode reconhecer a si mesmo. Jesus não falava de coisas novas ou estranhas para os fariseus quando fez a comparação do pastor com estranhos e ladrões. A Mishna (shanah = “estudo por repetição”), uma compilação seletiva ainda em formação, conhecia quatro tipos de “porteiros/pastores” e define as obrigações da cada um nas mais diferentes situações (Schebuot 8 e Baba Mezia 7). As comparações de um bom pastor com o mercenário e seu relacionamento com as suas ovelhas até faziam parte de seus livros de ensino religioso. (6) Jesus lhes propôs esta parábola (melhor: “dito egmático”), mas eles não compreenderam o sentido daquilo que falava. O Evangelista observa que “eles” (os religiosos) não entenderam o que Jesus lhes queria falar. Não sabiam fazer nada com a imagem da vida pastoral do campo. Como não entenderam, se seu mundo e suas metáforas religiosas estavam repletas de comparações pastor/rebanho? A cada conhecedor das Escrituras era familiar a promessa divina de Isaías 40,11: “Como pastor apascentará o seu rebanho...”. assim como o contraste: “... o boi e o jumento conhecem seu dono, mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende” (Is.3,1). A Palavra também compara a situação dos líderes infiéis e surdos em Is.13,14,53; e Zac,10,2 “...contam sonhos enganadores e oferecem consolações vazias; por isso, anda o povo como ovelha, aflita, porque não há pastor”. Perante tal fracasso, razão da futura extinção da nação, Deus prometeu que Ele 253 mesmo encarregar-se-ia da tarefa de cuidar de seu povo, dando-lhe um pastor segundo o coração de Deus (Jer.3,15; Ezequ.34,11-16; 34,23; Mi 5,3), assim como no passado fez através de Moisés e Davi. Desse modo, os religiosos tiveram todas as condições a seu favor para entender a fala de Jesus. Agora, olhe você mesmo: o entendimento de um fato depende principalmente do nosso posicionamento interior, como vimos no cap.8, não é!? Aquilo que não queremos escutar, não ouvimos! O nosso “ouvir” depende involuntariamente do nosso “EU”. Jesus, já na primeira sentença (10,1) havia questionado esse “eu” dos fariseus. Eles ficaram atônitos! Como eles, venerados líderes e pastores do povo podiam ser comparados a “ladrões e salteadores”? Esse pensamento lhes parecia tão monstruoso que, já de início, fecharam seus ouvidos. Para eles, tudo estava bem estruturado; o “status quo” lhes dava segurança e eles, de maneira nenhuma, almejavam mudanças. Ao contrário “daquele homem”, eles é que haviam entrado pela porta de um bom ensino religioso e, em seguida, sendo aprovados e autorizados oficialmente, receberam seu título de pastor. Se alguém, (assim eles pensavam) não entrou pela porta, era exatamente esse Jesus que, de maneira escandalosa, usurpou a posição de líder e pastor, negando-lhes, como autoridade que eram, qualquer “exame” ou prova (2,18). Assim não se viam em condições nem estavam dispostos a considerar o fato de que Jesus se referiu a eles. (7) Jesus, pois, lhes afirmou de novo: em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Durante os últimos 50 anos, uma infinidade de intérpretes do capítulo 10 de João partem do pretexto de que o autor do Evangelho, neste exato lugar, tenha feito uma fusão entre duas tradições distintas: uma na qual Jesus falava da porta para o aprisco (versos 1-5) e, outra, do pastor e das ovelhas (7-18). O resultado de todo esse esforço deu-se no seguinte: o suposto Evangelista “estragou” toda a “história”, enevoou os termos e impossibilitou uma interpretação correta dos dois supostos textos originais. Ao invés de procurarem o conteúdo do texto, assim como ele está nos manuscritos, eles têm se perdido na busca de supostos originais e da elucidação da intenção de João, quando este, supostamente, juntara as duas tradições. Com os mais recentes e importantes pesquisadores (Thyen, Sänger, Mell, 2005 e 2006) preferimos estudar o texto assim como ele está no nosso Evangelho. As repentinas mudanças nos significados apontam para um consciente desenvolvimento, como é próprio no Evangelista quando, passo a passo, leva seu leitor à conclusão que é suprema em toda sua obra: a identificação de Jesus, ponto central e decisivo da obra. 254 “...eu sou a porta...” A essa altura, Jesus introduziu uma interpretação (exegese) que muda o foco da história contada. O que agora está sendo visado é a legitimação do pastor (não mais das ovelhas, como no trecho anterior). Se somente Jesus é a porta, não há outro acesso às ovelhas reunidas - senão essa porta. Em outras palavras: somente aquele que fora escolhido e chamado e que entrou pela porta, pode ser pastor de ovelhas. O contraste está entre o ladrão e o pastor. Qualquer um que passou pelo muro e alega autoridade sobre as ovelhas é enganador. Há extensa variação na interpretação do verso 8. Para encurtar a discussão há que se dizer somente o seguinte: se lemos o “dito enigmático” (João não registrou nenhuma parábola) como uma parábola, ela necessariamente precisa de uma interpretação. A palavra de Jesus quanto à porta faz parte dessa explicação, ela não é parte de uma fala reveladora, mas sim, faz parte da elucidação da parábola. Somente se o verso 8 não se encontrasse no Evangelho de João, com suas concretas revelações do “ani hui”, do “EU SOU”, e se o sujeito não fosse o próprio Jesus afirmando cujas afirmações sempre foram concretizações da fórmula bíblica e não interpretações de qualquer designação sagrada oriental - , somente então poderíamos entender que, na presente história, trata-se de uma parábola. Na história do pastor aparece por quatro vezes a identificação “Eu Sou” de Jesus como elemento usado na narrativa (verso 7 em paralelo com o verso 8; verso 11 em paralelo com o verso 12). Portanto, estamos diante uma fala reveladora, embora enigmática. A palavra no verso 11 nos parece realizar a mais clara identificação: o nome revelador do EU SOU (eu sou o bom pastor, veja mais adiante ). (8) Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido. À primeira vista, essa afirmação soa estranha. Nem se deixarmos por fora as três palavras (“antes de mim”) – que faltam nos importantes manuscritos “Koiné” e “Sinaíticos” – podemos entender a afirmação categórica de Jesus. O próprio plural constante em “vieram” já inclui os de “antes”. Será que Moisés, Davi ou o próprio João Batista eram “ladrões” e desclassificados para cuidar do povo de Deus? Mesmo se considerarmos que a voz profética em Israel, com Malaquias emudeceu em 450 a.C., não entendemos a afirmação de Jesus. O erro consiste em lermos esse trecho (igual a muitos dos modernos intérpretes) como alegoria, isto é, como uma fala cifrada a respeito de objetos reais. O erro está na interpretação historiada (colocada na história) e assim julgada. Temos de ouvir e entender todo o dito enigmático na sua lógica metafórica: Como era o dia a dia do pastor? Jesus apresentou-se como o pastor. A primeira tarefa de um pastor era dirigir-se ao aprisco, cedo, pela 255 manhã, antes do nascer do sol e entrar pelo portão vigiado pelo porteiro (verso 2). Portanto, todos que antes dele vieram, de qualquer lugar obscuro e na proteção da escuridão da noite, vieram para roubar, pulando o muro! A prova dessa conclusão está no quando Jesus diz: “são ladrões” – e não “eram ladrões”. Jesus estava falando da situação atual na qual se encontrava. Estava pensando nos homens de seu tempo, daqueles que agiram sem ele ou contra ele, alegando serem os únicos pastores e líderes autorizados do povo. Como judeu fiel, Jesus viu que os líderes religiosos, os seus pastores, arbitrariamente manipulavam o povo como os ladrões que pulavam o muro. Estamos perante uma realidade inquietante, pois sabemos que nas igrejas de Deus há gente que trabalha com entusiasmo, com grande autoestima, vendo-se e considerando-se pastor, mas sendo julgado “ladrão e salteador” por Deus. Somente pela porta se pode chegar ao rebanho, ao “povo de Deus” e, como tal, reconhecido por Ele. Nenhuma doutrina, por mais reta que seja, é porta para o ministério. Jesus mesmo, sua pessoa, seu Espírito, seu amor, são a “porta”. Na pessoa de Jesus é que se decide quem é pastor e quem não o é. Nenhuma votação de Assembleia Geral de sua Igreja necessariamente decidirá quem é pastor conforme a visão de Deus. Para Deus não valem meios democráticos, não vale o voto da maioria, mesmo se a lei desse mundo nos obriga a proceder dessa maneira. Lembre-se disso quando você levanta uma candidatura para a eleição de pastor! “... mas as ovelhas não lhes deram ouvido.” Tudo que vemos parece contradizer a palavra de Jesus. Cada vez menos pessoas O seguiam, ao ponto dEle consultar seus Doze: “Vocês também querem ir”? Os fariseus e escribas, tanto naquele tempo quanto no tempo de hoje, estão em alta consideração. Não parece que o mundo todo corre atrás deles? Não se contam em milhões os crentes, quando aparecem as pessoas que se autodenominam “bispos”, “Apóstolos” e “pastores” das ovelhas? • Seu “pastor” entrou pela porta ou – pulou pelo muro?! Cap. 10.9-18 (9) Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem. (10) O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (11) Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. (12) O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. (13) O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. (14) Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, (15) assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai; e 256 dou a minha vida pelas ovelhas. (16) Ainda tenho outras ovelhas, não desde aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor. (17) Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. (18) Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandamento recebi de meu pai. Até o presente momento, a fala de Jesus teve como figuras centrais o pastor e seus adversários. Agora, o foco passa para a condição da ovelha e sua segurança em entrar e sair do aprisco. “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo”. Entrar pela porta significava para as ovelhas encontrar segurança para as horas da noite, enquanto fora do aprisco andavam o lobo e outras feras do campo à procura de comida. Entrar pela porta podemos interpretar como o iniciar da vida cristã. Não por nascimento, por costume ou pela tradição, nem por sacramento (batismo) passamos a fazer parte do rebanho; somente ao “entrar pela porta”, que é Jesus, nos tornamos parte do rebanho! Pode, sim, haver uma infinidade de caminhos até a porta; a variedade e a originalidade na história das pessoas com Deus são impressionantes. Há, sim, muitas maneiras para chamar atenção para a porta, mas existe somente Uma porta que leva ao aprisco. Não há várias portas para a vida. Há somente uma – e passar por ela equivale a delegar toda a nossa confiança na pessoa de Jesus. Entrar pela porta significa o começo, o “novo nascimento”. A porta, porém, serve também como saída. Por ela, a ovelha sai e encontra pastagem. Durante toda a sua existência, as ovelhas, a cada dia, entram para encontrar segurança e diariamente saem a fim de encontrar alimento. Enquanto a ovelha vive, não importando sua idade ou experiência, ela somente encontrará pastagem enquanto segue ao pastor para fora. Nenhuma ovelha descobre e explora o campo por conta própria. Um certo Simonis procurou interpretar o “sair do curral pela porta, que é Jesus” como analogia à saída dos não judeus (pagãos) do aperto opressivo que os cristãos de origem gentia encontravam na comunidade judaica – um processo histórico que teve seu lugar durante a época da compilação do Evangelho. Não cremos que essa analogia ao Êxodo seja o que o Evangelista procurou lembrar. (10) O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. O “sair” e encontrar pastagem na presença do pastor acontece sob constante ameaça. Enquanto os falsos pastores (na igreja de todas as épocas) procuram seus próprios interesses, engordando ao custo das ovelhas (processo em que vale “matar e destruir”), as ovelhas sob a responsabilidade do verdadeiro pastor encontram alimento em abundância. O acontecimento recente com o homem curado da cegueira e 257 o tratamento cruel dado a ele e a seus pais serviam como ilustração. A ovelha não encontrou pasto, ... foi expulsa. (11) Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. (12) O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. (13) O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. Os versos 11 – 13 devem ser considerados no seu amplo contexto. Se Jesus falou do “bom pastor”, Ele deve ter pensado no contraste que as Escrituras do Antigo Testamento desenharam entre o “bom pastor” e aquele que unicamente está preocupado com sua vida regalada e seu próprio lucro. A maior afinidade da palavra profética com a fala do bom pastor em João 10 devemos encontrar em Ezequiel 34. Com esse trecho em mente, abre-se a compreensão das palavras de Jesus. Para facilitar o estudo, mencionamos a passagem de Ez.34: “Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetize e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não apascentarão os pastores as ovelhas? Comeis a gordura, vesti-vos de lã e degolais o cevado; mas não apascentais as ovelhas! A fraca não fortalecestes, a doente não curastes, a quebrada não ligastes, a desgarrada não tornastes a trazer e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza. Assim, se espalharam, por não haver pastor, e se tornaram pasto para todas as feras do campo. As minhas ovelhas andam desgarradas por todos os montes e por todo elevado outeiro; as minhas ovelhas andam espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou quem as busque. Portanto, ó pastores, ouvi a palavra do Senhor: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, visto que as minhas ovelhas foram entregues à rapina e se tornaram pasto para todas as feras do campo, por não haver pastor, e que meus pastores não procuraram as minhas ovelhas, pois se apascentam a si mesmos e não apascentam minhas ovelhas, - portanto, ó pastores, ouvi a palavra do Senhor: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu estou contra os pastores e deles demandarei as minhas ovelhas; porei termo no seu pastoreio, e não se apascentarão mais a si mesmos; livrarei as minhas ovelhas da sua boca, para que já não lhes sirvam de pasto. Porque assim diz o Senhor Deus: Eis que eu mesmo procurarei as minhas ovelhas e as buscarei. Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em que encontra ovelhas dispersas, assim buscarei as minhas ovelhas ; livrá-las-ei de todos os lugares para onde foram espalhados no dia de nuvens e de escuridão...Apascentá-las-ei de bons pastos, e nos altos montes de Israel será a sua pastagem e terão pastos bons nos montes de Israel...A perdida buscarei, a desgarrada tornarei a trazer, a quebrada ligarei e a enferma fortalecerei; mas a gorda e a forte destruirei; apascentá-las-ei com justiça...suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu bom servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor.... Já não servirão de rapina aos gentios, e as feras da terra nunca mais as comerão; e habitarão seguramente, e ninguém haverá que as espante...Vós, pois, ó ovelhas minhas, ovelhas do meu pasto; homens sois, mas eu sou o vosso Deus, diz o Senhor Deus (Ez.34,112.14.16.23.28.31) Considerando também as palavras em Zac.11,7-15, vemos que Jesus, de modo inequívoco, identificou-se com “o bom pastor ... único...conforme meu servo Davi “ prometido por Deus e apascentando em o nome de Deus. 258 O bom pastor dá a vida pelas ovelhas! – Esta única e inconfundível característica identifica o “bom pastor”. Será mesmo? A palavra traduzida por “vida” significa “näphäsch” no hebraico e “psyche” no grego. Ela tanto permite-nos entender que o bom pastor dá sua vida, bem como sua “alma”, pelas suas ovelhas. Se lemos (somente) “vida” (como aparece na maioria das traduções) teríamos de aceitar que Jesus somente fora o “bom pastor” na hora da sua morte na cruz ou através de sua morte. Se, porém, olhamos para o que o Evangelista diz na sua “Primeira Carta” em 3,16 (que devemos dar nossa vida pelos irmãos) ele, com certeza, não quis dizer que devamos morrer uns pelos outros. A “vida” (psyche”) engloba mais; ela abrange toda a nossa empreitada de vida, tudo que somos e temos. Numa entrega assim, a morte, sim, pode ser a última perfeição. A obra de Jesus como nosso “bom pastor” consiste na luta incessante e radical em favor das ovelhas, sempre em perigo de serem desviadas e mortas pelos “ladrões e salteadores”. O contrário do bom pastor, representado por Jesus, é o mercenário (“misthotos”) que, por um certo salário é contratado para cuidar das ovelhas. Essas não lhe pertencem; portanto, o mercenário não tem um interesse genuíno por elas. Cuida delas, providenciando comida e proteção, mas de forma nenhuma está comprometido em dar sua vida em troco de um miserável salário. Não podemos nem esperar dele outra atitude além da de fugir, quando a ameaça coloca em perigo sua própria vida. “O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. (13) O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas” Ainda não entendemos a lógica do Evangelista quando este declara que, dando sua vida, um bom pastor cuidaria das ovelhas. A dissonância do argumento, transportada para a realidade, fica evidente: um verdadeiro bom pastor, para o bem de suas ovelhas, faria melhor em preservar sua própria vida e não ofertá-la por causa de algumas poucas ovelhas. Se o pastor morrer, todas as demais ovelhas estarão condenadas. Onde está o suposto erro de avaliação? Lembremos que o Evangelho todo foi composto com a finalidade eclesiológica (em favor da Igreja). O conhecimento íntimo e recíproco entre pastor e ovelhas na história contada reflete o conhecimento íntimo e recíproco entre Pai e Filho, tendo sua mais elevada demonstração na entrega da vida do Filho, na cruz. O Evangelho todo, desde as primeiras palavras, foi composto olhando a partir da cruz (da glorificação) e visando a cruz, o apogeu da história do Pai com o Filho (João 1, 10-12). 259 (14) Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, (15) assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. No Evangelho sinótico de Marcos (11,17) lemos que Jesus, para o desgosto dos principais sacerdotes e escribas, havia reivindicado o Templo como lugar para “todas as nações” (lit.gões= pagãos) e suscitado com essa declaração o ódio mortal por parte dos religiosos. Nas palavras do Evangelista João encontramos na boca do pastor uma conclusão semelhante. (16) Ainda tenho outras ovelhas, não desde aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor. Teria sido possível aumentar ainda mais a fúria do clero do que com essa declaração secundária? O salmo 95,7 não declarava ao judeu categoricamente: “Ele é o nosso Deus, e nós, povo de seu pasto e ovelhas de sua mão” – ou “...foi ele que nos fez, e dele somos; somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio” (100,3)? A ideia da exclusividade de Israel, vista em algumas profecias do Antigo Testamento, já fora corrigida por Isaías (42,6 e outros). Israel havia de se transformar em “luz para os gentios”. Em oposição a Deut.23,2s, proclamava o livro do profeta Isaías a futura abertura da comunidade do povo de Deus para antigos gentios e bastardos (Is.56,7)! A inclusão de outras ovelhas de outros apriscos está sendo enunciada por Jesus como um direito ainda a ser exercido (“a mim me convém...”). Conforme 12,20-28, a realização da glorificação do Filho será a condição para tal unificação. “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” (12,24; 17,20). Para essas ovelhas, bem como para as demais, vale o paradoxo de que somente a sua voz fará deles escolhidos, enquanto ao mesmo tempo, somente serão capazes de segui-lo como escolhidos. Essa relação nunca poderá ser dividida em ontologia de causa/efeito, como todo o ensino da “predestinação”. Ela faz parte do mistério da salvação. (17) Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. (18) Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandamento recebi de meu pai. Surpreendentemente Jesus não disse: “O Pai me ama porque eu dou a minha vida”, mas sim, “... a dou para a reassumir”. Tanto o morrer como o reassumir a vida estão contidos na obediência ao Pai. Ainda para 260 acontecer, a morte já estava certa, porém, não debaixo de pressão. A morte de Jesus será o Seu feito, parte de Sua obediência. O amor do Filho para com seu Pai está contido no fato de Jesus não morrer para ficar sem vida, mas, sim, para reassumi-la; passar pela morte - salário inevitável do pecado desde Adão. A obediência de Jesus trará a vitória sobre a morte. Na visão de João, a morte de Jesus consiste na oferta voluntária dela. Não como mera demonstração de poder, mas para poder trazer ao aprisco ovelhas de outro curral. “A mim convém trazer outras ovelhas...” (16). Assim, a morte do bom pastor ganha seu sentido. Já em outro lugar Jesus falou desse ato, quando disse em 5,26: “assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo”. Obra e luta de Jesus tem sido sempre em favor de seu povo: Israel. Lembremos que Jesus estava falando como judeu a judeus. Nunca projetemos ideias e conceitos cristãos nas Suas palavras!! Até a sua morte, Jesus manteve sua fidelidade de judeu para com seu povo Israel. Morreu como “rei dos judeus”, denominação sarcasticamente eternizada por Pilatos através da inscrição na cruz. Jesus estava falando como profeta quando, como “o bom pastor de Israel”, incluiu outros na sua missão: os “de fora da parede da separação”, (da Torá), aqueles que até então estavam “separados da comunidade de Israel e estranhos à aliança da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo” (Ef.2,12 nas palavras de Paulo). Toda essa missão estava ligada intimamente com a cruz, com o sacrifício, com a morte do bom pastor em favor de suas ovelhas. Não devemos rebaixar as palavras do verso 17: “por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir” para o nível trivialhumano. Nesse seu sacrifício, o amor do Pai se tornou real – quando não vingou a morte de seu Filho nos homens – mas a aceitou como sinal de obediência e amor do seu Filho. A união entre Pai e Filho desde a eternidade passada, desde a fundação do mundo, não permitia que um dEles tratasse o Outro como mero objeto. • Você entende o que a morte do pastor das ovelhas lhe trouxe? “Mas Deus prova seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Ro 5,8). 261 Cap. 10.19-42 (19) Por causa dessas palavras, rompeu nova dissensão entre os judeus. (20) Muitos deles diziam: Ele tem demônio e enlouqueceu; por que o ouvis? (21) Outros diziam: Este modo de falar não é de endemoninhado; pode, porventura, um demônio abrir os olhos aos cegos? (22) Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação. Era inverno. (23) Jesus passeava no Templo, no Pórtico de Salomão. (24) Rodeavam-no, pois, os judeus e o interpelaram: Até quando nos deixarás a mente em suspenso? Se tu és o Cristo, dize-o francamente. (25) Respondeu-lhes Jesus: Já-vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço em nome de meu Pai testificam a meu respeito. (26) Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. (27) As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. (28) Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. (29) Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. (30) Eu e o Pai somos um. (31) Novamente, pegaram os judeus em pedras para lhe atirar. (32) Disse-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas da parte do Pai; por qual delas me apedrejais? (33) Responderam-lhe os judeus: Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo. (34) Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses? (35) Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar, (36) então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: Sou Filho de Deus? (37) Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis; (38) mas, se faço, e não me credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai está em mim, e eu estou no Pai. (39) Nesse ponto, procuravam, outra vez, prendê-lo; mas ele se livrou das suas mãos. (40) Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde João batizava no princípio; e ali permaneceu. (41) E iam muitos ter com ele e diziam: Realmente, João não fez nenhum sinal, porém tudo quanto disse a respeito deste era verdade. (42) E muitos ali creram nele. (19) Por causa dessas palavras, rompeu nova dissensão entre os judeus. Já por duas vezes (7,43 e 9,16) houve um cisma (divisão), uma dissensão entre os ouvintes. Quem, livre de pressuposições, havia avaliado as palavras de Jesus, não via nelas sinais de doença mental ou de blasfêmia. Todos porém, que vieram ouví-lo com pontos de vista definidos, tiveram que constatar que a fala do Nazareno continha dinamite. A fala de Jesus no seu “dito enigmático do pastor” consistia numa revelação, e como isso não podia deixar de provocar uma crise de consciência nos seus ouvintes. Como veremos, este foi o último “sermão público” (se assim podemos dizer) de Jesus relatado por João, trazendo como resultado a radicalização definitiva. (20) Muitos deles diziam: Ele tem demônio e enlouqueceu; por que o ouvis? Em lugar nenhum o Evangelista João mencionou o exorcismo como uma das atividades de Jesus. Demônios não eram assunto para João. Entre os ouvintes de Jesus havia quem simplesmente o descartou como “enlouquecido” (dos quais nunca haverá falta) conforme as acusações já feitas em 8,48 e 52 e também relatadas por Marcos (3,21). (21) Outros diziam: Este modo de falar não é de endemoninhado; pode, porventura, um demônio abrir os olhos aos cegos? 262 Os mais ponderados entre os religiosos, pensando bem, não viam sinais de possessão demoníaca. Para eles, o feito com o homem cego desde o ventre materno os havia deixado pensativos. Eles se lembravam daquela cura impressionante ocorrida algumas semanas atrás. (22) Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação. Era inverno. Enquanto a cura do cego, com a controvérsia que a seguiu e a história do bom pastor pertencem à época da Festa dos Tabernáculos ou pouco depois, encontramo-nos agora na semana da “Festa da Dedicação”, dois meses mais tarde. O que, historicamente, estava separado por 60 dias aproximadamente, encontramos no relato de João separado por umas poucas linhas somente. Não sabemos se Jesus, nesse intervalo (que corresponde ao período entre outubro e dezembro), havia retornado à Galileia ou permanecido na região da capital. A “Festa da Dedicação” remontava à purificação e rededicação do Templo por Judas Macabeus no ano 165 a.C., três anos após o Templo ter sido profanado por Antíoco Epífanes com a intenção de humilhar os judeus e ridicularizar sua religião e seu culto (1.Mc.4,36s; 2.Mc.1,9s;10,1s). Esta festa não fazia parte do calendário festivo da Lei, mas mesmo assim, tratava-se de uma festa alegre de oito dias de duração, marcada pela iluminação das habitações. Por isso, também era chamada “Festa das Luzes” e continua sendo lembrada nas casas, até hoje, através do candelábrio, denominado Chanukká, de oito braços. A Festa reunia muita gente na capital. (23) Jesus passeava no Templo, no Pórtico de Salomão. Era época das chuvas. Assim não é de admirar que Jesus estivesse andando sob a colunata ao longo da parede oriental do Templo, tida como única parte remanescente do Templo original de Salomão. Por causa disso era chamado “Pórtico de Salomão” (Josefo, Antiquitates XX 9,7 § 220s). Esse mesmo lugar servirá mais tarde (cf. Atos 5,12) como lugar de encontro à primeira Igreja judaica-cristã. O “Segundo Templo” (esse que Jesus conhecia) foi destruído completamente em 70 d.C. (quarenta anos após o episódio ora relatado) por Tito, general do exército romano encarregado de dar fim definitivo a esse culto considerado “primitivo e ultrapassado” pelos romanos e visto como responsável pelas constantes rebeliões contra o poder do Império Romano. (24) Rodeavam-no, pois, os judeus e o interpelaram: Até quando nos deixarás a mente em suspenso? Se tu és o Cristo, dize-o francamente. O contexto deixa evidente que esse “rodear” tinha o caráter de uma confrontação. A paciência com as palavras aparentemente desconcertantes de Jesus esgotou; agora, “eles” exigiam uma definição clara e inequívoca. Jesus devia abandonar sua incompreensível contenção quanto à definição de sua missão. Agora, ou finalmente convocava seu povo como o tão esperado Messias para a luta em favor da liberdade e grandeza do povo 263 israelita (como o fez mais tarde Bar Kochba), ou silenciava de vez. Era hora de arrancar-lhe a palavra decisiva. De qualquer maneira, essa palavra final lhes serviria de arma contra Ele próprio, caso surgisse perigo da parte dos romanos. Caso se declarasse “O Ungido” (o Messias), todas as promessas proféticas da Torá deixariam de serem histórias; tornar-se-iam presença, exigindo obediência ilimitada de toda nação de Israel e, mais, de toda a humanidade, pois tudo lhe seria por Deus colocado nas suas mãos. Mas, caso tivesse tal ousadia, qual seria a prova para tal reivindicação, negada já por duas vezes?(Mat.16,1; Marcos 8,11; Luc.11,16; João 6,30) (25) Respondeu-lhes Jesus: Já-vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço em nome de meu Pai testificam a meu respeito. (26) Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. (27) As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Em circunstâncias totalmente diferentes, Jesus havia se declarado ser o esperado “Ungido”. Foi em conversa particular, de coração aberto com uma mulher (4,25s). Agora, a situação era outra. Em caráter de ameaça, “os judeus” (neste caso os representantes do clero) exigem uma definição. Como resposta, Jesus apontou às obras feitas em o nome do Pai; Ele não declarou aquilo que fora exigido. Ele respondeu no nível da fé. Não devia nenhuma explicação ao clero e, assim, não lhes ofereceu “uma ponte”, através da qual religiosos pudessem chegar a compreendê-lo. Que diferença, se nos lembrarmos da mulher samaritana ou do homem curado da cegueira, onde, pacientemente, passo a passo, Jesus lhes havia aberto o caminho até à identificação. O caso desses “judeus” era diferente. Chegaram a Ele exigindo, tendo por base a Lei; e nessa base foi que Jesus não lhes respondeu. Por que não? Eles não faziam parte das ovelhas, propriedades suas. Jesus não lhes devia satisfação nenhuma. Em João 6,37. 44 e 65 vemos o motivo que livrou Jesus da obrigação de dar satisfação aos que o interrogaram. Este era o segredo da segurança e da calma com que Jesus trilhava seu caminho em direção à paixão. Esses especialistas teológicos não podiam nem ouvir nem observar, porque Deus não os trouxe (confira 6,44) e porque eles eram cá desse mundo (8,23); portanto não pertenciam às suas ovelhas. Sem este pensamento joanino da predestinação não podemos nem desenvolver nem entender o ensino dogmático contido no seu Evangelho: a reunião e unificação dos que a Ele pertencem aqui na terra. A visão da predestinação por João não entrega o homem a uma decisão metafísica (e incompreensível), tomada antes da fundação do 264 mundo; ela acontece na liberdade escatológica do indivíduo perante o anúncio da mensagem de Cristo. Talvez você tenha observado um pensamento que, aparentemente, não parece ser uma solução lógica, um círculo fechado. Esses judeus não criam porque não eram suas ovelhas; porém, não tinham desculpa, pois não eram ovelhas porque não criam. – Crer não é algo que eu possa a qualquer hora quando assim o quiser. Antes de ouvir “como que o discípulo ouve” (Is.50,4), Deus tem que me abrir os ouvidos! Assim, abre-se o círculo. É por isso que chamamos o início da fé de “Novo Nascimento” (João cap. 3). “ Nadar só se aprende nadando – e andar também” (Schlatter). (28) Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. (29) Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. (30) Eu e o Pai somos um. Como num monólogo e não mais como uma resposta direta a seus oponentes, e como quem procura alegria e força numa outra esfera, Jesus desenvolveu o pensamento quanto às ovelhas, propriedades dele, ligadas a ele através de uma confiança mútua. Tão pouco como a incredulidade dos judeus o perturbou, a condição de suas ovelhas lhe pesou. Pois, do mesmo modo como ovelhas estranhas não podiam encontrar o bom pastor (para serem salvas), as suas não podiam correr o perigo de perder-se, pois o Pai as preservava. Tudo isso está fundamentado na vontade do Pai, maior do que qualquer inimigo e “Um com Jesus”. Os versos 29 e 30 estão intimamente ligados. À primeira vista parece que “aquilo que o Pai me deu” (as minhas ovelhas) fosse maior do que tudo, contradizendo o fato do Pai ser maior que tudo. Há pequenas diferenças nas palavras acima nos diversos manuscritos, mas que em nada alteram o sentido; portanto não os consideremos. A unidade de Pai e Filho está exatamente nisso: aquilo que o Pai deu nas mãos de Jesus e que nessa sua mão descansa é maior do que tudo, “pois o Pai e eu, somos Um”. Nas duas frases, em 29 e 30, vemos de modo inconfundível a profecia de Ez.34,23s confirmada em Jesus como o único pastor, suscitado por Deus para apascentar o seu povo. A questão da Unidade de Pai e Filho tem causado muita conversa inútil. O neutro “UM” já fala da unidade de distintos. “UM” não é o mesmo que “UM SÓ”. Não podemos afirmar que Deus Pai (Espírito, conforme João 4,24) e o homem Jesus de Nazaré, como seu Logos encarnado, fossem o mesmo. A Unidade na diversidade é explícita também com Paulo na metáfora do corpo com seus membros, e assim vale para o relacionamento dos discípulos, pelos quais Jesus pediu: “... Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos” (João 265 17,22). Essa unidade do Pai com o Filho não pode ser definida como existente somente no nível moral, nem metafísico, e menos ainda místico. Temos a demarcação negativa, como dissemos: nem moral, nem metafísica, mística ou mitológica. Ela, em si, não é suficiente. Precisa não só da definição negativa, mas da complementação positiva na questão do “em quê” a Unidade de Pai e Filho poderia ser descrita ou vista. Desde o segundo século cristão, os apologistas, com boa intenção mas com consequências desastrosas, fizeram o casamento dos textos bíblicos com a ontologia platônica-estoica. Resultado desse casamento infeliz foi a tentativa dos apologistas (defensores da fé) em vencer as acusações, vindas das religiões pagãs que viam na fé cristã somente mitos com provas provenientes da razão. O erro fundamental dos apologistas era tentar enfrentar e vencer o inimigo exatamente com as armas dele: argumentos, regidos por regras e orientando-se nas qualidades dos assuntos tratados. Para não nos perdermos na discussão sobre Unidade de Pai e Filho – pois o crente comum prefere não pensar sobre o assunto, muito menos confessar que tem dúvidas, com medo de ser “excluído da Sinagoga” (para usar essa metáfora) – propomos uma maneira de pensar, possível e útil para nós, leigos. A realidade como um todo só pode ser lida, partindo da “história” – do Evangelho de Deus. Cristo é homem enquanto Ele, como Jesus Nazareno, aparece na evolução da “velha e boa história” como homem. Ele sempre o é, mas O vemos como Deus somente quando neste nosso mundo, na sua transcendência (aqui entendida como a fusão do humano com o divino), O percebemos revelado. (31) Novamente, pegaram os judeus em pedras para lhe atirar. (32) Disse-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas da parte do Pai; por qual delas me apedrejais? (33) Responderam-lhe os judeus: Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo. Se considerarmos como bárbaros os judeus que trouxeram pedras, não seremos melhores; pelo contrário, muito abaixo deles. O nosso Deus cristão é difuso e vulgar; usamos o Seu nome à toa a cada hora. Não mais temos a menor compreensão de Sua Santidade e Unicidade. Nem reagimos se outros fazem piadas, usando o Seu nome. Em outras palavras: não conhecemos deus nenhum. Em nada nos escandalizaria se hoje em dia alguém dissesse ser igual a Deus. O máximo que faríamos seria considerá-lo mentalmente confuso e infantil. 266 O judeu, ao contrário, por sua longa e difícil caminhada, aprendeu o que diariamente por duas vezes reza: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor” (Deut.6,4.5). Isso arde no coração de cada judeu; a fé no Único Deus verdadeiro (que não deve ser confundido com Alá). Até hoje é insuportável para o judeu imaginar um “outro” ao lado de Deus; mais ainda, quando este “outro” é homem; e em Jesus eles viam (e veem) o homem Nazareno. Somente quando nos aproximamos da compreensão judaica de Deus como Deus Único e Santo (não aquele que invocamos, pecando, a cada momento: - “meu deus, sujou sua roupinha?”), somente então entendemos o peso da declaração de Jesus “Eu e o Pai somos um” para o ouvido de um judeu. Ainda mais: o “EU” mencionado antes do “Pai” consistia em outra blasfêmia. Num início de um tumulto, alguns começaram a pegar em pedras sem a menor preocupação com o processo forense exigido pelo Sinédrio, necessário em casos de blasfêmia. Duas perguntas irônicas com nítido caráter irritante permitiam a Jesus ganhar tempo. A primeira era de pura ironia com a intenção de chamar atenção ao absurdo da confusão instalada. As boas obras, as curas, realmente mereciam uma tal condenação? A argumentação com obras confundiu, mas foi imediatamente descartada apontando novamente a blasfêmia como razão do ódio: (34) Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses? Como bom conhecedor das Escrituras, Jesus citou um trecho do salmo 82, (verso 6.7), onde juízes humanos e aparentemente injustos são citados como sendo “deuses”. A eles é dito que, em breve, haverão de sucumbir. Jesus sabia que seus acusadores não se atreveriam em contradizer essa passagem – “de vossa lei”, - como Jesus ironicamente observou. (35) Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar, (36) então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: Sou Filho de Deus? (37) Se não faça as obras de meu Pai, não me acrediteis; (38) mas, se faço, e não me credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai está em mim, e eu estou no Pai. A argumentação de Jesus era genial. Parafraseando: Se as Escrituras chamam juízes injustos de “deuses” – e a Escritura não pode falhar - quem são vocês para me acusar, a mim, que faço as obras de meu Pai? Vocês não as reconhecem? - Dessa forma, o assunto mudou para obras e saiu da esfera da blasfêmia. 267 (39) Nesse ponto, procuravam, outra vez, prendê-lo; mas ele se livrou das suas mãos. Desarmados pela sua própria lei, a tentativa de apedrejamento ilegal perdeu o ímpeto. O caso devia ser analisado com maior atenção pelo Sinédrio; pelos mestres entre os fariseus. Na confusão causada pela tentativa de prendê-lo para o interrogatório necessário, mais uma vez Jesus escapou. (40) Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde João batizava no princípio; e ali permaneceu. (41) E iam muitos ter com ele e diziam: Realmente, João não fez nenhum sinal, porém tudo quanto disse a respeito deste era verdade. Não era essa a hora em que Jesus, “glorificando o Pai”, se entregaria aos que o rejeitaram. Ele entendeu, porém, que a situação exigia cuidado. Portanto, retornou ao lugar onde tudo começou; onde Ele foi batizado por João Batista. Por algum tempo, Ele permaneceu ali em segurança. O testemunho do Batista, anunciando alguém maior que ele, havia se cumprido. Os de Jerusalém não o entenderam (5,33s). No lugar de seu batismo, muitos ainda procuravam a Jesus. Nada ouvimos de seus discípulos. A maior parte do tempo, eles e a atividade deles não são mencionados; era Jesus que interessava, e o testemunho dEle que havia de ser guardado para a posteridade através do relato escrito, o “Evangelho”. (42) E muitos ali creram nele. Com esta constatação termina o que os intérpretes, na sua grande maioria, consideram o “Primeiro livro” do Evangelho. Após o clímax no confronto com “o sistema” em Jerusalém, sua tensão e a declaração de Jesus; após a sua identificação final à qual o Evangelista, passo por passo, tem guiado o leitor: “Eu e o Pai somos Um”, parece que houve uma curta calmaria antes da paixão que terá seu início com o capítulo 11. “Muitos ali creram nele”. • Você já faz parte desses “muitos” ? • Você percebeu como não há meio-termo; ou reconhecemos Jesus como o Logos encarnado e mudamos a nossa concepção de “religião”, tornando-nos discípulos, ou • abandonemos de vez a religião que venera um homem lunático (julgamento de muitos entre os que temiam pela sua posição de poder religioso)! 268 Conclusão parte I Antes de passar adiante na nossa leitura do Evangelho de João vamos fazer uma análise daquilo que lemos. Procuremos relembrar as características típicas deste maravilhoso Evangelho. Primeiramente, aquela pergunta de sempre: como era possível a João, com sua idade avançada, relatar de maneira fidedigna palavras e atos de Jesus e de seus discípulos? Para responder satisfatoriamente, temos que considerar o seguinte: É fato conhecido que as pessoas, na medida que avançam em idade, começam a perder a memória curta (acontecimentos recentes). Em contrapartida, aparecem mais nítida e claramente lembranças dos anos anteriores, da mocidade e da infância. No mais, devemos considerar que o Evangelista João não começou a falar sobre essas coisas somente na idade avançada, quando compôs sua obra. Como “coluna” da igreja primitiva (do início) - confira em Gal. 2,9, - participou do “Ensino dos Apóstolos” (Atos 2,42). Nessa condição, ele relatava sempre de novo tudo o que ouviu e viu durante sua convivência com Jesus, lembrando e testemunhando. Como mencionamos já anteriormente, nota-se um núcleo fiel a lugares e costumes judaicos contido no seu Evangelho e impressionantemente preciso. Essa parte, acredita-se, já fora composta ainda em Jerusalém e, mais tarde, havia servido como base ao Evangelho todo. Aquilo que João, nos seus últimos anos de vida talvez, compôs, era resultado do ensino de muitos anos. Em João 14,26, ele fala da garantia de uma lembrança segura e compreensão adequada da história do Cristo. Essa “garantia” assumiu o Espírito Santo: “Mas o conselheiro, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse”. Se João escreveu seu Evangelho após longos anos de pregação, podemos entender o porquê de seu estilo típico, chamado de joanino. Não dizemos que João usou de liberdade literária, compondo livremente os discursos de Jesus. João sabia que sua missão era ser testemunha de Jesus (15,27). Nenhuma testemunha inventa ou constrói o que ela transmite; ela usa o máximo de fidelidade naquilo que diz quanto ao que viu e ouviu. Alguns intérpretes entendem que o estilo da fala de João, tão diferente do dos sinóticos, era a de seu Mestre. João vivia e pensava tanto nas palavras de seu Senhor que, finalmente, as usava da maneira do seu Senhor, seja nas suas pregações ou nas Cartas ou, como aqui, no seu Evangelho. Nos cap. 11 até 21 encontraremos as principais confirmações da fidelidade histórica do relato de João. 269 O Evangelista viveu nos seus últimos anos de vida a dramática situação de ameaça e perseguição da igreja por parte do Império Romano com seu culto idólatra a César. O seu Apocalipse (último livro do NT) deve ser entendido desse ponto de vista. No Evangelho, no entanto, a situação é outra. O que nele está dito a respeito de perseguição e dificuldades vindouras (15,22-25 e 16,1-4) aplica-se exclusivamente à situação judaica daquela época (em que Jesus viveu) e não menciona o que o velho João testemunhara na época do imperador Domiciano (81-96). Se ele tivesse escrito no espírito da época que ele viveu, ele teria pintado uma imagem de Jesus muito diferente, e colocado na boca de Jesus respostas à situação atual. Mas não é esse o caso. João lembrou fielmente aquilo que Jesus, uns 50 anos atrás, disse a respeito do futuro imediato que esperava os discípulos; exatamente aquilo que Atos, nos capítulos 4,5,7 e 8 nos registram, como palavras cumpridas. Outro indício importante da fidelidade histórica: João escreveu na mesma época em que também surgiu a “Primeira Carta de Clemente” à Igreja em Roma. Nesta Carta já vemos sinais de uma Igreja como “instituição”. Nas cartas de Ignácio, poucos anos mais tarde, aparece a igreja cristã como Instituição forte e notamos um alto apreço quanto ao cargo de bispo. Se João tivesse escrito com liberdade literária, Jesus teria, nas suas palavras de despedida, dado conselhos quanto à estruturação necessária da Igreja local (Instituição) e mencionado os cargos (presbítero, bispo, ancião). Nada disso encontramos no seu Evangelho. Jesus viu a igreja como uma vinha, em que cada cacho está ligado sem intermediação a Ele pessoalmente, de maneira direta e produzindo seu fruto. Normativos para a vida dos discípulos entre si são: o amor mútuo e a disposição total de “lavar um os pés dos outros” (13,12-17; 13,34s). Embora a Pedro (como sinal da nova aceitação após seu fracasso em negar a Jesus) fora delegado pastorear as ovelhas de Jesus, nenhuma posição de hierarquia lhe foi outorgada; pelo contrário, quando ele questionou seu Senhor a respeito da obrigação de João, foi bruscamente refutado na sua intromissão: “... o que lhe importa? Quanto a você: sigame!” (21,21s)! Outro indício da fidelidade histórica do Evangelho de João encontramos nas três “Cartas de João”, que estão no final do Novo Testamento, antes do Apocalipse. Nelas encontramos o Apóstolo falando à Igreja da época. Em nenhum lugar ele menciona palavras de Jesus referente à situação crítica em que a igreja se encontrava. Nas “Cartas”, ele aconselha a igreja como instituição. Se ele escrevesse como escritor somente, teria aproveitado a oportunidade de “citar” palavras de Jesus referente à situação que ele, como velho Apóstolo, estava enfrentado. 