Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 1 Revista da Escola Superior de Guerra (Fortaleza de São João - Urca - Rio de Janeiro - RJ - Brasil - CEP: 22291-190) Diretor-Presidente: Vice-Almirante Adilson Vieira de Sá Diretor Vice-Presidente: Brigadeiro-Engenheiro Paulo Roberto Carvalho Ferro Diretor-Secretário: Coronel Professor Celso José Pires Nossa capa: Marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Agosto de 2001 - Homenagem ao Centenário do seu Nascimento. 1º Comandante da Escola Superior de Guerra. 1949 a 1952. Editor-Responsável: César de Mello Lira Projeto Gráfico: Mauro Espíndola Impressão: Alengraf Tiragem: 1.000 exemplares Os conceitos expressos nos trabalhos são de responsabilidade dos autores e não definem uma orientação institucional da Escola Superior de Guerra. Editoração: Divisão de Biblioteca, Intercâmbio e Difusão - DBID Revista da Escola Superior de Guerra - V.1, no (dez.1983) - Rio de Janeiro: ESG. Divisão de Documentação, 1983 - v.; 21,59cm - Semestral ISSN 0102-1788 1. Segurança Nacional - Periódica. 2. Poder Nacional - Periódicos. 3. Ciência Militar - Periódicos. I. Escola Superior de Guerra (Brasil). Departamento de Estudos. Divisão de Documentação. CDU - 32(81) (05) CDU - 320.981 2 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Testemunhos Editorial............................................................................................... 7 Celso Pires A Alca e a Integração das Américas .................................................. 11 Francisco de Assis Griecco A Defesa Nacional diante do Pós-Modernismo Militar ...................... 18 Marcos Henrique C. Côrtes O Brasil e sua Estratégia ................................................................... 48 Carlos de Meira Mattos Conservação de Energia Elétrica com Iluminação Eficiente ............. 56 Jaime Rotstein Carta de Caminha, Expedição de Cabral .......................................... 64 José Ariel Castro A ESG nos Anos 50 ............................................................................ 92 Jayme Magrassi de Sá Reflexões sobre a Reformulação da ESG .......................................... 113 Ivan Fialho O Futuro da Globalização ............................................................... 125 Ives Gandra da Silva Martins Lógica e Modernidade em Morse ....................................................... 132 Jorge Calvario dos Santos Oriente Médio ..................................................................................... 152 Luiz Sanctos Döring Condições de Contorno para Definição de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia ...................... 168 Carlos Syllus As Grandes Navegações e o Descobrimento do Brasil ..................... 188 Ney Marino Monteiro O Futuro do Consenso de Washington ............................................ 210 Manuel Cambeses Júnior Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 3 Os Navegadores Franceses e os Indígenas Brasileiros .................... 213 Vasco Mariz Relações Brasil - China: Perspectivas para o Século XXI ................ 221 Eduardo Dias da Costa Villas Boas Política, Ecologia e Economia .......................................................... 260 Carlos Alberto Nunes Cosenza e Gerardo José de Pontes Saraiva Mobilização, Industrial e Economia de Guerra ................................. 283 Armando Amorim Ferreira Vidigal A Questão do Kosovo, Dois Anos Depois ......................................... 287 Marcio Bonifácio Moraes O Programa Espacial Brasileiro: Uma Análise Crítica e Perspectivas ................................................ 299 Otávio Santos Cupertino Durão Memória Poder Nacional: Móveis, Interesses e Aspirações; Realismo e Idealismo Políticos.......................................................... 329 Francisco Clementino San Thiago Dantas 4 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 5 6 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 “Todo Poder pode ser conhecido, observado, explicado, estimado no que concerne às suas manifestações e resultados. Sabemos ou acreditamos saber que o Poder pode fazer. Mas não podemos definí-lo como essência”. (Karl Loewenstein) Um tema inventariado por muitas teorias. Sofre mudanças – episteme clássico. Sua evolução é sempre marcada pelos efeitos e medida pelas conseqüências. Isso se faz presente nas múltiplas manifestações, quando se quer asseverar que, mesmo com a apresentação de um interregno temporal, não será desfeito o caráter unívoco do Poder, devido à integralidade da estrutura vital. Nada fica fragmentado. Torna-se patente a corporificação das partes. Consubstanciam-se os sistemas. Os pontos de encontro estabelecem mecanismos, ora como repetição ora como sucessividade. Basta entender a aura dos acontecimentos e as propostas decisivas. Vem daí que ele, em última análise, mantém a dimensão e o culto de suas vertentes principais. A construção de uma teoria prévia instaura, com eqüidistância, o pedagogismo que concilia o teor etimológico das palavras. Poder vem do latim “potere”, do arcaico “posse” – contração “potis esse”, ter capacidade e outras relações – possibilidade, potência, força, autoridade. Se a transportarmos para o grego, “aukharrein”. Vocábulo latino, “auctoritas”, deriva de “augere” – acrescentar, ampliar, consentir, autorizar. Nessas condições o que há de valioso é o nivelamento significativo, repercutindo na forma vocabular. Oscila entre o hermético e o aberto, sem conceber qualquer vazio semântico. A interação regular de força e potência não obscurece a instrumentalidade inerente ao Poder. Pelo contrário, vivifica os valores operativos e assegura seu equilíbrio. Deixando de lado a pretensão de criar um quadro de tese, Messner reúne, colhido por J. B. Andes, metodicamente, teorias sobre o Poder, dotadas de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 7 caráter sistemático: do contrato social, presentes Hobbes, Locke e Rousseau; corporativas, sustentadas pela escola francesa do pluralismo jurídico; do espírito de Bonsaquet; do mando, do qual se justifica o Poder de Estado; da infabilidade de J. de Maistre. Vinculam-se a mecanismos institucionais, princípios e bases e sistemas filosóficos, numa seqüência paradigmática, o que já entremostra a dificuldade de abordagem ou seja amiudá-la, diante do “poder mais alto que se alevanta”, o espaço editorial. A interconexão entre essas diversas teorias se prestam a singularizar a existência da ordem contínua dos movimentos descontínuos da sociedade. De maneira geral é tarefa respeitável para pesquisar. Forçoso, entretanto, ter que admitir, sem demora, a realidade sociológica e política do Poder, de modo a perceber a “virtù” de Maquiavel – eficácia na consecução do objetivo. Eis uma conclusão provisória que induz às primeiras incidências da Ciência Política, sem perder o espírito sensível da verdade circunstancial. Conjugar a maneira saliente de Poder, na densidade doutrinária, é a sua própria adesão. Mesmo que não gere de logo a reciprocidade entre teoria e práxis. Precisa abranger o todo. Precisa para o conhecimento do conjunto, sedimentar a noção de cada parte. Ângulos distintos e complementares. Remonta aos filósofos da antiguidade a tradução correta de Ciência Política. São pensamentos compartilháveis. Evitam a desrazão dos conceitos. Estaria fora de lugar como se fossem escuras e escondidas as idéias concebidas. Emerge, em contrapartida, a responsabilidade da citação-testemunho: Ciência Política é Ciência do Poder. O fenômeno político básico é o Poder. A soberania é o grau supremo do Poder. Truísmos, trânsitos históricos. As idéias inteiriças são fecundas e ordenadoras. Às vezes seguem um roteiro inusual, mas coerente com a imperturbalidade do espírito. Acompanham a argumentação concludente e não aceitam a demissão da lealdade. Proclamam o princípio do Poder das Idéias. Não assumem “a adoção passiva das idéias da posição em vez de tomar sempre a posição de suas idéias”. George Burdeau – “Método de lá Ciência Política”: “O poder é uma força a serviço de uma idéia. Se aquilo que pretendemos, como efeito, é isolar o duradouro no fenômeno do poder, enquanto se sucedem as figuras que exercem seus atributos, veremos que o poder é menos a força exterior que 8 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 se coloca a serviço de uma idéia, do que a potência mesma de tal idéia”. Bem caracterizado pela visão apodítica. Inalienável tomada de consciência da fonte de Poder, exemplificada pela força do conhecimento e da inteligência. Refletindo-se um pouco adiante sobre os valores do Poder, sem dúvida alguma cabe aplicar em matéria de regras, a definição: A Estratégia é condicionada pelo Poder, o que repercute na afirmação de Shuman - “O poder de um Estado é conceito sem sentido, a não ser considerado em relação ao poder de outros Estados”. Intui-se uma insidência que se identifica com a própria capacidade de agir. Examinêmo-la à luz de uma categoria moderna de concepção e surgem, pertinentes, idéias que movimentam alguns cordões adensados, percucientes, de tal forma que assinalam a ascensão da lógica dos Centros de Estudos Estratégicos. Centros que subentendem elevação e abrangência de nível intelectual. Impõem pensamento reflexivo. Exigem uma gradação de conhecimento ao pensador. A individualidade não invalida o coletivo. As manifestações de capacidade chamam-se inteligência. Todos esses dispositivos prestam serviço, avaliam situações, propõem soluções, estudam projetos, possibilidades e cenários. Irreversível. A moldura das pesquisas, dos estudos, deve conferir o efeito de assistência às políticas e estratégias de governo. Não devemos perder o sentido e o significado das palavras. A Escola Superior de Guerra é, na verdade, em seu todo, em si mesma, o grande centro de estudos estratégicos, desde a sua criação formulado pela visão univérsica e patriótica dos fundadores. Deve-se reconhecer, homens eminentes que cuidaram de aplicar o saber, o idealismo e a identidade nacional. Nada expletivo. Tem legenda marcante. Basta conhecê-la como instituto de ensino, igualmente centro de pesquisa e estudo. Acresça-se antes de tudo, a uma análise mais detida, a questão que faz desaparecer a dúvida que pudesse haver sobre sua doutrina. As expressões que adornam os conceitos esguianos são operacionais. Servem de cunho terminológico. Esboçam e permitem, sem alarde, estruturar “o lugar do raciocínio projetante no planejamento”. ESG – órgão que pensa. Deulhe solidez o corpo de idéias que, em qualquer Nação, referem-se a parcelas do Poder. Considerem-se duas espécies de história: a dos fatos e a das idéias. Com efeito, Poder, palavra de grande extensão significativa. Precisa-se Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 9 determiná-la, referenciá-la para se obter maior compreensão. Ativa-se o aspecto da transitoriedade e da relatividade. Nesse passo, cada época tem seu diálogo próprio com o Poder. No campo internacional se reveste de pontos cardeais. Ouçam-se as vozes da história. Precisa estar no cerne da civilização – condição permanente de universalidade dos povos. As formas de amplitude que graduam seu entendimento, sua medida, passam a ser objeto de meditação, enfeixado na reformulação ou criação, o que certamente envolve a sociedade no processo decisório. Na conciliação dessas premissas, o Poder só se configura plausível pela incorporação da legitimidade. Fora dessa integridade, o sabor dos sofismas descompatibiliza a decantação de equilíbrio entre a sociedade política e a sociedade civil. Validade e eternidade. Expressões votivas que, de pronto, intervêm no incontroverso simbolismo que se implanta na memória dos homens. Fazem despertar, nos mais variados flagrantes, a expansão da sensibilidade, a vocação de compreender a parte construtiva dos vocábulos – validade (espaço), eternidade (tempo), tendentes ao aperfeiçoamento das instituições. Uma compensação para retirar dúvidas, incertezas e mistérios. Sem essa atitude que abstrai as contradições, a norma ética do Poder tomará tons diversos, se apoderará dos instrumentos de sedução para se transformar em respostas de um discurso de lição decorada. Na verdade, vem dos tempos e pelos tempos, entrando pela origem primeira e última, o Poder, que é divino, inviso, julga. Advém uma obediência consciente e consentida. A lição latente está ao alcance das criaturas. Transcende. É a essência do Poder. “Não procuro saber as respostas, procuro compreender as perguntas”. (Confúcio – 551 – 479 a.C.) Transcrito da Revista N.º 21 – 1992 – ESG – pela perenidade e importância do tema, com alguns acréscimos. 10 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Francisco de Assis Griecco* A Evolução da Alca e o “Fast Truck” A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi lançada na cidade de Miami, pela então chamada “Iniciativa das Américas”, do presidente George Bush. Desde aquela época (1994), o processo de negociações da Alca tem sido longo e complexo, ante as disparidades econômicas dos países proponentes. A própria seqüência e a continuação das reuniões e dos encontros corroboram a disposição americana de levar avante a Alca, no prazo de tempo e nas condições que lhe são favoráveis. A II Reunião de Ministros do Comércio realizou-se em Cartagena (Colômbia) em março de 1996, concomitantemente ao II Fórum Empresarial das Américas. Foi tomada a decisão de que o início de negociações, em continuidade aos programas de trabalho anteriores, ocorreria nos encontros ministeriais (II Reunião Hemisférica) e empresariais (III Fórum) a serem realizadas em maio de 1997, na cidade de Belo Horizonte. Os encontros preparatórios ficaram a cargo de Vice-Ministros de Comércio em Florianópolis (setembro de 1996); no Recife (fevereiro de 1997); e no Rio de Janeiro (abril de 1997). O parceiro constitucional do “conselho e consentimento” do Senado americano, para celebração pelo Executivo dos acordos comerciais, pôde ser interpretado, recentemente, como uma autorização especial de aprovação ou rejeição global, sem possibilidade de emendas legislativas. O fast truck exige: aprovação prévia antes do início das negociações e, após sua conclusão, o Legislativo tem prazo de sessenta dias para votar o acordo. Criado pela Lei de Comércio (1974), esse expediente sofreu modificações em 1979, 1988 e 1993, sendo amplamente utilizado: inclusive para aprovação dos acordos da Rodada do Uruguai e do próprio Nafta. As reações às tentativas de Clinton aplicar a “via rápida” às negociações da Alca partiram dos republicanos, com maioria no Congresso, e dispostos a incluir, na temática dos encontros, as cláusulas ambiental e trabalhista. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 11 O maior sindicato americano, AFL-CIO patrocinou campanha publicitária: que alegava sua participação nos acordos negociados de modo a melhorá-los se necessário”. Temiam os sindicatos que o aumento das importações trouxesse desemprego, alegando pesquisas de opinião quando cerca de 69% dos resultados consideraram representarem os acordos de livre-comércio, perda de empregos. Cerca de 455 opinaram sobre o impacto negativo do Nafta. A campanha de Clinton pela aprovação do FT levava em conta deverem crescer os países latino-americanos e asiáticos três vezes mais do que os Estados Unidos. Estes benefícios eram de fato mais do que óbvios, uma vez que a redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias traria a expansão de produtos agrícolas e industriais de propriedade intelectual, serviços e investimentos estadunidenses FT deve ser consistente com as normas da OMC. Em princípio de novembro de 1997, Clinton obteve vitória no primeiro round da luta pelo fast Truck, conseguindo no Senado votação com maioria significativa. Dias depois, porém, o presidente viu-se na contingência de retirar seu pedido de via rápida na Câmara dos Representantes, inclusive por falta de apoio de deputados de seu próprio partido. A decisão corroborou derrota política ao objetivo norte-americano de liderar, em ritmo mais rápido, o processo de integração econômico do hemisfério. Analistas consideraram na época que, para as grandes empresas americanas, os futuros negociações estarão mais ligados à expansão (globalização) das operações na América Latina do que às exportações para a região. Em maio de 1997, realizou-se em Belo Horizonte, a cúpula de Belo Horizonte (II Reunião de Ministros) marcando, especificamente, as reivindicações brasileiras nos setores agrícolas, inclusive tabaco; produtos têxteis e calçados; siderúrgicos, etanol. Basicamente temia-se o sucateamento da indústria brasileira na fase de reformulação conjuntural (Plano Real) e estrutural de longo prazo, pela globalização da produção e comercialização. O Brasil e o Mercosul reforçaram suas posições, em Belo Horizonte, não cedendo quanto ao estabelecimento, proposto pelos Estados Unidos, de estrutura e de calendário visando o término das negociações até o ano de 2005. O assunto foi referido à Cúpula das Américas (abril de 1998). Um segundo aspecto da aceitação por consenso da temática das negociações pelos 34 participantes. Em terceiro lugar, o resultado fiscal das negociações deveria constituir pacote único com todos direitos e objeto de merecendo concordância. As normas da Alca seriam consoante com as normas da OMC. 12 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Quanto ao aspecto regional, a Alca deverá coexistir com acordo bilaterais e sub-regionais existentes e os futuros a serem firmados. Os países parte de blocos regionais negociariam formação da Alca em grupo ou individualmente. Haveria conta das discrepâncias econômicas, a fim de que fosse assegurada a plena participação de economias menores. Na reunião preparatória de Vice-Ministro na costa Rica (fevereiro de 1998), os países do Mercosul defenderam a posição de “simultaneidade”, i.e. negociação de todos os pontos para conclusão de acordos final; enquanto os Estados Unidos opinaram pela realização de acordos setoriais, que vigorariam à medida do consenso obtido. Em segundo lugar, o Mercosul queria o equilíbrio entre as concessões mútuas, por exemplo, não cedendo entre setores díspares tais como no comércio de produtos agrícolas, com perspectiva de receitas de dezenas de milhões de dólares: contra abertura de telecomunicações que renderia bilhões. O Brasil e seus demais parceiros do Mercosul eram a favor de zona de livre-comércio criada gradualmente. Sem consenso na reunião preparatória, a IV Reunião de Ministros e IV Foro Empresarial ocorreram ainda na Costa Rica (março de 1998), criando nove grupo para o preparo de subsídios e estabelecendo, que a sede da Alca, começaria com rodízio entre Miami e as cidades do Panamá e do México. Houve concordância, em princípio, que: a) o acordo final teria como data 2005, seria equilibrado, abrangente e compatível com as regras da OMC; b) constituiria compromisso único, ou seja “nada seria acordado até que tudo estivesse acertado”; c) negociações transparentes e baseadas no consenso; d) a Alca coexistiria com o Mercosul e demais acordos de livre-comércio e de integração continental; e e) as reuniões de ministros supervisionariam e dirigiriam a estrutura de negociações; os vice-ministros a orientação permanente aos nove grupos de negociações Quatro anos após a realização da primeira Cúpula das Américas em Miami, realizou-se em Santiago (abril de 1998) a II Cúpula com a participação de todos os países americanos à exceção de Cuba. O jornal americano Washington Post chegou a estampar que, “graças à posição brasileira”, os latinos Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 13 estavam se “livrando da sombra” do grande amigo do Norte. O presidente brasileiro deixou bem claro que a agricultura seria o ponto principal na primeira fase de implementação efetiva da Alca. Os resultados do encontro foram