Guia de Leitura

Propaganda
- GUI A D E L E I TU R A PA R A O P R O F E S S O R
Chega de rosa!
Nathalie Hense
Ilustrações Ilya Green
Tradução Rafaela Moreira dos Santos
Faixa etária a partir de 8 anos
36 páginas
TEMAS Identidade de gênero / Estereótipos e
estigmas / Direito à diversidade
Nathalie Hense mora em
Raincy, perto de Paris, na França, e trabalha como redatora publicitária. Sonhava
em ser poeta desde pequena, mas só
depois de adulta passou a se dedicar à
literatura. É autora de Existir! (Edições
SM, 2014), em que parodia ideias do
filósofo René Descartes de uma perspectiva infantil.
a autora
Ilya Green nasceu em
Provença, no sul da França. Formou-se
primeiro em Letras Modernas, depois em
Belas-Artes. Publicou seu primeiro livro
em 2004, e em 2006 entrou para o ateliê
Venture, em Marselha, que reúne ilustradores e designers.
a ilustradora
o livro A protagonista e narradora de Chega de rosa! é uma
menina: tem “uma xoxota, cabelos compridos, com presilhas
e pedras que brilham” (p. 16). Sua mãe, porém, lhe diz que ela
é um “arremedo de menino” (p. 8), porque gosta de coisas “de
menino”, como dinossauros, guindastes e insetos, e odeia coisas
“de menina”, como bonecas, princesas e cor-de-rosa. Contrariando as expectativas familiares e reagindo à incompreensão
alheia, a protagonista tenta construir a própria identidade
como uma garota independente e anticonvencional. Assim,
o livro trata, de modo divertido, dos papéis de gênero, estimulando o leitor a pensar criticamente sobre os preconceitos
e estereótipos sexuais. As coloridas e expressivas ilustrações
de Ilya Green completam a obra, traduzindo vivamente os
sentimentos e a atmosfera da história.
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
OBRA EM CONTEXTO
rosa e azul
estereótipo
Muitas vezes, em vez de analisar as
particularidades de uma situação concreta, real, recorremos a opiniões ou ideias
preconcebidas, os chamados estereótipos.
Essas ideias simplificadas e generalizantes são empregadas em grande parte por
um princípio de economia: é mais fácil
recorrer a esquemas e modelos já estabelecidos, que traduzem uma espécie
de consenso, do que avaliar e interpretar
continuamente a realidade.
O estereótipo tem um caráter não apenas descritivo (nomeando e classificando
indivíduos, grupos e fenômenos), como
prescritivo e proscritivo. Prescritivo porque
contém recomendações de como se deve
ser ou agir (a exemplo do incentivo ao uso
do rosa entre meninas); proscritivo porque
estabelece proibições (como o tabu em
relação a vestir meninos de rosa).
Vê-se então que os estereótipos não são
neutros. Ao contrário, são veículo para a
manifestação de preconceitos, orientando
o tratamento que se dá a determinados grupos e pessoas. Quando o tomamos como
verdade imutável, sem refletir criticamente
sobre ele, fechamos os olhos à diversidade
de situações, grupos e indivíduos, com
suas múltiplas singularidades, experiências
e maneiras de ser. As pessoas são então
classificadas e julgadas de acordo com sua
idade, aparência física, etnia, sexo, meio
social, orientação sexual, religião etc.
A adesão aos estereótipos pode dar margem a discursos e práticas discriminatórios;
daí a importância de desconstruí-los. É o
que a narradora de Chega de rosa! faz,
evocando a voz do pensamento hegemônico — “meu pai diz”, “minha mãe diz”,
“todos dizem” — para em seguida negá-la,
estabelecendo a própria identidade e seu
direito de transgredir os estereótipos.
O título do livro resume o inconformismo da protagonista
com o papel social que esperam que ela represente: o de alguém
que gosta de “coisas de menina” e age como tal. Mas ela não se
ajusta a esse estereótipo de gênero, como mostra sua recusa
ao rosa, um dos maiores símbolos do feminino.
