“Invictus”: Uma lição sobre análise de contingências (PDF

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“INVICTUS”: UMA LIÇÃO SOBRE ANÁLISE DE
CONTINGÊNCIAS!
!
Raquel Maria de Melo26!
Universidade de Brasília!
!
Alessandra Rocha de Albuquerque!
Universidade Católica de Brasília!
Título do filme: “Invictus”: Conquistando o inimig!
Título original: “Invictus”!
Ano: 2009!
Diretor: Clint Eastwood!
Roteiro: Anthony Peckham!
Produtores: Clint Eastwood, Robert Lorenz, Lori McCreary
e Mace Neufeld!
Lançado por: Warner Bros. Pictures / Spyglass Entertainment / Revelations Entertainment / Mace Neufeld Productions / Malpaso Productions
“Invictus” é uma adaptação para o cinema do livro “Conquistando o inimigo: Nelson Mandela e o jogo que uniu a África do Sul”, de John Carlin
(“Playing the enemy: Nelson Mandela and the game that made a nation”, 2008).
O filme retrata o período em que Mandela (Morgan Freeman) sai da prisão, em
1990, após 27 anos de detenção, é eleito presidente da África do Sul e inicia a
reestruturação e o processo de unificação do país a partir do fim do apartheid.
São enfatizadas a participação vitoriosa da equipe sul-africana na Copa Mun-
26
E-mail: [email protected]
111
dial de Rúgbi, de 1995, e a habilidade de Nelson Mandela em utilizar o esporte
como meio de integração social.!
Ao assumir a presidência em 1994, Mandela encontra um país com problemas em várias áreas: economia, educação, saúde, habitação, segurança e,
principalmente, a segregação racial. Para lidar com estas situações, Mandela
faz a opção de se aproximar e conhecer a minoria branca (denominada de afrikaners, traduzido por africânderes) a partir da identificação do que explica o
comportamento deste grupo, ao invés de adotar uma estratégia de vingança
com base na violência, opressão e humilhação que caracterizaram o período
do apartheid. !
A realização da Copa do Mundo de Rúgbi de 1995 na África do Sul foi
utilizada por Mandela como uma oportunidade para diminuir a segregação racial. O rúgbi era o jogo favorito dos brancos e não apreciado pelos negros, que
preferiam o futebol e torciam por qualquer adversário do time de rúgbi da África
do Sul, o Springboks. Como estratégia, Mandela convida para uma reunião
François Pienaar (Matt Damon), capitão da equipe sul-africana, e inicia um processo conjunto para transformar o desacreditado time do Springboks em campeão mundial e, ao mesmo tempo, fazer com que a população se una e apóie
o time em busca deste objetivo.!
Na etapa de preparação para a copa do mundo, a campanha publicitária
destaca a imagem do único jogador negro (Chester Williams, interpretado por
McNeil Hendricks) do Springboks e o time tem como uma de suas atribuições
112
desenvolver atividades de iniciação ao rúgbi em bairros pobres. O capitão do
time assume a sua função de líder e segue as orientações de Mandela ao buscar estratégias de jogo que levem o time a superar as suas limitações e a obter
o melhor desempenho de cada um dos jogadores. O Springboks vence todos
os adversários e conquista o título na final contra a equipe da Nova Zelândia,
considerada a favorita. Durante a decisão, o estádio lotado, com cerca de 63
mil pessoas, torce, incentiva o time, e comemora a vitória. Assim, como planejado por Mandela, a nação arco-íris, composta por representantes de várias etnias, se uniu em torno de um mesmo objetivo. A hostilidade em relação a tudo
que o rúgbi simbolizava no período do apartheid foi superada. !
!
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Análise Teórica!
O referencial da Análise do Comportamento será utilizado para caracterizar a relevância da análise de contingências no planejamento de mudanças
em comportamentos sociais, previamente mantidos por controle aversivo. Serão analisados diferentes trechos do filme que demonstram que o comportamento é explicado a partir da história de interações do indivíduo, ou grupo, com
o ambiente (físico ou social), ou seja, a partir de análises funcionais. Assim,
será possível abordar a questão do ensinar enquanto programação de contingências de reforço que resultam em mudança de comportamento a partir da
análise das interações em determinados grupos (e.g., time de rúgbi e os seguranças do presidente Nelson Mandela), e de uma forma mais ampla, das contingências estabelecidas pelo governo enquanto agência de controle. !
O Apartheid e o Governo enquanto Agências de Controle!
!
Apesar de a questão do apartheid não ser o tema central do filme “Invictus”, é importante descrever suas principais características, uma vez que as
interações sociais entre negros e brancos ali retratadas são resultantes da história passada e presente produzida pelas contingências estabelecidas pelo governo, a partir de leis de segregação racial.!
!
O apartheid (separação em africâner) foi um regime de segregação racial adotado na África do Sul no período de 1948 a 1994. Nesse regime, a minoria branca, de origem principalmente inglesa e holandesa, detinha o poder político e econômico, enquanto aos grupos pertencentes a outras etnias, compostos em sua maioria por negros, eram impostas várias leis que restringiam os
seus direitos políticos e sociais (e.g., educação, saúde, posse de terra e local
de moradia). Dentre as principais leis do apartheid, podem ser citadas: a proibição do casamento entre brancos e negros, a obrigação de declaração de registro de cor para todos os sul-africanos, a proibição de circulação de negros em
determinadas áreas das cidades, a criação de bantustões (bairros só para ne113
gros), a separação de serviços públicos (e.g., banheiros, ônibus, restaurantes)
para brancos e negros e a criação de um sistema diferenciado de educação
para as crianças nos bantustões27.!
