Leia a íntegra do artigo

Propaganda
1
O ACESSO À JUSTIÇA E OS JUIZADOS ESPECIAIS12
1. Notas introdutórias
O acesso à justiça é tema que há muito desperta interesse de juristas e
cientistas dos mais variados ramos do saber científico, comportando, por isso, as mais
variadas acepções, tendo passado, ao longo dos anos por grandes transformações, com
interpretações e abordagens distintas, dependendo da perspectiva e ideologia3 do
observador.4
Portanto, pode-se dizer que o conceito do acesso à justiça é suscetível a
influências de natureza política, filosófica, religiosa, sociológica, econômica e jurídica,
mas todos objetivando um maior acesso da população em geral, principalmente dos
menos favorecidos economicamente, aos mecanismos e procedimentos para realização
de uma justiça equitativa, rápida e eficaz.
Essa evolução da discussão sobre o tema do acesso à justiça ganhou corpo
com os estudos de Mauro Cappelletti, professor da Università degli Studi di Firenze e
do Instituto Universitário Europeu, catedrático da Stanford University, que realizou
1
Ricardo Luiz Nicoli é juiz de direito, Especialista e Mestre em Poder Judiciário pela FGV/RJ.
Este trabalho foi elaborado a partir da minha dissertação de mestrado, intitulada Audiência única e a
duração razoável do processo.
3
O termo ideologia, de acordo com Noberto Bobbio, tem uma gama de significados diferentes e o seu
múltiplo uso pode produzir dois tipos gerais de significados, sendo um significado fraco e outro
significado forte. “No seu significado fraco, Ideologia designa o genus, ou a species diversamente
definida, dos sistemas de crenças políticas: um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem
pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. O significado forte tem
origem no conceito de Ideologia de Marx, entendido como falsa consciência das relações de domínio
entre as classes, e se diferencia claramente do primeiro porque mantém, no próprio centro, diversamente
modificada, corrigida ou alterada pelos vários autores, na noção de falsidade: a Ideologia é uma crença
falsa. No significado fraco, Ideologia é um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual e
mistificante das crenças políticas. No significado forte, Ideologia é um conceito negativo que denota
precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política.” In: BOBBIO, Noberto;
MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmem C. Varriale [et
al]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 12ª ed., 2002, Vol.
1, p. 585. Ver também CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.
4
CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma
nova sistematização da teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 3. FERRAZ, Leslie
Shérida. Juizados Especiais Cíveis e acesso à justiça qualificado: uma análise empírica. 235 f. Tese
(Doutorado em Direito Processual) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008, p.69; BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da
realização do direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 126; CICHOCKI NETO, José.
Limitações ao acesso à justiça. Curitiba: Juruá, 2008, p. 57.
2
2
pesquisa em diferentes países acerca do acesso à justiça, denominado Projeto Florença
(Florence Project).5
Nesse trabalho foram colhidos dados empíricos com os objetivos de
identificar e conhecer os obstáculos mais frequentes ao acesso à justiça, além de
conhecer programas bem sucedidos acerca do tema. O resultado da pesquisa foi
apresentado em um relatório geral que Cappelletti publicou, juntamente com Bryan
Garth6, no final da década de 70, que posteriormente foi traduzida uma versão resumida
para o português por Ellen Gracie Northflleet.7
É certo que em diferentes períodos históricos ocorreram movimentos
perseguindo o ideário de justiça e a possibilidade de acesso à ordem jurídica,8 mas foi a
partir do surgimento dos direitos sociais, os denominados direitos de segunda9
geração,10 que eclodiu na doutrina internacional uma nova concepção do processo e a
5
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre, Fabris, 1988; GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro
Cappelletti: análise teórica desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do
processo civil brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 20; MARQUES, Alberto
Carneiro. Perspectivas do processo coletivo no movimento de universalização do acesso à justiça.
Curitiba: Juruá, 2007, p. 15-16; FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso à Justiça: da contribuição de
Mauro Cappelletti à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009; JUNQUEIRA,
Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista de Estudos Históricos, nº 18, 1996, p.
1. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/201.pdf> Acesso em: 08 abr. 2009.
6
Professor de Direito na Universidade de Bloomington (USA).
7
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre, Fabris, 1988.
8
Para um estudo aprofundado sobre o acesso à Justiça em diferentes períodos histórico ver: LIMA
FILHO, Francisco das C. Os movimentos de acesso à justiça nos diferentes períodos históricos.
Disponível em:
<htpp://www.unigran.br/revistas/jurídica/ed_anteriores/04/_artigos/03.pdf>.
Acesso em: 14 abr. 2009; CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis
e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
9
A doutrina classifica os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseados na
ordem cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos. Os de primeira geração são
os direitos e garantias que dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, surgidos
institucionalmente a partir da Magna Carta de 1215, assinada pelo rei João Sem Terra. Os de segunda
geração são os direitos sociais, econômicos e culturais, inspirados e impulsionados pela Revolução
Industrial europeia a partir do início do século XIX. Os direitos de terceira geração, chamados de direitos
de solidariedade ou fraternidade, que compreendem o direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a
outros direitos difusos, como o direito dos consumidores. Fala-se, ainda, em direitos de quarta e quinta
gerações que decorreriam dos avanços no campo da engenharia genética (quarta) e os que envolveriam a
compaixão, o cuidado e o amor por todas as formas de vida (quinta). Porém, essas novas gerações de
direitos ainda não foram reconhecidas explicitamente no ordenamento jurídico e nem há consenso na
doutrina. Fontes: MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Editora Método, 2007. p.
694-695. PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à Justiça na Constituição. São
Paulo: Ltr, 2008. p. 113-122.
10
A doutrina também classifica como dimensões, pois entende que uma etapa complementa a outra.
Quando se fala em geração, pode-se passar a ideia de que uma etapa superou a outra.
3
preocupação com um acesso à justiça que não fosse apenas um mero acesso formal ao
Judiciário.11
No Estado Liberal12 nos séculos XVIII e XIX, sob influência da filosofia
individualista dos direitos, quando se acreditava que os prêmios e as vicissitudes de
cada um dependiam do seu único desempenho - reflexo da política do laissez faire13 - e
refletiam nos procedimentos judiciais utilizados para a resolução dos conflitos, o direito
ao acesso à justiça significava apenas um direito individual e formal de propor ou
contestar uma ação.14
Naquela época prevalecia a teoria de que o direito de acesso à justiça era um
direito natural, anterior ao próprio Estado, não necessitando de uma ação deste para sua
proteção, exigindo apenas que o Estado não permitisse a aplicação da vingança
privada.15 Não havia qualquer preocupação dos órgãos estatais em garantir aos cidadãos
a proteção dos seus direitos, desprezando, consequentemente, o direito do acesso à
justiça.16
Na prática, o acesso ao judiciário somente podia ser obtido por aqueles que
pudessem suportar os seus custos e suas delongas, ou seja, o acesso era formal, mas não
11
GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica
desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 11.
12
O Estado Liberal pode ser definido como uma das formas do Estado Moderno (o Estado Social é a
outra forma), que emergiu progressivamente deste o século XIV. No sentido jurídico o Estado Liberal é
uma fase ulterior do Estado Moderno, a do “Estado de direito, fundado sobre a liberdade política (não
apenas privada) e sobre a igualdade de participação (e não apenas pré-estatal) dos cidadãos (não mais
súditos) frente ao poder, mas gerenciado pela burguesia como classes dominantes, com os instrumentos
científicos fornecidos pelo direito e pela economia na idade triunfal da Revolução Industrial” In:
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad.
Carmem C. Varriale [et al]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 12ª ed., 2002, Vol. 1, p. 425-431. Para uma melhor compreensão sobre o Estado Liberal e o
Estado Social, ver BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro. Fundação
Getúlio Vargas, 1972.
13
Laissez Faire (deixar fazer), “Palavra de ordem do liberalismo econômico, proclamando a mais
absoluta liberdade de produção e comercialização de mercadorias. O lema foi cunhado pelos fisiocratas
franceses no século XVIII, mas a política do laissez-faire foi praticada e defendida de modo radical pela
Inglaterra, que estava na vanguarda da produção industrial e necessitava de mercados para seus produtos.
Essa política opunha-se radicalmente às práticas corporativistas e mercantilistas, que impediam a
produção em larga escala e resguardavam os domínios coloniais. Com o desenvolvimento da produção
capitalista, o laissez-faire evoluiu para o liberalismo econômico, que condenava toda intervenção do
Estado na economia.” In: SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia do século XXI. Rio de Janeiro:
Record, 2005, p. 465.
14
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 9.
15
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 9.
16
PEREIRA, Guilherme Bollorini. Juizados Especiais Federais Cíveis. Questões de processo e de
procedimento no contexto do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p.16.
4
efetivo - no sentido de ser acessível a todos – e correspondia à igualdade, também
formal, e não efetiva.17
Com a transformação da sociedade e o surgimento do Estado Social,18 sob a
influência da teoria marxista,19 essa visão individualista e limitada a quem dela pudesse
usufruir, típica do liberalismo econômico,20 começa a perder força e o pensamento
dominante passou a preocupar-se mais com o coletivo do que com o individual e a
garantia de acesso à justiça passou a ser considerada como direito social fundamental
básico,21 buscando não uma igualdade formal, mas uma igualdade material que
possibilitasse a todos o acesso aos seus direitos.22
Com o reconhecimento dos direitos sociais de segunda geração, a sociedade
fez exigir uma atuação mais positiva do Estado, no sentido de garantir sua real
17
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 9-11.
18
O Estado Social é uma das formas do Estado Moderno, sendo caracterizado como uma resposta direta
às necessidades das classes subalternas emergentes que não eram atendidas pelo Estado Liberal,
obrigando uma intervenção cada vez mais forte do Estado nos campos econômicos e social com o
objetivo de proporcionar aos cidadãos padrões de vida mínimos. Fontes: BOBBIO, Noberto;
MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmem C. Varriale [et
al]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 12ª ed., 2002, Vol.
1, p. 429-430; SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record,
2005, p. 313.
19
Norberto Bobbio diz que o Marxismo é um “conjunto das idéias, dos conceitos, das teses, das teorias,
das propostas de metodologia científica e de estratégia política e, em geral, a concepção de mundo, da
vida social e política, consideradas como um corpo homogêneo de proposições até constituir uma
verdadeira e autêntica ‘doutrina’, que se podem deduzir das obras de Karl Marx e de Friedrich Engels.”
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad.
Carmem C. Varriale [et al]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 12ª ed., 2002, Vol. 1, p. 738. Paulo Sandroni, pela ótica econômica, definiu o Marxismo como
uma “fundamentação ideológica do moderno comunismo. Abrange uma filosofia e uma sociologia.
Mudou os rumos da economia política, principalmente com a obra O Capital, de Marx, que expõe a teoria
da mais valia e considera o capitalismo um modo de produção transitório, sujeito a crises econômicas
cíclicas, e que, por efeito do agravamento de suas contradições internas, deverá ceder o lugar ao modo de
produção socialista, mediante a prática revolucionária. A teoria política marxista, chamada de socialismo
científico, considera que a luta de classes é o motor da história e que o Estado é sempre um órgão a
serviço da classe dominante, cabendo à classe operária, como classe revolucionária de vanguarda, lutar
pela conquista do Estado da ditadura do proletariado.” In: SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia
do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 518.
20
O liberalismo econômico foi definido e estruturado pela doutrina de pensadores como François
Quesnay, John Stuart Mill, Adam Smith, David Ricard, Thomas Malthus, J.B. Say e F. Bastiat, que
consideravam que a economia, da mesma forma que a natureza física, é regida por leis naturais,
universais e imutáveis, cabendo ao indivíduo apenas descobri-las para melhor atuar de acordo com essa
ordem natural. Dessa forma, os comerciantes estariam livres da intervenção do Estado e da pressão de
grupos sociais e poderiam alcançar naturalmente o máximo de lucro com o mínimo de esforço. Essa
doutrina aplicou os princípios do laissez-faire no comércio internacional, ou seja, o livre comércio entre
as nações, condenando as práticas mercantilistas, as barreiras alfandegárias e protecionistas. Porém, com
o desenvolvimento do capitalismo e a formação de monopólios no final do século XIX, que geraram
concentração de renda e propriedade, seus princípios entraram em contradição, sendo necessária a
intervenção do Estado para a racionalização e a evolução da economia. Fonte: SANDRONI, Paulo.
Dicionário de Economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 486-487.
21
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 11-12.
22
PEREIRA, Guilherme Bollorini. Juizados Especiais Federais Cíveis. Questões de processo e de
procedimento no contexto do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p.16
5
efetivação.23 A partir daí surgiram vários estudos e manifestações para garantir um
maior acesso à justiça, não somente para os afortunados, mas para todas as camadas da
população.