270 Tudo isso comprova grandemente a fidelidade histórica com que o Evangelista lembrou, o que realmente Jesus havia dito, sem amoldar o texto às exigências do momento em que era escrito ou lido. No Evangelho de João não se trata, portanto, de composições livres do nosso Evangelista. O Apóstolo inseriu nos caps. 18-21 as palavras de despedida de Jesus a seus Doze. Ele os queria preparar para a missão deles. No Evangelho de João, a Ontologia (a ciência do ser ) está no centro; o ensino do “ser”, do “ente” (criatura) de Jesus. O quê, ou quem era Jesus? Quem Ele é hoje? Faltavam critérios para entender a natureza do Nazareno. Os sinóticos raramente iluminam esse ponto. Neles encontramos uma única exceção, que chama atenção pois soa como uma anotação joanina que se perdeu em algum lugar: Mateus 11,27s: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar.” Talvez os versos 28,29 também façam parte dessa anotação realizada no estilo joanino!! Não sabemos como essas palavras entraram no Evangelho de Mateus, escrito muito antes do de João. Os estudiosos recorrem a fontes anteriores, no entanto hipotéticas, usadas tanto por Mateus como por João. Mas são hipóteses somente. Outra explicação aponta o cerne do posterior Evangelho, escrito por João ainda em Jerusalém e usado mais tarde na composição da obra. Dessa anotação (nos tempos dos Apóstolos, em Jerusalém) pode vir a “frase perdida”. No Evangelho de João, Jesus é visto como “a Palavra eterna do Pai”, Único na Sua maneira de ser. Portanto, as exclamações do “EU SOU” (nome de JHWH) dominam a obra. As obras, chamadas “sinais”, são dicas que apontam para o “ser” de Jesus, sua missão, seu “ser enviado pelo Pai” e da revelação da qual todas as obras e palavras provêm. O reconhecimento desse “ser” de Jesus é equivalente, é sinônimo de “Salvação”; somente Ele pode salvar do pecado. Não é a cruz que salva; é Aquele que na cruz foi pendurado. Se esse crucificado não for o “EU SOU”, sua crucificação e toda a nossa religião para nada servem. Por essa razão, João não perde muito tempo com atos ou palavras isoladas. Ele procura levar o leitor a compreender o “ser” de Jesus: Sua pessoa. Até sua visão da fé é ontológica: significa compreender o ser de Jesus. O conteúdo da fé é dinâmico, é uma pessoa e não um dogma. Fé O Evangelho trata, do começo até ao fim, de fé versus incredulidade. Julgamentos morais não encontramos em nenhum lugar. Os judeus não são “filhos do diabo” por causa de algum feito maligno; eles o são por 271 causa de sua incapacidade de reconhecer a Jesus, Seu “ser” e por causa de sua firme decisão de eliminação do Filho. A fé, como já dissemos, não é estática, mas dinâmica. Ela, como realidade viva, conhece crescimento, estágios diferentes, crescentes ou decrescentes. Lemos na primeira parte do nosso Evangelho várias vezes que “muitos creram nele”. Havia, sim, algo que podia ser chamado de “fé” mas que não verdadeiramente o era. No final (12,37) valeu o julgamento do Evangelista: “Mesmo depois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele...” Existe crescimento para cima ou crescimento para baixo! Após a refeição milagrosa (6,14s), muitos “criam” e queriam proclamar Jesus como Rei. Estavam dispostos a ariscar algo por causa de sua “fé”. Mas Jesus fugiu desse tipo de fé. Vimos que o abandono finalmente valeu até para os até então constituíam-se em hordas de “discípulos” (6,66s). O Evangelista observou nitidamente como a vaidade e a ambição atropelam a fé (5,44). Há fé esquisita que “crê em Jesus” e pode, por causa de alguém ou algo, assistir sem mais nem menos a morte do Filho (12,42). Essa fé particular nada vale. Lemos da fé de um número de judeus, cuja fé somente transformarse-ia em fé viva “se eles permanecessem na palavra” (8,31). Nada mais ouvimos deles. Em 7,31s encontramos fé em Jesus, entusiasmo que, no entanto, não conseguiu chegar ao “sim inequívoco”. Nos discípulos encontramos aparentes contradições. Bem no início (1,41; 1,50) eles creem no Messias e em 2,11 novamente lhes é creditada fé em Jesus. Porém, somente em 6,69, a fé deles parece encontrar raízes mais profundas. Na despedida, pouco dessa fé restou, porque não haviam entendido quem Jesus era; não entendiam ainda seu “ser”. Jesus sabia da fé vacilante; veja só seu comentário em 16,31,32: “Agora vocês creem? Aproxima-se a hora, e já chegou, quando vocês serão espalhados, cada um para sua casa. Vocês me deixarão sozinho. Mas eu não estou sozinho, pois meu Pai está comigo”. Havia a necessidade do quebrantamento completo e da morte da fé humana. Através da ressurreição e Pentecoste lhes fora dada fé como presente de cima, como um dom. Ninguém mais lhes podia roubar essa fé por meio de argumentos, pois chegaram a compreender o “ser” de Jesus. Por essa razão é que o velho João chama a fé “vencedor” sobre o mundo. (“Primeira Carta de João” cap. 5,4). “Deus é amor” Embora o amor de Deus constitua o cerne no Novo Testamento, notamos que os Apóstolos falam dele com uma certa discrição. Paulo, por exemplo, inicia sua “Carta aos Romanos” (considerada a exposição 272 fundamental da fé cristã) com a justiça de Deus. Somente em 5,5s, ele apresenta o amor de Deus no contexto da fé. A tão famosa composição de 1.Cor.13, que considera o amor como fato decisivo na vida do crente e tudo o mais como nulo na sua ausência, não é o tema central da “Carta aos Coríntios”. Os Apóstolos perceberam logo o perigo de equívocos no uso desse termo. O Evangelho de João menciona o “amor de Deus” como razão do Envio do Filho. João 3,16 é, assim, considerado “o Evangelho dentro do Evangelho”, o seu “coração”. Mesmo assim, o Evangelista não desenvolveu, em seguida, o argumento do amor de Deus. O termo “amor” não se torna assunto nas argumentações de Jesus; não é apresentado como motivo no engajamento de Deus pelo seu povo. Somente nas palavras de despedida, na intimidade com os discípulos é que Jesus volta a falar do amor do Pai para com o Filho (15,9), Seu próprio amor para com eles, Seus seguidores (15,10) e do amor do Pai para com todos os que creem (16,27; 17,23-26). Ficamos surpresos quando lemos, em 13,1, do amor de Jesus para com os seus, amando-os até a consumação na morte violenta na cruz. Sem dúvida foi o amor que determinou todo o relacionamento de Jesus para com os Seus discípulos. Porque é que em nenhum lugar lemos algo que explicitasse esse amor no relacionamento mútuo entre Jesus e os discípulos ou determinadas pessoas? Em nenhum lugar vemos Jesus procurando conquistar alguém; pelo contrário, o nosso Evangelista relata muitos momentos de aparente dureza de Jesus, como em 8,41-45; 9,3941; 10,8 e 11,6.21.32 e 33. Tudo isso nos leva a entender que o Evangelista tratou na sua obra o assunto amor conscientemente com discrição e sensibilidade. A vida toda de Jesus e sua missão eram baseadas no amor para com o Pai. A palavra, em 5,19.20, expressa bem o amor mútuo entre Pai e Filho. Mesmo assim, a palavra amor nunca é usada por Jesus, quando se refere a seu Pai. Somente em 14,31, uma única vez, Jesus menciona seu amor pelo Pai como fato determinante por seu caminho até à cruz. É nas palavras de despedida, que ouvimos do amor dos discípulo para com seu mestre, sem, contudo, apresentar detalhes de como esse amor se manifestara. A declaração do “Novo mandamento”, em 13,34, aparece repentinamente, de súbito. Em nenhum outro lugar havia sido mencionada. Contudo, o assunto “amor” é a realidade decisiva em todo o Evangelho (3,16; 13,1; 13,34s; 14,15; 14,31; 15,9.10; 16,27; 17,23-26; 21,15-17). Se confundirmos amor com sentimento, com algo manso e suave, mole e emocional, o Apóstolo João não é o “Apóstolo do Amor” como geralmente é visto. Amar significa dar-se totalmente em favor de outrem ao ponto de determinar a própria existência. O chavão usado hoje em dia: 273 “Deus é Amor” não só é contrário ao que o “Apóstolo do Amor” nos transmite, como também desvaloriza o Evangelho todo! A teologia liberal, moderna (Bultmann e outros), declara que não pode existir um relacionamento direto entre Aquele que revela (Jesus) e um amor direcionado diretamente a Deus. Segundo esse entendimento, o amor para com O que revela não pode ser outra coisa senão fé. Conforme Bultmann, esta fé não pode ser comparada a um relacionamento direto e pessoal para com Jesus, pois Jesus não é realmente Deus conosco (!). É nesse ponto que se define o entendimento da vida de fé. Se a afirmação da teologia liberal, moderna, for correta, não haveria explicação alguma para a vida de mulheres e homens que viviam esse amor para com Deus servindo e dEle tiraram força para a “diaconia”, o serviço e o sofrimento. Todos eles teriam sido e seriam vítimas de um mal-entendido trágico e monumental. O amor custa caro. • • • Como você entende esse amor revelado em Jesus? Como você responde a ele? A sua fé se relaciona a quê ou a quem? Igreja? Dogmas, Eucaristia? Serviço? Representantes de Deus? ou ao “Logos encarnado”, isto é, uma pessoa real? Com a próxima leitura iniciaremos a Parte II do Evangelho de João, qual intitulamos “O LIVRO DA GLÓRIA DE JESUS”. FIM DO PRIMEIRO LIVRO 274 INTRODUÇÃO II aos caps. 12 – 21 do Evangelho segundo João. O LIVRO DA DOXA (da Glória de Deus) Caro(a) leitor(a): Ao iniciar a leitura da parte que, voluntariamente e seguindo a alguns intérpretes, intitulamos “O Livro da Glória de Deus”, relembramos alguns fatos que nós, cristãos, costumamos esquecer. Há leitores que se aborrecem com a constante menção dos judeus, do judaismo etc. A eles gostaríamos de lembrar que o cristianismo nasceu do judaismo (Romanos 17,17-22). Sem o judaismo, o cristianismo perderia sua razão de ser. Só podemos falar de Deus (dos cristãos) porque, através de Jesus e seus Apóstolos (judeus), os “povos gentios” (não judeus) foram alcançados e incluídos no plano da Salvação. O Deus que nós adoramos (se o fazemos) é o Deus de Israel também. Sempre devemos ter em mente o que o Apóstolo Paulo escreveu tão claramente nos capítulos 9 a 11 da “Carta aos Romanos”. Paulo era um ex-fariseu, judeu, que sabia que a história da Salvação teria seu fim quando judeus e não judeus juntos reconheceriam a Deus, Senhor, e a Jesus Aquele de quem os profetas falaram. Era através de judeus que as profecias de salvação para todos os povos se realizaram. Temos a porta aberta ao Pai pela obra de Jesus, judeu. O Novo Testamento, do qual o Evangelho de João faz parte, foi escrito no contexto de Israel por judeus do primeiro século d.C. em grego (versão Koinê), idioma geral daquela época. Jesus, no entanto, falava o aramaico. Traduzir o espírito de uma época é impossível. Muito do “hebraísmo” (do espírito judaico, dos termos, dos costumes da época, do idioma que Jesus falava) desapareceu na edição grega, pois não havia sempre sinônimo dos termos hebraicos (aramaicos) com o mesmo significado cultural. Mais tarde, na tradução do grego para as línguas contemporâneas, essa tendência continuou. Quando lemos os Evangelhos, imaginamos Jesus como alguém semelhante a nós. Esquecemos que Ele era semita, tinha pele escura e pertencia a uma cultura da qual não temos nenhum, ou pouco conhecimento. Ele cumpriu todos os rituais judaicos, se vestia como judeu ortodoxo daquele tempo e frequentou a Sinagoga, lugar de culto longe do Templo. 275 Representar fielmente uma cultura nos termos de uma outra, é problemático. A tradução de um idioma (Koinê, que hoje não existe mais) para outro é difícil e deixa marcas. Hoje, felizmente, há judeus ortodoxos que estudam o Novo Testamento junto com pesquisadores cristãos. Graças à contribuição dos judeus (“Hebreus”) podemos entender melhor o sentido de certas frases ou palavras de Jesus, que pertencia ao Oriente Médio e a uma cultura diferente da nossa. Portanto, quando fazemos os nossos comentários, procuramos aproveitar do melhor que atualmente se sabe dessas raízes judaicas na fala de Jesus. Para você ter uma ideia de como a contribuição hebraica mudou o entendimento de trechos bíblicos, traremos alguns poucos exemplos, fornecidos pelo Prof. Dr. Pinchas Lapide, judeu, que trabalhava na interpretação do Novo Testamento para judeus. • Os Rabis dizem que existem para todas as revelações e Leis das Escrituras 70 versões diferentes de interpretação, todas válidas. O número 70 corresponde ao número bíblico que simbolicamente representa a totalidade dos povos. Portanto, não há uma autoridade religiosa judia que declare um modo de interpretação como certo, e os 69 demais como errados. • “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” – essa famosa frase significa, no hebraico, exatamente isto: “não interpretam literalmente; procurem entender a profundidade que está atrás de cada palavra”. • “Três dias depois...” – ou outra tradução: “No terceiro dia houve um casamento...” (João 2,1): Cada judeu sabe que se trata de uma terça-feira, pois no relato da criação (Gen.1,10 e 1,12) e somente nesse dia Deus disse duas vezes: “E Deus viu que era tudo bom”. Os Rabis entendem que o casamento no terceiro dia inclui duas bênçãos: uma para a noiva e outra para o noivo. • Mateus 6,22s e Lucas 11,34: Nós interpretamos de maneira diferente da que Jesus ensinou, pois na cultura hebraica significa um “olho bom” não um olho que enxerga; significa benevolência, ou simpatia. O “olho mal” não é um olho que não enxerga, mas, sim, significa inveja. – Já os tradutores para o grego erraram, pois não mais sabiam o sentido original das palavras. • Jesus escolheu 12 discípulos (em referência às 12 tribos), embora no Seu tempo só restassem duas tribos. Quando enviou 70 discípulos (Lucas 12,1), Ele escolheu este número conforme o número que simboliza a totalidade dos povos que Deus incluiria no seu plano de salvação, pois a cada ano foram imolados, durante a Festa dos Tabernáculos, setenta touros pela remissão dos países pagãos. 276 • Nem no hebraico nem no aramaico (idioma de Jesus) existe o verbo “ser”. Todas as brigas dos reformadores em volta da “Santa Ceia” teria sido outra se, naquela época, houvesse um melhor conhecimento do hebraico. O que Jesus disse foi: “esse meu corpo” – o que abre a porta para um entendimento muito diferente. Na discussão dos reformadores, quando Lutero enfrentou seu colega Zwinglio, em 1592, Lutero bateu três vezes na mesa com as palavras: Está escrito “est, est, est”! Estava errado! Lutero mantinha o entendimento católico romano a respeito da transformação de pão e vinho baseando-se no “est”, que não havia! Uma infinidade de pequenos desentendimentos ficam resolvidos quando conhecemos os termos aramaicos. Você quer alguns exemplos? Vejamos, então: Marcos 9,23: Na nossa Bíblia (tradução do grego) Jesus diz ao pai do filho doente: “se podes”! o que não faz sentido. O termo “há-im-tuchal” porém diz: se tu pudesses só! Os famosos “2000 porcos” de Marcos 5,13: o termo ka’alafim, sem vogais, significa “um bando”. Lido como ke’alpim entende-se “cerca de 2000”. Uma das mais famosas má-iterpretações está em Mateus 22,21: “Dai, pois, a Cezar o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O desconhecimento da cultura religiosa da época e demonstrada na tradução para o grego, deu origem à famosa teologia dos “Dois Reinos”. O Papa Bonifácio lançou, em 1308, a primeira bula a respeito; Agostinho, Lutero... todos defendiam a convivência dos “dois reinos”: o espiritual e o terreno, e a necessária submissão do cristão ao reino desse mundo, com consequências fatais. O que Jesus disse foi (resumidamente): “Devolva (joga) a moeda blasfema do imperador (pois tinha a sua imagem impressa na moeda) na cara dele e entrega a Deus tudo, pois a Ele você e tudo que tens pertence!” Observe que Jesus menciona primeiro César e depois Deus; isso seria impossível caso se tratasse de uma divisão entre “duas autoridades distintas” – em qualquer outro caso, Deus seria mencionado primeiro!! Resumindo: Durante 2000 anos, a cristandade se contentou com a “Vulgata” (o texto dos Evangelhos em latim), que nada mais é que a tradução de uma tradução, para devagarzinho começar a compará-la com o texto grego. Hoje sabemos que, sem o conhecimento do Hebraico e o aramaico, não podemos interpretar corretamente o texto no espírito da época de Jesus. Lemos coisas no texto que nem ali estão e damos por “não históricos” outros, cujo significado em aramaico não conhecemos. 277 Somente a desaparecida “Hebraica Veritas”, tão elogiada por Jerônimo, poderia nos levar de volta ao texto. As novas descobertas de manuscritos antigos, no século passado, nos ajudam, em parte, na reconstrução deles. Vejamos o que o Reformador Lutero disse a respeito (no séc 16): “A língua hebraica é tão simples e tem poucas palavras, porém muito está nelas contido; nenhum outro idioma lhe pode ser igual... se eu fosse mais jovem gostaria de aprender esse idioma, pois sem ele não é possível entender as Escrituras do modo certo. O NT, embora escrito em grego, ainda está cheio de hebraísmos e fala na maneira hebraica. É por isso que disseram bem: “Os hebreus bebem da fonte; os gregos de um regato que sai da fonte (LXX); os latinos (Vulgata), portanto, de uma poça (ou charco)” (Conversas à mesa WA, I, pag 525s). • Se você briga por palavras ao “interpretar” a Bíblia... atenção!! Cap. 11.1 Marta. (11,1) Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e de sua irmã Na procura por um convincente e fiel comentário a respeito do relato da ressurreição de Lázaro (pois o presente não pode pretender ser mais do que isso) encontramos uma variedade enorme de hipóteses, afirmações e deduções. Não resta dúvida de que a história da ressurreição de Lázaro coloca o leitor moderno perante os inúmeros questionamentos. O nosso bom senso nos diz que a volta de um corpo em decomposição à vida é simplesmente impossível; nem um milagre, seja qual for a concepção desse feito, o fará imaginável. Mesmo se o relato do capítulo 11 consistisse em mensagem codificada, não mais saberiamos lê-la. A nossa perda da visão mística já nos fez de espiritualmente aleijados. A nossa religião se tornou racional e, ultimamente, pragmática. Cremos aquilo que nos traz lucro imediato. Não estamos interessados em alguma coisa a mais. É o “EU” no trono e Deus como o nosso devedor. Como estamos longe da visão que João teve de Cristo! Quando o nosso Evangelista compôs essa história magistralmente elaborada, ele não a trabalhou como historiador. Como clímax da atividade de Jesus, a ressurreição de Lázaro contém toda a pregação contida no seu Evangelho. Não existe nada similar nos Evangelhos sinóticos. Sim, Lucas relatou a ressurreição do filho da viúva de Naim (Luc.7,11-17) e Marcos a da filha de Jairo (Marcos 5,35-43). Mas a nossa razão, mutilada como é, não mais admite acontecimentos inexplicáveis. Mesmo se falamos de “sinais” que Jesus operava, a nossa fé procura 278 sempre uma portinha que nos dá acesso às explicações que o nosso bom senso exige. No nosso texto, essa “portinha” definitivamente está fechada. Este é o fato: Lázaro encontrava-se em estado de decomposição (disse Marta) quando foi chamado de volta para a vida. Nos relatos de Lucas e Marcos, quem sabe a química do corpo da menina sem vida voltou a funcionar quando Jesus a chamou. Mas no caso de Lázaro? A nossa interpretação do Evangelho quer abrir a nossa visão para a realidade da qual o Apóstolo dava seu testemunho. De algum modo é preciso poder concordar no nosso íntimo com o que lemos. Fé viva nunca acontece cegamente, atendendo a uma ordem; ela é vida, ela vibra, investiga e enxerga “através do horizonte”. Assim como “ser salvo” é sinônimo de “compreender, ter os olhos abertos para a natureza do Filho, para o “ser” de Jesus, deveria haver um conteúdo na ressurreição de Lázaro, ao qual se possa, surpreso, dizer: sim! Pode não ser toda a revelação, mas pelo menos uma luz! Não podemos imaginar que o “EU SOU a luz do mundo” não nos permitisse ver uma faísca, pelo menos, dessa luz nesse acontecimento incrível. Se não cremos literalmente... acontece o quê? Senhor, eu quero ver! Encontrei um comentarista que exorta admitir, palavra por palavra, a veracidade histórica do que nos é relatado. Mas é uma exposição superficial e forçada; ela não combina com seres pensantes. Lembra-nos do “Super-Homem”; lembra daquelas pessoas às quais Jesus não causa nenhum espanto, nenhum escândalo; não provoca conflito interior que pudesse levar da escuridão para a luz, a uma compreensão mais profunda de Cristo. É o tipo de argumentação: “é lógico, Ele era o Filho de Deus. Ele tudo sabia e tudo podia”. Era tudo muito simples, é só crer: Jesus ordenou e aconteceu! - E, com esse comentário, que dispensa qualquer procura, ninguém é desafiado por Deus. Podemos tranquilamente virar-nos de lado e continuar o nosso sono, convencidos da posse da verdade. Certamente não foi isso que o Evangelista pretendia com a história da ressurreição de Lázaro que, aliás, não é mencionada em nenhum outro Evangelho. Por que somente João a lembra? Vejamos as conclusões possíveis a respeito desse magistral feito. A história torna difícil separar tradição da redação. Temos uma composição compacta com muitos detalhes, escrito no estilo típico de João, aumentando gradualmente o suspense. Os intérpretes até pouco tempo atrás falavam de uma “fonte hipotética” da qual o nosso Evangelista recebeu algumas informações e que, em cima dela, construía o que hoje temos no capítulo 11. Sabiam até quais o versos que João recebeu e quais os que ele acrescentou. 279 Hoje já se pensa de modo diferente: nenhuma das inúmeras tentativas, contraditórias entre si, que postulavam uma fonte anterior a João, trabalhada pelo Evangelista, convence hoje (Hennebery/Thyen). Tem-se como certo que o texto todo foi elaborado por João. Se este é o caso, João certamente trabalhou a história de tal forma que nela temos revelada, por ocasião do final do ministério público de Jesus, a maior e mais gloriosa confirmação tanto da pessoa de Jesus, como de suas palavras. A grande maioria dos comentaristas vê na história do capítulo 11 uma “variação joanina” de textos dos sinóticos. Eles entendem a história de Lázaro como uma variação em cima do relato do filho da viúva (Luc.7,11-17); da parábola de Lucas 16,19s (do rico e de Lázaro); da visita de Jesus na casa de Marta e Maria (Lucas 10,38-42) e, finalmente, da unção de Jesus em Marcos 14,3-9. Seria, então, algo como uma parábola com profundo sentido espiritual e não um acontecimento real? Pode ser este o caso? Vimos, de fato, no capítulo dois, três e quatro como João trabalhou o texto de tal forma, que não se sabe onde a redação assume e suprime os acontecimentos reais, sempre com a única finalidade de expressar verdades espirituais, sinais que apontam para o que a João interessava: a revelação da glória do Filho. Ao contrário dos Evangelhos sinóticos, João não relata uma única parábola. O Evangelista Lucas conta mais de vinte e duas. Sabemos que era esta a forma preferida de Jesus, quando falou com seus discípulos (confira Mateus 13,34 e Marcos 4,11). Será que o nosso Evangelista, que não traz nenhuma, trabalhou as parábolas dentro de seu texto, sempre com a finalidade acima? Como o alvo de João era outro, diferente dos alvos dos sinóticos e bem específico (20,31), será que por essa razão é que eram poucas, e tecidas dentro de seu texto? Várias perguntas ficarão sem resposta convincente. É melhor deixálas assim, ao invés de levantar hipóteses que, sem dúvida, mais tarde darão lugar a outras, igualmente inseguras. Se, em algum texto do nosso Evangelho devemos ler nas entrelinhas, será no texto seguinte. Ele contém mensagens, exemplifica as palavras de Jesus e desenha a compreensão joanina da vida eterna. Um dos melhores comentaristas contemporâneos vê uma estrutura cuidadosamente elaborada no Evangelho de João: “À proclamação de Jesus “EU SOU a luz do mundo” segue, no cap.8, o sinal da cura do homem cego desde o ventre materno. Semelhantemente, segue à Festa da Dedicação (10,22), no cap.11, a ressurreição de Lázaro, confirmando as palavras de Jesus de que as 280 suas ovelhas conhecem a sua voz (10,4.16.27); que chama suas ovelhas pelo nome (10,3 confira com 11,43) e de que ninguém – nem a morte – as tira de sua mão (10,28b). Muito além, João liga, no capítulo 11, à palavra em 5,19ss (...sim, para admiração de vocês, ele lhe mostrará obras ainda maiores do que estas. Pois, da mesma forma que o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, o Filho também dá vida a quem ele quer). Por ocasião da morte de Lázaro, o Pai mesmo dá seu testemunho pela verdade das palavras de Jesus”. (H.Thyen, Das Johannes-Evangelium, Mohr-Siebeck,2005) Hoje em dia, percebemos que o Evangelho de João é uma obra literária magistral e não somente uma sequência de episódios mais ou menos independentes, como é o caso nos sinóticos. Veremos agora o que o Evangelista nos conta, verso por verso. Cap. 11.1-16 (11,1) Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e de sua irmã Marta. (2) Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava enfermo, era a mesma que ungiu com bálsamo o Senhor e lhe enxugou os pés com os seus cabelos. (3) Mandaram, pois, as irmãs de Lázaro dizer a Jesus: Senhor, está enfermo aquele a quem amas. (4) Ao receber a notícia, disse Jesus: Esta enfermidade não está para morte e sim para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado. (5) Ora, amava Jesus a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro. (6) Quando, pois, soube que Lázaro estava doente, ainda se demorou dois dias no lugar onde estava. (7) Depois, disse aos seus discípulos: Vamos outra vez para a Judeia. (8) Disseram-lhe os discípulos: Mestre, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e, voltas para lá? (9) Respondeu Jesus: Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo; (10) mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz. (11) Isto dizia e depois lhes acrescentou: Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo. (12) Disseram-lhe, pois, os discípulos: Senhor, se dorme, estará salvo. (13) Jesus, porém, falara com respeito à morte de Lázaro; mas eles supunham que tivesse falado do repouso do sono. (14) Então, Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu; (15) e por vossa causa me alegro de que lá não estivesse, para que possais crer; mas vamos ter com ele. (16) Então, Tomé, chamado Dídimo, disse aos condiscípulos: Vamos também nós para morrermos com ele. (11,1) Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e de sua irmã Marta. (2) Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava enfermo, era a mesma que ungiu com bálsamo o Senhor e lhe enxugou os pés com os seus cabelos. “Estava enfermo Lázaro...” O nome Lázaro é uma abreviação de Elazar, que significa “aquele a quem Deus ajudou”. A menção das duas irmãs sugere que o autor presume como certo que os leitores de seu Evangelho estariam familiarizados com a história de Maria e Marta registrada em (Lucas 10,38-42). O Evangelista ainda indica o nome da aldeia mencionada em Lucas: era Betânia, distante a cinco quilômetros, aproximadamente, de Jerusalém. Do Evangelho de Marcos, 281 largamente conhecido, os leitores do Evangelho de João também sabiam da unção do Senhor por uma mulher (Marcos 14,3). Lázaro, doente, aqui apresentado como irmão de Maria, serve para identificar a mulher sem nome (nos sinóticos) que ungiu o Senhor, quando este caminhava rumo à Jerusalém. O nome dela era Maria. Mais adiante, o nosso Evangelista a lembrará também (12,1-11). Com esses dados, meio desajeitados, pois presumem referência a outras informações, João abre seu relato: (3) Mandaram, pois, as irmãs de Lázaro dizer a Jesus: Senhor, está enfermo aquele a quem amas. O texto no original dá certa ênfase à solicitação contida na mensagem. “Veja”, ou “escuta”, aquele a quem amas, está enfermo!”. Lembramos de 10,40 que Jesus, com seus discípulos, havia se retirado para o lugar também identificado como Betânia, mas “Betânia da Peréia”, isto é, do outro lado do Jordão, a uma boa distância da casa das irmãs. A procura por essa “Betânia além do Jordão” ainda dá muita dor de cabeça aos arqueólogos, pois parece indicar o lugar onde João Batista batizava; onde Jesus fora batizado e, de acordo com a tradição, de onde Elias (2 Reis 2,11ss) subiu ao céu num redemoinho (RIESNER R. Bethanien jenseits des Jordan, Brunnen, 2002) As duas irmãs conheciam a Jesus e existia, como percebemos, um relacionamento fraternal e íntimo, mútuos. Assim se explica o fato das irmãs saberem do lugar onde Jesus se encontrava. Essa “Betânia além do Jordão” era um lugar seguro, fora da soberania judaica, procurado por Jesus em consequência do conflito vivido por ocasião da festa (cap.10,39.40). A solicitação de ajuda, na esperança de salvar a vida de Lázaro, era evidente. Mais adiante, temos a confirmação da própria boca das duas irmãs: “Senhor, se estivesses aqui (a tempo), meu irmão não teria morrido” (21e 32b). As duas irmãs lembraram do amor de Jesus para com o doente: “...aquele a quem amas, está doente”. A necessidade de pressa para uma possível cura era óbvia. Não vamos perder tempo com a extensa discussão entre os comentaristas sobre quando era que o mensageiro havia partido, e quando Lázaro teria morrido. A menção dos “quatro dias” (39) permite opiniões diferentes que, no entanto, nada mudam no contexto geral. A resposta Jesus ao mensageiro não foi nada edificante. (4) Ao receber a notícia, disse Jesus: Esta enfermidade não está para morte e sim para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado. 282 Atentos, ouvimos a afirmação de Jesus de que a doença de Lázaro não resulte em morte, mas que nela o Filho de Deus fosse glorificado. Alguns comentaristas veem na história da ressurreição de Lázaro como um todo uma metáfora, onde a doença de Lázaro corresponde ao pecado que leva para a morte e onde, através da Glorificação do Filho (“...é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crer, tenha a vida eterna”, 3,14.15), a salvação e o dom da vida eterna são evidenciados na simbólica ressurreição de Lázaro. Podemos olhar assim. Porém, se fosse essa somente a intenção do autor, por que razão os detalhes intrigantes que seguem: (5) Ora, amava Jesus a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro. (6) Quando, pois, soube que Lázaro estava doente, ainda se demorou dois dias no lugar onde estava. Não encontramos uma explicação convincente para a demora de Jesus. Sem dúvida, esta demora contém uma mensagem. Descartamos interpretações fantasiosas, como a de que Jesus propositalmente esperava a morte para poder mostrar um sinal ainda maior do que até agora (Schnelle, Haenchen e.o.) ou a interpretação até ridícula de que, durante os dois dias, Jesus teria pedido de Deus a morte de Lázaro (Stimpfle) para poder agir. Procurando por uma explicação (pois, quem conhece a mente do Senhor?), pode haver um “Codex textual” para a atitude de Jesus no livro do profeta Oséias, cap. 6,1s: “Venham, voltemos para o Senhor. Ele nos despedaçou, ele nos feriu, mas sarará nossas feridas. Depois de dois dias ele nos dará vida novamente; ao terceiro dia nos restaurará...”. A pergunta fica sem resposta óbvia. Desde 2,3s, onde Jesus com uma rudez assustadora censurou a sua mãe: “O que temos em comum, mulher (trad.literal), minha hora ainda não chegou!” (confira também 7,2ss e 10), sabemos que Jesus somente agiu depois que o Pai lhe indicou o tempo e, tendo chegado essa hora, somente fez o que o Pai já lhe mostrou (5,20). (7) Depois, disse aos seus discípulos: Vamos outra vez para a Judeia. (8) Disseram-lhe os discípulos: Mestre, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e, voltas para lá? No terceiro dia após receber a notícia da doença de Lázaro, Jesus propôs aos seus a volta para a Judeia. Ele não fez menção de Lázaro e seus seguidores, ainda com a lembrança viva de como fugiram de Jerusalém, o questionaram. Um retorno à Judeia, a essa altura, lhes parecia suicídio na certa. 283 (9) Respondeu Jesus: Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo; (10) mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz. A resposta de Jesus reinterpreta o que ele, em 9,4, já disse. Naquela ocasião, “o dia” era sinônimo do tempo limitado de ministério a ser usado por Jesus no serviço ao Pai que O enviou. Aqui, ao contrário da interpretação de Bultmann e.o. entendemos que Jesus respondeu aos seus Doze, apavorados pela visão de retorno a Jerusalém. Quando Jesus mencionou as doze horas do dia (em comparação com a noite), Ele chamou a atenção dos discípulos à duração do dia e à segurança para quem andar enquanto este durava. Ele, Jesus, indo adiante dos Doze, lhes seria como luz e bom pastor. Na presença dele havia luz; ao contrário dos que andavam sem luz. O aviso dos Doze quanto ao perigo que seu mestre podia enfrentar na Judeia não era tão altruísta como parece à primeira vista; eles mesmos, os Doze, não estavam de maneira alguma querendo correr perigo. (11) Isto dizia e depois lhes acrescentou: Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo. Após um certo intervalo e tendo acalmado os Doze, Jesus lhes falou claramente do motivo de sua ida à Judeia. Não era Jerusalém que Ele visava; era Betânia. Jesus usou a forma com que no Antigo Testamento se falava veladamente da morte dos “justos” (2.Sam.7,12; 1 Reis 2,10) e de sua intenção de “despertar a Lázaro”. A tradição judaica vétera-testamentária, a apocalíptica e o cristianismo primitivo usaram o termo “dormir” quando se referia aos “justos” mortos na expectativa de um pacífico “acordar” no dia final (confira 1 Tess.4,13-16; 1 Cor. 7,39 e.o.m). A igreja cristã primitiva, mais tarde, também via a morte como passageira, sendo vencida definitivamente através da ressurreição de Jesus. (12) Disseram-lhe, pois, os discípulos: Senhor, se dorme, estará salvo. (13) Jesus, porém, falara com respeito à morte de Lázaro; mas eles supunham que tivesse falado do repouso do sono. Os Doze, nada empolgados com a visão de um retorno à Judeia, responderam aliviados com o dito da velha sabedoria popular: “se dorme, está salvo”. Não mais havia razão para um retorno imediato, pensaram. (14) Então, Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu; (15) Imagine o susto dos Doze, que se sentiram aliviados (e ignorantes) e já tendo descartado a viagem no seu íntimo. ... e por vossa causa me alegro de que lá não estivesse, para que possais crer; mas vamos ter com ele. 284 Os Doze mal ouviram que Jesus havia prometido acordar a Lázaro. As palavras do sono de Lázaro, para Jesus, eram reais. Para os Doze não. Enquanto Jesus parecia decidido e satisfeito com a visão do encontro com Lázaro, os seus seguidores ficaram apavorados. Ainda não era Lázaro que ocupava suas mentes; era a perspectiva do retorno à Judeia. Betânia se situava perto demais de Jerusalém! (16) Então, Tomé, chamado Dídimo, disse aos condiscípulos: Vamos também nós para morrermos com ele. Tomé, possivelmente o primeiro que havia desconfiado quando Jesus falou da luz do dia, arriscou enunciar o que todos sentiam: sentença de morte de martírio na certa, junto com o seu mestre. Na situação em que se encontravam, de certo modo banidos do Templo, fora dos limites de Judá, Lázaro morto... talvez o melhor seria morrer junto com seu Senhor sob as pedradas dos judeus. Devemos lembrar de Tomé não somente sob o ângulo de 20,24-27, como “Tomé, o incrédulo”. Ele se via ligado ao seu Senhor, fiel e inseparável. • Até onde vai a sua identificação com o Senhor? Cap. 11.17-31 (17) Ao chegar, Jesus verificou que Lázaro já estava no sepulcro havia quatro dias. (18) Betânia distava cerca de três quilômetros de Jerusalém, (19) e muitos judeus tinham ido visitar Marta e Maria para confortá-las pela perda do irmão. (20) Quando Marta ouviu que Jesus estava chegando, foi encontrá-lo, mas Maria ficou em casa. (21) Disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido. (22) Mas sei que, mesmo agora, Deus te dará tudo o que pedires”. (23) Disse-lhe Jesus: “O teu irmão vai ressuscitar”. (24) Marta respondeu: “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. (25) Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; (26) e quem vive e crê em mim , não morrerá eternamente. Você crê nisso?” (27) Ela lhe respondeu: “Sim, Senhor, eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que deveria vir ao mundo”. (28) E depois de dizer isso, foi para casa e, chamando à parte Maria, disse-lhe: “O Mestre está aqui e está chamando você”. (29) Ao ouvir isso, Maria levantou-se depressa e foi ao encontro dele. (30) Jesus ainda não tinha entrado no povoado, mas estava no lugar onde Marta o encontrara. (31) Quando notaram que ela se levantou depressa e saiu, os judeus, que a estavam confortando em casa, seguiram-na, supondo que ela ia ao sepulcro, para ali chorar. (17) Ao chegar, Jesus verificou que Lázaro já estava no sepulcro havia quatro dias. Os termos: “Jesus verificou” indicam que, ao chegar após a longa marcha nos arredores do povoado, Jesus tinha indagado sobre Lázaro e foi informado de que o irmão de Marta e Maria já estava sepultado há quatro 285 dias. A menção de “quatro dias” é importante: segundo uma tradição rabínica, a alma de uma pessoa morta permanece junto ao corpo por três dias na esperança de uma nova união, e somente depois faz a sua partida final, quando o corpo começa a entrar em decomposição. Encontramos aqui a mais remota confirmação dessa crença rabínica constante de escritos do séc. 3º d.C. (Leviticus Rabbah). A situação era desesperadora. Com a chegada do quarto dia, qualquer esperança de uma volta de Lázaro à vida havia se desvanecido. (18) Betânia distava cerca de três quilômetros de Jerusalém, (19) e muitos judeus tinham ido visitar Marta e Maria para confortá-las pela perda do irmão. O corpo de uma pessoa falecida era enterrado ou colocado em sepultura no mesmo dia de sua morte. O cerimonial de luto, no entanto, segundo as leis rabínicas, durava sete dias. Faziam parte dele a visitação e o choro comum de mulheres em alta voz, e contratadas para esse fim. A proximidade da capital Jerusalém permitia a presença de amigos e conhecidos das duas irmãs. A observação de que “muitos judeus” vieram confortar Marta e Maria, vindos de Jerusalém, sugere que a família era bastante proeminente e conhecida na cidade. Obs. O passado usado no verbo “distar” – distava - levou os estudiosos à conclusão de que, já no tempo da composição do Evangelho, anos após a destruição total de Jerusalém e do Templo, não mais se sabia com exatidão a localização dessa aldeia, ainda hoje discutida). (20) Quando Marta ouviu que Jesus estava chegando, foi encontrá-lo, mas Maria ficou em casa. A notícia da chegada de Jesus com seu grupo corria velozmente. Marta (que significa Senhora ou patroa), ao ouvir as primeiras notícias da aproximação de Jesus, levantou-se e correu ao seu encontro, enquanto Maria permanecia em casa recebendo e cumprimentando as visitas, conforme o ritual da época. Não devemos explorar a permanência de Maria com a suposta fé pequena dela; havia necessidade de alguém receber os visitantes. (21) Disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido. A expressão de Marta no verso 21 não era uma censura; ela sabia muito bem que teria sido difícil, senão impossível, que Jesus chegasse a tempo para curar Lázaro. Humanamente falando, a notícia – na visão dela – havia alcançado Jesus demasiadamente tarde. Ficara a expressão de profundo pesar: “se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”. (22) Mas sei que, mesmo agora, Deus te dará tudo o que pedires”. Quando Marta mandou chamar Jesus que estava longe, apesar do que mencionamos em 21 acima, o fez com uma confiança ilimitada. Pela frase do verso 22, Marta dava a entender que, possivelmente, Jesus ainda 286 podia trazer Lázaro de volta à vida. Tratou-se de um pedido indireto, formulado não como pedido, mas feito em forma de confissão. Suas palavras revelaram um coração revolvido até às profundezas e oscilando entre a tristeza e a esperança. A fé de Marta, embora obscurecida pelas dúvidas, dispersava as trevas do desespero momentâneo com a sua declaração. Marta, como judia, sabia que somente a Deus compete o poder de reviver os mortos. Sua fé no poder de Jesus constituía-se em fé no poder da oração. Quando ela disse, “eu sei que, mesmo agora, Deus te dará tudo o que pedires”, ela usou uma palavra que nunca encontramos nos lábios de Jesus: o verbo “pedir”. O termo que Marta usou, era apropriado nos lábios de um inferior que pede um favor a um superior. Os termos que Jesus empregava com respeito aos seus próprios “pedidos” ao Pai geralmente denotavam equidade entre duas pessoas. Equidade entre pessoas quer dizer que elas são do mesmo nível em autoridade ou posição. Jesus e o Pai eram “iguais”? Como devemos entender a afirmação ousada de Jesus: “Eu e o Pai somos Um” (10,30)? Orígenes (185-254 d.C.) via a unidade como “Unidade Ontológica” (de ser) entre Pai e Filho, de modo que o Filho representava o Pai e o Pai era idêntico ao Filho. Segundo essa versão, tudo que se atribuía a Deus também valia para o Filho. Não era bem assim que a igreja definiu “o ser” de Jesus. O Pai “aconteceu” com Sua presença salvadora e justificadora na pessoa do judeu de nome Jesus (de Nazaré), em palavras e atos. São duas pessoas, embora uma contida na outra (confira “Considerações”, após o cap.8: “Uma ou duas pessoas”?) (23) Disse-lhe Jesus: “O teu irmão há de levantar-se novamente”. A resposta de Jesus às palavras de Marta lhe foram como um balde de água fria! A tristeza e o desalento mais uma vez lograram a vitória antes timidamente vislumbrada. Marta imediatamente entendeu as palavras de Jesus como referentes à “ressurreição no fim dos tempos”, elemento da crença judaica. Essa referência à ressurreição na grande consumação era (e é) um tipo de consolo convencional quando, para consolar enlutados, não sabemos o que dizer. (24) Marta respondeu: “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no último dia”. Era a confissão usual dos fariseus, apocalípticos e essênios; somente os saduceus a negavam. O olhar de Marta, ouvindo a palavra “ressurreição”, perdeu-se na futura e distante “ressurreição” do “dia final”. No momento que ela estava vivendo, essa confissão da fé lhe era de pouco valor, uma luz muito distante e por demais fraca. 287 (25) Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; (26) e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Neste exato momento entra o Evangelista, pregando. Aquele que se encontrou diante de Marta é, para os que nele creem, ressurreição e vida eterna. Vida que não somente será concedida no dia final, longínquo, mas sim, agora, como posse, presente. Jesus, da parte de Deus, concede vida, vida eterna (5,26) aos que nele confiam. A presença ou perda da vida terrena, portanto passageira, não tem importância quando se trata da posse dessa vida eterna. As palavras de Jesus em 25 e 26, pareciam nada ter a ver com a questão da ressurreição de Lázaro. Pelo contrário, elas até deixaram a esperança da volta do falecido à vida em segundo plano. O comentário referente a 25 e 26, dado pelo próprio Jesus, encontra-se em 5,21-29, especialmente no verso 24: “... quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não será condenado, mas já passou da morte para a vida”. Todo esse trecho encontramos resumidamente nos versos 25 e 26 do nosso capítulo: “Importa crer no Filho”. Jesus não disse se essa ressurreição estava para acontecer já, nem que a faria acontecer agora mesmo. Marta não sabia da intenção do Senhor de “acordar” Lázaro (verso 11). Assim, sua resposta ao trecho que podemos entender como pregação do Evangelista ou palavras pronunciadas, dirigidas a Marta, era pré-programada. Jesus até a provocou: Você crê nisso?” (27) Ela lhe respondeu: “Sim, Senhor, eu tenho crido que tu és o Cristo, (o Filho de Deus) que deveria vir ao mundo”. A resposta de Marta, embora um pouco abatida e mais rendida do que confiante quanto à ajuda solicitada, declarou tudo o que ela, neste momento, podia compreender. “Eu tenho crido que tu és ...” Não sabemos se ela conseguiu fazer uma ligação de sua confissão com o episódio do seu irmão falecido. Assim como para Marta, também para nós leitores, o questionamento não pode ser evitado: Jesus, nas palavras de João, havia transportado os termos “ressurreição” e “vida” para o mundo espiritual, transcendente, pessoal. O assunto Lázaro parece ser secundário ou até suprido. O que Jesus pretendia com suas palavras de duplo significado? Procuremos aplicar a afirmação de Jesus “... ainda que morra, viverá” ao contexto do falecido Lázaro. Jesus acabou de reconhecer a morte como um fato: “... ainda que morra ...”. Porém, notamos uma contradição retumbante com a continuação da frase: “... e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente” (26). 