consubstanciados em Plano de Ação que ratificou as propostas brasileiras de combate ao contrabando de armas, destaque à educação e à manutenção das regras atuais de privatização e telecomunicações. Ás vésperas da V Reunião Ministerial de Toronto (novembro de 1998), o governo americano anunciou sua disposição de negociar a Alca mesmo sem a obtenção do fast Truck, contando aparentemente com as concessões da Argentina e do Brasil, os dois parceiros maiores do Mercosul. Em 1998, a balança global dos Estados Unidos acusou volume de cerca de US$ 2 trilhões, dos quais US$ 780 bilhões provenientes da América Latina: uma das poucas áreas com que os americanos têm saldo positivo, chegando a US$ 80 bilhões. As negociações de Toronto precederam o estrondo do fracasso da Reunião Ministerial do Milênio (Seattle). Em junho de 2000, o Secretário Americano do Comércio deu declarações intempestivas, manifestando seu ceticismo quanto ao que considerou posição negativa brasileira. As fontes oficiais americanas desautorizaram a declaração. Em seus comentário, o chanceler brasileiro Lampreia considerou que há série de incógnitas nos próximos cinco anos, tais como: a posição do Congresso americano nas negociações com a OMC; e a prevalência do multilateralismo sobre o regionalismo. Em sua visita a Brasília (agosto de 2000), a Secretária de Estado, Madeleine Albright, referiu-se à liderança do Brasil no Mercosul e a seu papel primordial na estruturação da Alca. Segundo a imprensa, Lampreia teria condicionado a Alca-2005 à revisão de pelo menos dez pontos das restrições protecionistas aos produtos brasileiros. A Alca: Conjuntura e Estrutura A adesão do Brasil à Alca significa, no atual estágio do desenvolvimento brasileiro, a reformulação básica do processo econômico: não apenas em suas diretrizes estruturais, mas agora levando em conta a situação global decorrente do regime de instabilidade financeira, que afetou a economia mexicana, abalou as economias “felinas” da Ásia do Leste chegou, após a crise russa, a nosso País. Como tivemos oportunidade de mencionar anteriormente discutiu-se em Belo Horizonte a proposta americana de redução tarifárias de sua média 14 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 de 5,1%, com cortes de 50% e, abaixo daquele nível médio, a aplicação de tarifa-zero. Essa perspectiva per se é pouco convidativa à reciprocidade: uma vez que a média tarifária é inadequada, como vimos em relação a tarifas máximas que gravam certas exportações brasileiras. São casos de calçados (48%); produtos siderúrgicos (100%); frutas frescas (85%); fumo em folha (335%) etc., sem falar em barreiras de salvaguardas, dumping, cotas e restrições fitossanitárias. Dessa maneira, a precondição de cortes tarifários americanos exigiria redução bem mais radicais, para negociações com base na reciprocidade. No caso brasileiro, a redução de tarifas seria aplicada na fase atual de total reformulação estrutural da indústria, cujos custos de produção e comercialização demonstram incapacidade, em vários setores, de competição global a longo prazo. Está fora de cogitação sim a eventualidade de adaptação de curto prazo ao figurino da globalização, quando estamos em meio à aplicação de política austera de juros altos, com câmbio flutuante e contenção de consumo. Vale pois associar todas essas contingências de reformulação estrutural, a futuros sacrifícios sociais perversos, às pressões externas sobre a balança de transações correntes que cobrirão, nos próximos anos, repagamentos e os déficits comerciais necessários à renovação de equipamentos e novos métodos de produção, no esquema da globalização. De modo geral, o fato de que estamos atrelados à economia mundial, com suas flutuações cíclicas, trará necessidade de revisão do atual esquema de recuperação econômica Sabemos dos empecilhos que retardam a concretização da união política e monetária da Europa; que serão igualmente evidentes, embora peculiares, à própria consolidação do Mercosul e bem mais em relação à Alca. A integração regional do Mercosul, à área de livre intercâmbio continental, exigirá não só da reestruturação radical da economia brasileira, mas das nossas próprias diretrizes no contexto daquele bloco comercial. Chegamos à constituição de zona aduaneira e à tarifa externa comum, embora com exceções de conveniência temporária que não invalidam esse caráter. Um dos tópicos aventados em Santiago, estabeleceu (1998) a conformação das diretrizes da Alca aos preceitos da OMC. A supremacia americana, no seio da Alca, não será necessariamente exercida pelas condições de poder político ou econômico dos Estados Unidos. A liderança na condução do processo de globalização da América Latina garante àquela nação a transferência tecnológica e os investimentos, que definirão as Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 15 posições nas escalas de produção e comercialização dos países latino-americanos. As limitações do compromisso contratual de área de livre-comércio não asseguram a liberdade de uma união econômica: com os benefícios de esquemas de equalização, através de assistência financeira para unificação de estágios sociais de crescimento econômico. O próprio Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta) tipificou a sua criação limitada ao intercâmbio de mercadorias e serviços especificados; bem mais restrito, portanto, do que os estágios aduaneiros e de união econômica. No que se leva em consideração as diferenças maiores de potencial econômica das nações comunitárias européias ou do Canadá, devese considerar que a ausência de vantagens, das uniões aduaneiras e econômica, dão aos Estados Unidos ganhos unilaterais de intercâmbio sem obrigações co-participativas maiores. Opções Brasileiras: Adesão ou Isolamento A criação da Alca configura-se às novas diretrizes americanas de principal global trader, dando ao seu intercâmbio comercial papel primordial à expansão do emprego e à manutenção de níveis crescentes na economia dos Estados Unidos. Essa reversão, dos fluxos deficitários do seu comércio exterior, caracteriza o retorno de recursos bilionários, acumulados pelos saldos negativos americanos, estimulando novos métodos de globalização doméstica e internacional. Essa absorção paulatina e programada do intercâmbio global trará, igualmente, vantagens à expansão do comércio americano de serviços agora incluídos na esfera da OMC: após a Rodada do Uruguai e abrangendo a propriedade intelectual, as atividades bancárias e de seguros, o turismo, etc. Ou seja, os Estados Unidos aceitam a regionalização e a emergência de potências políticas e econômicas, como a China e a América Latina, no contexto mundial. A iniciativa da Alca assumiu, claramente, feições impositivas americanas que passaram ao nível político de negociações de cúpula, no âmbito latinoamericano. O próprio calendário das reuniões endossava a disposição da administração democrática de das à Alca feições supra-partidárias e expedientes pela adoção da “via rápida” proposta ao Congresso. A ausência de compromissos americanos definidos não significa, necessariamente, concordância em esquemas de concessões recíprocas da Alca. A reunião de Belo Horizonte não foi senão repositório de 16 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 intenções, às vezes contraditórias, que mencionavam negociações bilaterais e referência vaga de consenso geral, com concessões eventuais tarifárias não especificadas ou insatisfatórias. Conquanto objeto de declaração retóricas de apoio ao Brasil, não se deve ignorar que muitos, da trintena de nações americanas, estão, mais do que nós ligados aos Estados Unidos por volumes de comércio e investimentos. Suas avaliações dos aspectos positivos da integração comercial e, eventualmente, econômica são, portanto, dependentes daquelas circunstâncias. Deve-se, dessa maneira, considerar que participação crescente americana no comércio com os países da Aladi, via constituição da Alca, terá impacto correspondente no intercâmbio brasileiro com o bloco regional latino-americano. Adesão brasileira à Alca não exigirá pressões ostensivas mas não nos faltam lembretes de que não podemos abdicar dos mercados latino-americanos, de importância para nossos produtos industriais. A cogitação do isolamento brasileiro no processo de integração parece inadmissível; quando os mercado dos Estados Unidos e da Aladi somam, incluindo o Mercosul, cerca de 42,4% das nossas exportações globais. Perspectiva essa que, até o presente, não aflige os fluxos de investimentos diretos estrangeiros, de todas procedências, que demandam o mercado brasileiro. Como país industrializado, temos vantagens e desvantagens nas barganhas de concessões e ganhos tarifários, bem como na remoção de barreira nãotarifária nas negociações para a nossa participação na Alca. Nessas negociações definimos, aliás, com clareza, nosso estágio de desenvolvimento econômico relativo no contexto dos demais países americanos, latinos e outros. Consequentemente, a adesão brasileira exigirá adaptações estruturais progressivas, à medida que compatibilizemos concessões exigidas pelo bloco econômico de conformação continental. No momento presente, a instabilidade financeira, dos movimentos especulativos internacionais, terá muito a determinar quanto ao ritmo das integrações em geral e, especialmente, da Alca em particular. *Ex-Embaixador na Hungria e nos Países Baixos Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 17 Marcos Henrique C. Côrtes* INTRODUÇÃO O término da Guerra Fria acarretou enormes mudanças no âmbito do relacionamento internacional, que se conjugaram com as profundas modificações que já vinham sendo geradas pela chamada Terceira Revolução Industrial. Em grande parte como decorrência dessas metamorfoses, acelerou-se e ampliou-se o processo de transformação das relações econômicas mundiais, popularmente identificado como Globalização. Consequentemente, surgiu a necessidade da revisão de muitas concepções que, por mais de meio século, haviam pautado as estruturas e o funcionamento dos Estados-Nações, tanto interna como externamente. Em vários países, instituições acadêmicas e entidades governamentais lançaram-se com intensidade nesses estudos reformadores. Os objetivos de tais estudos, contudo, nem sempre foram coincidentes e por isso as conclusões dos mesmos precisam ser analisadas com cautela. Em nome da atualização de concepções, procurou-se em alguns casos modificar radicalmente ou até abandonar por completo muitas delas2 . Às vezes podem-se perceber sutis ou mal-disfarçadas intenções na propugnação de alterações profundas, como ocorreu, por exemplo, com a concepção de Soberania Nacional3 . Obviamente, as concepções próprias das Forças Armadas não podiam deixar de ser amplamente afetadas, começando pelas dos países que participaram mais de perto da Guerra Fria e, em graus diferentes de amplitude e velocidade, também nos países semi-desenvolvidos4 . Ao conjunto das mudanças que começaram a ser introduzidas em todos os aspectos da Expressão Militar do Poder Nacional deu-se o nome de Revolução em Assuntos Militares (RAM). O período de transformações iniciado de modo mais visível a partir de 1990 veio a ser batizado de Pós-Modernismo Militar (PMM). 18 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 A finalidade principal do presente texto é assinalar os principais aspectos da RAM que precisam ser estudados nos países semi-desenvolvidos, para que se possa melhor equacionar a maneira pela qual devem eles efetivamente participar do PMM. Para facilidade de exposição e com critério prático, o texto ater-se-á tanto quanto possível ao Brasil. DEFESA NACIONAL Historicamente a expressão Defesa Nacional era diferentemente associada às Forças Armadas5 . A elas cabia a responsabilidade de defender a integridade da Nação. Como a segurança da Nação era percebida essencialmente em termos castrenses, por derivação lógica considerava-se que preservar a Segurança Nacional era dever das instituições militares. A contribuição dos demais integrantes da sociedade se limitava a proporcionar aos seus soldados os meios necessários, inclusive atribuindo-lhes estatuto jurídico próprio. Nas primeiras décadas do Século XX, ante a realidade da “guerra total”, os próprios militares lideraram o processo de ampliação do conceito de Segurança Nacional e, com ele, a noção de que cabia a todos os cidadãos a responsabilidade por sua preservação. Inversamente, os militares passaram a considerar que era também sua a responsabilidade de, mesmo que de forma coadjutória, promover o desenvolvimento econômico e social. Foi com esse espírito que se criou a nossa Escola Superior de Guerra e, de modo coerente, estipulou-se desde seu começo a proporção de 70% de civis e 30% de militares para a composição do Corpo de Estagiários e do Corpo Permanente. É também importante ressaltar aqui a percepção que tiveram os iniciadores da ESG da imensa importância do Campo Externo para a missão da instituição . Esse entendimento explica o fato de que a ESG foi fundada pelas três instituições militares e pelo Itamaraty, tendo sido notável a participação de Diplomatas como estagiários e como integrantes do Corpo Permanente, inclusive do preenchimento do cargo de Assistente de Relações Exteriores, no mesmo nível hierárquico6 dos Assistentes designados pelas forças singulares. As linhas mestras por que se guiaram os iniciadores da ESG e a forma pela qual ela evoluiu ao longo de seu primeiro cinqüentenário deixam claro que a concepção do binômio Segurança e Desenvolvimento, formulada por esse instituição, não decorreu de qualquer preferência político-ideológica e, sim, atendeu à necessidade de análise , equacionamento e execução integrada de políticas e estratégias visando o bem-estar de toda a Nação, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 19 independentemente das preferências ideológicas e partidárias dos cidadãos. Na última década da Guerra Fria, embora por motivações diferentes, no Brasil e nos países mais avançados do chamado “mundo ocidental”, a noção de Defesa Nacional foi se sobrepondo à de Segurança Nacional. As pressões, internas e exógenas, para que, no Brasil, fossem abolidos os Ministérios das forças singulares e criado um Ministério da Defesa também respondiam a desígnios diversos. Entretanto, essas diferenças, bem como as divergências decorrentes, perdem relevância ante o fato de que, com a criação deste Ministério, surgem, ao mesmo tempo, a necessidade e a oportunidade de se formular de maneira correta a concepção brasileira de Defesa Nacional. Para tanto, incumbe ao Ministério da Defesa (MD) promover a elaboração da Doutrina de Defesa Nacional, na qual estará compreendida a Doutrina Militar de Defesa (resultante da conjugação das Doutrinas das três forças singulares). Com base nela traçar-se-á a Política de Defesa Nacional (PDN), cuja execução será guiada pela Concepção Estratégica Nacional. Esse trabalho deverá satisfazer a três requisitos fundamentais: (a) resgatar o princípio da responsabilidade compartilhada de toda sociedade pela Segurança e pelo Desenvolvimento nacionais; (b) restabelecer o princípio da preservação integral da Soberania, e (c) habilitar a Nação a adotar, com adaptações pertinentes, os critérios reformadores característicos do Pós-Modernismo Militar. Com base no que precede, pode-se chegar à definição de que DEFESA NACIONAL é o conjunto de políticas e estratégias, baseadas precipuamente nas Expressões Militar e Diplomática do Poder Nacional, que visam a neutralizar quaisquer ameaças ou ataques, internos ou externos, à Segurança Nacional, bem como a contribuir para o Desenvolvimento Nacional7 . IDENTIFICAÇÃO DO “INIMIGO” É sempre grande o esforço que se pede de toda a Nação para a viabilização de uma Política de Defesa Nacional (PDN) eficaz. Além disso, geralmente é difícil, para a grande maioria dos cidadãos, visualizar com clareza os benefícios correspondentes aos ônus que lhes são impostos em nome da Defesa Nacional. Desde as últimas décadas do Século XIX até o final da Guerra Fria, na maioria dos Estados-Nações atuantes no cenário mundial era relativamente simples fazer coincidir a imagem do “inimigo” com algum país ou grupo de países. Os cidadãos dispunham-se assim a suportar com tolerância – e às vezes com fervor – os sacrifícios que a Pátria deles exigia. 20 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Inversamente, quando não havia tal percepção as lideranças políticas não conseguiam obter o grau de apoio popular necessário8 . Os mais de cinqüenta anos de Guerra Fria habituaram o público em geral e até mesmo os analistas e estudiosos do relacionamento internacional à comodidade de “personificar” o inimigo num país ou grupo de países. Em conseqüência, no mundo pós-1990, uma das principais dificuldades com que se deparam os responsáveis pela formulação e implementação da PDN reside na identificação do “inimigo”, sobretudo em termos de fácil compreensão e aceitação pela respectiva sociedade. No entanto, a solução é simples. A própria História nos mostra como essa individualização do inimigo era apenas uma maneira prática de motivar o apoio popular para a consecução de determinados objetivos. Assim, Cartago era apontada em Roma como inimiga mortal e os “infiéis” execrados pelos líderes europeus à época das Cruzadas – em ambos os casos, na verdade, estavam em disputa importantes interesses econômicos. Lord Palmerston9 , Primeiro Ministro britânico na metade do século XIX, é o autor de uma pragmática definição de política externa e de duas observações, freqüentemente glosadas e às vezes combinadas numa só: “(...) o que se chama de política (externa)? A única resposta é que nós pretendemos fazer o que possa parecer ser o melhor, em cada situação que se apresente, tendo os interesses de nosso país por princípio guia”10 . “Não temos quaisquer aliados eternos nem quaisquer inimigos permanentes”11 . “Nossos interesses são eternos e o nosso dever é segui-los”12 . De fato, a premissa é clara: no relacionamento internacional, não há amigos nem inimigos – apenas interesses, conflituosos ou conciliáveis. Aliás, isso ocorre mesmo quando um país identifica enfaticamente outro como o inimigo e, no entanto, certos interesses seus são ameaçados ou prejudicados por terceiro país, que pode até mesmo ser aliado seu contra aquele mesmo inimigo. Consequentemente, o “inimigo” de um Estado-Nação consistirá em todos e quaisquer interesses que ameacem ou visem a prejudicar sues próprios interesses. Caberá, portanto, aos responsáveis pela PDN identificá-los e fazer com que a opinião pública seja capaz de entender a nocividade dos mesmos. Essa tarefa de conscientização da sociedade pode até, conforme as circunstâncias conjunturais, recorrer a uma individualização ou personalização Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 21 do “inimigo”. Em termos populares, seria “dar nome ao Diabo”. Dessa maneira será mais fácil conseguir o apoio de toda a sociedade para a obtenção dos meios requeridos para a Defesa Nacional, os quais serão definidos em função dos Objetivos Nacionais colimados e dos interesses exógenos que a eles se contrapuserem. Esse balizamento deve, pois, presidir o trabalho de promover o ingresso do país no Pós-Modernismo Militar. Paralelamente a essas dúvidas quanto à “identidade” do inimigo e no ambiente eufórico de otimismo ao término da Guerra Frias, expandiu-se a idéia da desnecessidade de forças armadas. Por diferentes motivos, foram lançadas proposições visando a dar nova feição às forças armadas dos países semidesenvolvidos, sob o rótulo de “novas missões”. O mesmo rótulo foi adotado nos países tecnificados, mas com sentido muito diverso, o que na verdade correspondia à orientação de crescente intervencionismo. Ora, não pode haver quaisquer dúvidas sobre a necessidade continuada de forças armadas. Basta recordar que elas são