Quando a própria narradora afirma, logo no início do livro:
“Meninas normalmente gostam de rosa” (p. 6), ao explicar sua
preferência pelo preto, ela assume o pensamento hegemônico
sobre masculino e feminino, que tende a naturalizar aspectos
construídos socialmente. Mas, na verdade, o fato de muitas
meninas preferirem o rosa deve-se ao uso estereotipado da
cor. Quando uma mulher engravida, o sexo do bebê costuma
determinar a cor do enxoval: rosa para meninas, azul para
meninos. Outras marcas são usadas, sobretudo nas meninas,
para reafirmar o sexo do bebê: brincos, lacinhos e faixas na
cabeça, pulseirinhas. Há uma expectativa social de que o gênero da criança seja determinado com urgência e esteja em
2
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
correspondência direta com o sexo biológico. A sociedade, em
geral, reluta em reconhecer um lugar para o andrógino ou o
indefinido, que geram desconcerto e desconforto.
Hoje, alguns pais tentam fugir do estereótipo, evitando essas
marcas convencionais do feminino e vestindo as meninas de
azul, por exemplo. Mas é mais difícil encontrar pais que vistam
meninos de rosa, mostrando como o estereótipo sexual tem
também um caráter proibitivo, criando tabus. Essas regras e
proibições certamente influenciam as crianças desde pequenas, induzindo, quando não pressionando, sua conformação
às identidades sexuais mais aceitas e celebradas socialmente.
Assim, vê-se como a suposta preferência ou inclinação das
meninas pelo rosa não é de modo algum natural, inata, e sim
uma construção sociocultural.
r o u pa s d e m e n i n o s e m e n i n a s
A própria história do uso do rosa e do azul prova que os
estereótipos sexuais e os papéis de gênero configuram-se socialmente. Só há pouco tempo essa distinção passou a ser adotada
e difundida. Durante o século XIX, no mundo ocidental, as
crianças de ambos os sexos em geral eram vestidas de branco.
Mesmo quando outras cores começam a ser usadas em roupas
infantis, em meados daquele século, não havia distinção baseada
em gênero. Além disso, tanto meninos como meninas usavam
vestidos e saias curtas até os cinco ou seis anos de idade, marcando
a diferença entre a infância e a vida adulta, e não entre os sexos.
A partir do final do século XIX, as roupas de menino começam a se distanciar das de menina, com o uso de calças e outras
peças consideradas masculinas cada vez mais cedo. Ainda assim,
levou-se muito tempo até haver um consenso sobre quais seriam
as cores “femininas” e “masculinas”. Muitos defendiam o uso de
rosa para garotos e azul para garotas, baseados em argumentos
como o parentesco do rosa com o vermelho (que seria uma
cor forte e, portanto, masculina), e a associação do azul com
a Virgem Maria, usualmente representada na tradição católica
usando essa cor. Não houve um acordo sobre o gênero das duas
cores até meados do século XX, quando o rosa começou a se
cristalizar como feminino.
3
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
sexo e gênero
Construção social
Em Chega de rosa!, vemos o esforço de uma menina tentando
desconstruir o discurso dos pais e da escola. A situação é difícil
porque essas são as principais fontes de autoridade para a criança: o que pai e mãe dizem costuma ser tomado como verdade
absoluta, lei; o que se ensina na escola, também, embora em
menor grau. A casa ainda é o ambiente em que a criança deveria
sentir-se mais segura e acolhida, confortável para expressar-se
livremente. Assim, não é de espantar que a criança sinta-se
confusa e desamparada ao constatar o descompasso entre seus
gostos e vontades, seu modo de ser, e o que dela esperam a
família e a escola.
