AMOR ESTRANGEIRO Qualquer casamento está sujeito a problemas, mas o choque cultural da união com um estrangeiro pode ser um agravante intransponível POR CARLOS DIAS E DAYANNE MIKEVIS FOTOS: DÁRCIO TUTAK Daniel havia ganho uma bolsa de estudos em Nova York e um mês depois de sua chegada se sentia sozinho. "As diferenças culturais eram maiores do que eu imaginava", avalia. Por conta disso, todas as noites jantava sozinho num lugar diferente, quase sempre um fast-food qualquer, até que um dia entrou numa pizzaria. "A massa era ótima, mas eu fiquei encantado mesmo foi com Diana", relembra. Imigrante etíope, a moça era dona do pequeno e despojado restaurante em sociedade com duas irmãs. "Passei a comer pizza todos os dias", diverte-se Daniel. "Aos poucos ela foi se aproximando, puxando conversa, até que tomei coragem e a convidei para sair." O namoro começou na primeira noite. "Não posso negar que havia para mim um charme especial em namorar uma africana nos Estados Unidos", revela. Após duas semanas, porém, Daniel diz que passou a se ressentir da falta de atração física que ela parecia demonstrar em relação a ele. Por mais que entendesse que Diana vinha de uma cultura conservadora, ele esperava mais de alguém que vivia na mais cosmopolita das cidades. O que ele não sabia é que a maioria das meninas etíopes - Diana inclusive - tem seu clítoris extraído a sangue-frio até no máximo os 8 anos de idade. O mundo desabou para Daniel e com ele ruiu o relacionamento. "Eu podia tentar me adaptar a tudo, menos a uma mulher que não poderia jamais sentir prazer", admite. CHOQUE CULTURAL "O casamento, em geral, apresenta uma situação de homogamia, isto é, de similaridade," afirma o professor Aílton Amélio, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, USP. "Os opostos até se atraem, mas dificilmente ficam juntos," acrescenta Aílton, que dirige o núcleo de estudos sobre o relacionamento amoroso na universidade. "A máxima de que os opostos se atraem é um mito." No caso de um relacionamento com pessoas de outros países, valem os mesmos princípios, mas com um agravante: as diferenças culturais. No caso de Daniel e Diana, essas diferenças eram extremas: nenhum dos dois tinha condições de realmente compreender a importância que o outro dava para a questão. FACCÕES DO PT Isso não quer dizer, evidentemente, que toda relação entre estrangeiros tenha problemas intransponíveis. O atrito religioso, por exemplo, existe, mas não atrapalha a relação da estudante de publicidade e propaganda Rosiney Cristiane Ribeiro e do engenheiro Santiago González Sanchéz. Ela se define como "evangélica fervorosa" e gostaria que ele se dedicasse mais à igreja. Santiago, que nasceu na Espanha, é de Um romance paulistano: Rosiney e Santiago se conheceram na fila para sair da balada família católica. Eles se conheceram em uma casa noturna na noite paulistana, na espera para pagar a comanda. "Foi uma fila que valeu a pena", brinca Rosiney. O casal está junto há quatro anos e meio. A única vez que Rosiney ficou apreensiva foi quando visitou a família de Santiago, na Espanha. Ele já havia advertido que ela poderia ter problemas com sua avó, uma senhora de um vilarejo no norte do país. "Não sei se ela tinha visto algum negro pessoalmente na vida", conta a brasileira. Mesmo assim, não teve problemas. O mesmo não se pode dizer de Alice. Há alguns anos, em Porto Seguro, na Bahia, ela conheceu Helmut, um professor universitário alemão que passava férias no Brasil. "Foi amor à primeira vista, ou melhor, à primeira palavra", diz ela. "Em vez do xaveco normal, ele me conquistou quando perguntou quantas facções tinha o PT." Depois de um mês, ele teve de voltar à Alemanha, mas o relacionamento continuou por carta. A paixão era tamanha que ela começou a estudar alemão. Três meses depois, ele a convidou para ir morar com ele na Alemanha. Alice aceitou na hora. Fez as malas e embarcou para um país estranho. "Eu sabia que haveria problemas, mas acreditava que ele agüentaria o tranco", conta ela. "Mas ele, mesmo com 33 anos, desmontou diante das pressões da família." Ela conta que não era aceita de forma nenhuma pela sogra. "Eu não sabia bem o alemão, mas conseguia entender direitinho os palavrões que ela usava contra mim", conta. Os problemas maiores, no entanto, eram com a ex-mulher e mãe dos filhos de Helmut. Segundo Alice, ela dizia que as brasileiras eram prostitutas e, portanto, um péssimo exemplo para as crianças. Além disso, havia o racismo de todos os