componente inseparável do Poder Nacional e, portanto, se sofrerem redução qualitativa (seja por degradação de meios e recursos seja por rebaixamento de atribuições de emprego) haverá inevitavelmente uma diminuição do Poder Nacional como um todo. Em termos realistas, cabe aqui citar declaração escrita da Secretária de Estado norteamericano no Governo Clinton, Madeleine Albright: “(...) É claro que nem o Direito (Internacional) nem a opinião pública mundial podem forçar nações a agir contra seus próprios interesses principais. (...) Obviamente, os acordos não eliminam a necessidade de forças armadas poderosas, capazes de servir como dissuasão(...)”13 . A RAM E OS PAÍSES SEMI-DESENVOLVIDOS Nos países tecnificados, a Revolução em Assuntos Militares (RAM) vem sendo debatida em dois níveis – acadêmico e profissional – com escassa intercomunicação. Provavelmente isso se deve à urgência com que os responsáveis por Defesa desejam dispor de forças armadas pós-modernas capazes de assegurar a implementação das políticas de predomínio econômico. Não obstante, os estudos acadêmicos oferecem boa base inicial para a tarefa de formulação, dos países semi-desenvolvidos, das diretrizes adequadas para que se insiram no Pós-Modernismo Militar (PMM). O primeiro passo a ser dado por país semi-desenvolvido para atualizar 22 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 suas forças armadas diante da RAM requer cotejar suas características presentes com as que são consideradas, nos países tecnificados, como o paradigma de forças armadas pós-modernas. Há alguns estudos que procuram definir esse paradigma, porém todos eles têm o inconveniente de conceber o paradigma a partir da realidade constatada naqueles países. Reproduzo abaixo um deles14 , a título de exemplo e que, com as alterações que me parecem necessárias, serve para pautar análise sucinta do caso brasileiro. Um primeiro exame desse quadro já indica como alguns elementos que constam do paradigma carecem de grande relevância para se conduzir as forças armadas brasileiras à condição pós-moderna. Assim, por exemplo, os dois últimos – homossexuais e imperativo de consciência – jamais chegaram a constituir para elas um problema grave e parece-me lícito considerar que a maneira como ambas as circunstâncias foram tratadas até hoje não será fator limitativo da pós-modernização. Outros dois – quadros femininos e postura de cônjuges (que, até hoje, equivalem basicamente a esposas de militares) – acompanham a evolução Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 23 normal de contingências da sociedade brasileira e por essa razão deixam de ser examinados neste texto. Isso, entretanto, em nada diminui sua grande importância para o processo evolutivo das forças armadas brasileiras no período pós-moderno. Considere-se, por exemplo, que até há pouco tempo as dificuldades que eventualmente surgissem com a transferência de um oficial pelo fato de sua mulher Ter emprego na cidade em que estavam eram consideradas assuntos pessoal (familiar) do próprio oficial. O aumento desses casos tem sido tratado informalmente, procurando-se dar aos interessados o auxílio possível para encontrar solução. Não obstante, no contexto pósmoderno, a questão precisa ser equacionada em termos institucionais15 . Os demais sete elementos do paradigma acima serão a seguir examinados separadamente, procurando-se identificar como se delineia a situação das forças armadas brasileiras em relação a cada um. 1 – AMEAÇA PERCEBIDA Nessas condições, em relação à área temática “ameaça percebida” no quadro acima, pode-se considerar que o Brasil manteve durante quase todo o período Moderno Final a mesma percepção de ameaça do período Moderno, ou seja, de invasão inimiga. O conjunto dessas circunstâncias fez com que as autoridades responsáveis por defesa nacional não estivessem preparadas para perceberem as diversas feições da nova ameaça de conflito subnacional ou sub-estatal no período Pós-moderno. Para os países tecnificados, essa ameaça pareceria limitar-se a atentados terroristas. Entretanto, como aliás já ocorreu, um país tecnificado (isoladamente ou em nome de uma aliança) pode alegar que a existência, em algum país subdesenvolvido ou semi-desenvolvido, de processo de 24 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 desestabilização iminente ou com potencial de alastramento representa ameaça intolerável a seus interesses. É a situação típica em que se aplica o conceito atual de gerenciamento de crises, com alguma forma de intervenção (ver adiante). No caso dos países semi-desenvolvidos, a ameaça subnacional ou subestatal precisa ser analisada sob o duplo aspecto da modalidade de ação e do patrocínio verdadeiro, como indicado nos dois quadros abaixo: MODALIDADES DE AÇÃO Atentados terroristas; Dissensão interna aguda (violenta); Desestabilização econômico-financeira; Desordem sócio-funcional (narcotráfico, corrupção, etc.); Campanhas pseudo-humanitárias; Campanhas pseudo-científicas; Et al. PATROCÍNIO VERDADEIRO Ostensivo/direto (organização subversiva; ONG; organismo internacional) Ostensivo/indireto (ações em terceiro Estado) Camuflado/direto (Estado) Camuflado/indireto (ações de Estado em outro Estado) Nesse contexto é importante avaliar objetivamente as conceituações “doutrinárias” aplicadas pelos centros de poder e outros países tecnificados. Atualmente eles estabelecem as seguintes categorias de missões: Defesa; Dissuasão; Gerenciamento de crises. As duas primeiras obedecem às concepções clássicas, embora adaptadas à realidade geoestratégica pós-1990. A terceira, porém, amplia muito a concepção tradicional de gerenciamento de crises, assumindo uma ominosa feição ao programar engajamento preventivo, intervenção humanitária e Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 25 emprego da força armada em operações de manutenção, construção e/ ou imposição da paz. Nessa categoria se dá a conjugação de concepções pós-modernas de defesa com as “causas nobres” e “novidades” jurídicas e diplomáticas. Em outras palavras, essa nova maneira de conceber o gerenciamento de crises traduz o empenho dos países tecnificados em transformar o intervencionismo como forma normal e legítima de atuação internacional. As “causas nobres” e as “novidades” jurídicas e diplomáticas servem assim de instrumentos para configurar crises a serem gerenciadas. Em outras palavras, servem de pretexto aparentemente válido para justificar a intervenção, através do uso da força e/ou de recursos não-militares (sanções diplomáticas, econômicas, financeiras ou comerciais). Como sua própria qualificação indica, as causas invocadas são ostensivamente nobres: proteção dos direitos humanos, defesa de minorias, preservação do meio ambiente, apoio aos direitos dos povos indígenas, etc. Paralelamente, foram criadas e são propugnadas “novas idéias” com vezos de validade jurídico-diplomática, tais como o “selo-verde” e o “antidumping social” (na verdade, barreiras comerciais não-tarifárias), soberania limitada, dever de ingerência, direito de intervenção, interferência humanitária e outras semelhantes. O exercício desse “direito do mais forte”16 busca ainda apresentar-se como tendo endosso universal. Quando não é conseguido a priori o aval das Nações Unidas, recorre-se a uma expressão que vai sendo aceita impensadamente pela opinião pública, austuciosamente persuadida através do emprego intensivo dos meios de comunicação de massa: “em nome da comunidade internacional”. Caso ainda haja alguma dúvida sobre a utilização das “causas nobres” e das “novas idéias” para fins de política externa dos países tecnificados, basta ver a falta de coerência com que castigos e sanções são ou não aplicados pelo mundo afora. Constata-se claramente um quadro de “dois pesos e duas medidas”. De forma esquemática, podem-se então compor os dois quadros a seguir, em que estão indicadas as principais ameaças com que se defrontam os países semi-desenvolvidos, provenientes diretamente de outros Estados ou de outras fontes. 26 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 AMEAÇAS (ESTADO) INCIDÊNCIA ÂMBITO(S) PROBABILIDADE INTENSIDADE SOBERANIA DIPLOMÁTICO/MILITAR ALTA ALTA TERRITÓRIO MILITAR/DIPLOMÁTICO MÉDIA BAIXA INSTITUIÇÕES POLÍTICO/DIPLOMÁTICO MÉDIA ALTA ECONOMIA POLÍTICO/DIPLOMÁTICO ALTA ALTA POPULAÇÃO MILITAR/DIPLOMÁTICO BAIXA BAIXA MEIO-AMBIENTE DIPLOMÁTICO/POLÍTICO MÉDIA MÉDIA AMEAÇAS (OUTROS) INCIDÊNCIA ÂMBITO(S) SOBERANIA POLÍTICO / POLICIAL/ PROBABILIDADE INTENSIDADE MÉDIA MÉDIA DIPLOMÁTICO TERRITÓRIO POLICIAL/MILITAR BAIXA BAIXA INSTITUIÇÕES POLÍTICO/DIPLOMÁTICO MÉDIA ALTA ECONOMIA POLÍTICO/DIPLOMÁTICO ALTA ALTA POPULAÇÃO POLICIAL / MILITAR / ALTA ALTA ALTA ALTA DIPLOMÁTICO MEIO-AMBIENTE DIPLOMÁTICO/POLÍTICO Esses dois quadros evidenciam a enorme importância que, no quadro mundial que começou a se delinear a partir de 1990, a Expressão Diplomática passou a desempenhar para o fortalecimento do Poder Nacional, não só nos países tecnificados como, com ainda maior relevância, nos semi-desenvolvidos. 2. DEFINIÇÃO DE MISSÃO PRINCIPAL Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 27 Refletindo o que já foi assinalado a respeito da área temática “ameaça percebida”, no Brasil a “definição de missão principal” no período Moderno Final continuou sendo a defesa do território pátrio. Cabe aqui ressalvar que, no período Moderno, as forças armadas brasileiras acrescentaram, na primeira metade da década de 40, o “apoio a aliança”, concretizado na declaração de guerra às potências do Eixo (1942) e no combate direto ao inimigo no Atlântico Sul (patrulhamento e ações anti-submarinas pela Marinha e Força Aérea; defesa do litoral pelo Exército) e no envio da Força Expedicionária Brasileira e do 1º Grupo de Aviação de Caça para lutar na Itália, integrados ao 5º Exército norte-americano. Encerrado o conflito, porém no período Moderno Final a missão principal voltou a ser apenas a defesa do território pátrio, não mais sendo o Brasil parte de qualquer aliança militar (excluídas as obrigações decorrentes do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR)17 . No período Pós-moderno, a definição da missão principal deve abranger, com critérios utilitários, as “novas missões” para as forças armadas brasileiras, porém sem criar riscos de desvirtuamento institucional. A questão do narcotráfico, tanto internamente como nos países circunvizinhos, talvez seja a de mais urgente tratamento e a que exige maior cuidado segundo esses critérios e precauções. Será preciso aqui especificar cuidadosamente o que será atribuição, por um lado, dos órgãos policiais e, por outro, das forças armadas, especialmente no que se refere à vigilância e proteção das faixas de fronteira, dos rios internacionais sucessivos e do espaço aéreo. A eficácia dessas diretrizes dependerá da clareza da definição em termos de 3CI (Comando, Controle, Comunicações e Inteligência), sendo ainda indispensável o estreito entrosamento com o Ministérios das Relações Exteriores18 . A título exemplificativo, resumo abaixo como, a meu ver, o papel das forças armadas brasileiras diante da questão do narcotráfico poderia ser equacionado: PREMISSAS 1) Os mecanismos policiais, judiciários e educacionais não são capazes de eliminar o ciclo das drogas (produção, processamento, comercialização e consumo). 2) A tipificação do ciclo das drogas como atividade criminosa cria condições ideais para a montagem e funcionamento de imensas redes de altíssimos lucros, composta inclusive por pessoas e entidades que mantêm conduta paralela inteiramente legal. (ex.: instituições financeiras). 28 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 3) O enorme poder de corrupção dessas redes ameaça a própria integridade da sociedade e do Estado-Nação. 4) As pressões, nos âmbitos internacional e doméstico, para o emprego de forças armadas no combate ao ciclo das drogas tende a crescer, podendo chegar a nível irresistível. 5) O emprego das forças armadas nesse combate – nos termos da legislação vigente – não resolverá o problema e acarretará danos possivelmente fatais para essas instituições. CONCLUSÕES 1) A eliminação das conseqüências do ciclo das drogas (com suas características atuais) constitui Objetivo Nacional Atual (ONA) de altíssima prioridade. 2) Há apenas uma de duas opções para atingir esse ONA: a) descriminalização total do ciclo das drogas e sua ampla liberalização (sem qualquer tipo de impostos), ou b) emprego das forças armadas contra o ciclo das drogas, mas só depois de nova tipificação legal que o torne compatível com a missão precípua das instituições militares. PROPOSIÇÕES Tendo em vista as duas opções acima, pode ser adotada uma das alternativas abaixo: a) A idéia da descriminalização da droga geralmente provoca misto de espanto e repulsa. Em muitos países europeus vêm sendo adotadas modalidades de descriminalização, com diferentes tipos de limitação, mas todas elas só se aplicam ao consumo. O inegável fracasso dos métodos há décadas adotados para combater o narcotráfico faz com que essa idéia mereça estudo objetivo e amplo. O fundamental é que essa descriminalização seja integral em todos os sentidos: não só abrangendo todas as etapas, desde a produção da matéria-prima até a comercialização, mas assegurando também plena isenção de impostos, cuja aplicação frustraria essa solução. Dessa maneira, se eliminaria de imediato a fabulosa margem de lucro que nutrem as imensas redes de tráfico e de lavagem de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 29 dinheiro. É óbvio que a mera sugestão de diretriz desse tipo gerará fortes reações, ostensivas ou camufladas, de muitos setores. b) Ao invés de tentar empregar as forças armadas de maneira incompatível com sua finalidade, o objetivo será legalmente qualificado de acordo com a missão específica das forças armadas, classificando-se os narcotraficantes como inimigos empenhados numa agressão armada contra o Estado nacional. Configurada assim uma situação de guerra, deverão ser a ela aplicadas as normas próprias de conflito armado, inclusive com sua meta clássica: a destruição completa do inimigo. Fica claro que decisão desse tipo só pode ser tomada por legislação federal, tanto pelos aspectos jurídicos pertinentes como para demonstrar inequivocadamente o endosso político-partidário à atuação das forças armadas. 3. ESTRUTURA DA FORÇA Nessa área temática existem, no Brasil, diferenças significativas entre as três forças singulares. A Marinha de Guerra do Brasil e a Força Aérea Brasileira19 , por sua própria natureza, sempre tiveram efetivos compostos predominantemente por voluntários, ou seja, profissionais que, de forma geral, permaneciam na força respectiva por toda sua vida ativa. O Exército Brasileiro, ao contrário, requeria uma proporção elevada de recrutados, especialmente no nível de praças. Essa dependência ficou evidenciada de maneira marcante quando da constituição da Força Expedicionária Brasileira, para a qual tiveram que ser convocados, além de praças, oficiais da reserva formados nos CPORs (nível de Tenentes). Com o crescimento da população nacional, o contingente de rapazes na faixa etária de 17-18 anos cresceu muito além das necessidades de complementação anual (rotativa) dos efetivos das três forças. Em 30 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 conseqüência, a cada ano são atualmente incorporados em todo o país, nos termos da legislação do Serviço Militar Obrigatório (SMO), cerca de 70.000 jovens, de um total de aproximadamente 1.700.000 jovens, sendo o restante dispensado por incapacidade ou como “excesso de contingente”. O mecanismo do SMO precisa ser reformulado com urgência. Essa transformação se beneficiará da inexistência de contestação, bem como das dificuldades econômicas que enfrenta enorme parcela da população. Essa reformulação deveria atender às necessidades das forças armadas numa etapa de transição para estrutura pós-moderna, buscando adaptar a concepção de Força Totalmente Voluntária (FTV) à realidade brasileira e levando em conta as peculiaridades de cada Força singular, que exigirão implementações distintas. Deve-se também, nesse caminho para a pós-modernidade militar, estabelecer novos mecanismos de ascensão hierárquica em função de critérios de capacitação em diversos campos do conhecimento. Simultaneamente, não se devem abandonar as funções ancilares que assumiu o SMO no Brasil: difusão de valores cívicos e de princípios morais, num quadro estruturado de disciplina, e treinamento básico em atividades profissionalizantes. Todos esses objetivos poderão ser atingidos pela transformação do atual SMO em um “Serviço Cívico Integral” (SCI), com feição flexível e abrangendo os jovens de ambos os sexos na faixa etária de 17-18 anos. Esse SCI deve ser concebido de maneira a não prejudicar os estudos que estejam sendo realizados, através, por exemplo, de diversas formas de parcelamento do tempo ou adiamento de prestação de serviço. A cada ano se estabeleceria uma quota compulsória para atender às necessidades das forças singulares, a ser preenchida preferencialmente por voluntários dentre os alistados. Essa quota deveria ser decrescente, numa proporção que a prática e o ritmo de implantação da concepção de FTV iria indicar. O conjunto de jovens excedente dessa quota destinada ao serviço militar propriamente dito receberia instrução básica de autêntica cidadania e seria aproveitado em serviços públicos, desde controle de trânsito em zonas escolares até o trabalho em obras públicas e serviços à comunidade. No caso de jovens já engajados em carreiras civis ou profissões liberais, seu aproveitamento no SCI seria feito um contexto compatível com as mesmas. O Projeto Rondon, que teve grande êxito na ampliação dos conhecimentos práticos de centenas de rapazes e moças de nível universitário em áreas reRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 31 motas do país, pode ser reativado, conjuntamente com universidades, como parte do SCI. Aliás, o esquema adotado no Projeto Rondon provavelmente mostrará, de modo convincente, a esses contingentes anuais de moças e rapazes as imensas oportunidade de atividade profissional que existem nos mais distantes rincões de nossa pátria. Poder-se-á assim criar um mecanismo auto-alimentado de melhor distribuição demográfica e de aumento do nível de emprego. Subsidiariamente, se originará um fluxo natural para desafogo das megalópolis brasileiras, com todas as mazelas decorrentes desse fenômeno social atual. 4. PERFIL MILITAR PREDOMINANTE (COMANDANTE) No caso das forças armadas brasileiras, a conceituação do novo perfil militar predominante não pode estar dissociada da evolução política e social do país no últimos 100 anos. Considero fundamental que se faça uma análise objetiva, isenta de preconceitos e de julgamentos qualitativos, das características da oficialidade brasileira desde a proclamação da República. Essa análise terá, necessariamente, que levar em conta o quadro político-social e as várias crises e alterações institucionais ao longo do século que se encerra. Por isso mesmo, é preciso entender corretamente o que se pretende quando se define, no paradigma acima, o perfil militar predominante como sendo de um oficial “politicamente apto, estadista, culto”. O sentido dessa qualificação nada tem a ver com a vida política do país, mas sim com a natureza do papel que terá de desempenhar no contexto das “novas missões” visualizadas pelo mesmo paradigma, principalmente as vinculadas com o gerenciamento de crises. Pondo de lado os eufemismos, a visão dos países tecnificados para 32 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 essa modalidade de emprego das forças armadas pós-modernas se resume em diferentes formas de intervencionismo. É sabido que o pensamento predominante na sociedade brasileira, escrupulosamente refletido, aliás, num dos princípios basilares da política externa brasileira, defende com firmeza a não-intervenção no assuntos internos de qualquer país. Esse mesmo princípio tem orientado a decisão de participar das missões de manutenção da paz constituídas pelas Nações Unidas, bem como a de não integrar outros tipos de missão, como, por exemplo, as de imposição de paz. Com essa ressalva, a qualificação constante do paradigma serviria para o perfil predominante do militar brasileiro. Ela o habilitará, outrossim, para contribuir de modo decisivo no processo de integração regional. Entretanto, dadas as exigências com que a sociedade brasileira se defronta atualmente, sobretudo em termos de recuperação dos valores cívicos e do restabelecimento de política sustentada de real desenvolvimento econômico e social do país, deve-se acrescentar a esse perfil ideal aptidões próprias que habilitem nossos militares a contribuir de forma decisiva para a implementação do Serviço Cívico Integral (SCI), proposto acima, na área temática 3 – Estrutura da força. 