A protagonista mostra ter coragem e força para enfrentar
essas expectativas, procurando argumentos para fortalecer sua
posição. Ela recorre a outras crianças que tampouco agem de
acordo com os padrões; a cada exemplo, lembra a voz dos pais
e da sociedade, mostrando como sua situação é conflituosa:
Augusto faz roupinhas para seus bonecos, “mas minha mãe
diz que costurar é coisa de menina” (p. 12); Carlos gosta de
pintar flores e joaninhas, “como as meninas” (p. 22), e preferiria ter um colar de pérolas ou um bastão de baliza em vez
de carrinhos, “Mas todos dizem que isso é coisa de menina”
(p. 26), e também sofre com a incompreensão alheia: é considerado “sensível demais” (p. 22), e brigam com ele quando
pinta flores nos carrinhos.
Quando a protagonista diz: “Então perguntei em casa por
que as meninas não podem gostar de coisas de meninos e vice-versa. E me responderam porque não... Isso lá é resposta?!”
(p. 28), fica claro como os adultos estão despreparados para
lidar com a diferença, colocando em pauta a necessidade de
esclarecimento sobre noções como sexo, gênero e sexualidade.
Os termos “sexo” e “gênero” possuem sentidos distintos,
embora frequentemente sejam tomados como sinônimos. Em
linhas gerais, o sexo pode ser definido a partir das diferenças
biológicas nos genitais, cromossomos e características sexuais
secundárias, ao passo que o gênero diz respeito às noções de
masculinidade e feminilidade construídas do ponto de vista
sociocultural. Assim, uma pessoa do sexo feminino pode assumir um papel de gênero com características tradicionalmente
4
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
masculinas, por exemplo, escapando aos estereótipos culturais. Isso pode, ou não, corresponder à orientação sexual do
indivíduo, que aparece como um terceiro conceito, indicando
se ele é homossexual, heterossexual, bissexual, assexual ou se
assume algum outro tipo de sexualidade que não se encaixa
nas definições mais comuns, distante da distinção binária entre
masculino e feminino.
No seu processo de autoafirmação, a protagonista de Chega de
rosa! reflete justamente sobre a distinção entre sexo e gênero, ao
observar a si mesma e a seus amigos. Ela sabe que é uma menina,
por sua anatomia e alguns traços físicos e também culturais, mas
gosta de uma porção de coisas que seu pai classifica como “coisa
de menino” (p. 20): pedras, fósseis, dinossauros, “histórias dos
primeiros homens”, insetos, aranhas, minhocas, guindastes. Ela
também sabe que Augusto e Carlos são meninos “de verdade”
(p. 14), embora gostem de atividades consideradas femininas.
Sabe que ela e seus amigos podem escolher seu modo de ser de
acordo com suas preferências e se rebela contra a classificação
que a mãe tenta lhe impor, chamando a filha de “arremedo de
menino” (p. 8) e negando-lhe identidade própria. A definição
materna ocorre por negação, não por afirmação; ocorre, portanto, pelo erro, pela falta: ela não é nem menina nem menino
“de verdade”: “parece, mas não é” (pp. 8-10).
A menina reverte, bravamente, a suposta falta a seu favor,
rebelando-se contra os pais: “Eu não quero mais ser vista
como um remendo de menino. ‘Arremedo’, minha mãe me
corrige. Tanto faz, não quero mais! Não quero por me achar
uma menina perfeita, mesmo que eu não goste de rosa. Nem
ligo, não sou obrigada a gostar” (pp. 30-2). Assim, ela assume
seu direito de ser menina e exercer uma identidade de gênero
própria, baseada em seus gostos e não em uma suposta determinação biológica.