288 Como o próprio Jesus não se contradiz na mesma sentença, seguese que o termo “morrer” nas duas sentenças não se refere ao mesmo nível. Havemos de lê-las num sentido diferenciado: 25b (“... ainda que morra ...”) fala da morte física, como a de Lázaro; 26b, no entanto, (“... não morrerá eternamente”) fala da morte espiritual. Essa última sentença, na tradução correta como negação empática (“certamente não haverá de morrer”) só podia significar que a vida eterna daquele que crê é indestrutível e também não cessa com a morte física. A negação não se refere à realidade da morte natural; negado é a “segunda morte” da qual João, no Apocalipse 2,11; 20,6.14 e 21,8, nos fala, e que é a condenação na ressurreição geral dos mortos no dia final (Mateus 25,31-46). Dessa forma, a visão joanina da vida eterna não anula a ressurreição dos mortos e o julgamento final em troca de uma escatologia individual e presente, como alguns teólogos afirmam. O Evangelista, como parte da época em que escreveu, conhecia de perto (tanto pessoalmente quanto como igreja) a contestação, o sofrimento, a perseguição, a tortura e a morte. Seu interesse preliminar era conscientizar seus leitores potenciais do fato de que, com a obra de Jesus, com sua glorificação e ressurreição, a nova criação de Deus e a nova vida não mais sujeita à escravidão da morte já entrara no aeon presente. Essa fé que nasceu na ressurreição de Jesus (e desde então é nutrida pelo Espírito Santo), continua sendo fé contestada; ainda não é o contemplar do “eschaton” (leia 1ª “Carta de João”, cap 3,2). A fé ainda se baseia nos pilares do amor e da esperança. (28) E depois de dizer isso, foi para casa e, chamando à parte Maria, disse-lhe: “O Mestre está aqui e está chamando você”. (29) Ao ouvir isso, Maria levantou-se depressa e foi ao encontro dele. Mal terminara de confessar sua fé em Jesus como o Cristo, Marta correu de volta para a casa enlutada e, “chamando Maria à parte”, isto é, cochichando, lhe passou o convite que recebeu de Jesus, implícito no texto. Assim como Ele teve a oportunidade de conversar com Marta à parte, Jesus queria fazer o mesmo com sua irmã. Note que Marta, ao passar o convite, se referiu ao “Mestre”, um termo que indica intimidade e respeito. (30) Jesus ainda não tinha entrado no povoado, mas estava no lugar onde Marta o encontrara. Como não se podia evitar, a pressa com que Maria (grego = Mirjam) se levantou e correu, chamou a atenção dos presentes: 289 (31) Quando notaram que ela se levantou depressa e saiu, os judeus, que a estavam confortando em casa, seguiram-na, supondo que ela ia ao sepulcro, para ali chorar. Pelo contexto entendemos que o lugar onde Jesus permanecia era próximo ao túmulo. Ele não estava interessado em entrar na casa enlutada com sua intensa movimentação de luto. Como mandava a tradição, os visitantes logo se levantaram, seguindo a Maria para, junto com ela, chorar o morto. Dessa forma, o diálogo entre Jesus e Maria que se segue, não será mais em particular, como fora o com Marta. Os visitantes serão testemunhas daquilo que havia de acontecer. Cap. 11.32-44 (32) Chegando ao lugar onde Jesus estava e vendo-o, Maria prostrou-se aos seus pés e disse: “Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido”. (33) Ao ver chorando Maria e os judeus que a acompanhavam, Jesus agitou-se no espírito e perturbou-se. (34) “Onde o colocaram”, perguntou ele. “Vem e vê, Senhor”, responderam eles. (35) Jesus chorou. (36) Então os judeus disseram: “Vejam como ele o amava!” (37) Mas alguns deles disseram: “Ele, que abriu os olhos do cego, não poderia ter impedido que este homem morresse?” (38) Jesus, outra vez profundamente comovido, foi até o sepulcro. Era uma gruta com uma pedra colocada à entrada. (39) “Tirem a pedra”, disse ele. Disse Marta, irmã do morto: “Senhor, ele já cheira mal, pois já faz quatro dias”. (40) Disse-lhe Jesus: “Não lhe falei que, se você cresse, veria a glória de Deus?” (41) Então, tiraram a pedra. Jesus olhou para cima e disse: “Pai, eu te agradeço porque me ouviste. (42) Eu sei que sempre me ouves, mas disse isso por causa do povo que está aqui, para que creia que tu me enviaste”. (43) Depois de dizer isso, Jesus bradou em alta voz: Lázaro, venha para fora!” (44) O morto saiu, com as mãos e os pés envolvidos em faixa de linho e o rosto envolto num pano. Disse-lhes Jesus: “Tirem as faixas dele e deixemno ir”. (32) Chegando ao lugar onde Jesus estava e vendo-o, Maria prostrou-se aos seus pés e disse: “Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido”. Maria corria para o lugar fora da aldeia, onde Jesus a esperava. Deixou-se cair aos pés de Jesus e de seus lábios brotaram as mesmas palavras usadas por Maria, revelando o mesmo pensamento que havia torturado intimamente as duas irmãs: “Senhor, se estivesses aqui meu irmão não teria morrido”. Faltava-lhe o pedido indireto por ajuda que Marta acrescentara; as lágrimas corriam pela face de Maria. Após um momento de silêncio constrangedor, os intensos lamentos dos judeus que haviam seguido à Maria, voltaram a dominar a cena. Todos olharam para Jesus, aos cujos pés Maria chorava. Não cremos que a fé de Maria teria sido inferior à de Marta, como alguns defendem. Muito ao contrário, o Evangelista desenhou Maria como a mais sensível, a mais atenta. 290 (33) Ao ver chorando Maria e os judeus que a acompanhavam, Jesus agitou-se no espírito e perturbou-se. Maria chorava aos pés de Jesus. Marta, aparentemente (v.39), havia retornado junto com os visitantes. Estes, lamentando em alta voz, com seu olhar em Jesus e seu grupo, ficaram na expectativa de alguma ação. Tudo isso levou Jesus a um estado íntimo que Lutero traduziu como “agitou-se no espírito e perturbou-se”. Há vasta literatura a respeito dessa “agitação”, pois o termo usado no original permite várias interpretações, todos apontando na mesma direção. Ele aparece no NT em Mateus 9,30; Marcos 1,43; 14,5 e aqui em 11,33 e 38 e, uma única vez, no Antigo Testamento (Dan.11,30). Na literatura secular grega da época (Aeschylos), ele significa “bufar” e tem sua raiz no “resfolegar” (de um cavalo). Nos diversos trechos do NT, ele está sendo traduzido (sempre no seu contexto) com “perturbar-se”; “comover-se profundamente”; “repreender severamente” ou “despejar fúria”. A Bíblia é discreta e econômica quando se trata de sentimentos e emoções. Observações quanto ao estado emocional de Jesus são raras. Neste trecho é diferente. O que será, que o Evangelista queria transmitir com o termo semelhante a “resfolegar”? Por que Jesus “agitou-se” profundamente? • • • Será que a sua revolta íntima era causada pela presença provocante do poder da morte que trazia consigo tanta mágoa? Ou será que Jesus ficou indignado perante alguma falta de fé? Porém, qual seria a real esperança que sobrava para os presentes? Ou por ter sido o choro de Maria, agarrando-se a seus pés, sem considerar quem Ele era? Encontramos o mesmo termo no original em 12,27 e 13,21. Ali Ele abre a visão em outra direção: “Agora, meu coração está perturbado e, o que direi? Pai, salva-me desta hora?”(12,17) ou “... Jesus perturbou-se em espírito e declarou: “Digo-lhes que certamente um de vocês me trairá!” Neste último contexto, a “perturbação” de Jesus nasce da visão da traição eminente e da cruz. Assim podemos fazer uma ligação com o nosso texto acima: Jesus entendeu a situação em relação ao seu caminho para a cruz, como o verso 4º já deixou avisado. A “revolta íntima” e a “perturbação” valiam para esse mundo de pecado e de morte, esse mundo de incredulidade, esse seu próprio povo cego de Israel. Foi “o mundo” a razão de seu “ser levantado” e de sua morte na cruz: “Este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” (6,51b). Na morte de seu amigo Lázaro, nas lágrimas de Maria e no clamor dos judeus presentes, Jesus se viu confrontado e desafiado por este mundo, onde reina a morte. (34) “Onde o colocaram”, perguntou ele. “Vem e vê, Senhor”, responderam eles. 291 Frente a frente com a realidade da morte, da capitulação que esta representava e conturbado com o lamento dos judeus (a quantidade e volume desse pranto era proporcional ao reconhecimento da importância do falecido), Jesus viveu uma revolta íntima tão intensa e comoção que se expressa na frase mais curta do NT inteiro: (35) Jesus chorou. O verbo usado por João quando mencionou o choro de Jesus, é único em todo o NT. Em nenhum outro lugar ele é aplicado quando se fala de choro e de lágrimas. No AT há os dois salmos, 42 e 43, nos quais o autor fala das lágrimas que, de dia e de noite, são o pão do justo. Alguns intérpretes entendem que o Evangelista, que usualmente fez trocas intertextuais, pensara neste salmo como referência ao choro de Jesus. Um teólogo, de nome Barrett, apresenta uma explicação diferente, senão teimosa, para o fato de Jesus chorar. Barrett observou que o mesmo termo traduzido com “perturbação” foi usado onde Jesus proibia propagar seus milagres ou anunciá-lo como Messias (Evangelhos sinóticos, Marcos 1,43 e Mat. 9,30). Jesus teria reconhecido que a tal situação, assim como ela se apresentou, quase o obrigava a realizar um milagre. Da mesma maneira como o pedido de Maria (2,4) havia provocado uma áspera e dura repreensão, a situação descrita pelo nosso texto gerava a mesma indignação. Jesus sempre ficara atento ao que o Pai lhe dizia e mandou fazer; no presente momento, porém, a situação parecia obrigá-lo a agir, sem uma ordem de cima. E mais: o milagre que a situação exigia, de maneira nenhuma podia ficar no anonimato; pelo contrário, seria a causa imediata de Sua própria morte. Dessa forma, as lágrimas de Maria não teriam a mesma razão – a perda do irmão – como as de Jesus, causadas pela “raiva e emoção” quanto à quase obrigação que lhe era imposta de revelar-se como Messias e, com isso, assinar sua morte. Barrett parece partir da premissa equivocada de que Jesus não sabia, no momento do pedido de socorro das duas irmãs, que com o caminho para a sepultura de Lázaro, também o caminho para a sua própria morte teria seu início. A razão da espera de dois dias antes de atender ao pedido das duas irmãs, de alguma forma, pode estar ligada com a “espera” da ordem do Pai. Dificilmente Jesus teria ido “acordar a Lázaro” sem saber-se Um com a vontade do Pai. Seus discípulos haviam-no alertado quanto ao perigo que correria na Judeia, e o que Ele faria na sepultura de Lázaro sem ordem de Seu Pai? (36) Então os judeus disseram: “Vejam como ele o amava!” Enquanto alguns dos visitantes em luto consideravam as lágrimas de Jesus como causadas pela emoção perante a perda de um amigo, outros, de modo tipicamente humano, não deixaram de interpretar o choro de Jesus como hipócrita. Não havia Ele demonstrado indiferença em demorar tanto, enquanto ainda havia esperança para o seu amigo? 292 (37) Mas alguns deles disseram: “Ele, que abriu os olhos do cego, não poderia ter impedido que este homem morresse?” A recente cura do cego de nascença em Jerusalém ainda estava na boca de muita gente, inclusive na dos visitantes. Essas considerações em meio ao lamento, talvez em voz alta, fizeram acender ainda mais a indignação de Jesus. Não eram as pessoas pelas quais Ele estava sendo desafiado. Era a visível e real presença da morte, da demonstração do poder de seu último inimigo, da morte que Ele, fonte da vida da parte de Deus, teria que provar também. (38) Jesus, outra vez profundamente comovido, foi até o sepulcro. Era uma gruta com uma pedra colocada à entrada. Na época, usualmente, serviam cavernas ou grutas, às vezes naturais, como sepulturas. Nas duas paredes laterais da caverna havia bancos talhados, nos quais os mortos, envoltos em panos, descansavam. Uma grande pedra colocada na entrada evitava a entrada de animais silvestres e outros predadores. A região montanhosa nos arredores de Jerusalém era rica em cavernas. (39) “Tirem a pedra”, disse ele. Disse Marta, irmã do morto: “Senhor, ele já cheira mal, pois já faz quatro dias”. Não há como enfatizar melhor a irreversibilidade da morte física e com isso a impossibilidade de ajuda, como Marta o fez com as suas palavras de protesto. A experiência provava que, no quarto dia, um cadáver já está em decomposição. Pouco antes, Marta ouvia de Jesus as palavras: “teu irmão há de ressurgir”. Há intérpretes que entendem o protesto de Marta como prova de que não esperava nada mais; outros apontam para sua falta de fé e usam duras palavras contra a fé que precisa de “sinais” (como é fácil e hipócrita apontar a fé falha de outros!). (40) Disse-lhe Jesus: “Não lhe falei que, se você cresse, veria a glória de Deus?” Qual, afinal, foi o objetivo do “Evangelho de João”? “... estes sinais foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e, para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Todos nós precisamos de “sinais” para crermos. A fé de Marta, frente ao túmulo de seu irmão morto, necessitava da recordação e advertência do Senhor. Se Marta cresse, assim disse Jesus, ela veria não o horror da morte, mas sim “a glória de Deus”. (41) Então, (eles) tiraram a pedra. “Eles”, possivelmente os visitantes em conjunto com Marta, tiraram a pedra pesada. O suspense chegou ao máximo. Ao invés de espiar atentamente para dentro da gruta, Jesus olhou para cima e disse: “Pai, eu te agradeço porque me ouviste. (42) Eu sei que sempre me ouves, mas disse isso por causa do povo que está aqui, para que creia que tu me enviaste”. 293 As testemunhas lembravam desse “olhar para cima”. O Evangelista não nos conta da conversa de Jesus com o seu Pai, por cujo atendimento lhe agradeceu. No seu agradecimento, Jesus usou a expressão simples e exclusiva de “Pai” (como em Luc.11,2). O relacionamento de Jesus com seu Pai era diferente do de todas as demais pessoas. Somente após a sua “glorificação” Ele enviará sua primeira testemunha pascal, Maria Madalena, com a seguinte mensagem a seus discípulos: “... vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e para vosso Pai, para meu Deus e para vosso Deus” (20,17). Somente através de sua passagem pela morte e sepultura, Jesus se fez irmão para os seus discípulos. Seu Pai se tornou o nosso Pai e, por essa razão, hoje podemos orar também: “Pai nosso...”. Após agradecer por ter sido ouvido na sua oração, Jesus a encerrou afirmando: “... eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão, para que creiam que tu me enviaste”. As mãos e o olhar levantados enquanto orava, fizeram que todos entendessem onde Jesus buscava seu poder. (43) Depois de dizer isso, Jesus bradou em alta voz: Lázaro, venha para fora!” Jesus chamou Lázaro pelo seu nome. O leitor do Evangelho lembra o que Jesus disse do bom pastor: ele chama suas ovelhas pelo seu nome (10,3.27); que conhece os seus e é conhecido pelos seus, assim como o Pai conhece o Filho e esse o Pai (10,1); de cuja mão ninguém as arrebatará (10,28-30). Do mesmo modo o leitor se lembra da afirmação de Jesus em 5,24, onde Ele advertiu que: “... vem a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem, viverão”. Na situação presente do relato do Evangelista esse momento havia chegado, e com um brado alto Jesus ordenou: “Lázaro, vem para fora”! (44) O (que era) morto saiu. Jesus não levantou a sua voz para acordar a Lázaro. Nenhuma ordem alcança aquele que está morto. Quando Jesus bradou em alta voz, o morto que não podia nem ouvir nem obedecer, ouviu e obedeceu. O (que era) morto saiu, com as mãos e os pés envolvidos em faixa de linho e o rosto envolto num pano. Disse-lhes Jesus: “Tirem as faixas dele e deixem-no ir”. Saiu da gruta aquele cujo corpo e pernas estavam envoltas com panos de linha e cuja visão era, pelo menos, altamente dificultada pelo lenço que cobriu seu rosto. Novamente nenhuma explicação ou descrição do Evangelista de “como” Lázaro saiu. Nenhuma tentativa de ajuda para que entendêssemos o que estava acontecendo. João não fez o mínimo esforço para explicar ao leitor aquilo que havia testemunhado. 294 Paralisados pelo que viram, ninguém havia se lembrado do mais necessário, isso é, de livrar o ressuscitado das faixas. O próprio Jesus teve que dar a ordem de soltar a Lázaro, cujos movimentos estavam altamente dificultados, cremos. Após essa ordem de Jesus há um vazio no relato do Evangelista. É como se ele, repentinamente, perdesse o interesse no assunto. Lázaro desaparece sem mais nem menos e nada ouvimos do espanto das pessoas presentes; nada ouvimos de louvor ou agradecimento das duas irmãs. Ninguém se interessava em saber o que ele, Lázaro, havia visto lá, “no outro lado”. Essa quebra na história tem causado perplexidade desde o início da igreja. Tudo isso que gostaríamos de saber, não interessava ao nosso autor; era um só tema que o movia ao escrever: Jesus, o Filho de Deus. Por essa razão ele lembrou tão exaustivamente da oração que precedia à ordem dada a Lázaro. Ela exemplifica o caráter do relacionamento entre Pai e Filho: a demonstração da comunhão pessoal existente entre Pai e Filho, definindo e sustentando todo o seu ministério. “Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma que eu ouço, eu julgo (5,30); “... as obras que o Pai me confiou para que as realizasse, essas que eu faço testemunham a meu respeito de que o Pai me enviou” (5,36), não somente as obras, mas também as palavras testificam, pois, “o que tem visto e ouvido ele testifica” (3,32); “... as coisas que tenho ouvido dele, essas digo ao mundo” (8,26); “... vos tenho falado a verdade que ouvi de Deus” (8,40). Suas palavras são as palavras de Deus (8,47) e tudo, Ele recebe da parte de Deus. “Minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar sua obra”(4,34). Como toda a sua vontade se orientou no Pai, assim também a sua oração. Ele sabia que o Pai sempre o ouvia, e por isso Ele agradeceu (11,42.41). Sua oração era oração porque não era algo estático, definitivo, rezado e acabado, mas algo pessoal, renovando-se permanentemente e publicamente testemunhado frente ao tumulo de Lázaro. A grande pergunta para o leitor de hoje é a seguinte: Devemos ver na história de Lázaro um relato histórico? A ressurreição física de Lázaro realmente aconteceu? Ou estamos diante de uma história simbólica, baseada em elementos da tradição (de Lucas, principalmente) que exemplifica verdades espirituais? As pregações que ouvimos sobre Lázaro costumam ser ambíguas, isto é: cada um pode entender o que quer. Ninguém ousa perguntar: Lázaro ressuscitou mesmo? Há como saber, com exatidão, o que aconteceu? Porque os Evangelhos sinóticos nada sabem desse acontecimento supremo? Será que a razão humana e o bom senso são capazes de julgar esse relato? Perguntas sobre perguntas se levantam. Existem respostas convincentes? A partir da próxima leitura as procuraremos. 295 Suplemento para Cap. 11.32-44 O morto saiu, com as mãos e os pés envolvidos em faixa de linho e o rosto envolto num pano. Disse-lhes Jesus: “Tirem as faixas dele e deixem-no ir”. A história da ressurreição de Lázaro é um osso duro de roer para o cidadão do século 21. Muitas perguntas ficam sem respostas e há algo estranho na compilação da história. Os três Evangelhos sinóticos não conhecem uma pessoa real de nome Lázaro. Somente Lucas menciona um Lázaro, mendigo que morreu, que é um personagem de uma parábola e não da vida real (Lucas 16,19-31). Não há a menor dúvida de que o autor do Evangelho e os leitores da obra seriamente criam na ressurreição corporal de Lázaro. Como é que estamos entendendo o relato hoje em dia? A tradição sinótica, anterior a João, conhecia duas ressurreições (a da filha de Jairo em Marcos 2,35s, e a do filho da viúva de Naim, em Lucas 7,11-17). Nas duas, Jesus agiu comovido pela dor, usando de misericórdia. Na ressurreição de Lázaro não vemos nada disso; ela se constitui em ato demonstrativo e sensacional. Esse sinal operado por Jesus, porém, não está em harmonia com a sua premissa. Nos versos 25 e 26, Jesus havia dito à Marta: “EU SOU a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente”. Como efeito vemos o retorno de Lázaro à vida terrena, continuando sob o domínio da morte, enquanto a palavra de Jesus prometia vida da parte de Deus, superior, e não dependendo da vida terrena ou da morte física, vista como secundária. Fica difícil entendermos a relação entre a promessa metafísica e a demonstração de um retorno à vida biológica, temporária. Esse aparente desencontro é o que mais intriga os comentaristas. Vamos falar francamente sobre nossas dúvidas e fazer uma avaliação dos pensamentos em torno desse último milagre de Jesus. Queremos saber se aquilo que encontramos no capítulo 11 são fatos fidedignos, observados e relatados por uma testemunha ou se a história de Lázaro é simbólica, que somente transmitem algumas verdades espirituais. Comecemos com a pergunta: Por que nenhum dos demais Evangelistas sabe da ressurreição de Lázaro? Não encontramos nenhuma resposta convincente. Segundo João, Jesus estava na companhia dos Doze quando chamou Lázaro de volta à vida. Mesmo se João fosse o único deles e que tenha escrito um Evangelho (pois sobre a autoria do Evangelho de Mateus existem várias hipóteses e Marcos e Lucas não faziam parte dos discípulos), a tradição não poderia ter silenciado as vozes a respeito desse maior dos sinais. 296 Para termos uma visão de uma hipótese possível retornamos aos capítulos 2,3 e 4 do nosso Evangelho. Ali vimos como o autor usou de grande liberdade literária para colocar a base de sua mensagem fundamental (20,31). Lembramos que naqueles três capítulos, o Evangelista ignorou qualquer sequência histórica. No milagre do vinho no casamento em Caná, cap.2,1-11, vimos como João usou seu relato da festa para simbolicamente demonstrar a superabundância da Graça e a ineficácia de rituais. Percebemos como, no clímax da festa, a história sucumbe no irreal e misterioso. Subitamente desaparecem a mãe, os irmãos e todos os atores da história, semelhantemente ao que acontece no capítulo 11. O Evangelista encerra seu relato com a sentença: “Com este, deu Jesus princípio aos seus sinais...”. No capítulo seguinte, o Evangelista usou o início de uma entrevista para, cortando-a logo em seguida sem que nos fosse possível determinar com exatidão a que altura isso acontece, para desenvolver a sua própria mensagem, chegando em 3,16 ao coração do seu Evangelho. Mais à frente, no capítulo quarto, o Evangelista trabalhou o encontro de Jesus e sua conversa com uma mulher samaritana para revelar-se Aquele que é (4,25.26), e isso na ausência de testemunhas (seus discípulos tinham ido à cidade). O mesmo vale para o que chamamos a “purificação do Templo”, cuja narração é interrompida no clímax do acontecimento (2,17), dando ao Evangelista a oportunidade de lançar a primeira luz sobre a missão da redenção (V.19). A mão do Evangelista modelou todos estes acontecimentos históricos (reais) para fazer neles sobressair aquilo que ele define em 20,31 como a finalidade de seu Evangelho. O que tudo isso tem a ver com a história de Lázaro? Se nela o Evangelista queria mostrar uma antecipação do sinal de Jonas e o poder de Jesus sobre a morte, ele o fez com maestria. Você deve ter notado que João sempre apresenta Jesus triunfando. Pouco à frente, porém, Jesus será entregue nas mãos do inimigo que escraviza este mundo desde a caída do homem no Éden: a morte. Será cortada, pela primeira vez, a até então ininterrupta comunhão do Filho com o Pai. Para não deixar seu leitor interpretar a crucificação como vitória da morte (embora temporária), a história de Lázaro exemplifica que exatamente aquilo que parece derrota se transformou, através de Jesus, em vitória. João sempre interpretou a crucificação como “glorificação”, pois através dela, Deus confirmou ser Senhor também da morte, ressuscitando a Jesus. A morte, vista como irreversível, foi vencida e essa promessa passará a valer para todos os que “pertencem ao bom pastor”. A história de 297 Lázaro (caso seja uma metáfora) exemplifica que nem a morte física nos deixará fora do alcance da mão do Pai (11,25.26). Na sua obediência, Jesus glorificou ao Pai e foi glorificado por Ele. Será que agora podemos entender melhor o uso realizado pelo Evangelista do conceito da glorificação ? Se João “trabalhou” a na época conhecida parábola de Lázaro (Lucas 16,19ss), exemplificando as palavras de Abraão: “Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentro os mortos” e deu forma ao que Jesus havia declarado a respeito do bom pastor, no capítulo anterior, fica evidente por que os Evangelhos sinóticos não conhecem a ressurreição de Lázaro. A escola teológica atual entende a história de Lázaro não como um acontecimento histórico, verdadeiro, mas, sim, como uma compilação livre do nosso autor. Ele teria usado elementos de algumas tradições anteriores, principalmente a parábola do homem rico e de Lázaro, mendigo, do Evangelho de Lucas. O Evangelista teria criado a história desse “sinal” extraordinário para demonstrar “a realidade da exclusividade salvadora de Jesus” conforme sua promessa nos versos 25 e 26, mencionada acima. Essa declaração de Jesus, em si, compreende tudo aquilo que nos capítulos anteriores já nos fora dito. O simbolismo da história demonstraria de forma convincente a fé no poder da vida do Cristo, capaz de socorrer onde não há mais vida nem esperança e tudo parece perdido e morto. Conforme a escola de Strathmann, o capítulo 11 é um testemunho poderoso da fé vencedora cristã. Ele sentencia: Este poder somente se revela efetivo quando desistimos de nos atormentar com a procura do entendimento apologético-histórico (isto é, literal). Segundo Strathmann não há como nos convencer da veracidade do relato, pois essa história contradiz em tudo o nosso “bom senso e vai contra a razão” (!) Ele aconselha abandonar a apologética (defesa da fé) ultrapassada, pois esta nunca nos levará a uma convicção real. A interpretação histórica, quando muito, nos sossega. C.S.Lewis (1898 – 1963) nos confiou como os pastores fazem para poder pregar a ressurreição (por exemplo) quando nem nela creem. Os pastores, assim diz Lewis, retomavam o velho ensino medieval das duas verdades: uma verdade simbólica, com a qual é possível pregar de tal forma que cada um possa entender aquilo que quer; e a outra, esotérica, para o intercâmbio entre si, pastores e teólogos. Na sua palestra de 11 de maio de 1959, em Cambridge, ele fez uma profecia que já se tornou realidade. Ele disse: “Antigamente, os leigos procuravam esconder o fato deles crerem menos que seus pastores; hoje, o leigo procura esconder que ele crê muito mais que seu pastor. A tarefa de ser 298 missionário para os pastores de sua própria igreja será uma tarefa muito desagradável” (Modern Theology and Biblical Criticism, 1959). Essas são as “soluções” apresentadas na teologia. Elas valem para todos os milagres, até para a ressurreição de Jesus. Não devamos procurar faticidade histórica (pois, dizem, o que ela nos diria?), mas, sim, atentar ao que nos é dito com relação à importância teológica. Será que podemos agradecer por essa solução? Não o podemos, pois ela nos levaria a um dilema perigoso. Se a teologia moderna (Strathmann e o. m.) falasse sério, quando diz que a fé no poder da vida do Cristo seja capaz de socorrer onde não há mais vida nem esperança e tudo parece perdido e morto, não vemos razão alguma para não crer que esse Cristo poderoso chamou a Lázaro para fora do sepulcro! Se, no entanto, a afirmação do poder é somente simbólica, segue que, na vida real, temos um Jesus tão desamparado e sem forças perante o poder terrível da morte como qualquer um de nós o somos! Neste caso, a frase “Cristo pode ajudar até onde não há mais vida nem esperança” revela-se papo sem fundamento. Um “história simbólica” só nos pode mediar um “poder simbólico” da parte de Jesus. No início do capítulo (v. 4) vimos como a morte de Lázaro havia colocado Jesus perante à questão decisiva. Até então, o poder de Jesus sobre a doença se revelava real. Mas, como seria a situação perante o poder da morte? A morte, conforme o Apóstolo Paulo, é o último inimigo a ser vencido (1 Cor 15,26). A questão é a seguinte: Jesus tinha que calar-se inoperante frente à demonstração da morte, igual a nós? Ou seu poder operava também no âmbito da morte? Essa questão não pode ser respondida com uma história simbólica. No Evangelho de Lucas, cap 16,19-31, está registrado a parábola do homem rico e de Lázaro, mendigo. Vejamos o que J.Ratzinger (Bento XVI) nos diz à respeito: Nesta parábola “... muitos homens de hoje dizem ou gostariam de dizer a Deus: se quiseres que acreditemos e que organizemos a nossa vida segundo a palavra da revelação da Bíblia, então deves ser mais claro! Mande-nos alguém do além (de volta) que nos possa dizer que de fato assim é realmente. O problema da exigência de sinais, da exigência de uma maior evidência de revelação, percorre todo o Evangelho. A resposta de Abraão bem como a resposta de Jesus à exigência de sinais dos seus contemporâneos fora do mistério é clara: quem não acredita na palavra da Escritura também não acreditará em alguém que venha do além... 299 ... Se virmos na história (da ressurreição) de Lázaro a resposta de Jesus à exigência de sinais de sua geração, então nos encontramos em harmonia com a resposta central que Jesus deu a esta exigência. Em S.Mateus diz assim: Esta geração má e perversa exige um sinal. Mas nenhum sinal lhe será dado exceto o sinal do profeta Jonas. Pois, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe, assim também o Filho do Homem estará três dias e três noites no interior da terra” (Mat.12,39s). Em Lucas, lemos:”Esta geração é má. Ela exige um sinal; mas nenhum outro sinal lhe será dado exceto o sinal de Jonas...” (Lucas 11,29s). Não precisamos aqui analisar a diferença destas duas versões. Uma coisa é clara: O sinal de Deus para os homens é o Filho do Homem, é Jesus. ... Ele mesmo é “o sinal de Jonas”. Ele, o crucificado e o ressuscitado, é o verdadeiro Lázaro...” (Ratzinger Josef. Jesus de Nazaré, Planeta, 2007). O papa, diplomaticamente, deixou nas suas palavras em aberto se a ressurreição de Lázaro era real ou figurativa. O Evangelista afirmou: Lázaro, irmão de Marta e Maria, voltou à vida. Ele constitui a “sombra antecipada” do sinal de Jonas. Nem por isso todas as pessoas que viram o fato chegaram à fé, exatamente como Jesus previa. Muito pelo contrário: o milagre da ressurreição de Lázaro, o acontecimento, o “sinal” em si, não conduziu à fé, mas sim, ao endurecimento (João 11,45s). Mais sobre isso na próxima leitura. Numa narração como a de Lázaro, onde temos “a história” em si como único meio para termos informação a respeito da realidade física e a transcendental, teríamos que dizer: Não sei como separar o acontecimento de sua realidade transcendente! Se separarmos aquilo que entendemos como “simbólico” acontecimento básico, sobrará uma mera alegoria, sem conteúdo real. do Aceitar o relato do Evangelho literalmente não precisa significar entender tudo como realidade física, palpável. Se interpretamos as palavras de revelação da Bíblia deste modo, elas nem mais são religiosas, não mais terão conteúdo espiritual, elas são mortas. Esse é o perigo que correm aqueles que procuram interpretar a Bíblia literalmente. A própria encarnação de Deus tem a sua dimensão humana, substancial, aquela que vimos: o homem de Nazaré. É dele que o Evangelho nos fala. Tem a dimensão espiritual e essa não expressamos em palavras. Ela é acessível unicamente pela fé no Filho. Pensando na história de Lázaro, podemos afirmar o seguinte: Se Jesus é aquele que, desde o Prólogo, nos está sendo apresentado no Evangelho joanino; se, “sem ele, nada que existe teria sido feito (1,3s), não vejo por que esse Jesus, o doador da vida, não podia inverter o processo orgânico e chamar Lázaro de volta à vida biológica e mental! 300 A questão do “como” não teremos respondida a contento enquanto permanecermos humanos. Se um dia O conhecerei (1.Cor.13,9s) assim como eu fui conhecido por Ele, saberei com certeza quais as partes da “história” (e também da de Lázaro) foram simbólicas (se é que foram) e quais não o foram. Então entenderei que “a realidade transcendental não exclui espaço ou forma, acontecimento e pessoas” (C.S.Lewis). Por enquanto sabemos da revelação de Deus através do relato do Evangelho, escrito por humanos e cuja mensagem mudou o mundo – mas chegará a hora em que entenderemos até o “como”; será no momento em que não haverá mais a mínima necessidade de “interpretação”. Cada escola teológica tem seu tempo. Até a de hoje! Ela será substituída por outra, e assim, ad infinitum, enquanto Deus tiver paciência e nos der tempo para pensar. Devemos ter em mente essa relatividade do conhecimento quando procuramos interpretar a Palavra de Deus, que, por si, é eterna. Cap. 11.45-57 (45) Muitos dos judeus que tinham vindo visitar Maria, vendo o que Jesus fizera, creram nele. (46) Mas alguns deles foram contar aos fariseus o que Jesus tinha feito. (47) Então os chefes dos sacerdotes e os fariseus convocaram uma reunião do Sinédrio. “O que estamos fazendo”, perguntaram eles, “Aí está esse homem realizando muitos sinais miraculosos. (48) Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação”. (49) Então, um deles, chamado Caifás, que naquele ano era o sumo sacerdote, tomou a palavra e disse: “Nada sabeis! (50) Não percebeis que vos é melhor que morra um homem pelo povo , e não pereça toda a nação. (51) Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, (52) e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo. (53) E daquele dia em diante, resolveram tirar-lhe a vida. (54) Por essa razão, Jesus não andava mais publicamente entre os judeus. Ao invés disso, retirou-se para uma região próxima do deserto, para um povoado chamado Efraim, onde ficou com os seus discípulos. (55) Ao se aproximar a Páscoa judaica muitos foram daquela região para Jerusalém a fim de participarem das purificações antes da Páscoa. (56) Continuavam procurando Jesus e, no Templo, perguntavam uns aos outros: “O que vocês acham? Será que ele virá à festa?” (57) Mas os chefes dos sacerdotes e os fariseus tinham ordenado que, se alguém soubesse onde Jesus estava, o denunciasse, para que o pudessem prender. (45) Muitos dos judeus que tinham vindo visitar Maria, vendo o que Jesus fizera, creram nele. Mais uma vez ouvimos como “muitas pessoas” chegaram a crer em Jesus. Havia muita gente que o amava. A palavra, ou neste caso a experiência de ver Lázaro voltando à vida, deixou-as espantadas e desarmadas. Não que tivessem um entendimento teológico a respeito do que viram, mas seus corações se abriram. Eles aceitaram o fato que, por alguma maneira extraordinária, Deus estava agindo através desse Mestre de Nazaré. 301 (46) Mas alguns deles foram contar aos fariseus o que Jesus tinha feito. O maior milagre não consegue vencer uma disposição contrária do indivíduo. O texto não diz que esses “alguns” que, apressados, foram informar os fariseus (responsáveis pela manutenção e pureza da fé), não ficaram impressionados; pelo contrário: eles foram informar o fato incrível que aconteceu. O milagre não os havia levado à fé; isto seria reconhecer Jesus e colocar-se do seu lado. O milagre os fez entender o perigo que o acontecimento significava para o clero. (47) Então os chefes dos sacerdotes e os fariseus convocaram uma reunião do Sinédrio. Os fariseus não necessariamente eram inimigos de Jesus. Eles, junto com os sacerdotes, muitas vezes interpelavam Jesus; outrossim já procuravam prendê-lo, tudo sem êxito. O Sinédrio1, convocado às pressas, não tomou conhecimento somente do milagre. Ele também foi informado do fato de que cada vez mais judeus começavam a crer nesse Jesus. Sua reação deixa a impressão de que entenderam bem onde estava o perigo. 1 Havia dois Sinédrios: o “Grande dos Setenta e hum” (membros), e o “Pequeno Sinédrio”. O “Grande Sinédrio dos Setenta e hum” (membros) era, em essência, um órgão legislativo, presidido pelo sumo sacerdote. Era lei judaica que o sumo sacerdote fosse designado vitaliciamente, sendo indicado pelo “Grande Sinédrio dos Setenta e hum”, mas os governadores romanos introduziram a novidade de que a nomeação seria feita e desfeita por eles, ao seu bel-prazer. Dessa forma, os sumos sacerdotes sempre eram romanófilos (simpáticos aos romanos). Ao mesmo tempo o sumo sacerdote era o símbolo do orgulho e das aspirações nacionais judaicas e de sua superioridade religiosa, e elevado guardião e supremo comandante. O “Grande Sinédrio dos Setenta e hum” era composto de saduceus (minoria) e fariseus (maioria). O sumo sacerdote, da linha dos saduceus por nascimento, procurou aliar-se sempre que possível aos fariseus, porque esses, pobres e patriotas, gozavam da afeição e da confiança da grande massa da população, ao contrário dos saduceus, ricos e politiqueiros. Através dos fariseus, o sumo sacerdote buscou atingir o povo. Como o sumo sacerdote era nomeado por Roma e destituível a qualquer hora, ele se interessou em dirigir os assuntos internos dos judeus tão branda e eficientemente que não haveria qualquer fundamento para uma interferência militar romana. O sumo sacerdócio limitava-se a umas poucas famílias da aristocracia saducéia, constituídas de um único clã em Jerusalém e que tinha os recursos necessários para pagar os elevados custos decorrentes do cargo. Sabemos que a nomeação para o sumo sacerdote tornara-se uma fonte lucrativa de receita privada para os governadores romanos – se um ocupante do posto não podia ou não queria pagar o preço, seria deposto e um mais acessível o substituiria. 302 Por outro lado, lhe seria de pouca ajuda ser reconhecido como sumo sacerdote pelo governador romano se como tal não fosse aceito pelos próprios judeus e reconhecido por eles como supremo chefe e porta-voz nos assuntos de interesse do povo judaico. Ele era o único homem “eleito” e qualificado para entrar no Sagrado dos Sagrados (Santo dos Santos), no Templo, uma vez por ano (Lev.16,32); ele, que estava “mais próximo de Deus” e ungido para representar o povo perante de Deus. A situação do sumo sacerdote era curiosa e ambivalente: desprezado pelos judeus como fantoche dos romanos tinham de usar (e usava) os bons ofícios sacerdotais em mediação com as autoridades romanas. Os judeus desprezavam o sumo sacerdote por suas relações saducéias e por seus defeitos morais e profissionais; por outro lado, tinham que reconhecê-lo como ocupante legal do mais alto posto nacional e religioso. O “Grande Sinédrio” tratava de todos os assuntos políticos em que interesses judaicos interferiam em interesses romanos. A jurisdição penal, inclusive a que se aplicava em casos capitais, era exercida pelo chamado “Pequeno Sinédrio”, de vinte e três juízes. O Pequeno Sinédrio podia julgar qualquer judeu, por qualquer crime que fosse, segundo a lei judaica, condená-lo à morte e praticar a execução sem que o governador romano interferisse de qualquer maneira (por exemplo, a morte de Estêvão). O crime de profanar o sábado, por exemplo, ou de idolatria (Num.15,35/Dt.21,21), não interessava aos romanos; como crimes de acordo com a lei judaica incorreriam somente na exclusiva jurisdição dos tribunais judaicos e o governador romano nunca reivindicaria jurisdição sobre eles, pois o direito romano não considerava qualquer um dos dois atos como crime (Cohn). “O que estamos fazendo”, perguntaram eles, “Aí está esse homem realizando muitos sinais miraculosos. (48) Se o deixarmos, todos crerão nele, e então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação”. A inimizade da liderança religiosa que, até agora, por bem ou por mal, tolerava o Nazareno, passou a ser perigosa no momento em que para os fariseus ficou evidente que, aos poucos, sua posição como líderes estava sendo minada. Nem era “Ele” o problema, nem os sinais que operava; era o movimento crescente em volta desse homem que ameaçava a posição religiosa deles, tolerada pelos romanos. Qualquer aparente movimento messiânico considerado pelos romanos como político, imediatamente enfrentaria o poderio militar das legiões romanas. Esses iam agir sem demora e acabar com o que restava de independência judaica – da prática religiosa e de sua posição na hierarquia religiosa. O perigo era real. “Os romanos tirarão o nosso lugar”! “Nosso lugar”, termo técnico para o Templo (usado somente aqui e em 4,20). Esse não se podia perder! Com ele, dinastias de sacerdotes, escribas e fariseus iam perder sua existência, sua razão de ser. E com a perda “do lugar” eles 303 perderiam o povo; pois era da fé que todos eles viviam e era o dinheiro do povo que mantinha funcionando todo este aparelho religioso. Você percebe alguma semelhança com o que temos hoje em termos de “Igreja”? Após algumas tentativas fracassadas de detenção eles haviam deixado Jesus pregar. O povo o admirava, mas agora, diante dos rumores de Betânia (Lázaro), tudo parecia em jogo. Como agir para não perder a simpatia do povo? Seus milagres contavam a seu favor. Mesmo entre eles, fariseus, nem todos odiavam o Nazareno. O problema se tornara político. Percebemos que o assunto era da alçada do “Grande Sinédrio”. (49) Então, um deles, chamado Caifás, que naquele ano era o sumo sacerdote, tomou a palavra e disse: “Nada sabeis! (50) Não percebeis que vos é melhor que morra um homem pelo povo, e não pereça toda a nação. Muitos comentaristas apontaram o verso 49 como prova contra a autoria de João Evangelista. Como judeu, João sabia que o cargo do sumo sacerdote era vitalício. Como ele pode escrever “naquele ano”? A observação “naquele ano” não constitui prova contra a autoria do Evangelista, mas atesta que o comentarista está mal informado quanto aos hábitos políticos e religiosos da época. Da mesma forma como João sabia que o cargo era vitalício, também sabia da prática romana. Após Caifás, que ocupava o cargo durante longos dezoito anos (18-36), os sumos sacerdotes ficaram somente poucos anos, alguns até por poucos meses no cargo! A observação do Evangelista simplesmente identifica o sumo sacerdote naquele ano memorável: Caifás. Este não fez segredo do seu desprezo após acompanhar a discussão, e notando que havia mais desespero e perplexidade do que evidência de responsabilidade política nos votos dos fariseus. Portanto sentenciou: “Ignorantes! Esqueceram o princípio político de que o bem do povo exige o sacrifício do indivíduo? Ou ‘ele’ ou nós todos!” (51) Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, (52) e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo. Este comentário do Evangelista encontra as mais diversas interpretações. Quem são esses filhos de Deus espalhados? O que os separa dos demais? Há quem vê nos versos 51 e 52 a mão de um autor posterior, querendo limitar a salvação “ao povo de Deus e a alguns eleitos de entre os gentios”. O nosso Evangelista sempre defendeu a universalidade da obra redentora de Jesus. Será que 51 e 52 dão margem para a doutrina da predestinação? 