5. POSTURA DA OPINIÃO PÚBLICA O paradigma aplicado aos países tecnificados em relação a essa área temática corresponde, de forma geral, à situação no Brasil apenas no período Moderno. A mesma postura ainda se manteve no início do período Moderno Final, mas logo a evolução dos fatos políticos levou a grandes mudanças nessa postura. No período pós-moderno, impõe-se, com base nas origens históricas de nossos militares, uma análise prospectiva da realidade brasileira, que leve em conta as distorções na atual percepção civil das forças armadas, bem como a deterioração da ética na sociedade brasileira e o debilitamento acentuado dos seus valores cívicos. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 33 A oficialidade brasileira tradicionalmente proveio da classe média e jamais se constituiu numa casta ou num instrumento de grupos oligárquicos. Aliás, por diferentes motivos, os oficiais, sobretudo do Exército, sempre assumiram posturas essencialmente liberais e progressistas no contexto social. Recordemse, por exemplo: a recusa em perseguir e capturar escravos foragidos; a exemplar política em relação aos indígenas adotada pelo Marechal Rondon20 ; o apoio a comunidades isoladas no interior do país, etc. Paralelamente, a oficialidade se preocupava com o quadro econômico nacional, tendo se mostrado muito atuante na defesa do desenvolvimento industrial autenticamente brasileiro. Em todas essas posturas, as forças armadas estavam plenamente identificadas com as correntes predominantes da opinião pública brasileira. Aliás, nos últimos 100 anos, uma apreciação desapaixonada dos episódios em houve interferência militar no âmbito político institucional, qualquer que fosse sua coloração ideológica, revela que se tratou de reflexo de anseios ou temores da classe média, da qual, como já se disse, provinha a grande maioria de sua oficialidade. Por conseguinte, é lícito concluir que o reencontro harmônico da opinião pública e do segmento militar da sociedade é muito mais fácil e natural do que supõem alguns analistas. Na medida em que o país volte a Ter objetivos nacionais claramente definidos, a sociedade compartilhará como um todo dos esforços por atingi-los, eliminando assim os malentendidos que os grupos minoritários ainda procuram estimular entre os segmentos civil e militar da sociedade. Um exemplo concreto daquela tendência positiva já começa a aflorar em torno da problemática da Amazônia brasileira. As diretrizes que venham a ser traçadas para a pós-modernização de nossas forças armadas em relação a outras áreas temáticas, especialmente a 2 (Estrutura da força) e a 4 (Perfil militar predominante), também incidirão sobre a futura postura da opinião pública. Por fim, é evidente que haverá forte interação entre a postura da opinião pública para com as forças armadas e o que venha a ocorrer em relação à área temática 6 – Relacionamento com a mídia, de que nos ocuparemos a seguir. 34 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 6. RELACIONAMENTO COM A MÍDIA Como seria de esperar, o paradigma acima se aplica ao Brasil com as mesmas diferenças apontadas na área temática precedente (Postura da opinião pública). Entretanto, nos meios de comunicação de massa (mídia) observa-se, nos últimos dois terços do período Moderno Final e no que vai do período Pós-moderno, a predominância de atitudes antagônicas para com as forças armadas. A situação atual da mídia brasileira, refletindo o que vem ocorrendo pelo mundo afora, indica um viés empresarial mais acentuado do que suas anteriores orientações político-ideológicas. Essa circunstância cria dificuldades especiais para uma análise prospectiva do relacionamento das forças armadas com a mídia. Contudo, conseguindo-se restabelecer um quadro de objetivos nacionais, por cuja consecução se desperte efetivo interesse da sociedade brasileira (como sugerido na área temática precedente), a preocupação com o aspecto lucrativo dos meios de comunicação de massa os levará a mudança de atitude em relação aos militares. Outro recurso para melhorar o grau de entendimento mútuo entre as forças armadas e mídia será retomar, de forma continuada, a prática de incorporar ao curso anual da ESG alguns profissionais que estejam trabalhando nos meios de comunicação de massa. A partir de 2002 esse curso deverá atribuir grande ênfase à visão pós-moderna de defesa nacional, propiciando assim instrumento adicional para reconduzir a um nível produtivo o relacionamento das forças armadas com a mídia. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 35 7. QUADROS CIVIS (PROPORÇÃO EM RELAÇÃO AOS MILITARES) Esta área temática pode ser considerada uma das mais críticas para a evolução das forças armadas no contexto do Pós-Modernismo Militar. Evidentemente, não se trata aqui dos cargos de alto nível ministerial, cujo preenchimento se dá dentro da conjuntura político-partidária do país. Tampouco correspondente à terceirização de tarefas até agora executadas diretamente pelas instituições militares. Contemplam-se aqui unicamente os civis que integrarão as forças armadas, em termos de carreira, sem contudo serem militares. No caso do Brasil, a criação do MD deve trazer, como uma de suas conseqüências, o aumento da proporção de civis para militares nas forças armadas. Entretanto, é provável que essa circunstância fique quase que restringida à estrutura do Ministério em Brasília. ÁREAS TEMÁTICAS ADICIONAIS A meu ver caberia ampliar o quadro de paradigmas original a fim de contemplar características especiais das forças armadas brasileiras e da nossa sociedade como um todo. Com sentido exemplificativo, acrescento aqui apenas duas: assistência cívico-social e interação com o setor privado. 36 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 8. ASSISTÊNCIA CÍVICO SOCIAL As forças armadas brasileiras, refletindo a preocupação com questões sociais, num contexto despido de demagogia e baseado numa percepção de dever nacional, projetaram e desenvolveram vários programas de assistência dirigidos a populações mais isoladas e mais carentes. Não cabe aqui fazer o histórico de todos eles, bastando lembrar a atuação das unidades do Exército em pontos remotos do país (Batalhões de Engenharia de Construção e Pelotões de Fronteira), o papel vital desempenhado pela FAB através do Correio Aéreo Nacional (CAN) e o apoio prestado pela Marinha aos povoados ribeirinhos na Amazônia. Além disso, o serviço militar, paralelamente à sua função precípua de formação de reservas das forças armadas, sempre teve uma orientação visando a proporcionar aos recrutas ensino complementar, inclusive profissionalizante, melhorando assim suas condições de acesso ao mercado de trabalho. Essa área temática serviria de base ao estudo conjunto com a que se refere à estrutura da força (número 2, no quadro), para a organização do que denominei de Serviço Cívico Integral. 9. INTERAÇÃO COM O SETOR PRIVADO Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 37 Em diferentes momentos, as forças armadas se interessaram pela produção nacional de equipamento de uso militar, desde fardamentos até material bélico sofisticado. Foram tentado diferentes esquemas, sem que se formasse uma diretriz única sobre as características que teria a produção de bens requeridos pelo segmento militar. O setor empresarial, por seu lado, também encarou de formas diversas sua participação nesse tipo de produção. Consequentemente, mesmo quando se conseguiram resultados altamente positivos e promissores no sentido de independência na produção local de determinados equipamentos, faltaram vontade política e concepção que assegurasse a viabilidade econômica de longo prazo para tais empreendimentos. Possivelmente uma das causas de insucesso está numa incompatibilidade conceitual entre militares e empresários. A formação militar não inclui o lucro pecuniário nas motivações condignas para decisões e ações; ao contrário, é característica da formação castrense a noção de que tudo é feito em função de dever patriótico, abrangendo todo e qualquer sacrifício, inclusive o da própria vida. Na visão empresarial, contudo, a finalidade precípua de qualquer empreendimento é a obtenção de lucros, num contexto perfeitamente legítimo de atividade profissional. Ora, ambas essas percepções são corretas e respeitáveis, não devendo, por isso mesmo, ser modificadas. A solução está em encontrar fórmulas de integração dos interesses empresariais legítimos com as necessidades militares da defesa nacional. Isso será possível no caminho da pós-modernização, inclusive com a nova visão da mobilização nacional. Observe-se, aliás, que terceirização – um dos vetores cruciais do Pós-Modernismo Militar – precisa ser concebida também como forma de ampliar as exportações, a exemplo do que já é feito há muito tempo pelos principais países produtores de equipamentos de uso militar. Será preciso fazer o equacionamento integral da produção desse equipamento de modo a atender às necessidades militares de defesa, muito especialmente no âmbito da dissuasão estratégica. É indispensável que se assegure a continuidade dos programas nos seus prazos naturais de utilidade e contempladas as etapas sucessivas de atualização, tudo isso num processo simbiótico com o setor privado (de produção e de serviço). Desse modo, haverá uma contribuição significativa para o aumento da riqueza do país. Esse constitui, a meu ver, componente fundamental da Política de Defesa Nacional que se venha a estruturar. 38 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 SUGESTÕES PARA ESTUDO Como foi assinalado, o modelo adotado como exemplo de paradigma de aferição do grau de pós-modernização das forças armadas foi elaborado para países tecnificados. Precisa, portanto, ser adaptado às circunstâncias dos países semi-desenvolvidos, como o Brasil, inclusive com o acréscimo de algumas áreas temáticas. Essa ampliação deverá levar em conta, entre outros, os aspectos indicados a seguir. 1. CONJUNTURA ECONÔMICO-SOCIAL E DE SEGURANÇA INTERNACIONAL Durante o período Moderno Final (Guerra Fria / 1945-90), os países centrais e seus aliados tinham alto grau de preocupação com segurança internacional, mantendo em baixa prioridade as questões no âmbito econômico-social. Nos países periféricos a proporção era inversa: por suas limitações para desempenhar papel ativo no relacionamento mundial, preocupavam-se relativamente pouco com a segurança internacional, mas eram obrigados a lidar (bem ou mal) com sérios problemas econômicossociais. A atuação dos países centrais, inclusive a interação antagônica dos dois grandes blocos de poder, teve três conseqüências que levam à transição para o período Pós-Moderno: a Terceira Revolução Industrial, o fim da Guerra Fria e a rápida evolução do processo denominado de Globalização. Os países tecnificados passam, a partir de 1990, a Ter pouca preocupação com a segurança internacional e vêem aumentar muito as pressões no campo econômico-social. Para os países semi-desenvolvidos, porém, as novas modalidades de ameaças aumentam exponencialmente sua preocupação com a segurança internacional e, simultaneamente, também aumentam as exigências econômico-sociais de suas populações. No caso específico do Brasil, a problemática da Amazônia precisa ser tratada com maior grau de urgência e de amplitude. O exame prospectivo de cada área temática do paradigma sugerido e das que adicionei a ele precisa levar em conta essa ênfase especial. 2. A RAM E OS PAÍSES SEMI-DESENVOLVIDOS A Revolução em Assuntos Militares, no contexto das profundas alterações Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 39 no comportamento internacional após o fim da Guerra Fria, tem implicações especiais para os países semi-desenvolvidos. Já foi assinalado o perigo que para eles representa a conjugação feita pelos países tecnificados de certas conceituações doutrinárias suas com as chamadas “causas nobres” e com as “novidades” jurídicas e diplomáticas. De modo sucinto, pode-se afirmar que aumentaram as ameaças com que se defrontam os semi-desenvolvidos, tanto em intensidade como em diversidade. Por isso, necessitam definir com maior exatidão possível tais ameaças e equacionar as providências de Defesa Nacional para impedir sua concretização. Essas medidas cobrirão muitas áreas. No caso de algumas, havendo vontade política firme, seu equacionamento não será difícil. Outras, porém, demandarão ademais grandes aportes financeiros e científico-tecnológicos, obrigando esses países a desenvolver, simultaneamente, estratégias de baixo e de alto teor tecnológico (BTT e ATT). No caso dos países semi-desenvolvidos, é fundamental que se inicie urgentemente um eficaz processo de “pós-modernização” de suas forças armadas. Isso é necessário, entre outras razões, para contrarrestar a tentativa dos países tecnificados de induzir (ou impor) “novo papel” para as forças armadas dos mesmos, redundando, na prática, em transformar o exército em gendarmaria, a marinha em guarda-costa e a aeronáutica em polícia aérea. Segundo essa diretriz, a “civilização” das forças armadas facilitaria essa transformação ad diminutio e, ademais, retiraria da concepção de defesa nacional a ênfase castrense e eliminaria a possibilidade de emprego das forças armadas como componente de política externa, tanto do ponto de vista ativo como sob a forma de dissuasão. Tendo presentes algumas das “novidades” jurídicas e diplomáticas, é importante que se aproveite o processo de pós-modernização das forças armadas para, no âmbito mais amplo da Defesa Nacional, revitalizar alguns conceitos básicos, como os de Segurança, Desenvolvimento e Soberania. Dessa forma será possível afiançar que a Defesa Nacional deles se ocupe necessariamente, numa concepção sistêmica. É também essencial que esse processo implante (ou restabeleça) indústria própria de material de emprego militar, com empenho continuado na pesquisa e desenvolvimento (P&D) e buscando, na medida do possível, sua viabilidade econômica. Essa orientação, aliás, indica por si mesma uma função adicional 40 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 da Defesa Nacional: coadjuvar a criação de riqueza e a cooperação integracionista. Para ela deverão atuar coordenadamente as forças armadas, o serviço exterior e o setor empresarial. A evolução da RAM nos países tecnificados precisa ser acompanhada de modo diuturno durante o processo de pós-modernização nos países semi-desenvolvidos, que deverão também atualizar continuadamente as vulnerabilidade que padecem em conseqüência da combinação dos efeitos da Terceira Revolução Industrial, do fim da Guerra Fria e da dinâmica da Globalização. 3. COOPERAÇÃO INTEGRACIONISTA Os programas acima indicados serão mais exeqüíveis, inclusive em termos de tempo, se os países semi-desenvolvidos adotarem política continuada de cooperação integracionista. Ela será possível através de processo de somatório do Poder Nacional dos países participantes, numa concepção de que me ocupei em outro texto e à qual denominei potência ascendente21 . Na realidade, como esses países enfrentam problemas semelhantes para efetuarem a atualização de suas forças armadas, os programas que adotarem em conjunto para adaptar a RAM às contingências próprias de sua Expressão Militar contribuirão significativamente para a integração em todas as outras Expressões do Poder Nacional. Cumpre assinalar que, no caso dos países sul-americanos, por exemplo, a retórica integracionista não se tem traduzido em resultados concretos na dimensão necessária. Certas iniciativas regionais, aliás, embora não devam ser abandonadas, introduzem elementos de perturbação que precisam ser neutralizados. Lembrem-se, a título exemplificativo, as Conferências de Ministros da Defesa das Américas (CMDA). Por iniciativa dos Estado Unidos, a primeira realizou-se em Williamsburgh, seguindo-se até hoje outras três (Bariloche, Cartagena, Manaus). Independentemente de análise objetiva que se faça de resultados concretos e dos rumos previsíveis desse foro, no contexto da integração sul-americana no âmbito da defesa causa certa perplexidade o fato de que, embora o Brasil mantenha Grupos de Trabalho Bilaterais de Defesa (GTBD) com EUA, Argentina e Chile, paralelamente à IV CMDA, foram assinados acordos bilaterais entre EUA e Argentina e Chile, contudo SEM qualquer comunicação formal ao Brasil. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 41 4. A DIPLOMACIA NO PMM No Brasil, historicamente, sempre existiu uma clara noção da importância crucial de íntima cooperação das forças armadas e do serviço diplomático. Isso em nada compromete o princípio tradicional do país de buscar sempre a solução pacífica para as controvérsias internacionais. Ao contrário, assegura credibilidade àquela orientação invariável da conduta brasileira no campo externo. Não obstante, as características do Pós-Modernismo Militar, especialmente na forma pela qual os países tecnificados o entendem e praticam, requerem um entrosamento ainda mais amplo e mais profundo entre militares e diplomatas. Como vários acontecimentos recentes demonstraram, atualmente não se pode cogitar de operações combinadas sem a participação do serviço diplomático em todas as suas etapas, desde o planejamento, passando pela implementação e se mantendo após o desenlace das ações empreendidas. Nos países semi-desenvolvidos, essa evolução pode mesmo ser concebida como um “pós-modernismo diplomático”, no qual terão alta prioridade as diretrizes integracionistas, que serão parte integrante do Conceito Diretor de Política Externa. Assim sendo, deve-se estabelecer a participação plena de diplomatas em diversas áreas de atuação dos militares, como, por exemplo: a) nos cursos de especialização para serviço no Estado-Maior de Defesa; b) no planejamento estratégico militar, inclusive no equacionamento da rede de Adidos de Defesa; c) em todas as fases das operações combinadas ou conjuntas, inclusive operações de paz (planejamento, execução e acompanhamento pós-conclusão); d) na preparação e na realização de reuniões multilaterais de Defesa, e e) nos projetos de produção de material de emprego militar (restrições internacionais e comércio exterior). 