Histórico
A distinção entre sexo como termo biológico e gênero como
termo social, cultural e psicológico começou a ser difundida
nos anos 1970, graças à atuação de correntes políticas e teóricas
do feminismo. Essa distinção permitia o reconhecimento das
diferenças sexuais ao mesmo tempo que se fazia a crítica da
desigualdade de gêneros, liberando a mulher de um destino
5
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
determinado biologicamente. A obra da socióloga britânica Ann Oakley (1944-) contribuiu em grande parte para a
popularização dessa diferença, investigando os processos de
socialização como responsáveis pela conformação das pessoas
a noções tradicionais de masculino e feminino. O debate sobre sexo e gênero tem, contudo, diversos antecedentes, como
a obra da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986)
e as pesquisas do psicólogo John Money (1921-2006) e do
psiquiatra Robert Stoller (1924-1991).
Hoje, a distinção entre sexo e gênero é largamente utilizada,
sendo adotada por entidades como a Organização Mundial
da Saúde e a Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação, organização não governamental dos Estados Unidos. Contudo,
não existe consenso sobre a distinção entre sexo e gênero, nem
sobre a definição desses termos. No livro Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade (Civilização Brasileira,
2003), a influente teórica norte-americana Judith Butler
(1956-) faz uma revisão da teoria feminista, dissolvendo a
dicotomia entre sexo e gênero. De acordo com ela, a própria
noção de sexo é fruto de construção sociocultural. O sexo não
seria, portanto, pura determinação biológica. Para a autora
haveria, sobretudo no Ocidente, uma exigência opressora
de coerência entre sexo, gênero e uma prática ou exercício
da sexualidade compulsoriamente heterossexual. Assim, os
transexuais e transgêneros surgiriam como a subversão total
dessa ordem social.
Enquanto as ciências sociais desenvolvem os estudos
de gênero da perspectiva sociocultural, as ciências naturais
investigam a possibilidade de diferenças biológicas e genéticas influenciarem a formação da identidade de gênero nos
indivíduos. Alguns teóricos e pesquisadores criticam a dicotomia sexo/gênero argumentando ser enganosa e, no limite,
impossível, a separação entre fatores biológicos e sociais, entre
natureza e cultura.
Independente das divergências teóricas, o fundamental é
o reconhecimento e a crítica do uso social das diferenças, e a
necessidade de exercer a tolerância e a aceitação em relação
aos diferentes modos de configuração e existência do sexo, do
gênero e da sexualidade. Combater os estereótipos sexuais é um
passo importante na eliminação do preconceito, da exclusão,
da desigualdade e da violência baseada no sexo e no gênero.
Nesse sentido, a ação pedagógica da família e da escola na luta
6
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
trocadilho
Chamado formalmente de paronomásia, é
uma figura de linguagem que consiste na
aproximação de palavras diferentes que
possuem semelhança fônica, etimológica
ou formal. No livro de Nathalie Hense, o
trocadilho aparece em torno da principal
crítica contra a personagem central, chamada pelos próprios pais de “arremedo de
menino”. O insuportável, para ela, é a palavra “arremedo”, que ela logo transforma
em “remendo”. De fato, arremedo é o que
não está completo, o que não é perfeito,
o que foi malfeito; assim como um defeito
na roupa, que precisa ser remendado.
Outro trocadilho — agora entre as
palavras “telha” e “teia” — surge quando
ela tenta entender a acusação de sua mãe
fazendo uma comparação: “É como dizer
‘aranha na telha’ em vez de ‘aranha na
teia’: parece, mas não é. Eu tenho uma
aranha ‘na telha’, na cabeça: pareço, mas
não sou...” (p. 10). A garota escolhe um
de seus assuntos preferidos (as aranhas),
considerado de interesse tipicamente
masculino, para apropriar-se do discurso
materno, usando-o a seu favor e criando
uma excelente metáfora para seu modo
de ser. Se gostar de coisas “de menino”
é considerado uma maluquice, então
ela prefere ter uma “aranha ‘na telha’”
a conformar-se às expectativas alheias.