O apartheid resultou em revoltas e manifestações populares. O movimento antiapartheid foi liderado por Mandela, foi preso em 1962 e condenado à
prisão perpétua com trabalhos forçados. Conforme a revolta se tornava mais
frequente e violenta, as organizações estatais respondiam com o aumento da
repressão e da violência. Esta situação mobilizou a comunidade internacional.
Em 1973, a Assembléia Geral das Organizações Nacionais Unidas (ONU) declarou o apartheid um “crime contra a humanidade” e, em 1986, os Estados
27
http://pt.wikipedia.org/wiki/apartheid disponível em 02/11/10.
114
Unidos decretaram o embargo econômico28 contra a África do Sul. A pressão
internacional fez com que, no início dos anos 90, o presidente Frederik de Klerk
iniciasse as negociações para por fim ao apartheid e libertasse Nelson Mandela. Em 1992, cerca de 70% dos eleitores brancos votaram a favor do fim do
apartheid em um plebiscito. de Klerk e Mandela receberam o Prêmio Nobel da
Paz (1993), uma nova Constituição não-racial passou a vigorar e os negros
adquiriram direito ao voto. As primeiras eleições multirraciais na África do Sul
foram realizadas em 1994, e Nelson Mandela foi eleito presidente.29!
Esta caracterização histórica nos permite analisar a primeira cena do
filme que mostra o carro em que se encontra Nelson Mandela, após ser libertado, escoltado por outros carros e motos, trafegando em uma estrada que divide
duas realidades sociais distintas. De um lado, garotos negros, mal vestidos, jogam futebol em um terreno baldio. Ao reconhecerem Nelson Mandela, gritam
seu nome e acenam alegremente na lateral da estrada. Do outro lado, crianças
brancas, uniformizadas, treinam rúgbi em um campo gramado sob a supervisão
de um técnico. O time interrompe o treino, observa o cortejo passar, e o técnico
informa que se trata de um “terrorista” que foi libertado. A diferença entre as
duas realidades está relacionada com as contingências estabelecidas pelo governo a partir do regime do apartheid (leis previamente descritas), as quais resultaram em diferentes histórias de interação entre os dois grupos e dos seus
membros com os recursos ambientais disponíveis (e.g., saúde, educação, lazer) . Tais histórias são fundamentais para que se possam explicar os comportamentos dos indivíduos de cada um destes grupos30. !
!
Para a abordagem analítico-comportamental, o comportamento é multideterminado, ou seja, múltiplas variáveis o determinam. É influenciado por três
níveis de variação e seleção: filogenético, ontogenético e cultural (Andery, Micheletto & Sério, 2007; Skinner, 1953/1981, 1981; Todorov & de-Farias, 2009),
os quais devem ser considerados em uma explicação (análise e descrição)
mais ampla do comportamento. O nível filogenético está relacionado às características herdadas, funcionamento e estrutura do organismo; o nível ontogenético diz respeito à história de aprendizagem de cada indivíduo; e o nível cultural
se refere às peculiaridades da cultura em que o indivíduo está inserido (práticas culturais).!
As contingências estabelecidas pelo governo, por meio das restrições
28
Embargo: É a proibição do comércio e da comercialização com um determinado país (http://pt.wikipedia.org/wiki/Apartheid disponível em 02/11/10).
29http://www.Ibge.gov.br/ibgeteen/datas/discriminação/apartheid.html.org/wiki/Apartheid,
disponível
em 02/11/10.
30
de-Farias e Lima-Parolin (2007) realizaram análise semelhante sobre o preconceito racial ilustrado
no filme “Crash: No limite”.!
115
impostas aos negros ao longo dos anos, fizeram com que os dois grupos,
membros da espécie humana, com histórias filogenéticas semelhantes, fossem
expostos a ambientes físico e social distintos. O acesso limitado à educação,
saúde, alimentação e restrição de moradia a determinados espaços geográficos resultaram na aquisição de repertórios diferentes pelos negros e comportamentos hostis entre os grupos de diferentes etnias. A
manutenção da diferença entre as duas realidades sociais foi legalmente garantida
pelo governo por meio das
leis de segregação racial. !
!
De acordo com Skinner (1953/1981), a lei é “o
enunciado de uma contingência de reforço mantida
por uma agência governamental. (…) Uma lei é uma
regra de conduta no sentido
de que especifica as consequências de certas ações
que por seu turno ‘regem’ o
comportamento” (p. 322).
Assim, as leis do apartheid
podem ser analisadas como
regras que proibiam a convivência entre brancos e negros, estabeleciam acessos
diferenciados aos recursos
ambientais, e previam penalidades caso não fossem
cumpridas. Desta forma, os
enunciados das regras funcionam como estímulos discriminativos verbais que indicam uma contingência: se o comportamento ocorrer em determinada situação, então uma consequência será mais – ou menos
– provável (Baum, 1994/1999). Conforme destaca Skinner (1953/1981), o controle exercido pelo governo se dá, geralmente, por meio da punição e o comportamento obediente, fazer ou seguir o previsto nas leis, evita a punição:!
!
O governo usa seu poder para ‘manter a paz’ – para restringir comportamentos
116
que ameaçam a propriedade e as pessoas de outros membros do grupo. Um
governo que possui apenas o poder de punir pode fortalecer o comportamento
legal somente pela remoção de uma ameaça de punição a ele contingente. Algumas vezes isto é feito, mas a técnica mais comum é simplesmente punir as
formas ilegais do comportamento (Skinner, 1953/1981, p. 320).!