No Brasil, segundo Eliane Junqueira,24 o tema acesso à justiça passou a ter
maior atenção a partir dos anos 80, com a publicação do trabalho produzido por Mauro
Cappelletti e Bryan Garth, embora as justificativas não fossem as mesmas dos países
desenvolvidos.25 Essa evolução da discussão sobre o tema ganhou força e o acesso à
justiça passou a representar o acesso efetivo à justiça,26 que para garantir essa
efetividade Cappelletti e Garth identificaram três obstáculos a serem transpostos para a
afirmação e reivindicação dos direitos, quais sejam: (i) custas judiciais, (ii)
possibilidades das partes e (iii) problemas especiais dos interesses difusos. 27
Sobre as (i) custas judiciais, os referidos autores afirmam que os litigantes
precisam suportar as despesas com os processos judiciais, incluindo os honorários de
advogados e peritos, que agem como uma importante barreira ao acesso à justiça,28 pois
torna muito dispendioso para o demandante propor uma ação judicial, em que na
maioria das vezes ele não tem a certeza do sucesso.29
Nos casos que envolvem causas de pequeno valor os custos podem exceder
o montante do valor em disputa, tornando a demanda completamente inviável. Outro
fator que impede o acesso à justiça é o tempo para a solução judicial, pois a delonga
23
ANNONI, Daniele. Direitos humanos & acesso à justiça no direito internacional. Curitiba: Juruá,
2008, p. 113.
24
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista de Estudos
Históricos, nº 18, 1996. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/201.pdf> Acesso em: 08
abr. 2009.
25
Para Eliane Junqueira o movimento de acesso à justiça (acess-to-justice movement) ocorrido nos
“países centrais” deu-se em razão da “expansão do welfare state e a necessidade de se tornarem efetivos
os novos direitos conquistados principalmente a partir dos anos 60 pelas ‘minorias’ étnicas e sexuais”,
enquanto no Brasil ele ocorreu em função da “necessidade de se expandirem para o conjunto da
população direitos básicos aos quais a maioria não tinha acesso tanto em função da tradição liberalindividualista do ordenamento jurídico brasileiro, como em razão da histórica marginalização sócioeconômica dos setores subalternizados e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós 64.” In:
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista de Estudos Históricos,
nº 18, 1996, p.1 Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/201.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2009.
26
Na definição de Cappelletti, “Primeiro, o sistema deve ser acessível a todos; segundo, ele deve produzir
resultados que sejam individual e socialmente justos.” In: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan.
Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 8-9.
27
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 15.
28
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 15-18.
29
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 17.
6
aumenta os custos financeiros e pressiona as partes economicamente fracas a abandonar
suas causas ou aceitar acordos por valores inferiores aos que teriam direito.30
Outra barreira seria (ii) as possibilidades das partes, expressão empregada
no sentido de que alguns litigantes possuem vantagens em relação a outros, fator de
desequilíbrio para o acesso à justiça.
As pessoas ou grupos que possuem mais recursos financeiros estão em
posição privilegiada, tanto para suportar as delongas do litígio, como para produzir
provas de maneira mais eficiente,31 como também aquelas com uma melhor ‘capacidade
jurídica’ pessoal, pois essas têm um conhecimento jurídico básico para reconhecer um
direito juridicamente exigível ou saber buscar um aconselhamento jurídico
qualificado.32
Há, ainda, relacionados às possibilidades das partes, os litigantes
‘habituais’,33 que levam vantagens sobre os litigantes ‘eventuais’, uma vez que podem
desenvolver maior experiência, planejamento, diluição de custos, estratégias de defesas,
etc., impondo outras barreiras ao acesso à justiça para aquela camada da população que
eventualmente litiga nos tribunais.34
Cappelletti e Garth ainda descrevem os (iii) problemas relacionados com os
interesses difusos como uma outra barreira ao acesso à justiça. Primeiro, porque nem
todos possuem legitimidade para buscar a tutela judicial para corrigir um interesse
coletivo, e segundo, porque na maioria das vezes o prêmio individual para buscar essa
tutela é pequeno demais, desestimulando o cidadão comum.35
Na visão desses autores, todas essas barreiras são mais pronunciadas para as
pequenas causas e para demandantes individuais e pobres, especialmente contra grandes
organizações.
A solução prática para esses problemas do acesso à justiça aconteceu, nos
países ocidentais e mais desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos, em uma
30
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 20.
31
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 21.
32
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 23-24.
33
A distinção entre litigantes habituais e eventuais está baseada na “frequência de encontros com o
sistema judicial,” ou seja, aquele que frequentemente está demandando com alguém na Justiça e aquele
que nunca ou poucas vezes esteve em juízo. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryan. Acesso à justiça.
Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 25.
34
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 25-26.
35
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 26-28.
7
sequência mais ou menos cronológica, e foi estruturada por Cappelletti e Garth em três
etapas, denominadas “ondas renovatórias”.
A primeira “onda” concentrou-se no objetivo de proporcionar assistência
jurídica gratuita para os pobres, em decorrência da constatação de que os custos com
advogados são uma barreira para o acesso à justiça.
De acordo com as pesquisas do Projeto Florença, apesar de reconhecer o
direito de acesso à justiça, os países ocidentais prestavam os serviços de assistência
judiciária de forma inadequada, geralmente por advogados particulares, sem qualquer
contraprestação, o que, em uma economia de mercado, limitava o trabalho dos bons
advogados que tendiam a dispensar mais tempo para seus trabalhos remunerados.36
A partir do início do século XX começou um programa de reformulação do
sistema de assistência judiciária pelos países ocidentais, “de modo a remunerar os
advogados mais adequadamente.”37
Na segunda “onda”, para tornar efetivo o acesso à justiça, Cappelletti e
Garth destacam o problema da representação dos interesses difusos e coletivos, que não
tinham proteção na concepção tradicional do processo civil, por ser vista apenas como
uma questão a ser resolvida entre duas partes e com interesses individuais.38
A terceira “onda” é uma concepção mais ampla de acesso à justiça,
considerando as outras “ondas” como complementares de uma série de proposições para
melhorar o acesso,39 com atuação nas instituições, pessoas e procedimentos para
processar e mesmo prevenir litígios, o que Cappelletti e Garth denominam de “um novo
enfoque de acesso à justiça”.
A primeira dessas proposições apresentadas são as alterações nos
procedimentos judiciais, com melhoria e modernização tornando-os mais acessíveis e
adequados para a resolução dos conflitos, tudo em busca da efetividade do processo.
Outras proposições seriam a mudança na estrutura judicial, com a criação de
outros tribunais e o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais no Judiciário e nas
36
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 31-32.
37
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 32-47.
38
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 49-50.
39
PEREIRA, Guilherme Bollorini. Juizados Especiais Federais Cíveis.Questões de processo e de
procedimento no contexto do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 26.
8
instituições essenciais à justiça, e modificações no direito processual, inclusive com
utilização de métodos alternativos de solução de conflitos.40
Embora os autores reconheçam os avanços da assistência judiciária gratuita
para os pobres e a representação de interesses difusos e coletivos - e nem desprezam tais
soluções - afirmam que elas não são suficientes para assegurar no nível prático o acesso
à justiça, sendo necessária atenção ao conjunto geral de instituições, recursos humanos,
técnicas e procedimentos para processar e prevenir conflitos nas sociedades modernas.
Essas tendências são marcadas pelas reformas dos procedimentos judiciais,
pela utilização de métodos alternativos de resolução de conflitos (conciliação,
arbitragem e mediação), pela criação de instituições especiais para determinados tipos
de causas de particular “importância social” e mudanças nos métodos utilizados para a
prestação de serviços jurídicos.41
Percebe-se, assim, que é nessa terceira42 “onda” que se encontram os
Juizados Especiais, por representar o acesso à justiça de forma adequada para a solução
dos conflitos de pequeno valor, de forma ágil, sem custas e sem formalismos
exacerbados.
2. As repercussões das ondas de Cappelletti no direito processual brasileiro
No Brasil, o movimento do acesso à justiça não acompanhou o mesmo
caminho das três “ondas renovatórias” dos países desenvolvidos, já que aqui elas
surgiram praticamente juntas a partir da década de 80, em decorrência de movimentos
40
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 67-90.
41
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 75-159.
42
A doutrina fala no surgimento de uma quarta onda no movimento de acesso à justiça, que surge a partir
da verificação de que a formação e a atuação adequada dos operadores do direito é condição para a
mudança do sistema de justiça e para o acesso à justiça. A tese é defendida por Kim Economides,
professor do Departamento de Direito, da Universidade de Exeter, Inglaterra, que trabalhou junto com
Mauro Cappelletti no Projeto Florença. Para o mencionado professor, essa quarta onda deve direcionar a
atenção sobre o “acesso dos cidadãos ao ensino do direito e ao ingresso nas profissões jurídicas” e “uma
vez qualificados, o acesso dos operadores do direito à justiça. Tendo vencido as barreiras para admissão
aos tribunais e as carreiras jurídicas, como o cidadão pode se assegurar de que tanto juízes quanto
advogados estejam equipados para fazer ‘justiça’.” ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do
“Movimento de Acesso à Justiça”: epistemologia versus metodologia? In: Dulce Pandolfi... [et al]. (orgs).
Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 61-76. Disponível
em: <http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/39.pdf>. Acesso em 03 fev. 2010.
9
internos no processo político e social da abertura política e pela exclusão da grande
maioria da população de direitos básicos sociais.43
Esse talvez seja o motivo pelo qual, no Relatório Geral do Projeto Florença,
Cappelletti e Garth mencionam a legislação brasileira uma única vez, quando citam a
Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), ao tratarem da representação dos interesses
difusos (segunda onda).44
Mesmo assim, no Brasil, as várias transformações legislativas e doutrinárias
do movimento de acesso à justiça podem ser identificadas com cada um desses
momentos (ou onda), principalmente sob a ótica do ordenamento processual.
2.1. A primeira onda: assistência jurídica gratuita aos necessitados
Como dito anteriormente, a primeira “onda” renovatória foi no sentido de
facilitar o acesso à justiça para a população mais carente, com a oferta de assistência
jurídica gratuita aos necessitados, superando o obstáculo econômico.
As pessoas carentes economicamente são levadas a renunciar a seus direitos
diante do alto custo do processo, representado pelo pagamento de custas, taxas e
emolumentos judiciais, bem como honorários de peritos e advogados.45
No Brasil, a primeira iniciativa para superar esse obstáculo foi a edição da
Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, que estabeleceu normas para a concessão de
assistência judiciária aos necessitados, assim considerados todos aqueles cuja situação
econômica não lhes permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado,
sem prejuízo do sustento próprio ou da própria família.46
Essa lei disciplina que a assistência judiciária compreende a isenção das
taxas judiciárias, emolumentos e custas devidos ao Estado; despesas com as publicações
dos atos oficiais; indenizações devidas às testemunhas; honorários de advogados e
43
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista de Estudos
Históricos, nº 18, 1996, p.2. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/201.pdf>. Acesso em:
08 abr. 2009.
44
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 56.
45
GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica
desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 64.
46
Art. 2º, parágrafo único, Lei nº 1.060/50.
10
peritos; despesas com a realização do exame de código genético - DNA - requisitado
pela autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade ou maternidade.47
Na verdade, desde a Constituição de 1934 (art. 113) já havia previsão do
direito e garantia de assistência judiciária aos necessitados. Na Constituição de 1937 ela
foi retirada, voltando a constar nas Constituições de 1946 (art. 141, § 35), de 1967 (art.
150, §32) e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969 (art. 153, §32).48
Entretanto, somente na Constituição de 1988 esse direito e garantia
fundamental foi aperfeiçoado, inclusive com distinção terminológica, pois, ao invés da
previsão de assistência judiciária, trouxe previsão de assistência jurídica, integral e
gratuita aos necessitados.49
A expressão jurídica tem um sentido mais amplo do que a palavra
judiciária, pois engloba a assistência judicial, isto é, o patrocínio gratuito da causa por
um advogado ou defensor cuja remuneração ficará a cargo do Estado, além da isenção
de pagamento de custas e despesas processuais, até a informação, orientação e
aconselhamento para a prática de todos os atos jurídicos, sejam judiciais ou
extrajudiciais, como a realização de atos notariais e a defesa em processos
administrativos.50
Para instrumentalizar esse direito e garantia, a Constituição de 1988 elevou
a Defensoria Pública ao status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
com autonomia funcional e administrativa, incumbida da orientação jurídica e defesa,
em todos os graus, dos necessitados.51
As atividades da Defensoria Pública da União e dos Estados foram
regulamentadas pelas Leis Complementares nº 80, de 12 de janeiro de 1994, e nº 98, de
3 de dezembro de 1999.
Destaca-se
que
embora
a
Defensoria
Pública
esteja
prevista
constitucionalmente, ela não foi implementada em todos os Estados (e nem mesmo pela
União), e em muitos dos quais já ocorreu essa implementação, elas ainda funcionam de
47
Art. 3º, Lei nº 1.060/50.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado – 11ª ed. São Paulo: Editora Método, 2007,
p.611.