Ter uma “aranha ‘na telha’” significa,
para ela, ser uma menina bem-sucedida,
completa, e não um “arremedo de
menino” — além do fato de ela amar
as aranhas... A protagonista, esperta,
engraçada e cheia de recursos, faz uma
operação comum nos movimentos de
luta contra a discriminação: retoma para
si o uso de palavras antes usadas como
xingamentos; positiva termos antes usados
pejorativamente, destituindo assim os
ofensores de um poderoso instrumento de
agressão, a linguagem.
transtorno de identidade
sexual na infância
De acordo com a terminologia da
Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados
com a Saúde, conhecida como CID e
publicada pela Organização Mundial
da Saúde, essa condição é caracterizada
contra a intimidação ou assédio escolar (bullying, em inglês)
é de extrema importância, bem como o uso dos veículos de
comunicação e publicidade, que tendem a criar, reproduzir e
reafirmar estereótipos.
A protagonista de Chega de rosa! propõe que vejamos a realidade a contrapelo, refletindo sobre o mundo de modo crítico,
propondo novos discursos e atitudes em face da diversidade,
enunciando o direito à diferença com o trocadilho “Chega
de rosa, pronto! E para sempre eu quero ter uma aranha ‘na
telha’...” (p. 34).
b r i n ca n d o c o m o s pa p é i s d e g ê n e r o
Em países de língua inglesa, criou-se um termo para
pessoas que fogem aos estereótipos sexuais, identificando e
expressando seu gênero de modo não convencional: “gender
creative”, que às vezes é traduzido como “gênero-criativas”.
Outros termos utilizados em português são “gênero-fluidas”,
“gênero-independentes” ou “gênero-não-conformistas”.
Esses termos são interessantes porque fogem da classificação
médica. O fato de uma criança manifestar gostos geralmente
relacionados ao sexo oposto ou preferir ser tratada de acordo com
seu sexo de “escolha” não significa necessariamente que ela tenha
transtorno de identidade sexual na infância. O comportamento
também não determina a sexualidade futura, embora crianças
não conformistas em relação ao gênero possam, futuramente,
vir a fazer parte da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros). Membros dessa comunidade advogam,
em geral, que a sexualidade não é uma escolha, mas algo inato,
daí a substituição do termo opção sexual por orientação sexual.
Em todo caso, costuma haver concordância quanto ao fato de
que os costumes relativos a brinquedos, brincadeiras, roupas e
outros são adquiridos socioculturalmente.
Atribuir características psicológicas ao sexo é também uma
escolha: independência, agressividade e dominância são, para
o senso comum, traços masculinos valorizados nos meninos,
ao passo que sensibilidade, gentileza e emotividade são traços
femininos valorizados nas meninas. Esses mesmos traços são
indesejáveis e desestimulados no sexo oposto – o personagem
de Carlos é julgado “sensível demais” simplesmente por fugir a
esse padrão de comportamento.
7
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
por “um persistente e intenso sofrimento
com relação a pertencer a um dado sexo,
junto com o desejo de ser (ou a insistência de que se é) do outro sexo. Há uma
preocupação persistente com a roupa e
as atividades do sexo oposto e repúdio
do próprio sexo. O diagnóstico requer
uma profunda perturbação de identidade
sexual normal; não é suficiente que uma
menina seja levada ou traquinas ou que
o menino tenha uma atitude afeminada”.
(Fonte: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10. ed. v. 1. São Paulo:
OMS/Edusp, 2007, p. 358.)
Já na mais recente versão do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, conhecido como DSM-V, publicado em maio de 2013 pela Associação
Americana de Psiquiatria, o termo “transtorno” foi revisto e substituído por “disforia”. O novo termo teria a vantagem de
remover o estigma que a palavra “transtorno” possui, e sua adoção foi comemorada por membros da comunidade de
transexuais e transgêneros. Além disso, a
disforia de gênero passou a constituir uma
seção independente, separada do capítulo
sobre disfunções e transtornos sexuais, e
o DSM-V procurou ser mais específico e
cuidadoso no diagnóstico em crianças.
