O conceito de crítica no jovem Marx: primeiros

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4° COLÓQUIO MARX E ENGELS
CENTRO DE ESTUDOS MARXISTAS (CEMARX-UNICAMP)
GT1: A OBRA TEÓRICA DE MARX E O MARXISMO
O CONCEITO DE CRÍTICA NO JOVEM MARX:
primeiros movimentos no interior do idealismo ativo
CELSO EIDT (DOUTORANDO NO INSTITUTO DE FILOSOFIA E
CIÊNCIAS HUMANAS – UNICAMP)
NOVEMBRO DE 2005
“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe
transformá-lo.” (Karl Marx)
Introdução
O propósito deste texto é apresentar alguns elementos do conceito de crítica no
pensamento do jovem Marx, dando atenção especial aos escritos do período de formação
no interior do idealismo ativo. A intenção é explicitar a gênese do conceito de crítica,
considerando as filiações, influências e relações com a tradição filosófica e com o contexto
da época, reconhecendo que os textos do período em questão se reportam às publicações
realizadas no interior do movimento neo-hegeliano. Pretende-se traçar tópicos do conceito
de crítica na postura filosófica que particulariza o pensamento de Marx, na justa medida
em que seu pensamento não se ocupa apenas da tradição ou dos sistemas filosóficos, mas
volta-se ao exame da própria realidade, solo geral da atividade humana, de cuja fonte
emerge a centralidade de seu itinerário intelectual.
A filosofia como atividade crítica
A XI é certamente a mais conhecida das Teses de Marx acerca de Feuerbach.
Conhecida e diversamente interpretada. Transformar o mundo sempre foi uma das
exigências a que determinados movimentos culturais se propuseram. Encontrar na filosofia
tal propósito, por si só, constitui questão polêmica, dado que não é comum à sua natureza
especulativa a intencionalidade prática. No centro do debate em torno da questão, está a
idéia da realização da filosofia e, no limite, surge inclusive a tese do anúncio do fim da
filosofia.
A postura crítica radical contida na Tese de Marx, embora dirigida diretamente a
Feuerbach, estende-se a toda uma tradição de filósofos que apenas se ocupam em
interpretar o mundo. De que tradição Marx fala e em que sentido a radicalidade de sua
crítica, negando a interpretação do mundo como tarefa suficiente para o filósofo, está
acompanhada da proposição de uma filosofia com perspectiva de realização? A realização
da filosofia anuncia o seu fim, como alguns intérpretes afirmam?
Na apreciação inicial dessa questão, nos parece apropriado referir a leitura de
Lima Vaz, segundo a qual é preciso compreender a tese da supressão da filosofia no
contexto histórico de sua elaboração. A tese do fim da filosofia que Marx “compartilha
com o grupo dos jovens hegelianos e fora formulada inicialmente por Augusto von
Cienkovski, deve ser referida ao contexto histórico. A filosofia de que aqui se fala é a
filosofia universitária alemã que encontrou sua cristalização mais perfeita na obra e no
pensamento de Hegel. (...) Temos, assim, que a tese da ‘supressão’ da filosofia, proposta
algumas vezes de maneira radical, como significando para Marx o fim de todo tipo de
pensar que fizesse uso de categorias que denominamos filosóficas, anunciava apenas o fim
de uma forma de saber filosófico que encontrara sua forma acabada e, portanto, também a
sua exaustão em Hegel e nos seus epígonos que dominavam a filosofia universitária
alemã” 1 .
Entende Lima Vaz que “suprimir’ a filosofia é, para Marx, realizá-la. E o
problema dessa realização está inscrito nos próprios termos do problema marxiano do
saber e nele deve receber a solução” 2 . E Ainda: “Para Marx, a filosofia continua presente
na sua realização. O pensamento marxiano pretende ser, justamente, a filosofia feita práxis
e transfundida na realidade” 3 .