49
Art. 5º inciso LXXIV da CF/88: O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos.
50
Para maiores informações sobre o tema ver também: ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!
Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2006, p. 262; GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro Cappelletti:
análise teórica desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do processo civil
brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 75; BARBOSA MOREIRA, J.C. O direito à
assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo, RePro 67/130, apud LENZA,
Pedro. Direito Constitucional Esquematizado – 11ª ed. São Paulo: Editora Método, 2007, p.612.
51
Art. 134 da CR/88.
48
11
forma precária sendo imprescindível dotá-las de condições humanas e materiais para
viabilizar o acesso à justiça daqueles desprovidos de recursos econômicos, que são a
maioria dos que integram a sociedade brasileira.52
A assistência jurídica gratuita ainda é prestada por advogados dativos
nomeados pelo Estado, pelas Procuradorias Estaduais e até pelo Ministério Público,
principalmente nas cidades interioranas onde não foram instituídas as Defensorias
Públicas. Outras organizações da sociedade civil também desempenham relevantes
serviços de assistência jurídica, com destaque para os Escritórios Modelos de diversas
Faculdades de Direito.53
2.2. A segunda onda: representação dos interesses difusos
A segunda “onda” pode ser resumida no esforço para resolver o problema
de “representação dos interesses difusos, assim chamados os interesses coletivos ou
grupais.”54
No Brasil, a legislação especificou e definiu os interesses coletivos (em
sentido amplo) em direitos difusos, coletivos (em sentido estrito) e individuais
homogêneos.
Os direitos difusos são os “transindividuais, de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”; os direitos
coletivos (em sentido estrito), os “transindividuais, de natureza indivisível de que seja
52
SOUSA, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2ª
ed., 2008, p. 47-48. O autor destaca o seguinte diagnóstico de estudo sobre a Defensoria Pública no
Brasil: “1. A estrutura da Defensoria Pública da União é pequena - até maio de 2004, haviam sido criados
111 cargos de defensores públicos da União para todo o país. A Defensoria Pública da União esta a ser
implantada lentamente de tal modo que seu número de membros é muito baixo em relação ao quadro da
defensoria estadual. De acordo com o ‘Pacto de Estado em Favor do Judiciário’, no plano federal, o
número de defensores não chega a 10% do número de unidades jurisdicionais a serem atendidas, daí que
uma das metas do pacto seja superar o descompasso entre as Defensorias Públicas da União e dos
Estados. 2. Os quadros das defensorias públicas estaduais também são reduzidos em relação às
necessidades de uma sociedade como a brasileira. A cobertura do serviço é baixa - 996 comarcas têm
serviços de Defensoria Pública, o que corresponde a 39,7% do total de comarcas existentes no país.
Apenas em 6 unidades da Federação todas as comarcas são cobertas pelos serviços prestados pela
Defensoria Pública. Acresce que os serviços da defensoria são, em regra, menos abrangentes nas unidades
da Federação com os piores indicadores sociais. Por fim, nas defensorias dos estados e do Distrito
Federal, há em média um defensor público para cada 83.222 destinatários potenciais de seus serviços.
Como parece óbvio, essas deficiências acabam por resultar na prestação de uma assistência jurídica e
judicial selectiva.” [...]. Para saber o resultado completo do referido estudo, ver: II Diagnóstico da
Defensoria Pública no Brasil. Disponível em <http://www.mj.gov.br> Acesso em: 16 abr. 2009.
53
Sobre o tema consultar: SILVA, Luiz Marlo de Barros. O acesso ilimitado à justiça através do
estágio nas faculdades de direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
54
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 49.
12
titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base”; e os direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.55
Essa segunda “onda” provocou uma mudança substancial no sistema
processual, de tradição individualista e liberal, que antes era utilizado para solucionar
conflitos individuais, entre duas partes, e passou a buscar mecanismos e institutos para
efetivação dos direitos sociais, de interesses comuns.
Como já referido anteriormente e mencionado no trabalho de Cappelletti e
Garth, o Brasil criou a Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, denominada Lei da Ação
Popular, que possibilitou a qualquer cidadão pleitear a anulação ou declaração de
nulidade de atos lesivos ao interesse público de valor econômico, artístico, estético,
histórico ou turístico.
Para José Mário Wanderley Gomes Neto56 o grande indicativo dessas
mudanças foi a alteração de conteúdo experimentada pelo instituto da legitimidade ad
causam,57 com a expansão conceitual da substituição processual.58
No Brasil, o marco dessa segunda “onda”, muito embora houvesse outras
leis específicas para a defesa de determinados direitos metaindividuais,59 foi a edição da
Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985, conhecida por Lei da Ação Civil Pública, que
disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meioambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico
e paisagístico.
A referida lei, que tem sua matriz na class action60 americana, atribuiu
legitimidade para propor ação ao Ministério Público, à Defensoria Pública,61 à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios; autarquia, empresa pública, fundação
55
Art. 81, parágrafo único, incisos I, II e III, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica
desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 83.
57
Legitimatio ad causam: “Legitimação para a causa que é uma das condições da ação, consistente na
pertinência subjetiva da ação, pois esta só pode ser proposta por quem tiver a titularidade do interesse
subordinante, ou prevalente, da pretensão, em face daquele cujo interesse, de consequência, esteja
subordinado ao do autor (Alfredo Buzaid). Trata-se, como diz José Frederico Marques, da legitimação
para agir judicialmente como autor ou réu, ou melhor, da titularidade do direito de ação.” In: DINIZ,
Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2005, vol. 3, p. 89.
58
Substituição processual é o “ato pelo qual uma pessoa, nas hipóteses admitidas legalmente, litiga em
juízo em nome próprio em defesa de direito alheio”. (Waldemar Mariz de Oliveira) In: DINIZ, Maria
Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2005, vol. 4, p. 545.
59
Lei nº 4.717/65 da Ação Popular; Lei nº 6.938/81 do Meio Ambiente.
60
“Class Action: Ação Coletiva. Nos EUA, é a prática processual que consiste em agrupar grande número
de pessoas que têm o mesmo interesse no litígio, para ingressarem em juízo com uma só ação coletiva,
permitindo o acesso a litigante economicamente fraco e o desafogamento do Judiciário.” In: DINIZ,
Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2005, vol. 1, p. 709.
61
Incluída pela Lei nº 11.448, de 15 de Janeiro de 2007.
56
13
ou sociedade de economia mista ou associações, constituídas há pelo menos um ano e
que incluam entre as suas finalidades institucionais, proteção ao meio ambiente, ao
consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico.62
A Lei nº 9.494,63 de 10 de setembro de 1997, mudou a redação do art. 16 da
Lei da Ação Civil Pública limitando a coisa julgada à competência territorial do
magistrado prolator da decisão, ferindo a principal filosofia da lei, que é atuar de forma
coletiva, resolvendo com uma única decisão uniforme questões de um número
indeterminado de jurisdicionados.
Essa alteração tem o efeito de fazer multiplicar as ações individuais nos
juízos, quando tudo poderia ser resolvido em uma única sentença.
Com o advento da Constituição de 1988 fora instituído o mandado de
segurança coletivo,64 para proteger direito líquido e certo, quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições do Poder Público.
O mandado de segurança coletivo visa à defesa dos direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos, permitindo que pessoas jurídicas defendam o
interesse de seus membros ou associados, ou ainda da sociedade em geral, como no
caso dos partidos políticos.65
Outra inovação da Constituição de 1988 foi prever o mandado de
injunção,66 que será concedido quando a falta de norma regulamentadora torne inviável
o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania.
62
Da mesma forma que o mandado de
Art. 5º da Lei nº 7.347/85.
Para Nelson Nery Júnior, a redação dada pela Lei nº 9.494/97 é inconstitucional e ineficaz.
“Inconstitucional por ferir os princípios do direito de ação (CF 5º, XXXV), da razoabilidade e da
proporcionalidade e porque o Presidente da República a editou, por meio de medida provisória, sem que
houvesse autorização constitucional para tanto, pois não havia urgência (o texto anterior vigorava há doze
anos, sem oposição ou impugnação), nem relevância, requisitos exigidos pela CF 62 caput para que o
Presidente da República possa, em caráter absolutamente excepcional, legislar por MedProv. Ineficaz
porque a alteração ficou capenga, já que incide o CDC 103 nas ações coletivas ajuizadas com fundamento
na LACP, por força do LACP 21 e CDC 90. Para que tivesse eficácia, deveria ter havido alteração da
LACP 16 e do CDC 103. De conseqüência, não há limitação territorial para a eficácia erga omnes da
decisão proferida em ação coletiva, quer esteja fundada na LACP, quer no CDC.” In: NERY JÚNIOR,
Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado: e legislação
extravagante. São Paulo: Editora dos Tribunais, 7ª ed., rev. e ampl., 2003, p. 1349; No mesmo sentido:
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5ª ed. rev. atual. e ampl., 2006, p. 746, nota 7 e 748-749;
GRINOVER, Ada Pellegrini...[et al]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos
autores do anteprojeto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 848-851.
64
Art. 5º, inciso LXX, CR/88.
65
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas – 17ª ed., 2005, p. 147.
66
Art. 5º, inciso LXXI, CR/88.
63
14
segurança, o mandado de injunção poderá ser coletivo, sendo legitimadas, por analogia,
as associações de classe devidamente constituídas, conforme já reconheceu o Supremo
Tribunal Federal.67
Na década de 90 ainda surgiram o Estatuto da Criança e do Adolescente68 e
o Código de Defesa do Consumidor,69que também objetivam a proteção judicial dos
interesses individuais, difusos e coletivos.
Essas inovações legislativas destacam-se por propiciar outras alternativas às
instituições públicas tradicionais na defesa dos direitos e interesses metaindividuais,
principalmente com a legitimação de associações, sindicatos, partidos políticos ou
grupos privados.70
Todavia, Cappelletti e Garth advertem sobre a necessidade de fortalecer
esses grupos privados para a defesa dos seus interesses difusos, já que, ao contrário dos
sindicatos de trabalhadores que são geralmente bem organizados, estruturados e
dispõem de know how na defesa dos direitos coletivos de seus associados, outras
organizações privadas ainda não conseguiram tais condições, inviabilizando uma
representação judicial adequada.71
Essas deficiências podem levar as associações a exercerem de forma muito
precária suas funções na defesa judicial de seus filiados, ou mesmo uma sobrecarga de
trabalho dos membros do Ministério Público.72
Pesquisas realizadas até o ano de 1996 por pesquisadores da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro - UERJ -, com o objetivo de saber se a lei que regulou a ação
civil pública estava atendendo às expectativas, apresentadas na obra do professor Paulo
Cezar Pinheiro Carneiro,73 indicam que 60,92% das ações civis públicas protocoladas
67
STF - Ementa: Constitucional. Mandado de Injunção Coletivo. Sindicato: Legitimidade Ativa.
Participação nos lucros: C.F., art. 7º, XI. I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite
legitimidade ativa ad causam aos sindicatos para a instauração, em favor de seus membros ou associados,
do mandado de injunção coletivo. II. - Precedentes: MMII 20, 73, 342, 361 e 363. III. - Participação nos
lucros da empresa: C.F., art . 7º, XI: mandado de injunção prejudicado em face da superveniência de
medida provisória disciplinando o art. 7º, XI, da C.F. MI 102 / PE Relator: Min. MARCO AURÉLIO.
Relator p/ Acórdão: Min. CARLOS VELLOSO Julgamento: 12/02/1998. Órgão Julgador: Tribunal
Pleno. Publicação DJ 25-10-2002 PP-00025.
68
Lei nº 8.069/90.
69
Lei nº 8.078/90.
70
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 59.
71
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 59.
72
GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à Justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica
desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 91.
73
CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública:
uma nova sistematização da teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 205-210.
15
na comarca da capital do Rio de Janeiro foram propostas pelo Ministério Público
Estadual.
Outras 6,9% das ações foram ajuizadas pela Defensoria Pública, e 18,39%,
pelo município do Rio de Janeiro. Ou seja, quase 87% das ações civis públicas são
protocoladas pelos órgãos públicos. As associações respondem por apenas 10,34%.
Esses dados reforçam as preocupações de Cappelletti e Garth no sentido da
necessidade de fortalecer as associações para que possam defender em juízo o direito de
seus associados. Na prática, elas se limitam a apresentar denúncia ao Ministério Público
para que esse órgão promova individualmente a ação.74
2.3 A terceira onda: uma concepção mais ampla, um novo enfoque de acesso à
justiça
Mesmo com os progressos alcançados pelas “ondas” anteriores, por
intermédio da ampliação de acesso pela assistência jurídica aos necessitados e a busca
de mecanismos para a representação de interesses metaindividuais, que beneficiaram
não apenas os economicamente fracos, mas a sociedade em geral, essas duas “ondas”
contêm limitações, uma vez que cuidaram basicamente do direito de representação
judicial de interesses antes não representados ou mal representados.75
Por essa razão, a terceira “onda” tem um alcance muito mais amplo, que
inclui a advocacia pública e privada, judicial ou extrajudicial e o conjunto geral de
instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e prevenir
litígios. O método da terceira “onda” não exclui o das duas primeiras, mas as
complementam.76
Nas duas “ondas” anteriores, as limitações do acesso à justiça eram de
ordem econômica e organizacional, enquanto na terceira “onda” um dos obstáculos a ser
transposto será a estrutura do sistema processual, com a criação de novos mecanismos
74
CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública:
uma nova sistematização da teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 211-212.