5. A MOBILIZAÇÃO NACIONAL PÓS-MODERNA Tal como aconteceu no contexto da II Guerra Mundial, neste começo do Século XXI o mecanismo de Mobilização Nacional precisa passar por imensas alterações. Elas serão ditadas por várias características do 42 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Pós-Modernismo Militar, dentre eles: “civilianização” das forças armadas; efetivos relativamente menores mas profissionalizados (FTV); aferição de mercados e terceirização maximizada; concepção sistêmica das reservas, compostas por indivíduos e segmentos industriais e de serviços (“pacotes”). O uso intensivo dos recursos computadorizados terá importância crucial para assegurar, conforme as necessidades de cada quadro conjuntural que surja, o funcionamento inconsútil do sistema todo ou de partes dele. Aliás, o acionamento de apenas partes do sistema deverá ser a forma mais comum da Mobilização Nacional do Período Pós-Moderno. As reservas, que englobarão os recursos humanos, as entidades de todos os tipos e os equipamentos e materiais, precisarão ser mantidas em processo continuado de atualização, para que as redes computadorizadas serão indispensáveis. Mesmo as reservas especificamente destinadas a emprego militar deverão contar com programas de atualização à distância, com o adestramento presencial reduzido e um tempo mínimo, que variará segundo as características de especialização ou finalidade. Os programas de ensino à distância que começam a ser implantados no país, inclusive no âmbito especificamente militar, podem servir de plataforma para a implantação dos programas próprios do sistema de mobilização Nacional pós-moderna. No caso do Brasil, por suas peculiaridades sociais e políticas, seria preciso distinguir duas áreas para a organização e o funcionamento da Mobilização Nacional pós-moderna. Na primeira tratar-se-ia da doutrina, da pesquisa e da formação de quadros, que seriam atribuição de uma entidade federal, apolítica (isenta das variações políticopartidárias), e que poderia Ter a Escola Superior de Guerra como ponto de partida e modelo (atual Sistema Nacional de Mobilização, devidamente adaptado), que seriam da responsabilidade de órgão federal supra-ministerial, pelas mesmas razões apolítico, e que constituiria um Centro Nacional de Mobilização. CONCLUSÃO O quadro abaixo sintetiza as adaptações necessárias à pós-modernização das Forças Armadas do Brasil e, acredito, se aplica de forma geral a outros países semi-desenvolvidos. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 43 FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS A complexidade da adaptação da RAM às condições próprias dos países semi-desenvolvidos não deve desestimular seu empreendimento. Afinal, como advertiu Sêneca, “não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; porque não ousamos é que as coisas se tornam difíceis”22 . A urgência em implementar a pós-modernização militar (e diplomática) requererá a aceleração da integração sul-americana. Na realidade, ambos os processos deverão se complementar e assim facilitar a soma do Poder Nacional de todos os participantes. 44 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 O desempenho do papel ativo na globalização, ora em pleno andamento, exige elevado nível de Poder nacional, o que, no caso dos países semi-desenvolvidos, só poderá ser obtido através desses dois processos, conduzidos de forma simbiótica. Uma das máximas elementares da Arte da Guerra afirma que toda Nação tem um exército em seu território – o seu ou o de outra. Dela, para finalizar, extraio o pensamento que me parece sublinhar a necessidade da tarefa a executar dentro do processo de pós-modernização militar: A Nação que não traçar seu próprio rumo o terá traçado por outra. *Embaixador e Conselheiro da Escola Superior de Guerra NOTAS 1 O presente texto foi elaborado a partir do conteúdo da palestra que o autor proferiu na Escola de Estado-Maior do Exército (ECEME), abrindo, em 20/NOV/2000, o I Seminário sobre Defesa Nacional, organizado no âmbito do Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx), do qual participaram civis e militares. 2 Em algumas situações, esse revisionismo foi condicionado por posturas de cunho ideológico, que refletiam preconceitos arraigados em função de embates no campo da política interna. Assim, por exemplo, no Brasil a noção de Segurança Nacional e sua vinculação simbiótica com a de Desenvolvimento Nacional passaram a ser condenadas por alguns setores da sociedade. O autor considera indispensáveis a preservação correta de ambas: Segurança Nacional consiste na capacidade efetiva que tem o Estado-Nação de implementar, sem entraves inamovíveis, suas políticas e estratégias. Desenvolvimento Nacional consiste na transformação do potencial nacional em Poder Nacional, empreendida de modo equilibrado e continuado, visando à sua plenitude. 3 Na opinião do autor, não se alteram as características essenciais da Soberania Nacional, a saber: una e indivisível, ilimitada por definição e com seu exercício passível de limitações, voluntariamente adotadas ou impostas por outrem. Assim sendo, a Soberania é o atributo essencial do Estado-Nação de decidir, com liberdade plena, sobre a busca e a manutenção dos seus objetivos. Portanto, a preservação da incolumidade da Soberania constitui em Objetivo Nacional Permanente (ONP). Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 45 4 Dadas as características geopolíticas e geoestratégicas do mundo pós-1900 e, em especial, para o presente estudo, prefiro a qualificação de país semidesenvolvido em lugar da de país em desenvolvimento, já que esta, corretamente ou não, tem uma conotação predominantemente econômica. Pelo mesmo motivo, adoto a expressão de país tecnificado em lugar da de país desenvolvido ou industrializado. 5 Em OUT/1913, a Biblioteca do Exército iniciou a publicação de uma revista sobre assuntos militares intitulada “A Defesa Nacional”, que, com periodicidade variável, circula até hoje. 6 Contra-Almirante, Ministro de Segunda Classe, General-de-Brigada e Brigadeirodo-Ar. 7 Para efeitos de estudo, a ESG divide o Poder Nacional em cinco Expressões: Política, Econômica, Militar, Psicossocial e de Ciência e Tecnologia. A meu ver, entretanto, é indispensável, sobretudo para a análise e o planejamento de temas vinculados a Defesa Nacional, individualizar um Expressão Diplomática. 8 O exemplo típico dessa impossibilidade é a postura isolacionista dos Estados Unidos no período que se seguiu à guerra de 1914-18, só abandonada em 1941, após o ataque japonês a Pearl Harbor. 9 Henry John Temple, 3rd Viscount, Baron Temple. 10 “(...) what is called a policy? The only answer is that we mean to do what may seem to be best, upon each occasion as it arises, making the interests os Our Country one’s guiding principle.” 11 “We have no eternal allies and no permanent enemies”. 12 “Our interests are eternal, and those interests it is our duty to follow”. 13 Artigo assinado, revista TIME, NOV/99. 14 Traduzido do livro “The Postmodern Military”, ed. Charles C. Moskos, John Allen Williams e David R. Segal, Oxford University Press, NY, 2000. 15 Observe que problema semelhante, aliás com complicações bem maiores, ocorre no Serviço Diplomático Brasileiro. O MRE vem procurando estruturar fórmulas institucionais, inclusive com a celebração de acordos bilaterais para possibilitar o exercício de atividade remunerada pelo cônjuge no país em que o diplomata estiver servindo. 16 O menosprezo pelo Direito Internacional pode ser exemplificado pela afirmação (publicada em NOV/1999 na revista TIME) da Secretária de Estado do EUA, Madeleine Albright, mencionada páginas atrás: “É claro que nem o Direito (Internacional) nem a opinião pública mundial podem forçar nações a agir contra seus próprios interesses principais. (...) Obviamente, os acordos não eliminam a necessidade de forças armadas poderosas, capazes de servir como dissuasão (...)”. 46 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 17 Essa orientação ficou evidenciada, por exemplo, na recusa do Governo brasileiro de enviar tropas para as guerras na Coréia e no Vietnã. 18 Talvez coubesse, nesse contexto, contemplar-se no âmbito do MRE a reformulação da Divisão de Fronteiras, elevando-a ao nível de Departamento e acrescentando à sua histórica responsabilidade pela demarcação da linha de fronteira atribuições decorrentes dessa nova situação de defesa das fronteiras contra violações de vários tipos. Com esse novo formato, criar-se-ia um eficiente órgão de coordenação de atividades hoje dispersas nas atribuições de muitos ministérios e órgãos federais, estaduais e municipais. 19 A FAB foi criada em 1941, com a fusão da Aviação do Exército e da Aviação Naval. 20 “Morrer, se preciso for; matar, nunca!”. 21 Artigo publicado na Revista da Escola Superior de Guerra, Ano XVI – nº 38 – 1999 / Edição Especial do Cinqüentenário da ESG – pgs. 89 a 106. (Versão (ampliada) em inglês foi publicada na “Contact”, nº 119, de AGO/2000, revista oficial do Royal Institut Supérieur de Défense (Bélgica). 22 Lucius Anneus Seneca, estadista romano do século I AD. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 47 Carlos de Meira Mattos* CONCEITOS DOUTRINÁRIOS O primeiro livro de Estratégia que se tem notícia é de autoria do general chinês Sun Tzu, escrito por volta do ano 500 antes de Cristo, e que só foi divulgado no Ocidente após a sua tradução pelo padre francês Amiot no ano de 1724 ou 1727. No Ocidente a obra sobre Estratégia de maior divulgação e estudo foi o livro do general prussiano Clausewitz “Da Guerra”, editado por sua esposa após a sua morte em 1831. O livro de Clausewitz, desde de sua divulgação até hoje, é utilizado pelos estudiosos como verdadeiro manual de Estratégia Militar. Seria ocioso estarmos repetindo aqui que os princípios da Estratégia Militar, principalmente após a 1ª Grande Guerra (1914-1918), foram apropriados pela sociedade civil e aplicados em suas múltiplas atividades públicas e empresariais. Por isto se justifica estuada-los no meios civis, tanto quanto no âmbito castrense. Os princípios e a praxis da Estratégia nasceram da necessidade dos primeiros generais da Antigüidade: antes de travarem armas com o inimigo em obrigados, intuitivamente, a fazer uma avaliação da força presumível do inimigo, do objetivo a conquistar e de sua própria força. Daí, dessa necessidade intuitiva que tiveram por exemplo, um Hamurabi, general e rei da Babilônia, um Alexandre general greco-macedônio grande conquistador de territórios e de reinados, um Ciro imperador e general da Pérsia, surgiu o que depois foi racionalizado, metodizado e chamado de planejamento estratégico. Feita a avaliação, tratou-se para estes generais da Antigüidade, de decidir como conduzir a batalha: se fossem mais fortes sua opção natural seria pelo emprego da massa sobre o centro das forças adversárias, se fossem mais fracos procurariam uma tática de engodo (uma ação enganosa, fugidia, se ganhar tempo, de investidas de surpresa nos flancos e nos pontos vulneráveis do adversário). Encontramos aí as origens remotas das hoje estudadas Formas de Ação Estratégica. 48 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Estratégia de Ação Direta Estratégia de Ação Indireta A Manobra Estratégica de Ação Direta preconizada pelo prussiano Clausewitz defende como melhor forma de concentrar a maioria de suas forças numa ação de choque fulminante contra o centro das forças inimigas, a fim de destrui-las. A Manobra de Ação Indireta, ensinada por Sun Tzu, que teve como seus seguidores contemporâneos o chinês Mao Tzé Tung e o inglês Lidell Hart, indica que, segundo o original Sun Tzu, “na paz como na guerra, a melhor Estratégia é conquistar o país ou as forças inimigas intactas, e não destrui-las; a batalha deve ser vencida muito mais pelo engodo do que pelo choque”. Estas duas visões de Manobra Estratégica dominaram soberanas a inteligência dos estudiosos da matéria até o fim da 2ª Guerra Mundial, quando surgiu a arma atômica. O perigo apocalíptico que representou uma guerra nuclear inspirou o general francês, André Beauffre, a formular uma Estratégia de Contenção. A esta deu o nome de Estratégia de Dissuasão, (“Deterrence” em inglês), que pode ser assim conceituada: Evitar o confronto bélico nuclear, apresentando um grau de ameaça de represália nuclear que o possível agressor não esteja disposto de correr o risco de enfrentar. Em outras palavras, oferecer, sem apelo, a certeza da destruição recíproca. A Estratégia de Dissuasão Nuclear adotada por Washington e por Moscou evitou o confronto bélico mas provocou a escalada de armas e arsenais nucleares. Hoje a Estratégia de Dissuasão passou a ser adotada pelas nações mais fracas, ameaçadas pelo poder dos “grandes” que pretendem através dos organismos internacionais que dominam, impor sua vontade, à revelia da soberania nacional. Defendem-se oferecendo um grau de ameaça de represália militar que o possível agressor não possa ou não esteja disposto a pagar. Assim a Estratégia da Dissuasão figura hoje como a 3ª forma de Ação Estratégica Segundo os modernos pensadores políticos, na prática, três valores são inseparáveis – Política, Poder e Estratégia. Constituem um triângulo indissolúvel de causa e efeitos recíprocos. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 49 POLÍTICA PODER ESTRATÉGIA Realmente não se pode Ter uma Política (conquistar um objetivo), sem se Ter Poder para investir (poder material, psicológico ou ambos) e sem se Ter uma Estratégia que orienta a aplicação inteligente do Poder para a conquista do objetivo da Política. “A Estratégia para o Brasil” de que vamos tratar em seguida, será fiel a este conceito de inter-relação triangular. Analisaremos a nossa Estratégia, fiéis à nossa Política e ao nosso Poder. II – O BRASIL E SUA ESTRATÉGIA Vimos que a estratégia é uma decorrência da Política. Qual, então, o Objetivo Fundamental da Política Brasileira? Na nossa opinião: VITALIZAR O POTENCIAL HUMANO E GEOGRÁFICO DO PAÍS A FIM DE CONTRUIR UMA DAS NAÇÕES MAIS PRÓSPERAS E RESPEITADAS DO MUNDO. Este objetivo, nós extraímos do pensamento geopolítico, histórico e moderno, de nossos mais respeitados historiadores e estadistas. Já no albores da Descoberta, em 1578, o historiador português Grabriel Soares de Sousa, de passagem pelo Brasil, deslumbrado pelo impacto da grandeza e riqueza geográfica, assim marcou a sua impressão no livro “In Tratado Descriptivo do Brasil – Proemio”: “Está capaz para se edificar nelle hum grande Império, o qual com pouca despeza destes reynos se fará tão soberano que será hum dos Estados do Mundo.” Esta linha de pensamento (vislumbrada pelo historiador português do século XVI), de que o Brasil possui as condições geográficas e humanas para vir a se tornar uma das grandes nações do planeta, vem sendo uma constante na mente e na avaliação dos melhores pensadores, no perpassar de nossa história: Pombal, Alexandre Gusmão, José Bonifácio, Rio Branco, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Cassiano Ricardo. Entre os nossos geopolíticos: Mario 50 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Travassos, Backheuser, Golbery e Terezinha de Castro, todos reconhecem esta possibilidade de grandeza, ao alcance do Estado Brasileiro. Não se trata de um sonho de patriotas, mas uma avaliação baseada em valores geográficos e demográficos analisados numa prospectiva científica. Renomados pensadores políticos estrangeiros também já se manifestaram sobre a nossa possibilidade de grandeza política, entre os quais destacamos – Stefan Zweig, Ray Cline, Henry Kissinger. Não se trata, portanto, de um sonho utópico, mas, repetimos, de avaliação baseada na prospecção científica de valores mensuráveis. Qual a Estratégia, para alcançarmos o Objetivo Político Fundamental acima exposto? Qual a grande Estratégia (como diria Lidell Hart) para chegarmos a ser “hum dos Estados do Mundo”? Nossa posição geográfica no planeta já traçou as linhas mestras desta Estratégia. Uma larga fachada oceânica no Atlântico e uma extensa fronteira terrestre com dez Estados vizinhos. Nosso espaço geográfico cobre, praticamente, a metade da América do Sul. Somos o 4º país do mundo em extensão territorial contínua. O 5º em população. Nossa Estratégia, se quisermos ser politicamente grandes, indica-nos a necessidade de explorar e de defender todas as perspectivas favoráveis que nos oferecem a testada marítima e de explorar e defender as potencialidades da imensa massa continental. Para alcançarmos, em termos expressivos, estas duas metas estratégicas básicas – a exploração intensiva de nosso potencial marítimo e de nosso potencial continental – é imprescindível termos como prioridade Política, um eficiente Plano de Desenvolvimento Econômico e Social. Com 2/3 do território praticamente inexplorados, abrigando riquezas potenciais incalculáveis, somente através de um Plano de Desenvolvimento Econômico e Social dinâmico e eficiente seremos capazes de transformar essas potencialidades em Poder. Um exemplo para nós são os Estados Unidos. Com um território continental de superfície equivalente à nossa, através do desenvolvimento de todo o seu espaço geográfico, dele hauriu riquezas para se tornar a maior potência política do mundo atual Somente o Desenvolvimento Econômico e Social, incorporando riquezas do solo e formando capital humano capaz de operá-la, nos levará ao encontro Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 51 de nosso Objetivo Político Fundamental. Os estadistas e geopolíticos do passado, visando orientar a nossa Política para es Objetivo, traçaram como Prioridades Estratégicas: - Integração do Território; - Interiorização dos transportes e das comunicações; - Povoamento do interior; - Ampliação e fortalecimento de uma posição marítima no Atlântico Sul; - Suporte à criação de ma indústria aeronáutica nacional e à expansão do transporte aéreo; - Atendimento das necessidades de Educação, Saúde, Saneamento e Habitação; - Relações Internacionais abertas, com prioridade para o Ocidente cristão democrático, em especial para o panamericanismo e sem restrições políticas na esfera comercial; - Defesa das fronteiras marítima, terrestre e aérea e garantia da segurança externa, interna e da ordem pública. Estas Prioridades Estratégicas são metas a longo prazo, a serem realizadas por etapas. Considero-as, ainda, inteiramente válidas na perspectiva de hoje, porém, a conjuntura política e tecnológica, internacional e interna, nos aconselha a uma revisão, não nas grandes metas estratégicas acima apontadas, mas nos projetos, planos e prioridades delas decorrentes. Nossos governos, desde a República, produziram numerosa legislação e abundantes projetos, planos e programas de ação, gerais e setoriais, visando alcançar parte destas metas estratégicas, mas sua realização, a não ser com raríssimas exceções, tem ficado inacabadas ou foram abandonadas. Porque? Vemos duas razões capitais, - descontinuidade de vontade política e fraqueza de poder econômico. Tivemos grandes projetos e programas de Desenvolvimento tais como, entre outros, o Plano SALTE, o Plano SUDENE, o Projeto de Integração Nacional (PIN), o Plano de Viação Nacional de 1973, o Plano Poloamazônico, todos inacabados, com muitas obras abandonadas. Somente a continuidade de um robusto Plano de Desenvolvimento Econômico e Social, executado com vontade política inquebrantável, nos 52 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 proporcionará meios, anímicos e materiais, para prosseguir, com êxito, na busca das grandes metas estratégicas visando à conquista para o Brasil de um lugar entre as grandes nações no mundo. Um exemplo bastante convincente do que a nação pode esperar de um Plano de Desenvolvimento Econômico e Social realizado com vontade política firme e continuidade administrativa durante 20 anos, nos é oferecido pelo saudoso economista Simonsen, em artigo publicado na revista “Exame” (abril de 1997). Revela Simonsen que em 20 anos de esforço continuado do Plano de Desenvolvimento, de 1964 a 1984, a economia brasileira deu um salto extraordinário, apresentou os seguinte índices de crescimento: passamos de 48ª para 8ª economia do mundo; passamos de uma exportação de 1,5 bilhões para 27 bilhões de dólares; conseguimos o crescimento médio de 6,6% ao ano. Hoje, a promessa mais otimista é da elevação da taxa de crescimento para 3% ao ano. Perdemos o ritmo a partir de 1985, faltou continuidade administrativa, faltou vontade política, faltou dinheiro. Mantidas as grandes Metas Estratégicas o ajustamento dos projetos, planos, programas e