Explicitar os contornos da idéia da interpretação e transformação filosófica do
mundo exige que se considere o contexto de debate em que Marx participa durante a
década de 40 do século dezenove. Trata-se de um itinerário crítico que tem como objeto
tanto a tradição filosófica quanto o contexto societário da época. Aqui estão assinalados
traços fundamentais do percurso formativo de Marx, os quais revelam os germes de uma
elaboração filosófica e uma postura metodológica própria.
Entendemos, e procuraremos defender esse ponto de vista: de que a XI Tese ad
Feuerbach, é a síntese de um debate, situado no início da vida intelectual de Marx, mas
que expressa o primeiro resultado de uma concepção de filosofia que irá acompanhá-lo
durante toda a vida.
No presente texto apresentaremos os primeiros elementos do debate assim como
situado no interior do idealismo ativo, ou seja, antes da primeira crítica à filosofia política
moderna. Crítica voltada à obra política máxima de Hegel, que é a Filosofia do Direito,
mas também voltada aos jovens-hegelianos de esquerda, como o mostram, por exemplo, a
Questão Judaica e o Glosas Críticas.
Os artigos escritos para a imprensa liberal alemã durante os anos de 1842 e 1843,
período em que Marx está filiado à filosofia hegeliana, constituem fontes valiosas da
gênese do ideário marxiano.
1
Henrique Lima Vaz. “Sobre as fontes filosóficas do pensamento de Karl Marx”. In: José Chasin (org.),
Cadernos Ensaio 1: Marx hoje, São Paulo, Ensaio, 1987, p. 162-163.
2
Idem, ibidem, p. 162.
3
Idem, ibidem, p. 163.
Que o pensamento de Marx seja crítico, constitui tese bastante comum entre seus
estudiosos. Posição que encontra um eixo de sustentação já nos títulos dos próprios textos
de Marx à época, quase todos acompanhados da palavra crítica. Outras razões, que
possibilitam conferir ao conceito de crítica, um lugar central no pensamento de Marx, os
próprios textos apontam. Rancière afirma que “o conceito de crítica está presente em toda a
obra de Marx. Ele utilizou-o em todos os momentos da evolução do seu pensamento para
caracterizar a sua atividade específica” 4 , para, em seguida, chamar a atenção para o uso
explícito que Marx faz desse conceito durante o período inicial da vida intelectual, mais
precisamente entre os anos de 1842 e 1845.
Por sua vez, MacLellan chama a atenção para o início do itinerário de obras que
receberam o título de crítica. Este era um termo muito em voga entre os jovens hegelianos
e bem ao gosto de Marx, o qual “preferia desenvolver suas próprias idéias através desta
análise crítica de idéias de outros pensadores” 5 .
Se a crítica é uma categoria central no pensamento de Marx, tese reconhecida
pela maioria de seus estudiosos, sua definição é pouco convergente. O conceito de crítica,
o exame de sua natureza, fundamentação e articulação, leva a distintos pontos de vista.
De imediato, podemos perceber que há uma diferença essencial entre os
pressupostos ou então os fundamentos da filosofia como atividade crítica no período que
vai até a Gazeta Renana e o período que inicia com os artigos dos Anais Franco-Alemães.
Opera-se uma ruptura ou, então, dá-se uma descontinuidade metodológica durante o ano de
1843. De uma perspectiva filosófica hegeliana, marcada pelo idealismo ativo, Marx chega
à perspectiva filosófica própria. Perspectiva filosófica crítica que deixa de se mover sob a
base ideal para chegar à esfera da realidade. A hipótese que estamos levantando é de que
Marx, já nos artigos dos Anais Franco-Alemães chega ao próprio caminho filosófico.
A crítica no interior do idealismo ativo
O conceito de crítica acompanha Marx desde a Tese Doutoral. Conceito de crítica
que aqui tem como objeto a explicitação da filosofia atomística grega, em particular os
sistemas de Demócrito e Epicuro. A dedicatória –que mostra a posição filosófica de Marx
4
Jacques Rancière, “O conceito de crítica e a crítica da economia política dos manuscritos de 1844 a O
capital”. In: Ler o capital, vol. I, Rio de Janeiro, Zahar, 1965, p. 75.