304 No Prólogo era dito que “aos que o receberam, aos que creram no seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (1,12). Perguntamos: Essa palavra implica em uma condição que nós tenhamos que cumprir? Não é Deus que aparece como quem oferece e dá? Receber não é cumprir uma exigência! A promessa é condicional, sim, mas no sentido de “dar razão a Deus”. Receber a Jesus implica em concordar com Ele; não em cumprir exigências! Quem ou o quê determina quais são esses filhos de Deus espalhados? Jesus disse em 10,16: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor”. Será que João entendeu essa designação referindo-se a alguns “predestinados” – escolhidos à parte? Somente alguns são escolhidos? Pensamos que não. Todos nós somos potenciais candidatos para o céu. Se João fala dos espalhados, ele não contradiz sua visão da redenção do mundo. Não é Deus que exclui alguém da salvação. Lembremos de 9,41 que define a razão da cisão entre uns e outros: “... se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece”. Há cegos e há surdos para com Jesus e há os que ouvem e que veem. Qual a razão de alguns ouvirem enquanto outros não? A controvertida questão da predestinação ou eleição não encontrará resposta racional enquanto o nosso conhecimento for parcial (1.Cor.13,12). João vê nos “filhos de Deus espalhados” a Eclésia, a totalidade dos que Deus chamou “para fora”, escondida entre povos e nações, como o Apóstolo a viu em Apoc.7,9: “... uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas ...” Há ambiguidade dos termos usados por João. Na boca de Caifás seriam Israel e os judeus na diáspora. Para o Evangelista era o povo de Deus, composto de judeus e gentios. Os versos 51 e 52 não são palavras de Caifás; são o comentário do Evangelista que viu a profecia cumprida, pois a igreja de seu tempo já era composta majoritariamente por gentios convertidos. ... o sumo sacerdote naquele ano, profetizou... Aquele que no cálculo político declarou que o fim santifica os meios, sem querer ou saber tornou-se ferramenta na mão de Deus. O Evangelista se referiu à crença judaica de que o sumo sacerdote, enquanto no cargo, profetiza. Duas menções no AT falam de um sumo sacerdote profetizando (Num 27,21 e 2.Sam.15,27ss). Filo, historiador e contemporâneo de João, declarou que cada verdadeiro sacerdote era profeta de Deus. (53) E daquele dia em diante, resolveram tirar-lhe a vida. 305 Após diversas tentativas fracassadas de eliminação, o Sinédrio oficializou a determinação de eliminar o Nazareno. O texto pode ser traduzido também da seguinte forma: “... daquele dia em diante, estavam se consultando em como tirar-lhe a vida”, o que dá mais sentido à frase. (54) Por essa razão, Jesus não andava mais publicamente entre os judeus. Ao invés disso, retirou-se para uma região próxima do deserto, para um povoado chamado Efraim, onde ficou com os seus discípulos. A decisão tomada, embora ainda sem definição de como e quando, feriu a Torá, porque foi tomada na ausência do acusado e sem ouví-lo, como manda a Lei. Tempos atrás, um dos membros do Sinédrio, Nicodemos, já havia protestado e apontado essa falha jurídica no julgamento, mas foi silenciado (7,50ss). Más notícias correm rápido! Avisados do perigo em Jerusalém, Jesus e seu grupo desapareceram. Jesus não mais andava publicamente. De acordo com pesquisadores, a região de refúgio chamada Efraim, localiza-se a aproximadamente 20 quilômetros ao NE de Jerusalém. Hoje é uma vila com nome árabe et-tajjbeh (A.Guilding, Jewish Worship 150). (55) Ao se aproximar a Páscoa judaica muitos foram daquela região para Jerusalém a fim de participarem das purificações antes da Páscoa. O autor chamou a festa: “Páscoa dos judeus”, usando um termo neutro. Os “não judeus” eram excluídos expressamente desse ritual. O historiador Josefo relata da Páscoa do ano 66, durante o cerco a Jerusalém, poucos anos antes da sua destruição: “... sacrifica-se da nona à décima primeira hora – para cada sacrifício era necessária a presença de pelo menos dez homens pois, individualmente, não podiam comer. Contaram-se 255.600 animais sacrificados. Isso fazia 2.700.000 participantes, todos purificados e consagrados, pois leprosos ou mulheres no rito da purificação pós menstrual e outros impuros não podiam participar, assim como não judeus (Bell.VI.423-427)...” A situação dessa festa em tempo de guerra era singular e o número de participantes parece duvidoso, porém o número era enorme também nos anos comuns. Conforme cuidadosa avaliação de J.Jeremias, a cada ano subiram em média 100.000 peregrinos à Jerusalém, uma cidade com 25.000 habitantes. Imaginem o aperto nas vielas estreitas, principalmente na região do Templo! Fica evidente a razão da necessidade do peregrino chegar em tempo e encontrar uma casa para a necessária purificação e consagração com os rituais conforme 2.Crônicas 30,17e Num.9,10. (56) Continuavam procurando Jesus e, no Templo, perguntavam uns aos outros: “O que vocês acham? Será que ele virá à festa?” (57) Mas os chefes dos sacerdotes e os fariseus tinham ordenado que, se alguém soubesse onde Jesus estava, o denunciasse, para que o pudessem prender. 306 Pela pergunta “será que Ele virá à festa?” subentende-se, que entre os peregrinos já corria a notícia da busca ordenada pelas autoridades religiosas. O suspense no ar, o corre-corre da festa, o boato do mandado de busca, tudo isso fez fervilhar o ambiente. Onde Ele estaria? O mandado de busca pelo Sinédrio obrigava a todo judeu fiel denunciar o paradeiro dEle, caso o encontrasse. “Ele” teria a ousadia de comparecer? O povo o amava. Teriam a ousadia de prender aquele que operava tantas curas e falava de Deus de modo tão diferente dos fariseus? É da terceira Páscoa que o Evangelho de João nos fala no cap.11 (2,13ss; 6,4ss). Nas três vezes, o autor inicia seu relato com as palavras: “... estava perto (chegando) a Páscoa dos judeus”. Os três Evangelhos sinóticos só conhecem um único ano de ministério e uma só Páscoa. O Evangelho de João passa a impressão de três festas e três anos de ministério. Onde está a verdade? A hipótese de Thyen (2005) tem alguns indícios a favor. Ela entende o Evangelho de João como o ministério de Jesus estendido de um a três anos, usando de grande liberdade literária. João teria distribuído o conteúdo da semana da Páscoa em três. Ninguém pode descartar de vez essa hipótese. Ela explicaria algumas situações que, sem ela, continuam obscuras. Vejamos por exemplo: Já no segundo capítulo, “quando já estava chegando a Páscoa...” Jesus ligou sua ação no Templo com a sua morte. Ele faria isso no início do seu ministério? “Destruam este Templo e eu o levantarei em três dias”. Os judeus responderam: “Este Templo levou quarenta e seis anos para ser edificado, e o senhor vai levantá-lo em três dias?” Mas o Templo do qual Ele falava era seu corpo. Depois que ressuscitou dos mortos, os seus discípulos lembraram-se do que Ele tinha dito (2,19-22). Com a hipótese de Thyen ficaria elucidado o porquê da purificação do Templo no início de seu Evangelho, quando nos três sinóticos ela consta no final, ocasião em que realmente aconteceu. O sexto capítulo fica ligado através do verso 6,4 à Páscoa final, onde João menciona as palavras de Jesus: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” (6,51). O texto que segue pode ser visto como a versão joanina da instituição da ceia dos sinóticos, que João não traz. No conteúdo e no significado do Evangelho nada fica alterado através da extensão de um ano (sinóticos) para três. Continuaremos, portanto, a leitura com a tradicional interpretação de três anos de ministério de Jesus. 307 Cap. 12.1-11 (12.1) Seis dias antes da Páscoa, Jesus chegou a Betânia, onde vivia Lázaro, a quem ressuscitara dos mortos. (2) Ali prepararam um jantar para Jesus. Marta servia, enquanto Lázaro estava à mesa com ele. (3) Então Maria pegou um frasco de nardo puro, que era um perfume caro, derramou-o sobre os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos. E a casa encheu-se com a fragrância do perfume. (4) Mas um de seus discípulos, Judas Iscariotes, que mais tarde ia traí-lo, fez uma objeção: (5) Por que este perfume não foi vendido, e o dinheiro dado aos pobres? Seriam trezentos denários. (6) Ele não falou isso por se interessar pelos pobres, mas porque era ladrão; sendo responsável pela bolsa de dinheiro, costumava tirar o que nela era colocado. (7) Respondeu Jesus: “Deixa-a em paz; que o guarde para o dia do meu sepultamento. (8) Pois os pobres vocês sempre terão consigo, mas a mim nem sempre terão”. (9) Enquanto isso, uma grande multidão de judeus, ao descobrir que Jesus estava ali, veio, não apenas por causa de Jesus, mas também para ver Lázaro, a quem ele ressuscitara dos mortos. (10) Assim, os chefes dos sacerdotes fizeram planos para matar também Lázaro, (11) pois por causa dele muitos estavam se afastando dos judeus e crendo em Jesus. (12.1) Seis dias antes da Páscoa, Jesus chegou a Betânia, onde vivia Lázaro, a quem ressuscitara dos mortos. (2) Ali prepararam um jantar para Jesus. O período de silêncio e a falta de informação a respeito da permanência de Jesus na região de Efraim (11,54) abrange aproximadamente dois meses. Agora, “seis dias antes da Páscoa”, Jesus apareceu em Betânia, vilarejo onde Ele chamou Lázaro de volta à vida. As diversas linhas de interpretação discordam na contagem dos dias. Sigamos a linha que identifica o dia de sábado como o dia do nosso “jantar” em Betânia, jantar festivo portanto (conferindo com Marcos), e não percamos tempo com outras considerações à respeito e sem importância para o nosso estudo. Na época de Jesus, refeições comuns eram feitas com as pessoas sentadas; para jantares festivos ou rituais, no entanto, deitava-se em forma de U em torno de uma mesa baixa, apoiando-se pelo braço esquerdo num travesseiro e com as pernas esticadas para trás, seguindo à prática grecoromana. Todos os quatro Evangelistas relatam o jantar oferecido em Betânia em honra de Jesus de forma parecida, porém discordando em vários detalhes. Percebe-se claramente que os Evangelistas falam do mesmo acontecimento. Se compararmos as quatro versões, perceberemos que a versão de Mateus 26,6-13 e a de Marcos 14,3-11 em grande parte são idênticas com a versão de João. A versão de Lucas (7,36-50) não se encaixa muito bem no relato de João. Com um mínimo de bom senso temos que admitir que, pelo menos as descrições de Mateus, Marcos e João falam do mesmo acontecimento (se quiser conferir: Mateus 26,6s; Marcos 14,3s; Lucas 7,36s). 308 Vamos fazer uma outra consideração interessante: Quais dos nossos Evangelistas estavam presentes no evento? O Evangelista João, na condição de discípulo, provavelmente sim. Pedro, discípulo, era testemunha também, e sua versão encontramos no Evangelho de Marcos. Mateus, como largamente se aceita, usou o Evangelho de Marcos quando trabalhou a sua versão original de “logias” (palavras e ditos) do Senhor. Ele copiou alguns capítulos inteiros de Marcos sem alterá-los. Se Mateus mesmo for o autor do Evangelho que leva o seu nome (há diversas teorias a respeito), temos o testemunho de outro discípulo, Mateus. Esses três relatos (Marcos, Mateus e João) falam do mesmo acontecimento; cada um da forma como seu autor se lembrou daquele jantar em que eles se escandalizaram tanto por causa de uma mulher para, em seguida, serem censurados pelo Senhor Jesus. Lucas, por sua vez, levantou na sua pesquisa (confira Lucas 1,1-4) uma versão diferenciada que, por ora, não procuramos interpretar. É possível que João procurou corrigir ou acrescentar, enriquecendo dessa forma a comovente narração, dando a ela a profundidade metafísica que caracteriza todo seu Evangelho. Percebemos também como alguns elementos, por exemplo a pessoa de Judas Iscariotes, foram ganhando forma mais acurada com a maior distância histórica de João. Marta servia, enquanto Lázaro estava à mesa com ele. Existem várias teorias quanto ao lugar e à casa onde este jantar fora oferecido. Não vamos nos perder nesse detalhe. Marcos a identificou como “a casa de Simão, o leproso” (homem possivelmente curado por Jesus). Pelo número de presentes deveria ter sido uma casa ampla. Havia pelo menos quinze convidados: Jesus, os Doze, Lázaro e o dono da casa, Simão. Em público, não era considerado correto que mulheres se reclinassem à mesa junto com homens. Entre as mulheres presentes na casa tanto Marta como Maria são figuras proeminentes na história, embora não estivessem reclinadas com os convidados. (3) Então Maria pegou um frasco de nardo puro, que era um perfume caro, derramou-o sobre os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos. Imagine este jantar, composto somente de homens. As conversas foram certamente meio pesadas, pois não ficara muito claro o que o Mestre pretendia. Considerações sobre a possível subida à capital e as opiniões diferentes foram discutidas. Repentinamente e sem que a maioria dos presentes o percebesse, uma mulher aproximou-se discretamente por detrás de Jesus (pela ordem em que se deitava na mesa só era possível aproximar-se de alguém por trás, por onde as pernas descansavam). Nas suas mãos, ela segurou um vaso de alabastro. Com um movimento 309 inesperado ela virou o vaso e deixou seu valioso conteúdo derramar sobre os pés de Jesus. Era nardo puro, extrato da raiz de uma planta da Índia, portanto um extrato extremamente caro. Todos ficaram estarrecidos. Não somente isso fez os homens presentes ficarem sem palavras: sem pronunciar alguma palavra, a mulher abaixou-se e cuidadosamente começou a limpar e secar com seu longo cabelo os pés de Jesus. Em Marcos e Mateus, a mulher que se expôs no meio dos homens de tal forma contrária aos bons costumes, ficou sem nome. João nos revela o seu nome, era Maria de Betânia, irmã de Marta. Enquanto João discretamente menciona que o perfume foi derramado, Marcos especificou: o frasco (vaso) foi quebrado, o que implica em perda total do valioso perfume. Enquanto os sinóticos dizem que o nardo fora despejado sobre a cabeça de Jesus (um gesto de profundo sentido religioso), João somente menciona os pés: ... derramou-o sobre os pés de Jesus... e os enxugou com os seus cabelos. O que João quis transmitir quando, em oposição aos sinóticos, somente lembra dos pés? Vejamos primeiro o aspecto simbólico da ação e somente depois o social. João parece criar um paralelo com outro relato exclusivamente dele: da lavagem dos pés dos discípulos. Jesus, um ou dois dias mais tarde, lavará os pés de seus seguidores. Tanto a lavagem feita por Maria quanto a lavagem dos pés dos discípulos por Jesus eram contrárias aos costumes. Aconteceram não antes, como mandou a tradição, mas durante o jantar festivo. Quando João fala, ele nunca escreve simplesmente relatando um acontecimento. Suas palavras escondem sentido duplo, são símbolos de realidades espirituais. Tudo em João toca e às vezes confunde-se no metafísico. A mesma mensagem que Maria transmitiu com sua lavagem dos pés do Mestre encontraremos pouco mais tarde quando Jesus explicará aos seus este gesto (no capítulo 13). Em toda a antiguidade, assim como no judaismo do tempo de Jesus, o rito da lavagem dos pés era sinal de hospitalidade. Ao visitante da casa sempre era oferecido uma bacia com água. O trabalho da lavagem em si era visto como desprezível. Somente escravos não judeus faziam este serviço. Nenhum judeu podia ser obrigado a lavar os pés de alguém. Conheceu-se, sim, a lavagem dos pés do pai pelo filho, ou pela mulher como sinal de respeito e amor. Também os alunos de grandes Rabis podiam evidenciar seu respeito através da lavagem dos pés do Mestre. Há quem vê na lavagem dos pés de Jesus (ao contrário da cabeça, que significa chamamento, coroamento, cf. Salmo 23,5) evidenciado o grande respeito de João perante o Senhor. Ninguém (nem Maria), seria digno de ungir seu Senhor, o Logos de Deus. Assim (ao contrário dos sinóticos que mencionam a cabeça e podem, de fato, estar certos), João se contenta com os pés, colocando-se na condição de servo. 310 E a casa encheu-se com a fragrância do perfume. Nenhum dos outros Evangelistas mencionou este fato. Todos, porém, passaram a mesma mensagem. João a passou através de um símbolo. Os sinóticos Mateus (26,13) e Marcos (14,9) usaram palavras. João falou através da metáfora da fragrância: assim como a fragrância agradável encheu “toda a casa”, o Evangelho com sua mensagem de redenção se espalhará pelo mundo todo. Os sinóticos fizeram o mesmo através da palavra de Jesus (que não consta em João): “... onde for pregado em todo mundo o Evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua” (Mc.14,9). Socialmente visto, o gesto de uma mulher em soltar seus cabelos na presença de homens era totalmente desconsiderado pelos costumes orientais de bom comportamento. Era mais, era um escândalo! E, como tal foi transmitido por gerações e, quando Lucas fez a sua pesquisa, a história chegou ao seu conhecimento como escândalo mesmo. Só podia ter sido uma grande pecadora que se atrevia a tal ato durante uma ceia e perante homens honrados e justos (cf. Lucas 7,36ss). Você vê como a tradição altera valores? (4) Mas um de seus discípulos, Judas Iscariotes, que mais tarde ia traílo, fez uma objeção: (5) Por que este perfume não foi vendido, e o dinheiro dado aos pobres? Seriam trezentos denários. Vejamos como o fator “tempo” trabalhou na tradição! O relato mais antigo (Marcos 14,4) ainda disse: “... alguns dos presentes começavam dizer aos outros, indignados... “. Anos mais tarde, Mateus já identifica um grupo: “... os discípulos, vendo isso, ficaram indignados...”. João, meio século depois, lembra bem quem era que se escandalizou: “... um dos seus discípulos, Judas Iscariotes, que mais tarde iria traí-lo...”. Notamos que João desenvolveu durante seus longos anos de ministério uma verdadeira aversão àquele que traiu seu Mestre. Como ladrão que “aquele” era, tinha calculado rapidamente o valor desperdiçado: era o salário de um ano inteiro de trabalho de um homem comum! (6) Ele não falou isso por se interessar pelos pobres, mas porque era ladrão; sendo responsável pela bolsa de dinheiro, costumava tirar o que nela era colocado. Na época em que escreveu, João estava convencido do fato de que Judas, tesoureiro do grupo, tenha sido desonesto. Quem era capaz de trair Jesus tampouco era transparente quando se tratava de dinheiro! João viu as trevas se opondo à luz. Na visão dele, Judas não era ladrão por amor ao dinheiro, não, era instrumento na mão de Satanás. Assim, nunca chamou Judas de “traidor”, sempre se referia “àquele que traíra”. Não fora Judas que estipulara as trinta moedas de prata; eram os sacerdotes que lhe ofereceram esta quantia (Mat 26,15). João nada sabe do famoso “beijo de 311 Judas” e não menciona seu suicídio. Em 13,27, ele categoricamente diz: “... Satanás entrou nele”. Tendo visto seu ex-colega na mão de Satanás, nada mais o interessou a seu respeito. (7) Respondeu Jesus: “Deixa-a em paz; que o guarde para o dia do meu sepultamento. Por onde Maria olhou, encontrou nos rostos só desaprovação e desprezo. Jesus, porém, a defendeu com as palavras acima. O texto no original do verso 7 confunde os intérpretes: Temos a impressão de que havia um resto de bálsamo e que Jesus pediu para guardá-lo para seu sepultamento!? Colocando uma vírgula no texto original no lugar onde aparentemente deveria estar, o sentido da palavra de Jesus muda. Parafraseando, segundo Nestlé/Aland, fica: “Deixa-a em Paz! Ela não vendeu este bálsamo (referindo-se às palavras de Judas) porque quis guardá-lo para a preparação no dia do meu sepultamento”. A proposta oposta de interpretação do original cf. Zahn/Bauer: “Deixe que ela agora guarde o resto para meu sepultamento” deixaria o protesto de Judas sem sentido. Não, a graça das palavras proféticas de Jesus consistia exatamente no derramamento, no desperdício nessa estranha lavagem dos pés. Em Marcos e Mateus, a frase está mais clara: “Deixai-a; por que a molestais? Ela praticou boa ação para comigo....Ela fez o que pode: antecipou-se a ungir-me para a sepultura” (Mc.14,6,7) Por Marcos sabemos que Maria quebrou o vaso; nada sobrou. Maria ofereceu tudo ao Senhor. O que mais ela podia fazer para expressar seu amor e sua abnegação perante seu Mestre? Faria sentido guardar um resto? Após a poderosa manifestação com Lázaro ela via o Senhor a caminho de Jerusalém, onde certamente seria coroado e reconhecido Senhor! Na visão de Maria, a unção não era para a morte, mas para o coroação! Ou será que Maria, com a intuição própria da mulher que ama, sentiu que esta talvez fosse a última oportunidade de honrá-lo? Os boatos da ordem de captura certamente já haviam chegado a Betânia. Será que foi essa a razão do jantar festivo: uma despedida? Não o sabemos. Sabemos sim, que os discípulos não haviam entendido a hora e ainda esperavam alguma revelação que os compensasse pela sua fidelidade. A menção do sepultamento na resposta de Jesus certamente deixou os presentes pensativos. Sua defesa de Maria perante a objeção de Judas fez ruir esperanças. Não sabemos qual foi a reação de Maria. O amado Mestre demonstrou com suas palavras que reconhecia sua atitude. Ele aceitou de bom grado ser ungido por ela. Mas por que falou em sepultamento? 312 Quem escutou bem, era Judas. Sua última esperança de que as circunstâncias que esperavam o Mestre em Jerusalém obrigassem a Jesus revelar quem era, morreu. Na visão dele estava na hora de subir no trono e este Jesus permitiu ser ungido por uma mulher para seu sepultamento! Não é difícil sentir o que se passou no coração desse homem que deixou tudo para trás a fim de seguir a Jesus, na firme esperança de ver Israel libertada. Não nos surpreende que seu coração, a partir desse momento, tenha ficado receptível a propostas do outro lado. Seu Mestre não estava disposto para lutar pelo Reino? Que engano o seu, em seguí-lo! (8) Pois os pobres vocês sempre terão consigo, mas a mim nem sempre terão”. Como selando suas palavras, este seu Mestre ainda colocou o desperdício do perfume acima da ordenança da Torá, que exige cuidar dos pobres e de órfãos e viúvas! (Em alguns manuscritos falta o verso 8). Como é próprio a João Evangelista, a história subitamente sucumbe. O relato de João permite interpretações que levam ao infinito. (9) Enquanto isso, uma grande multidão de judeus, ao descobrir que Jesus estava ali, veio, não apenas por causa de Jesus, mas também para ver Lázaro, a quem ele ressuscitara dos mortos. (10) Assim, os chefes dos sacerdotes fizeram planos para matar também Lázaro, (11) pois por causa dele muitos estavam se afastando dos judeus e crendo em Jesus. A notícia do aparecimento de Jesus em Betânia fez muita gente correr para lá. Foram os curiosos, querendo ver com seus próprios olhos “aquele morto ressuscitado” e outros, sedentos para ouvir Jesus; era tanta gente que as autoridades logo chegaram a saber do paradeiro atual “do procurado”. Sobrará para os chefes dos sacerdotes elaborar o esquema de eliminação dos dois, sem público, e acima de tudo não durante a festa. Qualquer tumulto podia lhes custar sua cabeça, pois os romanos haviam dobrado a atenção perante as multidões desses “judeus fanáticos” que não paravam de chegar na capital religiosa, Jerusalém. Cap. 12.12-19 (12) No dia seguinte, a grande multidão que tinha vindo para a festa ouvir falar que Jesus estava chegando a Jerusalém. (13) Pegaram ramos de palmeiras e saíram ao seu encontro, gritando: “Hosana!” – “Bendito é o que vem em nome do Senhor!” “Bendito é o rei de Israel!” (14) Jesus conseguiu um jumentinho e montou nele, como está escrito: (15)”Não tenha medo, ó cidade de Sião; eis que o seu rei vem, montado num jumentinho”. (16) A princípio seus discípulos não entenderam isso. Só depois que Jesus foi glorificado, eles se lembraram de que essas coisas estavam escritas a respeito dele e lhe foram feitas. (17) A multidão que estava com ele, quando mandara Lázaro sair do sepulcro e o ressuscitara dos mortos, continuou a espalhar o fato. (18) Muitas pessoas, por terem ouvido falar que ele realizara tal sinal miraculoso, foram ao seu encontro. (19) E assim os fariseus disseram uns aos outros: “Não conseguimos nada. Olhem como o mundo todo vai atrás dele!” 313 Com referência ao presente texto, vários intérpretes suspeitam que foram baseados em fontes pré-joaninas. Como a nossa tarefa é interpretar o texto do Evangelho e não especular a respeito de fontes hipotéticas, ficaremos como o nosso texto assim como o temos em mãos. Ele basicamente corresponde ao texto de Marcos; a possibilidade do uso desse Evangelho por João, que o adaptou de acordo com seus pontos de vista teológicos, parece evidente. (12) No dia seguinte, a grande multidão que tinha vindo para a festa ouvir falar que Jesus estava chegando a Jerusalém. Tendo como provável que o jantar festivo em Betânia (leitura anterior) fora um jantar sabático, o “dia seguinte” seria o nosso domingo (Domingo de Ramos). Marcos mencionou a multidão de peregrinos que subia junto com Jesus partindo de Jericó, rumo à Jerusalém. João nada diz sobre a atividade de Jesus nos aproximadamente dois meses fora de Jerusalém na região além-Jordão (sinóticos). Quando entre os milhares de peregrinos já presentes na cidade, começou a correr a notícia da aproximação de Jesus, muitos deles foram tomados por grande excitação messiânica. “Ele” aparentemente estava vindo, disposto a enfrentar o clero e os romanos! O antigo sonho do Messias que, de acordo com a tradição religiosa apareceria por ocasião da Páscoa, parecia estar se concretizando. (13) Pegaram ramos de palmeiras e saíram ao seu encontro, ... O termo traduzido com “sair ao seu encontro” era um “terminus technicus” usado em recepção de Rei e de autoridade política. Pegaram ramos de palmeiras... Quem conhece os Evangelhos sinóticos sabe (por Mateus 21,8) que o povo cortou ramos de árvores ou pegou ramos arrancados do campo (Marcos 11,8). Por que razão João nos fala especificamente de “ramos de palmeiras”? Críticos tem levantado o argumento de que, ao contrário de Jericó, localizada na baixada do Jordão e onde havia muitas palmeiras, na região de Jerusalém (com sua altitude de 750 metros acima do nível do mar e seu clima seco), palmeiras não vingavam. De fato, o acesso à Jerusalém não era lugar de palmeiras. O mais provável é que o texto se refira aos ramos de palmeiras usados como sinal de vitória na Festa dos Tabernáculos e que eram guardados em casa e agora pegos e usados para cumprimentar “o rei messiânico Jesus” (cit. Strathmann). Os cânticos com ramos de palmeiras na mão vinham de longa tradição. No primeiro livro de Macabeus, surgido no último período de independência e liberdade nacional judaica, ocorrida no período histórico entre AT e NT, lemos no cap.13,51s,: “... os judeus nela fizeram sua entrada ...,entre aclamações e ramos de palmeiras, ao som de cítaras, címbalos, harpas, hinos e cânticos, porque um grande inimigo fora extirpado 314 de Israel. Simão determinou que anualmente se comemorasse aquela data com alegria”. (Como este e mais alguns livros tidos como “não inspirados” não foram incluídos no Cânon do NT, eles não fazem parte das Bíblias Protestantes; mas constam das Bíblias usadas na Igreja Católica). Nos Evangelhos todos, o termo “ramos de palmeira” aparece uma única vez, exatamente por ocasião da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e de acordo com o Evangelista João. A palmeira (também podendo ser interpretada como ramo) ainda é mencionada, uma única vez, no Apocalipse (de João) cap.7,9. Vejamos por que o Evangelista João especifica os “galhos” citados pelos sinóticos como “ramos de palmeira”. “Sair ao encontro”, isto é receber o rei, exigia a manifestação dos ramos de palmeiras, pois somente estes eram dignos de serem usados nesta ocasião. Não se trata de mais uma invenção de João; trata-se da linguagem metafórica usual por esse Evangelista. ... gritando: “Hosana!” – “Bendito é o que vem em nome do Senhor!” “Bendito é o rei de Israel!” Em João 1,47 Jesus havia chamado Natanael de “um verdadeiro israelita em quem não há falsidade”, referindo-se a Sofonias 3,13. Esse conferiu na sua resposta a Jesus o predicado escatológico de “rei de Israel” (“... tu és o rei de Israel”). Com sua preferência por ligações intertextuais, o nosso Evangelista via a entrada de Jesus em Jerusalém como a entrada do Logos vindo ao mundo e JHWH “em Um”, conforme Sof.3,15: “O Rei de Israel, o Senhor, está no meio de ti”. Na “procissão da água” durante a Festa dos Tabernáculos, o povo cantava o salmo 118, saudando com ramos de palmeira. O mesmo aconteceu agora: na sua exaltação, a multidão de peregrinos começou a cantar esse salmo, cumprimentando a Jesus e seu grupo e acenando com ramos de palmeira: “... Hosana (=“Salva-nos, Senhor!”), Salva-nos, SENHOR! Nós imploramos. Faze-nos prosperar, SENHOR! Nós suplicamos. Bendito é o que vem em nome do SENHOR. Da casa do SENHOR nós os abençoamos. O SENHOR é Deus, e ele fez resplandecer sobre nós a sua luz. Juntem-se ao cortejo festivo, levando ramos até as pontas do altar...”(Salmo 118,25-27). Os peregrinos que subiam junto com Jesus, e os outros que vinham de Jerusalém ao seu encontro, estavam eufóricos. Finalmente havia chegado o grande dia! O texto do salmo que cantavam com suas palavras “Bendito é que vem em nome do SENHOR”, historicamente era o louvor devido na chegada do rei de Israel, Rei político, libertador do povo do jugo dos odiados romanos; Rei, vindo para instituir o tão esperado domínio messiânico-escatológico mundial de Israel! Não poderia haver maior equívoco!! O nosso Evangelista, ao contrário de Marcos, deixou fora as palavras de louvor referindo-se ao reinado político: “... o reino de Davi, nosso pai”! (Marcos 11,10). João tinha 315 claro que o reino de Jesus não era desse mundo (18,36). Dessa forma, no Evangelho de João os peregrinos somente aclamam Jesus como “Rei de Israel”. (14) Jesus conseguiu um jumentinho e montou nele, como está escrito: (15) ”Não tenha medo, ó cidade de Sião; eis que o seu rei vem, montado num jumentinho”. João ignora a história da procura do jumentinho relatada em Marcos 11,1-7. O termo “conseguiu” (encontrou), no entanto, permite a interpretação de uma procura intencional por um jumentinho. Jesus escolheu esse animal pacífico para cumprir a promessa a seu respeito. Qual era a promessa que Jesus reivindicou para si? O Evangelista, quando escreveu, corrigiu a interpretação da chegada de Jesus junto ao povo, dada naquele momento, apontando à palavra profética de Zacarias 9,9s: “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta”. Jesus não veio à Jerusalém para libertar através de violência e revolta como o povo esperava, mas como Príncipe da paz! “ Os profetas, em Zac.9,10 e Isaías 9,6ss, já previam a vitória da paz sobre a guerra: “Destruirei os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e o arco de guerra será destruído. Ele anunciará paz às nações; o seu domínio se estenderá de mar a mar e desde o Eufrates até às extremidades da terra...” (16) A princípio, seus discípulos não entenderam isso. Só depois que Jesus foi glorificado, eles se lembraram de que essas coisas estavam escritas a respeito dele e lhe foram feitas. João, um desses seus discípulos, confessa que eles mesmos, que acompanharam o seu Mestre, não entendiam o que se passava. Horas atrás, em Betânia, Jesus fez menção de seu sepultamento e agora parecia que tudo indicava vitória: Jesus sendo aclamado com júbilo e dança, como na chegada de um rei. Nenhum de seus discípulos se lembrava da palavra dita por Zacarias que, centenas de anos atrás, já apontara o modo, como o rei de Israel ia chegar à cidade: não montado em cavalo como sinal de força, mas sentado num animal que andava mais devagar que o homem, sinal de humildade. Após a Páscoa do Senhor começou da parte dos discípulos a procura frenética de menções e profecias do Antigo Testamento que haviam se cumprido em Jesus. Aos poucos, o entendimento do mistério do Senhor começou a formar-se. Somente após a glorificação do Senhor, detalhes, como sua entrada em Jerusalém montado em jumentinho, começavam a fazer sentido. Quantas vezes os Apóstolos devem ter pensado: “Se naquela hora eu tivesse entendido...”! 316 Mais tarde, Pedro exortou a seus ouvintes: “Antes (de tudo), cresçam na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 3,18). A vida com Deus tem seu começo quando Deus nos abre a visão e os ouvidos para o seu Filho. Conhecer a Deus é antes crescer no conhecimento de Jesus; uma experiência que tem início, mas não tem fim. Conhecimento não é o mesmo que “ensino”! Conhecimento é pessoal, toca a pessoa; enquanto que “ensino” é objetivo sempre neutro; ele não necessariamente toca o coração; é saber; é “teologia” – que não salva ninguém! • Você vai à igreja para “aprender mais um pouco” ou para “conhecer a Jesus”? A diferença entre aprender e conhecer é decisiva! (17) A multidão que estava com ele, quando mandara Lázaro sair do sepulcro e o ressuscitara dos mortos, continuou a espalhar o fato. (18) Muitas pessoas, por terem ouvido falar que ele realizara tal sinal miraculoso, foram ao seu encontro. Com poucas palavras o Evangelista justifica o entusiasmo da multidão, que se havia formado. João dispensou a entrada de Jesus em Jerusalém em si, relatada detalhadamente pelos sinóticos. Para ele pesou outro fato: (19) E assim os fariseus disseram uns aos outros: “Não conseguimos nada. Olhem como o mundo todo vai atrás dele!” De onde o Evangelista sabia da reação do alto clero ao tumulto nas ruas? Perguntas como essas não tem respostas. As hipóteses são tantas, que qualquer uma pode valer. Algumas delas: João tinha laços (de parentesco?) com o sumo sacerdote e por isso sabia mais (18,15); ou: alguns da “grande multidão de sacerdotes que aderiram à fé” (Atos 6,7) posteriormente podem ter relatado o que se passara nas reuniões do Sinédrio naqueles dias; ou: o próprio Nicodemos, membro importante do Conselho, ou o rico e influente José de Arimeteia (João 19,38), encontrados entre os primeiros judeus-cristãos, podem ter dado informações... Reforcemos o que de início dissemos: Interpretamos o Evangelho assim como ele chegou a nós. Especulações sobre onde e como e por que nada acrescentam. Neste caso o Evangelista diz que havia consternação no clero. Não somente seu apelo para denúncia do paradeiro do Nazareno (11,57) ficou sem resultados, não; o povo abertamente colocou-se do lado “dEle”! Sabemos dos sinóticos que, no mesmo dia ou no dia seguinte, Jesus foi ao Templo e com furor contra as negociatas no lugar de oração resolutamente interferiu no “esquema”. A razão por que João colocou esse acontecimento no início do seu Evangelho temos abordado na leitura de João 2,13-22. Jesus estava de volta à Jerusalém. A grande festa da Páscoa estava para ser celebrada e ninguém ousava pôr a mão nEle. A esperança messiânica do povo ainda O protegia. 317 Cap. 12.20-28 (20) Entre os que tinham ido adorar a Deus na festa da Páscoa, estavam alguns gregos. (21) Eles se aproximaram de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, com um pedido: “Senhor, queremos ver Jesus”. (22) Filipe foi dizê-lo a André, e os dois juntos o disseram a Jesus. (23) Jesus respondeu: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem. (24) Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto. (25) Aquele que ama sua vida, a perderá; ao passo que, aquele que odeia sua vida neste mundo, a conservará para vida eterna. (26) Quem me serve precisa seguir-me; e, onde estou, o meu servo também estará. Aquele que me serve, o Pai o honrará. (27) Agora meu coração está perturbado, e o que direi? Pai, salva-me desta hora? Não, eu vim exatamente para isto, para esta hora. (28) Pai, glorifica teu nome!” No Evangelho de Marcos encontramos entre a entrada de Jesus em Jerusalém (11,1-11) e sua última ceia (14,22-26) um relato extenso sobre suas últimas atividades na cidade: a intervenção no mercado adjunto ao Templo, a maldição sobre a figueira estéril; várias parábolas e discussões com os fariseus; o grande discurso sobre o final dos tempos e sua segunda vinda como Juiz. O Evangelista João, em contrapartida, guardou “somente” um discurso extenso de Jesus sobre sua morte e um olhar retrospectivo sobre seu ministério público. Após os dois eventos anteriores (jantar festivo em Betânia e entrada em Jerusalém), conhecidos pelos sinóticos e trabalhados por João de acordo com sua visão teológica, ele apresenta no trecho seguinte material novo que os sinóticos não conheciam, ou simplesmente ignoravam. Trata-se de um ponto crucial na interpretação do ministério de Jesus pelo quarto Evangelista. Somente João captou o significado do pequeno incidente com os “gregos” – sumamente importante para quem vê Jesus pela ótica de João. Você se lembra de como o nosso Evangelista trabalhou incidentes para, através deles, abrir a visão de seus leitores para seu significado transcendente mais amplo. Em todos esses casos, o Evangelista aproveitou de um acontecimento real como abertura, e logo passou para dimensões e verdades espirituais, deixando o incidente para trás, inacabado. Suas pregações são evoluções que partem de acontecimentos reais (como, por exemplo, do casamento em Caná, cap.2; da conversa com Nicodemos, cap.3; do encontro com a mulher samaritana, cap.4 ou até da ressurreição de Lázaro, cap.11). Nunca conhecemos o fim daquelas histórias em si, porque o Evangelista já nos levou embora para sua mensagem espiritual, representada pelo evento. Os sinóticos viam Jesus sob o vínculo estreito do mundo judaico. Mateus até relatou um diálogo em volta de um pedido de cura por uma mulher cananeia (não judia), onde Jesus argumentou dizendo “eu fui enviado apenas às ovelhas perdidas de Israel” (Mat.15,25). 318 O quarto Evangelista (ao contrário dos sinóticos) vê Jesus, desde o primeiro capítulo, como salvador “do mundo”. Esta sua função também está sendo insinuada quando Jesus se apresenta como “luz do mundo”. João deixou claro que “a salvação vem dos judeus” (4,22, menção eliminada nas Bíblias durante o “3º Reich” de Hitler, 1933-45). Ela vem dos judeus para o mundo. “Mundo” era sinônimo de “mundo grego”, cultura pagã dominante na época de Jesus. Lembramos que durante todo o ministério de Jesus e que até agora conhecemos, Ele sempre entendeu que “sua hora” ainda não havia chegado. O momento, em que “o mundo grego” começou a interessar-se por Jesus, é visto por João como o sinal de que esta “sua hora” chegara. Vejamos o texto: (20) Entre os que tinham ido adorar a Deus na festa da Páscoa, estavam alguns gregos. Como aos não judeus fora terminantemente proibido participar da festa, o texto deve fazer referência a judeus da diáspora (do exterior), cujo idioma era o grego, ou prosélitos, isto é: nascidos gregos que aceitaram e observavam a religião judaica. Trata-se dos mesmos “gregos” mencionados em 7,35, para os quais, segundo o escárnio dos fariseus, Jesus poderia ir para convencê-los, uma vez que neles, nos representantes do clero, não encontrou respaldo. Estes “gregos” não devem ser confundidos com os “helenistas” mencionados em Atos 6,1, e que são judeus de fala grega. (21) Eles se aproximaram de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, com um pedido: “Senhor, queremos ver Jesus”. (22) Filipe foi dizê-lo a André, e os dois juntos o disseram a Jesus. Pelo cerimonial meio complicado, na tentativa de ver Jesus concluímos que no pedido desses gregos tratava-se de algo extraordinário, que deveria ser bem ponderado. Filipe é um nome grego, e por essa razão os gregos, respeitosamente, chamando-o de senhor, dirigiram-se a esse homem de confiança de Jesus. Sabemos de Marcos que os discípulos, em geral, procuravam formar um cordão de segurança em volta do Mestre por causa das muitas pessoas que Ele atraía, aonde quer que aparecesse. Filipe, por sua vez, dirigiu-se a outro colega com nome grego: André. Juntos, os dois resolveram apresentar o pedido por uma “entrevista” a Jesus. Com isso, “os gregos” desaparecem da nossa história. Nem sabemos se a entrevista veio a ser concretizada ou não. João já disse o que fora necessário para apontar o que queria: a reação extraordinária de Jesus frente ao pedido. (23) Jesus respondeu: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem. 319 Como se existisse alguma ligação secreta entre a chegada desses gregos e o ministério de Jesus, este lhes respondeu com um “mashal” (palavra de sentido enigmático, misterioso). O pedido dos gregos deixou Jesus profundamente impressionado. Por que será ? Até então, durante todo seu ministério (2,4; 7,6.30.44; 8,20.59 e 10,39, essa “sua hora” não havia chegado, mas agora sim. A limitação da mensagem do Evangelho a Israel acabou. O Evangelista entendeu o aparecimento dos gregos como sinal que agora “o mundo” estava sendo alcançado e a missão pública de Jesus cumprida. (24) Digo-lhes verdadeiramente que, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto. À primeira vista reconhecemos alguma proximidade com as parábolas constantes nos sinóticos: Marcos 4,3-9.26-29.30-32, Mateus (cap.13) e Lucas (cap.8). A novidade focalizada por João é a necessidade da morte do grão. A literatura da igreja primitiva, anterior aos Evangelhos, já conheceu essa interpretação: 1 Cor.15,36s e 1ª “Carta de Clemente”, 24,4 9 (uma Carta não incluída no Cânon do NT). O grão tem que cair na terra e morrer para trazer fruto. Jesus entendeu o grão que morre como metáfora de sua morte e seu sepultamento. Sua forma existencial de vida presente deveria ser abdicada pela morte e ser entregue, para abrir caminho à vida eterna. Devemos diferenciar entre o que Jesus diz e a interpretação gnóstica dessa metáfora. A Gnose viu a necessidade da morte como parte do caminho da centelha divina (luz) do homem de volta para sua origem. Encontramos restos da doutrina gnóstica da centelha divina no Catolicismo em geral. Quando Jesus falou da necessidade da morte do grão para abrir o caminho para o fruto, Ele referiu-se à reunião dos muitos filhos de Deus aqui na terra: a Eclésia. (25) Aquele que ama sua vida, a perderá; ao odeia sua vida neste mundo, a conservará para me serve precisa seguir-me; e, onde estou, estará. Aquele que me serve, o Pai o honrará. A linha de pensamento, por algum interrompida para continuar em 27. passo que, aquele que vida eterna. (26) Quem o meu servo também instante, está sendo Os versos 25 e 26 tem similares nos sinóticos; eles não se referem a Jesus, mas aos que lhe querem seguir. Para eles vale exatamente o que vale para o seu Mestre. Aos “filhos do rei” da “teologia” de hoje, que “tem direito” a tudo que o mundo lhes oferece, é dito que perderão sua vida para sempre (25). O caminho do Mestre será o caminho do servo. Discipulado como caminho para vida eterna exclui obrigatoriamente a prioridade do amor à própria vida (terrena). 320 Devemos ler estas palavras como ditas aos que O cercavam naquela hora: peregrinos e discípulos, gente entusiasmada e gente curiosa. O verbo traduzido com “servir” usado por Jesus nessa palavra aparece só três vezes no Evangelho todo. É Marta “servindo” à mesa (12,2) e duas vezes no verso 26. Outra observação interessante é a palavra que Jesus usa para designar aqueles que O seguem. João usa o mesmo termo do capítulo 2 para os que, de acordo com a instrução de Maria (“façam tudo que ele lhes mandar” (2,5)) obedeciam, isto é, os “serviçais”. Jesus usou o termo “serviçais” para designar aqueles que nas Igrejas de hoje se denominam “filhos do rei”. Interessante! ... como os valores da igreja mudaram!? Seja onde for que Jesus estiver, ali também estará seu “serviçal”. Seja na vida ou na morte, na pobreza, no medo ou na glória, ali estará seu serviçal também, longe das “honras” pelas quais o mundo religioso avidamente procura e liberalmente concede. Ali somente ... o Pai o honrará. (27) Agora meu coração está perturbado, e o que direi? Pai, salva-me desta hora? Não, eu vim exatamente para isto, para esta hora. (28) Pai, glorifica teu nome!” O Apóstolo João não descreveu a luta de Jesus em Getsêmani (Marcos 14,32-41). Ele não nos apresenta aquele momento de profunda agonia de seu Mestre. Essas breves palavras, no entanto, lembram a luta no jardim e a tentação. À primeira vista, Jesus, solene e calmo na descrição feita por João, contrasta com a imagem do Jesus angustiado, aflito, tomado de uma tristeza mortal em Getsêmani segundo Marcos (14,32-40). João teve dificuldade em apresentar o Logos com medo e perturbado. Somente nessa observação João revela o breve momento em que Jesus questiona Sua missão perante o Pai. Imediatamente Ele justifica as circunstâncias, lembrando que exatamente para isto veio ao mundo. Assim como a oração de Jesus frente ao túmulo de Lázaro não era uma mera “apresentação missionária”, tampouco eram isso as palavras de oração em voz alta diante dos peregrinos que o cercavam (v.27,28). Era o clamor do Filho no momento em que entendeu que sua missão pública estava consumada. 321 Cap. 12.28-36 Então veio uma voz dos céus: “Eu já o glorifiquei e o glorificarei novamente”. (29) A multidão que ali estava e a ouviu, disse que tinha trovejado; outros disseram que um anjo lhe tinha falado. (30) Jesus disse: “Esta voz veio por causa de vocês, e não por minha causa. (31) Chegou a hora de ser julgado este mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo. (32) Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. (33) Ele disse isso para indicar o tipo de morte que haveria de sofrer. (34) A multidão falou: “A Lei nos ensina que o Cristo permanecerá para sempre; como podes dizer:’ O Filho do Homem precisa ser levantado’? Quem é esse ‘Filho do Homem’?” (35) Disse-lhes então Jesus: “Por mais um pouco de tempo a luz estará entre vocês. Andem enquanto tem a luz, para que as trevas não os surpreendam, pois aquele que anda nas trevas não sabe para onde está indo. (36) Creiam na luz enquanto a tem, para que se tornem filhos da luz”. Terminando de falar, Jesus saiu e ocultou-se deles. (28) “... Pai, glorifica teu nome!” Então veio uma voz dos céus: “Eu já o glorifiquei e o glorificarei novamente”. (29) A multidão que ali estava e a ouviu, disse que tinha trovejado; outros disseram que um anjo lhe tinha falado. O judaismo entendia que, desde que a voz da profecia silenciara com a morte dos últimos profetas do AT, Deus revelaria sua vontade a alguns escolhidos e em questões distintas através de um “eco do céu”. As narrativas rabínicas conhecem essa voz, que eles chamam de “filha da voz” de Deus, uma vez que o homem natural não é capaz de ouvir a voz do próprio Deus. Os judeus sabiam que a “filha da voz de Deus” somente podia confirmar aquilo que já fora dito pela Torá ou pelos profetas. Em diferentes oportunidades, os Evangelistas mencionam essa voz dos céus, a qual somente aquele entenderia a quem fora dirigida (como no batismo de Jesus em Marcos 1,11, ou por ocasião da transfiguração em Marcos 9,7). Devemos imaginar o estado emocional da multidão, ainda impressionada pela recepção e o júbilo dados a Jesus na Sua entrada na cidade; peregrinos à espera da confirmação de suas esperanças messiânicas, e outros, críticos. As diversas interpretações do sinal sonoro pela multidão nos confirma que houve manifestação divina audível, resposta do Pai ao Filho no clamor de sua angústia: “Pai, glorifica teu nome!” (28). Enquanto alguns só escutavam um trovão; outros entendiam conforme a tradição rabínica, que o Pai tinha falado através da voz de um anjo. Se Deus nos fala, Ele não generaliza. A voz de Deus sempre é pessoal. A mensagem é dirigida àquele que a recebe; não para fazê-la conhecida ao mundo inteiro mas, sim, para gerar obediência pessoal. 