lados. "Mesmo assim, eu estava disposta a enfrentar tudo", assegura Alice. "O problema é que ele era muito dependente da mãe e não resistiu", lamenta. "Helmut terminou o relacionamento, mas queria que eu ficasse lá como amiga", conta. "Não dava para aceitar isso e voltei para o Brasil." Alguns têm mais sorte, como o angolano Filomeno Matias da Silva. Ele teve de aprender a lidar com a desconfiança da família da hoje sua mulher, Débora Marques Pereira. Se todo genro passa por testes na sala de estar dos sogros, Filomeno tinha um a mais. Por ser africano, chegaram a suspeitar que ele estaria usando o relacionamento para conseguir um visto de permanência no Brasil. Com o tempo, o problema da desconfiança da família foi superado. Casados há três anos, são os pais de Débora, de 1 ano. O que aproximou o casal foi o interesse dela por aprofundar suas raízes africanas. Filomeno, que veio ao país estudar filosofia, já morava aqui havia quatro anos quando a conheceu, em 2002. A aproximação foi rápida e, após três meses de namoro, decidiram se casar. A coordenadora do núcleo de relacionamentos interculturais do Instituto de Psicologia da USP, Sylvia Dantas De- Biaggi, afirma que o casamento entre estrangeiros é uma forma de contato entre culturas. "Não envolve apenas diferentes nacionalidades, mas também a expectativa em relação ao papel feminino e ao masculino", diz. "E cada um traz o sistema de valores próprio da sua cultura." A FÓRMULA DOS CASAMENTOS DURADOUROS De acordo com pesquisas realizadas pelo professor Aílton Amélio, há cinco fatores nos quais costumam se sustentar os casamentos duradouros - uma teoria esmiuçada no seu livro Para viver um grande amor, lançado pela editora Gente. Isso não quer dizer que a ausência de algum deles possa impossibilitar o relacionamento ESCOLHA A boa escolha do parceiro é o primeiro item. Nele, é importante notar que os opostos podem se atrair, mas dificilmente ficam juntos por muito tempo. Como o casamento é um projeto comum, planos em comum têm de ser traçados. CUSTO-BENEFÍCIO O item mede os diversos tipos de expectativas cobertas pela união ou não. Tais expectativas podem ser cobrir carências afetivas, financeiras e de status social. A recompensa também pode ser a beleza do outro e afinidade intelectual, entre outros quesitos. ALTERNATIVAS Momentos, oportunidades e janelas para a traição - de longe a maior causa de separações - entram neste tópico. INVESTIMENTO Como um plano mútuo, é importante levar em conta a medida de quanto o casal quer investir, apostar na relação. BARREIRAS Sejam culturais, legais, religiosas, as barreiras indicam o quanto o eventual fim da união vai ser aceita pelo grupo de convívio. Há um lado positivo e um negativo na premissa. O positivo é a liberdade, enquanto o negativo é o caráter descartável que o relacionamento pode vir a ter. À primeira vista: Filomeno e Débora se casaram em três meses e são os pais da pequena Débora Makieff É IMPORTANTE TER EM MENTE QUE NENHUMA CULTURA É SUPERIOR A OUTRA, PARA NÃO CRIAR UMA RELAÇÃO DESIGUAL AUTO-ESTIMA Segundo Sylvia, um casamento formado por pessoas de países distintos requer um período de adaptação. "É um processo. O convívio vai desmistificando conceitos", afirma. "O processo segue os passos da mudança de país. A pessoa tem o primeiro momento de euforia e depois pode se decepcionar e chegar a ficar deprimida. É importante que, no casamento, ela veja que nem tudo vai ser como o imaginado, o planejado." Mesmo depois de superadas as etapas iniciais, a união dessas culturas diferentes pode ser uma potencial geradora de conflitos. "Nas famílias se criam alianças, sistemas de identificação dos filhos com os pais, por exemplo, e isso pode se tornar uma disputa de poder". É importante ter em mente que nenhuma cultura é superior a outra, para não criar um relacionamento desigual, um dos grandes problemas apontados por Sylvia. O fim inesperado da história pode ser uma diferença de expectativas. "Muitas vezes o estrangeiro vem para o Brasil procurando um mulher submissa", comenta Sylvia. "A mulher, por outro lado, pode estar em busca do príncipe encantado por uma questão de baixa auto-estima." Quanto a isso, é preciso se manter em alerta. Malsucedidas ou não, as histórias de relacionamentos interculturais são possíveis. E, se por um lado existe a insegurança e o medo de não dar certo, de outro está a possibilidade de se envolver em um namoro enriquecedor, cheio de aprendizados e superações. E com chance de final feliz.