prioridades mais prementes, estão contidas, em parte, no programa “Avança Brasil” de 1998, contendo os projetos a serem realizados em 4 anos. Este programa, na parte de infraestrutura, selecionou 12 Eixos de Integração e Desenvolvimento. O critério na escolha dos Eixos foi a integração regional e a interação externa. Os eixos prioritários escolhidos foram: - Eixo saída Norte para o Caribe – rodovia 174; - Eixo saída para o Atlântico Norte – hidrovia Madeira-Amazonas; - Eixo Araguaia-Tocantins, ferrovias Norte-Sul e Carajás; - Eixo Costeiro do Nordeste; - Eixo Rio São Francisco; - Eixo Transnordestino; - Eixo Oeste; - Eixo Centro Oeste - Eixo São Paulo; - Eixo Costeiro Sul; Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 53 - Eixo Franja Fronteira; - Eixo Hidrovia Paraguai-Paraná. Os Eixos prioritários foram escolhidos segundo os critérios de integração regional e de interação externa, marítima e terrestre. Realizados estas proposições do Programa Avança Brasil, não há dúvida, teremos dados um impulso no rumo da realização de nossas grandes Metas Estratégicas, mas muito ainda restará por fazer para alcançarmos o Objetivo Político Fundamental que almejamos chegar até o fim do primeiro quarto deste século. Vamos destacar, tendo em vista o momento conjuntural que estamos vivendo, alguns projetos merecedores de atenção especial. Uma estratégia que, nos parece, acha-se esboçada nos planos e programas apresentados mas que desejamos explicitá-la. Trata-se da Integração Sul Americana. Julgamos que a nossa Política e a Diplomacia devem se empenhar a fundo, neste quarto de século, na busca da integração política e econômica da América do Sul. Parte do caminho já foi percorrido através do Pacto Pan-Amazônico de 1978 e do Mercosul, vemos como etapas seguintes, a vitalização econômica do Pacto Pan-Amazônico, transformando-o um Merconorte e, em seguida, a sua ampliação, abrangendo todos os países deste subcontinente. Este esforço diplomático hercúleo integraria as duas grandes vertentes da América do Sul, do Atlântico e do Pacífico e responderia ao grande apelo integracionista que marca a tendência internacional moderna. Outro caso conjuntural a exigir um especial cuidado estratégico é a “questão amazônica”. Precisamos desarmar a intensa campanha de propaganda internacional sobre os perigos ambientais resultantes da devastação da hiléia amazônica e de nossa incapacidade para preservála. Esta propaganda alimenta o perverso conceito internacionalista de “área de interesse da humanidade”, o que ameaça os nossos direitos soberanos A defesa da nossa Amazônia exige uma adequada estratégia que atenda a sua preservação e uma convincente estratégia de ocupação e de dissuasão militar, capaz de desencorajar tentativas de aventuras grupais ou mesmo políticas estrangeiras. O Plano de Desenvolvimento nacional em plena execução durante os anos 70, previa e realizou parte substancial de um vigoroso programa 54 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 energético, destinado a assegurar o nosso crescimento e respeito internacional por meio da utilização soberana de todas nossas fontes de energia. Pressões internacionais levaram governos posteriores a se comprometerem a renunciar a plenitude do uso de energia nuclear e também a aceitar uma exagerada reserva de terras dos índios. Estes dois recuos devem ser corrigidos se quisermos nos manter fiéis à conquista de nosso Objetivo Político Fundamental. Concluímos, reafirmando a nossa fé na possibilidade do Brasil vir a formar entre as grandes nações do Mundo, desde que suas elites políticas se mostrem capazes de realizar um plano estratégico de desenvolvimento de suas imensas potencialidades geográficas e humanas. Hoje, muito mais do que no passado, a obra de transformação estrutural do território e da educação do povo, estão extremamente facilitadas pelos recursos da engenharia moderna e pelos instrumentos de comunicação e de informação à disposição do homemoperativo. A missão, a grande missão de nos fazer “grandes”, não deve escapar das mãos desta geração de brasileiros. *General de Exército Reformado e Conselheiro da ESG Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 55 Jaime Rotstein* Maio/2001 INTRODUÇÃO A crise no fornecimento de energia elétrica que ameaça o Brasil, inclusive com o seu racionamento, tem as suas raízes no abandono a que foi relegada a construção de novas usinas hidrelétricas – grande fonte de energia limpa existente no país. A conjunção de diferentes fatores contribuíram para a conjuntura estabelecida: situação econômica, reduzindo a capacidade de investimento no setor elétrico, aumento do consumo bem acima do crescimento do PIB; regime de chuvas inferior ao esperado, culminando com a seca atípica no período 2000/2001. Independente dos fatores apontados, não foram tomadas medidas indispensáveis para atenuar a probabilidade de reservatórios em níveis baixos, tais como um intenso programa de conservação de energia e recuperação das usinas existentes, capazes de, em conjunto, darem significativa contribuição na redução de consumo e no aumento da produção de energia elétrica. Desde 1995 tenho procurado colaborar na correta utilização da economia do consumo de energia elétrica, detalhado no documento “Critérios e Ações para Induzir a Conservação de Energia Elétrica”, que apresentei ao PROCEL (Programa de Conservação de Energia), em cujo Conselho representava a Confederação Nacional do Comércio. Recentemente elaborei um Plano de Intervenção no setor de iluminação residencial, publicado no livro Contrato com o Brasil (dezembro/2000) e cuja versão final é a seguinte: 56 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS A iluminação representa uma parcela importante do consumo de energia elétrica no Brasil, já que, segundo informações da Eletrobrás, o segmento de iluminação responde por 25% do consumo no setor residencial e 44 % no setor comercial, totalizando este segmento nos dois setores 14% do consumo total de energia elétrica no país, conforme citado pelo Engº Jaime Rotstein em sua mais recente publicação1 . No ano de 1999, o consumo de energia elétrica residencial no Brasil alcançou um total de 82.000 GWh, enquanto que no mesmo período o consumo do setor comercial atingiu 45.000 GWh. Considerando o exposto no parágrafo anterior, pode-se inferir os seguintes valores de consumo para o seguimento de iluminação no ano de 1999: - Setor residencial = 20.500 GWh; - Setor Comercial = 19.800 GWh. De uma forma geral, a iluminação residencial é feita por lâmpadas incandescentes. Estima-se que anualmente são comercializadas no Brasil 360 milhões deste tipo de lâmpada, a maioria destinada ao uso residencial, respondendo as lâmpadas de 60 W por uma fatia de cerca de 70% desse universo. Em contrapartida, o mercado de lâmpadas fluorescentes eficientes está em torno de 10 milhões/ano. A maioria delas (75%) são lâmpadas fluorescentes compactas (LFC´s), destinando-se, todavia, apenas uma parcela reduzida, talvez 30%, ao uso residencial. Admitindo o estabelecimento de um programa para substituir os sistemas de iluminação residencial de forma acelerada, poder-se-ia utilizar lâmpadas de alto rendimento, LFC´s por exemplo, que possuem um rendimento aproximadamente 5 vezes maior do que as incandescentes. Isto significa que, para fornecer a mesma quantidade de luz (lumens), as lâmpadas de alto rendimento, instaladas da mesma forma e no mesmo bocal da lâmpadas incandescentes de uso geral, consomem apenas cerca de 20% da energia requerida por estas, além de possuírem tempo de vida útil médio de 2 a 7 anos contra apenas 8 meses das lâmpadas incandescentes. Conforme demonstrado adiante, é perfeitamente viável um plano para substituição de 162 milhões de lâmpadas incandescentes de 60 W por LFC´s de 15 W, o que representa uma redução global de potência da ordem de 5.100 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 57 MW e uma redução global do consumo da ordem 10.500 GWh/ano, correspondentes respectivamente aproximadamente a parte brasileira da potência instalada de Itaipu e a cerca de metade do consumo do segmento de iluminação no setor residencial. A título de ilustração, tal programa requereria um custeio da ordem de 250 milhões de reais por ano durante cerca de 7 anos, sendo seu benefício imediato e progressivo, enquanto que os recursos necessários para instalação da potência economizada atingiriam o montante de cerca de 10 bilhões de reais, com resultados somente alcançados ao final de cerca de 6 anos. 2 - DESCRIÇÃO DO PROGRAMA 2.1 - OBJETO Substituição de 162 milhões de lâmpadas incandescentes por LFC´s, na classe residencial, a um ritmo de 25 milhões de unidades por ano, portanto num período de 6 a 7 anos. Tal mercado é obtido considerando-se que, apenas entre os consumidores residenciais em todos os níveis de consumo, tem-se cerca de 40,5 milhões de residências com acesso a energia elétrica no país, bem como admitindo a viabilidade da substituição de 45% do total de 360 milhões de lâmpadas incandescentes comercializadas anualmente no Brasil (corresponderia substituir lâmpadas de maior uso na residência: cozinha, área de serviço, corredor, banheiros, varandas e possível uso misto na sala), em sua grande maioria destinadas ao uso residencial. 2.2 - BENEFÍCIOS Além dos benefícios econômicos para o país, do ponto de vista da sensível diminuição do consumo de energia elétrica, conforme mencionado anteriormente, da ordem de 10.500 GWh/ano, o programa traz em seu arcabouço outros tipos de benefícios, dentre os quais destacam-se os benefícios sociais e ambientais. Do ponto de vista social, a implantação do programa terá o efeito de reduzir os gastos dos consumidores com energia elétrica, na medida da diminuição de seu consumo, sendo essa redução proporcionalmente mais acentuada para a população de baixa renda, onde o segmento de iluminação é mais significativo no consumo total. 58 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 O parque produtor brasileiro, a curto prazo, tem sua expansão prevista através da implantação de usinas termelétricas, com conseqüente aumento de poluição ambiental. Dessa forma, qualquer economia no consumo e, portanto, na produção de energia, representa uma sensível diminuição nos impactos ambientais inerentes a esta produção. Para se Ter uma idéia quantitativa deste aspecto, tome por referência a citação do Engº Jaime Rotstein (op. cit.) à International Association for Energy Efficient Lighting (IAEEL), “uma rede global para contatos e informações para iluminação de alta qualidade e energeticamente econômica” pela qual a Polônia, com um “programa interno de vendas de 1 milhão de lâmpadas (eficientes) em 18 meses”, espera, durante a vida útil dessas lâmpadas “deixar de emitir para a atmosfera 200.000 toneladas de carbono, equivalentes à energia que não seria produzida”. 2.3 - CUSTEIO O custeio do programa pode advir dos recursos previstos na resolução nº 271 de 19/07/2000, que prevê a utilização de 1% da receita das concessionárias para incremento da eficiência no uso e oferta de energia elétrica. Isto representa 250 milhões de reais por ano e poderia privilegiar a conservação de energia elétrica enquanto necessário. Uma outra alternativa, considerando que a evolução dos custos da energia, inclusive em função das formas alternativas e sua produção, justifica a universalização rápida da substituição das lâmpadas incandescentes por LFC´s, seria o aumento da tarifa de energia elétrica em 1% para contas superiores a um determinado nível de consumo, por exemplo acima de 150 KWh/mês. Pode-se considerar, ainda, a possibilidade de empréstimo, através de linhas de crédito específicas do BNDES, a título de adiantamento para a implantação do programa. Observação: tais medidas, para serem rápidas e eficazes, poderão exigir a publicação de uma Medida Provisória por parte da Presidência da República. 2.4 - ASPECTOS A SEREM CONSIDERADOS NA IMPLANTAÇÃO Apesar das vantagens das LFC´s sobre as lâmpadas incandescentes, a Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 59 penetração do produto no mercado enfrentou em todo o mundo vários desafios. No Brasil os principais desafios são: a) PREÇO Não obstante os avanços tecnológicos virem contribuindo para uma expressiva redução em seu preço, uma LFC, ainda hoje, dadas as condições do mercado doméstico, é oferecida ao consumidor brasileiro por valor pelo menos 10 vezes maior do que o de uma lâmpada incandescente. É verdade que as LFC´s têm uma vida útil maior, mas a realidade brasileira sugere que a decisão de grande parte dos consumidores tem estado forte e diretamente vinculada à questão do preço (muito baixo, às vezes inferior a R$ 1,00) da lâmpada incandescente. Para incentivar o consumidor a conservação de energia, através da substituição de lâmpadas incandescentes por LFC´s, e considerando o risco de racionamento no horizonte de pelo menos 3 anos, o programa deve considerar inicialmente a importação de lâmpadas sem a preocupação com impostos não arrecadados, em função dos prejuízos de um racionamento e dos custos do aumento do parque gerador de origem térmica ou hidrelétrica, incluindo a ampliação necessária do sistema de transmissão. Em seguida, o programa deve estimular a produção das LFC´s no país, através da garantia do crescimento do mercado interno brasileiro, conferindo escala competitiva a sua produção e comercialização. De outro lado, impõe-se que seja analisada a composição do preço de uma LFC. Atualmente toda LFC comercializada no Brasil é importada, o que significa custos adicionais (de quase 30%) conforme evidenciado nas colunas “a” e “d” da Tabela 1, construída a partir de informações obtidas junto a um fornecedor nacional (coluna “a”) e de uma simulação de preço no caso do produto ser fabricado no país (coluna “d”). Além dessas possibilidades, foram simuladas as situações de produto importado ou produzido no Brasil sem qualquer tributação (colunas “b” e “c”), bem como, em acréscimo, uma hipótese sem tributação e também sem as margens adotadas (colunas “c” e “f”), admitindo-se apenas uma taxa de R$ 1,00 por lâmpadas distribuídas a título de margem do varejista que se credenciasse. 60 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 TABELA 1 COMPOSIÇÃO DO PREÇO AO CONSUMIDOR DE UMA LFC Embora deva ser examinado mais profundamente este aspecto, no sentido de incorporar informações de outros fornecedores, este exercício autoriza supor que outro modo eficaz e sustentável de promover a redução nos preços das LFC´s é criar as condições para que elas venham a ser produzidas no país, sendo essencial o estímulo ao crescimento deste mercado. Supondo-se para efeito do programa um preço por lâmpada de R$ 10,00, apenas a verba proveniente da utilização de 1% da receita das concessionárias permitiria a substituição de 25 milhões de unidades por ano. b) ESTÍMULO E DISTRIBUIÇÃO AO CONSUMIDOR Como primeira opção, o estímulo ao consumidor para substituição das lâmpadas incandescentes por LFC´s seria efetuado por meio da distribuição gratuita de LFC´s, viabilizada através da emissão, juntamente com a conta de energia, de um vale-lâmpadas a ser trocado em qualquer estabelecimento conveniado. Esses vales seriam emitidos para atendimento de cada consumidor uma única vez, autorizando uma quantidade (potência) total de lâmpadas a ser trocadas em função do segmento de classe de consumo. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 61 Uma alternativa a esta opção consistiria da hipótese do vale-lâmpada utilizado pelo consumidor ser pago por ele mesmo, através de suas contas mensais subseqüentes de luz, de tal forma que a mesma não apresentasse, em média, acréscimo de valor ou, preferencialmente, até mesmo algum decréscimo. O financiamento seria feito pela concessionária, sendo seu custo reconhecido pela ANEEL como aplicação em eficiência energética, a que a concessionária está obrigada nos termos de seu contrato de concessão e da legislação vigente. Podem ser estudados, ainda, mecanismos mistos que utilizem a idéia de distribuição gratuita para uma parcela dos consumidores e financiamento para os demais. c) QUALIDADE A garantia da qualidade do produto é um ponto essencial, especialmente porque está diretamente ligada à credibilidade do programa e a sua aceitação pelo consumidor. Já estão disponíveis normas da ABNT aplicáveis a esses produtos, existindo também, desde 1998, o Selo PROCEL/INMETRO de Desempenho, concedido às LFC´s que atendem a um padrão mínimo de qualidade pré-estabelecido. Basicamente, os produtos que ostentam o Selo são garantidos pelo fornecedor por um ano contra defeitos de fabricação e apresentam um fator de potência mínimo de 0,45. De qualquer modo, o meio para garantir qualidade ao consumidor é definir como condição para participação no programa que a LFC ostente o Selo PROCEL/INMETRO de Desempenho. Pode-se considerar, para efeito de um programa de substituição em larga escala e de abrangência nacional, em negociar com os fornecedores uma garantia maior. Hoje, para aferir esta garantia, os produtos são testados nos laboratórios da CEPEL e devem apresentar durabilidade mínima de 2.000 horas (admitindo um uso médio de 5 horas por dia, isto significa durabilidade de pelo menos 400 dias). Do ponto de vista da otimização dos meios de produção, e em conseqüência do preço final do produto, seria ideal que o tempo de vida útil das lâmpadas fosse igual ao prazo de implantação do programa, de tal forma que a taxa de reposição das unidades, ao final de sua vida útil, fosse a mesma já adotada durante a fase de implantação. Exemplificando, para um prazo de implantação do programa de quatro anos e vida útil das lâmpadas também de quatro anos, Ter-se-ia uma taxa de 25% do total de unidades implantadas ao ano 62 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 tanto na fase de implantação quanto na fase de reposição das unidades. Como programa de substituição de lâmpadas no Brasil possui uma magnitude tal que demanda, certamente, um prazo superior a quatro anos, e já é comum a utilização de LFC´s com vida útil de 8.000 horas, a durabilidade mínima exigida nos testes do CEPEL anteriormente referidos deverá ser elevada para 8.000 horas. 3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS Na medida dos prejuízos de um racionamento e dos custos de produção adicional de energia de origem térmica ou hidrelétrica, inclusive o custo necessário à ampliação do sistema de transmissão, urge a implantação de programas rápidos, eficientes e de fácil implantação para conservação de energia, configurando-se o de substituição de lâmpadas incandescentes por LFC´s o mais viável. *Engenheiro - Conselheiro da Petrobrás NOTA 1 Rotstein, Jaime – Contrato com o Brasil, Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda., pgs 99-108, Rio de Janeiro, 2000. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 63 José Ariel Castro* Tome, porém, Vossa Alteza minha ignorância como boa vontade, na qual pode, com toda certeza, acreditar, pois, para embelezar ou afear, não colocarei aqui senão o que vi e me pareceu. (Pero Vaz de Caminha, Carta, alguns meses antes de morrer em Calecute) Perché quann’uno, caro mio, se vonta D’esse un omo d’onore, quanno há dato La parola, dev’esse’ sacrosanta. E sai longa la strada, o brutta o bella, Mogaracristo da mori’ ammazzato, Ma la parola sua dev’esse quella. (Cesare Pascarella, La scoperta de l’Almerica, soneto XIX). INTRODUÇÃO Devido a seu caráter de monumento da história luso-brasileira, a carta de Pero Vaz de Caminha tem recebido quase sempre dos estudiosos tratamento lexicográfico ou histórico-biográfico, que são muito importantes mas que terminam por fazer esquecer um aspecto do texto de suma relevância: ser um valioso testemunho, em suas entrelinhas, do andamento da expedição de Cabral até 2 de maio de 1500. A publicação recente, no Brasil e também em função do quinto centenário de seu descobrimento, de várias obras de divulgação ou pesquisa já permite aos estudiosos uma revisão do caráter essencial desse acontecimento, cuja análise tem permanecido, por mais de um século, subordinada a abordagens freqüentemente dispersivas e a pontos de vista exageradamente subjetivos, tanto no Brasil quanto, principalmente, em Portugal.1 64 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Balizando a problemática da carta, Capistrano de Abreu ressaltava, ainda em 1908,2 que um comentários filológico da mesma, feita por um entendido, seria no seu tempo, imprescindível porque suas passagens cruciais continuavam obscuras. Decorrido quase um século desse ponto de vista do emérito historiador, a situação continua praticamente igual. A conseqüência disso tem sido ressaltar-se pouco do que pode estar implícito em certos passos do texto do escrivão de Cabral, seja a respeito da expedição em si mesma, seja de seus protagonistas. Muitos investigadores assumiram previamente teorias sobre a formação e desenvolvimento da viagem cabralina e procuraram provas que as certificassem. Entre os que não procederam assim estão Marcondes de Sousa, Greenlee e Rubens Viana Neiva,3 valendo ressaltar o combate do primeiro às teses da intencionalidade e do sigilo, ao chamar a atenção para o fato, entre vários outros, de que Cabral não levava padrões em sua armada e de que tanto Caminha quanto o rei D. Manuel e, implicitamente, Cabral apresentam o descobrimento da terra nova como resultado da ação divina, não condizente esse fato com um projeto específico de achamento. Prova disso é o “milagrosamente” da carta do rei aos seus sogros. Pouco se avançou, também, no cotejo do material implícito na narrativa da carta com o correspondente encontrável em documentos elucidativos, como a carta de Mestre João, o relato do piloto anônimo, o diário de Álvaro Velho, marinheiro da expedição de Vasco da Gama e as cartas de Américo Vespúcio de 28 de julho de 1500 e 4 de junho de 1501.4 PORQUE SOMENTE PERO VAZ DE CAMINHA E MESTRE JOÃO ESCREVERAM A D. MANUEL SOBRE O ACHAMENTO DA ILHA DE VERA CRUZ É significativo o fato de essas duas cartas mandadas do Brasil terem sido escritas por subordinados (Pero Vaz de Caminha e Mestre João Faras), que procuraram esclarecer – por determinação do capitão-mor, como veremos – a identidade da terra descoberta, não a navegação que estava sendo realizada. E o fizeram relativamente à sua natureza e gente (Caminha) e à sua localização (Mestre João). Ninguém há de negar, na busca da verdade sobre o que realmente aconteceu durante a expedição de Pedro Álvares Cabral, que a carta de Pero Vaz de Caminha, longa, calma e detalhada, contrasta com a pouca extensão relativa das notícias referentes ao Brasil dos dois outros documentos diretos que chegaram até nós (Carta do Mestre João Farias e Relação do Piloto Anônimo) Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 65 e com a ausência de outros documentos diretos contemporâneos. A carta escrita por Américo Vespúcio do cabo Verde ou Bezeguiche, na consta da Guiné de Cabo Verde (não confundir com as ilhas de Cabo Verde), a Lorenzo di Pier Francesco dei Medici, no dia 4 de junho de 1501 pode ser considerada quase direta porque, segundo ele, muitos homens que viajaram na armada de Pedro Álvares Cabral lhe contaram abundantemente sobre a expedição, sobretudo o respeitado língua Gaspar da Índia (ou, da Gama) que se tornou posteriormente um dos estrangeiros mais compensados pelo rei D. Manuel. A filóloga alemã Carolina Michaëlis de Vasconcelos,5 acha que escreveram a El-Rei “...[o] Almirante da poderosa esquadra de treze naus (das quais desaparecera apenas uma em Cabo Verde), seu substituto Sancho de Tovar, os outros onze capitães, o feitor, os pilotos o cosmógrafo da expedição, os dois escrivães e por ventura, os eclesiásticos (vigários, frades e capelães)...”. Isso equivale a um extraordinário total de vinte ou trinta pessoas entre as mais importantes das cerca de, pelo menos, 1200 que participaram ativamente da semana de Vera Cruz. Tal opinião tem sido partilhada por quase todos os editores e comentadores mas se nos afigura absurda porque implica haver muita gente alfabetizada na frota ao nível de se corresponder com o rei, Ter um grande número de pessoas prerrogativas de poder dirigir-se pessoalmente a um monarca absoluto e temeroso (vide o tratamento já dado por ele aos judeus), o que é inverossímil, e existir uma autorização geral de Pedro Álvares neste sentido, menos provável ainda. Além disso, com tantos documentos admitidos por D. Carolina, seria inexplicável não terem chegado aos dias de hoje pelo menos mais um dos produzidos na Ilha de Vera Cruz. Contra essa hipótese, que, em nossa opinião, só poderia ser formulada – e não o foi – se se estribasse em possível desaparecimento dos mesmos durante o incêndio ocorrido na Torre do Tombo no reinado de D. João III, pouco antes de 1540, bastaria o argumento de que a nenhum cronista que tivesse começado a pesquisar no arquivo real da Torre do Tombo e em outros locais antes de 1540, como é o caso de Gaspar Correia (depois de 1526) e de João de Barros (a partir de 1531) passaria despercebida alguma outra carta a el-rei, se tivesse havido tantas originalmente. A inverosimilhança dessa perda maior se apresentaria principalmente se tivesse qualquer missiva adicional recebido anotações de entrada semelhantes às da carta de Caminha: “A El Rey noso Sñor”, 66 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 provável anotação de encaminhamento administrativo ao rei, nos dias posteriores à chegada da nau de Gaspar de Lemos (Fol. 14 v.); “Carta de pº Vaaz decaminhadodesco brim~eto datrra noua q fez pº Alvarez”, anotação de entrada do documento, algum tempo depois, no Arquivo Real quando o monarca já tomara ciência de seu conteúdo e fora mandado arquivar pelo funcionários competente (fol. 14 v.). A essa inverosimilhança se acrescenta um erro cometido por Carolina Michaëlis de Vasconcelos e seus seguidores na avaliação do sentido das palavras iniciais de Caminha. Assim, disse o escrivão: “...Posto que o Capitão-Mor desta vossa frota e, do mesmo modo, os outros capitães escreveram a Vossa Alteza...” (Fol. 1, linhas 2 e 3). O original tem “escrevam”, não “escreveram”. Embora a quase totalidade dos editores ou comentadores tenha assinalado a primeira forma, todos deixaram de notar que o escrivão, um competente usuário da língua portuguesa, colocou o verbo “escrever”, da frase transcrita, no modo subjuntivo, que é aquele que indica uma possibilidade, não um fato real, como acontece com o modo indicativo. Essa possibilidade diz respeito, ao mesmo tempo, ao presente e ao futuro. Por participar, na maioria dos casos, de orações subordinadas, o subjuntivo, neste contexto, aponta, quase invariavelmente, para situações de dúvida ou de incerteza. Deste modo, Caminha quis dizer: “muito embora o capitão e os outros venham a escrever, não deixarei eu de fazer o mesmo”. Não está ele dizendo que o capitão e os outros “escreveram” mas que podem estar escrevendo ou poderão fazê-lo. Mestre João Faras produziu discurso semelhante, que vem a ser, por isso mesmo, uma comprovação do fato de sua carta ser complemento da de Pero Vaz de Caminha: “...Senhor, porque, de tudo que aqui se passou, largamente escreveram [no original, “escriujeron”] a Vossa Alteza, tanto Aires Correia como todos os demais, somente escreverei [no original, “escreujre”] sobre dois pontos.” O trecho indica que Mestre João escrevia depois dos outros que ele julgava terem mandado carta ao rei. Só identificava, porém, um desses porque só desse tinha certeza: Aires Correia. A menção a Correia é, na verdade, referência a Caminha, em processo metonímico, porque entre Caminha e Aires Correia Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 67 havia uma relação de subordinação por já sair Pero Vaz de Lisboa como futuro escrivão da feitoria de Aires em Calecute. Como Mestre João não viajava na nau capitânea, sua visão de Caminha era a de um auxiliar de Aires Correia, que estava redigindo uma carta para este a mando do capitão-mor. Quando escreveu sua carta, na linha da carta de Caminha, que julgava ser de Correia. Por isso, julgou que a carta, já então sabida, do escrivão era documento preparado para seu superior por decisão do capitão-mor. A prova de que as carta de Caminha e de mestre João foram produzidas nas circunstâncias aqui apontadas está na Relação do Piloto Anônimo:6 “Item, Nestes dias em que aqui estivemos, determinou o capitão fazer saber a nosso sereníssimo Rei o achamento desta terra e de deixar nesta dois homens degredados e condenados à morte, que tínhamos na dita armada para tal fim. E logo despachou o dito capitão um navio, fora dos outros 12 acima mencionados, que carregava víveres, o qual levou as cartas ao Rei, na qual se continha tudo quanto havíamos visto e descoberto...” Esta significativa passagem da Relação, nunca analisada pelo estudiosos, revela dois fatos que ficaram na memória de um tripulante da frota após meses de tensão e de experiências as mais diversas: só duas cartas foram escritas da Ilha de Vera Cruz ao rei D. Manuel e, das duas, uma chamara mais a atenção desse tripulante. Só duas cartas, porque, na silepse de número “in la qual” (“na qual”, em lugar de “nas quais”), que se inicia o processo mental de considerar importante apenas uma das cartas, ficando as outras como secundárias. Estas outras, porém, sendo secundárias, se reduziam a uma, porque, resultando elas de determinação de Cabral, não fazia sentido mais de duas missivas de menor importância serem escritas para contar tudo que se vira e se descobrira. Como aos tempos de hoje chegaram as cartas de Caminha e de Mestre João, é a elas que se refere conscientemente o piloto anônimo. Este piloto deve ser Pero Escolar, cuja interação com Caminha este revela em sua carta. Caminha, por sua vez, deixa entender que outra carta poderia ser enviada a el rei, além da sua, na seguinte frase. “Da marinhagem e singraduras do caminho não darei conta aqui a Vossa Alteza porque não saberia fazer e o pilotos devem Ter esse encargo.” (Fol. 1, linhas 11-14) 68 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Esta outra carta complementaria a sua. Ele só trataria da nova propriamente dita porque os meios intelectuais que tinha não incluíam conhecimentos técnicos de navegação. Alguém falaria a respeito. Foi isso que Mestre João procurou fazer, como astrólogo que era. E, ao fim da jornada, também o fez o piloto anônimo. Fica assim provado, com o material disponível, que só duas pessoas escreveram ao rei D. Manuel da Ilha de Vera Cruz, Pero Vaz de Caminha e Mestre João. CAMINHA PRODUZ UMA CARTA-RELATÓRIO EM 26 DE ABRIL DE 1500 E INICIA, NO DIA SEGUINTE, UMA CARTA-DIÁRIO O exame atento ao relato de Pero Vaz revela sua gradual formação em função de fatos que iam sendo observados. A cronologia dos elementos que constituem formalmente esse relato serve, pois, para o conhecimento do significado relativo dos eventos da semana de Vera Cruz. Capistrano de Abreu estabeleceu a data de 26 de abril de 1500 como aquela em que Pero Vaz de Caminha começou a escrever sua famosa carta. Anos depois, Carolina Michaëlis de Vasconcelos optou por dois dias possíveis, 24 e 26. Jaime Cortesão, em sua edição da carta, de 1943, convenceu-se de que o início ocorreu no dia 24 e usou isso como argumento em favor da intencionalidade do descobrimento do Brasil, relacionando no sentido de que, com essa data, Caminha já teria sabido, antes da reunião de todos os capitães com Pedro Álvares Cabral, que o navio de Gaspar de Lemos “regressaria ao reino e que, por conseqüência, Cabral não necessitava do parecer do conselho para tomar aquela resolução.”7 Esta resolução já lhe teria sido previamente estabelecida por el-rei. Todos esses três analistas chegaram às suas respectivas conclusões depois de um exame perfunctório do texto, mas Capistrano, com sua reconhecida agudeza, estabeleceu a data do dia 26, “depois de ficar decidido mandar um portador ao reino com a notícia da terra novamente achada”8 . Para ele, isso significava que a decisão foi tomada pelo conselho de capitães e não existia previamente como determinação do rei Dom Manuel. A carta de Pero Vaz confirma a opinião de Capistrano. Na busca dessa confirmação, devemos considerar, inicialmente, o que pode revelar uma análise estatística do texto. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 69 O escrivão, dentro dos hábitos da ortografia fonética da época, escreveu muitas palavras unindo duas ou até três em ajuntamentos conhecidos como conglomerados gráficos. Tais conglomerados refletem a língua oral. Considerando os conglomerados como palavras, verificamos que a carta inteira é composta de 7600 palavras, em números redondos,9 das quais 4500 foram produzidas entre o início do texto e o final da fol. 8, no qual se tem justamente o fim da narração do que aconteceu na expedição desde a partida de Portugal até os acontecimentos do dia 26 de abril. Isso corresponde a aproximadamente 60% da carta, ficando os outros 40% para os fatos ocorridos entre o dia 27, Segunda feira, e 1º de maio, inclusive. Observando ainda o documento, verificamos que os folios de 1 a 8 estão todos encadeados, ou seja, o que se está dizendo ao fim de uma contínua no início do seguinte. Por isso e pelo aspecto visual do curso da escritura ao longo deles, concluímos que encerram um texto corrido, estrito de uma só vez. Como comprovação adicional desse caráter dos folios 1-8 estão as palavras finais do folio 8 em contraste com as iniciais do folio 8 v.: “...A asy nos tornamos aas naaos já casy noute adormjr.” (Folio 8, 1. 37) / “aasegda feira depois decomer saimos todos...” (Folio 8 v. 1. 1). Este folio 8, bem como os anteriores, desde o de número 5, relata os acontecimentos do dia 26 de abril, domingo de Pascoela. O conjunto representa 50% do texto corrido, o que depõe em favor de que a produção do texto corrido se verificou nesse dia 26 de abril. A prova disso está igualmente no único emprego do advérbio ontem nessa primeira e mais longa parte das duas em que se divide a carta, justamente no dia 26: “...em quanto esteemos aamisa e aapregacom seriã na praya outa tanta gente pouco mais ou menos como os domtem cõ seus arcos e seetas...” (folio 5, 1. 23-25).10 Dentro da problemática da cronologia do relato, constatamos que, se a missa se realizou no dia 26 de Caminha emprega o advérbio ontem em sua descrição, o escrivão, obviamente, estava escrevendo nesse dia 26. Indo o relato dos fatos desse dia até o fim do folio 8, tem-se, como conseqüência, que o texto corrido, desde o início do documento, foi redigido de um fôlego no dia 26 de abril de 1500, cabendo a este último dia, como é humanamente justificável, 45% dessa primeira parte da carta. Outra prova, não menos importante, de que houve a produção de um texto corrido no dia 26 de abril e início de uma rela carta-diário no dia 27 70 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 é que, no Domingo, 26 de abril, Caminha é de opinião, pelo que vira até então, que os índios não tinham casas: “...e jsto me faz presmir que nõ teem casas në moradas em que se colham eo aar aque se criam os faz taaes. / në nos ajnda attagora nom vimos nhuüas casas nem maneira delas.” (Fol. 8, 1l 20-24). No dia seguinte, porém, em face dos eventos do dia, demonstra saber que os índios têm casas: “...foram bem huüa legoa e meia ahuüa pouoraçom de casas em que averja ix ou x casas...” (Fol. 9, 1. 7-9, continuação do relato iniciado no fol. 8 v.). Quem assim procede demonstra que escreveu um texto em um dia e iniciou outro no dia seguinte. As outras ocorrências de ontem, hoje e amanhã, no sentido de amanhã de manhã, só se verificam depois desse texto corrido, quando se apresenta a carta como carta-diário. A cronologia dos elementos que constituem formalmente a carta deve ser estabelecida adicionalmente, pois, com o levantamento do uso dos advérbios hoje, ontem e amanhã e no contraste, como veremos, entre a referência negativa às casas dos índios em uma passagem da primeira parte da carta, ou relato corrido, e outra positiva mais adiante. O advérbio “ontem” é usado no dia 26 de abril para falar de ajuntamento de índios ocorrido na manhã de Sábado, dia 25 (de tarde, neste último dia, não houve índios na praia): “...seriã na praya outa tanta gente pouco mais ou menos como os domtem...”(fol. 5, 1. 24-25); na terça-feira, de 28 de abril, para relatar o corte, feito no dia anterior e com significativa antecedência, da maneira que iria servir para a grande cruz usada na missa de Sábado, 1º de maio: “...faziam dous carpenteiros huüa grande cruz dhuü paao que se omtem pera ysso cortou.” (Fol. 9v, 1. 12-14) e “... que andam fortes sego os homeës que omtem asuas casas deziam por que lhas viram la.” (Fol. 9v, 1. 21-23); e, finalmente, na quarta-feira , dia 29, para fato do dia 28, ou seja, a ordem de Cabral para que Afonso Ribeiro, um dos degredados, e Diogo Dias, o irmão de Bartolomeu Dias, descobridor do Cabo da Boa Esperança, fossem dormir com os índios: “...diego djs e ao rribeiro adegradado, aque ocapitã omtem mandou que em toda maneira la dormisem, volueranse...” (Fol. 10, 1. 23-25). De manhã, com o sentido de amanhã de manhã, é empregado duas vezes. Uma, como referência na quinta-feira, dia 30, a evento que ocorreria no dia Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 71 seguinte, 1º de maio: “...aacruz q estaua emcostada ahuüa aruore junto cõ orrio perase poer de manhaã que he sesta feira e que nos posesemos todos em giolhos e abeijasemos...” (F. 11, 1. 16-18); a outra, como referência na sexta-feira, dia 1º, a evento que ocorreria no dia seguinte, 2 de maio, Sábado, ou seja a partida do Brasil: “...os quaaes nõ vierã majs e creemos que ficaram aquy por –q demanhaã prazendo a ds fazemos daquy nosa partida...” (f. 13, 1. 31-33). São frases ditas, portanto, na quinta, dia 30 e nas sexta , dia 1º de maio. “Hoje” é usado na quinta-feira, 30 de abril (f. 11v, 1. 27-28: “...oqual veo oje aquy vestido na sua camisa...”) e na sexta-feira, dia 1º de maio (folios 11v, 1.31: “Eoje que he sesta feira primeiro dia de mayo...”; 12 v, 1. 1112: “... e aly nos peegou do auanjelho e dos apostolos cujo dia oje he...”; 13, 1. 13-15: “...pelos dous degradados que aquy ãtreles ficam os quaaes ambos oje tam bem comungaram, antre todos este que oje vierã...”; e 14, 1. 12: “...deste porto seguro da vosa jlha de vera cruz oje sesta feira primo dia demaiyo de 1500.”) A expressão “esta noite”, empregada por Caminha pode significar “a noite passada” ou “logo mais à noite” ou, ainda, “agora, durante esta noite em que estou escrevendo”, o que interessa à cronologia da formação do diário propriamente dito colocado na carta. O sentido mais remoto é o de “essa (nessa) noite” ou “essa noite do dia a que estou me referindo”. Diz respeito ao relato recapitulativo corrido, de fatos que vão da partida de Portugal até o dia 26 de abril, domingo de Pascoela. Ex. “...aos degradados mandou que ficasem la esta noute...” (f. 9, 1. 5-6; “logo mais à noite”, em frase escrita ao fim da segunda-feira, 27 de abril); “... ficam mais dous grometes que esta noute se sairam desta naao no esquife em trra fogidos...” (f. 13, 1 29-30; “a noite passada”, em frase que escreveu a 1º de maio, indicando a noite de 30 de abril para 1º de maio).11 O exame paleográfico dos folios 10 e 10v denuncia, pelo intervalo de uma linha de escritura antes das frases “aaquarta feira” e “aaqujunta feira”, duas características diversas. Antes de “aaqujunta feira” já é de aspecto muito semelhante à do texto iniciado com “aaquarta feira”. Significa isso que Caminha escreveu sobre a quarta-feira, dia 29, e a quinta-feira, dia 30, neste último dia. Não escreveu nada durante o dia 29. E neste, justamente, ocorreu o auge do envolvimento da armada cabralina no descarregamento e 72 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 carregamento da nau de Gaspar de Lemos, bem como na redistribuição do que seguiria na derrota para a Índia. Significativamente, no relato sobre esse dia 29, Caminha usa com precisão a frase “essa noite” ao invés de “esta noite”: “... porem nõ trouuemos esta nou aas naaos se nõ iiij ou b. s. ...” (F. 10V, 1. 