PEDAGOGIA-MOD2-VOL 2-TEORIA-DO - EAD

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unidade
Objetivos
O CONHECIMENTO
NA ERA MODERNA
Ao final desta Unidade, o aluno será capaz de:
• compreender como as ciências mudaram
definitivamente nossa civilização e a relação
entre ciência e o modo racionalista de pensar.
3
UNIDADE 3
Unidade
3
O CONHECIMENTO NA ERA MODERNA
1 INTRODUÇÃO
Uma série de eventos marca o início da Era Moderna: a
Reforma Protestante, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, a
Revolução Científica etc. Tais eventos são, por sua vez, resultado de
um longo processo histórico de vários séculos. Não cabe aqui explicálos em detalhe, apenas gostaríamos que você tivesse em mente que
a modernidade não surgiu do nada, como que por milagre. Por outro
lado, a Era Moderna marca uma nova maneira de pensar e agir no
mundo em que o sujeito se coloca no centro do universo e passa a
se orientar por regras que ele mesmo criou de modo autônomo. As
diferentes esferas da vida (economia, política, arte, ciência, direito)
se tornam autônomas umas em relação às outras, e não mais todas
unificadas em torno de uma única instituição: a Igreja Católica. A
Reforma Protestante abriu caminho para esse processo, mas não foi
só ela, havia uma insatisfação crescente de uma nova classe social – a
burguesia – com o conjunto de regras e costumes do mundo medieval,
que impediam o pleno desenvolvimento da sociedade burguesa,
juntamente com as inovações tecnológicas empregadas na indústria
nascente. Aos poucos, a burguesia foi dando forma à nova sociedade
nascente com o fortalecimento do Estado e sua separação do poder
eclesiástico. A burguesia patrocinou também o desenvolvimento das
artes e das ciências, produzindo uma verdadeira Revolução Científica
no século XVII. Com a Revolução Científica firmou-se um novo modo
de pensar e entender o mundo, centrado no sujeito pensante como
fonte de todo conhecimento possível, esse movimento filosófico ficou
conhecido como Racionalismo.
UESC
Pedagogia
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
2 A CIÊNCIA MODERNA E O RACIONALISMO
As
grandes
conquistas
da
ciência
moderna estão tão incorporadas ao nosso
cotidiano, que nos é difícil pensar como era o
mundo antes delas. Desde crianças sabemos
que a Terra é redonda e gira em torno do Sol,
cia/inercia.jpg
Figura 1 - Fonte: http://www.verdejava.com.br/educien-
SAIBA MAIS
porque vemos isso o tempo todo em filmes
e desenhos animados. A lei da inércia nos
parece algo observável e achamos absurdo
que alguém possa colocá-la sob suspeita.
Mas nem sempre foi assim. O cosmos
Lei da inércia, também conhecida como primeira lei de
Newton, afirma que todo corpo continua em seu estado de
repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a
menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças
aplicadas sobre ele. Essa lei se aplica a todos os corpos
dotados de massa, e pode ser demonstrada através de
eventos simples, como quando o ônibus dá uma freada
brusca e todos os passageiros tendem a continuar o
movimento em que se encontravam, ou seja, seus corpos
são impulsionados para frente.
medieval era bem diferente, as pessoas
acreditavam que a Terra era plana, pois é
isso que vemos quando olhamos em direção
ao horizonte, e que ocupava o centro do
Universo.
Acreditavam
também,
como
o
filósofo Aristóteles, que as leis que governam
o movimento dos astros não são as mesmas
que governam o movimento no mundo sublunar, ou seja, que existe
uma física terrestre e uma física celeste. O que possibilitou a união
entre as duas físicas foram as descobertas astronômicas de Galileu
Galilei, Kepler e Isaac Newton: mostraram que as leis que governam
o movimento dos astros são as mesmas que governam o movimento
dos corpos aqui na Terra. Por isso, podemos considerar que a física
moderna nasceu com sua lei mais fundamental: a lei da inércia que
estabelece que um corpo permaneça em repouso ou em movimento
retilíneo uniforme se nenhuma força exterior o fizer mudar de estado.