75
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 67.
76
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 67.
16
para defesa efetiva dos direitos sociais, adaptando o processo ao tipo de litígio, já que o
processo tradicional pode não ser o melhor caminho.77
Outra mudança necessária é a alteração na estrutura organizacional do Poder
Judiciário, com a criação de outras arenas judiciais e utilização de métodos alternativos
de resolução de conflitos.78
No Brasil, destacam-se a criação dos Juizados de Pequenas Causas, em
1984,79 inspirados nas Small Claims Court80 da cidade de Nova Iorque, e que
posteriormente, com a promulgação da Constituição da República de 1988,81 passaram a
fazer parte da estrutura do Poder Judiciário e foram denominados Juizados Especiais,
disciplinados pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Cappelletti e Garth afirmam que os Juizados Especiais de certa forma
resumem o movimento de acesso à justiça, porquanto atendem ao desafio de criar
órgãos eficazes, informais, acessíveis e de baixo custo para a defesa dos direitos do
cidadão comum, principalmente em confronto com adversários poderosos e
experientes.82
Os Juizados Especiais por sua própria natureza já são especializados,
salientam Cappelletti e Garth, “uma vez que lidam com uma parcela relativamente
estreita no que diz respeito à legitimidade e à matéria”.83
Ainda podemos mencionar a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, que
dispõe sobre a arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais
disponíveis e está dentro das reformas e alterações previstas nessa terceira “onda”.
Atualmente tramita no Congresso Nacional projeto de lei para instituir a mediação
judicial e extrajudicial.84
Com a Emenda Constitucional nº 45 – conhecida por Reforma do Judiciário
- de 8 de dezembro de 2004, foi permitida a descentralização das atividades dos
77
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 69-71.
78
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 69-73.
79
Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984.
80
CARNEIRO, João Geraldo Piquet. Análise da estruturação e do funcionamento do Juizado de Pequenas
Causas da cidade de Nova Iorque. In: WATANABE, Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas
Causas. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 23-36.
81
Art. 98, inciso I, CR/88.
82
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 113.
83
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 113.
84
Projeto de Lei nº 4827/1998 (Câmara dos Deputados) e Projeto de Lei nº 94/2002 (Senado Federal).
17
Tribunais de Justiça dos Estados, com a constituição de Câmaras regionais, “a fim de
assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.”85
Também com essa Emenda Constitucional foi institucionalizada a Justiça
Itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional,86
embora essa previsão constasse implicitamente na Lei dos Juizados Especiais87 e muitos
Estados já se utilizassem desse instituto por meio de atos administrativos baixados pela
presidência dos Tribunais.88
3. O acesso à justiça: direito e garantia
A Constituição da República refere-se aos direitos e garantias
fundamentais, em regra, como expressões sinônimas. A doutrina, no entanto, faz
distinção entre os dois, cuja origem está doutrina alemã, ao utilizar o termo direito para
referir-se ao direito material, e garantias para reportar-se aos institutos jurídicospolíticos estatais criados para resguardar tais direitos.89
Um dos primeiros a fazer essa diferenciação no direito brasileiro foi Rui
Barbosa,90 ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem
existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as
que, em defesa dos direitos, limitam o poder.91
Dessa forma, as disposições declaratórias instituem os direitos; as
assecuratórias instituem as garantias, sendo muito comum juntar-se na mesma
disposição constitucional ou legal a declaração do direito com a fixação da garantia.92
Em resumo, “os direitos são bens e vantagens prescritos na Constituição,
enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos
aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados.”93
85
Art. 125, § 6º da CR/88.
Arts. 107, §, 2º, 115, § 1ºe 125, § 7º da CR/88.
87
Lei nº 9.099/95, art. 94 - “Os serviços de cartório poderão ser prestados, e as audiências realizadas fora
da sede da Comarca, em bairros ou cidades a ela pertencentes, ocupando instalações de prédios públicos,
de acordo com audiências previamente anunciadas.”
88
AZKOUL, Marco Antônio. Justiça Itinerante. 215 f. Tese (Doutorado em Direito Constitucional) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, 2006, p. 124. Disponível em:
<http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2326>. Acesso em: 02 mai. 2009.
89
ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 154.
90
BARBOSA, Rui. A Constituição e os actos inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a
justiça federal. Rio de Janeiro: Companhia Impressora, 1893, p. 187. BDJur, Brasília, DF. Disponível
em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/21512>. Acesso em: 21 dez. 2009.
91
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 28.
92
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 28.
86
18
Nesse entendimento, o acesso à justiça apresenta-se ao mesmo tempo como
um direito e uma garantia fundamental. Como direito, por estar previsto na
Constituição, dentre outros, o direito de pleitear a tutela jurisdicional, de assistência
jurídica aos necessitados, do devido processo legal, da duração razoável do processo,
etc. Como garantia, para assegurar a fruição desses direitos (e dos princípios
fundamentais), por meio de uma prestação jurisdicional acessível a todos, adequada, em
tempo hábil e eficaz.94
4. O acesso à justiça: direito natural, humano e fundamental
Também as expressões direitos naturais, direitos humanos e direitos
fundamentais são utilizadas,95 com certa constância, como sinônimas,96 e até mesmo
como gênero e espécies uma das outras, embora a doutrina faça distinções conceituais,
ainda que entre elas ocorram ligações significativas.
Antes de qualquer consideração, é necessário esclarecer que não é objetivo
deste trabalho formular a conceituação sobre essas expressões, trazer as suas origens e
evoluções históricas ou fazer um estudo aprofundado sobre suas distinções.97 A
intenção é apenas fazer uma ligação entre o acesso à justiça e esses direitos, reforçando,
assim, a importância do tema para a cidadania e consolidação da democracia.
93
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2007, p. 695.
CICHOCKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. Curitiba: Juruá, 2008, p. 188.
95
ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 36; BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social
no plano da realização do direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 116.
96
Existem outras expressões com significados semelhantes, como direitos humanos fundamentais,
direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos morais, direitos do cidadão,
etc. No entanto, por entender que essas expressões são apenas variações terminológicas derivadas das
expressões apresentadas, estando já abrangidas pelas suas conceituações, fiz a opção de trazer os
conceitos de apenas das três expressões mais comuns.
97
Para um estudo mais detalhado sobre os temas ver: ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso
à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008, p. 30-38; BEZERRA, Paulo Cezar
Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2ª ed. Revista. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 113-126. DORNELLES, João Ricardo W. O que são Direitos Humanos.
São Paulo: Brasiliense, 2006; COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos
humanos. São Paulo: Saraiva, 2ª ed. 2001; BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 5ª ed., 2005; VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos
Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006.
94
19
Os direitos naturais são inerentes à natureza do ser humano e anteriores a
qualquer outro direito. É um direito universal e válido para todos os povos e em todos
os tempos.98 Alguns doutrinadores consideram essa terminologia ultrapassada.99
Direitos humanos é uma expressão com significado mais amplo, conforme
comenta Danielle Annoni:
[...] apontando para todos os direitos do ser humano, quer tenham sido
eles positivados ou não. Em regra, guarda relação com o Direito
Internacional, por referir-se às posições jurídicas que reconhecem o ser
humano como sujeito de direitos, de direitos humanos, sem sua
vinculação com o reconhecimento desses mesmos direitos pela ordem
constitucional ou infraconstitucional de determinado Estado. Aspiram,
pois, a uma validade universal, para todos os povos e tempos.100
A expressão direitos humanos, ainda segundo Danielle Annoni, pode sofrer
diferenças conceituais em decorrência da sua contextualização histórica, cultural e
jurídica de determinado povo. Entretanto, uma conceituação mais moderna entende-o
como “aqueles essenciais ao desenvolvimento digno da pessoa humana”, pois remete “à
proteção da integridade física e moral”.101
Os direitos humanos foram positivados ao longo dos tempos em vários
Tratados Internacionais.102 No Brasil, a Constituição brasileira disciplina no parágrafo
3º do artigo 5º que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados pelo Congresso Nacional serão equivalentes às emendas
constitucionais, ou seja, a própria Constituição atribuiu hierarquia constitucional às
convenções internacionais em matéria de direitos humanos, não podendo ser
desrespeitada por legislação infraconstitucional.103
98
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 116.
99
Para maiores detalhes ver BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 21-82.
100
ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 36.
101
ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 34-35.
102 Declaração de Direitos de Virgínia (1776); Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789);
Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948); Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem (OEA, 1948); Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto
de San José da Costa Rica, etc.
103
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ementa: "Habeas corpus" – Prisão civil – Depositário Judicial A Questão da infidelidade depositária – Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 7º, nº 7) –
Hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos – Pedido deferido.
Ilegitimidade jurídica da decretação da prisão civil do depositário infiel. HC 90450 / MG - Minas Gerais Habeas Corpus: Relator(a): Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 23/09/2008. Órgão Julgador:
Segunda Turma – Publicação: NDJe-025 Divulg 05-02-2009 Public 06-02-2009. Ement Vol-02347-02
PP-00354. Disponível em: <http://www.stf.jus.br.>. Acesso em: 05 mai. 2009.
20
Os direitos fundamentais (stricto sensu), por sua vez, são os direitos do
homem jurídico, ou seja, aqueles direitos reconhecidos e positivados pelo direito
constitucional de determinado Estado.104
A Constituição da República de 1988 concretizou o direito de acesso à
justiça como direito fundamental por meio de vários incisos contidos no artigo 5º, do
Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, tais quais:
XXXV – a lei não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes;
LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos
que comprovarem insuficiência de recursos.
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam
a celeridade de sua tramitação;
Paulo Cezar dos Santos Bezerra105 argumenta que os direitos fundamentais
foram influenciados pelos direitos naturais, pois as normas que regem o direito à vida, à
integridade física, à liberdade e outras mais, são, ao mesmo tempo, direito natural,
porque impostas e válidas para todos, sem necessidade de sua positivação pelo
legislador, e direito fundamental, já que consagradas em diversas Constituições.
O direito à justiça, como o direito à vida ou à liberdade, é um direito que
antecede o Estado, portanto à lei e ao processo.106 O acesso à Justiça não pode ser visto
apenas em seu aspecto formal, ou processual, de possibilidade de acesso ao Judiciário.
A justiça sempre foi perseguida pela humanidade. Todo e qualquer relato histórico das
104
ANNONI, Daniele. O Direito Humano de Acesso à Justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 36.
105
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 120.
106
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122.
21
civilizações demonstra a sua busca pela justiça107. A luta pela justiça é inerente à
natureza humana. Logo, o direito de acesso à justiça é um direito natural.108
Nesse sentido, posiciona-se Paulo Cezar Santos Bezerra,109 afirmando que:
Quando se pensa em justiça, não se está apenas querendo observar o
aspecto formal da justiça, nem seu caráter processual. Argumenta-se
com um valor que antecede a lei e o processo. O acesso à justiça pois,
nessa perspectiva, é um direito natural, um valor inerente ao homem,
por sua própria natureza.
Por outro lado, o direito de acesso à justiça é um direito formal que garante
a qualquer pessoa propor e contestar uma ação. É um direito que nasce junto com o
Estado. Ele está efetivado pela Constituição e pela legislação infraconstitucional.
Assim, nesse sentido, o acesso à justiça é um direito fundamental.110
Na verdade, os direitos somente se realizam se for possível reclamá-los
perante os tribunais, ou seja, “o direito de acesso à justiça é o direito sem o qual nenhum
dos demais se concretiza. Assim, a questão do acesso à justiça é primordial para a
efetivação de todos os direitos.”111
Com isso, o direito de acesso à justiça passou a ser reconhecido como um
dos direito mais fundamentais do homem,112 no sentido de que torna possível a
materialização de qualquer outro direito,113 pois a incapacidade do Estado de garantir
sua efetivação, pela ausência de mecanismos de materialização dos direitos
reconhecidos, corresponde à negação do próprio Estado e principalmente da
democracia.114
107
A história da civilização contada pela doutrina cristã relata que Deus fez justiça ao aplicar uma pena
em Caim por ter matado seu irmão Abel. Fonte: Bíblia Sagrada, Gênesis 5, 9.
108
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122.
109
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122.
110
BEZERRA, Paulo Cezar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do
direito. – 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 122.
111
SADEK, Maria Tereza A. Efetividade de direitos e acesso à Justiça. In: Reforma do judiciário.