!
A segregação racial pode também ser analisada de acordo com o nível
cultural de seleção do comportamento por consequências enquanto uma prática cultural. Uma prática cultural “envolve repetição de comportamento operante
análogo entre indivíduos de uma dada geração e entre gerações de indivíduos”
(Glenn, 1991, p. 60). O comportamento replicado é, portanto, chamado de uma
prática cultural (Glenn & Malagodi, 1991; Todorov & de-Farias, 2009). Nas práticas culturais, as consequências agem sobre o grupo “e o efeito sobre o grupo,
não mais as conseqüências reforçadoras para os membros individuais, que é
responsável pela evolução da cultura” (Skinner, 1981, p. 502). Entre a população branca, comportamentos que podem ser considerados de segregação racial, tais como uso de rótulos verbais pejorativos em relação aos negros,
agressões físicas, recusa em compartilhar os mesmos espaços públicos que os
negros, uso de uma língua diferente da falada pelos negros, foram transmitidos
e mantidos ao longo de várias gerações em que perdurou o apartheid. Algumas
agências de controle – o governo, por meio de leis, do controle social da polícia
e do exército, e medidas econômicas; a mídia (ao relacionar a etnia racial com
comportamentos considerados positivos ou negativos); a escola (ao definir o
que era ensinado para os membros de cada grupo) – selecionaram as práticas
culturais que garantiram à minoria branca condições econômicas, acesso à
saúde, educação e habitação de melhor qualidade em comparação com o que
os negros tinham acesso. !
Entretanto, é um engano supor que o controle exercido pelo governo por
meio de punições produz submissão passiva. Tais contingências podem gerar
comportamentos de reação por parte dos grupos controlados, ou seja, contracontrole, conforme destacado por Skinner (1953/1981):!
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O governo e o governado compõem um sistema social (…). O governo manipula as variáveis que alteram o comportamento do governado e se define em
termos de seu poder de assim fazer. A mudança no comportamento do governado provem de volta um reforço ao governo, explicando a continuação de sua
função (…) O controle excessivo gera também comportamento da parte do
controlado sob a forma de fuga, revolta, ou resistência passiva (pp. 329-330). !
!
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Os fatos históricos, previamente descritos, mostram que o apartheid resultou em reações de revolta por parte dos negros, uma evidência de contracontrole, as quais desencadearam repressões constantes do governo e, con-
117
sequentemente, novas manifestações e protestos. Líderes do movimento do
apartheid foram presos, dentre estes Nelson Mandela. Reações de contracontrole são frequentemente observadas em contextos sociais onde predominam
contingências aversivas (Sidman, 1989/1995), as quais serão abordadas na
seção seguinte deste capítulo. !
Análise de Contingências: A Estratégia Utilizada por Mandela!
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A descrição do contexto histórico, caracterizado pela exposição prolongada dos negros às contingências aversivas acima descritas, estabelece o referencial para analisar algumas cenas do filme que mostram como era, inicialmente, a interação entre brancos e negros em pequenos grupos e a estratégia
utilizada por Mandela para lidar com tais situações. Contingências aversivas
envolvem punição e reforçamento negativo ou coerção, conforme Sidman
(1989/1995). Diversas cenas do filme ilustram o princípio do reforçamento negativo, de acordo com o qual se verifica a ocorrência de comportamentos que
resultam na remoção ou adiamento na apresentação de estímulos aversivos31. !
No primeiro dia como presidente, Mandela percorre o corredor em dire31
Estímulo aversivo: é um evento ou mudança no ambiente que (1) reduz a probabilidade do comportamento que o produz como consequência; ou (2) aumenta a probabilidade do comportamento
que o elimina, adia ou evita a sua apresentação. O comportamento que elimina o estímulo aversivo é
denominado fuga; o comportamento que adia ou evita o estímulo aversivo é chamado de esquiva. A
situação (1) caracteriza a punição, enquanto a situação (2) descreve o reforçamento negativo (Catania, 1998/1999; Skinner, 1953/1981).
118
ção ao seu gabinete, cumprimenta com gentileza os funcionários, enquanto alguns deles caminham apressadamente segurando caixas com pertences pessoais. A história de conflitos entre brancos e negros durante o período do
apartheid, previamente descrita, o término desse regime de segregação racial,
e a posse de um presidente negro estabelecem o contexto para comportamentos de se afastar, de evitar o contato social com os representantes do novo governo, pois estes impedem o contato com possíveis estímulos aversivos. Os
comportamentos de “prevenção” adotados pelos funcionários – arrumar os materiais e se preparar para ir embora – evitam humilhações futuras ou uma possível demissão e, portanto, poderiam ser considerados comportamentos de esquiva (reforçamento negativo). !
Ao presenciar tais comportamentos dos funcionários, Mandela convoca
uma reunião e apresenta a eles duas opções: abandonar o trabalho ou permanecer e ajudar a construir uma “nação arco-íris” (sem diferenças entre brancos
e negros). Mandela ressalta que o conhecimento dos funcionários será muito
importante e que aqueles que ficarem devem realizar o seu trabalho da melhor
forma possível, para ajudá-lo a governar. Tal estratégia evidencia que os comportamentos dos funcionários foram valorizados, ou seja, os desempenhos com
competência foram reforçados positivamente, e são apresentadas duas alternativas de escolha, uma que envolve perda de reforçadores (e.g., salário, reconhecimento social) e, outra, a apresentação de tais reforçadores positivos. !
!