5
David Mclellan, Marx y los Jóvenes Hegelianos, Barcelona, Martinez Roca, 1971, p. 85.
à época-, da Tese é ao futuro sogro, L. von Westphalen, o qual “saúda os progressos de seu
tempo com o entusiasmo e a prudência da verdade” e o fez compreender “que o idealismo
não é uma quimera, mas uma verdade” 6 .
Na tese doutoral, “Marx faz uma leitura original da filosofia epicurista, na qual
destaca a afirmação de Epicuro da autoconsciência como princípio da liberdade que se
instaura desde o reino da natureza” 7 . Marx define Epicuro como o maior iluminista da
Antigüidade e identifica a atomística como a ciência da natureza da autoconsciência. “O
entusiasmo de Marx pelo autor é evidente, na medida em que participa de um movimento
de crítica aos fundamentos heterônomos, sobretudo oriundos da religião, que têm como
fundamento justamente a autoconsciência” 8 .
Segundo Chasin, o que a opção de Marx pretende, de forma explícita, e “o que
mais importa ressaltar”, é “o resgate e o reconhecimento – ‘contra todos os deuses celestes
e terrestres’, tal como já havia antecipado no Prefácio - da ‘autoconsciência humana como
divindade suprema’, assegurando com toda ênfase que esta ‘não tem rival” 9 .
Rubel, por sua vez, dá destaque, na Tese Doutoral, a outros traços marcantes da
formação filosófica de Marx. Nela fica claro o espírito de crítica e de luta, assim como a
“vontade de realizar a filosofia da consciência no seu conflito com o mundo, que está
situado entre duas correntes: o partido liberal que tem por princípio a filosofia e por ato a
crítica; e a filosofia positiva encerrada em si mesma, e que não vai além de reivindicações
e tendências” 10 .
Central na Tese Doutoral, o tema da autoconsciência não é abandonado durante
os artigos da Gazeta Renana, mas é o próprio fundamento da atividade crítica e da
concepção política de Marx. “A autoconsciência, como base e atmosfera, se estende pelos
artigos da Gazeta Renana, o conjunto dos quais expressa com abundância e muita nitidez
os traços marcantes do pensamento político pré-marxiano de Marx” 11 .
Marx, como em geral os intelectuais liberais alemães, na década de 40 do século
XIX, não encontrou espaço nas universidades, de maneira que se juntou ao que travavam a
6
Carlos Marx, Diferença entre as Filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro, São Paulo: Global,
1978b, p.16.
7
Ana Selva Albinati, “Gênese, função e crítica dos valores Moraes nos textos de 1841 a 1847”. In: Dossiê
Marx, São Paulo, Ad Hominem; Ijuí: Ed.unijuí, 2001, p.103.
8
Idem, ibidem, p. 111.
9
José Chasin. “Marx - Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica”. In: Pensando com Marx. São Paulo,
Ensaio, l995, p.352.
10
Maximilien Rubel, Crônica de Marx, São Paulo, Ensaio, 1991, p. 19.
11
Chasin, Estatuto ontológic, cit., p. 354.
luta política em periódicos da imprensa liberal. O movimento intelectual dos jovens
hegelianos tinha uma preocupação especial com o debate teórico-político de seu tempo.
Também Marx expressa de forma clara sua preocupação com a realidade alemã, que,
segundo ele, por longo tempo existiu externamente, fora do mundo da atividade do espírito
ou da cultura.
Assim, o conjunto de artigos escritos por Marx, durante o período que participou
do projeto editorial da “velha” Gazeta Renana, reafirma com radicalidade a crítica. São
artigos escritos durante o ano de 1842 e nos três primeiros meses de 1843, e que marcam
uma etapa no percurso formativo de Marx de maneira sui generis.