Isso parece muito lógico e produto da observação dos fenômenos,
mas ninguém nunca viu “um movimento de inércia, pela simples razão
de que tal movimento é inteiramente impossível” (KOYRÉ, 1991, p.
184). Como assim?
Veja o exemplo: um carro sai de Ilhéus em direção a Itabuna,
supondo que a distância entre as duas cidades é de 30 km e o carro
corre a 60km por hora, em quanto tempo chegará a Itabuna?
Resposta: em meia hora.
Na prática, porém não funciona assim, há a resistência do ar,
o vento, os buracos na estrada, o trânsito, subidas, descidas... Mas
nada disso é levado em conta porque são fatores imponderáveis. Ou
seja, não dá para prever exatamente todos os possíveis problemas
que podem ocorrer, apenas aproximativamente. Então, o que os
físicos fazem é usar um modelo abstrato que nos garante um bom
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Módulo 2
I
Volume 2
EAD
grau de precisão.
Na ciência moderna, como sabemos, o espaço real se identifica
com o da geometria, e o movimento é considerado como uma
translação, puramente geométrica, de um ponto a outro. Daí porque o
movimento não afeta, de modo algum, o corpo que dele está dotado.
O fato de estar em movimento ou em repouso não produz qualquer
modificação no corpo. Esteja em movimento ou em repouso, ele é
sempre idêntico a si mesmo.
Se o corpo é indiferente ao movimento ou ao repouso,
como saber se ele está parado ou em movimento? Por exemplo, a
velocidade de rotação da Terra é de 1674 km por segundo, mas nós
não sentimos o seu movimento, se ela parasse repentinamente, aí
3
sentiríamos os seus efeitos, e como! A única maneira de sabermos
se algo está em movimento ou se está parado é em relação a outro
Unidade
corpo. Se você estiver em um trem e outro estiver emparelhado ao
seu e um dos dois começar a se mover, você só saberá se é o meu
ou o do vizinho quando já não estiverem mais alinhados. Isso porque
quando o meu trem está se movendo, quem se move é a paisagem,
pois tudo dentro do trem continua no mesmo lugar. Daí, podemos
concluir que todo movimento é relativo. Ora, isso era muito difícil
de ser compreendido na Idade Média, e mesmo hoje, ainda existem
pessoas que acham que a Terra está parada. Para criar uma nova
teoria do conhecimento era preciso modificar nossa visão habitual
das coisas e nossa confiança cega nos sentidos.
Os
sentidos
percebem
primordialmente
qualidades,
a
epistemologia aristotélica parte da abstração das qualidades para
separar o que é essencial do que é contingente. A ciência moderna,
porém, realiza o processo inverso: ela parte de modelos abstratos
para descrever como são os fenômenos. Nesses modelos não há lugar
para qualidades, apenas para extensão e medida. Parte-se de modelos
geométricos e matemáticos simples para derivar as leis mecânicas que
Figura 2 - René Descartes por Frans Hals
Fonte: “Descartes”
http://commons.wikimedia.org/
regem o universo. O problema é: em que se fundamenta esse novo
conhecimento? O que me garante que os corpos tendem a continuar
o movimento em que se encontram por força da inércia e não porque
sofrem a ação do ar, ou outro meio qualquer, que os impelem? As
novas ideias da mecânica clássica já não cabiam dentro de uma visão
de mundo aristotélica, era preciso uma nova epistemologia que fosse
compatível com a nova ciência, basicamente, a ideia de evidência
como conformação entre ideia e o objeto intuído pelos sentidos.
SAIBA MAIS
A óptica é um ramo da
Física que estuda a luz
ou, mais amplamente, a
radiação eletromagnética,
visível ou não.