BOTTINI Pierpaolo, RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (Coords). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 274.
112
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 12.
113
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça. In: FARIA, José
Eduardo (org.) Direito e Justiça: A função social do judiciário. São Paulo: Editora Ática, 1989, p. 45.
114
ANNONI, Daniele. Direitos humanos & acesso à justiça no direito internacional. Curitiba: Juruá,
2003, p. 114.
22
Cappelletti e Garth identificam o direito de acesso à justiça como um direito
humano e também um direito fundamental:
De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente
reconhecido como sendo de importância capital entre os novos
direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é
destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva
reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o
requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar os direitos de todos.115 (sem grifos no original)
Parece acertada a conclusão dos autores, pois como os direitos humanos são
um princípio geral do Direito Internacional e estão codificados em vários tratados e
declarações internacionais que expressamente tratam do acesso à justiça (ver item 1.4),
este também é considerado um direito humano.
Em reforço, Ronnie Preuss Duarte, com apoio no ordenamento jurídico
Português, sustenta que a base fundamental do direito de acesso à justiça é o princípio
da dignidade da pessoa humana (elemento essencial dos direitos humanos), já que este
princípio somente pode ser protegido e garantido enquanto for assegurada ao cidadão a
possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para tutelar seus direitos, principalmente
aqueles que gozam de dignidade constitucional.
Parece-nos extreme de quaisquer dúvidas que o direito de acesso a
justiça (onde está compreendido, portanto, o direito de acesso aos
tribunais e ao justo processo) não só tem como base jusfundamental a
dignidade da pessoa humana, mas que ele é dotado de uma relevância
qualificada, à exata medida que assegura a própria realização dos
demais direitos fundamentais. À mingua de tal garantia, os direitos e
interesses subjetivos (todos eles, frise-se) quedam carentes de
qualquer condição de praticabilidade, tornando-se meras
proclamações formais, completamente esvaziadas de conteúdo.116
(sem grifos no original)
115
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 11-12.
116
DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais.
Coimbra. Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 83-87.
23
Em consequência de todo esse acoplamento entre os conceitos apresentados
pela doutrina, pode-se deduzir que o direito de acesso à justiça é, ao mesmo tempo, um
direito natural, humano e fundamental.
5. Pactos internacionais sobre o acesso à justiça
A Declaração Universal dos Direitos do Homem das Organizações das
Nações Unidas (ONU), de 1948, sem dúvida é o diploma internacional que mais se
destaca na importância dos direitos fundamentais (e humanos).
No plano normativo essa Declaração impulsionou o processo de
generalização da proteção internacional dos direitos humanos, resgatando o ser humano
como sujeito de Direito Internacional, motivando a criação de vários outros mecanismos
e sistemas de proteção, sendo seus princípios hoje considerados princípios gerais do
Direito no que se refere à matéria.117
O artigo 8º da referida Declaração da ONU estabelece que “Todo o homem
tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos
que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou
pela lei.”118
Já o artigo 10 prescreve que “Todo o homem tem direito, em plena
igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e
imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele”.119
Da simples leitura desses preceitos pode-se extrair de imediato as garantias
de (i) acesso à justiça; (ii) gratuidade nesse acesso; (iii) efetividade; (iv) juiz natural e
imparcial; (v) publicidade e (vi) contraditório.120
Ronnie Preuss Duarte faz uma ressalva importante ao observar que o
assinalado no artigo 8º pode parecer, inicialmente, restringir o acesso à justiça apenas
contra violações de direitos fundamentais, no entanto:
117
ANNONI, Danielle. O direito humano de acesso à justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 93.
118
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm> . Acesso em: 06 mai.
2009.
119
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm> . Acesso em: 06 mai.
2009.
120
DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais.
Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 59.
24
Se hoje, sobretudo nos países em que se consagra uma ‘cláusula
aberta’ dos direitos fundamentais (a exemplo de Portugal, Espanha e
Brasil), há consenso quanto à dupla dimensão, respectivamente formal
e material dos direitos fundamentais, tal entendimento não era
existente em 1948, época da proclamação da DUDH121 . Assim, por
‘direitos fundamentais reconhecidos por lei’, dicção do já referido
dispositivo, deve entender-se ‘direitos subjetivos do cidadão’
afastando-se, por tal razão, uma postura interpretativa de
características limitadoras [...].122
Na Comunidade Europeia, sob a influência da Declaração Universal da
ONU, decidiu-se instituir um sistema próprio para proteção dos direitos humanos do
cidadão europeu, que resultou na Convenção Europeia de Direitos Humanos, assinada
em Roma, no ano de 1950. Essa Convenção influenciou o direito interno dos Estados
membros, que aos poucos emendaram suas Constituições para incluir os direitos
proclamados pela Convenção.123
No artigo 6º da Convenção Europeia está previsto que:124
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada,
equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal
independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer
sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil,
quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal
dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala
de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a
totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da
ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática,
quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das
partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente
necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a
publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente
enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de
forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele
formulada;
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua
defesa;
121
DUDH significa Declaração Universal dos Direitos Humanos.
DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais.
Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 59-60.
123
ANNONI, Danielle. O direito humano de acesso à justiça no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2008, p. 95.
124
Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convtratados-04-11-950-ets-5.html> . Acesso em: 06 mai. 2009.
122
25
c) Defender se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua
escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser
assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses
da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a
convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas
condições que as testemunhas de acusação;
e) Fazer se (sic) assistir gratuitamente por intérprete, se não
compreender ou não falar a língua usada no processo. (sem grifos no
original)
Esse artigo é complementado pelo artigo 13º:125
Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente
Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma
instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por
pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais. (sem grifos
no original)
De acordo com esses dispositivos, qualquer pessoa tem direito de (i) acesso
aos tribunais; (ii) julgamento em prazo razoável; (iii) publicidade; (iv) juiz natural e
imparcial; (v) ampla defesa e (v) assistência jurídica gratuita para garantir acesso efetivo
à justiça.126
Além dos mencionados dispositivos, outros ainda informam o direito de
acesso à justiça, como por exemplo, o artigo 7º, princípio da legalidade; artigo 34º,
direito à petição individual; artigo 40º, direito à audiência pública e acesso aos
documentos; artigo 45º, direito à sentença fundamentada.127
Também sob a influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU, a Organização dos Estados Americanos - OEA -, em 1969, instituiu a Convenção
Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.
Essa Convenção apresenta diversos dispositivos que indicam ser
constituidores de direitos e garantias que respaldam o acesso à justiça, como os que
garantem a qualquer pessoa impetrar habeas corpus, ainda que sem formação técnicojurídica (art. 7º, número 6); prestação jurisdicional em prazo razoável, e por juiz natural
125
Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convtratados-04-11-950-ets-5.html> . Acesso em: 06 mai. 2009.
126
DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais.
Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 62.
127
Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convtratados-04-11-950-ets-5.html> . Acesso em: 06 mai. 2009.
26
e imparcial; devido processo legal; assistência jurídica gratuita; duplo grau de
jurisdição, etc. (art. 8º).128
Também merece referência a Convenção de Haia sobre o Acesso
Internacional à Justiça, de 25 de outubro de 1980, à qual o Brasil não está filiada, que
regula assistência jurídica internacional entre os Estados Contratantes para os processos
judiciais em matéria civil e comercial.
O direito de acesso à justiça pode originar-se de outras normas
internacionais que contenham disposições referentes ao processo judicial, em particular,
e à justiça de um modo geral.
128
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente
fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da
acusação ou das acusações formuladas contra ela.
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra
autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável
ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que
este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou
a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de
ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este
decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode
ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.
7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e
obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda
ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de
comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não,
segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do
prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como
testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo
pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>.
Acesso em: 06 mai. 2009.
27
No Brasil, por força do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição de 1988, os
direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes de tratados
internacionais em que o Brasil seja parte,129 como no caso da Declaração da ONU e do
Pacto de San José da Costa Rica.
6. Efetividade do direito de acesso à justiça e os Juizados Especiais
Quando se fala em acesso à justiça vem logo a ideia do ingresso facilitado
ao Judiciário. Essa concepção está restrita ao simples acesso ao Judiciário, como se
fosse um facilitador do direito de petição130 perante os órgãos judiciais.
Entretanto, a concepção moderna do termo acesso à justiça tem uma
dimensão muito mais ampla, no sentido de possibilitar aos cidadãos um acesso efetivo,
moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de
todos.131
Para o professor Kazuo Watanabe a questão do acesso à justiça não pode ser
estudada apenas pela perspectiva de acesso aos órgãos judiciais. “Não se trata apenas de
possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à
ordem jurídica justa.”132
Segundo o referido autor, são dados elementares desse direito à ordem
jurídica justa: (1) direito à informação; (2) direito de acesso à justiça adequadamente
organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o
objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos
instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à
remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à justiça com tais
características.133
129
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5
de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nºs 1/92 a 56/2007 e pelas
Emendas Constitucionais de Revisão nºs 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições
Técnicas, 2008.
130
Art. 5º, inciso XXXIV, letra “a”, CR/88.
131
CAPPELLETTI, Mauro; Garth, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre, Fabris, 1988, p. 12.
132
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: PELLEGRINI, Ada Grinover;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e Processo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.
133
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: PELLEGRINI, Ada Grinover;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e Processo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 135.
28
Para efetivar esse direito, ensina Watanabe, é preciso uma nova postura
mental, devendo pensar a ordem jurídica e as instituições pela perspectiva do
destinatário da justiça, que é o povo, e não do Estado, de modo que o problema do
acesso traz à tona não apenas um programa de reforma, mas também um método de
pensamento.134
Hoje, lamentavelmente, a perspectiva que prevalece é a do Estado,
quando não do ocupante temporário do poder, pois, com bem
ressaltam os cientistas políticos, o direito vem sendo utilizado como
instrumento de governo para realização de metas e projetos
econômicos. A ética que predomina é da eficiência técnica, e não da
135
equidade e do bem-estar da coletividade.
Cappelletti e Garth apontam que a efetividade perfeita do direito de acesso à
justiça poderia ser expressa como a completa ‘igualdade de armas’, sendo o resultado de
uma demanda judicial dependente apenas dos méritos jurídicos das partes, sem qualquer
influência de variáveis externas136 ao Direito, mas que, no entanto, afetam a afirmação e
reivindicação dos direitos.137
Porém, segundo os mesmos autores, como essa perfeita igualdade é utópica,
já que as diferenças não podem ser completamente erradicadas, a questão é saber
quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça podem ser atacados.138
Como já foi abordado alhures, Cappelletti e Garth identificaram esses
obstáculos nas (i) custas judiciais, (ii) possibilidades das partes e (iii) problemas
especiais dos interesses difusos. Esses três elementos que obstam o acesso à justiça
estão relacionados com fatores econômicos, sociais e culturais.139
134
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: PELLEGRINI, Ada Grinover;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e Processo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.
135
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: PELLEGRINI, Ada Grinover;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e Processo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.
136
José Cichocki Neto identifica dois grandes polos problemáticos e limitadores ao acesso à Justiça: um
de natureza exoprocessual, referente a fatores sociais, políticos e econômicos, bem como ao método de
interpretação do direito e outro de natureza endoprocessual, constituído por limitações decorrentes da
instauração e desenvolvimento da própria relação processual. In: CICHOCKI NETO, José. Limitações ao
acesso à justiça. Curitiba: Juruá, 2008, p. 188.
137
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 15.
138
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 15.
139
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995, p. 168.
29
Os obstáculos econômicos verificam-se pelo elevado custo do processo, já
que a “resolução formal de conflitos é muito dispendiosa (...) na maior parte das
sociedades modernas”.140 No Brasil esse custo é formado pelas despesas com as custas
iniciais, citações, intimações, publicação de editais, perícias, honorários advocatícios,
preparo para recurso, etc.
Cappelletti e Garth revelam que em determinados países os custos de uma
demanda eram muito elevados e que a relação entre o valor da causa e o custo do
processo aumentava à medida que baixava o valor da causa.
A esse fato acresce-se o tempo empregado para resolução do conflito, que é
um adicional no custo do processo para as partes, principalmente o cidadão mais fraco
economicamente,
pressionando-o
a
abandonar
a
causa
ou
aceitar
acordos
desfavoráveis.141
No Brasil, relatório divulgado pela Secretaria de Reforma do Judiciário do
Ministério da Justiça, denominado Judiciário e Economia, citando dados coletados pelo
Ministério da Fazenda142 junto a instituições financeiras, demonstra que as despesas
com o processo (custas, honorários, etc.) e a demora na resolução dos conflitos em
grande parte das vezes desestimula a propositura de uma ação judicial, com efeitos
negativos nos contratos de crédito e investimentos.