Seus autores afirmam ainda que o “não
conformismo de gênero” não é em si mesmo um distúrbio mental, e que a disforia
de gênero só pode ser diagnosticada se
existir sofrimento e angústia significantes do ponto de vista clínico, e se a não
identificação com o sexo de nascimento
provocar impedimentos na vida social e
nas ocupações normais do indivíduo.
Mesmo assim, o DSM-V tem sofrido
diversas críticas desde sua publicação.
Uma das principais diz respeito à própria
natureza do Manual, que tenderia a patologizar estados e situações que fazem parte
da vida (o luto, por exemplo), abrindo
portas para a abordagem medicamentosa
de qualquer tipo de condição mental.
Em todo caso, empregar a designação “crianças gênero-criativas” tem o mérito de afastá-las dos estereótipos,
dando-lhes espaço e liberdade para se expressar. Muitos
indivíduos e entidades têm se esforçado no sentido de desestigmatizar as experimentações infantis com os papéis de
gênero, mostrando-as como naturais, saudáveis, merecedoras de respeito e crédito por parte dos pais, da escola e da
sociedade em geral. O site gendercreativekids.ca, mantido
por grupos e organizações canadenses, procura fornecer
recursos para o apoio de crianças gênero-criativas e suas
famílias, escolas e comunidades. Nos Estados Unidos, a
escritora Lori Duron criou um blog pioneiro, narrando sua
experiência em criar um filho gênero-criativo: raisingmyrainbow.com. O blog foi transformado no livro Raising My
Rainbow: Adventures in Raising a Fabulous, Gender Creative
Son [Criando meu arco-íris: aventuras na criação de um
fabuloso filho gênero-criativo] em 2013. Nele, a autora ressalta a importância de nomear e afirmar o comportamento
do filho para lutar contra o preconceito e o abuso de poder:
ao dar ao comportamento do menino uma explicação e um
nome “legítimos”, Duron descobriu que conseguia desarmar
os possíveis intimidadores e agressores dele. Assumir o modo
8
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
de ser do filho, abertamente, sem disfarces ou vergonha,
tirou sua família da condição de vítima, colocando-a numa
posição de poder. Daí a importância das ações afirmativas,
como as diversas Paradas do Orgulho LGBT que acontecem
ao redor do mundo, no sentido de educar a sociedade para
a tolerância e o respeito às diferenças.
As crianças gênero-criativas precisam acima de tudo ser
aceitas e tratadas com respeito pelos pais, pois é fundamental
para elas que o ambiente familiar seja o lugar mais seguro
possível, onde se sintam confortáveis e amadas. Os meninos
Augusto e Carlos, assim como a protagonista de Chega de
rosa!, podem ser considerados gênero-criativos, já que não
atendem as expectativas da sociedade sobre sua expressão
ou identificação de gênero. Os pais da menina julgam seu
comportamento errado, como se por isso não fosse inteira,
perfeita: é o que se percebe quando a menina é chamada de
“arremedo de menino”. Vê-se que a pressão sobre as crianças
não faz com que abandonem o comportamento considerado
errado, mas gera angústia, raiva, tristeza e frustração, porque
as pessoas que mais lhes deveriam dar amor e proteção negam
e combatem seu modo de ser.
As pesquisas mais recentes em pediatria e psicologia infantil
sugerem ainda que a criança que cresce num lar extremamente
repressivo tem mais possibilidade de desenvolver um quadro
de depressão grave no futuro, expondo-se a situações de risco
e autodestrutivas, como o uso de drogas pesadas e a prática
de sexo sem proteção.
9
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
Para saber mais
NA SALA DE AULA
Para o aluno
FILMES
• Billy Elliot. Direção: Stephen Daldry.
Reino Unido, 2000, 110 min.
Tendo como pano de fundo uma greve de
mineradores, o filme mostra a trajetória de
um garoto de onze anos que aspira tornar-se bailarino profissional, lutando contra o
preconceito familiar e social.
• Frozen: Uma aventura congelante.