As bases dessa nova teoria do conhecimento foram elaboradas
por René Descartes (1596-1650) que, além de filósofo, realizou
estudos em
UESC
mecânica, óptica e medicina. Sem falar no famoso
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
plano cartesiano, que tem esse nome em sua homenagem, e que é
uma síntese entre álgebra e geometria. Em seu Discurso do método,
publicado originalmente em 1637, Descartes relata sua admiração
pela precisão da matemática e da geometria, enquanto em outros
campos de conhecimento não havia consenso sobre coisa alguma,
principalmente na filosofia. Por isso, Descartes coloca a si mesmo
o desafio de encontrar um fundamento suficientemente firme para
alicerçar todas as ciências. O método empregado por Descartes foi de
[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira
que eu não conhecesse evidentemente como tal;
isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não
se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu
espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pôlo em dúvida (DESCARTES, 1987, p. 37).
Descartes começa por suspeitar do conhecimento sensível,
pois os sentidos enganam: quando colocamos um lápis em um copo
d’água vejo o lápis como se estivesse quebrado, mas na realidade
não está. Da mesma forma vejo o sol bem maior no poente do que
quando está a pino, mas é o mesmo sol. Ora, se os sentidos enganam
como posso ter certeza de quando estão me informando algo
verdadeiro ou falso? Na dúvida, é melhor rejeitar todo conhecimento
que recebemos através dos sentidos. Bom, posso ainda confiar nas
ideias que tenho e que não recebi dos sentidos, por exemplo, as
demonstrações matemáticas e da geometria, certo? Ora, mas quando
dormimos, imaginamos coisas que não existem. Então como garantir
que minhas ideias não eram também ilusórias?
Você conhece a história do sábio chinês que sonhou que era
uma borboleta e depois não sabia se era um sábio que havia sonhado
que era uma borboleta, ou uma borboleta que sonhava que era um
sábio chinês? Como distinguir nossas lembranças e ideias verdadeiras
das falsas?
Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu
queria assim pensar que tudo era falso, cumpria
necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma
coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam
capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que
procurava (DESCARTES, 1987, p. 46).
Se eu duvido, penso, se penso, sou uma coisa que pensa, se
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agora estou pensando, então eu existo, eis aí algo que é verdade e
que resiste a cada tentativa minha de duvidar dela. Isso porque é
algo evidente, ou seja, algo que se apresenta clara e distintamente
ao meu espírito, de modo que não preciso perguntar qual seria o
fundamento desse fundamento, por se tratar de uma verdade que se
impõe por si mesma. Mas o que difere a fundamentação de Descartes
de toda filosofia anterior?
Primeiro,
porque
Descartes
procura
fundamentar
o
conhecimento sem ter que recorrer a Deus como primeiro princípio e o
faz requalificando o conceito de evidência. Evidência é para Descartes
uma certeza intuitiva tal como o era para os medievais, mas uma
evidência que não é uma percepção imediata de um objeto e sim
3
aquilo que é claro e distinto. As percepções sensórias não passam
por esse crivo, visto que os sentidos enganam. A única coisa que
Unidade
não pode ser posta em dúvida é o sujeito pensante em que se funda
todo conhecimento. Dessa forma, se quero saber se uma das minhas
ideias é verdadeira não basta verificar se ela corresponde a um objeto
(como na filosofia aristotélica), mas se ela se apresenta de maneira
clara e distintamente ao meu espírito como uma certeza intuitiva da
qual não posso duvidar.
O critério de validade do conhecimento passa da relação do
sujeito com os objetos, para a relação entre o sujeito e suas próprias
representações mentais. As sensações são ilusórias e a única forma
de conhecimento certo é o que pode ser representado como res
extensa, ou seja, o que pode ser mensurável, como os objetos da
física e das matemáticas.
Filosofia aristotélica
Filosofia cartesiana
Verdade é a adequação entre o
Verdade é o que é claro e distinto
intelecto e a coisa pensada > relação
> relação entre sujeito e suas
do sujeito com os objetos.
representações mentais.