Esse caráter sui generis da crítica decorre não apenas da diversidade temática que
tipifica as atividades da imprensa, mas também dos pressupostos da mesma. Na Gazeta
Renana, Marx reivindica a contemporaneidade para a Alemanha. O horizonte das críticas
situa-se, nos países desenvolvidos, segundo o “espírito do tempo”, como é o caso da
França, da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. A limitada situação alemã tem,
portanto, pressupostos históricos reais. Na Alemanha ainda predomina a lógica do mundo
feudal. As relações de feudalidade manifestam-se no campo econômico, na vida política e
no contexto sociocultural. Questões fundamentais do espírito moderno, como a
propriedade, o Estado, o direito, a lei, a imprensa, a concepção de homem e de liberdade,
são concebidas e tratadas segundo princípios pré-modernos, o que lhes confere caráter
dúbio e, muitas vezes, místico-religioso. Na Alemanha as relações econômico-sociais,
assim como as atividades político-culturais, não alcançaram o nível da racionalidade. O
público e o privado, o filosófico e o religioso, o racional e o irracional caracterizam o
espírito alemão.
A crítica de Marx, portanto, tem como alvo o atraso alemão, sua condição préracional. O que faz da Alemanha um país aquém de seu tempo? Para o Marx da Gazeta
Renana, é o espírito da época que está bloqueado na Alemanha e por isso não consegue
chegar à maioridade. As barreiras ao livre desenvolvimento do espírito alemão encontramse na burocracia intelectual oficial, na filosofia que deixou de ser a língua do pensamento,
nas instituições políticas que manifestam o espírito dos velhos tempos, nos jornais
atrelados ao governo, assim como nos próprios professores universitários, fatores que, no
conjunto, impedem que este se expresse livremente em sua diversidade e riqueza naturais.
A crítica à situação alemã e a luta pela superação de sua condição histórica, a
reivindicação de contemporaneidade, revelam duas dimensões da posição teórica de Marx
à época. De um lado, como já afirmamos, a análise de aspectos do atraso alemão é feita
tendo como horizonte países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos da América
do Norte, considerados modernos. De outra parte, Marx faz a crítica a partir da pura idéia,
de um fundamento racional. Vejamos um aspecto.
Ao falar da concepção filosófica do Estado, Marx aponta para a visão mais ideal e
profunda como aquela que realiza, na plenitude, a liberdade: “Mas, se os primeiros
filósofos do direito público derivaram o Estado dos impulsos da ambição, do instinto social
ou também da razão, não, porém, da razão da sociedade, mas da razão do indivíduo, a
visão mais ideal e mais profunda, da mais recente filosofia, o deriva da idéia do todo.”
(1987, p 236).
No artigo em que critica o Manifesto Filosófico da Escola Histórica do Direito,
de Gustav Hugo, Marx parte da razão e faz desta a norma do positivo, isto é, uma
instituição do Estado encontra na razão e em sua atividade crítica as normas de referência
para a sua validade. O século XVIII foi um século de dissolução; mas a dissolução tem ao
menos dois significados distintos: o sentido daqueles que se apóiam na razão e enfrentam a
positividade do que existe e o sentido daqueles que se apóiam no que existe e se
contrapõem à própria racionalidade. Assim, segundo Marx, Hugo se devota ao existente e,
insolente diante das idéias, mata o espírito do positivo para venerar o puro positivo em sua
condição animal.
Percebe-se, assim, que os princípios com os quais Marx exerce a atividade crítica
têm como suporte a idealidade. A realidade encontra na idéia o horizonte de seu devir.