322 Somente Jesus entendeu a resposta. Entendeu que a glorificação viria através da morte em obediência ao Pai. Assim como o Pai glorificou o Filho na ressurreição de Lázaro, Ele novamente o faria. (30) Jesus disse: “Esta voz veio por causa de vocês, e não por minha causa. (31) Chegou a hora de ser julgado este mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo. (32) Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. (33) Ele disse isso para indicar o tipo de morte que haveria de sofrer. Ainda que os presentes não tivessem a entendido, Jesus lhes declarou que a voz veio por causa deles. Não se tratou de alguma privacidade entre Pai e Filho. A declaração de que “chegou a hora de ser julgado este mundo; que agora será expulso o príncipe deste mundo” nada menos era do que o anuncio da consumação de sua missão. O príncipe deste mundo seria expulso. Em 3,19, João havia declarado que o julgamento era este: “A luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más”. Negando a fé em Jesus, os homens já estavam julgados. A decisão já estava tomada. A preferência do mundo pela sombra se consumiria na “elevação” do Filho, isto é, na sua morte. Por trás de toda a maldade desse mundo está o “príncipe deste mundo”. No auge de sua aparente vitória sobre Jesus, ele seria expulso. Há muitas tentativas de entender melhor o sentido da expulsão do príncipe deste mundo. Será que João se lembrou de Mateus 12,29 ? Ou de Lucas 10,18? Isso seria linguagem mitológica. Ou será que João se referia a Hebreus 2,14; Colossenses 2,15 ou 1 Cor.2,6-8? Embora todos esses escritos antecipassem o Evangelho de João, é pouco plausível que estivessem na mente do nosso Evangelista. O Evangelista João entendeu a morte de Jesus como a vitória e a expulsão de Satanás que, a partir desse momento, não teria como impedir o que Jesus no verso 33 prometera: atrair todos a Ele para terem parte na vida eterna (3,14). Com a ressurreição de Jesus como resposta de Deus ao levantamento pelos homens será quebrado o poder da morte. Haverá ressurreição! Com a menção de “todos” no verso 32 voltamos ao início do capítulo. Judeus e gregos, todos que nele confiem e estiverem dispostos a segui-lo no caminho dEle (como “serviçais”) estarão na mão correta, da qual ninguém os arrebatará. Apenas se considerarmos a “manifestação da voz” como epifania (aparição de Deus) poderemos entender o que Jesus declarou: Esta voz veio por causa de vocês e não por minha causa” (Thyen). 323 (34) A multidão falou: “A Lei nos ensina que o Cristo permanecerá para sempre; como podes dizer:’ O Filho do Homem precisa ser levantado’? Quem é esse ‘Filho do Homem’?” (35) Disse-lhes então Jesus: “Por mais um pouco de tempo a luz estará entre vocês. Andem enquanto tem a luz, para que as trevas não os surpreendam, pois aquele que anda nas trevas não sabe para onde está indo. (36) Creiam na luz enquanto a tem, para que se tornem filhos da luz”. A dogmática tradicional farisaica da Sinagoga falava do Ungido (Cristo) e do Filho do Homem citado em Daniel 7,14 como eternos. “Seu domínio é um domínio eterno que não acabará, e seu reino jamais será destruído”. As esperanças da religiosidade popular nutriam-se por termos como “Pai da eternidade” (Is.9,6), “Sacerdote para sempre” (Salmo 110,4) e outros mais. Se Jesus falava de sua partida, como ele, sendo o Cristo, o Ungido de Deus, podia ser eterno? A dogmática os impedia de enxergar a luz. Por causa de seus escrúpulos dogmáticos estavam perdendo o pouco de tempo em que a luz ainda estava com eles. Quem é esse ‘Filho do Homem’?” Essa é a pergunta perante a qual todo leitor do Evangelho, naquele tempo e ainda hoje, se encontram. A última menção da luz na resposta de Jesus nos faz entender quem era esse “Filho do Homem”. Ele é a luz do primeiro dia da criação e não somente a primeira palavra de Deus no ato da criação: “Haja luz” – Ele mesmo era a primeira obra de Deus: “..e Deus fez separação entre a luz e as trevas.” (Gen.1,4). Naquele exato momento histórico, ela encarnou-se na pessoa de quem, como “Filho do Homem”, tinha de ser “levantado” da terra. Ele é eterno. “... quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua prosperidade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si ... porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu” (Palavras proféticas de Isaías,53,1-12, setecentos anos antes de Jesus). Terminando de falar, Jesus saiu e ocultou-se deles. Jesus não mais procurou responder a perguntas formuladas pela doutrina, a qual muitas vezes nos torna cegos para a atuação de Deus. A porta fechou-se; aquilo que Ele tinha de dizer, foi dito. O Evangelista não diz onde Jesus se escondeu da multidão. O pouco de tempo que lhe restou, pertencia aos seus Doze. Nas Suas palavras de despedida, Ele lhes passará o seu testamento. 324 Cap. 12.37-43 (37) Mesmo depois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele. (38) Isso aconteceu para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que disse: “Senhor, quem creu em nossa mensagem, e a quem foi revelado o braço do Senhor?” (39) Por esta razão eles não podiam crer, porque, como Isaías disse noutro lugar: (40) “Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure”. (41) Isaías disse isso porque viu a glória de Jesus e falou sobre ele. (42) Ainda assim, muitos líderes dos judeus creram nele. Mas, por causa dos fariseus, não confessavam a sua fé, com medo de serem expulsos da Sinagoga; (43) pois preferiam a aprovação dos homens do que a aprovação de Deus. (37) Mesmo depois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos (outra tradução... sinais tão grandes...), não creram nele. Vez e outra, João havia atestado “fé” a determinadas pessoas, quando mais precisamente seria “grande simpatia ou entusiasmo” (2,23; 7,31; 8,30; 10,42; 11,48; 12,11). Umas poucas vezes ele atestou verdadeira “fé”, como nos casos 6,69 (Pedro); 2,11 (seus discípulos) ou 11,27 (Marta), mas o resultado do ministério de Jesus como um todo constituía-se num fracasso total. O Evangelista não tinha como ignorar este fato. O fenômeno da incredulidade geral o perturbava profundamente. Seu Evangelho dá conta desse fato. Podemos entendê-lo. Para ele, que viu os sinais com seus próprios olhos e ouviu as palavras de Jesus com coração aberto, a única reação a esperar e possível podia ser a fé. Diante da revelação que recebeu, o fato da incredulidade lhe parecia incompreensível. O Evangelista se referiu aos grandes sinais “diante dos judeus” descritos no seu Evangelho e não aos “muitos diante de seus discípulos, que não estão escritos neste livro” (20,30). João havia declarado de pouco valor o ficar somente maravilhado (4,48; 2,23s), quando o resultado esperado, a fé na pessoa de Jesus, não acontecia. Se o Evangelista usa os sinais como provas, ele certamente não os compôs como metáforas a serem interpretadas; os sinais realmente aconteceram de acordo com o relato do Evangelista. O Evangelista não compreendia por que os líderes religiosos dos judeus ficaram surdos e cegos para a mensagem contida nos sinais, uma vez que eram exatamente eles quem deveria compreendê-las, pelo seu conhecimento das Escrituras e pela sua história. Porém, a própria Escritura já denunciava este povo como surdo: “Moisés convocou todos os israelitas e lhes disse: “Os seus olhos viram tudo o que o SENHOR fez no Egito ao Faraó, a todos os seus oficiais e a toda a sua terra. Com seus próprios olhos vocês viram aquelas grandes provas, aqueles sinais e grandes maravilhas. Mas até hoje o SENHOR não lhes deu mente que entenda, olhos que vejam, e ouvidos que ouçam...” (Deut. 29,2s). 325 No início de seu ministério, Jesus criticou o condicionamento de sua fé a sinais: “Se vocês não virem sinais e maravilhas, nunca crerão” e agora, que Deus se compadeceu de tal forma e lhes deu os sinais, não creram? Como o Evangelista podia interpretar o fato? Será que Deus fracassou na sua missão através de Jesus? Lembre-se de que o Evangelista escreveu aproximadamente meio século após a morte de Jesus, no fim de seu ministério na igreja. O grande Apóstolo Paulo já fora martirizado dezenas de anos atrás. Na sua “Carta aos Romanos”, Paulo já tratava desse assunto, mas o nosso Apóstolo ainda considerava o assunto como incompreensível. Após anos de meditação, eis a sua visão do porquê da rejeição de Jesus: (38) Isso aconteceu para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que disse: “Senhor, quem creu em nossa mensagem, e a quem foi revelado o braço do Senhor?” A menção de Isaías 53,1 acontece literalmente fiel à versão da LXX (Septuaginta, antiga tradução do AT para o grego, nos séculos 2 ou 3 antes de Cristo). Se Moisés declarou que era o próprio JHWH que “até hoje” não deu ao seu povo mente para entender, nem olhos para verem ou ouvidos para ouvirem, João só podia aceitar o fato da rejeição de Jesus, lembrando-se das palavras de Isaías (53,1): “Quem creu em nossa mensagem? E a quem foi revelado o braço do SENHOR?” Essa pergunta retórica, que abre a quarta descrição do “Servo do Senhor” no livro de Isaías, só permite Uma resposta: “Ninguém!” Ninguém entendeu a mensagem! Apesar de se terem passado séculos desde Moisés, a condição do povo de Israel não havia mudado. Após a citação de Is.53,1 como indicação da incredulidade de Israel, todo o cântico do Servo Sofredor (53,2-12) é implícito: “... Ele foi transpassado por causa de nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades, o castigo que nos trouxe paz, estava sobre ele...”. (39) Por esta razão eles não podiam crer, porque, como Isaías disse noutro lugar: (40) “Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure”. Diferente da citação 53,1, o Evangelista interpreta aqui as palavras de Isaías 6,9-10 livremente, provavelmente seguindo a versão hebraica e no “tempus” passado. As profecias são fatores que se encaixavam na história. O Evangelista viu 6,9-10 como realidade. A resposta à pergunta do porquê que Deus cegou os olhos de seu próprio povo colocou os intérpretes, desde o século II e até hoje, perante questões difíceis. 326 Já nos tempos dos Apóstolos, Marcos referia-se ao mistério da incredulidade de Israel (Mc.4,11s) e Lucas o fez em Atos 28,26s. Paulo trabalhou o assunto em Romanos caps 9-11. Para o nosso entendimento do séc. 21, a pergunta (dogmática) se apresentaria da seguinte forma: A incredulidade dos judeus pode ser vista como “culpa” e designada “pecado”, quando era o próprio Deus quem obstruía os corações e cegou os olhos deles, fazendo impossível a sua conversão ? Não entremos na extensa discussão sobre a questão: Prevalecem no Evangelho de João ideias preliminares de uma predestinação ou o dualismo da livre decisão do homem. Há dezenas e dezenas de interpretações a respeito, desde o terceiro século cristão até aos dias de hoje. Os “judeus” que não creram em Jesus eram culpados por causa disso? Vejamos: nas suas discussões com os fariseus, Jesus sempre procurou convencê-los de sua responsabilidade e culpa. Se, de acordo com Ezequiel cap.18, o judeu sabia que JHWH somente condena o culpado, a responsabilidade pessoal era fato. Tanto para o “sim” como para o “não” perante a oferta divina da Graça vale a declaração paradoxa de Paulo: “... desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor, porque é Deus é que efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fil2,12s). Esse paradoxo, onde tudo depende de Deus e tudo depende de nós, constitui-se o mistério da salvação (Linha de pensamento de Kierkegaard, 1813-1855). Enquanto a cegueira e consequentemente a condenação em Isaías ainda era uma ordem dada pelo SENHOR ao profeta, João a menciona no tempo passado. No livro de Isaías como um todo, a obstinação representa uma fase histórica; não é a última palavra de Deus. O mundo julgado e sua condenação pré e sobre-individual, o pecado de cada um, contido nessa culpa geral, é histórica e, portanto, não imutável. Foi a luz que veio ao mundo que tornou a escuridão evidente. O envio dos discípulos ao mundo (20,21), começando em Jerusalém (Lucas 24,47) é o sinal de que o julgamento do mundo e de todas as pessoas culpadas não são fatos determinados desde a eternidade passada. Se não houvesse determinação divina de salvação, o envio dos Apóstolos não faria sentido. O mundo, segundo João 3,16, é objeto do amor pré-temporal de Deus. Pela dramaturgia na apresentação da encarnação desse amor no seu Filho, os leitores do Evangelho de todos os tempos deviam entender que vontade e determinação salvadora de Deus não fracassaram por causa da rejeição do Filho pelo clero de seu povo. 327 Segundo o Evangelista, e de acordo como entendemos sua mensagem, podemos considerar que Deus já decidiu pela nossa salvação, atraindo-nos a Jesus. A única decisão possível, livre e espontânea de fato, é a de rejeitar (abandonar) a Jesus (6,66) e de permanecer nos nossos pecados (9,41). (41) Isaías disse isso porque viu a glória de Jesus e falou sobre ele. João, filho de Zebedeu e israelita, procurou entender a profundidade inconcebível que essa rejeição revelara. O tão esperado Messias veio como o Logos, o Filho, revelando a glória do Pai, e o seu povo, educado e preparado para reconhecê-lo através das Escrituras e de sua história, O rejeitou! Como isso fora possível? Somente o próprio Deus podia dar-lhe a resposta! O nosso Evangelista olhou a história e viu a glória de Deus tanto no caso de Abraão (8,56) como de Isaías (6,1). No Deus que se revelou, esses homens já encontraram “A Palavra” (o Logos de Deus), revelada agora no homem Jesus de Nazaré como Sua última “palavra” (Hebr. 1,1-3). Isaías viu a glória (Doxa) de Deus não somente por ocasião de seu chamamento (6,1s). Ele viu Jesus implícito em todo seu livro. À consternação que a vinda “do Servo” traria, já prevista em 52,13-15, segue a revelação no cap. 53: “...ele foi transpassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele...o Senhor fez cair sobre Ele a iniquidade de nós todos...” (53,1-12). Nas palavras finais de Is.6.10: “... que nem se convertam, e eu os cure”, o Evangelista já ouviu a voz de Jesus. A menção de Isaías e de seu testemunho são declarações primárias da fé. Elas não provêm da fé; elas a criam, constatando aquilo que não se vê. Como palavra de Deus elas criam o que dizem (Gênesis 1,3; Salmo 33,9). Apesar do aparente fracasso na missão, João vê mantido desde 3,16 (Deus amou o mundo de tal maneira...”) até a última declaração escatalógica do seu amor (17,24-26) o amor pré-temporal do Pai para com seu Filho, cuja finalidade era a habitação desse amor na comunidade de seus filhos (17,26). (42) Ainda assim, muitos líderes dos judeus creram nele. Mas, por causa dos fariseus, não confessavam a sua fé, com medo de serem expulsos da Sinagoga; (43) pois preferiam a aprovação dos homens do que a aprovação de Deus. Havia simpatizantes de Jesus entre os líderes religiosos. Eles ficaram calados quando o Sinédrio condenou Jesus a ser entregue como elemento politicamente perigoso ao braço secular da Justiça romana. Sua fé lhes dava testemunho a respeito de Jesus (“... creram nele”), porém ficavam calados. A aprovação desses homens, sua reputação na hierarquia 328 eclesiástica, ficaria profundamente comprometida se dissessem o que pensavam. Há muitos desses “líderes religiosos” hoje em dia. Desde que o sacerdócio se transformou em oportunidade para “carreira”, a fé viva se tornou algo tão distante e tão incerta que não resiste à pressão do grupo. Quando João escreveu o seu Evangelho, a separação definitiva da igreja cristã do Judaismo já era fato consumado. Conversões de judeus levavam, através da “Birkat há-minim” (maldição sobre os hereges nas três orações diárias do judeu) à perda da comunhão na Sinagoga. Hoje, os historiadores judaicos abrandam o fato, afirmando que os próprios convertidos se retiraram. João, no entanto, afirma que a “Birkat há-minim” os levou à expulsão. Reconhecer a Jesus significava reconhecer a glória do Pai. Para esses líderes, a “glória” de seu ministério religioso vinha primeiro. O texto, na época em que João escreveu, deveria incentivar o leitor à fidelidade com Jesus. O mau exemplo desses “líderes” tinha a finalidade de exortação. A “aprovação” mencionada por João não se referia ao reconhecimento subjetivo, ao reconhecimento honroso, exigido dentro da hierarquia eclesiástica. O Evangelista usa a palavra “Doxa” (glória de Deus). Infelizmente, a glória de Deus era menos importante do que a perante o clero. Quantos santos e santas, superpregadores, megapastores ou bispos e bispas roubam a “Doxa” de Deus no seu coração? Será que sua fidelidade aos dogmas, seu grande esforço em prol “do Reino” estão em primeiro lugar, roubando a “Doxa” de Deus? • Faça uma autoavaliação sincera! De quem ou o do que você espera aprovação naquilo que faz e no que é ? • A glória de Deus está em primeiro lugar nas suas avaliações, decisões e ações? Se ainda não, peça a Deus que seus olhos e ouvidos se abram! Remova o que ocupa o lugar de Deus! Não estamos falando de pecado. Falamos de sua sede de aprovação. Lembra como você, quando estava apaixonado por “aquela pessoa”, não permitia que algo ou alguém roubasse o lugar dela? A aprovação dela lhe era a única coisa que lhe importava! Você percebeu como, no texto acima, foram exatamente as preocupações religiosas dos fariseus que apagaram a glória de Deus? 329 Não confunda atividade religiosa com Deus! Veja, como Ele lhe estende a Sua mão através de Jesus! A Ele, Deus, toda a honra e glória para sempre! Cap. 12.44-50 (44) Então Jesus disse em alta voz: “Quem crê em mim, não crê apensas em mim, mas naquele que me enviou. (45) Quem me vê, vê aquele que me enviou. (46) Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. (47) Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. (48) Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia. (49) Pois não falei de mim mesmo , mas o Pai que me enviou me ordenou o que dizer e o que falar. (50) Sei, que o seu mandamento é a vida eterna. Portanto, o que eu digo é exatamente o que o Pai me mandou dizer”. Pela penúltima lição sabemos que Jesus se ocultou. Ele não mais falou às multidões. O que então significa essa inclusão que começa com “Então, Jesus falou com alta voz”? Taciano (fins do séc.2º) tentou colocar o trecho entre os versos 36a e 36b desse capítulo. Intérpretes de hoje, em parte, falam de uma “redação da igreja primitiva” (Becker). Outros cortaram o texto em pedaços e montaram o assim chamado “discurso da luz”, ligando 8,12 + 12,44-50 + 8,21-29 + 12,34-36. Com essa “montagem” querem postular um discurso com raízes no gnosticismo, o que não convence (Bultmann). Se olharmos este último trecho como palavras de Jesus dirigidas ao público, percebemos que o autor nele levanta todos os motivos contidos nos versos 12-19 do capítulo 8, onde Jesus falou sobre a luz do mundo. Do capítulo 8 até o texto de hoje temos abordado todas as verdades mencionadas no Prólogo (1,1-14). São esses: 1º, Luz e escuridão; 2º, do dom da vida eterna; 3º, do testemunho de Jesus; 4º, do discipulado e da fé; 5º, da incredulidade; 6º, do julgamento e do Juízo; 7º, do ser enviado pelo Pai; 8º, Jesus como o concreator do Pai e 9º, de sua unidade com o Pai. Considerando o conteúdo do trecho acima, que fecha os discursos caps. 8-12 com o assunto com que o iniciou, entendemo-lo como uma breve recapitulação do ensino de Jesus pelo autor, João. (44) Então Jesus disse em alta voz: “Quem crê em mim, não crê apensas em mim, mas naquele que me enviou. No Evangelho segundo João, como já percebemos, a cronologia (sequência) dos acontecimentos não tem a mínima importância. O autor, historicamente muito posterior aos sinóticos e ao contrário desses, criou um Evangelho orientado pela sua mensagem, seu conteúdo e seu significado. O visível, o humano e o terreno são secundários. O que 330 importa é levar o leitor ao reconhecimento de Jesus como o Logos, o Filho, o Deus conosco. As sentenças que seguem reforçam, cada uma por si, pontos importantes para a comunidade de Jesus, seja aquela que se visou quando foi escrita ou a de nossos dias. O Evangelho de João é atemporal, assim como o Logos o é. Fé em Jesus é fé em Deus (Quem não crê em Jesus, não crê em Deus!) Nós não temos duas divindades! Jesus é O caminho, A porta, O Filho que leva ao Pai. Nele somente temos acesso ao Pai, ao qual o próprio Cristo se sujeitará na consumação do tempo (1.Cor.15,28). Os cristãos não tem dois deuses! Nem três, nem quatro! Deus Pai é eterno e é o Único Deus. Temos acesso a Ele graças à Jesus. Você quer crer em Deus? Creia em Jesus! Ele é a porta, o caminho e a vida! Para o homem de hoje com sua maneira racional de pensamento, as dogmas da igreja primitiva como a das duas naturezas ao mesmo tempo ou a da Trindade são difíceis de entender. Para os “teólogos amadores” entre nós: Joest (Dogm.I,233) procura definir a Cristologia clássica da unidade de Pai e Filho (10,30) da seguinte forma, adequando para o entendimento do homem moderno: Temos que procurar compreender o conjunto da presença de Deus em Jesus e do outro lado da manifestação humana de Jesus perante Deus não como substancial, não de natureza ontológica de sua pessoa em si, mas sim, como relacional, como o conjunto temporal de dois relacionamentos: o de Jesus no seu próprio relacionamento com o Pai durante seu caminho terreno da manjedoura até o cruz e, do outro lado, do comprometimento que Deus nele assumiu para conosco. Com essa concessão podemos ouvir a simples mensagem dos textos bíblicos sem ter que entrar na linguagem especulativa ou pré-filosófica. Desde os dias de Descartes (o primeiro filósofo “moderno”), a confissão “Jesus é o Filho de Deus”, repetida nas Igrejas levianamente e sem qualquer compreensão real, entende-se como ou de identidade ou de função, portanto não corresponde ao que as Escrituras dizem quando falam da Unidade de Jesus e Deus (João 10,30). (46) Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas. Você considera difícil crer em Deus? Jesus veio como luz! Pedro, meio século antes, havia escrito sobre “aquele que nos chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1.Pedro 2,9). Se você quer andar em segurança, ande na luz! Isso é até mais fácil, pois “na sombra” você tropeçará e facilmente será enganado por qualquer igreja, seita, movimento ou ideologia. 331 (47) Se alguém ouve as minhas palavras, e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo. Jesus veio com a única missão de “salvar”. Assim como o “SalvaVida” nas águas da praia somente pode salvar após a pessoa que está se afogando desistiu de lutar, você somente encontrará o Salvador na hora em que você para com seu esforço de se salvar (através de esforços religiosos, liturgias, marchas e, sejamos francos, pregações aos demais). Venham a mim..., não tragam a mim ou façam para mim. (48) Há um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras; a própria palavra que proferi o condenará no último dia. Se você desobedecer a sinalização nas estradas, será você quem terá de assumir as consequências desastrosas. Se você resiste a Deus, quando Este quer atraí-lo a Jesus, você será o prejudicado! “O inferno está cheio de voluntários!” (embora João nunca mencione o inferno). João diria: A escuridão e a condição de julgado e condenado é reservada para voluntários! O julgamento não acontecerá na base de dogmas ou leis. Ele será feito com base no reconhecimento de Jesus. Você O reconhece como autoridade divina e última? O último dia não é o dia de sua morte. Ele será “o dia de Deus” em que a criatura terá que prestar contas ao Criador. (49) Pois não falei de mim mesmo, mas o Pai que me enviou me ordenou o que dizer e o que falar. A nossa responsabilidade é enorme, pois a palavra do Filho de Deus não é somente a dEle: é Deus falando com você! A palavra de Jesus não é palavra de um sábio. Jesus não é fundador de uma religião! Há muitas religiões e em todas elas existe alguma luz, mas elas não apresentam “A porta” pela qual você tão urgentemente precisa entrar para encontrar perdão e paz com Deus. Apresentam exercícios, métodos, dogmas a serem observados, todos eles elaborados por humanos. Somos realmente perdidos e vagando no Universo se não conhecemos o ponto fixo através do qual podemos decidir. (50) Sei que o seu mandamento é a vida eterna. “Vida eterna” é aquilo que ninguém quer: “canseira eterna”. Tudo é vaidade. Nada o prova melhor do que a vida das celebridades (as que já experimentaram de tudo e que no fim jogam tudo fora, até a sua própria vida). Vida eterna, no sentido como João o apresenta, é entrar em sintonia com a vontade de Deus. Haverá uma só vontade: A de Deus em conformidade com a minha. Aí não preciso de nada mais; é por isso que João, no seu Apocalipse diz, que “não mais haverá sede nem fome, nem dia nem noite, porque o próprio Deus será a nossa luz”. 332 No Evangelho de João não encontramos um Deus que ameace com o inferno. O Evangelista nem conhece essa palavra ou, pelo menos, nem a usa. Encontramos um Deus cujo mandamento é a vida eterna para a qual nos chamou pelo Seu Filho, que nos abriu a porta, trouxe a luz e levou as nossas iniquidades embora. Portanto, o que eu digo é exatamente o que o Pai me mandou dizer”. Jesus era “sem pecado” no sentido de não nos dizer o que não, (antes), ouvia da parte do Pai. Ele não nos engana. Nele “acontece” Deus conosco. No trecho de hoje, no capítulo 12, verso 46, o termo “luz”, determinante em toda a primeira parte do Evangelho, aparece pela última vez. Até agora, os conceitos “luz” e “vida eterna” determinaram a linha de pensamento do autor. A partir do momento em que Jesus não mais fala à multidão, senão com os seus discípulos, outros dois conceitos assumem o lugar de palavras chaves: o do Consolador (parácleto) e o do “amor”. A partir de agora, para usar essa expressão moderna, Jesus não mais evangeliza. Ele instrui aqueles que a Ele pertencem. Para eles, a ação do Consolador, do Espírito Santo”, determinará sobre a vida ou a morte espiritual. O amor do Pai nos discípulos será o distintivo daqueles que a Jesus pertencem. Ele será evidenciado, visto no amor mútuo entre os irmãos e na obediência às instruções de Jesus (e nem sempre necessariamente às da Igreja). • Você percebe algo? Hoje em dia, quando tanto se fala em “Espírito Santo” e onde os “espetáculos religiosos” determinam a cena, onde está seu distintivo, o amor do Pai entre os irmãos? Preste atenção neste distintivo importante! Cap. 13.1-11 (13.1) Um pouco antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que havia chegado o tempo em que deixaria este mundo e iria para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. (2) Estava sendo servido o jantar, e o diabo já havia induzido Judas Iscariotes, filho de Simão, a trair Jesus. (3) Jesus sabia que o Pai havia colocado todas as coisas debaixo do seu poder, e que viera de Deus e estava voltando para Deus; assim, levantou-se da mesa, tirou sua capa e colocou uma toalha em volta da cintura. (5) Depois disso, derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha que estava em sua cintura. (6) Chegou-se a Simão Pedro, que lhe disse ”Senhor, vais lavar os meus pés?” (7) Respondeu Jesus: “Você não compreende agora o que estou fazendo; mais 333 tarde, porém, entenderá”. (8) Disse Pedro: “Não, nunca lavarás os meus pés!” Jesus respondeu: ”Se eu não os lavar, você não terá parte comigo”. (9) Respondeu Simão Pedro: “Então, Senhor, não apenas os meus pés, mas também as minhas mãos e a minha cabeça!” (10) Respondeu Jesus: “Quem já se banhou precisa apenas lavar seus pés; todo o seu corpo está limpo. Vocês estão limpos, mas nem todos”. (11) Pois ele sabia quem ia traí-lo, e por isso disse que nem todos estavam limpos. O prelúdio dos últimos acontecimentos na vida de Jesus consiste na lavagem dos pés de seus discípulos como o exemplo perpétuo de abnegação no verdadeiro amor fraterno. Seguem, então, os discursos de despedida (melhor seria: de preparação), a oração sacerdotal como revelação perante os Seus (que não consta nos Evangelhos sinóticos) e, finalmente, o triunfo da paixão e as manifestações do Ressuscitado. O texto como João o apresenta, permite duas interpretações desse ato incrível do Senhor; a primeira tem como base o diálogo de Jesus com Pedro (versos 6-11) e consiste no gesto de Jesus como servo perante seus seguidores; a segunda (versos 12-17) entende a lavagem como modelo de serviço exigido de seus seguidores. As duas interpretações possíveis não se contradizem; elas se complementam. (13.1) Um pouco antes da festa da Páscoa... Uma questão complexa refere-se à data do jantar. Os termos “um pouco antes da festa...”, usadas por João, são vagos. Pelo texto que segue entende-se que o jantar se deu no final da tarde do dia 13 de Nisan (que corresponde à época de maio/junho do nosso calendário). Ao meio-dia do dia 14 de Nisan, os cordeiros pascais eram imolados no Templo e comidos na noite seguinte, 15 de Nisan. Em seguida, do dia 15 até 22 de Nisan, celebravam-se os sete dias dos “pães asmos” (Êxodo 12,15). No judaismo, o dia não começa com a manhã; ele começa ao pôr do sol, às 18 horas, aproximadamente. O judeu se refere à “noite e dia” (Gen.1), não ao “dia e noite”, como na nossa cultura (veja Marcos 4,27). A datação de João não condiz com a dos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que colocam tudo nos dois dias 14 e 15. Segundo a maioria dos intérpretes, a versão de João deve ser a mais provável. (13.1) Um pouco antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que havia chegado o tempo em que deixaria este mundo e iria para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. A base do discipulado e do serviço do seu seguidor é o amor imutável de Jesus. Já mostramos em outro lugar que o amor, tanto para João como para o Apóstolo Paulo, está isento de qualquer conotação emocional (Paulo refere-se ao amor somente no quinto capítulo da “Carta aos Romanos” e, na “Carta aos Coríntios”, no capítulo 8 e 13). 334 Até este momento, João nunca mencionou o amor do Senhor para com os Seus, nem o deixou transparecer. Embora presente, ele constitui um mistério. Os homens, aos quais Jesus agora fala, são “os Seus, escolhidos desse mundo” (15,19). São os Seus neste mundo, porém ainda deste mundo. Dentro de poucas horas e em fuga desesperada, eles deixarão Jesus sozinho (16,32). Mesmo “separados” de Jesus por sua natureza humana, eles são amados. Durante seu ministério, o amor de Jesus teve que suportar, tolerar, perdoar e purificar. O amor, necessariamente, tem a natureza da cruz. Ali, ele encontrará sua perfeição. As palavras “até ao fim” podem ser traduzidos também como “até a sua conclusão”(ou: perfeição). Note que João, neste trecho, se refere não mais à “elevação” (= crucificação), mas à volta ao Pai. O Evangelista olha a realidade espiritual: Jesus deixará este mundo e voltará ao Pai, de onde veio. Essa saída consistia em abandono, tortura, escárnio, sofrimento e vergonha da morte mais cruel conhecida e realizada por inimigos de seu povo. João não está querendo lembrar do sofrimento incrível que esse seu Mestre tinha de suportar; ele aponta ao que, no seu “hoje”, tem validade: Jesus à direita do Pai. (2) Estava sendo servido o jantar, e o diabo já havia induzido Judas Iscariotes, filho de Simão, a trair Jesus. O Evangelista João não perdeu tempo para lembrar os preparativos desse jantar. Pelos sinóticos sabemos que Jesus mandou dois dos discípulos à frente com tal tarefa. Um dos amigos de Jesus, sem que saibamos seu nome, deixara um salão amplo à disposição do grupo. Alguns dos estudiosos veem como possível que esta tenha sido a casa da mãe de João Marcos, posterior Evangelista. Ao contrário dos sinóticos que, por causa de sua datação falha da noite, apresentam o momento como se fosse a celebração pascal, João só menciona um “jantar festivo”. Era a última noite antes da prisão de Jesus, que aconteceria na madrugada seguinte. Ao cair da noite seguinte, Jesus já estaria no túmulo. O Evangelista lembra, com amargura, do fato de que aquele que ia trair o seu Mestre estava com eles sem que um só dos discípulos imaginasse o impossível: seu Mestre sendo traído. Refletindo, chegou à conclusão que fazia tempo que seu colega planejava a entrega de Jesus ao Sinédrio, obedecendo à ordem de delatação (11,57). Judas só esperava o momento oportuno. Para o Evangelista, algo tão inimaginável só podia ser obra do diabo. 335 (3) Jesus sabia que o Pai havia colocado todas as coisas debaixo do seu poder, e que viera de Deus e estava voltando para Deus; assim, levantou-se da mesa, tirou sua capa e colocou uma toalha em volta da cintura. O jantar preparado pelos dois enviados estava pronto. O dono da casa e seus servos já se tinham retirado. Ninguém esperava pela chegada do grupo, nem anfitrião, nem servo para lavar-lhes os pés, como a tradição mandava. As sandálias sujas ou, pelo menos, desconfortáveis após as andanças do dia, como de costume, eram tiradas na antessala. Nas casas orientais se pisa somente descalço, e o primeiro serviço numa recepção consistia na lavagem dos pés dos visitantes, cheias de poeira, por alguma servo escravo. Era um antigo costume (veja Gênesis 18,4). O anfitrião, mesmo presente, nunca realizava essa tarefa, mas tomava as providências para que ela fosse feita. Era, no final das contas, uma tarefa servil. Nenhum homem livre, nem um escravo judeu, podia ser obrigado a realizála; somente escravos pagãos a faziam. Como não havia servo presente, um dos discípulos, obviamente, deveria realizar essa tarefa de servo, quase obrigatória. Tudo estava pronto. Ali estava o jarro e a bacia, e aí estava a toalha de linho. Havia água no jarro, pois fazia parte da preparação de cada refeição. Só que nenhum dos discípulos mostrava-se disposto! Lucas relata até que, enquanto ocuparam seus lugares na mesa baixa em forme de U, estavam ocupados em argumentar entre si quem deles seria o maior! (Lucas 22,24). A comida estava sobre a mesa e a refeição por começar. Os utensílios para a lavagem dos pés, prontos, constituíam uma acusação silenciosa. Cada discípulo estava esperando que o outro fizesse o primeiro movimento. Jesus, calado, assistiu o murmúrio da discussão. Ele sabia, como o Evangelista observa, que o Pai confiava nEle ao ponto de deixar tudo na Sua mão e que, ainda neste dia, Ele voltaria para o Pai. Foi, então, que Jesus agiu. Serenamente se levantou da mesa e pôs de lado “suas vestes” (plural, no original!) e, na vestidura de um escravo oriental, usando somente uma tanga, tomou a toalha longa de linho e a prendeu em volta da cintura. A extremidade dela ficou livre para, com ela, enxugar os pés. (5) Depois disso, derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha que estava em sua cintura. Num silêncio constrangedor, Jesus começou a lavar os pés de seus discípulos, começando com o primeiro e passando para o próximo. Ninguém falava uma só palavra. (6) Chegou-se a Simão Pedro, que lhe disse ”Senhor, vais lavar os meus pés?” 336 Ao chegar a Pedro, este se negou veementemente a ver seu Senhor no papel de um escravo pagão. Começou um diálogo que determinará a primeira interpretação do acontecimento constrangedor para Pedro e os demais discípulos. Pedro não estava disposto a ver seu Senhor na tarefa de um desprezado escravo. Seu Senhor? Ele, lavando seus pés? Nunca! Já em outro contexto, Pedro havia protestado. Fora contra as palavras de Jesus que lhe falou da necessidade de ir à Jerusalém e sofrer nas mãos dos principais sacerdotes para, finalmente, ser entregue aos pecadores (pagãos). Naquela ocasião, Pedro chamou Jesus à parte e repreendeu-O, dizendo: “Nunca, Senhor! Isso nunca te acontecerá!” (Mateus 16,22). Assim como fez naquele momento, Jesus encarou seu discípulo: (7) Respondeu Jesus: “Você não compreende agora o que estou fazendo; mais tarde, porém, entenderá”. Em 2,21ss, o Evangelista semelhantemente havia observado que aquilo que Jesus falou do “templo de seu corpo”, os Seus somente entenderiam na manhã da ressurreição. O mesmo valia agora. Jesus respondeu a Pedro justificando seu comportamento: “Mais tarde, você entenderá”! (8) Disse Pedro: “Não, nunca lavarás os meus pés!” Jesus respondeu: ”Se eu não o(s) lavar, você não terá parte comigo”. Pedro, agravando seu protesto, negou-se a aceitar a lavagem de seus pés pelo Senhor. O original, parafraseado, diz: “Em eternidade alguma isso acontecerá!” Com a resposta de Jesus já estamos no centro de uma controvérsia. A tradução, como a temos em parte de nossas Bíblias, é incorreta. Jesus não disse: “Se Eu não os lavar” como se referisse aos pés de Pedro. A mudança correta é muito sutil: “Se eu não o lavar, não tens parte comigo”. A lavagem dos pés deve ser compreendida como uma lavagem inteira, que significa purificação (10). Não é o ritual de uma lavagem de pés que nos dá parte escatológica com Jesus. Importa Jesus ser aquele que a consuma: “Se eu não te lavar...”. “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”, pode ter sido para os leitores de João uma indicação indireta da necessidade do batismo, pois Jesus já havia ressuscitado quando João escreveu e a igreja já observava os dois mandamentos: o partir do pão (1 Cor 11,17ss) e o batismo. (9) Respondeu Simão Pedro: “Então, Senhor, não apenas os meus pés, mas também as minhas mãos e a minha cabeça!” 337 “Pedro”, nome honroso designado por Jesus a Simão por ocasião de seu chamamento (1,42), naturalmente quis ter parte com Jesus. Ele, como sempre, precipitado e efusivo, queria o máximo possível. Se a lavagem dos pés já dava participação, uma lavagem inteira deveria fazer muito mais efeito! Pedro ainda não compreendera o simbolismo da ação de Jesus e confundiu-a com um tipo de purificação levítica (dos sacerdotes para o serviço sagrado). (10) Respondeu Jesus: “Quem já se banhou (precisa apenas lavar seus pés;) todo o seu corpo está limpo. Vocês estão limpos, mas nem todos”. (11) Pois ele sabia quem ia traí-lo, e por isso disse que nem todos estavam limpos. Chegamos a mais um problema de interpretação. A maioria dos eruditos considera como posteriormente intercalada, como anotação de um copista moralista a exigência sem sentido e controvertida, que denota a necessidade de uma segunda lavagem. Se lemos o texto como nos é passado, entramos em contradição com o verso do cap.15,3: “Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado”. Os que defendem a versão sem as palavras contraditórias, ainda alegam que o vocabulário de João no texto grego joga com sinônimos, uma especialidade do autor, e não separa os pés para uma lavagem especial (Thyen, Bultmann, Barret, Lindars e outros). Acabamos de estudar a primeira interpretação da lavagem dos pés por Jesus, o gesto de Jesus como servo perante seus discípulos. Ela tem um profundo sentido espiritual: Se você não aceita que Jesus o declare lavado e, portanto, participante da vida de Deus, sem que você nisso pudesse ajudá-lo através de esforço próprio, religiosidade, oração, jejum ou seja lá o que for, você não entendeu o que significa Graça. Permita que Jesus lave os seus pés, humilhe-se, aceite o fato da graça imerecida, pois você, igual aos Doze, está discutindo seu lugar na escala de valores deste mundo, enquanto Jesus glorificou o Pai pela sua obediência e com isso redimiu também a você! A observação final quanto a Judas, cuja mente com sua decisão de entregar Jesus às autoridades já se desligara da comunhão, mais uma vez nos mostra a profunda consternação de João diante de um ato tão inesperado. Jesus também lavou os pés de Judas, mas o rito em si não tinha relevância alguma. A decisão de Judas, tomada no seu íntimo, o separava da parte com o Senhor. • Permita-me a pergunta: Jesus já lavou os seus pés? 338 Cap. 13.12-17 (12) Quando terminou de lavar-lhes os pés, Jesus tornou a vestir sua capa e voltou ao seu lugar. Então lhes perguntou: ”Vocês entendem o que lhes fiz? (13) Vocês me chamam ‘Mestre’ e ‘Senhor’, e com razão, pois eu o sou. (14) Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz. (16) Digolhes verdadeiramente que nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como também nenhum mensageiro é maior do que aquele que o enviou. (17) Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem. Na lição passada vimos como “ter parte com Jesus”, isto é, ser propriedade dEle, depende do fato de Jesus ter nos lavado. “Se eu não os lavar, vocês não terão parte comigo”. Nada podemos contribuir a não ser humilhar-nos e permitir que Jesus faça Sua obra em nós. A “conversão” erroneamente também se chama “aceitar Jesus”. Que decisão podemos tomar a não ser aquela de permitir a sua ação em nossa vida; sua entrada como SENHOR? É implícito nesse ato que a parte ativa é do SENHOR. “Não foram vocês que me escolheram, pelo contrário, eu vos escolhi...” (15,16). A nossa única decisão será aquela de dar um fim ao nosso orgulho e submetermo-nos ao senhorio de Jesus. Vemos frases como “eu aceitei Jesus”, como enganosas; elas apresentam a nossa ação como decisiva e colocam Jesus no papel de um pedinte, cuja proposta, generosamente, aceitamos. A conversão primeiramente é a nossa capitulação perante Deus. A interpretação da lavagem dos pés dos discípulos por Jesus que abordamos na lição passada, nos permitiu ver que a salvação é dom que recebemos, quando nos humilhamos perante Deus e não uma decisão nossa que tomamos. Que segurança teríamos, se a salvação dependesse de uma decisão nossa, que no dia seguinte e na primeira dificuldade já pudesse ser cancelada? A parte ativa, a “nossa decisão”, só pode ser aquela de nos curvar e nos humilhar perante Deus; assim só, Ele terá acesso a nossa vida. (12) Quando terminou de lavar-lhes os pés, Jesus tornou a vestir sua capa e voltou ao seu lugar. Então lhes perguntou: ”Vocês entendem o que lhes fiz? A pergunta de Jesus “Vocês entendem o que lhes fiz?” parece contradizer o verso 7. Jesus não deixou claro que ter parte na herança com Ele era algo que somente “depois” entendessem? Depois que o Espírito Santo viesse a iluminar os seus discípulos a respeito do profundo significado desse ato? E agora Jesus exige entendimento? Se Jesus agora quer saber se os seus entendiam o que Ele lhes fez, fica evidente que o Evangelista viu uma segunda interpretação possível. Muitos teólogos consideram os versos 12 a 17 um acréscimo da mão de 339 um redator da igreja primitiva (Richter, Langbrandner, Becker e outros) no intuito de ensinar. Podemos desfazer a aparente contradição se considerarmos que João, como autor, mudou constantemente “o horizonte” no seu escrito. De um lado, ele conta o que aconteceu lá no passado; os seus atores falam de acordo com as circunstâncias daquele momento. Ao mesmo tempo, João escreve para seus leitores pós-Páscoa que já são igreja e que tem, em se comparando com os discípulos da narração histórica, uma grande vantagem: eles já sabem da morte, da ressurreição e de Pentecoste e já conhecem a realidade da comunidade cristã. Essas permanentes “mudanças de horizonte” (Onuki) caracterizam todo o nosso Evangelho. O trecho de 12 a 17 não nos parece um acréscimo posterior de um autor desconhecido. A atitude inesperada de Jesus, muito ao contrário, afirma exatamente aquilo que Pedro temia e recusava, a saber, o cancelamento de toda a ordem de domínio (senhorio) e servidão desse mundo. Essa era a intenção do SENHOR (confira em Marcos 10,35-45; Mateus 20,20-28 e Lucas 22,24-27). Lembramos as palavras de Jesus em Lucas 12,37ss: “Bem aventurados aqueles servos a quem o Senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em verdade vos afirmo que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-se, os servirá...”. O que Lucas disse, vemos acontecendo em João 13,1-17. (13) Vocês me chamam ‘Mestre’ e ‘Senhor’, e com razão, pois eu o sou. (14) Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. (15) Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz. Conforme o costume tradicional que regia o relacionamento de um Rabi judaico com os seus discípulos, também o vemos no relacionamento entre Jesus e seus discípulos. Estes se dirigiam sempre a Jesus chamando-o de “Senhor” ou de “Mestre” e nunca usaram seu nome (Jesus). Este, respondendo Ele mesmo a pergunta feita aos discípulos, intencionalmente trocou a ordem, mencionando primeiro o Mestre. “Se eu lhes lavei os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros” – um exemplo lhes dei” (parafraseado). O termo traduzido com “exemplo” (melhor seria: protótipo, modelo) aparece no Evangelho todo somente aqui e no NT inteiro somente em Hebr.4,11; 8,5; 9,23; Tiago 5,10 e 2 Pedro 2,6. A força desse exemplo é comprometedora e despertadora. A lavagem mútua dos pés é indispensável no convívio dos discípulos. “Vocês devem...” quer dizer: Vocês são devedores desse serviço uns aos outros. 