3 INATISMO E EMPIRISMO
Apesar do sólido fundamento que nos fornece Descartes, ainda
fica sem resposta a questão dos universais. Lembra da querela dos
universais na Idade Média? Se as ideias gerais existiam apenas em
nosso intelecto ou se eram reais? Pois bem, Descartes resolve essa
discussão afirmando que nós temos ideias inatas. “As idéias gerais
já estão no espírito, são os instrumentos que o Criador nos dotou
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Pedagogia
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
para fundamentar a aquisição de verdades. Por isso as idéias são o
verdadeiro ponto de partida” (LEOPOLDO; SILVA, 1987, p.179).
Tal solução não pareceu muito convincente para o filósofo
inglês John Locke (1632-1704), que propôs uma solução empirista
para o problema do conhecimento. A palavra empiria vem do grego e
se refere ao conhecimento que adquirimos não a partir do raciocínio
lógico, mas da experiência sensível. Para os empiristas, todo nosso
conhecimento tem sua origem na experiência, embora não se reduza
a ela.
Para Locke, nossa mente é como uma folha de papel em branco
na qual as impressões sensíveis vão se depositando. Através de
processos mentais, essas impressões sensíveis vão se transformando
Figura 3 - John Locke
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
em ideias. “Precisamente o que distingue uma ideia de uma impressão
é que a ideia é menos vivaz, tem menos força do que uma impressão”
(LEOPOLDO E SILVA, 1987, p. 179). É como pensar em uma pessoa
conhecida, nossa mãe, por exemplo, imediatamente nos vem a
imagem da pessoa, seu jeito, a expressão do seu rosto, e talvez
até possamos sentir um odor agradável que nos leva diretamente a
nossa infância. Mas quando penso na ideia geral de homem, ou de ser
humano, não penso em ninguém em particular, talvez sobre apenas
uma silhueta sem rosto, sem cor da pele, ou seja, toda a vivacidade vai
embora. Assim, nossas ideias são compostas a partir de impressões,
sem elas, nossa mente permaneceria vazia. Por exemplo, poderíamos
achar que 5 + 5 = 10 é uma verdade universal da qual nenhum ser
racional poderia discordar, certo? Pois bem existem tribos de índios,
como os pirarrãs que não sabem contar até 10. O que mostra que os
conceitos universais, não são tão universais assim.
Além disso, mesmo nossa imaginação, por mais livre que
possa parecer, está presa à experiência. Veja o que diz outro filósofo
empirista, David Hume (1711-1776):
Mas, embora nosso pensamento pareça possuir essa
liberdade ilimitada, examinando o assunto mais de
perto vemos que em realidade ele se acha encerrado
dentro de limites muito estreitos e que todo o poder
criador da mente se reduz à simples faculdade de
combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais
fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando
pensamos numa montanha de ouro, não fazemos
mais do que juntar duas ideias compatíveis entre si,
ouro e montanha, que já conhecemos anteriormente.
Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois os
nossos sentimentos nos levam à concepção de
virtude, e esta pode unir-se à figura e forma de um
cavalo, animal que nos é familiar. Em resumo, todos
os materiais do pensamento derivam da sensação
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interna ou externa; só a mistura e composição destas
dependem da mente da vontade. Ou para expressar
em linguagem filosófica, todas as nossas ideias
ou percepções mais fracas são cópias de nossas
impressões, ou percepções mais vivas (HUME, 1987,
p. 134).
Hume vai ainda mais longe em suas conclusões, ao propor
que, assim como não existem ideias inatas, tampouco existe um
fundamento para nossa crença na causalidade.
Hume se questiona sobre o que nos permitiria estabelecer
relações entre fatos isolados, tais como “A causa B” generalizado para
“sempre que ocorrer A teremos B”. Relações como essas não podem
ser derivadas dos próprios fatos, pois esses não trazem inscritos
Figura 4 - David Hume
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
3
em si mesmos nenhuma normatividade que diga como eles devem
Unidade
se comportar necessariamente. Ou seja, que o sol tenha nascido
hoje não implica, por necessidade, que virá a fazê-lo novamente
amanhã. A normatividade que admitimos em determinados eventos,
tais como “o sol nascerá amanhã”, é derivada, segundo Hume, de
nossa tendência psicológica em formar hábitos. O hábito de ver algo
ocorrer sempre do mesmo modo nos induz a acreditar que no futuro
as coisas seguirão como antes. Mas essa é uma disposição puramente
psicológica que, em última análise, não legitima qualquer fundamento
lógico do entendimento ou razão.