Fazendo uma apreciação do pensamento de Marx no período, Bermudo chama a
atenção para o fato, de já na Tese doutoral, ser possível observar que Marx manifesta
certas peculiaridades que o diferenciam dos jovens-hegelianos, e que se revelam
precisamente no tratamento da relação entre filosofia e mundo. Marx entendia a filosofia
crítica e a ação prática como duas formas de oposição à realidade estabelecida. Porém, em
certos momentos, a filosofia, ao se opor ao mundo, não se esforçava tanto por entendê-lo,
mas sim, acima de tudo, por atuar praticamente sobre o mesmo. No entanto, segundo
Bermudo, para Marx, “essa atividade prática da filosofia tem ela mesma um caráter
teórico” 12 . Na mesma direção vai o raciocínio de Cornu, para quem a posição a que Marx
chegou na Tese Doutoral, que permite diferenciá-lo dos jovens-hegelianos, é que a
12
José Manuel Bermudo, El Cconcepto De Praxis En El Joven Marx, Barcelona, Península, l975, p. 42.
transformação do mundo não pode ser o resultado de uma constante oposição do espírito a
este, senão só da interação entre espírito e mundo 13 .
Segundo Bermudo, no ano de l841, em plena afirmação da crítica filosófica e da
autoconsciência, Marx já manifesta preocupações com a ação transformadora da filosofia,
ainda que concebida como o resultado da atividade do espírito: “Frente aos jovenshegelianos, que mantinham a separação fichtiana consciência-mundo em constante
oposição, Marx recorre a Hegel e a sua dialética interna, imanente ao mundo, isto é, à
história. Mas frente a Hegel, Marx entenderá o mundo como realidade em si, independente
do espírito” 14 .
Assim, contrariamente à perspectiva geral dos estudiosos de Marx, que procuram
mostrar evoluções teóricas no interior do período da Gazeta Renana e continuidades desse
período com o posterior desenvolvimento, Chasin dá destaque, acima de tudo, à ruptura
entre o período pré-marxiano, que, como vimos, compreende basicamente a Tese Doutoral
e os artigos da Gazeta Renana e o período marxiano, que tem início com o texto de
transição da Crítica de Kreuznach e os artigos dos Anais Franco-Alemães. Localizar a
ruptura com o estatuto teórico do idealismo ativo, após a Gazeta Renana, segundo Chasin,
não significa negar as diferenças ressaltadas pelos comentadores, mas é preciso entendê-las
como inquietações teóricas abstratas que revelam a fina sensibilidade humanitária de
Marx: “Nos textos redigidos para a Gazeta Renana, Marx é um adepto exímio da vertente
clássica e de origem tão remota quanto a própria filosofia_, que identifica, na política e no
Estado, a própria realização do humano e de sua racionalidade. Vertente para a qual Estado
e liberdade ou universalidade, civilização ou hominização se manifestam em
determinações recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada como predicado
intrínseco ao ser social e, nessa condição enquanto atributo eterno da sociabilidade_,
reiterada sob modos diversos que, de uma ou de outra maneira, a conduziram à plenitude
da estatização verdadeira na modernidade” 15 .
Não desconhecendo as diferenças com Hegel, em alguns escritos do período da
Gazeta Renana, importa perceber que o pensamento de Marx se sustenta em princípios
filosóficos e políticos ideais, completamente distintos dos escritos posteriores, já daqueles
dos Anais Franco-Alemães. Neste sentido destacamos a precisa observação de J. Chasin,
13
Auguste Cornu. Carlos Marx - Federico Engels: Del Idealismo al Materialismo Histórico, Buenos Aires,
Editorial Platina y Editorial Stilcofrag, 1965, p. 240.
14
Bermudo, op.. cit., p. 43.
15
Chasin, Estatuto ontológic, cit., p. 354.
para o qual trata-se do período juvenil; período que Marx partilha com os neo-hegelianos
da filosofia da ação, ou do idealismo ativo. “Numa identificação menos genérica, o vínculo
a ressaltar é com o idealismo ativo próprio dos neo-hegelianos, e aos escritos dessa fase é
que cabe, exclusivamente, numa periodização fundamentada, a designação de obra
juvenil” 16 .