Entre os membros da equipe de seguranças de Mandela, observam-se
inicialmente comportamentos hostis dos negros em relação aos brancos que
integravam a equipe da guarda pessoal do ex-presidente. Quando os quatro
guarda-costas do ex-presidente se apresentam e informam que foram convocados, pelo presidente Nelson Mandela, para compor a nova equipe de segurança, Jason Tshabalala (representado por Tony Kgoroge), o chefe da equipe,
fica irritado. A presença de pessoas que trabalhavam para a polícia, ou como
segurança, foram anteriormente associadas a agressões físicas e verbais (US
– estímulos incondicionados) que eliciavam respostas de ansiedade e irritação
(UR – respostas incondicionadas). Em decorrência de tais associações, denominadas de condicionamento respondente, respostas de ansiedade e raiva
passaram a ser eliciadas pela presença dos seguranças brancos do antigo governo (CS – estímulos condicionados), tornando-se, portanto, respostas condicionadas (CR). Adicionalmente, a irritação (CR) eliciada pela presença dos seguranças brancos (CS) desempenha, também, função de estímulo discriminativo para respostas que poderiam impedir ou evitar o contato com tais estímulos,
o que é exemplificado pelo comportamento de Jason de questionar o presidente Mandela sobre a composição da equipe de segurança (Figura 1). Como
Mandela mantém a sua decisão e pede para que ele se esforce para conviver
de forma harmoniosa com todos os seguranças, Jason interrompe a argumen-
119
tação e concorda em mudar a sua forma de agir. Tais comportamentos evitam a
desaprovação do presidente (reforçamento negativo). !
Figura 1. Representação esquemática de relações funcionais observadas no filme (as
siglas correspondem a CS: estímulo condicionado; US: estímulo incondicionado; CR:
resposta condicionada; UR: resposta incondicionada; SD: estímulo discriminativo; R:
resposta; e Csq à consequência). !
!
120
Na cena previamente descrita, novamente Mandela evita o uso de controle aversivo. Ao conversar com Jason, ressalta a qualificação e a competência dos seguranças do ex-presidente; argumenta que o presidente se apresenta em público na companhia dos guarda-costas e que a “nação arco-íris” deve
começar pela composição da sua equipe; destaca também a importância da
“reconciliação” e do “perdão”; e pede, gentilmente, que Jason acate o seu pedido. Nesta cena, podemos destacar também a importância que Mandela atribui ao comportamento que deve ser utilizado como exemplo, ou da aprendizagem a partir do comportamento do modelo. Ao usar o time do Springboks e a
Copa do Mundo de Rúgbi, até então símbolos da segregação racial e da minoria branca, como uma oportunidade para diminuir a segregação, Mandela o faz
também acreditando na força do modelo como meio de mudança e na possibilidade de que tais mudanças se generalizem para outros contextos (quando é
informado de que um bilhão de pessoas no mundo acompanharão a Copa do
Mundo, afirma que “esta é uma grande oportunidade”). Em uma das cenas do
filme, os jogadores do Springboks são informados de que deveriam visitar crianças negras em regiões desfavorecidas do país. As imagens desta visita são
transmitidas por um telejornal e, ao assisti-las, Mandela comenta que “estas
imagens valem mais do que mil discursos”. !
Em situações naturais de interação social, o comportamento do líder de
um grupo pode funcionar como modelo que os outros seguem e copiam. Em
tais situações, a probabilidade de modificar o comportamento dos membros do
grupo é alta, uma vez que o líder (modelo) controla a liberação de reforçadores, estabelece o que pode ou não ser feito e o seu próprio comportamento é
mantido por consequências reforçadoras, as quais também poderão ser apresentadas quando comportamentos similares aos do modelo ocorrerem (Baum,
1994/1999; Catania, 1998/1999; Mazur, 2002). Em diferentes cenas do filme,
Mandela apresenta comportamentos de respeito ao próximo e que favorecem a
interação social, tais como sorrir com freqüência, cumprimentar as pessoas
(e.g., aperta a mão, coloca a mão no ombro) e verbalizações que demonstram
preocupação e consideração em relação aos outros (e.g., pergunta como vão a
pessoa e sua família), sem considerar a sua função profissional, etnia ou nível
social. Merecem destaque três cenas. Na primeira, após a solenidade de abertura de um jogo de rúgbi, Mandela se afasta dos seguranças, caminha entre o
público até localizar e, posteriormente, cumprimentar um torcedor com a nova
bandeira da África do Sul. Em outra cena, durante a visita do capitão do time
de rúgbi, Mandela pergunta como vai o tornozelo do jogador, sugere que ele se
sente em um local onde a luz não incomode os seus olhos (o capitão é branco
e tem olhos claros), pergunta como ele prefere o chá e pessoalmente lhe serve,
e menciona que o chá “foi uma das boas contribuições, herança dos ingleses”.
Em uma terceira cena, um dos seguranças brancos de Mandela, ao ser questi-
121
onado a respeito de como é o presidente, responde que, quando trabalhou
para o ex-presidente, seu trabalho era ser invisível e que, para Mandela, ninguém é invisível – “o presidente atual descobriu que eu gostava de toffee inglês
(um tipo de bala de caramelo) e trouxe para mim de sua visita à Inglaterra”.