Este princípio é o costume ou o hábito. Visto que
todas as vezes que a repetição de um ato ou de
uma determinada operação produz uma propensão
a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem
ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do
entendimento, dizemos sempre que esta propensão
é o efeito do costume (HUME, 1987, p.86).
Como todos os fatos são particulares, não pode a experiência
ser a fonte de nossos conhecimentos, pois não se pode derivar regras
universais de casos particulares. Daí que todo o nosso conhecimento
se assenta em uma disposição psicológica de nosso espírito não
tendo, portanto, uma base racional. O que não quer dizer que tal
conhecimento não seja indispensável para a construção da ciência e
para assegurar a sobrevivência humana. Apenas suas bases não têm
a necessidade e a validade de que dispõe a forma dedutiva pura da
racionalidade lógico-formal das matemáticas, que não se referem a
coisas realmente existentes.
O costume é, pois, o grande guia da vida humana.
É o único princípio que torna útil nossa experiência
e nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
semelhantes àqueles que apareceram no passado.
Sem a influência do costume, ignoraríamos
completamente toda questão de fato que está fora
do alcance dos dados imediatos da memória e dos
sentidos. Nunca poderíamos saber como ajustar
os meios em função dos fins, nem como empregar
nossas faculdades naturais para a produção de um
efeito. Seria, ao mesmo tempo, o fim de toda ação
como também de quase toda especulação (HUME,
1987, p.87).
4 KANT
E
AS
CONDIÇÕES
DE
VALIDADE
DO
CONHECIMENTO
Immanuel Kant (1724-1804) faz da afirmação de Hume, de
que não existe um fundamento empírico necessário à ciência e muito
menos para a metafísica, o seu ponto de partida. Ele radicaliza o
problema da validade de nosso conhecimento, para além do conceito
Figura 5 - Immanuel Kant
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
de causalidade que Hume tinha examinado, buscando fundamentar
toda forma de conhecimento. Para tanto, Kant diferencia as formas
de conhecimento entre a priori e a posteriori.
Os conhecimentos a posteriori são aqueles adquiridos através
da experiência. Esse tipo de conhecimento não apresenta dificuldades,
pois a experiência não é nada mais que uma contínua junção ou síntese
de percepções. A validade dessa forma de conhecimento, porém,
não pode se assentar unicamente na experiência, como já havia
demonstrado Hume. A questão que se coloca, portanto, é se existem
conhecimentos a priori, ou seja, conhecimentos absolutamente
independentes da experiência e que, por não estarem mesclados a
nada de empírico, são também chamados por Kant de puros. Tais
conhecimentos seriam não só independentes da experiência, mas
constituiriam as próprias condições de possibilidade de toda e qualquer
experiência. Dessa forma, seria possível demonstrar que, ao contrário
do que pensava Hume, o conhecimento advindo da experiência não é
fruto de uma mera atividade psicológica do sujeito, mas possui uma
base de validade objetiva.
Semelhante condição poderia ser o fundamento de todas as
formas de conhecimento por seu caráter universal e necessário, ambos
critérios que estão ausentes na experiência empírica. “Necessidade e
universalidade rigorosa, são, portanto, seguras características de um
conhecimento a priori e também pertencem inseparavelmente uma à
outra” (KANT, 1987, p. 26). A tarefa da Crítica da razão pura, como
o próprio nome já indica, é a de examinar as condições a priori da
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Volume 2
EAD
validade do conhecimento.