[...] se o cidadão lesado recorrer à Justiça brasileira para ver garantido
seus direitos, perderia no processo entre 43,2% e 17% do valor da causa
– no menor e maior valor do contrato, respectivamente – pela
modalidade extrajudicial, que é mais simples e mais rápida (de até 1
ano em se considerando que não sejam interpostos embargos à
execução). O rito processual mais complexo pode durar até 8 anos entre
as fases de conhecimento, de liquidação e determinação do valor e
execução da sentença. Se o processo tiver curso até o fim, para valores
até R$ 500,00, verifica-se que o custo é superior ao valor da causa, o
que inviabiliza o uso do serviço judicial. Mesmo para o maior valor de
contrato considerado no estudo, de R$ 50 mil, quase 76% desse valor se
perderia ao longo do processo judicial, o que explica o porquê do
desestímulo do cidadão de recorrer ao serviço jurisdicional. De fato, da
perspectiva do proponente do pleito, que tem um direito a ser
ressarcido, só é economicamente viável levá-lo até seu termo caso seja
uma causa de alto valor ou se disponha de estrutura jurídica
permanente, como no caso das empresas de grande porte. Já do lado da
parte ré, é economicamente vantajoso estender o pleito até seu último
140
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 15.
141
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 20.
142
Dados produzidos pela Secretaria de Política Econômica em 2004 no documento intitulado de
“Reformas Microeconômicas e crescimento de longo prazo”. Fonte: <http://www.mj.gov.br>. Acesso em
01 maio 2009.
30
recurso, pois o valor da sentença não sofre atualização na mesma
143
proporção que o rendimento oferecido por ativos financeiros.
Essa situação é sentida com maior intensidade nas causas de pequeno valor,
chegando os custos a exceder o montante discutido no processo, tornando a demanda
uma futilidade.144
Esses obstáculos econômicos atingem mais os cidadãos com menos recursos
econômicos, já que são eles basicamente os autores das ações de menor valor e é nessas
ações que a justiça é proporcionalmente mais cara.145
Em decorrência desse conjunto de fatores - custo e tempo - o sistema
judicial passa a ser utilizado pelo demandante que não tem razão, o que é um
contrassenso.
Essa contradição pode gerar um efeito secundário, mas que tem impacto
direto no tempo de duração dos processos, pois ela fomenta a busca pelo judiciário não
para proteger um direito, mas para impedir a realização desse direito ou pelo menos
protelar o cumprimento de uma obrigação, provocando o aumento do número de ações
judiciais que consequentemente refletem na lentidão do Judiciário.
Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, “quanto maior for a demora do
processo, maior será o dano imposto ao autor e, por consequência, maior será o
benefício conferido ao réu”.146
Quanto aos obstáculos sociais e culturais, estes constituem um dos campos
de investigação da sociologia da administração da justiça. Boaventura de Sousa Santos
faz a seguinte observação:
[...] a sociologia da administração da justiça tem-se ocupado também
dos obstáculos sociais e culturais ao efectivo acesso à justiça por parte
de classes populares, e este constitui talvez um dos campos de estudo
mais inovadores. Estudos revelam que a distância dos cidadãos em
relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o
estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas
próximas na apenas factores econômicos, mas também factores sociais
e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos
remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. Em
143
Disponível em: <http://www.mj.gov.br>. Acesso em: 01 mai. 2009.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 19.
145
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995, p. 168.
146
MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação de tutela. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 10ª
ed., 2008, p. 274.
144
31
primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer
pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer
um problema que os afecta com sendo jurídico. [...]. Em segundo
lugar, mesmo reconhecendo o problema jurídico, como violação de
um direito, é necessário que a pessoa se disponha a interpor a acção.
Os dados mostram que os indivíduos das classes baixas hesitam muito
mais que os outros em recorrer aos tribunais, mesmo quando
reconhecem estar perante um problema legal. [...] ou seja, quanto mais
baixo é o status sócio-econômico da pessoa acidentada menor é a
147
probabilidade que interponha uma acção de indenização.
Desse modo, as possibilidades das partes de que falam Cappelletti e Garth,
isto é, a sua condição sociocultural, tem interferência direta no acesso efetivo à justiça.
As pessoas e organizações que dispõem de melhores condições econômicas
têm maiores facilidades de acesso à justiça. Elas podem pagar para recorrer à justiça e
ainda podem suportar a demora de um litígio. Além disso, a parte que pode despender
maiores gastos tem uma condição melhor de produzir suas provas do que a outra,
desprovida de recursos financeiros.148 Isto é, a desigualdade econômica é um fator
inseparável da problemática do acesso à justiça.
Outro ponto acerca das possibilidades das partes é o que Cappelletti e Garth
chamam de capacidade jurídica pessoal, que se relaciona com as vantagens de recursos
financeiros e diferenças de educação, meio e status social.149
Num primeiro plano está a condição de reconhecer a existência de um
direito juridicamente exigível. Mesmo as pessoas dotadas de maiores condições
econômicas têm dificuldades em compreender o ordenamento jurídico. As leis se
multiplicam rapidamente e são compreensíveis apenas para os aplicadores do direito,
fazendo com que as normas fiquem distantes da realidade social.150
Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se
dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que
precisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, em quaisquer
circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento jurídico básico não apenas
147
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995, p. 169.
148
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 21.
149
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 22.
150
MARINONI. Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os institutos
fundamentais do direito processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 36.
32
para fazer objeção a esses contratos, mas até mesmo para perceber que
sejam passíveis de objeção.151
Na realidade, de qualquer maneira, as pessoas de baixa renda são mais
atingidas nesta questão. Elas possuem maior dificuldade de obter informações sobre
seus direitos e não sabem distinguir e reconhecer a existência de um direito
juridicamente exigível e menos ainda como ajuizar uma ação.
Como observa Boaventura de Sousa Santos:
Quanto mais baixo é o estrato sócio-econômico do cidadão menos
provável é que conheça advogado ou que tenha amigos que conheçam
advogados, menos provável é que saiba onde, como e quando pode
contactar o advogado e maior a distância geográfica entre o lugar onde
vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritórios
de advocacia e os tribunais.152
Outra importante questão que merece destaque diz respeito ao que
Cappelletti e Garth, citando Galanter, definiram como litigantes eventuais e habituais,
baseado na frequência de encontros com o sistema judicial.153 Os litigantes eventuais
nunca ou poucas vezes estiveram perante um juiz, enquanto o litigante habitual está
acostumado com as lides forenses.
As vantagens dos litigantes habituais seriam:
1) maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor
planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de
escala, porque tem mais casos; 3) o litigante habitual tem
oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da
instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por maior
número de casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos,
de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos
futuros.154
151
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 23
152
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995, p. 170.
153
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 25.
154
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 25.
33
Para as empresas também é muito mais fácil administrar uma demanda
judicial do que para o cidadão comum. As empresas normalmente possuem advogados
ou um corpo de advogados bem preparados que são contratados independentemente do
número de ações que serão propostas ou defendidas em nome da empresa, e quanto
mais habituais for a sua litigância, mais ela pode atenuar os seus riscos e custos.
As despesas com suas demandas judiciais já estão contabilizadas nos custos
da empresa e fazem parte na formação do preço de venda de seus produtos ou serviços,
ou seja, a ela transfere para seus clientes os custos e riscos das suas ações judiciais,
enquanto o cidadão comum tem que assumir os riscos e suportar sozinho o ônus de uma
derrota judicial.155
Portanto, os litigantes parecem possuir uma igualdade de armas, mas essa
igualdade está somente nas regras processuais, sendo prejudicada em conformidade com
a sua condição sociocultural.156
Por final, Cappelletti e Garth falam dos obstáculos relativos aos direitos
difusos, como os ambientais e dos consumidores, cujo problema básico, na ótica dos
autores, que eles apresentam “é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um
interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno
demais para induzi-lo a tentar uma ação.”157
Os direitos coletivos (em sentido amplo) pertencem a todos e ao mesmo
tempo ninguém os representa de forma privada sem que ocorra ação de um grupo.158 É
que o sistema processual clássico foi concebido para a solução de conflitos individuais,
envolvendo duas partes ou um número restrito de pessoas.
Para superar esse problema não basta a atribuição de legitimidade ad
causam ativa individual, é preciso fortalecer e estruturar as associações civis para
enfrentar os problemas que atingem seus associados, como adverte Marinoni,159 citando
pronunciamento de Cappelletti em congresso realizado em Curitiba:
155
MARINONI. Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os institutos
fundamentais do direito processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 38.
156
GOMES NETO, José Mário Wanderley; PORTO, Júlia Pinto Ferreira. Análise sociojurídica do acesso
à justiça: as implicações no pluralismo jurídico do acesso à ordem jurídica justa. In: GOMES NETO, José
Mário Wanderley (org.) Dimensões do acesso à justiça. Salvador/BA: Editora Juspodivm, 2008, p. 162.
157
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 26.
158
GOMES NETO, José Mário Wanderley; PORTO, Júlia Pinto Ferreira. Análise sociojurídica do acesso
à justiça: as implicações no pluralismo jurídico do acesso à ordem jurídica justa. In: GOMES NETO, José
Mário Wanderley (org.) Dimensões do acesso à justiça. Salvador/BA: Editora Juspodivm, 2008, p. 162.
159
MARINONI. Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os institutos
fundamentais do direito processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 39.
34
o consumidor isolado, ainda que não seja necessariamente pobre,
encontra-se inevitavelmente em uma situação de desvantagem diante
do grande empresário; o mesmo vale para o ambientalista diante das
poluições provocadas pelas grandes indústrias – em geral quanto aos
danos (externalities) causados em larga escala. Produção e poluição,
na estrutura da moderna economia, são fenômenos de massa, que
atingem categorias inteiras de pessoas. Somente organizando-se, e
assim unindo as próprias forças, é que os consumidores de um mesmo
produto ou as vítimas de uma poluição ambiental, poderão se
contrapor à potência dos empresários e dos grandes poluidores.
Essas barreiras apresentadas não exaurem o tema e nem foram transpostas
totalmente no Brasil. A sociedade está sempre em transformação e por isso exige um
contínuo movimento de acesso à justiça. Noutra palavras, identificado os obstáculos,
devem ser propostas soluções práticas para esses problemas.
A efetividade do direito de acesso à justiça corresponde ao seu grau de
eficiência na consecução dos seus fins, ou seja, na realização de seu objetivo de
proporcionar um acesso à ordem jurídica justa.
A credibilidade do Poder Judiciário está condicionada à facilidade de seu
acesso por todos os segmentos e classes sociais160 e pela sua eficiência, ou seja, pela
solução ágil dos conflitos que lhe são submetidos.
A tempestividade na resolução dos conflitos, ou seja, a duração razoável do
processo, é pressuposto do acesso à justiça, além de estar contido, em diversas
legislações e pactos internacionais.
Nesse contexto, os Juizados Especiais é uma das respostas para superar as
barreiras do acesso à justiça, ao mesmo tempo em que resgata a confiança da população
na Justiça.161
Com um rito simplificado, o sistema é capaz de imprimir celeridade no
procedimento e consequentemente efetividade, aspectos importantes na ampliação do
acesso à justiça, pois permitem aos cidadãos obterem uma solução mais rápida para seus
conflitos, evitando que em função de um formalismo inadequado para dirimir questões
de menor complexidade, sejam produzidos morosidade judicial e o consequente
congestionamento nos Juizados, como tem acontecido na justiça tradicional.
160
“...o sistema deve ser igualmente acessível a todos”. CAPPELLETTI, Mauro; Garth, Bryan. Acesso à
Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 8.
161
WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas dos Juizados Especiais de Pequenas Causas:
In: WATANABE, Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de
novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 2.
35
Quando se fala em acesso à justiça, como já foi afirmado anteriormente,
fala-se de acesso a uma ordem jurídica justa que possibilite uma “prestação jurisdicional
efetiva, adequada e tempestiva.”162
Esse propósito estava expresso em diversos trechos da Exposição de
Motivos da Lei nº 7.244/84, que instituiu os Juizados Especiais de Pequenas Causas,
dos quais destaco:
[...]
3. Os problemas mais prementes, que prejudicam o desempenho do
Poder Judiciário, no campo civil, podem ser analisados sob, pelo
menos, três enfoques distintos, a saber: a) inadequação da atual
estrutura do Judiciário para a solução dos litígios que a ela já afluem,
na sua concepção clássica de litígios individuais; b) tratamento
legislativo insuficiente, tanto no plano material como processual, dos
conflitos coletivos ou difusos que, por enquanto, não dispõem de
tutela jurisdicional específica; c) tratamento processual inadequado
das causas de reduzido valor econômico e conseqüente inaptidão do
Judiciário atual para a solução barata e rápida desta espécie de
controvérsia.
4. A ausência de tratamento judicial adequado para as pequenas
causas – o terceiro problema acima enfocado – afeta, em regra, gente
humilde, desprovida de capacidade econômica para enfrentar os
custos e a demora de uma demanda judicial. A garantia meramente
formal de acesso ao Judiciário, sem que se criem as condições básicas
para o efetivo exercício do direito de postular em juízo, não atende a
um dos princípios basilares da democracia, que é o da proteção
judiciária dos direitos individuais.