Nestas situações sociais e em outras similares, tais comportamentos de Mandela são reforçados pelo comportamento das outras pessoas que retribuem o
sorriso ou o cumprimento, e respondem com gentileza às suas perguntas. Assim, os exemplos mostram que as análises feitas por Mandela destacam os
aspectos funcionais do comportamento e, por outro lado, ao se comportar de
maneira coerente com tal análise, apresenta o modelo do comportamento adequado, mostra a resposta “adequada” e como ela deve ser executada, ou seja,
a sua estrutura ou topografia. Adicionalmente, a presença de Mandela e o que
ele representa (o governo sob o controle da população negra) estão correlacionados com contingências reforçadoras. !
Ao longo do filme, são ilustradas interações entre os seguranças que se
caracterizam por trabalho em equipe, pois a qualidade do resultado obtido (a
segurança do Presidente) depende do desempenho de cada um, e pela diminuição de comportamentos hostis e aumento da ocorrência de comportamentos pró-sociais tais como sorrir, cumprimentar e falar de assuntos de interesse
comum. À medida que os seguranças negros começam a apresentar comportamentos pró-sociais similares aos do Presidente Mandela, tais comportamentos são reforçados pelos seguranças brancos em situações naturais de interação social. A Copa do Mundo funciona como ocasião para comportamentos de
122
aproximação entre os seguranças e o rúgbi passa a ser tema comum das conversas. O contexto da competição e a campanha do governo de apoio ao time
da África do Sul aumentam o valor reforçador de diversos aspectos relacionados ao rúgbi (e.g., informações sobre as regras e os jogos disputados) e aumenta a ocorrência de comportamentos que resultam no acesso a tais consequências. As pessoas que conhecem as regras do jogo compreendem os
comentários esportivos, os movimentos de uma jogada e participam de conversas com outras pessoas enquanto assistem aos jogos ou, dito de outra forma,
discriminam se os comentários são coerentes ou não de acordo com o que de
fato ocorreu, se o árbitro marcou uma falta corretamente e qual a pontuação
atribuída para cada tipo de jogada. Assim, ao longo do filme, observa-se que os
comportamentos que resultam em informações sobre tal esporte passaram a
ocorrer com mais freqüência assim como os comportamentos de assistir e torcer, os quais produzem reforçadores naturais, bem estar, diversão. Esta mudança na interação entre os seguranças é ilustrada na cena em que, após algumas explicações sobre o jogo, todos os seguranças jogam rúgbi no jardim de
maneira cooperativa, sorriem e conversam de maneira descontraída, ou seja, a
prática do esporte produz reforçadores inerentes à atividade.!
Outra cena que ilustra o efeito da exposição a contingências aversivas é
a que mostra duas senhoras, uma negra e uma branca, durante a doação de
roupas para crianças de uma comunidade pobre. Um garoto negro rejeita a
camisa do time de rúgbi da África do Sul (Springboks) e sai correndo. Quando
a senhora branca pergunta por que o garoto não aceitou a camisa, a senhora
negra explica que “se o garoto usá-la, ele irá apanhar dos outros”, pois a camisa do Springboks representa o apartheid. A população negra demonstrava hostilidade por tudo relacionado ao Springboks (e.g., uniforme, bandeira, hino) e,
nas competições, torcia sempre para o adversário, como pode ser visto no primeiro jogo apresentado no filme entre o Springboks e um time da Inglaterra.
Este exemplo demonstra, como anteriormente descrito, que diferentes variáveis
controlam o comportamento. Mesmo sob condição de privação de agasalhos,
proteção contra baixa temperatura, o garoto apresentou expressão facial de
insatisfação na presença da camisa do Springboks e rejeitou a doação. Assim,
as respostas emocionais funcionaram como estímulos antecedentes para o
comportamento de fuga, acenar negativamente com a cabeça e correr para
longe, afastar-se do estímulo aversivo (camisa do Springboks). !
Como analisado anteriormente, a presença dos brancos eliciava respondentes (e.g., ansiedade, raiva), pois foi associada a agressões físicas e verbais
durante o período do apartheid. Como o rúgbi era uma atividade esportiva praticada por brancos, os uniformes, a bandeira e o hino em competições foram
também emparelhados arbitrariamente com a presença dos brancos, que,
como já dito, por condicionamento respondente, eliciava respostas emocionais.
123
Tal ampliação da classe de estímulos que elicia respondentes ou que resulta
em comportamentos de fuga e esquiva poderia ser explicada por relações arbitrárias entre estímulos (ver, por exemplo, o conceito de equivalência de estímulos, em Albuquerque & Melo, 2005; Sidman, 1994; Sidman & Tailby, 1982). !
A hostilidade em relação ao time do Springboks aparece de forma mais
marcante durante uma reunião do NSC (National Sports Concil). Esta reunião
tinha como pauta a votação da mudança das cores e emblema do Springboks,
bem como a mudança do nome do time. Os comportamentos dos líderes do
NSC podem ser considerados exemplos de contracontrole (ou contrarreação)
decorrentes da exposição prévia a contingências aversivas, exposição esta seguida por mudança nas contingências quando o grupo, anteriormente controlado, passa a exercer cargos públicos, com poder de decisão. Comportamentos
semelhantes de contracontrole e repetição de ciclos de coerção e contracontrole são destacados por Sidman (1989/1995): !
!
Coerção severa, então, gera contrarreação quase automática. Mas isto
não termina aí. Retaliação bem-sucedida provê reforçamento rápido e poderoso. Aqueles que estavam por baixo tornam-se os poderosos, aqueles
que eram os temidos opressores agora buscam seu favor. É fácil ver como
a agressão poderia tornar-se um novo modo de vida para os inicialmente
subservientes. O próprio sucesso da contra-agressão pode colocar em
movimento uma estrutura autoperpetuadora de um modo de vida agressivo. Aqueles que anteriormente nada tinham agora tudo têm. A agressão
que levou às novas vantagens pode agora ser usada para ajudar a mantêlas. A todo momento vemos revolucionários transformarem-se em cópias
carbono dos regimes que derrubaram; o ciclo de coerção e represália repete-se incessantemente (Sidman, 1989/1995, p. 223).!