Além da distinção entre conhecimentos a priori e a posteriori
é também fundamental a distinção que Kant opera entre juízos
analíticos e sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles que não trazem
um novo conhecimento, mas apenas esclarecimentos para aquilo que
já se conhece, por exemplo, quando se diz: “os corpos são extensos”
não se acrescenta nenhum conhecimento, pois no conceito de corpo
já está contido o conceito de extensão. Portanto, se abstrairmos
de um corpo qualquer de suas características contingentes como
cor, cheiro, textura etc., sobrará uma característica que se aplica a
todos os corpos em quaisquer circunstâncias: a de ser extenso. No
caso dos juízos sintéticos é que Kant introduz algo completamente
3
original, pois além dos juízos de experiência que são todos sintéticos,
Kant se pergunta pela possibilidade de existirem juízos sintéticos a
Unidade
priori. Esses juízos estariam presentes como princípios em todas as
ciências teóricas da razão: na matemática, na física e na metafísica.
Nesse sentido, o problema geral da razão pura poderia se resumir na
questão: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Ao invés de
investigar os objetos que são infinitos, Kant se volta para o exame da
própria faculdade que fornece os princípios do conhecimento a priori,
a razão. “Pois a razão é a faculdade que fornece os princípios do
conhecimento a priori. Por isso a razão pura é aquela que contém os
princípios para conhecer algo absolutamente a priori” (KANT, 1987, p.
34).
A crítica teria principalmente uma utilidade negativa de
“purificação da nossa razão” impondo limites à livre especulação da
metafísica. Ao exame da razão pura, Kant denominou de filosofia
transcendental. “Denomino transcendental todo conhecimento que
em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com nosso modo de
conhecimento de objetos na medida em que esse deve ser possível
a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia
transcendental” (KANT, 1987, p. 35).
Segundo Kant, há dois troncos do conhecimento, “sensibilidade
e entendimento: pela primeira os objetos são-nos dados, mas pelo
segundo são pensados” (KANT, 1987, p. 36). As formas a priori pelas
quais os objetos são dados são o tempo e o espaço e pelas quais
eles são pensados são as categorias do entendimento. O múltiplo das
representações é a receptividade, mas a ligação do múltiplo não pode
advir dos sentidos. Ela é um ato da espontaneidade, da capacidade
de representação. Toda ligação é um ato de síntese do entendimento,
não pode ser dada pelos objetos, tampouco surgir de si mesma. “Esta
unidade, que precede a priori todos os conceitos de ligação, não é
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
aquela categoria da unidade, pois todas as categorias se fundam
sobre funções lógicas em juízos, mas nestes já é pensada a ligação e,
por conseguinte, a unidade de conceitos dados” (KANT, 1987, p. 80).
Resta saber, portanto, como se origina essa unidade.
Kant define a atividade de síntese como “a ação de acrescentar
diversas representações umas às outras e de conceber a sua
multiplicidade num conhecimento” (KANT, 1987, p. 68). A síntese
de um múltiplo, seja ele puro (como as formas do espaço e do
tempo) ou empírico, não deriva desse múltiplo, mas algo que lhe é
adicionado. Ou seja, a síntese é transcendental “não só porque se
processa a priori, mas também porque condiciona a possibilidade de
outros conhecimentos a priori” (KANT, 1987, p. 88). A atividade de
síntese revela o papel autônomo das faculdades do sujeito que não
se restringem a um papel de mera recepção dos dados dos sentidos,
como afirmavam os empiristas, mas um papel ativo de legislação
sobre esses dados relacionando-os a conceitos, princípios e regras,
garantindo-lhes uma objetividade que a mera experiência jamais
poderia oferecer. Por outro lado, Kant se afasta do idealismo por não
serem as faculdades do sujeito as produtoras dos dados da experiência,
já que a sensibilidade tem uma função meramente passiva de recepção
da diversidade sob as formas do espaço e do tempo. A imaginação é a
faculdade responsável por sintetizar as aparições da sensibilidade em
representações. Mas para que tais representações possam se tornar
um conhecimento são necessárias duas coisas. Primeiro, a unidade
de uma consciência na qual as representações devem estar ligadas.
A unidade sintética da consciência é, portanto, uma
condição objetiva de todo o conhecimento, de que
preciso não apenas para mim a fim de conhecer um
objeto, mas sob qual toda intuição tem que estar
a fim de tornar-se objeto para mim, pois de outra
maneira e sem essa síntese o múltiplo não se reuniria
numa consciência (KANT, 1987, p. 83).