340 Na convivência dos cristãos revela-se o quanto somos humanos; aparece aquilo que doi, destroi, perturba e impede a comunhão. Não no púlpito, mas na convivência mútua aparecem as nossas faltas de fé, a falta de viva esperança e a ausência de amor e comprometimento. Aqui o Evangelista fala com os seus leitores, que conhecem a realidade da igreja. Nós não podemos salvar um ao outro; mas podemos lavar os pés mutuamente, se antes formos lavados por Jesus. Este compromisso de servo vai até a disposição de dar sua vida em favor do outro (15,13; 16,2; 21,19). Desde cedo, a igreja procurou transformar esse mandamento em sacramento. São Bernardo o tentou. O papa, ainda hoje, lava na quintafeira da paixão os pés (antes já bem lavados e perfumados!) de doze peregrinos cuidadosamente escolhidos. Calvino considerou essa lavagem teatral como uma farsa, como um mal-entendimento grotesco na liturgia da quinta-feira santa e disse: “Com esse cerimonial nulo eles julgam ter cumprido sua missão. Não lhes pesa na consciência se depois desprezam os seus irmãos. Certamente Cristo não recomendou um ato a ser repetido uma vez por ano, mas uma disposição permanente, a vida inteira, na igreja toda, de lavar mutuamente os pés dos irmãos.” (Com.338). Uma das maneiras de lavar é a apontada em Tiago 5,16: confissão mútua e oração como meio de manter os membros do corpo de Cristo em comunhão. Todos nós sabemos o quanto há necessidade permanente, digo diária, da lavagem dos pés, uma vez que o crente, no seu dia a dia, fica sujeito à “poeira” do desentendimento. Todos nós estamos a procura de grandes tarefas. Conheço um irmão que se orgulha em não fazer nada enquanto não puder evangelizar cem milhões de pessoas de uma vez, através da mídia. Lavar os pés da esposa, por exemplo, dificilmente lhe passa pela cabeça. Há necessidade de sermos lembrados do nosso dever, pois temos dificuldades, tanto em sermos servidos por outro igual quanto em serví-lo. Lavar os pés do outro, sem receber agradecimentos ou reconhecimento, é contra a nossa natureza humana. (16) Digo-lhes verdadeiramente que nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como também nenhum mensageiro é maior do que aquele que o enviou. O “em verdade, em verdade”, traduzido aqui como “digo-lhes verdadeiramente”, melhor: “Amém! Amém!”, como sempre aponta para algo já dito. Nunca aponta para frente, sempre reforça uma verdade já expressa. No judaismo vale a regra: O enviado representa (é igual) ao que lhe enviou. 341 Ser igual não é ser maior. Se os discípulos se sentem mal em executar esse serviço vital entre si, eles querem ser maiores do que Aquele que os chamou. A teoria é convincente. A prática, porém, em todas as comunidades cristãs, é mais difícil, porém possível. (17) Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem. A bem aventurança não consiste numa advertência em realizar aquilo que sabem. Ela apresenta de maneira surpreendentemente evidente uma condição que não existe sem sua realização. Assim como em 6,69 (“... nós temos crido e conhecido...”) a condição mútua de existência não é sua confrontação, tampouco se trata na constelação do saber e realizar de componentes contrários. O realizar sempre vive do entendimento, e sempre se aprofundando. Bem aventurados (felizes), se o (lavar dos pés) praticarem! Você percebeu como repentinamente o Evangelista está falando com a sua comunidade através das palavras de pessoas representadas? Críticos sustentam que o relato da lavagem dos pés representa a versão joanina da instituição da ceia nos Evangelhos sinóticos e que Jesus nunca realmente lavou os pés de seus discípulos. Tudo não passaria de uma composição literária do Evangelista. Claro que não o dizem, quando pregam. A tarefa de intercessão das ovelhas pelos seus “pastores” é uma das mais urgentes! (adapt. C.S.Lewis) Como disse o velho João? “Eles saíram do nosso meio; entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos. Vocês possuem a unção que vem do Santo e tem conhecimento. Não escrevi para vocês porque não saibam a verdade, antes, porque a sabem, e porque mentira alguma jamais procede da verdade” (1 João 2,19-21. Cap. 13.18-30 (18) Não falo a respeito de todos vós, pois eu conheço aqueles que escolhi; é, antes, para que se cumpra a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou contra mim seu calcanhar. (19) Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que EU SOU. (20) Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. (21) Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que um de vocês me trairá. (22) Então, os discípulos olharam uns para os outros, sem saber a quem ele se referia. (23) Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava; (24) a esse fez Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere. (25) Então, aquele discípulo, reclinando-se sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? (26) Respondeu Jesus: É aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado. Tomou, pois, um pedaço de pão e, tendo o molhado, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. (27) 342 E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás. Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa. (28) Nenhum, porém, dos que estavam à mesa percebeu a que fim lhe dissera isto. (29) Pois, como Judas era quem trazia a bolsa, pensaram alguns que Jesus lhe dissera: Compra o que precisamos para a festa ou lhe ordenara que desse alguma coisa aos pobres. (30) Ele, tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite. (17) Agora que vocês sabem estas coisas, felizes serão se as praticarem. (18) Não falo a respeito de todos vós, pois eu conheço aqueles que escolhi; ... A pessoa de Judas e a traição (lit. “entrega”) ocupavam sobremodo a mente do Evangelista. A bem aventurança enunciada por Jesus no verso 17 logo seria condicionada; ela não valia para todos os discípulos. Jesus havia lavado os pés de Judas também e, aparentemente, este em nada chamou a atenção dos demais. Surge a pergunta: como Judas podia fazer parte dos pessoalmente escolhidos por Jesus? Em 6,70 esta pergunta já fora implícita, mas ficou sem resposta. Será que Judas conseguiu enganar a Jesus durante sua permanência no grupo? Alguns comentaristas afirmam que Jesus escolheu a Judas com o propósito de ser entregue por Ele. Outros veem uma evolução na carreira de Judas, que culminou na “entrega” do Mestre. A partir de quando Judas começou a considerar a possibilidade da entrega de Jesus a seus inimigos? (o original diz “entregar”, e não trair). Qual não será a consternação dos discípulos quando um do meio deles se revelar inimigo mortal de Jesus? Jesus disse: “Eu conheço aqueles que escolhi”. Por que então não o desmascarou antes, expulsando-o? Tocamos aqui no mistério da predestinação. Uma palavra das Escrituras tinha que se cumprir. ... é, antes, para que se cumpra a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou contra mim seu calcanhar. O Evangelista e os leitores de seu Evangelho sabem de quem Jesus estava falando; os discípulos ainda não. A citação do salmo 41,9 é bastante forçada. Será que ela é uma conclusão do próprio Evangelista, colocada na boca de Jesus? João não recorreu à tradicional versão da Septuaginta (LXX), onde o texto diz:”... que comeu do meu pão, fez grande sua perfídia”, mas usou o texto do original hebraico, onde consta: “... quem comeu meu pão comigo fez grande seu calcanhar contra mim”. A tradição judaica interpretava os salmos 41 e 55 à luz da traição do rei Davi por Aitofel (2 Sam.17). O Evangelista ignorou as palavras iniciais do verso 9: “... até meu amigo íntimo, em quem confiava, que comia...” (41,9). Ele não conseguiu imaginar que Judas um dia fora amigo íntimo de Jesus e que Jesus tenha sido enganado por Judas, uma vez que, como Logos de Deus, deveria saber tudo. Para não deixar a menor dúvida nisso, ele substituiu o termo “fez grande” contra mim (que, por si só, poderia ser interpretado como indício de engano) por “levantou” seu calcanhar...”(2 Sam.18,28). Esse cuidado extremo do Evangelista nos mostra em profundidade como o nosso Evangelista viu a Jesus. 343 (19) Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que EU SOU. Jesus voltou a afirmar o que já disse a Pedro no verso 7, isto é, que todo o seu comportamento e palavras somente poderão fazer-lhes sentido quando vier o consolador, após a Páscoa. Somente então, “quando acontecer”, eles reconhecerão e crerão que era o EU SOU - o mesmo que falou a Moisés da sarça ardente o EU SOU O QUE SOU (Ex.3,14) - quem lhes lavou os seus pés! (20) Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. Sempre que aparece o duplo “amém, amém”, o autor refere-se ao que já fora dito, reforçando-o. Enquanto no verso 16 ainda se referia a “algum mensageiro” (Apóstolo), o presente verso indica Jesus como aquele que envia: “... aquele que eu enviar...”. (Textos sinóticos paralelos: Mateus 10,40; Lucas 10,16; 9,48 e Marcos 9,37). João não menciona no seu Evangelho o envio de Apóstolos (mensageiros) durante o ministério de Jesus. Na sua oração sacerdotal (cap.17) Jesus já fala como SENHOR glorificado e ressurreto, quando diz: “... eu os enviei ao mundo”. O envio dos “Apóstolos”, de fato, acontece no Evangelho de João somente depois que Jesus ressuscitou e dotou seus discípulos com o Espírito Santo e a autoridade para perdoar ou reter pecados (cf.20,19-23). Mesmo considerando o verso 20 relacionado ao 16, ele parece estar no lugar errado; ele interrompe o fluxo dos acontecimentos durante o jantar. Com o verso seguinte, João volta ao assunto da “entrega” de Jesus por alguém de seus seguidores mais íntimos. (21) Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que um de vocês me trairá. O Evangelista notou que Jesus estava sendo tomado por profunda angústia (tormento, medo), quando reafirmou com o duplo “amém” as suas reflexões quanto à traição (versos 18 e 19). Agora disse claramente: “Um de vocês me entregará!”. As conversas entre os Doze repentinamente cessaram! (22) Então, os discípulos olharam uns para os outros, sem saber a quem ele se referia. Os discípulos bem estavam conscientes de que havia algum perigo no ar; eles notaram a profunda aflição de seu Mestre, mas não lhes fazia sentido a afirmação assombrosa que acabaram de ouvir. Marcos anotou (baseado nas observações de Pedro) que as palavras de Jesus causaram grande tristeza entre os Doze, pois cada um, assustado, se deu conta de que pudesse ser ele que, com alguma palavra 344 infeliz no lugar errado e sem querer, pudesse colocar a vida de seu Mestre em perigo. Essa pergunta: ”Por acaso, sou eu”? ecoa pela história da igreja, onde sempre de novo Jesus tinha sido traído, negado, suas palavras pervertidas, sua pessoa usada para justificar violência e ganância e os seus seguidores verdadeiros perseguidos por aqueles que se chamavam “cristãos”. Um silêncio pesado pairava sobre o grupo. O que seu Mestre queria dizer? Jesus estava desconfiando de um deles? Cada um olhava seu próximo; a quem deles será que Jesus se referia? Notamos que, ao contrário dos leitores que já sabem que Judas Iscariotes era o indicado, ninguém do grupo suspeitava dele. (23) Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava; (24) a esse fez Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere. A observação “conchegado a Jesus” e “reclinando-se sobre o peito de Jesus” (v.25) causou aos pintores de todas as épocas tamanho problema. (Lembre-se da pintura da ceia por Leonardo da Vinci, onde o grupo está representado sentado à mesa e que, por causa desse equívoco, tem dado base a tanta interpretação maldosa). Os costumes greco-romanos da época explicam as palavras acima. Ninguém sentou à mesa num jantar festivo. Deitava-se à mesa, que tinha a forma de U, apoiado pelo braço esquerdo num travesseiro, com as pernas esticadas e inclinadas para trás. O vizinho da mesa estava deitado da mesma forma, ou na frente ou por trás do seu vizinho, de forma que cada um deitava “no peito” daquele que estava por trás, podendo, com uma leve reclinação da cabeça, discretamente conversar com este sem que os demais o notassem. Portanto, se a ordem na mesa fora sempre a mesma, com o tempo desenvolviam-se relacionamentos de confiança entre os que estavam deitados juntos. Pelo que o Evangelista relata (e os sinóticos confirmam), o lugar “no peito” de Jesus era o de João. Assim podemos entender que havia se formado uma amizade mais profunda entre Jesus e “aquele que amava”. Do outro lado estava deitado Judas. O texto diz que no silêncio pesado que se seguiu às palavras de Jesus, Pedro fez um sinal ao que estava do lado do peito de Jesus (João), um gesto com a cabeça talvez, despercebido pelos demais. Pedro, sempre o primeiro, não via como obter informações mais claras da parte de Jesus a não ser através do vizinho de Jesus que, com a leve inclinação de sua cabeça para trás, podia consultar o Mestre sem que os demais o notassem. 345 A dupla Pedro/João ocupa um lugar especial no relato do Evangelista: Pedro junto com o discípulo amado no pátio do palácio do sumo sacerdote (onde Pedro negaria por três vezes conhecer Jesus, 18,15s); Pedro e João correndo para a sepultura, após receber a notícia do sumiço do corpo de Jesus (20,3s); Pedro e João juntos na pescaria no lago da Galileia, João reconhecendo a Jesus ressurreto no homem na praia e Pedro avançando pelas águas após a pescaria maravilhosa (21,1) e, finalmente, a tripla pergunta de Jesus a Pedro, na sua reabilitação pelo Senhor, e a preocupação do mesmo quanto a João (21,20). Voltemos ao Cenáculo: (25) Então, aquele discípulo, reclinando-se sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? A pergunta dirigida a Jesus, em voz baixa, não foi notada pelos demais a não ser por Pedro, que observava a cena procurando entender o que se passava. Na cultura oriental, um visitante podia ser honrado com a atenção especial por parte do anfitrião quando este, pessoalmente, oferecia à pessoa escolhida um pedaço de pão ou de carne, antes molhado no caldo da travessa que estivesse sobre a mesa. (26) Respondeu Jesus: É aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado. Tomou, pois, um pedaço de pão e, tendo o molhado, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. Não chamou a atenção de ninguém quando Jesus, discretamente, ofereceu o pedaço de pão, molhado na travessa, a Judas que estava deitado do outro lado. O Evangelista observou a reação de Judas. Parecialhe que Satanás pessoalmente tomasse posse desse seu colega, tão estranha era a sua reação ao gesto de Jesus. Ele foi desmascarado! (27) E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás. O bocado oferecido por Jesus e colocado na sua boca lhe servia de “sacramento para o julgamento” (Strathmann). Não havia mais como continuar à mesa uma vez apontado, mesmo discretamente, por Jesus. Enquanto Judas silenciosamente se levantou, Jesus o mandou apressarse naquilo que tinha em mente. O retrato pouco lisonjeiro de Judas no Evangelho levou logo a igreja primitiva à exclusão estrita de qualquer pecador da participação na mesa do Senhor (1 Cor. 11, 20) e à discussão e briga quanto à interpretação do bocado oferecido por Jesus a Judas, e mais à pergunta se Judas tinha parte da ceia ou não? (Lagrange, Moloney). O acúmulo de desentendimentos, perguntas, traição e negação no capítulo 13 de João reflete também a situação em que João escreveu seu Evangelho no fim do primeiro século. Podemos entender que exatamente o amor incondicional de Jesus, mesmo para com discípulos como Judas o 346 era (o “arquétipo do discípulo mau”), revelou-se como perfeito pela inclusão dele no seu amor (3,16). Se com o bocado dado a Judas o amor de Jesus valeu até para com seu inimigo, o leitor do Evangelho (inclusive você e eu) podemos corresponder ao amor de Deus somente através de uma entrega incondicional a Ele (Mat.5,44). Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa. A tradução correta seria: “Faze-o mais depressa!” O Evangelista mostra que nem aqui Jesus era vítima, pelo contrário: era o Senhor também da Páscoa, conforme lemos antes: Ele sabia que o Pai lhe tinha confiado tudo nas suas mãos (13,3) e até um Judas traidor. Os discípulos só conseguiram captar as últimas palavras de Jesus dirigidas a Judas, interpretando-as como corriqueiras e relacionadas com a festa do dia seguinte. (28) Nenhum, porém, dos que estavam à mesa percebeu a que fim lhe dissera isto. (29) Pois, como Judas era quem trazia a bolsa, pensaram alguns que Jesus lhe dissera: Compra o que precisamos para a festa ou lhe ordenara que desse alguma coisa aos pobres. Duvidamos que Pedro tenha entendido a resposta dada através do bocado a Judas, mesmo observando Jesus quando este, discretamente, fora interpelado por João. Como o Evangelista confessa: Nenhum dos discípulos, nem ele próprio sabiam interpretar o que se passava. Estava chegando o dia da Páscoa e, na noite seguinte se comia o cordeiro pascal. Os discípulos ainda tinham como certo que, junto com seu Mestre, celebrassem a festa. Dar esmolas aos pobres também fazia parte da tradição da Páscoa. Mateus registrou a intenção dos anciãos e dos principais sacerdotes: prender Jesus após a festa (“mas diziam: Não durante a festa, para que não haja tumulto entre o povo”, Mateus 26,5). Com seu gesto perante Judas e com a intimação de apressar o que tinha em mente, Jesus determinou que sua prisão acontecesse ainda nesta noite e com isso a data de sua morte. Seria no dia em que os milhares de cordeiros pascais eram sacrificados no Templo, dia 14 de Nisan. Mais uma vez o Evangelista João enfatizou que era Jesus, como Senhor, que determinou a data de sua morte: o dia da Páscoa. A sol havia se posto, e com o anoitecer havia chegado o dia 14 de Nisan: o dia da Páscoa. Quando João observa que “era noite”, notamos que a observação tem conotação múltiple. (30) Ele (Judas), tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite. 347 Judas estava a caminho para fazer valer seu intento; não havia mais como voltar para trás. A noite escura, apesar da estação de lua cheia na Páscoa, é uma metáfora também: Para Judas, a luz do mundo não mais brilhava. A noite colocou fim às atividades de Jesus. Tudo estava definido, embora nenhum dos onze com Jesus à mesa o percebesse. Havia chegada a hora em que Jesus podia dirigir suas últimas instruções aos seus. Anexo: JUDAS - OBSERVAÇÃO a parte Existe um comentário a respeito dos Apóstolos e que é diametralmente oposto aos costumeiros comentários teológicos. Ele vem da mão do escritor Julien Green. No seu romance “Cada homem na sua noite”, uma pessoa descrita como antipática e cujo nome é James Knight está lendo um trecho da Bíblia ao herói do romance e de nome Wilfredo, e livro este familiar aos dois, que foram criados com conhecimento dos Evangelhos. Citemos: “Ele abriu a Escritura Sagrada e leu: Estes são os nomes dos doze Apóstolos: como primeiro Simão, denominado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; Filipe e Bartolomeu, Tomé e Mateus, o cobrador de imposto; Tiago, filho de Alfeu e Tadeu; Simão, o Cananita.....e James Knight, quem o traiu”. Wilfredo começou a tremer. “Porque o senhor diz assim?” – ele perguntou. “Parece-lhe improvável, que James Knight traiu a Jesus”? perguntou aquele que leu, abaixou o livro. “Cada um de nós poderia colocar aqui o seu próprio nome: ... e o décimo segundo se chamou Wilfredo, e esse o traiu”. Wilfredo se levantou e abriu a boca, porém ficou sem força para se pronunciar. “O senhor percebe”, continuou Knight, “que todos nós, assim como somos, poderíamos colocar o nosso próprio nome no lugar do de Judas? Nunca chegou a pensar a respeito?”... Kierkegaard escreveu no seu livro “Doença para a Morte” o seguinte: “É verdadeiro e seguro que aquele que primeiro incorreu em defender o cristianismo, de fato, se tornou o Judas número 2”. Essa observação constitui-se um lance fatal para toda a apologia (defesa da fé). Na opinião do autor sobremodo perspicaz, o homem trai a Cristo quando procura defendê-lo através de suas palavras hábeis. O Senhor não precisa da nossa frágil apologia, porque é a Sua própria mensagem, que questiona a nós. O famoso hagiólogo (estudioso dos santos) Walter Nigg escreveu no seu livro “Os grandes Não Santos” o seguinte: “... o homem contemporâneo resiste à ideia do Evangelista João que aponta a Satanás como quem entrou em Judas (durante a ceia), pois lhe parece uma condenável recaída no mundo antigo com as suas ideias primitivas, superadas há séculos... Não é tão fácil resolver o assunto “Satanás”! Será que nada percebemos do poder demoníaco atuando no nosso tempo? Queremos explicar tudo que acontece através de política e sociologia? A palavra de Jesus: “... um de vocês é um diabo” (João 6,70) não permite contestação. Negando-a, significa querer ser 348 mais sábio que o próprio Senhor... Ou seja, que entendamos o acontecimento de Satanás entrando em Judas ou não, (o fato em si está acima de qualquer discussão), pois ultrapassa em muito a nossa capacidade de razão. Sem uma interpretação metafísica, o problema “Judas” continua sombrio e inexplicável...” São muitas as perguntas sem resposta: Será que a necessidade do cumprimento das Escrituras exigia o sacrifício de um homem? Por que a Palavra de Deus impôs uma prova assim? Fora a traição vil uma necessidade suprema, à qual Judas tinha que submeter-se? Foi o Eterno que o obrigou a cometer o incrível? Foi Ele que escolheu Judas, porque alguma pessoa tinha que trair Jesus para tornar possível a redenção do mundo através da cruz? Não se tornou Judas, assim, uma figura necessária no plano divino de salvação?... Os “como está escrito” e o “ai dele” (Mat 26,24) são paradoxos que mutuamente se excluem; portanto, são questões que continuarão sem resposta. A tragédia de Judas, do homem que um dia deixou tudo para seguir a Jesus, que recebeu dele poder para expulsar demônios e para curar (Lucas 9,1) e que, no final, entregou seu Senhor aos carrascos, essa figura trágica pairou como uma nuvem escura sobre todo o trabalho do grande escritor Bernanos. No seu livro “O Diário de um Pároco”, ele diz: “Não consigo, apesar de todo meu esforço, imaginar Judas pertencendo a esse “mundo” que Jesus misteriosamente excluiu de sua oração sacerdotal (17,9 )... . Judas não pertence a esse mundo, não”. Bernanos nunca conseguiu conformar-se com o problema preposto. Conta-se, que o escritor, quando menino e não podendo aceitar a ideia de perdição para Judas, e sem que alguém o soubesse, de tempo em tempo trazia escondido seu dinheirinho juntado ao padre da Paróquia para a celebração de uma missa em favor de “alguém amado no Purgatório”, cujo nome nem ousou pronunciar. Acreditamos que dessa forma somente, um menino (católico) no fim do século 19, numa pequena vila francesa, tem dado a única resposta cristã possível ao problema atormentador Judas. (Final do comentário) Cap. 13.31-38 (31) Depois que Judas saiu, Jesus disse: “Agora o Filho do homem é glorificado, e Deus é glorificado nele. (32) Se Deus é glorificado nele, Deus também glorificará o Filho nele mesmo, e o glorificará em breve. (33) Meus filhinhos, vou estar com vocês apenas mais um pouco. Vocês procurarão por mim e, como eu disse aos judeus, agora lhes digo: Para onde eu vou, vocês não podem ir. (34) “Um novo mandamento vos dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros”. (RA: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”). (35) Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros. (36) Simão Pedro lhe perguntou: “Senhor, para onde vais?”. Jesus respondeu: “Para onde eu vou, vocês não podem seguir-me agora, mas me seguirão mais tarde”. (37) Pedro perguntou: “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Darei a minha vida por ti!” (38) Então Jesus respondeu: “Você dará a vida por mim? Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me negará três vezes! 349 (31) Depois que Judas saiu, Jesus disse: “Agora o Filho do homem é glorificado, e Deus é glorificado nele. O comentário de Thyen parafraseou o verso 31 dessa forma: “Agora, o Filho do homem está sendo glorificado através da glorificação de Deus nele mesmo”. Como podemos entender essa enunciação difícil? O melhor comentário nos parece o seguinte: Aqui encontramos o conhecimento íntimo e perfeito de Deus na aceitação e compreensão da maneira como Deus, permitindo ao mal impor-se, revela sua glória. Temos o homem (Filho do homem) que não implora a Deus exigindo juízo e a destruição do mal, mas que, enraizado na eternidade, entende Deus na Sua majestade superior ao mal e permite ser feito instrumento e revelador dessa superioridade divina sobre o mal (Buchsel em W. de Boor, Ev.João II). Quando em 12,20ss alguns gregos chegaram, querendo ver Jesus, Este exclamou: “Chegou a hora de ser glorificado o Filho do homem”. Agora que Judas está a caminho para acertar a entrega de Jesus (pois ele sabia onde o grupo ia passar a noite), chegou o “agora”. (32) Se Deus é glorificado nele, Deus também glorificará o Filho nele mesmo, e o glorificará em breve. O Evangelista repete a afirmação da glorificação, porém na perspectiva da futura e imediata glorificação na Páscoa, quando Deus glorificará o Filho nEle mesmo, ressuscitando-O e recebendo-O na glória (Filipense 2,9-11). Como muitas vezes em João, as palavras de Jesus vão se tornando palavras do Evangelista, ou vice-versa, sem que saibamos onde exatamente muda o autor. Assim, as palavras acima podem ser reflexões do próprio Evangelista. (33) Meus filhinhos, vou estar com vocês apenas mais um pouco. Vocês procurarão por mim e, como eu disse aos judeus, agora lhes digo: Para onde eu vou, vocês não podem ir. O termo “meus filhinhos”, usado amplamente na primeira “Carta” do Apóstolo, aparece uma única vez no seu Evangelho. Na tradição rabínica judaica se conhecia esse tratamento dos discípulos do Mestre. A ternura da fala de Jesus revela a dor da separação, uma realidade iminente para Jesus, mas ainda ignorada pelos seus discípulos. Até então, para onde Jesus ia, os seus seguidores foram juntos. Pela primeira vez isso não será possível. Os Onze se davam conta da difícil situação, mas nunca consideraram sendo possível o que nós, leitores, já sabemos: da iminente morte de Jesus, do fim do ministério junto com Ele e de suas esperanças 350 arruinadas em breve. Desconsiderando todos os avisos de Jesus, eles ainda esperavam o breve aparecimento do Reino de Deus em Israel. Nenhum deles, nem João entenderam que era essa a última noite, a última refeição junto com seu amado Mestre. Mais estranho ainda lhes soaram as palavras de aviso de que eles iam em vão à procura dele. Ele não havia dito o mesmo para os “judeus” (7,33) quando os sacerdotes enviaram a guarda do Templo para prendê-lo? Como o Mestre os colocava repentinamente na mesma condição com seus inimigos no clero? As palavras de Jesus não lhes faziam sentido. Se Jesus for embora, deixando-os, que será deles? Como eles podiam viver sem Ele? (34) “Um novo mandamento vos dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros”. (R.A: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”). (35) Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros. Não sabemos, a que altura da conversa o Senhor deu aos seus esse “novo mandamento”, pois, de alguma forma, ele interrompe os acontecimentos durante o jantar. Os eruditos discordam profundamente sobre a interpretação desse “novo mandamento”. Uma linha de interpretação vê no “novo mandamento” uma restrição do antigo mandamento do amor ao próximo: Levítico 19,18: “Ame cada um seu próximo com a si mesmo. EU sou o Senhor”, e ainda mais à exigência de amor a favor do inimigo: Lucas 6,27: “... amem seus inimigos, façam bem aos que vos odeiam”. Não será mais uma ordem que regerá a vida da comunidade, mas sim o novo mandamento do amor ao irmão. O mundo está sendo visto como “de fora; o “novo mandamento” é a base do legado confiado aos “seus”. Ele se restringe ao amar os irmãos (1 João 3,11-18). O verso 35 é a definição última do discipulado, da comunidade. O chamado do salvador sempre é dirigida a indivíduos (1,35s; 3,1s; 4,7s) que aceitaram a palavra de Jesus e a guardaram. Os chamados por Jesus são seus “discípulos” (13,35; 15,8); seus amigos (15,13s) e acima de tudo os “Seus”; esses que foram atraídos pelo Pai (6,44; 17,2). 15,13: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida pelos seus amigos”. Segundo essa linha de interpretação, a salvação apresentada no Evangelho de João é individualizada e a igreja se entende como antítese ao mundo. Percebem-se indícios para a posterior elaboração do dogma da predestinação. A salvação é presente de Deus, graça imerecida revelada naqueles que foram atraídos pelo Pai (Schultz e.o.). Embora reconheçamos algumas verdades fundamentais nessa linha de interpretação (salvação individual, obra de Deus), julgamos a outra linha de interpretação a mais correta. Ela argumenta da seguinte forma: 351 O bocado molhado oferecido a Judas, que estava por entregar a Jesus, revela o amor incondicional de Jesus até perante seus inimigos (Pedro, que o negará por três vezes e seus vacilantes seguidores que, todos, o deixaram, fugindo, com a exceção parcial de João e Pedro). Da forma como Jesus amou, os seus seguidores deveriam amar-se uns aos outros. Não há nenhuma restrição aos “irmãos” no “novo mandamento”. O amor de Deus revelado no envio de seu Único Filho (3,16) e que se cumprirá na morte de Seu Filho, tem sua continuação no envio dos seus ao mundo, exigindo deles o mesmo amor, disposto até para o martírio, obra, obviamente, de seus inimigos (13,36-38; 16,2s). Enquanto o amor incondicional é marca inconfundível do discípulo de Jesus, “aqueles do mundo” amam somente o que é deles (7,18s). É verdade que o “novo” mandamento determina o relacionamento dos discípulos entre si. Mais ainda: ele lhes tira toda a autonomia e os declara servos uns dos outros e exige dependência mútua. Essa exigência do amor mútuo não é consequência da fé, mas é a prática inseparável dela. A exigência positiva do verso 35 está relacionada com o amor de Deus para com o mundo, pois no amor mútuo dos irmãos todos deverão conhecer que eles são discípulos de Jesus. O mundo só pode conhecer esse amor se eles, de alguma forma, entram em contato com o mundo, amando. O “uns aos outros” de maneira alguma deve ser reduzido apenas à comunhão entre irmãos e não excluindo o próximo, mesmo se ele for inimigo. O amor exclusivo não é o amor que vimos em Jesus, que exigiu amar “como eu os amei”, mesmo os vacilantes e fracos. De maneira alguma a comunidade de irmãos deve manifestar-se como opção contrária, mas como mensagem inequívoca ao mundo que somente ama o que é dele (Wengst). O nosso Evangelho não desenha a imagem de uma comunidade joanina de amor mútuo separada do resto do mundo. A mensagem de João consistia numa chamada do Evangelista à cristandade de seu tempo – uma cristandade que se assemelhava à imagem dos discípulos que traíram seu Senhor e O deixaram só – a tornar-se uma comunidade na qual o mundo podia ver que eles pertenciam a Jesus. O que dizer do nosso tempo? O mandamento do amor já consta em Levítico 19,18, e com o acréscimo formal de não excluir estrangeiros (19,34). O que então é novo nesse “novo” mandamento? Não é novo nem perante o AT nem o NT e nem perante o antigo mundo pagão (Ética de amor de Aristóteles). Sendo já há muito tempo conhecido, o mandamento de amor mútuo de Jesus é novo por ser a legislação da comunidade escatalógica (igreja), não novo no sentido histórico, mas no predicado do seu ser. Ele é o fenômeno da luz que veio com Jesus, descrito na “Primeira Carta de João” em 2,8. 352 O profeta Jeremias já falou desse novo mandamento quando, em 31,33ss, vê a lei posto no íntimo de seu povo, escrito nos seus corações...”. O novo mandamento não é outro a não ser o do Sinai e o da Torá. Entra em vigor o pacto da antiga Aliança, quebrado tantas vezes. A “Primeira Carta de João”, cap. 2,7-11, atesta essa “renovação do que já era”: “Amados, não lhes escrevo um mandamento novo, mas um mandamento antigo, que vocês tem desde o princípio: a mensagem que ouviram. No entanto, o que lhes escrevo é um mandamento novo, o qual é verdadeiro nele e em vocês, pois as trevas estão se dissipando e já brilha a verdadeira luz...” Levado às últimas consequências, vemos que amor mútuo nada mais é do que obediência a Deus. Após essa avaliação do “novo mandamento” retornamos ao diálogo entre Jesus e Pedro, interrompido após o verso 33. (36) Simão Pedro lhe perguntou: “Senhor, para onde vais?”. Jesus respondeu: “Para onde eu vou, vocês não podem seguir-me agora, mas me seguirão mais tarde”. Semelhantemente aos demais, Pedro continuou no seu mal-entendido. Ele interpretou as palavras de Jesus como anúncio de uma viagem, uma deslocação para outro lugar geográfico. Jesus respondeu aquilo que já lhe disse: era impossível seguí-lo agora. É interessante notar que os sinóticos, escritos antes de 65, não conhecem a afirmação de Jesus: “... mas me seguirás mais tarde”. A igreja do tempo do Evangelista (90-100 d.C) sabia da sorte de Pedro. A tradição confiável sabe da morte de martírio dele em Roma, na década de sessenta, crucificado. Assim, João podia trabalhar o fato no seu Evangelho, escrito no fim do século: “... me seguirás mais tarde”. Uma hipótese provável. (37) Pedro perguntou: “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Darei a minha vida por ti!” Pedro ainda não entendeu que Jesus estava falando de sua morte, do final de seu ministério. Continuou pensando que Jesus tinha em vista ir para algum lugar perigoso e ofereceu-se para acompanhá-lo, lutando por Ele e, caso necessário, dando sua vida por Jesus. (38) Então Jesus respondeu: “Você dará a vida por mim? Asseguro-lhe que, antes que o galo cante, você me negará três vezes! O canto do galo servia de indicação de tempo. Por Marcos 13,35 sabemos que ele marcava o início da “quarta vigília” da noite (denominada secundum gallicunum pelos romanos), isto é, perto das três horas da manhã. Antes das três da manhã, Pedro afirmaria que nada tinha a ver com Jesus e que não conheceria “esse homem”. 353 Marcos diz que Pedro continuou insistindo, desconsiderando as palavras de Jesus e oferecendo-se para lutar. E acrescenta: “e todos os discípulos falaram o mesmo” (Marcos 14,31). Pela pergunta de Jesus, marcada pela tristeza: “Você dará a vida por mim?” entendemos que a relação do bom pastor para com as suas ovelhas não pode ser invertida. O sacrifício de Pedro para seu Mestre não será o martírio, mas a tripla negação dele antes das três horas da manhã! Discipulado como ação humana ou sacrifício para o Senhor, campanhas ou promessas como possibilidades humanas não levarão à salvação; somente a intervenção divina no mundo terreno o fará e fez. Essa é a conclusão do Evangelista (confira 1 Joao 4,10). A igreja cristã, segundo João, tem como distintivo indispensável o amor mútuo entre seus membros. Isso corresponde à realidade, realidade nossa? Não temos como fugir da constatação de que esse não é o caso. Será que João era sonhador ou somos nós que estamos muito longe da norma? As nossas diferentes comunidades tradicionais ou liberais são acima de tudo comunidades de dogmas (normas) mutuamente aceitas! E algumas das novas Igrejas Neopentecostais? Não são elas comunidades de interesses mútuos na dança em volta do bezerro de ouro (Êxodo 32.1s)? O que é hoje “mútuo” nas igrejas? Sim, há comunidades onde se preza esse amor mútuo, mas onde encontrá-las? As normas da Escritura e as palavras do Evangelista não mudaram. Deus pedirá conta da sua igreja que está tão longe do que Deus planejou! Vamos fazer o quê? Sair da Igreja porque ela não presta? Não cremos que essa seja a melhor opção. Como seria se, você e eu, dentro da Igreja que estamos, fôssemos diferentes? Para tanto, precisamos ser habitação do Espírito Santo, não do Espírito de ganância ou do da intolerância e do orgulho doutrinário/denominacional. Há uma enorme fome pelo verdadeiro Espírito Santo de Deus. Por essa razão, a pirataria em nome do “Espírito Santo” floresce tanto. Só que o mundo não vê nas nossas comunidades a marca indispensável indicada por João. A igreja de hoje é mais razão para chacota por parte do mundo, do que uma comunidade de irmãos que se amam incondicionalmente, dando testemunho de que são de Jesus. Não temos uma receita barata e fácil de como consertar essa situação. Cremos que o começo, o início de uma mudança sempre será uma mudança pessoal, individual (você e Deus) e nunca um “movimento” em favor de algo, que acabará exatamente aonde começou, senão pior. 354 Ns próximas leituras veremos o que o Evangelista João nos diz quanto ao Espírito Santo, o “Parácleto” (Consolador). Será que estou disposto a fazer uma autoavaliação sincera na luz do que a Palavra de Deus nos diz? Cap. 14.1-3 (14.1) “Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. (2) Na casa de meu Pai há muitos aposentos (moradas); se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-vos lugar. (3) E se eu for e vos preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. Vários intérpretes procuravam cortar o texto dos capítulos 13 a 17 em textos autônomos, montando-os numa nova sequência e alegando ser aquela a original provável (Bultmann e.o.). Assim como a procura de hipotéticas fontes pré-joaninas (Becker, Richter e.o.), todas essas tentativas nada acrescentam. Outras teorias, como a da redação final de tradições diferentes das palavras de despedida por uma posterior e hipotética “escola joanina” tampouco convencem (Thyen). Essas tentativas não só nada acrescentam, pelo contrário, elas destroem a sequência que o Evangelista João cuidadosamente escolheu. A divisão do texto do NT em capítulos e versos, feita no séc. 12, aproximadamente 1000 anos após a sua redação, fez bem em iniciar um novo capítulo (14) a esta altura, pois com 14,1 começam as palavras de despedida de Jesus, enquanto o capítulo anterior (13), com sua base dramática no anúncio de partida durante o jantar, a indicação do traidor por Jesus e a negação prevista de Pedro, determinam o literário “lugar na vida” da história. Leiamos então o texto assim como ele se apresenta. (14.1) “Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Os discípulos de Jesus não encontraram nenhuma luz na perspectiva que por ora se lhes apresentava. Tristes, envergonhados e perplexos, sua fé ameaçou a vacilar. Todas as suas esperanças, confirmadas por ocasião da entrada triunfal em Jerusalém, se foram. Ainda mais: no meio deles havia um traidor e eles não sabiam de quem Jesus estava falando. Tudo parecia escuro. Qual seria o futuro deles? Será que eles haviam apostado no “messias” errado? Conforme a tradição semita, Jesus referiu-se ao “coração” como centro afetivo quando lhes transmitiu esperança. A frase no original seria traduzida corretamente como segue: “Não mais se perturbe o coração de vocês”. Havia razão para não desanimar. Jesus sabia que a fé deles seria minada ainda mais em breve, por ocasião de sua prisão, portanto os desafiou com as palavras de incentivo (parafraseando): “Continuem confiando em Deus na minha pessoa!” Essa nos parece uma boa 355 interpretação da frase difícil que parece apresentar um Deus e um sócio dEle (“... em Deus e também em Mim”). Essa segunda parte do verso 14 permite ainda diferentes interpretações na sua tradução do texto grego. Parafraseando, ela pode ser entendida da seguinte forma: “Provem a sua fé em Deus na minha pessoa!” Deus não pode ser tirado da nossa vista, pois ninguém jamais O viu. Pela saída anunciada do Filho, o “ver” se transformará em “não ver mais”; vem a negatividade, vem a morte como desafio do domínio da fé no contexto atual (compare Calvino,Com.350f). A fé, enquanto estamos no mundo, sempre será desafiada, mas não continuará para sempre testada, pois: (2) Na casa de meu Pai há muitos aposentos (moradas); No início de seu ministério (no Evangelho de João) Jesus havia denominado o Templo “casa de meu Pai” (2,16) e a sua ação lembrava seus discípulos à menção do salmo 69,9 “... o zelo pela tua casa me consome...”. No fim de seu ministério, a caminho da verdadeira “casa de seu Pai”, Jesus se referiu ao santuário celestial, do qual o Templo em Jerusalém era símbolo somente (veja também salmo 42,4). Com a menção das “muitas moradas”, o Evangelista primeiramente se dirigiu à igreja de seu tempo. Não somente o seu povo, Israel, estará com Ele. Haverá lugar também para os gentios que “vieram a Jesus”, guardando a sua palavra (as comunidades joaninas eram de maioria gentia). Veja como João, na sua visão do Apocalipse, descreve as “muitas moradas”: “... olhei, e, diante de mim estava uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro (Jesus), com vestes brancas e segurando palmas (!) E clamavam em alta voz: ‘A Salvação pertence ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro’...”(Apoc.7,9-10). A menção das muitas moradas também tem servido para algumas seitas pleitearem seu lugar. As últimas palavras da menção do Apocalipse permitem avaliar se essas pretenções tem fundamento! ... se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-vos lugar. Das três traduções possíveis da enunciação acima escolhemos a mais provável. A maioria dos eruditos a considera como a correta: “Se não fosse assim, (por acaso) teria eu lhes ter dito que vos vou preparar lugar?” (Thyen, Schulz, Strathmann e.o.) 356 Embora Jesus até agora (no relato do Evangelista) não literalmente o houvesse afirmado, já o disse implicitamente em 12,26: “Quem me serve precisa seguir-me; e, onde eu estou, o meu servo também estará” e em 12,32: “Mas eu, quando for levantado da terra,atrairei todos a mim”. (3) E se eu for e vos preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. Muitas vezes o Evangelista João foi interpretado como sem real expectativa escatológica (dos acontecimentos do fim) e acusado da espiritualização e do esvaziamento dessa esperança cristã. Isso não corresponde à realidade. Embora João não tenha desenvolvido uma extensa visão escatológica como, por exemplo, o fizeram Marcos no seu capítulo 13 ou o Apóstolo Paulo em 1 Cor 15,12-58, ele descansa na absoluta certeza de não ser nunca separado do seu Senhor. A afirmação de João no verso 3 levanta algumas questões difíceis. Se Jesus prometeu aos seus discípulos íntimos voltar para buscá-los a fim de estarem com ele, não podemos transportar essa afirmação para a futura parusia escatológica (“parousia” = 2ª vinda de Jesus) e o julgamento de vivos e mortos (dos sinóticos) no dia final, quando a volta de Jesus será perante o cosmos todo. Conforme João 14,18-19, a volta de Jesus nem será percebida pelo mundo, ao contrário da volta do “Filho do Homem” na parusia. Se entendemos a volta prometida por Jesus em João 14,3 como a da parusia, haveria necessidade de um “estado intermediário”, provisório, onde os “seus” ficariam até a vinda final. João não diz nada a respeito de algo similar. Para ele valia: Aquele que crê em mim,ainda que morra, viverá e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente” (11,26 e, ainda, 5,24s). As quatro afirmações de Jesus de ressuscitar no último dia aqueles que o ‘Pai lhe deu’ ou ‘atraiu para Jesus’ (6,39s;44,54; 3,36; 5,28s) não podem ser descartadas como uma glosa, um acréscimo posterior de uma redação da igreja, preocupada em ajustar a visão de João com a dos sinóticos. O que devemos descartar, de vez, são as nossas tentativas de sujeitar o Jesus ressurreto à compreensão corrente de tempo e de seu ditado calendário. Com a Páscoa, Deus livrou Jesus de vez da lei da fatalidade da morte e com isso abriu, de par em par, o portão até então impenetrável entre os marés do passado, do presente e do futuro (Marquardt, Cristologia II). Por essa razão, todas as construções de “estados intermediários” e a alegada “demora” da parusia são puros equívocos. Na “Segunda Carta de Pedro”, o autor trata desse assunto no capítulo 3: da aparente “demora” da volta de Jesus. 357 Na Escritura, combinações variadas de concepções diferentes não são novidade; veja as diferentes concepções dos profetas no AT! O “paradoxo” do Evangelho permite-nos ver a parusia como “estar com Ele” imediatamente após a morte (João) e, simultaneamente, através da esperança cristã da ressurreição, quando Ele vier para julgar o mundo (Mateus 25,31-46). Na literatura judaica anterior e na do cristianismo primitivo encontramos a do “primat escatológico” (merecimento especial) dos mártires. Além das muitas referências nos apócrifos, percebemos sinais dessa visão em Mat. 10,39; Luc. 17,33; João 12,25; Romanos 8,17; Phil 1,23s; 1 Pedro 4,13 e Apoc.6,9-11. Obs: A história da igreja cristã conhecia essa “sede” pelo martírio durante a sangrenta perseguição entre 65 e 250 d.C. efetuada pelo Império Romano. Na fé do povo, os mártires começavam a ocupar o papel de intercessores. A igreja, por sua vez, começou a desenvolver a ideia do “primat”, isto é, de que os mártires compravam com seu sangue a entrada imediata no céu (Apoc. 6,9-11). Mais tarde, mártires foram declarados “dispensados” do purgatório, onde cristãos comuns pagariam após a sua morte o que lhes faltava para a entrada no céu. Não mais era suficiente “o sangue do Cordeiro”; veio a ideia da “complementação por graças”, ideia pagã em roupagem cristã. Como mostramos acima, esses estados “intermediários”, resultado de especulações com base em equívocos, serviam à igreja como meio de manipulação da fé popular; eles nada mais são de que hipóteses humanas e falhas. Hoje em dia (2008), assistimos uma extrapolação da ideia do “primat” nos “mártires” islâmicos (suicidas/assassinos), aos quais são prometidos prêmios extras na sua entrada imediata no paraíso. Enquanto os mártires cristãos deram sua vida por amor a Cristo, esses últimos “mártires” se destacam pela matança indiscriminada de pessoas inocentes e que, como assassinos multiplicadores, levam juntos consigo à morte. A promessa das moradias com Ele, o “estar no lugar onde Ele está”, é a promessa de ver a glória de Jesus, agora velada, numa existência além da morte (Lighfoot,Schenke, Neugebauer). Vários intérpretes já veem na promessa de Jesus (14,2-3) a vinda individual de Jesus a cada um dos “seus” por ocasião da morte. Na continuação das palavras de Jesus, Ele falará de idas e vindas. Nelas, João demonstra que a vinda de Jesus não se esgota na parusia dos sinóticos, que João aceita como válida também. A comunhão dos discípulos com Jesus, a mútua comunhão entre o Senhor e os seus, não será postergada até ao dia final nem, em última análise, até ao dia de sua morte. A comunhão com Jesus é indestrutível. “Estarei com vocês, até o fim dos tempos” (Mateus 28,20). Confira em Romanos 6,4.5 e Colossenses 2,12 esse estado em que, aqui já andamos “ressuscitados com Cristo”. 