124
!
!
!
Na continuidade desta parte do filme, ao ser informado sobre o tema
discutido, Mandela interrompe suas atividades no gabinete e decide comparecer à reunião do NSC. Na reunião, faz um pronunciamento contra a mudança
dos símbolos do time de rúgbi e considera que é importante não tirar dos brancos aquilo que eles valorizam. Argumenta que, nos 27 anos em que esteve
preso, estudou os brancos, conheceu seus costumes, língua, livros e poesias.
Tais informações foram importantes para que pudesse aprender como interagir
com eles de maneira pacífica e com respeito. Podemos considerar que a forma
como Mandela analisa esta situação de conflito, assim como várias outras comentadas neste capítulo, apresenta características de uma análise das contingências em vigor. Suas intervenções demonstram uma análise funcional dos
vários aspectos envolvidos com a previsão das consequências de optar por
uma ou outra alternativa de escolha: (i) agir como os brancos durante o
apartheid, ou seja, perpetuar o uso de contingências aversivas, ou (ii) tentar
identificar variáveis que poderiam fazê-los contribuir para a reconstrução do
país, ou seja, utilizar contingências que priorizem o reforçamento positivo de
comportamentos relevantes para a convivência social. Se, no contexto caracterizado no filme (término do apartheid e negros no controle do governo – situação antecedente), o governo priorizasse a vingança, a partir de confisco de
bens, restrição de acesso aos serviços públicos, desqualificação e proibição de
tudo que os brancos valorizavam (respostas), possivelmente ocorreriam mais
hostilidades e conflitos entre os grupos (consequências). Na verdade, é isto
que a minoria branca esperava que acontecesse quando os negros assumiram
o poder, o que é ilustrado em uma cena em que um pai de família verbaliza que
tem medo de que o novo governo (do Presidente Mandela) tire o emprego deles e tudo que possuem. Diferente do esperado, Mandela argumenta que a população negra deve surpreender os brancos com “compaixão, moderação e
generosidade. Não é hora de vingança (....). Brancos não são inimigos, são
companheiros sul-africanos, são parceiros na democracia”. Esta análise mostra
que, no mesmo contexto, um comportamento alternativo, restabelecer o rúgbi e
aceitar seus símbolos, poderia ser um passo para favorecer a aceitação do
novo governo. Assim, a minoria branca, que no governo de Mandela ainda
mantinha o controle da polícia, do exército e da economia, poderia trabalhar
em conjunto para a reconstrução do país, sem segregação racial.!
As análises previamente apresentadas de diversas cenas do filme sugerem que as estratégias utilizadas por Mandela apresentam características das
intervenções feitas no contexto de ensino. De acordo com Skinner (1968/1972),
ensinar é “arranjar contingências de reforço” (p. 4). Arranjar contingências refere-se a planejar o ensino, ou seja, definir as condições diante das quais o comportamento deverá ocorrer e as consequências ou mudanças no ambiente que
125
deverão seguir o comportamento. Os exemplos analisados mostram a relevância da análise funcional para a identificação do efeito de contingências aversivas e das diferentes variáveis que afetam o comportamento social, e, principalmente, para o planejamento de contingências que favoreçam as interações
entre membros de diferentes grupos sociais e etnias (para análise semelhante,
ver de-Farias & Lima-Parolin, 2007). !
As Contingências Envolvidas nas “Fontes de Inspiração”!
!
A questão da causalidade do comportamento é abordada no filme a partir de explicações que pressupõem que causas internas, tais
como “força de vontade” e “inspiração”, resultam em comportamentos manifestos. Podemos
observar explicações de tal tipo
nas cenas que abordam a estratégia utilizada por Mandela para
ajudar o capitão do time de rúgbi
a cumprir a sua difícil tarefa de
liderar o time para conquistar a
vitória, o título de campeão da
Copa do Mundo de Rúgbi de
1995.!
!
Durante o encontro com o
capitão do time de rúgbi (François Pienaar), Mandela busca
informações sobre a sua “filosofia de liderança” e lhe faz perguntas sobre como liderar o time
de tal forma a tirar o máximo de
cada um e fazer com que os jogadores superem as próprias
expectativas. O capitão menciona que faz uso do exemplo, ou
seja, demonstra o que deve ser
feito e de que maneira. Mandela sugere como alternativa o uso
da “inspiração” e relata que, enquanto esteve preso na Ilha Robben, as palavras de um poema o ajudaram a
se “manter em pé”, a não desistir, apesar de todas as dificuldades. O hino da
África do Sul negra, Nkosi Sikelele (Deus abençoe a África), também é citado
126
por Mandela como uma fonte de inspiração para que ele faça o melhor, supere
as próprias expectativas, ao governar o país. Pienaar ouve atentamente os relatos das experiências pessoais do Presidente e comenta que, em algumas
ocasiões, selecionou uma música com palavras de incentivo para os jogadores
ouvirem no ônibus a caminho de um jogo. !
!
Na véspera do jogo de estréia do Springboks na Copa do Mundo de
Rúgbi contra o time da Austrália, Mandela vai até o centro de treinamento,
cumprimenta pelo nome e com um aperto de mão cada um dos jogadores, deseja boa sorte a todos, e entrega o poema previamente mencionado ao capitão do time. Trata-se do poema “Invictus”, do escritor inglês William Ernest Henley (1849-1903):!