Em segundo lugar, o conhecimento implica uma relação
necessária com o objeto, ou seja, o diverso representado deve ser
reconhecido em um objeto (isto é uma cadeira, aquilo um livro etc.).
Essas duas determinações do conhecimento têm
uma profunda relação. As minhas representações
são minhas, na medida em que estão ligadas na
unidade de uma consciência, de tal modo que o ‘Eu
penso’ as acompanhe. Ora, as representações não se
unem assim em uma consciência, sem que o diverso
que elas sintetizam se relacione, por isso mesmo,
a um objeto qualquer. Não há dúvida de que só
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Volume 2
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conhecemos objetos qualificados (qualificados como
tal ou tal por uma diversidade). Mas nunca o diverso
se relacionaria a um objeto se não dispuséssemos da
objetividade como de uma forma em geral (‘objeto
qualquer’, ‘objeto= x’). De onde vem essa forma?
O objeto qualquer é o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua
objetivação formal. Do mesmo modo, a verdadeira
fórmula (sintética) do Cogito é: eu me penso e, ao
me pensar, penso o objeto qualquer ao qual relaciono
uma diversidade representada (DELEUZE, 1976, p.
29-30).
É, portanto, a atividade de síntese do entendimento que garante
a validade objetiva do conhecimento. “A unidade transcendental da
3
apercepção é aquela pela qual todo o múltiplo dado numa intuição
Unidade
é reunido num conhecimento do objeto” (KANT, 1987, p. 84). Ela
permite que o sujeito se dê conta de suas representações e as conecte
umas às outras no fluxo da consciência, permitindo que o sujeito
tenha um conhecimento reflexivo sobre elas.
Kant considera a unidade da apercepção “o princípio supremo
de todo conhecimento humano” (KANT, 1987, p. 82). É ela que
garante a validade objetiva do conhecimento, ou seja, que lhe dá
universalidade e necessidade.
Dessa forma, Kant pretendeu ter demonstrado que a validade
objetiva de nossos conhecimentos deriva da atividade legisladora
do entendimento que constitui as leis a que todos os fenômenos
estão submetidos do ponto de vista de sua forma. Na atividade do
conhecimento, a faculdade do entendimento é dominante, já que a
“razão pura deixa tudo ao encargo do entendimento que se refere
imediatamente aos objetos da intuição ou, antes, à sua síntese na
capacidade de imaginação” (KANT, 1988, p. 22).
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Teoria do Conhecimento
O Conhecimetno na Era Moderna
ATIVIDADE
5 ATIVIDADES
As questões a seguir têm como objetivo ajudar a fixar tudo que aprendemos até agora.
Elas seguem a ordem em que está organizado o texto, portanto, seria melhor respondêlas na sequência em que estão. Após respondê-las seria bom confrontar suas respostas
com as dos colegas no Seminário Integrador e esclarecer as dúvidas com o tutor. Depois,
reformule suas respostas, se for o caso, e entregue suas respostas ao tutor.
1. Qual o fundamento de todo conhecimento possível segundo Descartes?
2. Explique as diferenças entre o inatismo e o empirismo sobre os fundamentos do
conhecimento?
3. Explique, segundo Kant, como são possíveis os raciocínios sintéticos a priori.
6 REFERÊNCIAS
Veja a série de textos elaborada por Josué Cândido da Silva sobre
a teoria do conhecimento na página do UOL - Educação: http://
educacao.uol.com.br/filosofia/teoria-conhecimento-1.jhtm
REFERÊNCIAS
DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Nova Cultural,
1987. (Coleção Os Pensadores).
DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora, 1976.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano.
São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores).
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Volume I. São Paulo: Nova
Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores).
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.
Volume II. São Paulo:
Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores).
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico.
São Paulo: Forense Universitária, 1991.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Teoria do Conhecimento. In: VVAA.
Primeira Filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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Suas anotações
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