Direção: Chris Buck e Jennifer Lee. Estados
Unidos, 2013, 102 min.
Quando, sem saber, a jovem rainha Elsa
condena seu reino a um inverno eterno e
foge, cabe à sua irmã Anna deixar para trás
a boa vida de princesa para salvar ambos.
Esta história com protagonistas fortes e corajosas que tomam as rédeas de seu destino é
a animação de maior bilheteria da história.
• Valente. Direção: Mark Andrews, Brenda
Chapman e Steve Purcell. Estados Unidos,
2012, 93 min.
Todos querem que Merida seja uma princesa comportada e se case em breve, mas
a garota não tem o menor interesse nisso.
Caberá a ela salvar sua família e impedir
que o reino entre em guerra.
LIVROS
• BRUEL, Christian; GALLAND, Anne;
BOZELLEC, Anne. A história de Júlia e
sua sombra de menino. São Paulo: Scipione, 2010.
Os pais de Júlia sempre dizem que ela parece um menino, no jeito, nas roupas etc.
Uma manhã, ela percebe que sua sombra
assumiu o formato de um garoto e acaba
questionando sua própria identidade.
• MARTINS, Georgina. O menino que
brincava de ser. São Paulo: DCL, 2013.
Garoto quer fazer o papel de bruxa em
peça da escola e vira alvo do preconceito
dos colegas e até dos adultos.
• RIBEIRO, Marcos. Menino brinca de
boneca? São Paulo: Moderna, 2011.
Meninos podem chorar e usar cor-de-rosa?
Meninas podem jogar futebol e subir em
árvores? Levantando perguntas assim, o livro trata de questões de gênero de maneira
simples e clara para as crianças, citando
1. Um dos principais temas do livro é a separação entre
“coisas de menino” e “coisas de menina”. Como exercício
inicial, o professor pode pedir que cada aluno faça individualmente uma lista com coisas que considera masculinas
e femininas, incluindo brinquedos, brincadeiras, cores,
roupas, desenhos animados, programas de televisão,
filmes, livros, bichos e profissões, além de sentimentos,
atitudes e comportamentos. As listas e opiniões devem
ser compartilhadas em sala de aula; a partir do que os
alunos oferecerem, o professor pode organizar um debate,
procurando sempre abordar o assunto de modo crítico.
Por que determinado aspecto da cultura foi colocado no
campo do feminino ou do masculino? Pode-se afirmar
que uma cor ou um brinquedo pertence a um sexo específico, ou cores e brinquedos são para todos? E quanto
aos sentimentos? Somos livres para sentir e agir como
queremos, sem julgamentos?
2. Após essa primeira discussão, o professor pode propor
que façam uma pesquisa em grupos sobre as diferenças
culturais e comportamentais entre o Brasil e outros
lugares do mundo, entre nossa época e épocas anteriores, mostrando como os papéis de gênero variam.
Na Antiguidade e na Idade Média, homens e mulheres
usavam o mesmo tipo de túnica. Em países do norte
da África os homens ainda usam túnicas, assim como
na cultura tradicional escocesa existe o kilt, um saiote
masculino. Em alguns países do Oriente Médio, os
homens costumam passear de mãos ou braços dados e
cumprimentar-se com beijos. O próprio hábito brasileiro de furar as orelhas das meninas ainda bebês não
é comum nos Estados Unidos e em países europeus. A
pesquisa resultaria em um novo debate em sala de aula,
no qual o professor poderia introduzir os conceitos de
sexo, gênero e sexualidade. Pode-se aproveitar também
para discutir as noções de empatia, tolerância e aceitação
em relação a formas diferentes ou não convencionais de
comportamento e gosto.
10
Chega
de rosa!
• N at h a l i e H e n s e
exemplos de situações que acontecem na
escola e em casa.
• WOJTOWICZ, Jen. O menino que florescia. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges.
São Paulo: Edições SM, 2006.