5. A elevada concentração populacional nas áreas urbanas, aliada ao
desenvolvimento acelerado das formas de produção e consumo de
bens e serviços, atua como fator de intensificação e multiplicação de
conflitos, principalmente no plano das relações econômicas. Tais
conflitos, quando não solucionados, constituem fonte geradora de
tensão social e podem facilmente transmudar-se em comportamento
anti-social.
6. Impõe-se, portanto, facilitar ao cidadão comum o acesso à Justiça,
removendo todos os obstáculos que a isso se antepõem. O alto custo
da demanda, a lentidão e a quase certeza da inviabilidade ou
inutilidade do ingresso em Juízo são fatores restritivos, cuja
eliminação constitui a base fundamental da criação de novo
procedimento judicial e do próprio órgão encarregado de sua
aplicação, qual seja o Juizado Especial de Pequenas Causas. 163 (sem
destaque no original)
[...]
162
WATANABE, Kazuo. Finalidade maior dos juizados especiais cíveis. Revista Cidadania e Justiça.
Rio de Janeiro, Ano 3, nº7 - 2º semestre/1.999 – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros –
AMB, p. 36.
163
WATANABE, Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de
novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 208-214.
36
Essas ideias fundamentais de facilitação do acesso à Justiça pelo cidadão
comum, especialmente pela camada mais humilde da população que inspiraram a
criação da Lei dos Juizados de Pequenas Causas164 permaneceram no propósito dos
Juizados Especiais criados pela Constituição de 1988 e foram regulamentados pela Lei
nº 9.099/95.165
Para Kazuo Watanabe, a finalidade primordial dos juizados é a de
“facilitação do acesso à Justiça pelos cidadãos comuns e principalmente pelos mais
humildes, cuidando de distribuir justiça pela forma que privilegie a convivência
harmoniosa das pessoas”.166
Não há dúvidas de que o principal objetivo dos Juizados Especiais foi o de
democratizar o acesso à justiça para as camadas mais carentes economicamente da
população, mas também para aqueles que de alguma forma eram desestimulados (custobenefício ou lentidão) a buscar no Judiciário a solução para seus conflitos167.
Cândido Rangel Dinamarco lembra que existiam duas preocupações centrais
quando foi instituída a Lei nº 7.244/84 – e repito, essas preocupações foram mantidas
com a Lei nº 9.099/95 -, que são facilitar o acesso à justiça e “tornar mais célere e ágil o
processo destinado a pacificar os litígios”, ou seja, além de cumprir o mandamento
constitucional de prestação do serviço jurisdicional, fazer com que o Judiciário
164
O termo “pequenas causas” não deve ser entendido como questões simples ou menos importantes, ao
contrário elas podem representar questões complexas, como aquelas que discutem valores fundamentais.
Essa terminologia foi muito criticada, porque para o cidadão das camadas mais pobres da população, o
seu direito violado, embora possa ser juridicamente considerado de pequeno valor econômico, para ele,
individualmente, pode representar uma “grande causa” ou ser a “causa” da sua vida. Além disso, até pela
quantidade de processos ajuizados anualmente nos Juizados, pode-se perceber que as causas de “pequeno
valor” são de grande importância econômico-social.
165
WATANABE, Kazuo. Finalidade maior dos juizados especiais cíveis. Revista Cidadania e Justiça.
Rio de Janeiro, Ano 3/nº7 - 2º semestre/1.999 – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros –
AMB, p. 32. Na justificativa do Projeto de Lei nº 3.689, de 1989, de autoria do então Deputado Nelson
Jobim, que foi utilizado para a criação da Lei nº 9.099/95, consta trecho indicativo de que as ideias e os
propósitos da Lei nº 7.244/89 permaneceriam na nova Lei para os Juizados: [...] Os Juizados Especiais
Cíveis recebem tratamento afeiçoado à legislação já existente sobre o Juizado Especial de Pequenas
Causas, que se mostrou útil e suficiente onde implantado, [...] comprovando a funcionalidade do sistema e
a adequação do procedimento. Por isso, parte-se do princípio de que os Juizados Especiais previstos na
Constituição da República devem guardar as mesmas características dos juizados implantados pela Lei nº
7.244, de 7 de novembro de 1984, cujos dispositivos foram aproveitados para a elaboração do texto.
(Diário do Congresso Nacional, 10/07/1990, p. 8433. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
Acesso em: 10 fev. 2009.)
166
WATANABE, Kazuo. Finalidade maior dos juizados especiais cíveis. Revista Cidadania e Justiça.
Rio de Janeiro, Ano 3/nº7 - 2º semestre/1.999 – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros –
AMB, p. 34.
167
FUX, Luiz. Juizado Especial Cível. In: BATISTA, Weber Martins; FUX. Luiz. Juizados especiais
cíveis e criminais e suspensão condicional do processo penal: a Lei nº 9.099/95 e sua doutrina mais
recente. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 8.
37
apresente resultados úteis em tempo razoável para evitar que os conflitos incomodem
mais do que o aceitável.168
Essas são as finalidades diretas, lembra a professora e pesquisadora Dra.
Leslie Ferraz,169 havendo ainda algumas finalidades indiretas, como o resgate da
credibilidade popular no Poder Judiciário, que ao possibilitar a uma parcela da
sociedade - até então excluída da proteção judicial - a resolução das suas causas
cotidianas, deixa de ser vista como uma instituição burocrática, lenta, e acessível a
poucos afortunados.
Além disso, pela simplificação de seus procedimentos e facilidade de seu
acesso, os Juizados Especiais estimulam as pessoas comuns a lutar por seus direitos, “o
que promove a cidadania” e ainda estimulam a “participação social na administração da
justiça”, na medida em que os conciliadores e árbitros são recrutados na própria
comunidade local.170
Ainda nas palavras da professora Leslie Ferraz, ao criar uma justiça com
procedimentos menos formais e buscando sempre que possível a conciliação, os
Juizados têm um papel importante para “mudar a mentalidade dos operadores do
direito” estabelecendo-se gradativamente uma cultura de paz na sociedade e de justiça
menos burocratizada e mais informal.171
Uma questão merece ser sublinhada: a finalidade dos Juizados Especiais
nada teve ou tem a ver com a crise da Justiça tradicional, em especial com a sua
morosidade e falta de efetividade.172 A sua razão de ser, nunca é demais repetir, foi a de
democratizar o acesso à justiça, através de um procedimento simples, barato e rápido.
168
DINAMARCO, Cândido Rangel. Manual das Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1986, p. 2.
169
FERRAZ, Leslie Shérida. Juizados Especiais Cíveis e acesso à justiça qualificado: uma análise
empírica. 235 f. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008, p.11.
170
FERRAZ, Leslie Shérida. Juizados Especiais Cíveis e acesso à justiça qualificado: uma análise
empírica. 235 f. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008, p.12.
171
FERRAZ, Leslie Shérida. Juizados Especiais Cíveis e acesso à justiça qualificado: uma análise
empírica. 235 f. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008, p.12.
172
WATANABE, Kazuo. Finalidade maior dos juizados especiais cíveis. Revista Cidadania e Justiça.
Rio de Janeiro, Ano 3, nº7 - 2º semestre/1.999 – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros –
AMB, p. 32-37; SADEK, Maria Tereza A. Juizados Especiais. O processo inexorável da mudança. In:
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maira Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.) Novas direções
na governança da justiça e segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 251; WATANABE,
Kazuo. Filosofia e características básicas dos Juizados Especiais de Pequenas Causas: In: WATANABE,
Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 3; MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela
dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 104.
38
7. Características básicas dos Juizados Especiais Cíveis e o acesso à justiça
Os Juizados Especiais Cíveis173 são competentes para as causas de menor
complexidade até 40 (quarenta) salários mínimos,174 bem como as causas previstas no
art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil, a ação de despejo para uso próprio e
para as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente a 40 (quarenta)
salários mínimos.175 Os Juizados Cíveis também são competentes para promoverem a
execução dos seus julgados e dos títulos extrajudiciais, também no valor limite de até 40
(quarenta) salários mínimos.176 Ficam excluídas da sua competência as causas de
natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública,177 e também as
relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas. 178
O autor pode optar pela propositura de sua ação nos Juizados ou no juízo
cível comum. A Lei nº 7.244/84 previa expressamente no seu art. 1º que caberia ao
autor optar ou não por demandar nos Juizados. Muito embora a Lei nº 9.099/95 não
tenha repetido a expressão por opção do autor, a doutrina179 e a jurisprudência180
firmaram entendimento que permanece a facultatividade do autor, sendo os Juizados
Especiais mais uma alternativa de acesso à justiça e não a única para as causas de menor
complexidade e reduzido valor econômico.
Como ficou ressaltado no capítulo anterior, um dos principais entraves para
o efetivo acesso à justiça é o custo do processo. Nos Juizados Especiais não há cobrança
de qualquer valor para ajuizar uma ação. Essa gratuidade alcança, inclusive, os
honorários advocatícios181 que a parte vencida não é obrigada a pagar.
173
Usarei os termos Juizados, Juizados Especiais e Juizados Especiais Cíveis para designar os Juizados
Especiais Cíveis Estaduais instituídos pela Lei nº 9.099/95.
174
A Lei utilizou dois critérios: a complexidade e o valor da causa.
175
Art. 3º, incisos I, II, III e IV.
176
Art. 3º, § 1º.
177
A Lei nº 12.153, de 22 de dezembro de 2009 instituiu os Juizados Especiais da Fazenda Pública.
178
Art. 3º, § 2º.
179
Sobre esse tema ver: SALOMÃO, Luis Felipe. Roteiro dos juizados especiais cíveis. Rio de Janeiro:
Forense, 4ª ed. revista, ampliada e atualizada, 2009, p. 20-23; CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados
Especiais Cíveis Estaduais e Federais: uma abordagem crítica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
p. 23-27; NERY Júnior, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado
e legislação extravagante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª ed.s rev. e ampl., 2003, p. 1520;
FRIGINI, Ronaldo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis. Leme/SP: JH Mizuno, 2007, 3ª
ed., p.80.
180
Enunciado nº 1 do Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE: “O exercício do direito de ação
no Juizado Especial é facultativo para o autor.”
181
No processo civil comum a parte vencida é condenada a pagar os honorários de advogado da parte
vencedora e as custas ou despesas processuais.
39
Somente no caso de recurso para a Turma Recursal182 será cobrado o
preparo183, que compreenderá todas as despesas processuais, inclusive aquelas
dispensadas para a propositura da ação, salvo no caso das partes beneficiárias da
assistência jurídica gratuita, que em hipótese alguma será cobrado o pagamento de
quaisquer custas, taxas ou despesas. 184
O patrocínio de advogado para o ingresso nos Juizados é facultativo para as
causas até 20 (vinte) salários mínimos.185 O próprio interessado pode ir diretamente à
secretaria dos Juizados e apresentar seu pedido, escrito ou oral.186 Juntamente com as
custas e despesas processuais, os honorários advocatícios são um dos principais
empecilhos à efetividade do direito de acesso à justiça, já que por vezes torna-se
economicamente desinteressante pleitear a tutela judicial em razão do elevado custo de
tais encargos.
Nas causas superiores a 20 (vinte) salários mínimos, em que é obrigatória a
presença de advogado, a lei determina que em cada Juizado Especial sejam implantadas
as curadorias e os serviços de assistência judiciária, para que os mais humildes não
fiquem impossibilitados de resolver seus conflitos pela intervenção estatal.187
A citação e as intimações serão em regra por cartas. Não se admite a citação
por edital, medida muitas vezes utilizada para evitar procrastinação da demanda em
benefício do réu. As intimações ainda poderão ser feitas por qualquer outro meio
idôneo, como telegrama, telefone, internet, etc., evitando a expedição de cartas
precatórias188 e, consequentemente, a morosidade no trâmite processual.
No procedimento dos Juizados não se admite qualquer forma de intervenção
de terceiros (nomeação à autoria, denunciação da lide e chamamento ao processo) nem
de assistência (art. 10). Essa proibição também visa garantir a celeridade do processo. A
intervenção de terceiros no processo gera uma multiplicidade de atos que causam a
demora na solução do litígio, prejudicando a parte que teria de suportar os ônus de uma
delonga desnecessária.
182
Art. 41, § 1º: “O recurso será julgado por uma turma composta por três Juízes togados, em exercício
no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado.”
183
O preparo é o pagamento das custas dentro dos prazos fixados em lei para que o processo tenha
prosseguimento normal. Fonte: DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico – 2ª ed. rev. atual. e aum. São
Paulo: Editora Saraiva, 2005, vol. 3, p. 805; GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri (org.). Dicionário
técnico jurídico. 8ª ed. São Paulo: Rideel, 2006, p. 452.
184
Art. 54.