358 O “estar em Cristo” e com isso, “a vida eterna”, não é uma posse garantida que por si só resiste a todas as aflições e investidas do “príncipe desse mundo”. Ela deve ser provada durante a vida toda através da fé, da esperança e do amor, do recorrer à graça do perdão (1 João 1,7-2,2) e da comunhão com irmãos (1 João e,23). Esse “estar em Cristo”, no entanto, ainda não é o que seremos quando Ele vier (veja Filipenses 3,21). A esperança da ressurreição (quando ao sermos chamados por Deus, Ele reconhecerá os “Seus”), já encontramos inscrita nos túmulos dos primeiros séculos cristãos. Nas catacumbas romanas lemos por exemplo: “Não sejas triste, meu filho, a morte não durará para sempre”. A esperança da ressurreição, conforme Paulo a expôs em 1 Cor.cap.15 era dominante até ao tempo da reforma. Calvino, quando teve que devolver a Deus dois de seus filhos, os entregou na firme esperança da ressurreição. Hoje, dificilmente ouvimos este consolo básico nos cultos fúnebres. A concepção grega (pagã!) da “imortalidade da alma” conseguiu penetrar na fé popular cristã na medida em que o povo cristão não mais lia a Bíblia, perdendo assim a base da esperança cristã, isto é: a ressurreição dos mortos (confira Filipenses 3,20,21). O melhor comentário de João 14,2s encontramos na “Primeira Carta de João”, cap.3,2: “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como Ele é”. • Você tem essa esperança viva? Ela é sua! Cap. 14.4-6 (4) Vocês conhecem o caminho para onde vou”. (5) Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?” (6) Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. (4) Vocês conhecem o caminho para onde vou”. (5) Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?” A pergunta de Tomé nos mostra que sua preocupação não era o caminho pelo qual ia Jesus; não, Tomé estava perguntando, representando os demais discípulos assustados e perplexos, qual seria o caminho deles. Seu questionamento revela que aquilo, que deveriam ter captado há tempos, ainda não entendiam de fato. Lembramos que fora Tomé que, embora com certa resignação, havia desafiado seus colegas a acompanhar Jesus na sua ida à casa de Lázaro (11,16) dizendo: “Vamos também para 359 morrermos com ele”. Àquela altura deveria ter pressentido o que lhes esperava. Ele sabia que o caminho deveria ser trilhado, não com a cabeça, mas sim com os pés, mesmo acarretando perigo. Vemos sua pergunta nos mesmos moldes: Para onde devemos ir? Atrás do Senhor? Quando Jesus afirmou que seus seguidores conheciam o Seu caminho, será que Ele se referiu à cruz, sinal de completo fracasso e vergonha humanos? O contexto indica que não. Nenhum dos Onze suspeitou de um fracasso nessa extensão. A pergunta de Jesus criou mais uma oportunidade para o preparo mental dos Onze. Até agora não havia como fazê-los entender que a iminente morte vergonhosa de seu Mestre (pendurado = amaldiçoado, conforme a Lei) tivesse alguma relação com a vontade do Pai. A resposta de Jesus confirma essa interpretação: (6) Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. O contexto da resposta anula as hipóteses de um encaixe posterior ou de uma palavra profética pré-joanina. O assunto central da resposta é “o caminho”. Como em todas as autodeclarações do nome de Deus, encontramos também aqui as palavras “EU SOU” como sujeito e não como predicado. O homem Jesus se autodenominou com o nome que somente pertence a Deus. O homem Jesus, judeu, que ia para sua morte; o Logos encarnado e com isso mortal, revelou-se Caminho para a verdade e a vida. É o Jesus concreto, histórico, que é o caminho, e não alguma “realidade divina” presente (como diz Bultmann). Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. Essa segunda parte do verso 6 tem servido para afirmações sem qualquer misericórdia, e de implementações rigorosas da reivindicação absolutista cristã, começando pelos batismos dos judeus à força, na Espanha e pela queima viva dos “judeus convertidos” (nos chamados “autos das fés”), para os quais a igreja convidou as massas para assisti-los como se fossem grandes espetáculos, enquanto na Catedral estava sendo celebrado o “Te Deum” para “honra maior a Deus”. Ainda hoje, essa declaração está sendo usada como “vara de disciplina” na Evangelização, apesar dela enunciar a maneira que Deus nos deu para conhecê-lo. Como a declaração acima, até hoje, está sendo usada sem a autoridade necessária para poder pronunciá-la, vemos a necessidade de algumas considerações. 360 Primeiro: É o judeu histórico, o homem de Nazaré, que declarou que Ele, e Ele somente e nenhum outro, era o caminho da verdade e da vida, pelo qual qualquer pessoa chega ao Pai e o Pai até nós. Passando ao largo, ninguém chegará ao Pai. A declaração absolutista de qualquer “representante de Cristo” na terra, ou do tal “cristianismo”, é nada menos do que um ato híbrido de usurpação da majestade de Deus. Até a simples menção de reivindicações quaisquer, quando se trata de Deus, é intolerável. Segundo: No Evangelho de João, a fé nunca é condição a ser cumprida, (nem o pode ser), para chegar a Deus e tornar-se coparticipante da vida eterna. Fé é sempre consequência da salvação. Por essa razão devemos ver o verso 14,6 sempre junto com 6,44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair...”. A fé nunca é condição, mas resultado da salvação”. Ela acontece na ação (no fazer) do crente (Gollwitzer). As condições básicas dos textos bíblicos consistem, objetivamente, na obra da salvação cumprida há muito tempo por Deus pessoalmente. “Ninguém vem ao Pai senão por mim” é o modelo! Não se trata de exigências a serem cumpridas por nós, mas da “abertura” do caminho, da verdade e da vida consumada pelo Pai e a nós prometida e doada. Em todo lugar onde homens vivem em e com Deus, a base que o tornava possível é Cristo. O teólogo Gollwitzer, referindo-se à enunciação acima, diz o seguinte (vejamos se podemos concordar com ele): “Na esperança da salvação universal (Apokatastasis panton) se unem as três distintas definições da: predestinação, universal e condicional. • As declarações da predestinação da Bíblia dizem: “Salvação nunca é mérito humano (religioso)”. • As declarações universais advogam: “A obra de Cristo tem em vista a todos”. Para essa visão vale: Embora Jesus tenha dado a sua vida por todas as pessoas, falta o testemunho da resposta de todas as pessoas. • As declarações condicionais definem o modo como a obra de Cristo se torna válida no indivíduo: ele crê, conhece e trabalha. Podemos tornar a discussão em torno da compreensão dessa questão, que divide igrejas, mais fácil se nos aproximarmos dessa maneira: procure compreender a visão condicional a partir da visão da predestinação – e considere, então, a universal. 361 A salvação nunca poderá ser definida com a lógica abstrata de condições necessárias para a sua existência. As igrejas protestantes que tanto acusam os católicos por sua prática da “justificação pelas obras”, estão, cada uma a seu modo, erguendo sua própria justificação através de seu modo de colocar o “dom da graça” na camisa de força de seus dogmas (e tradições!) Você acha que somente os católicos confiam na sua tradição? Pergunte a um presbiteriano a respeito do “Arminianismo” ou a um pentecostal ou batista a respeito dos cinco pontos básicos de Calvino! Terceiro: O pensamento protestante básico e geral diz que somente através de Jesus podemos vir a Deus e conhecer seu coração de Pai, e que de outra maneira nunca O conheceríamos (Lutero, Grande Catecismo WA 30/1,191). Isso de maneira alguma corresponde com a mensagem do Evangelho de João (cf.Karl Barth, Decl. 364s). A linha geral do Evangelho de João consiste nisso: O Pai conhecido testifica pelo Filho desconhecido e O faz Senhor (K.Barth; Wengst). Em lugar nenhum no seu Evangelho, João inverte a sua visão. Jesus, o desconhecido Filho de Deus, se torna conhecido e reconhecido pelo Pai conhecido. O testemunho de Jesus nunca aparece sozinho como um pensamento individual; ele sempre é verdadeiro e eficiente por ser o testemunho de dois (confira 8,16s; 5,32). Em todas as palavras de Jesus ouvimos junto o testemunho do Pai. O Pai, a saber, é conhecido. Jesus sempre apelou a esse Deus da Torá como alguém conhecido (pelos seus adversários e ouvintes em geral) e ficou surpreso ao constatar que, aparentemente, esse não era o caso (K.Barth, Decl.365s). Resumindo essas considerações: A declaração do verso 6 deve ser considerada em analogia com 15,23: “Aquele que me odeia, odeia também o meu Pai” e junto com 5,23: ”Aquele que não honra o Filho, também não honra o Pai, que o enviou”. Finalmente, a quarta observação: Para o Evangelista, a esperança e o amor são momentos constituintes da fé. Tal qual o Apóstolo Paulo, João entende que neste mundo não redimido, somente somos salvos através da esperança (“Pois nessa esperança fomos salvos”, Romanos 8,24; leia também os versos 22 e 23). Jesus acusou os judeus por terem colocado suas esperanças em Moisés; portanto, agora deveriam confiar Naquele que por ora estava falando com eles; Naquele sobre o qual Moisés escreveu e que não será seu Juiz, mas seu intercessor (5,45-47). O Evangelho de João inteiro é um chamado à esperança. Aquele que venceu o mundo (16,33), quer despertar-nos - a nós que ficamos para trás 362 -com uma esperança viva. A declaração do verso 14,6, portanto, é basicamente um chamado à esperança e não uma “vara de disciplina”. Em 10,30, Jesus disse: “Eu e o Pai somos Um”. Se as obras e palavras de Jesus não eram as dEle, mas as do Pai, Jesus confirma em 14,6 a unicidade do Pai. Nelas aparecem a necessária certeza da fé. A convicção do absolutismo da própria religião pertence ao único Deus que, ao tornar-se visível para nós no Filho, determina a base e o limite do ser humano; seu passado e seu futuro. • • Como você está sentindo o Evangelho como um todo? Um peso? Ou uma chamada à esperança, uma luz na escuridão? Releia esse texto várias vezes. Faça suas perguntas, se houver dúvidas. Que Deus o(a) abençoe! Cap. 14.7-14 (7) Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o tem visto”. (8) Disse Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. (9) Jesus respondeu: “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? (10) Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim está realizando a sua obra. (11) Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim; ou, pelo menos, creiam por causa das mesmas obras. (12) Digo-lhes a verdade: Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai. (13) E eu farei o que vocês pedirem em meu nome, para que o Pai seja glorificado no Filho. (14) O que vocês pedirem em meu nome, eu farei. (7) Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o tem visto”. Nas traduções comuns desse verso, seguindo a versão da Vulgata (Versão declarada a oficial da Igreja Romana no Concílio de Trento no ano 1546) temos uma “condicional irreal”, semelhante a 8,19b: “Se me conhecessem, também conheceriam a meu Pai”. As duas negativas de conhecimento tornam a frase difícil de se entender. Outra linha (Nestlé) traz a mesma enunciação como lógica temporal, positiva: “Se vocês me conhecerem, conhecerão também o meu Pai”. Essa constatação responde ao verso anterior e leva ao próximo pensamento: Jesus não somente é o caminho para o Pai; Ele representa o Pai, agora, no tempo presente. “Já agora vocês o conhecem e o tem visto”. Mesmo que João em 1,18 tenha dito que “ninguém jamais viu a Deus”, os discípulos de Jesus O viam, nEle mesmo. Esse será o seu consolo em todas as incertezas vindouras! (8) Disse Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. 363 Filipe, ignorante quanto a tudo que Jesus acabou de lhe dizer, parecia pensar em alguma “teofania” (aparecimento de Deus), como aquela dada aos setenta anciãos em Ex. 24,10, ou ao profeta Isaías em 6,1s. Ver a Deus é o supremo desejo do místico; a maior promessa jamais dada; o cumprimento final e a última certeza do piedoso (veja em Ex.33,12-23; Mateus 5,7; 1 João 3,2). Da mesma maneira como antes agira Tomé, Filipe perguntou como eles pudessem encontrar o caminho, ao invés de continuar como discípulo no caminho que já estava trilhando. Ele “foge” da realidade da salvação já presente em Jesus para uma mera possibilidade: “Senhor, mostra-nos o Pai”! O verbo “mostrar” quer dizer apontar, partindo de alguém em outra direção. Apontar é tarefa de um Mestre. Jesus, porém, é mais que um Rabi. Por essa razão, Jesus remeteu Filipe ao Seu Ser presente. Na Sua pessoa, Deus estava se revelando aos “Seus”. Daí a permanente menção da unidade com o Pai na fala de Jesus. Em nenhuma palavra Ele é o sujeito da fala; sempre o Pai está nEle e Ele no Pai. Na época em que João escreveu, as religiões místicas do oriente prometeram a visão de Deus. A Gnose vivia da esperança da luz perfeita e do deus verdadeiro por trás do Demiurgo (Deus mau) do Antigo Testamento. O pedido de Filipe, outrossim, revelou maturidade como judeu religioso. Assim como Jesus tinha tudo, tendo o Pai, os discípulos também esperavam por ver, na hora difícil e sombria que estavam, o próprio Pai. Para o judeu, isso é suficiente; não há mais nada além. Na medida em que nos discípulos cresceu o pressentimento da iminente separação física de seu Mestre, a necessidade de ter o Pai visível com eles tornou-se necessidade. A última pergunta, melhor, o último anseio da humanidade se manifestara na pergunta de Filipe. Tudo seria mais fácil de suportar se somente “pudessem ver” o Pai. (9) Jesus respondeu: “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? Jesus respondeu a Filipe com outra pergunta, lembrando-o do longo relacionamento de confiança mútua. A afirmação “quem me vê, vê o Pai” está inclusa nessa pergunta que apela ao que os discípulos, durante três anos, haviam visto nos sinais e ouvido nas palavras de Jesus. Quem observar atentamente perceberá que Jesus não declarou afirmando, mas como quem pede por confiança. A “mysteria divinitatis” nunca poderá ser definida através de um simples “sim” contra o “não”. Se fosse assim, a igreja não levaria centenas de anos para encontrar uma definição que, no máximo, se aproxime da 364 verdade (realidade) com definições, dogmas, cujas deficiências e “efeitos colaterais” levaram a incontáveis mal-entendidos e até matanças em nome deles. Quem não souber expressar e demonstrar o grau de confiança, de comunhão e amor aos quais alguém (você?/eu?) mesmo fora levado pela confissão do “vere Deus”, do Deus em Cristo, não pode e não deve falar como cristão. Sem o êxtase da confiança, da amizade e do amor, não se propaga “dogmas”. Tão valiosa é a nossa fé! (10) Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim está realizando a sua obra. (11) Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim; ou, pelo menos, creiam por causa das mesmas obras. Jesus se mostrou cético quanto à consciência que seu discípulo tinha do Pai no Filho, Jesus Nazareno. Sua argumentação é tipicamente judaica e lembra as palavras de Tiago, irmão de Jesus e posterior “Coluna” da primeira Igreja cristã em Jerusalém. “... eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras” (2,18b). Não haverá outra revelação do Pai a não ser a fé na presença do Pai na pessoa histórica de Jesus Nazareno. A quem Jesus ainda não foi revelado como autoridade, a ponto de poder crer sem escrúpulos, esse olhe o que Suas palavras obraram. As palavras de Jesus não trouxeram mistérios ou dogmas; elas revelam o estado real em que você, - em que todas as pessoas - se encontram. No momento em que você (o homem) está disposto a entenderse debaixo da autoridade dessas Suas palavras, conhecerá a obra do Pai em você: ou como juízo ou como salvação (Marquart). (12) Digo-lhes a verdade: Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas, porque eu estou indo para o Pai. “As obras que eu tenho realizado” e até “coisas ainda maiores do que estas” – o que Jesus estaria afirmando com essas palavras? Certamente não seria a concessão de forças sobrenaturais e espetaculares através das quais os discípulos fariam “obras maiores” do que a ressurreição de Lázaro. Infelizmente encontramos essa compreensão entre irmãos na fé que, através dessa interpretação malograda, embarcam para magia e espetáculos estranhos ao Espírito de Jesus. As “obras maiores” tem seu caráter definido na descrição dada pelo próprio Jesus: “... obras que eu tenho realizado”. Não serão obras a serem feitas pelos discípulos, mas obras daquele que subiria para seu Pai e então lhes concederia as obras maiores. 365 A afirmação surpreendente de obras maiores após a ida de Jesus ao Pai tem levado alguns teólogos a apontar o sucesso missionário nos povos pagãos e sinais e milagres ocorridos como cumprimento da promessa. Embora essa argumentação tenha alguma base, não nos parece ser esse seu sentido real. Assim como as obras de Jesus não podiam ser avaliadas conforme os valores deste mundo, tampouco o poderão as obras maiores dos discípulos, caso fossem mesmo obras segundo o espírito de Jesus. O sucesso das obras de Jesus fica evidente somente quando visto pela fé. O mesmo valerá para as obras maiores dos discípulos. Se estudarmos a história da igreja ficaremos pasmados perante o modo com que, na sua grande maioria, o trabalho de evangelização do mundo afora e está sendo realizado. Não pode, de maneira alguma, ser apontado como “obra maior do que Jesus fez”, pois lhes falta em grande escala o Espírito de Deus como força determinante. São poucas as luzes, as épocas abençoadas, durante as quais o Espírito Santo (o Espírito de Jesus) tinha liberdade para agir e, usando termos do Apóstolo Paulo, “edificar sobre o fundamento dos Apóstolos e profetas, sendo Jesus Cristo a pedra angular” (Ef.2,20). Algumas grandes personalidades, ungidas, têm se levantado no decorrer da história da igreja e, reconhecemos, a elas devemos o fato da Igreja ter subsistido. Mas, cada vez que o sopro de Deus, estranho ao “modo do mundo”, tem se manifestado, a Igreja como Instituição, como Hierarquia, estruturada da mesma forma como o mundo, como “Mega-Empresa multinacional” (seja ela a Romana ou Evangélica), logo tem se levantada para institucionalizar o “sopro” e tirar dele o máximo de lucro para si mesma. A história da igreja é muito mais uma prova da misericórdia e longanimidade de Deus do que a manifestação de Sua Glória perante o mundo. Será que este misto de fanatismo, de violência e de ignorância no “trabalho do Senhor” representam tais “obras maiores do que as que Jesus fez”? Certamente, a ação dos discípulos será de alcance maior, se a compararmos com o ministério de Jesus, limitado em tempo e, aparentemente, interrompido pela sua morte. Nesse aspecto, a obra ainda está para ser completada. No entanto, não temos uma mera menção da limitação temporal de seu ministério na afirmação de Jesus: “... porque eu estou indo para o Pai”. Há mais, uma vez que toda ação humana (dos discípulos) também estaria sob o “conditio humana” de temporalidade. A ida de Jesus ao Pai revoga qualquer limitação temporal de seu ministério; ela a eleva à categoria do “uma vez por todas”. Ainda hoje, Jesus pode ser invocado pela oração e, assim, será Ele quem operará as “obras maiores”. (13) E eu farei o que vocês pedirem em meu nome, para que o Pai seja glorificado no Filho. (14) O que vocês pedirem em meu nome, eu farei. 366 As palavras de Jesus em 16,23s: “Naquele dia vocês não me perguntarão mais nada. Eu lhes asseguro (amém, amém) que meu Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu nome. Até agora vocês não pediram nada em meu nome. Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa” tornam visível que qualquer oração “em nome de Jesus” pressupõe sua ida ao Pai. A menção do nome de Jesus é mais do que “autorização”. A precisão da oração com as palavras “em meu nome” só pode ser a invocação do Jesus glorificado. Quatro vezes Jesus usou o verbo no futuro. Isso aponta para um novo aêon, uma nova fase na história da salvação, ainda por vir. Somente o Jesus glorificado nos é fiador do dom do Espírito Santo e será Esse que operará do mesmo modo que Jesus trabalhou. Nenhum homem por si só é capaz de realizar obras para ou em favor de Deus. Até hoje, o Espírito Santo convence o mundo do pecado, da justiça e do juízo (16,8). Essa obra, que nenhum humano é capaz de realizar, o Espírito de Deus realizou durante os vinte séculos da igreja a partir de Pentecoste e a continua realizando até hoje; obra maior do que as operadas por Jesus, que foram limitadas pelo tempo, durante seu ministério público. O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito” (3,8). • Você, alguma vez em sua vida, ouviu ou sentiu esse sopro de Deus, obra que somente Ele pode realizar? Por mais estranho que possa parecer, Ele usa pessoas, não anjos, para abençoar a sua vida apontando-lhe Jesus. Somente esse sopro torna a desprezada Palavra de Deus, a Bíblia, da qual o mundo zomba, merecedor de crédito. • Você já ouviu aquilo que somente Deus lhe pode dizer? Que Ele ama você e que Ele quer que você, pecador(a) torne-se seguidor(a) de Seu Filho amado ? Cap. 14.15 (15) Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. Caro(a) amigo(a), de que maneira será que lemos o Evangelho de João? Será que o lemos como uma carta pessoal de amor do nosso Deus? Ou o lemos sem comprometimento com Aquele pelo qual Deus veio ao nosso encontro, Jesus Nazareno, ou como digo objetivamente: estudando sem com isso incorrer numa obrigação qualquer? Mantendo distância? Será que “se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos” não é uma sentença que expressa amor? 367 Se você ama alguém, torna-se óbvio que você procura fazer tudo que “o amado” lhe pede. Você até procura ler nas entrelinhas para adivinhar o desejo dele, para logo poder realizá-lo. Fazer o que o amigo lhe pede nunca será obediência cega - será complementação de uma só vontade. Se Deus não nos amasse, o verso 15 ficaria dessa forma: Por Eu ser Deus, você terá que obedecer ao que eu mandar. Como você tem lido o Evangelho até agora? Você tem lido o Evangelho, ou tem somente lido os nossos comentários, sem atentar diretamente ao que João disse? Hoje quero compartilhar com você o que o grande filósofo/teólogo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1856) disse a respeito da palavra de Tiago 1,22: “Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes...”. Suas considerações se encaixam bem na palavra de João 14,15: Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. Os textos de Kierkegaard exigem muito cuidado pelo seu estilo satírico, mas profundo, que lhe é próprio. Kierkegaard atacou severamente a Igreja Oficial de seu tempo por causa de sua fome de honrarias, mas morta espiritualmente, portadora da “religiosidade” sem a cruz. Nas suas “Palestras Edificantes” de 1850/51, ele escreveu o seguinte (tradução livre, seguindo o estilo do autor): Imagine, leitor, o seguinte: um amante que acaba de receber uma carta da sua amada. Tão valiosa como essa carta para o amado, penso eu que deverá ser também a Palavra de Deus para você. Assim como o amado está lendo a carta da amada, julgo que assim também deve ser lida a Palavra de Deus... Poderá ser que você diga assim: “Veja, a Palavra de Deus foi escrita em idioma que não conheço. Antes de todos os demais, sejam os estudiosos os primeiros que deverão lê-la”... Bem, imaginemos então que a carta da amada estaria escrita num idioma que o amado não conhece, e que não haja por perto ninguém capaz de ajudar na tradução dela. Talvez ele, o amado, nem queira a ajuda, porque não deseja que alguém saiba do conteúdo da carta. O que o amado faz? Ele pega um dicionário, senta-se à mesa e começa a tradução, palavra por palavra, para ver se consegue entender o que está escrito... Você vê, o amado está fazendo nas próprias palavras da amada distinção entre “ler” e “ler”; entre ler com o dicionário e ler a carta da amada fluentemente, sem nenhum auxílio. O sangue lhe sobe à cabeça de tanta impaciência enquanto ele, sentado à mesa, se cansa de lutar com o dicionário. Se algum amigo lhe dissesse que isso era “ler a carta” da amada, ficaria enfurecido. Agora, ele conseguiu terminar a sua tradução; finalmente ele “lê” a 368 carta da amada. Ele vê todo esse trabalho cansativo e difícil de tradução como o mal necessário a fim de poder “ler” a carta da amada. Continuemos com a nossa imagem do amado! Suponhamos que a carta da amada não contenha somente o que tais cartas costumam ter, isto é, invocação de sentimentos, mas que expresse um desejo da amada. Suponhamos mais, que esse desejo manifestado estivesse muito difícil, muito difícil mesmo de realizar, de forma que qualquer outra pessoa alegaria que haveria muita razão em pensar bem antes de o realizar. O amado, porém, no mesmo segundo, corre para cumprir o desejo manifestado pela amada. Suponhamos que os dois amantes, após algum tempo, se encontrem e a amada diria: “Bem, meu querido, não foi tanto o que eu pedi, você deve ter interpretado erroneamente alguma palavra minha”! Você acha que o amado ficaria aborrecido por ter corrido no mesmo instante, por não ter refletido bem sobre o assunto e, depois, consultando alguns dicionários, ter ficado com mais escrúpulos ainda por ter procurado traduzir novamente e melhor para se livrar de qualquer dúvida? Você pensa que, com aquele seu provável erro na tradução, seria menos amado pela amada?... Vemos que o amado fez na carta da amada diferença entre “ler” e “ler”. Em primeiro plano, ele entendeu que, se a carta continha algum desejo manifestado pela amada, ele deveria começar imediatamente a cumpri-lo e não perder nenhum segundo a mais. Agora, pense na Palavra de Deus. Se você ler a Palavra de Deus de maneira intelectual, lembre-se bem: se você ler a Palavra de Deus dessa maneira, com o dicionário, etc., você não lerá a Palavra de Deus! Lembre-se do amado que disse que desse modo não se lê a carta da amada. Se você for um estudioso, um erudito, preste bem atenção para não ler com dicionário (pois assim não é ler a Palavra de Deus), esquecendo-se de ler a Palavra de Deus mesma. Se você for uma pessoa simples, não fique com inveja dos mais cultos! Alegre-se, pois você poderá ler a Palavra de Deus diretamente, sem demora e sem escrúpulos. E nessa leitura vale: se houver algum desejo manifestado, um mandamento ou uma ordem, lembre-se dos amantes... e ande rapidamente para cumpri-la! Mas, pode ser que você diga: “Há muitos trechos difíceis na Palavra de Deus, livros inteiros, misteriosos até”! Aqui quero responder da seguinte forma: Se eu aceitar esse tipo de argumentação de alguém, a tal argumentação deveria vir de alguém cuja vida pregressa tem obedecido rigorosamente a todos os trechos de fácil interpretação. Esse será o seu caso? No caso do nosso amado, ficaria dessa forma: Mesmo se houvessem trechos de difícil interpretação na carta que recebeu, junto com trechos claros, ele diria: Devo cumprir imediatamente aquilo que eu entendi. Como vou me sentar e meditar sobre as partes escuras e deixar de cumprir aquilo que entendi?! 369 Isso quer dizer: Se você lê a Palavra de Deus, vale o seguinte: Aquilo que compromete você não são os trechos de difícil interpretação, mas, sim, os que você entende; e a eles você deve obedecer imediatamente. Se na Palavra inteira houvesse somente uma (1) só ordem que você entende, você teria que cumpri-la primeiro, e não primeiro sentar e pensar a respeito das demais que ainda lhe parecem obscuras. A Palavra de Deus lhe foi dada a fim de que você a executasse, não a fim de treinamento para a interpretação de trechos difíceis. Se você não lê a Palavra de Deus dessa forma, obedecendo imediatamente ao pouco que entende, você não lê a Palavra de Deus! Da mesma maneira diz o amante: Se eu, ao invés de correr para imediatamente cumprir o desejo da amada, me sentasse primeiro para pensar sobre o que não entendi, não estaria “lendo” a carta da amada. Ele pode apresentar-se a ela com a consciência tranquila, dizendo assim: “Há alguns trechos que não entendi na sua carta. Eu disse quanto a eles: espero que certamente os entenda na hora certa; houve, porém, um tal desejo na carta que entendi e corri logo para cumpri-lo”. De maneira alguma poderia ir à presença da amada, dizendo: “Houve alguns trechos que não entendi na sua carta e me sentei para procurar a elucidação deles a respeito de sua vontade, mas, quanto ao que entendi, eu disse: Espero que certamente, um dia, tornar-se-á elucidado o resto”... Mais ainda: se, enquanto eu leio a carta, alguém estranho entra no meu aposento, eu me sinto perturbado. Por essa razão, antes de começar a ler, eu cuido de trancar a porta. Não estou disponível para ninguém, pois quero estar sozinho, tranquilo, junto com a carta. Se não fosse assim eu não poderia ler a carta da amada. Quero estar sozinho, junto com a carta. Exatamente assim acontece com a Palavra de Deus; quem não está sozinho com ela, não lê a Palavra de Deus. Sozinho com a Palavra de Deus! Meu leitor, permita-me fazer-lhe uma confissão sobre mim mesmo: Ainda não tenho a coragem para estar completamente a sós com ela, de forma que nenhuma intervenção emocional ou engano da mente aconteça. E permita-me dizer: Nunca vi alguém do qual arriscaria dizer que ele teria a coragem e a sinceridade necessárias de estar a sós com a Palavra de Deus, sem qualquer engano da mente nesse momento ... Estar sozinho com a Palavra de Deus! Eu ainda não tenho essa coragem. Se agora abrisse o livro em qualquer passagem, a primeira que encontrasse, e imediatamente ela me cativasse, certamente ela me perguntaria (pois é como Deus pessoalmente me perguntasse): Você está cumprindo o que está lendo? Se eu estivesse, então, sim, estaria cativado e teria que obedecer imediatamente ou, então, reconhecer a minha posição humilhante. Ah, estar sozinho com a Santa Palavra! Onde isso não acontece, você não a lê! 370 ... Bem, a gente ainda pode se defender de outra maneira da cobrança da Palavra de Deus, alegando estar de certo modo a sós com ela; só que isso não convence. Veja: tome a Palavra de Deus, tranque a porta atrás de você (e pegue dez dicionários e vinte e cinco comentários: dessa forma, você poderá ler a Palavra de Deus tão calmamente e descomprometido como se você lesse o jornal do dia). Caso acontecesse (por mais estranho que isso possa parecer), no exato momento em que você estivesse se sentido muito bem ao ler um trecho, que repentinamente lhe surgisse o pensamento: “Será que eu agi desse modo, obedeci aqui?” (naturalmente isso só acontece enquanto você não está lendo com todo o rigor científico e distraído por um breve momento), o perigo não seria tão grande assim... Veja você, há diferentes maneiras de interpretação e, quem sabe, exatamente neste presente momento, um novo manuscrito está sendo encontrado em algum lugar... e, assim, - que Deus nos guarde –, existe a possibilidade de nova interpretação! Cinco teólogos concordam com essa interpretação, sete com a contrária, e mais quatro tem uma explicação meio esquisita, enquanto que outros três não têm opinião formada a respeito, ou não tem nenhuma e, finalmente, eu mesmo também não estou bem certo comigo mesmo; a minha opinião pessoal é a mesma dos três que não têm opinião formada, e assim por diante... Dessa forma, o tal homem não fica tão embaraçado como eu que tenho de obedecer imediatamente à Palavra ou, então, reconhecer a minha humilhação através dela. Não, este homem continua contente e diz: “Não tenho nada contra o que está escrito, farei com toda a certeza o que ela diz – assim que a minha maneira de ler a Palavra estiver contextualizada e os intérpretes, de alguma maneira, concordando!” Que triste abuso da erudição! Como ficou fácil ao homem enganar a si mesmo!... Devemos estar sozinhos com a Palavra de Deus, assim como o amante queria ficar sozinho com a carta da amada – pois, do contrário, não seria leitura real da carta da amada – não seria leitura da Palavra de Deus e não seria “olhar-se no espelho”... Não devemos observar o espelho, não; devemos olhar-nos a nós mesmos no espelho (que é a Palavra de Deus). Se você for uma pessoa muito instruida, lembre-se disso: Se você não ler a Palavra de Deus diferentemente, pode acontecer que você, que tem lido a cada dia, por muitas horas, a Palavra de Deus, jamais tenha lido realmente a Palavra de Deus. Faça diferente (fora de seu “estudo”) e procure ler a Palavra de Deus ou, pelo menos, reconheça perante você mesmo que, (apesar de seu elevado estudo diário), não está lendo a Palavra, melhor, que você não quer nada com Deus... Imagine um país! O rei declara uma lei que vale para toda a população. O que acontece? Acontece uma misteriosa metamorfose. Todos se transformam em intérpretes da ordem do Rei. Os funcionários começam a elaborar escritos; a cada dia aparece uma nova interpretação da lei, cada uma mais erudita, mais bela, mais maravilhosa, mais poderosa, mais profunda, mais engenhosa que a anterior; e a crítica que deveria manter a visão do resumo de tudo, não vence a 371 imensa literatura. Mais ainda, ela mesma cresce e incha tanto que não há mais como discernir entre uma e outra: Tudo virou interpretação! Só que ninguém leu a declaração do Rei! Não é apenas que tudo tenha virado interpretação, não, ... mas a ocupação com a interpretação virou o assunto principal, tomou o lugar da lei do rei. Toda essa nova ciência avança e se diz com o propósito de ajudar a entender melhor a Palavra de Deus! Contudo, olhe mais de perto e você vai ver que ela serve para defender-se da Palavra de Deus... A meu ver, é humano teimar, opor-se à Palavra, não querer que ela tome o poder sobre nós. Se ninguém mais quer confessar isso, eu o confesso, eu mesmo ajo assim! ... Uma distância maior daquilo que nos é pedido (olhar-se no espelho da Palavra), um distanciamento ainda maior do que nunca ver o espelho, sim, um distanciamento maior ainda é esse: anos a fio ficar sentado calmamente – e olhar o espelho. Lembre que você deve dizer incessantemente a si mesmo: Sou eu mesmo a quem a Palavra se dirige e de quem ela fala...” (fim da citação de Soeren Kierkegaard) Caro leitor dos Estudos de João, por que será que julgamos apropriado encaixar esse recorte de Sören Kierkegaard nos nossos Estudos? Foi exatamente para que aprendamos a ler a Palavra de Deus. Se você lê somente os nossos comentários, nunca ouvirá a Palavra de Deus. Nunca se comprometerá com ela. Ficará com aquela pequena alegria de “entender um pouco mais”. Então, ponha sempre de lado tudo que dizemos e considere os nossos estudos como aquilo que são: pobres comentários que nunca poderão substituir a leitura da Palavra a sós com Deus. A Palavra de Deus compromete! Leia-a (após olhar o que os comentários dizem, considerando-os parciais, limitados e provavelmente equivocados, como tudo o que é humano) e permita que a Palavra, sem comentários, fale com você, sozinho. Apresente-se a Deus e tenha a coragem de ouví-lo! A seguinte, continuaremos com a leitura do cap. 14. • Que Deus o (a) abençoe ricamente. 372 Cap. 14.15-24 (15) Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. (16) Eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês para sempre, (17) o Espírito da verdade. O mundo não pode recebê-lo, porque não o vê nem o conhece. Mas vocês o conhecem, pois ele vive com vocês e estará em vocês. (18) Não os deixarei órfãos; voltarei para vocês. (19) Dentro de pouco tempo, o mundo não me verá mais; vocês, porém, me verão. Porque eu vivo, vocês também viverão. (20) Naquele dia compreenderão que estou em meu Pai, vocês em mim, e eu em vocês. (21) Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele. (22) Disse então Judas, (não o Iscariotes): “Senhor, mas porque te revelarás a nós e não ao mundo?” (23) respondeu Jesus: “Se alguém me ama, guardará (obedecerá) à minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos morada nele. (24) Aquele que não me ama não obedece às minhas palavras. Estas palavras que vocês estão ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou. Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. – Vimos as implicações dessa ordem positiva nas palavras de Kierkegaard, na lição anterior. Ela retornará mais adiante, no verso 24, na sua forma negativa: Aquele que não me ama, não obedece às minhas palavras. O Apóstolo, já naquele seu tempo, lutava muito contra os perigos da desintegração das comunidades cristãs: era o perigo do Gnosticismo em ascensão e, do outro lado, a crescente tendência de institucionalização da Igreja, criação de ordem hierárquica, cargos, divisão entre “profissionais da fé” e leigos. Nessa situação, a invocação da obediência ao mandamento de Jesus era fundamental. Lembremos que o Evangelho se dirigia primeiramente aos cristãos da época, ameaçados de todos os lados. Quais seriam esses “mandamentos” de Jesus? O “novo mandamento” (15,34), o do amor mútuo na comunidade na sua prática diária, abrange uma multidão de aspectos diferentes. João não pensou em uma multidão de leis casuísticas, mas, sim, na nova ordem do amor mútuo. Uma vez que Jesus, como objeto do amor e da admiração dos discípulos, estava indo para o Pai, o amor demonstrado dos discípulos, focalizado até agora na sua pessoa, teria que se manifestar de outra maneira. Jesus lhes disse (parafraseando): Quando não mais estiver entre vocês, provem que Me amam através de sua obediência ao que Eu lhes disse enquanto estive com vocês! (16) Eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Conselheiro para estar com vocês para sempre, (17) o Espírito da verdade. Se o grupo de discípulos não convivesse em genuíno amor mútuo (novo mandamento), não teria como subsistir sozinho. Todos nós sabemos como um grupo unido, em pouco tempo, pode esfacelar-se por qualquer questão secundária. Somente o genuíno amor mútuo é garantia contra a divisão, contra cisões (compare com a situação existente entre as nossas Igrejas). O esforço dos discípulos sozinhos não manteria o grupo unido; os onze homens eram distintos demais: ex-pescadores; ex-fiscal; ex-discípulos 373 do Batista e ex-subversivos políticos (zelotes); cada um deles com o seu caráter tão distinto. Sem a obediência ao “novo” mandamento de Jesus, em pouco tempo eles iriam se separar e, com isso, desapareceriam do palco da história. Não, Jesus sabia que Seus seguidores, Seus “alunos”, para continuarem “nas suas palavras”, teriam necessidade de “outro” Conselheiro no seu lugar. O termo “parácleto” (parakletos), traduzido como “Conselheiro”, ou “Consolador”, só aparece no Evangelho de João. O verso 16 também permite a tradução seguinte: “Eu pedirei ao Pai, e Ele lhes dará um outro Conselheiro...” O “Parácleto” assumiria o lugar de Jesus, com a autoridade de Jesus, a fim de consolar os discípulos quando Jesus não estiver mais visivelmente presente. Nas cavernas de Qumran (da época pouco antes e durante a vida de Jesus) foram recentemente encontrados restos de papiros com a menção de espíritos determinados por Deus para que os homens andassem neles até o tempo de seu julgamento; isto é: os espíritos (plural) da verdade e os da injúria (1QS3, Braun). Na literatura antiga judaica conhecem-se também dois espíritos que operariam nos homens e os obrigariam a escolher um deles para si (TestJud 20,1.5, Barret). O “Parácleto” prometido por Jesus nada tem a ver com esses espíritos conhecidos no judaismo antigo. Fica evidente que o “Parácleto” prometido por Jesus seria idêntico a Jesus, pois assumiria o Seu lugar. Se queremos falar de um sucessor, um representante, um vigário de Cristo, certamente não será alguém mortal, mas sim o “Parácleto” dado por Deus. Por ser o “Espírito da Verdade”, Ele é idêntico a Jesus: “Eu sou a verdade, o caminho e a vida” (14,6). O Apóstolo Paulo, ex-fariseu, até ousou dizer: “Ora, o Senhor é o Espírito ... ” (2 Cor.3,17). A menção do Parácleto como “Espírito da Verdade” lembra Mateus 10,19: “Mas quando os prenderem, não se preocupem quanto ao que dizer, ou como dizê-lo. Naquela hora lhes será dado o que dizer, pois não serão vocês que estão falando, mas o Espírito do Pai de vocês falará por intermédio de vocês”. O Parácleto é o Espírito da Verdade, porque não fala de si mesmo, mas aquilo que tem recebido de Deus (16,13). A verdade, em cujo serviço Ele está, afirma e convence; ela é a realidade do Deus revelado em Jesus Nazareno (15,26). Assim, Ele será capaz de “guiar os discípulos a toda a verdade” (16,13) e a “abrir os olhos” (trad.Menge) sobre pecado, justiça e juízo (16,7). O mundo não pode recebê-lo, porque não o vê nem o conhece. Mas vocês o conhecem, pois (ou: porque) ele vive com vocês e estará em vocês. Qual a diferença entre o Parácleto e os “espíritos” que, conforme a crença judaica (essênios), estariam envolvendo o ser humano? É esse: O mundo não poderá receber o Espírito da Verdade, pois não o vê nem o conhece. 