Após cada noite de lua cheia, a mãe de
Vicente precisa podar as flores que brotam
no corpo do menino, para que ele não seja
malvisto na escola.
Para o professor
INTERNET
• “Laerte faz resenha em quadrinhos sobre
questões de gênero.” Ilustrada, Folha de
S.Paulo, 5 jan. 2013. Resenha em quadrinhos
sobre o livro Judith Butler e a teoria queer, de
Sara Salih (São Paulo: Autêntica, 2012).
Laerte apresenta, de forma crítica e divertida, algumas reflexões sobre sexo, gênero
e sociedade, incluindo sua experiência
como transgênero.Disponível em: <www1.
folha.uol.com.br/ilustrada/121055-laerte-faz-resenha-em-quadrinhos-de-livro-sobre-questoes-de-genero-veja.shtml>.
Acesso em: jan. 2015.
• Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da
Universidade de Campinas (Unicamp).
Traz bom material de pesquisa sobre as
questões de gênero, em diferentes áreas
do conhecimento, e dá acesso ao periódico Cadernos Pagu, que contém artigos,
documentos e resenhas sobre o assunto.
Disponível em: <www.pagu.unicamp.br>.
Acesso em: jan. 2015.
LIVROS
• AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São
Paulo: Contexto, 2006.
Pesquisa de doutorado que analisa a escola mista e propõe a coeducação, trazendo
à tona as relações de gênero na escola e o
desenrolar das diferenças hierarquizadas
entre os sexos.
• TEIXEIRA, Cíntia Maria; MAGNABOSCO,
Maria Madalena. Gênero e diversidade:
formação de educadoras/es. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
De modo claro e objetivo, apresenta os
principais temas relacionados à problemática de gênero, fornecendo subsídios para os
professores de ensino fundamental e médio.
3. O professor também pode orientar uma pesquisa em
grupo sobre o papel que a internet, a televisão, a publicidade, o cinema, a literatura e os video games possuem
na manutenção dos estereótipos sexuais e nos modelos
de masculinidade e feminilidade, e buscar exceções. Os
resultados da pesquisa seriam apresentados e discutidos
em sala de aula.
4. Outra possibilidade de abordagem do tema é propor aos
alunos que escolham algo de que gostem muito, como
uma peça de roupa, um brinquedo, uma atividade. Então,
cada um deverá imaginar que teve de se mudar com sua
família para um país imaginário, totalmente diferente, cuja
cultura condena, por alguma razão, aquilo que escolheu,
seja em função do sexo, da idade ou de algum outro fator.
Como seria lidar com o preconceito na vida cotidiana, na
escola, na rua, nos compromissos sociais? Como seria sofrer o assédio e a intimidação de colegas preconceituosos?
Como o aluno se sentiria? Como agiria? Como esperaria
que sua família e seus amigos se comportassem? A ideia
é escrever uma história em primeira pessoa sobre tudo
isso, e aqueles que quiserem poderão compartilhá-la com
a turma, lendo a redação em voz alta ao final.
5. Os alunos podem utilizar os resultados de suas pesquisas
sobre diferenças culturais e comportamentais para criar
uma galeria de personagens, com a ajuda do professor de
artes. A criação pode valer-se de técnicas mistas, como
pintura, desenho, colagem, fotografia etc. A principal instrução para a realização do trabalho é que haja um ponto
de vista empático entre o artista e o personagem retratado,
que pode ser baseado em uma pessoa real ou totalmente
inventada. É importante que não haja caricaturização
ou ridicularização, por isso a importância de fazer esta
atividade após as diversas rodadas de pesquisa e debates
entre os alunos. A conclusão pode ser uma exposição na
escola, tendo como tema a diversidade.
Chantal Castelli (poeta e doutora em Teoria Literária e
Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo – USP); edição Fabio
Weintraub e Lígia Azevedo; revisão Carla Mello Moreira.
elaboração do guia
11
Download