Chasin destaca a referência que Marx faz, no Prefácio de 59 para a Crítica da
Economia Política, acerca da sua situação, da sua ‘fisionomia teórica’ quando no início de
1843 sai da Gazeta Renana para recolher-se ao gabinete de estudos. Condição de dúvida e
opção primeira pela revisão da filosofia de Hegel. “Desde que tivera de examinar
problemas sociais concretos, faceou os limites e viu questionada a validade de sua base
teórica primitiva. (...) Pelo testemunho, é evidente que seu professado idealismo ativo,
centrado numa filosofia da autoconsciência, saíra abalado da vivência jornalística, mas
chegou ao ‘gabinete de estudos’ sem ter vislumbrado ainda os contornos de uma nova
posição teórica” 17 . Ponto de vista claramente manifesto na carta de Marx a Ruge em
setembro de 1843, conforme veremos adiante.
A investigação dos termos da ruptura entre o período pré-marxiano e o período
marxiano constitui, por si só, temática suficiente para uma pesquisa acadêmica. Interessase aqui apontar alguns elementos conceituais que permitem apreender esta ruptura em
relação ao movimento da crítica. Movimento que, num primeiro momento, volta-se contra
os traços e dimensões da ordem social feudal alemã, tendo, por um lado, como horizonte a
situação efetiva dos países modernos e, por outro lado, a perspectiva da idealidade. Num
segundo momento e após a ruptura, Marx submete ao exercício crítico a própria condição
dos povos modernos, e o faz sem apoio no horizonte da efetividade histórica nem em
princípios filosóficos idealistas. A ‘condição dos povos modernos’ é examinada a partir do
solo da própria realidade. A situação que, no período pré-marxiano, constituía o horizonte
da crítica, agora constitui seu objeto.
A posição que situa a ruptura de Marx com o idealismo ativo nos textos
publicados nos Anais fica patente nas correspondências do período imediatamente
posterior à Gazeta Renana. Seu teor mostra que as duras críticas, principalmente à situação
política alemã, continuam tendo como horizonte filosófico os referenciais teóricos
anteriores.
16
17
Idem, ibidem, p. 350.
Idem, ibidem, p. 358.
Em março de 1843, viajando pela Holanda, Marx escreve a Ruge, afirmando
sentir vergonha nacional porque “o menor holandês, comparado com o maior dos alemães,
é um cidadão do Estado (...) O Estado é algo muito sério para converter-se num
carnaval” 18 . Outra longa carta a Ruge, em maio do mesmo ano, reafirma a veneração de
Marx tanto pela Revolução Francesa, que, segundo ele, voltou a restaurar o homem, quanto
pela comunidade humana num Estado democrático. Em relação à situação alemã, percebese um verdadeiro pessimismo. Em sua condição escrava, os alemães sequer desenvolveram
a necessidade da liberdade. “Para serem homens teriam que ser antes espirituais, homens
livres e republicanos (...) Teria que voltar a despertar no peito destes homens o sentimento
humano de si mesmos, o sentimento da liberdade. Somente este sentimento, desaparecido
do mundo com os gregos e que o cristianismo fez perder-se no vapor azul do céu, pode
voltar a converter a sociedade numa comunidade de homens projetados para fins mais
elevados, num Estado democrático” 19 .
Na carta e ancorado em parâmetros teóricos neo-hegelianos, Marx aposta numa
revolução de sofridos e pensantes, que buscam uma nova humanidade 20 .
Em setembro de 1843 -antes de mudar-se para Paris-, em carta à Ruge ao falar
dos propósitos dos Anais Franco-Alemães Marx confessa não haver dúvida quanto ao de
onde vieram, mas sim o para onde vamos. A dúvida, todavia, lhe sugere uma vantagem:
“de não antecipar dogmaticamente o mundo, mas querer encontrar o mundo novo por meio
da crítica ao velho” 21 . Vantagem e postura, segundo Marx, inversa aos procedimentos
então típicos, em que as soluções filosóficas dos enigmas do mundo mantinham uma
relação externa com o próprio mundo. A filosofia se secularizou, justamente porque a
consciência filosófica se lançou, não só exterior, mas também interiormente ao tormento da
luta.