185
Art. 9º.
186
Art. 14.
187
Art. 56.
188
Arts. 18 e 19.
40
Os serviços de cartórios poderão ser prestados fora da sede da Comarca,
assim como a realização das audiências. A intenção do legislador é exatamente garantir
o acesso à justiça daqueles que não têm condições de se deslocarem até o Fórum, seja
por questões econômicas, físicas ou socioculturais, além de aproximar o Judiciário da
população.189
Esse dispositivo atendeu à seguinte observação feita por Cappelletti e Garth:
O desafio é criar foros que sejam atraentes para os indivíduos, não
apenas do ponto de vista econômico, mas também físico e psicológico,
de modo que eles se sintam à vontade e confiantes para utilizá-los,
apesar dos recursos de que disponham aqueles a quem eles se
opõem.190
Em complementação à possibilidade de realização de atos e audiências fora
da sede da comarca está a realização de atos processuais em horário noturno, conforme
dispuserem as normas de organização judiciária.191
Desse modo, os trabalhos nos Juizados poderão ser ininterrupto, em horário
diurno e noturno, o que consequentemente amplia o acesso à justiça facilitando para os
trabalhadores que nem sempre podem ausentar-se do trabalho durante expediente para
comparecer a um órgão da justiça e reivindicar seus direitos.
A ideia do funcionamento à noite seria a regra, com o “aproveitamento da
capacidade ociosa dos prédios e de outros equipamentos”,192 garantindo uma economia
de recursos materiais para Poder Judiciário. Entretanto, na prática, parecem ser poucos
os Juizados com funcionamento no horário noturno.
Outra característica importante dos Juizados Especiais Cíveis é não admitir
recurso contra decisão interlocutória,193 e o recurso contra sentença deve ser recebido,
189
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Cíveis
e Criminais: comentários à Lei 9.099/1995. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 738.
190
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre, Fabris, 1988, p. 97.
191
Art. 12.
192
WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas dos Juizados Especiais de Pequenas Causas:
In: WATANABE, Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de
novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 7.
193
Na Lei nº 9.099/95 não consta proibição expressa sobre a recorribilidade de decisões interlocutórias,
porém, grande parte da doutrina entende dessa forma, bem como da jurisprudência: Enunciado 15
FONAJE: Nos Juizados Especiais não é cabível o recurso de agravo, exceto nas hipóteses dos artigos 544
e 557 do CPC. Já na Lei que instituiu os Juizados Especiais Federais - Lei nº 10.259/2001 -, consta no seu
artigo 5º que, ressalvado os casos de deferimento de medidas cautelares no curso do processo, para evitar
dano de difícil reparação, somente será admitido recurso de sentença definitiva.
41
em regra, apenas no efeito devolutivo, podendo o juiz atribuir efeito suspensivo para
evitar dano irreparável,194 o que contribui para agilizar o trâmite processual, além de
valorizar a decisão do juiz de primeira instância (juiz do fato), que está em contato
direto com as partes e as provas195.
O recurso é julgado por uma Turma Recursal, composta de três juízes de
primeiro grau de jurisdição. Não caberá recurso das sentenças homologatórias de
conciliação ou do laudo arbitral.196 A intenção é sem dúvida de limitar o uso
protelatório dos recursos para garantir uma maior rapidez na solução do litígio.
Nos Juizados Especiais Cíveis somente as pessoas físicas serão admitidas a
propor ação, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas (§ 1º, art. 8º). São
expressamente proibidos de ser parte o incapaz, o preso, as pessoas de direito público,
as empresas públicas da União, a massa falida197 e o insolvente civil198 (art. 8º).
As restrições são justificadas. O incapaz não pode fazer qualquer concessão
quanto aos seus direitos, e isso inviabiliza a conciliação, que é o escopo precípuo dos
Juizados Especiais.199 Da mesma forma a massa falida e o insolvente civil, pois o
síndico e o administrador não podem celebrar livremente acordos, necessitando da
participação dos credores.
No caso do preso, como a presença pessoal da parte na audiência é
obrigatória, não seria possível a sua realização. E mesmo que fosse permitida a
condução do preso até o Fórum, o alto custo com o sistema de segurança e transporte
tornaria inviável economicamente a demanda.200
194
Art. 43.
Alexandre Freitas Câmara advoga tese interessante – apesar de ser doutrinariamente isolada, como ele
mesmo alerta – que em sede de recursos nos Juizados Especiais Cíveis, não se pode reexaminar provas,
sendo permitido apenas analisar questões de direito, devido à ausência de contato imediato dos membros
da Turma Recursal com as fontes da prova oral, e sua valoração por esse órgão implicaria violação à
oralidade processual. Ver: Câmara, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais:
uma abordagem crítica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 12.
196
Art. 41.
197
“Direito falimentar. Acervo de bens do comerciante falido, que constituem o ativo e o passivo de seu
patrimônio, arrecadado pelo síndico na falência, por estar sujeito à execução coletiva, cujo produto será
rateado, na forma da lei, entre os seus credores.” DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed. rev.
atual. e aum. São Paulo: Saraiva, volume 3, 2005, p. 248.
198
“Direito civil. Estado em que se encontra pessoa, que não exerce atividade empresarial, de não poder
pagar a seus credores as obrigações assumidas, ante o fato de seu ativo ser inferior ao passivo, ou seja, as
suas dívidas excedem ao montante de seus bens.” DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed. rev.
atual. e aum. São Paulo: Saraiva, volume 2, 2005, p. 991.
199
GRINOVER, Ada Pellegrini. Conciliação e juizados de pequenas causas. In: WATANABE, Kazuo
(coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 147.
200
CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais: uma abordagem
crítica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 56.
195
42
Quanto às pessoas jurídicas de direito público, estas foram excluídas porque
a ideia inicial era possibilitar o acesso à justiça ao cidadão comum, desprovido de
recursos e meios para postular e defender seus direitos. As empresas públicas, em tese,
dispõem de estrutura e recursos para a defesa dos seus direitos, não sendo necessário
utilizar da “justiça do cidadão”.201
As empresas da União foram excluídas em decorrência da competência da
Justiça Federal (art. 109, I, CR/88). Entretanto, com a edição da Lei nº 10.259/01, que
regulou os Juizados Especiais Federais, passou-se a admitir a União e suas autarquias
no polo passivo desses Juizados (art. 6º, II, Lei nº 10.259/01).
Embora a regra geral da Lei nº 9.099/95 seja de que somente pessoa física
possa ser parte nos Juizados Especiais Cíveis, a Lei nº 9.841, de 5 de outubro de 1999,
denominada Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte202, permitiram
às microempresas203 proporem ação perante os Juizados Especiais.204
Em 2006, a Lei Complementar nº 123, autorizou expressamente as empresas
de pequeno porte a serem admitidas como proponentes nos Juizados Especiais Cíveis
Estaduais.205
Recentemente, a Lei nº 12.126, de 16 de dezembro de 2009, alterou a
redação do § 1º do art. 8º, para incluir no rol dos legitimados a propor ação perante os
Juizados Especiais as pessoas jurídicas qualificadas como Organização da Sociedade
Civil de Interesse Público, nos termos da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, e as
sociedades de crédito ao microempreendedor, nos termos do art. 1º da Lei nº 10.194, de
14 de fevereiro de 2001. (art. 8º, § 1º, incisos III e IV)
Característica marcante dos Juizados Cíveis é a busca incessante pela
solução consensual das partes. A conciliação é o espírito motor dos Juizados Cíveis (ver
item 2.7.1), pois além de ajudar a manter os relacionamentos entre os litigantes - já que
201
DINAMARCO, Cândido Rangel. Manual das pequenas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais.
1986, p. 35.
202
A Lei nº 12.126, de 16 de dezembro de 2009, alterou a redação do § 1º do art. 8º da Lei nº 9.099/95,
para incluir, entre outros, as microempresas como parte legítima para propor ação perante os Juizados
Especiais Cíveis, repetindo as determinações contidas na Lei nº 9.841/99.
203
Com relação às microempresas, embora exista a preocupação de que os Juizados Especiais tornem-se
sua agência de cobranças, descaracterizando a sua vocação para a solução de conflitos individuais,
também é de ser considerado a existência de inúmeras dessas empresas ou firmas individuais, de modesta
expressão econômico-financeira (prestadores de serviços, como alfaiates, costureiras, pedreiros,
vidraceiros, eletricistas, mecânicos de eletrodomésticos, encanadores, amoladores de facas, etc.) e impedir
essa via judicial para solução de seus conflitos, pode representar a sua inviabilidade operacional. Por
outro lado, a permissão das empresas de pequeno porte (assim definidas aquelas com receita bruta
superior a R$ 240.000,00 e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00) de proporem ações perante os Juizados
pode representar um sério desvirtuamento das suas finalidades.
204
Art. 38 da Lei nº 9.841/99.
205
Art. 74 da LC nº 123/2006.
43
a decisão pressupõe aceitação mútua, não existindo vencido ou vencedor - a solução do
conflito é imediata, sem a incidência do tempo no processo, diminuindo os custos
financeiros, psicológicos e sociais do processo.
Todo esse instrumental, se bem utilizado pelos aplicadores do Direito
(juízes, advogados, membros do Ministério Público, serventuários, etc.), dentro da
filosofia e princípios que norteiam os juizados, resultará na mudança da realidade da
justiça brasileira contribuindo para atacar a denominada litigiosidade contida.
Portanto, os Juizados inauguraram uma forma diferente de solucionar
conflitos sociais pelo Estado. Reduziram-se os custos processuais, a
duração do processo, as formalidades e as possibilidades de produção
de provas; o julgamento passou a ser proferido por um juiz mais
socializado, em contato com o cidadão comum, e menos formal. Este
juiz dirige o processo com liberdade para apreciação das provas,
conferindo, ao prolatar a decisão, especial valor às regras de
experiência comum ou técnica, com eqüidade, ou seja, prolata a
sentença através da exteriorização de um sentimento, decidindo
segundo sua convicção pessoal no fato jurídico concreto para, somente
após, embasar legalmente sua decisão.206
Todas essas inovações processuais e procedimentais da Lei dos Juizados
Especiais foram concebidas para alcançar o seu objetivo de democratizar o acesso à
justiça, sempre através de um processo rápido, sem custos e adequado para resolução de
conflitos do dia a dia das pessoas pobres. 207
8. Conclusão
O termo acesso à justiça tem uma dimensão ampla e não pode ser
compreendido apenas como o direito de ingressar em juízo, mas, e principalmente,
como o direito à tutela jurisdicional em prazo razoável, já que, como vimos, alguns
206
SCHELEDER, Adriana Fasolo Pilati. As garantias constitucionais das partes nos juizados
especiais cíveis estaduais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 76.
207
WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas dos Juizados Especiais de Pequenas Causas:
In: WATANABE, Kazuo (coord). Juizados Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de
novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985, p. 1-7.; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Princípios e critérios no processo das pequenas causas. In: WATANABE, Kazuo (coord). Juizados
Especiais de Pequenas Causas. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1985, p. 102-118; DINAMARCO, Cândido Rangel. Manual das pequenas causas. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1986, p 1-3.
44
obstáculos que outrora impediam esse acesso foram removidos e o problema atual está
na saída do cidadão do Poder Judiciário.
Essa preocupação fez o legislador incluir na Constituição da República, no
rol dos direitos e garantias fundamentais, o direito a duração razoável do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, LXXVIII, CR/88).
Neste contexto, os Juizados Especiais Cíveis Estaduais se constituíram, por
intermédio da gratuidade de seus serviços, na simplicidade dos procedimentos e na
promessa de celeridade na resolução dos conflitos de menor complexidade e pequeno
valor econômico, em uma importante e diferenciada arena judicial para superar os
obstáculos do acesso à justiça.
Nos Juizados Especiais os atos processuais são realizados, basicamente, em
um único momento, na audiência, como forma de garantir rapidez ao procedimento.
Assim, não obtida a conciliação, imediatamente passa-se para a instrução e julgamento,
quando são realizados todos os atos demais postulatórios (defesa), probatórios e
decisórios.
Em todo o procedimento nos Juizados Especiais tem-se por fundamento a
eliminação de atos inúteis e a flexibilização de todos os atos necessários, abolindo o
formalismo para que o processo atinja seu objetivo mais rápido, sem ritualismos
dispensáveis ou formas pré-estabelecidas.
Ao juiz cabe a tarefa de assegurar o cumprimento dos atos e procedimentos
processuais previstos na lei, não permitindo qualquer desvio que possa prejudicar a
celeridade processual e procedimental.
A simplificação dos atos processuais nos Juizados Especiais se coaduna
com a finalidade primordial dos Juizados Especiais de facilitar o acesso à justiça, que
tem como um dos seus aspectos mais relevantes a questão do tempo de duração dos
processos. Nesse procedimento, que não é fastidioso repetir, segue a rigorosa
observância da lei, não violando qualquer direito processual ou constitucional.
Download