!
Do fundo desta noite que persiste A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.!
Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.!
Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa; Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza. !
Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.!
!
O poema é apresentado no filme durante a visita do
Springboks à prisão da Ilha Robben, em cenas em que o capitão, dentro da cela onde Mandela esteve preso, imagina o Presidente nesse espaço restrito e quebrando pedras juntamente com outros presos. !
As cenas previamente comentadas ilustram afirmações típicas do senso
comum e sugerem que a superação de dificuldades ou a obtenção de um resultado positivo é decorrente das causas internas (e.g., “inspiração”, “vontade”,
“expectativa”), as quais seriam, no caso do filme, desencadeadas por um poema ou pela descrição verbal de como alguém foi bem sucedido em tais situações. Tais explicações são rejeitadas pela Análise do Comportamento, que se
constitui como uma proposta externalista e anti-mentalista (Skinner, 1953/1981;
1974/1982). Para Skinner (1953/1981), explicações mentalistas, que buscam
127
as causas do comportamento dentro do organismo, tendem a obscurecer as
variáveis disponíveis para uma análise científica e não conseguem explicar
aquilo a que se propõem. Uma das limitações apontadas para as explicações
mentalistas encontra-se no fato de estas serem redundantes (Baum,
1994/1999): !
!
Explicações mentalistas inferem uma entidade fictícia a partir do comportamento, e então afirmam que a entidade inferida é a causa do comportamento. Quando se diz que uma pessoa come verduras pelo desejo de manter-se saudável ou por sua crença no vegetarianismo, essa descrição se
origina antes de tudo da observação do comportamento de comer verduras;
portanto, a razão para se dizer que há um desejo ou uma crença é a ação.
Essa ‘explicação’ é inteiramente circular: a pessoa tem o desejo por causa
de seu comportamento, e exibe o comportamento por causa do desejo
(Baum, 1994/1999, p. 52).!
!
!
O uso da “inspiração” de Pienaar ou da “força de vontade” dos jogadores
do Springboks para explicar o excelente desempenho do time durante a Copa
do Mundo são claramente redundantes – a “inspiração” e “força de vontade”
que explicam o desempenho dos jogadores são inferidas a partir do próprio desempenho.!
Para a Análise do Comportamento, os eventos tradicionalmente tratados
como mentais (e.g., pensar, sentir) não são tomados como causas do comportamento e sim como eventos privados – ambientais e comportamentais – que,
como quaisquer outros (públicos), devem ser compreendidos a partir da análise
das interações envolvidas (Skinner, 1953/1981; Tourinho, 1997). Simonassi,
Tourinho e Silva (2001) afirmam que:!
!
Os eventos privados são definidos por Skinner como estímulos e respostas
acessíveis de modo direto apenas ao próprio indivíduo a quem dizem respeito (Skinner, 1945, 1953/1965, 1969, 1974). Nenhuma natureza especial
precisa ser suposta; nenhum apelo à metafísica se torna necessário para
explicá-los. Como fenômenos comportamentais, estímulos e respostas privados são dotados de natureza física e podem ser interpretados com os
mesmos conceitos com os quais se interpretam os fenômenos públicos. A
inacessibilidade à observação pública, que confere especificidade aos
eventos privados, pode ser momentânea e circunstancial (p. 134).!
!
!
A partir de tais considerações, o termo “inspiração”, utilizado no filme
para se referir a uma “força interior”, não tem valor como explicação do comportamento e deve ser substituído por uma análise funcional de comportamen-
128
tos desempenhados32. A análise do comportamento de Pienaar revela a ocorrência de comportamentos públicos e privados, inseridos em contextos específicos, que produziram diferentes consequências reforçadoras, dentre elas a vitória de um time desacreditado. Por exemplo, Mandela, ao convidar Pienaar
para uma conversa, na qual demonstra interesse pelo rúgbi e levanta a possibilidade de um bom desempenho do Springboks na Copa do Mundo, funciona
como um contexto (estímulo discriminativo) que estabelece a ocasião para que
Pienaar “busque fazer o melhor” e sinaliza consequências sociais reforçadoras
(valorização pelo presidente, contribuição para dissipar a segregação racial na
África, resgate da credibilidade do Springboks). “Fazer o melhor”, portanto, não
é decorrente de “inspiração” (fornecida pelos estímulos discriminativos poema
ou música ), mas está sob controle de eventos ambientais externos. Adicionalmente, após um jogo contra a Inglaterra, a menos de um ano da Copa, no
qual o Springboks foi derrotado e severamente criticado, muitas mudanças estratégicas ocorreram: o treinador e o manager do time foram demitidos; o novo treinador estabeleceu uma rotina de treino
e preparação física extenuantes (em uma cena do filme, o novo
treinador afirma que o Springboks pode não ser o melhor time
do mundo, mas será o de melhor preparo físico); e Mandela
passou a apoiar amplamente o time (comparecendo a treinos, e valorizando os jogadores com elogios e agradecimentos pelo desempenho). !