Assim, tarefa imediata é a “crítica implacável de todo existente”, sem assustar-se
dos resultados nem fugir dos conflitos com as potências dominantes22 . Em particular, Marx
atribui à crítica o papel de ocupar-se com a existência teórica do homem. Razão pela qual
manifesta a intenção de discutir a política e a religião. Essa intenção parte de uma
convicção, a de que a razão sempre existiu, embora nem sempre de forma racional, de
18
Karl Marx, Obras Fundamentales. V.I. Marx, Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Económica,
l987, p. 441.
19
Idem, ibidem, p. 446.
20
Chasin, Estatuto ontológico, p. 359.
21
Marx, Obras Fundamentales, cit., p. 458.
22
Idem, ibidem, p. 458.
maneira que o crítico pode, pela consciência teórica e prática, desenvolver, a partir da
realidade existente, a verdadeira realidade como seu dever-ser, seu fim último 23 .
Na carta já há elementos críticos novos. Ao fazer referência ao Estado político
moderno, Marx afirma que este contém todos os postulados da razão. E mais: pressupõe a
razão como já realizada. Pressuposição que revela a contradição entre a determinação ideal
e suas premissas reais, motivo que leva Marx a buscar a verdade no social. “Partindo deste
conflito do Estado político consigo mesmo cabe, pois, desenvolver em toda parte a verdade
social” 24 . A religião indica as lutas teóricas da humanidade e o Estado político reflete as
lutas práticas. O Estado político expressa, sob o prisma público, todas as lutas,
necessidades e verdades sociais. A crítica deve, portanto, discutir a relação da política com
as lutas reais.
São justamente os artigos publicados nos Anais Franco-Alemães, que marcam o
percurso formativo de Marx. Neles ocorre a ruptura com sua forma primeira de pensar.
Neles a crítica à política e à razão autoposta tem sua base de apoio no solo da realidade. Ao
falar, no Prefácio de 59 da revisão da filosofia política de Hegel. “Minha investigação
desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não
podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado
desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas
relações materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de
‘sociedade civil’, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; a anatomia da
bürgerliche Gesellschaft (sociedade civil ou burguesa) deve ser procurada na economia
política” 25 .
Entre os estudiosos que, ao discutirem a trajetória do percurso formativo do
jovem Marx e, mesmo considerando que a tônica do referencial bibliográfico em torno, por
exemplo, das Glosas de Kreuznach, de 1843, está marcada pela “diversidade de
referenciais de avaliação e a colisão de juízos”, que deixam o manuscrito sem “uma
apreciação minimamente consensual” 26 e, portanto, problematizam o lugar dos textos do
período dos Anais, queremos dar destaque especial à leitura de José Chasin. Trata-se, para
nós, do autor brasileiro que, de forma mais enfática e clara, identifica o lugar e desenvolve
23
Idem, ibidem, p. 459.
Idem, ibidem, p. 459.
25
Karl Marx, Para a crítica da economia política, São Paulo, Abril Cultural, 1978, 129.
26
José Paulo Netto, Marxismo impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo, Cortez,
2004, p.14.
24
os desdobramentos dos escritos desta fase na trajetória formativa de Marx.
Seu ponto de vista sustenta que o testemunho do próprio Marx antes referido,
“aponta o caráter e o momento preciso da inflexão intelectual a partir da qual passa a
elaborar seu próprio pensamento. Trata-se de uma viragem ontológica que a leitura de
Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel comprova indubitavelmente, se dela o
leitor se aproximar sem preconceitos gnosiológicos” 27 . Inicia-se assim o “traçado de uma
nova posição ontológica que os textos subseqüentes - de Sobre a Questão Judaica (1843)
às Glosas Marginais ao Tratado de Adolph Wagner (1880) – confirmam, reiteram e
desenvolvem num largo e complexo processo de elaboração” 28 .
27
28
Chasin, Estatuto ontológico, cit., p.362.
Idem, ibidem, p. 362.
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