374 O termo “mundo” abrange todos os seres humanos. “Nós” não temos um órgão natural capaz de detectá-lo. O “mundo” somente perceberá o fruto desse Espírito (Santo) em determinadas pessoas. Sem este testemunho não haverá como “o mundo” atentar à realidade da fé cristã. Você se lembra da declaração de Jesus: “Amem-se uns aos outros. Como eu vos amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (13.34,35)? Será que é isso que o mundo percebe quando olha aos que se denominam “discípulos de Jesus”, cristãos, afinal? Temo que não. Não há um testemunho geral e verídico da nossa identificação com Jesus na igreja que se autodenomina pelo seu nome. É um fato preocupante. “... o mundo não o vê nem o conhece” não diz que ninguém pode vir a crer, mas condiciona esse “ir a Jesus” ao testemunho que “os Seus” estão dando perante o mundo. Podemos, então, obstruir totalmente o caminho para Deus? Felizmente não. É o próprio Pai que está atraindo pessoas, como você e eu, mas o mau testemunho dos que se chamam cristãos pode dificultar ou até abortar aquele “sopro”, que está sobre todos os homens (3,8). No mais, como alguém, atraído por Deus, poderá crescer sem o vivo testemunho de outros que, há mais tempo, estão “no caminho”? Lembre-se dos julgamentos de Nietzsche e de Ghandi. Ghandi, que liderou o movimento pacífico que levou a Índia à Independência da Inglaterra, disse (parafraseado): A religião cristã é a mais sublime que existe; só que não há quem a pratique. Nietzsche, o grande filósofo, por sua vez, sentenciou: “Os “salvos” me teriam que parecer mais “salvos” para eu crer no que falam”. “O mundo não O conhece, nem O vê” aponta para a oposição, o antagonismo entre verdadeira igreja e mundo. O mundo não pode receber o “Parácleto” como mundo; ela teria que negar seu ser como mundo, aquilo que o caracteriza como “mundo” (Bultmann). O verso 17 é mais descrição do que razão. O mundo não recebe o Parácleto. Repete-se o que o leitor do Evangelho sabe do ministério de Jesus; Ele não foi aceito (1,11). Isso se aplica ao Parácleto também. Ninguém O pode receber se o Pai não O atrair (6,44). Os discípulos, os de Jesus, porém, O conhecerão porque “Ele vive neles e estará neles” (17). Nessa afirmação temos o tempo presente e o futuro contidos na promessa “unidos”. O Evangelista está falando para a sua comunidade. A Igreja no fim do primeiro século cristão já viveu da promessa dada: o Parácleto já estava vivendo neles. Na situação histórica que João está lembrando, a presença do Parácleto ainda era promessa. Ela ainda não se cumpriu, pois Jesus ainda não fora ao Pai. 375 (18) Não os deixarei órfãos; voltarei para vocês. (19) Dentro de pouco tempo, o mundo não me verá mais; vocês, porém, me verão. Porque eu vivo, vocês também viverão. (20) Naquele dia compreenderão que estou em meu Pai, vocês em mim, e eu em vocês. Nas palavras do verso 18, a segunda vinda de Jesus e o envio do Parácleto estão intimamente ligados. Qual será “aquele dia” (20) ? “Naquele dia” não pode se referir à parusia (segunda vinda de Jesus) pois, na hora da composição do Evangelho no fim do 1º século, ela ainda não acontecera e, até nós, ainda a esperamos. Se Jesus se referisse à parusia, Ele teria deixado uma geração de cristãos como órfãos no mundo, o que Ele no verso 18 afirma não fazer. A promessa de não deixá-los como órfãos cumpriu-se no acontecimento da Pentecoste. Ela não se refere ao curto período de aparecimentos corporais de somente 40 dias (Atos 1,3). A promessa referese à identificação e a ligação íntima de vida com o Jesus glorificado, desde Pentecoste até aos dias de hoje. Caso contrário, não haveria necessidade do envio do Parácleto. Tanto João como o Apóstolo Paulo falam da parusia como um acontecimento que o mundo todo assistirá (Apoc.1,7; 1 Tess.4,16). Em acontecendo a parusia, João não diria que “o mundo não o verá mais” (19), pois na parusia todos O verão! Lembrando as palavras de Jesus em 13,33: “Meus filhinhos, vou estar com vocês apenas mais um pouco. Vocês procurarão por mim e, como eu disse aos judeus, agora lhes digo: Para onde eu vou, vocês não podem ir,” e a afirmação em 19: “... dentro de pouco tempo, o mundo não me verá mais; vocês, porém, me verão” só podem se referir ao reencontro na Páscoa – onde somente os seus o viram, e não o mundo. Se olhássemos a frase “porque Eu vivo, vocês viverão também”, isolada do contexto, talvez, pudéssemos entendê-la como promessa da parusia (Zahn) o que, segundo o nosso entendimento, não é o caso (veja argumentação acima). (21) Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele. Uma vez que Jesus não estará mais presente como sujeito do amor, o amor para com Ele somente poderá ser comprovado pela observação de “Seus mandamentos”. Somente através do amor mútuo e incondicional do “novo mandamento”, os discípulos agora sozinhos, poderão demonstrar seu amor para com Jesus. O amor exigido não é limitado aos “do grupo”, como pode parecer, quando falamos do amor mútuo. Como veremos em 20,21s, a missão dos discípulos alcançará a todos. Seguir não é ir atrás de 376 alguém. Seguir é ir no lugar daquele a quem se segue. Em 20,21s isso fica evidente. Os discípulos irão no lugar de Jesus, com a autoridade concedida pelo Parácleto presente. Quem obedecer no amor ao seu próximo, aquele será amado por meu Pai, e também Jesus o amará e se revelará a ele (21). Revelar significa “mostrar-se” ou “abrir-se para com alguém”. (22) Disse então Judas, (não o Iscariotes): “Senhor, mas porque te revelarás a nós e não ao mundo?” A lista dos doze discípulos mais íntimos escolhidos por Jesus, confere pela sua ligação histórica, editorial, nos Evangelhos de Mateus (10,2s) e Marcos (3,14s). A lista de Lucas em 6,16s conhece no lugar de Tadeu um “Judas, filho de Tiago”. Não sabemos se Tadeu era um segundo nome deste Judas, filho de Tiago, ou se havia discordância entre os Evangelistas sinóticos quanto aos nomes, uma vez que praticamente nada sabemos de grande parte dos Doze. Certamente seria muito interessante conhecer a vida de cada um deles após a Páscoa. Aquilo que a tradição da Igreja e a lenda transmitem da vida pós-Páscoa deles, deve ter alguma razão histórica, mas, como nada consta nas Escrituras Sagradas, não podemos saber qual seu conteúdo real. O interessante é que João, escrevendo muito mais tarde que os sinóticos, confirma a lista de Lucas, que menciona por duas vezes Judas, filho de Tiago, pois Judas também aparece em Atos 1,13. Há mais pontos interessantes de ligação entre Lucas e João (confira os comentários de João 8,1-11). A ligação entre Lucas e João devemos provavelmente a Paulo, Apóstolo. Judas, filho de Tiago, não se contentou com a promessa de Jesus de revelar-se somente ao pequeno grupo dos Onze. Ele ainda sonhou com algum aparecimento glorioso de Jesus, através do qual também seus fiéis ganhariam notoriedade. Se Jesus somente aparecesse a eles, os que “já o conhecem” (como Judas pensou), qual a utilidade perante o mundo? O mesmo raciocínio já vimos em João 7,4, onde os familiares de Jesus exigiam dele publicidade como condição de reconhecê-lo como alguém “maior que eles”. Mais tarde, Pedro entenderá, por que somente a eles, seguidores, fora dado o privilégio de ver o Jesus ressuscitado (Atos 10,40.41). A pergunta de Judas revela conhecimento das Escrituras. O entendimento rabínico do “dia do Senhor”, desde Amós 5,18s, é o de um dia de furor e juízo global. Vemos o mesmo em Is.2,11.17; Zac. 12,3s; 14,6 e, no Novo Testamento, em Mateus 7,22; Lucas 10,12; 17,31; 2 Tess.1,10 etc. Muitas das testemunhas da ressurreição, assim também Mateus e João, já viam de certa forma este dia iniciado com a Páscoa. 377 Judas, pensando na epifania-teofania (aparecimento de Deus) para julgamento do mundo, não compreendeu o sentido de volta de Jesus, ignorada pelo mundo. A mesma pergunta talvez tenha sido feito ao velho João Evangelista pelos que duvidaram da mensagem da ressurreição. Será que algo, que fora testemunhado somente por “alguns poucos”, merece confiança? (Confira 1 Cor.15,3-8). (23) respondeu Jesus: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra. (A tradução moderna diz: obedecerá à minha palavra). Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos morada nele. (24) Aquele que não me ama não obedece às minhas palavras. Estas palavras que vocês estão ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou. Jesus não respondeu de modo direto a Judas. Ele respondeu reiterando a condição para vê-lo, a mesma dada no verso 21. A razão pela qual o mundo não pode vê-lo está na falta de amor no relacionamento com ele. O Evangelista João se distingue entre os Evangelistas pela sua preferência do uso de sinônimos, quando repete palavras já registradas de Jesus. Nos versos 15 e 21, ele condicionou a vinda e a presença constante do Parácleto nos Seus à obediência às palavras de Jesus. Aqui ele usou o sinônimo “guardar a minha Palavra”. Alguns intérpretes consideram a possibilidade do pensamento de João, judeu, voltado à “Palavra” de Deus, à Torá. A Torá e a Escritura toda dão testemunho de Jesus; apontam para o seu ministério. As Escrituras legitimam Jesus. João viu a totalidade da Vontade de Deus revelada nas Escrituras e do ministério de Cristo como tendo sua origem no “Logos”, “Palavra” (João 1,1). Finalizando, são dois os extremos que determinam o ser do discipulado cristão: • Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve (Mat.11,29.30). • Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim, não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem acha a sua vida, perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa, achá-la-á (Mat. 10,34s). 378 Obediência a Jesus não é legalismo; é relacionamento de amor. Jesus não veio trazer religiosidade medíocre. A mediocridade, a hipocrisia espiritual e a neurose de correr atrás da aprovação do mundo acabam com o testemunho cristão. • Onde você está? Cap. 14.25-31 (25) Tudo isso lhes tenho dito enquanto ainda estou com vocês. (26) Mas o Conselheiro, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse. (27) Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem tenham medo. (28) Vocês me ouviram dizer: Vou, mas volto para vocês. Se vocês me amassem, ficariam contentes porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. (29) Isso eu lhes digo agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vocês creiam. (30) Já não lhes falarei muito, pois o príncipe deste mundo está vindo. Ele não tem nenhum direito sobre mim. (31) Todavia é preciso que o mundo saiba que eu amo o meu Pai e faço o que meu Pai me ordenou. Levantem-se, vamos-nos daqui! (25) Tudo isso lhes tenho dito enquanto ainda estou com vocês. (26) Mas o Conselheiro, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse. Aquilo que Jesus queria comunicar aos seus, Ele já o fez. No entanto, os discípulos continuavam confusos e carentes de mais luz. Talvez se pudéssemos esperar da parte de Jesus que esclarecesse como Ele futuramente os instruiria, certamente seria algo assim: “O mais Eu lhes falarei após a minha ida ao Pai”. Ao invés de prometer futuras instruções pessoais, Jesus apontou-lhes o “Conselheiro” que viria em Seu nome. Assim como Jesus, como “Logos”, não é independente, mas sim o Logos daquele que o enviou, tampouco o ensino futuro do “Conselheiro” (parácleto) seria ensino do próprio “Conselheiro”, mas o do próprio Pai. A procura do Jesus histórico, limitada ao que dele se veio a saber através de pesquisas e estudos, nunca nos revelará o Jesus real. Somente a fé será capaz de vê-lo, e a fé “acontece” como evidência do Espírito da Verdade. A instrução da parte do Logos não teve seu fim com a ida de Jesus ao Pai. Jesus delegou todo o necessário ao “Conselheiro” que o Pai enviaria a pedido dEle, quando glorificado. A missão do Parácleto é dupla: primeiro, lembrar aos discípulos de tudo o que Jesus lhes ensinou; depois, instruílos quanto ao que não lhes podia dizer, seja por causa do tempo limitado, seja por causa da imaturidade dos Onze. Nas questões que o futuro lhes traria, o “Conselheiro” também os assistiria (lembre Mateus 10,19). 379 Não havia necessidade de lembrar literalmente as sentenças de Jesus (embora muitas delas tenham sido gravadas na mente dos discípulos). O Espírito da Verdade instrui de uma forma que nunca entra em contradição com as palavras de Jesus. Nisso conhecemos a inspiração que vem de Deus, quando ela condiz com o que temos escrito sobre Sua Palavra. (27) Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Na época de Jesus, a saudação que se fazia ao partir, consistia nas seguintes palavras “Vá em paz!” (Marcos 5,34; Lucas 7,50;8,48). Jesus não desejou “a paz” aos Seus, ao se despedir deles. A “paz” como saudação (que o mundo dá) é vaga, palavra vazia que, posta à prova, subitamente se esvai. Jesus não nos deseja a paz; Ele nos concede Sua paz como legado. A maneira como Jesus consolou Seus seguidores angustiados é testemunha de sua paz, a qual tinha sua raiz no Seu relacionamento íntimo com Seu Pai, Deus. Essa paz Ele deixou como legado para os Seus; também para você e para mim. Nesta paz, vinda do relacionamento com Seu Pai, Jesus venceu a Sua angústia frente ao que sabia ser necessário nas horas seguintes. Não se perturbe o vosso coração, nem tenham medo. (28) Vocês me ouviram dizer: Vou, mas volto para vocês. A nossa esperança e segurança estão baseadas na promessa escatológica de alegria: “Volto para vocês”. Jesus não desapareceu para nunca mais encontrar-se com aqueles que o amam. Na situação em que estas palavras foram ditas, os onze discípulos poderiam se encontrar em qualquer situação emocional, menos na de segurança ou de tranquilidade. Pelas palavras de Jesus suspeitavam que, de alguma forma, Ele fosse tirado deles. Não sabemos o que imaginavam, mas certamente tudo lhes parecia inseguro. Mesmo assim, nunca imaginavam aquilo que, nas próximas horas, estava por acontecer: Jesus sendo traído por um deles; Seu paradeiro noturno delatado e Ele preso, torturado e morto, como se fosse um rebelde qualquer; Ele, o homem de paz. Jesus, porém, sabia perfeitamente avaliar a situação em que se encontrava; sabia o que havia levado Judas a sair apressadamente da ceia após receber o bocado da mão de Jesus (13,30). Ele estava ciente da insegurança reinante entre os seus e assim Ele procurou consolá-los com as palavras: “Não fiquem perturbados e não temam o que virá”. Quando João escreveu o seu Evangelho, Jesus ainda não havia voltado para buscar os seus. Ainda hoje O esperamos. Nós, no século 21, tampouco sabemos quando Jesus virá, tal como aqueles onze homens assustados e preocupados com o seu futuro incerto. Pela fé olhamos para aquele dia e Sua vinda nos serve como consolo. Dúvidas? A partir do 380 momento em que você se entrega a Jesus e realmente precisa dEle para viver, você não mais duvida. Sem essa segurança, você não será capaz de viver a vida como seguidor de Jesus! Se vocês me amassem, ficariam contentes porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. Algumas cópias dos originais apresentam assim a frase acima: “Se vocês me amam, ficarão contentes...”. A tradução correta, porém, é aquela que hoje encontramos nas nossas Bíblias. Por que será que alguns copistas escreveram: Se vocês me amam...? A forma como Jesus falou deixa claro que os discípulos estavam angustiados. Aos que copiavam as Escrituras parecia “pecado” ligar a frase no condicional irreal “Se vocês me amassem”... (que é uma constatação de ausência de amor), aos santos Apóstolos que, na história da igreja, logo viraram “santos” e irrepreensíveis. Não, os futuros Apóstolos estavam com medo. Jesus tinha razão quando os repreendeu com a frase no condicional irreal. Veja o que o velho Apóstolo escreveu a uma igreja no fim do primeiro século: “No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme, não é aperfeiçoado no amor”(1 João 4,18s). Olhando para trás, João entendeu o comentário triste de Jesus na noite em que foi traído. Os Onze estavam, sim, tomados de tristeza, mas Jesus os lembrou de que o Pai era maior do que Ele em Sua forma humana, filho de carpinteiro e Rabi: Jesus Nazareno. Sua ida ao Pai de forma alguma deveria afetar a fé dos Onze. Ele, Jesus, estaria com Aquele que conheciam como o Deus de Israel, em quem confiavam e que era maior do que Jesus Nazareno neste momento histórico. A certeza de estar logo unido com o Pai era a fonte da qual Jesus tirou Sua força e Sua paz. (29) Isso eu lhes digo agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vocês creiam. Horas atrás, quando lavou os pés de seus discípulos, Jesus havia citado as palavras do salmo 41,9: Até meu amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim seu calcanhar (isto é: pisar em alguém). Em seguida Jesus havia dito: Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vocês creiam que eu sou. De modo similar, Jesus reiterou a exortação, não mais enfatizando o reconhecimento do “EU SOU”, mas apontando para o resultado desse “conhecer”: a fé. Quando a lembrança (dos discípulos) lhes permitiu crer, ainda que com medo, então entenderam que “quando acontecer” não se referiu ao momento da prisão e da morte, mas aponta para a Páscoa. A sua fé, ainda trêmula, seria vivificada no dia de Pentecoste, através do Parácleto, “Conselheiro”. 381 (30) Já não lhes falarei muito, pois o príncipe deste mundo está vindo. Ele não tem nenhum direito sobre mim. A declaração de que não lhes falaria muito mais por causa da chegada do príncipe deste mundo, levanta algumas perguntas e chama atenção pela sua proximidade com o relatório de Lucas. Sabemos que, naquela hora, Judas Iscariotes estava a caminho para delatar Jesus. João, no entanto, diz que o “diabo” (o príncipe deste mundo) estava vindo. Isso lembra Lucas 22,53, onde o Evangelista fala do “poder das trevas”. Em 22,3, Lucas diz: “Ora, Satanás entrou em Judas...”. O verdadeiro inimigo de Jesus era o “diabolos” (Satã), e Judas somente lhe serviu como meio de ação. A visão de Lucas corresponde à de João: “Durante a ceia, tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus...” (13,2) e “E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás”(13,27). Satanás enfrentava Jesus não somente neste momento de grande angústia. Durante o ministério todo Ele fora tentado. Teve início com a tentação registrada em Lucas, cap.4, onde Satanás lhe apresentou três opções mais fáceis para seu ministério e Jesus rejeitou a todas. Enquanto os Evangelistas Mateus e Marcos davam ênfase aos dados biográficos, naquilo que se via e ouvia, João (muito provavelmente amigo de infância de Jesus) e intimamente muito mais próximo ao Senhor, procurou dar ênfase ao invisível, à realidade espiritual. Pela sua intimidade com Jesus, ele se apresentou por diversas vezes, discretamente, como “aquele que Jesus amava” (13,23). João sabia que o inimigo, Satanás (diabolos), não tinha direito sobre Jesus por Este ter permanecido na comunhão íntima com o Pai, sendo Um com Ele (e, quando escreveu seu Evangelho, João já tinha compreendido isso). O Evangelista João nada nos relata de uma posterior luta íntima de Jesus no jardim Getsêmani (como o temos em Marcos 14,32-42; Mateus 26,36-45). Os estudiosos, em geral, veem nesse fato uma tendência do nosso Evangelista, que escreveu para sua Igreja desprezada e aflita, de ter o cuidado de passar a imagem de Jesus forte, vencedor. Por essa razão, ele deixou de lado os momentos onde o homem Jesus, como ser humano, demonstrou grande aflição e medo. O velho João, quando escreveu, já conhecia Jesus como glorificado. Não sabemos se, a essa altura, seu exílio na ilha de Patmos já pertencia ao passado. Em Patmos, João viu Jesus como o Cordeiro Vencedor. Não lhe fazia sentido dar ênfase aos momentos de aflição que Jesus Nazareno passou aqui na terra. O que traria conforto para os cristãos das comunidades joaninas era a visão de Jesus Vencedor (Apoc.caps.5 e 22). 382 Hoje, Jesus não pede que nos lembremos de seus sofrimentos com choro e clamor. Aquilo que Ele quer de mim e de você continua ser aquilo que pediu de seus discípulos: Obediência como demonstração de amor. Para tornar possível a obediência a um Cristo glorificado junto ao Pai, temos que nascer de novo. Temos que mudar de Senhor se quisermos serví-lo. Para trilhar em direção à perdição, é suficiente que sejamos nós mesmos o nosso próprio dono. Você se lembra do capítulo 3º de João? Se não nascermos de novo não podemos nem ver nem entrar no Reino de Deus, isto é, na esfera do domínio de Deus. Como é difícil abdicar dos direitos sobre si mesmo numa cultura que declara o homem dono de si mesmo! Glória a Deus! Deus continua sendo o mesmo que Jesus conhecia como Pai; assim, a entrega dos nossos direitos a Ele permanece possível. (31) Todavia é preciso que o mundo saiba que eu amo o meu Pai e faço o que meu Pai me ordenou. Levantem-se, vamos-nos daqui! Ainda faltava obediência ao Pai até o fim. Lemos, às vezes, que Jesus veio com a tarefa de morrer na cruz. Pensar dessa forma mostra uma simplificação perigosa da pessoa do nosso Salvador. O ministério de Jesus consistia numa obediência permanente a seu Pai e o caminho de Jesus foi clareando paulatinamente, na medida em que Ele obedecia (14,10s). A visão do ministério que Jesus tinha na hora de Seu batismo não era a mesma que tinha na última ceia, junto com os seus seguidores. Permitir ser imolado como um cordeiro, assumindo o lugar de qualquer pecador, isto é, “de todos”, e reconhecer isso como vontade do Pai, foi o clímax do seu ministério; e a demonstração de obediência perante o mundo (... é preciso que o mundo saiba...). A ordem: “Levantem-se, vamos-nos daqui!” está causando muita dor de cabeça aos teólogos. Os acontecimentos têm sua continuação somente no capítulo 18. Não há nada que nos explique a razão da existência dos três capítulos 15,16 e 17 colocados após o capítulo 14. Cremos que podemos aceitá-los como palavras de Jesus, proferidas em algum momento anterior e, por alguma razão desconhecida, colocados exatamente neste lugar pelo próprio Evangelista. Consideramos os três capítulos como um grande parêntese posto propositalmente neste lugar pelo Evangelista. Lembre-se que João não escreveu em capítulos; a divisão dos Evangelhos em capítulos e versos foi realizada em três etapas e concluída somente aproximadamente mil anos mais tarde. Para você ter uma noção das explicações elaboradas pelos estudiosos que procuram justificar os três capítulos neste lugar, mencionamos em seguida as teorias a respeito: • Há quem defenda a suposta existência de um “rascunho” anterior do Evangelho joanino, do qual o texto dos três capítulos teria sido extraído (Dettwiler). 383 • • Outros pensam em uma troca de textos; alguma incoerência na ordem dos acontecimentos e palavras (Bultmann); outros levantam a hipótese de que seguidores de João teriam composto os três capítulos e encaixados a esta altura (Schnackenburg). Finalmente há quem considere os três capítulos como “pós-redação” da igreja primitiva. Estes até alegam poder reconhecer três autores distintos, embora desconhecidos (Becker). Preferimos entender o texto como “testamento joanino”, colocado pelo Evangelista propositalmente no final do ministério de Jesus. • Você vive com medo? A fé virá como resultado de sua íntima comunhão com Deus – de uma vida que depende sempre de Deus, e não “na força de determinação”, como está em moda dizer. • O amor verdadeiro para com Deus não transformará você num cego e burro, não. Ele espantará o medo; o medo não tem mais lugar. Cap. 15.1 (15.1) Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Caro(a) amigo(a) leitor(a) Leia atentamente o trecho do salmo 80, apresentado a seguir, e procure entender o que ele diz a respeito do “Filho do homem”. Em seguida, acompanhe o desenvolvimento do comentário, até chegar novamente ao “Filho do homem” (Jesus), agora visualizado na metáfora da videira que começamos a estudar. Restaura-nos, ó Deus dos Exércitos; Faze resplandecer sobre nós o teu rosto, Para que sejamos salvos. Do Egito trouxeste uma videira; Expulsaste as nações e a plantaste... Volta-te para nós, ó Deus dos Exércitos! Dos altos céus olha e vê! Toma conta desta videira, da raiz que tua mão direita plantou, do filho (a palavra hebraica pode significar ‘tronco’ ou ‘ramo’) que para ti fizeste crescer! Tua videira foi derrubada; como lixo foi consumida pelo fogo. Pela tua repreensão perece o teu povo! Repouse a tua mão sobre aquela que puseste à tua mão direita, o filho do homem que para ti fizeste crescer. (Salmo 80.7,8;14-17) 384 No Antigo Testamento (AT), a videira (pé de uva) é um símbolo comum para Israel, o povo da aliança com Deus: Sl.80,9-16); Is.5,1-7; 27,2ss; Jr 2,21; 12,10ss; Ez 15,1-8; 17,1-21; 19,10-14; Os 10,1-2. Confira! O mais notável é o fato de que sempre que a Israel histórica é referida sob esta imagem de figueira (referências acima), há de se enfatizar o fracasso da videira em produzir bom fruto, juntamente com a correspondente ameaça do julgamento de Deus sobre a nação (Carson, Comentário de João). Observe o questionamento em Jeremias 2,21 onde Deus, através do profeta, pergunta: “Eu a plantei como uma videira seleta, de semente absolutamente pura. Como, então, contra mim você se tornou uma videira degenerada e selvagem?” No quinto capítulo de Isaías encontramos a parábola da vinha má e o clamor de Deus. “... Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta dileta do SENHOR; este desejou que exercessem juízo, e eis aí quebrantamento da lei, e eis aí clamor! (5,7). Leia Isaias no capítulo 5 de 1 a 7! A vinha, porém, destruída e selvagem, não ficará para sempre degenerada. O profeta Isaias viu a esperança da ação salvadora do próprio Deus se concretizando no futuro: “Naquele dia se dirá: ‘Cantem sobre a vinha frutífera! Eu, o Senhor, sou o seu vigia, rego-a constantemente e a protejo dia e noite para impedir que lhe façam dano” (Is.27,2). Semelhantemente, no Novo Testamento, videiras e vinhas (plantação de uvas) aparecem em diversas parábolas proferidas por Jesus, e relatadas nos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Veja em Mateus 20,116; Marcos 12,1-9 e Lucas 20,9-16. Estas parábolas têm dois aspectos em comum: a) todas elas têm uma trama narrativa; b) em cada caso, a vinha, ou o povo relacionado à vinha, retrata Israel, ou uma parte de Israel, como um povo muito menos frutífero do que devia ser (Carson), e Deus anuncia o julgamento. Como elas são de caráter narrativo, o mesmo acontece resumidamente nas parábolas dos Evangelhos sinóticos, porém não é a videira, mas sim os lavradores, os administradores da vinha que se tornam infiéis e corruptos. Em todas elas Deus aparece como quem julga e castiga, da mesma forma como acontece no Antigo Testamento. Em todo o mundo antigo, com suas sociedades agrárias, em grande parte de sua literatura encontramos metáforas cujo assunto é a videira. A nossa metáfora (parábola) João 15, da videira e dos ramos, não é como as parábolas dos Evangelhos sinóticos: uma metáfora narrativa. O fato de que nos versículos 1-8 não há uma trama (história contada), levou alguns 385 autores recentes a chamá-la de “mâsâl” (dito sábio ou enigmático, contendo uma verdade escondida) em vez de parábola. A metáfora (ou “mâsâl”) da videira em João 15 pode ser dividida em duas partes: os versos 1-8 que falam de permanecer na videira, e os versos 9-16 que tratam de permanecer no amor de Jesus. Ambas as partes apresentam a fecundidade (dar fruto) como o objetivo do discípulo; e ambas relacionam esta fecundidade à oração. O renomado comentarista D.A.Caros divide a metáfora em duas seções, construídas ao redor de uma mudança na perspectiva histórica e salvífica, isto é: sob a figura de videira, Israel dá lugar a Jesus, e sob o impacto de uma revelação nova, “servos” dão lugar a “amigos”. Outro comentarista (Thyen) prefere dividir a metáfora em três partes. Todas as três tratam de um aspecto específico daquilo que significa ser discípulo de Jesus. O primeiro (1-11) prioriza o aspecto do “permanecer” (mencionado sete vezes). Os versos 12-17 iluminam o tema central de João 15, que consiste no amor mútuo (13,34s) como qualidade visível e testemunho do discipulado, que, outrossim, enfrenta o ódio do mundo. O último trecho (15,18-16,3) fala desse ódio, ao qual os discípulos estarão expostos com a mesma naturalidade como antes seu Senhor esteve exposto. Nos nossos comentários seguiremos basicamente a linha apresentada por Carson por ser ela, no nosso caso, a mais objetiva e clara. (15.1) Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Diante do fracasso da videira plantada do Antigo Testamento, Jesus ousadamente declarou: “EU SOU a videira VERDADEIRA...”, isto é, aquela para quem Israel apontava; aquela que dá bom fruto. Jesus, como vimos nos estudos anteriores (João caps 2, 3 e 4), em princípio, já substituiu o templo, as purificações, as festas judaicas, Moisés, e os vários lugares santos. Neste ponto, Ele substitui Israel como o próprio local do povo de Deus. Pela última vez no Evangelho joanino encontramos o “EU SOU” de Jesus, e uma única vez e em asserção adicional, em relação ao seu Pai: “... e meu Pai é o agricultor” (lit.lavrador). O papel do Pai é fundamental também: Ele corta e poda os ramos, como veremos logo adiante. Compare com a palavra de Isaías 27,2 acima, onde o profeta prevê a ação de Deus! A palavra de Jesus, com seu autopredicado como videira verdadeira, demonstra que os termos e seus significados eram conceitos conhecidos pelos discípulos. As imagens de videira e vinha são fundamentadas no Antigo Testamento e bem enraizados no judaismo. 386 Jesus entra como “videira verdadeira” no lugar de Israel, considerada como videira de fruto podre. Assim como Jesus (10,11) é apresentado como “o bom pastor” em contraste com os maus pastores (os mercenários), temos em Jesus nada menos que uma substituição salvífica (lembre-se da substituição em Marcos 12,9). “No lugar de Israel aparece como videira verdadeira o Cristo, com seus ramos frutificando” (Schweizer). O termo “substituição” em assunto de religião cristã é delicado e tem causado muito sofrimento. Ele pode ser aplicado tanto como “representando” bem como “substituindo, trocando”, o que não é o mesmo. A igreja tem desenvolvido a “teoria da substituição”, dizendo que ela mesma se tornou, com Cristo, o “novo povo de Deus” no lugar de Israel. Segundo esta interpretação teológica, Israel, antes povo escolhido de Deus, perdeu seu lugar para a igreja cristã, sendo substituído por ela. Toda a perseguição sistemática aos judeus realizada pela igreja “cristã” durante mais de mil anos da nossa história fora justificada pela interpretação antibíblica desta “substituição”. Infelizmente, ainda hoje encontramos essa visão distorcida em parte da igreja. A Igreja Católica Romana só recentemente corrigiu esse horror, pelo menos oficialmente. Não sabemos o que continua nas cabeças e nos corações dos Prelados e de alguns Superpastores Evangélicos. O Evangelista João, que nos legou a afirmação de Jesus: “A salvação vem dos judeus” (4, 22b) e que recebeu de Jesus a incumbência de cuidar de sua mãe judia (cf. João 19,25-27) certamente não concordaria com essa interpretação maligna da substituição. A igreja cristã (substituição da videira) está “temporariamente representando o povo de Deus”, até ao tempo determinado, “quando todo Israel será salvo” (conforme o Apóstolo Paulo declara explicitamente em Romanos 9-11). A “nossa” eleição em Cristo nunca revogou (nunca torna nula) a eleição do povo de Israel como povo de Deus; a substituição de Israel por Jesus até pressupõe e reforça a eleição do Israel de Deus. Mesmo se “os seus não O receberam” (1,11), eles continuarão “os Seus” e o permanecerão para sempre. Segundo a (involuntária) palavra profética de Caifás (11,49ss) Jesus morreu pelo (em favor) de Seu povo. Por favor, leia Romanos cap.11 a partir do verso11. Há comentaristas que encontram na metáfora da videira uma referência à eucaristia, visto que um dos dois elementos do ritual é o vinho. Esta tese talvez pudesse ser considerada, se os capítulos 15 e 16, do ponto de vista temático, estivessem ligados diretamente ao relato da última ceia, o que não é o caso. Não há na metáfora da videira nenhuma menção ao vinho, e menos ainda uma relação com o sangue de Jesus. “A verdade é que João está tratando da união dos crentes com Cristo, de quem, separados, nada podem fazer. Esta união, originando-se de sua iniciativa e 387 selada por sua morte em favor deles, completa-se pelo amor e obediência receptivos dos crentes, e é a essência do cristianismo”(Barret, cit.em Carson). Não devemos nos surpreender se encontrarmos na (boa) literatura católica tudo ou quase tudo relacionado com a eucaristia. Essa é a “arma” da Igreja Romana, com a qual ela mantém os seus adeptos como dependentes de si mesma. A união com Cristo, no entanto, não acontece através da eucaristia. Esta união, celebrada de acordo com a Palavra do Novo Testamento, é a boa confissão da obra consumada de Cristo e nada podemos acrescentar a ela, nem repeti-la “sem sangue”, como se procede nas missas dominicais ou não. Este ponto de vista é o que, na realidade, nos separa e o que causa muito pesar não somente a nós. Entristecemos a Jesus e ao Espírito Santo, que nos foi dado para unir e não para separar. Na próxima leitura examinaremos a metáfora quanto ao que ela nos diz em que nossa vida deva mudar. Podemos ler a Bíblia mil vezes; se a leitura e o estudo não nos levam a mudanças no nosso dia a dia, em vão teremos a Bíblia nas mãos. • Vamos? Cap. 15.1-8 (15.1) Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. (2) Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda. (3) Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado. (4) Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim. (5) Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. (6) Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. (7) Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido. (8) Meu Pai é glorificado pelo fato de vocês darem muito fruto; e assim serão meus discípulos. (15.1) Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. (2) Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda. Na leitura anterior mencionamos o “cântico da vinha”, de Isaías 5,1ss. O profeta descreve como Deus amorosamente plantou a vinha, (que é Israel, seu povo escolhido), e dela cuidou, esperando que desse fruto. O Evangelista João apresenta a mesma imagem. A vinha não mais representa a Israel, mas seu Filho amado. Deus cuida dessa Sua vinha e poda (lit. “purifica”) os ramos a fim de darem mais fruto. Ele corta os brotos infrutíferos e selvagens. O que podemos considerar? 388 O Evangelista aponta para as duas funções contraditórias do Pai (podando/ cortando) e ao futuro contraditório dos respectivos ramos (dar fruto/sendo cortado e queimado). Invertendo a ordem do agricultor contida no verso 2, observemos primeiramente que Deus “poda” todo ramo, para que ele dê mais fruto ainda. Nenhum ramo produtivo é poupado. Sem dúvida, o propósito do Pai é amoroso – Ele poda para que o ramo dê mais fruto! O procedimento pode ser doloroso. A ideia é a mesma que foi apresentada em Hebreus 12,4-11 (por favor, leia!). “O Senhor disciplina os seus da forma que um Pai disciplina seus filhos. Tudo isso é “para o nosso bem, para que participemos de sua santidade” (Heb.12,10). Não é bem isso que certo “bispo” de uma Igreja está prometendo aos seus fiéis. Lemos em “O poder sobrenatural da fé” de sua autoria: “A salvação eterna, as bênçãos físicas, financeiras, espirituais e o louvor são os direitos (!) dos filhos de Deus...o propósito de Deus é que a vida fosse vivida em abundância, com todos os seus direitos e privilégios, sem nenhuma forma de aflição, angústia ou preocupação... que a vida não tivesse nenhum tipo de interrupção provocada por doenças, enfermidades, dores, enfim, qualquer tipo de sofrimento ou morte...”(pág.70). A qual dos dois autores, João ou o “bispo”, você dá crédito? Segundo: Jesus diz que o Pai corta todo ramo que, “estando em mim”, não dá fruto, isto é: Ele se livra da madeira morta, para que os ramos vivos e produtivos possam ser claramente distinguidos deles e possam ter mais espaço para crescer. Em quem João está pensando quando fala de ramos que, “estando em mim”, se tornaram infrutíferos? A afirmação de João, de que verdadeiros discípulos são preservados até ao fim (6,37-40; 10,28) não permite pensar em “cristãos apóstatas”. Tampouco podem ser judeus, pois esses que nunca tiveram fé em Jesus, não podem ser considerados “estando nele”. A frutificação é uma marca infalível do verdadeiro cristão; a alternativa é madeira morta. Recomendamos extrapolar a metáfora da videira e perguntar qual o propósito da frase! O propósito nítido do enunciado é insistir que não há verdadeiros cristãos sem alguma medida de fruto (Carson). Para ser ilustrativa, a própria metáfora exige que tais ramos infrutíferos estejam ligados à videira; como madeira morta e sem vida neles mesmos, e que nunca produzem fruto. Eles não serão “podados”, mas, sim, cortados. Talvez possamos fazer uma aplicação: O Novo Testamento, infelizmente, nos retrata pessoas que tiveram algum grau de ligação com Jesus, ou com a igreja cristã, e que acabaram testificando que a vida transformadora nunca pulsou neles: confira Mateus 13,18-23; 24,12; João 8,31s; 2 Tim.4,10; Hebr. 3,14-19; 1 João 2,19; 2 João 9. Somente esses exemplos já representam um questionamento da nossa maneira de “crer”. ‘ 389 Somos ligados à videira? O ramo frutífero não está ligado ocasionalmente, por uma hora semanal, à videira. Vinte e quatro horas por dia - dia e noite -, ele está ligado. Assim, para um discípulo não há apenas determinadas horas de comunhão e sendo o resto somente “vida normal”. A metáfora não deixa meio-termo. Somente ligados permanentemente produzimos o fruto que Deus quer ver em nós (Salmo 1,2). Alguns escritores populares (seguindo a A.W.Pink) procuram sugerir que ramos sem fruto, ao invés de serem cortados, são “erguidos do chão”. Eles argumentam que “cortar ramos que estavam nele” não condiz com a declaração de Jesus em 6,37: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”. Esses escritores modernos afirmam que a palavra “airô” que consta nessa passagem não significa ‘corta’ (NVI) e sim, “ergue” (do chão) – isto é, os ramos sem fruto são ‘erguidos’ para que possam ser expostos ao sol que lhes foi negado e, assim se tornem ricamente frutíferos. Entretanto, nas vinte e quatro vezes que a palavra “airô” aparece no Evangelho, somente em oito casos essa interpretação é lícita (Carson). Mais ainda, no contexto da vinicultura esse “erguer do chão” não existe. Ramos sem fruto são cortados. Trata-se, portanto, de uma tentativa de negar de certa forma o julgamento do ramo sem fruto – algo que a metáfora, em si, não permite. (3) Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado. O poder purificador da palavra que Jesus falou a seus discípulos é equivalente à vida da videira, pulsando através dos ramos. À Palavra (logos) de Jesus não é atribuído nenhum poder mágico. Ao contrário, o que se quer dizer é que o ensino de Jesus, em sua completude, incluindo o que Ele é e o que Ele fez (visto que Ele é o logos encarnado) já começou a ter um efeito definido na vida desses seguidores. Outros argumentam que as palavras do verso três devem ser consideradas não como palavras de Jesus Nazareno junto aos seus discípulos, mas, sim, do Cristo Glorificado. Thyen está parafraseando as palavras de Jesus da seguinte maneira: “O Pai (como o agricultor) já tornou vocês limpos através da palavra que Eu lhes tenho dito”. As palavras de Jesus não podem ser separadas de Sua pessoa, como se, após a ida de Jesus ao Pai, sobrassem unicamente lembranças do que fora dito, e para que, partindo delas, a igreja desenvolvesse “dogmas”. Não, como “logos”, Jesus está sempre presente na sua palavra. (4) Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim. Jesus está se dirigindo diretamente a seus ouvintes. Assim como nenhum ramo na videira pode dar fruto independentemente da videira, nenhum cristão pode evidenciar fruto enquanto não estiver intimamente ligado a Jesus. É claro que não podemos responsabilizar nenhum ramo 390 por não permanecer ligado à videira; mas responsabilizar o cristão podemos. A ideia é clara: a dependência contínua na videira permite ao ramo a assimilação de vida; no caso do cristão, essa permanência é o sine qua non da frutificação espiritual. O crescimento é interno, dirigido pela vida pulsante da videira no ramo; somente esse tipo de crescimento produz fruto agradável a Deus. O cristão ou a organização cristã que cresce por acréscimo externo, que meramente imita a conduta cristã e o testemunho, mas não é impelida pela vida interior, produz cristãos mortos e não fruto. Podemos produzir “muito” e ver tudo sendo cortado e queimado pela mão de Deus. Uma palavra dura para a nossa igreja que se esmera em atividades, conferências, shows e festivais, mas carece da presença da “seiva” da videira. O Evangelista usa por 40 vezes o verbo “permanecer”, enquanto esse termo em Mateus aparece somente três vezes; em Marcos duas e em Lucas sete vezes. Percebemos que o “permanecer” para João era algo fundamental. De um lado, a perseverança era decisiva na Igreja do tempo de João – tempo de grande perigo por causa do crescente movimento gnóstico – de outro lado entendemos que o Evangelista projetou a imanência do Pai no Filho e Sua relação recíproca e permanente (Ele no Pai e o Pai nele) aplicando-a no relacionamento dos discípulos para com Ele. Será que hoje ela não é mais decisiva ainda, nesses tempos em que a Igreja virou marketing ou magia, orquestrada pelo homem, seja este “religioso” ou não? Mais ainda, observamos que o pensamento de João está bem fundamentado nos termos da “nova aliança” prometida por Deus aos profetas. Estamos perto dos textos do Antigo Testamento que prometeram um coração renovado, ou uma mente correta, ou a presença do Espírito no povo da nova aliança de tal forma que eles obedecerão a Deus. Deus permanece entre seu povo e nele ao renová-los com Sua vida, com Seu Espírito e ao fazer Sua presença conhecida neles e entre eles (leia Jeremias 31,31ss). Jesus definiu as condições para uma vida frutífera através do exemplo da videira, metáfora fácil de ser entendida numa sociedade agrária. Mais tarde, após Pentecoste, o Apóstolo Paulo abordou o mesmo assunto da permanência em Jesus perante não judeus, quando lembrou os cristãos de Corinto que seus corpos eram santuários do Espírito Santo que estava neles (1.Co.6,19), e exortando em Ef.4,30 para não entristecer o Espírito Santo de Deus, com o qual foram (e fomos) selados. Nada deve interpor-se ao relacionamento íntimo e permanente com o Cristo Glorificado. Será que esse é o seu caso? (5) Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem 391 fazer coisa alguma. (6) Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. A última alternativa apresenta-se com franca inflexibilidade: ou a pessoa permanece na videira e torna-se um ramo que dá fruto, ou é cortada e jogada fora e queimada. Os versos cinco e seis não são meras projeções; eles permitem pensar que o Evangelista se refere a experiências reais. Pessoas que procuravam realizar algo sem estarem em permanente e íntima comunhão com Jesus e fracassaram. Elas se desviaram, “voltaram atrás e deixaram de seguí-lo”(João 6,66). Por esta razão é que João tanto não só menciona a necessidade da permanência, mas insiste e exorta. Retornando ao verso dois onde Deus apareceu como o “lavrador”, o proprietário da vinha, o Evangelista reforça que é Deus que elimina cada um que não permanece no Filho, semelhantemente como se corta ramos sem fruto. Ramos cortados secam e são lançados ao fogo e queimados. Repentinamente encontramos o “discípulo do amor” falando de julgamento, de modo semelhante a de seus colegas sinóticos. Ser cortado é julgamento, não afirmação de mera inutilidade. Jesus alude às palavras do profeta Ezequiel cap.15, em que a videira representa Israel e onde o fogo atesta inutilidade e julgamento. Se no início do cap.15 Jesus se declarou a videira verdadeira, substituindo a Israel, o mesmo julgamento que Israel enfrentou, seguramente também se aplicará aos leitores de João, sejam eles judeus ou cristãos brasileiros. O versículo seis, no grego, diz literalmente algo assim: “Se alguém não permanecer em mim, foi jogado fora e secou, é apanhado, lançado ao fogo e queima”. Veja a construção interessante da frase: Ao condicional (se alguém não permanecer ...) segue o tempo passado. Entendemos a leitura como demonstração de que, se um ramo não permanecer, não se trata de um fracasso na perseverança ou no poder mantenedor do Pai, e sim, de um julgamento. Como, teologicamente, é difícil de entender que um ramo não permanece na videira em consequência de ter sido jogado fora, preferimos entender a ideia como sendo a da completude que o escritor deseja retratar: o ramo que não permanece na videira é jogado fora e seca – o julgamento é completo, decisivo (Carson). João não se detém na descrição do julgamento; seu interesse está naqueles que permanecem. Se o propósito do ramo é produzir fruto, qual será a natureza desse fruto? Os próximos versos demonstram que esse fruto é consequência da oração em nome de Jesus, e é para a glória do Pai, incluindo a obediência aos mandamentos dele (10), a experiência da alegria de Jesus (11) a sua paz (14,27), o amor de uns pelos outros (12) e o testemunho diante do mundo. Esse fruto não é nada menos que o resultado da perseverante dependência da videira. 392 Veja o que a “Teologia da Prosperidade” diz quanto à permanência em Jesus e a nossa condição de realizar algo independentemente da videira: “A mente de Cristo ou a Palavra de Deus não somente cria uma unidade de fé, mas também nos faz participantes da natureza divina, permitindonos ter o direito de pensar e agir livremente, de acordo com a nossa própria vontade. A mente de Cristo não nos impõe qualquer restrição, ou obriga a qualquer atitude contrária à nossa... Ele nos enche de condições, liberdade e direção, através do Seu Espírito, para que cada um venha a promover a sua própria plenitude de vida, mediante seu próprio esforço neste sentido” (pág 69/81.O Poder sobrenatural da Fé). Sem mim vocês não podem fazer coisa alguma (15,5). Será que Cristo é Posto de Gasolina, onde abastecemos a fé para depois, por nossa livre e espontânea vontade, desenvolvermos mediante o nosso próprio esforço O QUÊ? Enquanto o “bispo” citado oferece... ... a salvação eterna, as bênçãos físicas, financeiras, espirituais e o louvor são os direitos dos filhos de Deus...o propósito de Deus são que a vida fosse vivida em abundância, com todos os seus direitos e privilégios, sem nenhuma forma de aflição, angústia ou preocupação... que a vida não tivesse nenhum tipo de interrupção provocada por doenças, enfermidades, dores, enfim, qualquer tipo de sofrimento ou morte... diferentemente do que nos é ofertado pelo “bispo”, as Escrituras afirmam que ... o fruto da permanência em Jesus é descrito em Gálatas 5,22: Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Esse fruto aparece enquanto estamos ligados à videira e não é nunca resultado do nosso próprio esforço. O Apóstolo Paulo usou as seguintes palavras para designar a vida ligada à videira como única alternativa que produz fruto: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus...” (7) Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido. (8) Meu Pai é glorificado pelo fato de vocês darem muito fruto; e assim serão meus discípulos. O verso oito retorna ao que foi dito no verso um: Meu Pai é o agricultor, o “lavrador”. Somente Ele, o Pai, elimina tudo que for infrutífero e torna o que dá fruto, podando-o, mais frutífero ainda. Como Pai amoroso Ele ouvirá as orações daqueles que permanecem ligados à videira. Não é a glorificação do Filho, já consumada pelo Pai (o Evangelho foi escrito muito 393 após a Páscoa), mas a glorificação do Pai que acontece enquanto nós, como discípulos, permanecemos ligados na videira, que é Cristo, dando muito fruto. A frutificação traz glória para o Pai através do Filho. Assim, tanto os leitores de João na sua época quanto nós hoje, devemos considerar o fato de que deixar de honrar o Filho é deixar de honrar a Deus (5,23). Ausência de fruto não só é prenúncio de fogo e julgamento, como também tira de Deus a glória que lhe é devida. Podemos, finalmente, parafrasear o verso oito da seguinte maneira: “Dar fruto é para a glória de meu Pai, e (assim) vocês serão meus discípulos”(Carson). Cap. 15.9-13 (9) Como o Pai me amou, assim eu vos amei; permaneçam no meu amor. (10) Se vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como eu tenho obedecido aos mandamentos de