Em um momento posterior, que retrata o período de
realização da Copa do Mundo, são mostrados os jogadores
do Springboks assistindo ao jogo do All Blacks (time da Nova
Zelândia, considerado o melhor time e adversário do Springboks na final) contra a Inglaterra; enquanto assistem ao jogo,
analisam as jogadas e planejam impedir que o principal jogador
da Nova Zelândia (Lomu) avance na final. No dia da final (Springboks x All Blacks), 62 mil torcedores brancos e negros lotam o estádio,
cantam, acenam e um avião Jumbo 747 sobrevoa o estádio, desejando
boa sorte ao time. Mandela entra em campo vestindo o uniforme do Springboks, cumprimenta cada jogador e diz para o capitão que o país está orgulhoso
(reforço social para o bom desempenho apresentado até o momento e contexto
para o comportamento de jogar a final). Durante o jogo, Pineaar pede tempo e
estabelece uma estratégia para que o seu time neutralize Lomu. O Springboks
faz um excelente jogo, ganha a final e Mandela, pessoalmente, entrega a taça
ao capitão, agradece pelo que fez ao país, enquanto brancos e negros comemoram juntos (consequências reforçadoras). Estas análises explicitam os con32
Análise semelhante, aplicada ao conceito de personalidade, pode ser vista na análise comportamental do filme “Curtindo a vida adoidado” (Moreira, 2007).
129
troles externos (ambientais) que atuaram sobre os comportamentos de Pienaar
e demais jogadores, antes e durante a Copa do Mundo, sem recorrer a eventos
internos como causas do comportamento. !
Deve-se lembrar, contudo, que a Análise do Comportamento não rejeita
a existência/ocorrência de eventos privados, os quais podem ser tratados como
comportamentais (operantes ou respondentes) ou ambientais (estímulos discriminativos, eliciadores, reforçadores ou aversivos). Em uma cena, Pienaar, ao
receber o telefonema de Mandela convidando-o para um chá e ao dirigir-se ao
palácio do governo, mostra-se tenso, inseguro e ansioso. A tensão e ansiedade
podem ser interpretadas como eventos privados; tais sentimentos, contudo,
não são responsáveis pelo pronto atendimento de Pienaar ao convite do presidente, tampouco por ele “fazer o melhor”. !
!
Cabe aqui um esclarecimento adicional a respeito do papel dos eventos
privados em uma análise funcional do comportamento: eventos privados podem ser comportamentos e, como tal, parte de uma contingência, ou podem
ser subprodutos de contingências de reforçamento que atuam sobre outros
comportamentos (Abreu-Rodrigues & Sanabio, 2001; Tourinho, 1997). No
exemplo citado no parágrafo anterior, o convite de Mandela a Pienaar é um estímulo (eliciador) que produz alterações internas no capitão, como a ansiedade,
e estabelece a ocasião (estímulo discriminativo) para que a resposta de ir ao
encontro do presidente ocorra e seja consequenciada. A resposta de ir ao encontro do presidente é analisada como um operante sob controle de suas consequências, enquanto a ansiedade é considerada um subproduto das contingências atuantes sobre o comportamento de atender ao convite do presidente.
Já no caso de um evento privado como parte da contingência (ou seja, como
comportamento), pode-se citar o exemplo hipotético de um jogador de rúgbi
que, diante de uma configuração do jogo (e.g., posicionamento dos adversários, colocação da bola – estímulos discriminativos) analisa rapidamente as possibilidades de jogada (pensa – comportamento privado) e decide por passar a
bola para um jogador específico (comportamento público), produzindo assim
um ponto para o time (reforço). Neste caso, a análise privada feita pelo jogador
é parte da contingência e não subproduto desta.!
!
Considerações Finais!
!
!
A análise do filme “Invictus” aqui apresentada explorou o potencial explicativo da Análise do Comportamento para lidar com fenômenos sociais. Skinner (1953/1981) afirma que tais fenômenos são objetos de estudo legítimos da
Análise do Comportamento; apesar disso, o estudo do comportamento em sociedades não foi foco de interesse dos analistas do comportamento por quase
meio século (Todorov & Moreira, 2004). !
130
!
As interações entre indivíduos de grupos raciais diferentes, destacadas
no filme como produto do apartheid, foram analisadas a partir da identificação
de variáveis ambientais, históricas e atuais, relacionadas com os níveis de variação e seleção ontogenético e cultural. Foram descritas algumas contingências típicas deste regime de segregação racial mantidas pelo governo, assim
como os efeitos sobre o comportamento dos membros dos diferentes grupos. !
!
As análises de contexto realizadas por Mandela, assim como as estratégias que ele utilizou para lidar com conflitos entre grupos formados por brancos
e negros (e.g., seguranças e funcionários do seu gabinete) e para transformar
o time de rúgbi, previamente associado com o apartheid, em símbolo nacional
(“um time, uma nação”) são, conforme discutido neste capítulo, demonstrações
claras de análises funcionais como recurso para o planejamento de mudanças
ambientais que resultaram na substituição de contingências aversivas por contingências de reforçamento positivo. Desta forma, Mandela pode ser considerado um mestre (um professor) quando consideramos a proposta de definição
de ensinar de Skinner (1968/1972), pois habilmente ensinou comportamentos a
partir da utilização de contingências de reforçamento positivo (e.g., apresentação de comportamentos modelos, uso de reforçadores sociais) e criou oportunidades para que as interações entre membros de grupos de diferentes etnias
resultassem em reforçadores naturais (e.g., diversão durante um jogo de rúgbi
entre os seguranças, vitória na decisão da Copa do Mundo a partir da participação de cada jogador nas estratégias propostas pelo capitão do time). Adicionalmente, ao focalizar o envolvimento de Mandela na missão de ajudar o time
do Springboks a ganhar a Copa do Mundo de Rúgbi, o filme nos permite discu-
131
tir a questão da causalidade do comportamento em termos de eventos ambientais externos, físicos e sociais.!
!
Referências Bibliográficas!
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