1-2). Usa então “esta noite” para o que está acontecendo na noite de 30 de abril, quando escreve: “... os quaaes forã esta noute muy bem agasalhados...” (f. 11v, 1. 28-29). Do exposto se conclui que Pero Vaz de Caminha recordou os fatos da expedição entre 9 de março (partida de Lisboa) e 26 de abril e o fez de um fôlego neste último dia. Durante a noite ou ao fim de cada um dos dois seguintes, 27 (segunda-feira) e 28 (terça-feira) voltou ao trabalho, escrevendo textos curtos. No dia 29, quarta-feira, nada escreveu, voltando a fazê-lo na noite de 30 de abril, também de forma curta. Voltou a escrever longamente ao fim do 1º de maio. Do exame das frases em que se empregam esses advérbios e da paleografia dos trechos em que se encontram inseridos, resultam várias informações ou indícios fortes sobre o entendimento, por Cabral e Caminha, do que estavam vivendo na terra nova descoberta Uma importante constatação que se pode tirar da análise que acabamos de empreender é de que a carta de Caminha é um conjunto de dois relatos básico: o que houve até o dia 26 de abril, com predominância absoluta (50%) para os fatos deste mesmo dia, e o dia 1º de maio. As informações, dia-a-dia, do decorrido entre 27 e 30 de abril são curtas. Não passa de 1120 palavras o texto relativo aos dias 27, 28 e 29 de abril da carta-diário, não se podendo aí incluir aquele referente à quinta-feira porque foi produzido, como vimos, no último dia efetivo, 1º de maio. Essas 1120 palavras são típicas de uma rotina de diário e representam apenas 35% da carta-diário (de 27 de abril a 1º de maio) e a 14% da carta inteira. Foram produzidas segundo um esforço que não se compara ao da riqueza de conceitos e relatos presentes na redação de domingo, 26 de abril, e sábado, 1º de maio, último dia em terra. Estes dois relatos básicos não são outra coisa senão relatos de chegada efetiva e de partida certa, ambos balizados por duas missas. A chegada efetiva ocorreu no dia 26 de abril porque as preliminares essenciais ao conhecimento Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 73 da terra nova já se tinham experimentado em segurança. Daí os dois fatos marcantes desse dia: a missa, que propicia a certeza do caráter pacífico dos índios, e a reunião de capitães com Cabral para a tomada de decisões, providência cuja espontaneidade deflui da estrutura, assim levantada, da carta de Caminha. A evolução de todos esses acontecimentos não condiz de forma alguma com uma suposta anterioridade na decisão de enviar de volta a nau de Gaspar de Lemos. Assim, decidiu o capitão-mor, em face dos resultados da reunião, mandar a notícia da descoberta ao rei por meio de cartas, como assevera o piloto anônimo, e marcar a partida para o domingo seguinte. A prova desta última decisão é o corte, já na segunda-feira, da madeira que iria servir para a grande cruz da missa de cinco dias depois, sábado, 1º de maio, último dia inteiro de permanência. As decisões do dia 26 de abril não se resumiram, como se vê, a apenas mandar o navio de Gaspar de Lemos e a deixar na terra dois degredados. A antecedência do corte da madeira para a cruz da missa do sábado seguinte revela, por si mesma, um planejamento resultante da sensação de segurança e da impressão amadurecida de que a terra nova não tinha significado maior para os propósitos da viagem. A semana seria aproveitada para tirar dela o que podia oferecer de vantajoso imediatamente: água, madeira e serviços de reparo das naus. Como a gente encontrada era pacífica, uma Segunda missa seria celebrada para maior confiança dos viajantes e sem que se precisasse fazê-lo na ilhota de Coroa Vermelha, o que seria um motivo a mais de otimismo e de fé no futuro. Seria também um ato de congraçamento entre a cultura dos portugueses e a dessa gente encontrada que, na visão de Cabral e dos capitães, constituía um povo capaz de assimilar os valores portugueses a ser de muita utilidade nos futuros empreendimentos em direção à África e à Índia. A atividade epistolar de Caminha sugere outras conclusões. Assim, a ausência dessa atividade antes do dia 26 encontra paralelo em sua pouca atividade nos dias 27, 28 e 30 e contrasta com os grandes esforços dos dias 26 e 1º de maio, aquele bem maior do que este. Isso permite constatar que houve duas motivações distintas no desenvolvimento da carta do escrivão. Uma, do dia 26, foi a própria atribuição a ele da tarefa de escrever ao rei e a segunda, do dia 1º, de arrematá-la em face da partida concomitante da nau de mantimentos de Gaspar de Lemos e do resto da frota. 74 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Cabral decidiu, no domingo de Pascoela, que valia a pena comunicar ao rei a nova da terra descoberta mas, tendo pouco tempo pela frente e não vendo relação entre a gente dessa terra e os habitantes da África e da Ásia bem como a nenhuma presença nela daquilo que interessava ao rei – especiarias, ouro, pedras preciosas e metais – resolveu atribuir a Caminha a tarefa. Assim procedeu porque, certamente, as qualidades de escrivão de Pero Vaz eram conhecidas dele e do rei e apreciadas.12 O fato em si de dar essa autorização, é, por seu lado, mais um indício da surpresa da descoberta. Não havia ouro nem especiarias, mas havia abundância de água e madeira a meio caminho para o Cabo do Boa Esperança. Havia, igualmente, a surpresa de uma terra inteiramente nova que não dava para conhecer em tão pouco tempo e em meio à pressa de retomar o tempo perdido em uma viagem que tinha data marcada de chegada à aguada de São Brás, conforme demonstrou Rubens Viana Neiva.13 Como a aguada se pudera fazer na terra nova, seria possível pular a etapa de São Brás e compensar o tempo até então perdido. Assim, para a estratégia das futuras missões à Índia, poderia ser a terra descoberta de interesse para o rei. Se havia, pelo encontro da terra nova e pelas coisas que nela tinham de ser feitas no interesse de viagem, a sensação de pouco tempo para as providências que precisavam ser tomadas, é natural que nelas não incluísse Cabral a de sentar-se para ele mesmo escrever ao rei. Por isso, determinou a tarefa a quem poderia dela se desincumbir. Pero Vaz foi escolhido então e, depois, foi determinado pelo capitão-mor ao Mestre João – certamente através do feitor Aires Correia – que complementasse a carta de Caminha apresentando sua avaliação do ponto, no Mar Oceano, em que a ilha se situava. Neste contexto, as sugestões ao rei, contidas na carta de Caminha, não partiram deste, mas do próprio Cabral. São sugestões de quem comanda, não de quem é subordinado. A carta, sem o fecho, deve Ter tido apresentada ao comandante e, por este, a todos ou, mais provavelmente, a alguns capitães. A prova disso é o conhecimento de seu conteúdo demonstrado pelo piloto anônimo que asseverou Ter sido inserido nas cartas “tudo quanto tínhamos visto e descoberto”. Por esse “tudo quanto” e pela correspondência de seu relato com o texto de Caminha, é muito provável que esse piloto seja Pero Escolar, que viajava na nau-capitânea, e que seu trabalho tenha sido feito por Ter Caminha morrido em Calecute. Cabral deve Ter gostado tanto da carta do escrivão, que permitiu a ele fazer, ao final, o extemporâneo pedido em favor do genro. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 75 INESPERADAMENTE CABRAL ACHOU UMA TERRA NOVA Nas linhas 3 e 4 (fol. 1) de sua carta, Caminha informa a el-rei da “nova do achamento”. Aí “nova” é um substantivo, sinônimo de “novidade” Seu sentido está acima do de “notícia”, “informação”, porque nestes últimos já pré-existe a qualidade de “novo”. Semanticamente, pois, fala-se primeiro em algo novo; depois, acrescenta-se ao mesmo a característica de informação, notícia. O vocábulo denota, por conseguinte, coisa de fato que antes se desconhecia, se ignorava. A frase seguinte define de modo mais completo a natureza do que era comunicado ao rei: “a nova do achamento desta vossa terra nova”. (Fol. 1, linhas 3 e 4) Tomada por inteiro, deixa ela implícito um contexto. Ao assim se pronunciar, Caminha indica desconhecer que algum português tenha estado no Brasil antes e que esta terra é mais uma e a mais recente das terras de D. Manuel.14 . O dono dela era D. Manuel, não um Estado português, acima de todos. Ainda não havia essa noção de Estado a essa ausência persistiu até a independência do Brasil. Tudo era, apenas, do rei. Ressalte-se igualmente que o segundo termo, “nova”, é um adjetivo que esclarece, no pensamento de Caminha, o sentido fundamental do vocábulo “nova”, antes empregado, porque dá à frase o significado de “terra que antes o rei não tinha”. O caráter inesperado da terra nova encontrada se insinua na frase seguinte “que agora se achou nesta navegação” porque o advérbio “ora” (neste momento) também esclarece e reforça aqui, harmonicamente, o sentido do substantivo “nova”, como sinônimo de “novidade”. O trecho está em harmonia com o da sugestão acima transcrita (Fol. 6, linhas 5-12). Cabral, através de Caminha, não podia dizer mais do que aquilo que estava na carta porque tinha logo de retomar a viagem. Não diria isso nem faria a sugestão nos termos em que se faz se tivesse vindo de propósito ao Brasil. Se assim o fazia, é porque descobrira algo inesperado, essa “terra nova”, conforme o sentido, acima esclarecido, que deu ao adjetivo “nova” e ao substantivo “nova” em “a nova do achamento”. A surpresa do encontro é evidenciada em outro passo. 76 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 “...ataa terça feira doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos alguüs synaaes de tera seemdo da dita jlha sego os pilotos deziam obra de bje lx ou lxx legoas. Os quaes herã mujta camtidade deruas compridas...” (fol. 1, 1. 30-33) “Tomamos” significa “achamos de repente”, isto é, inesperadamente. Define o caráter de surpresa da chegada da frota de Cabral à terra nova, ao Brasil. Não há como desconhecer a hierarquia do sentido deste verbo, na carta de Caminha, sobre o sentido do substantivo “achamento”. Os sentidos de “achar” e “achamento” ficam, pois, no texto de Caminha, subordinados ao do verbo “topar” e tornam-se inúteis as digressões de alguns analistas sobre aquelas palavras.15 PARA CAMINHA, A TERRA NOVA ESTAVA NA ROTA PARA A ÍNDIA Não achando Cabral, no 14º dia de viagem (23 de março), a nau de Vasco de Ataíde que se extraviara nas proximidades de Cabo Verde, informa Caminha em sua carta que “...Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terça feira doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril...” (Fol. 1, 1. 29-30). O período tem sido usado pelos adeptos da teoria da intencionalidade portuguesa no descobrimento do Brasil, a partir da afirmação de João Ribeiro, em tortuosa digressão,16 de um conjunto “mar de longo” seria uma expressão cujo núcleo é “mar” é indicativa de travessia do oceano na direção lesteoeste. Carolina Machaëlis de Vasconcelos, anos depois, repete o argumento: “Por este mar de longo, velejando ao ocidente através do oceano Atlântico”.17 O raciocínio de João Ribeiro, assentando-se no pressuposto de que “de longo” esteja ligado a mar, é no sentido desse mar de longo afirmando se tratar de mar que se estende de oriente para ocidente ou “mar do Ocidente”.18 O contexto em que colocam esses estudiosos e seus seguidores a expressão na frase de Caminha é arbitrário e o valor semântico a ela atribuído, gratuito, carecendo, portanto, a análise resultante de qualquer fundamento. De fato, os três críticos deixaram de atinar para o fato de que não se trata “de longo” de adjunto adnominal a restringir o sentido de “mar”, mas de adjunto adverbial. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 77 Para se esclarecer este passo de Pero Vaz de Caminha, deve-se primeiro pontuá-lo corretamente: “... assim seguimos nosso caminho por este mar, de longo, até terça-feira, oitava da Páscoa...”. Não há nenhum tipo de mar que possa participar de uma expressão cujo núcleo do adjunto adnominal, que o restringe, seja um adjetivo. Assim, o ponto de partida da “argumentação” de João Ribeiro é absurdo. Pode existir “mar de leite”, “mar de afeto”, “mar de amores”, “mar de sargaços”, etc., mas “mar de longo” é uma impossibilidade da língua. É o mesmo que dizer “mar de imenso” ao invés de “mar imenso”. Como, porém, não se pode retirar do texto de caminha a preposição de, isso indica que “de longo” é um adjunto que não restringe o sentido de “mar” mas o da forma verbal “seguimos”. Uma vírgula, explícita ou não, ou uma inversão dos termos resolve o sentido facilmente: “...seguimos... por este mar, de longo, até...” ou “... seguimos... de longo por este mar até...”. Uma atenta análise do período mostra uma hierarquia semântica clara entre seus componentes: [nós] seguimos nosso caminho / assim / por este mar/ de longo / até terça-feira. A forma verbal seguimos é o núcleo do predicado dessa oração, que tem como sujeito o pronome nós, oculto. O sentido da frase daí decorre naturalmente. “De longo” significa, na frase de Caminha, “de comprido”. Esta última expressão ainda não era corrente ao tempo de Cabral porque “comprido” e “comprimento” eram apenas formas divergentes de “cumprido” e “cumprimento” e tinham o sentido de “completo” e “ação de completar”, respectivamente. No decorrer do século XVI e, principalmente, no século XVII assumiu “comprido” o significado de “longo” e “comprimento” o de “extensão” de uma a outra extremidade”. O próprio Pero Vaz de Caminha dá o sentido para sua expressão em outro passo da carta: “Eentã ocapitã pasou orrio cõ todos nos outros e fomos pela praya delongo hindo os batees asy acaram de tera...” (Fol. 7, 1. – 22-24) Diz Caminha que seguiram eles nos batéis ao longo da praia e de frente para a terra, que era a sua referência. O sentido de terra era o sentido que tomavam os batéis, que lhe ficavam sempre na mesma distância, “acaram”, isto é, “uniformemente de frente”. Antes, no folio 2, já dissera: “...e quando fazemos vela seriam já na praya asentados unto c]o orrio , obrra de lx ou lxx homeës que se jumtaram aly poucos epoucos / fomos 78 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 de lomgo e mandou ocapitam aos mais pequenos que fosem mais chegados aatrra...” (fol. 2, 1. 18-22) Neste caso, também, Caminha quer dizer que foram de comprido com seus batéis, ao longo da terra, seguindo sua direção. A terra dava a direção do curso de suas embarcações. Quando, porém, Caminha diz que “...Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo...” está dizendo um pouco mais do que nesses dois exemplos citados. O adjetivo “comprido” – mais moderno, como vimos – não substituiu “longo” em sua plenitude semântica. Este tinha igualmente sentido temporal, que comprido não adquiriu, A expressa adverbial “de longo” surgiu do latim medieval e correspondia inicialmente à do latim clássico, de sentido temporal, “in longum”, que significava “por muito tempo, demoradamente”. Esta última pode ser encontrada, em muitos autores, como Tácito (Annales, 3, 27: in longum parare = preparar por longo tempo), Lívio (5, 16,4: nec in longum dilata res est = assunto adiado para daí a muito tempo) ou, ainda em Cícero (in longum decere = demorar muito tempo). Surgiu depois em seu lugar, provavelmente por influência da forma adverbial vulgar “de longe”, a expressão medieval “de longo”, que adquiriu adicionalmente sentido, espacial. Assim, na Vulgata: ...stetique populus de longe Moses autem accessit ad caliginem in qua erat Deus. (...o povo manteve-se à distância, enquanto Moisés aproximou-se da nuvem onde Deus estava). O uso de “de long-o” a par de “in long-um” na Idade Média, anos de 1230 e 1255, é atestada no Revised Medieval Latin WordList from British and Irish sources, de R.E. Latham (London, The British Academy, 1965, p. 281) bem como no Dicionários etimológico da língua portuguesa, de José Pedro Machado (Lisboa, Editorial Confluência, 1959, vol. II, p. 1356, s.v. longo, ano de 1021): “...et plega de longo usque in arrogio qui discurrit... (... e volteia por grande extensão – demoradamente – até o arroio que corre...). Aliás, no mesmo local indicado pelo grande Mestre José Pedro Machado (PORTVGALIAE MONUMENTA HISTORIZA – Volvmen I: Diplomata et Chartae, p. 154, documento CCXLVIII), ainda ocorre outro exemplo: ...et fer de longo in arrogio... (... e leva, por grande extensão, ao arroio...). Na frase de Pero Vaz, o substantivo “caminho” tem a mesma função do substantivo “terra”, empregado por ele no exemplo acima citado a propósito Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 79 de seu outro emprego de “de longo”. É a referência para “segujmos por este mar”, como “terra, ali, é a referência para “fomos pela praya”. Determina o movimento marítimo. Aqui, o dos batéis; lá, da frota em alto mar. Seu sentido é o de “rota” e nada difere do “caminho” empregado por Álvaro Velho em seu relato da expedição de Vasco da Gama: “E depois que amanheço nom ouvemos vista delle, nem dos outros navios, e nos fazemos o camynho da Jlhas do Cabo Verde como tinhamos ordenado que quem se persese que se segujse esta rota. ... E depois de sermos juntos segujmos nosa rrota...”19 “Caminho” é, pois, “rota” e, tanto para Caminha quanto para Álvaro Velho, é caminho para a Índia, rota para a Índia. Deste modo, em Caminha mostra-se que a frota de Pedro Álvares Cabral seguiu pelo mar longa e demoradamente, “de longo”, porque indica também o longo tempo de viagem desde 23 de março de 1500, nas Ilhas de Cabo Verde, até que topasse sinais de terra em 21 de abril, ou seja, 30 dias, com a inclusão do dia 23 de março. Um mês está em harmonia com a expressa “de longo”, no sentido de demoradamente, longamente. Esta expressão “de longo” acumulava, pois, este sentido como se prova, no português de hoje, com o verbo delongar, que significa “demorar”, e com a expressão sem mais delongas, que significa sem mais demora. Ambos, por si sós, esclarecem a expressão de Caminha. A frota cabralina seguia sua rota para a Índia na extensão dela, no sentido de seu comprimento, de sua lonjura e demoradamente. O caminho, na cabeça de todos, era o caminho programado, o caminho para Calecute, nenhum outro Muito menos para Ocidente. A TERRA ENCONTRADA ESTAVA NO MEIO DO MAR OCEANO Uma constatação irrefutável que se pode fazer na carta de Pero Vaz é de que não sabia ele onde esta quando, junto com os demais companheiros da nau capitânea, inclusive Pedro Álvares Cabral e o piloto Pero Escolar, encontrou sinais de terra. Ele não sabia e os outros também não. De outro modo, não teria porque não dizer isso em sua carta. Só sabiam que estavam a 660 ou 670 léguas de distância de Cabo Verde: “...topamos alguüs synaaes de tera seemdo da dita jlha sego os pilotos 80 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 deziam obra de bje lx ou lxx legoas... (Fol. 1, linhas 29-33). Este trecho é rico em informações sobre a natureza da viagem de Cabral e suas implicações. As 660 ou 670 léguas de distância de Cabo Verde não diz Caminha que tenham sido calculadas pelo pilotos no sentido de “para o Ocidente” ou “para o Sul” ou “para o Oriente”. A inexistência do conhecimento de cálculos para medir longitudes, na cabeça dos pilotos, não apenas na de Pero Escolar, é, segundo se vê da carta de Caminha, um fato. Houve um distanciamento de Cabo Verde dessa ordem. Se Caminha não sabe nada sobre a direção em que se encontravam sinais de terra, há o dado concreto das léguas percorridas e essas léguas estão na rota para a Índia e não fora dela, como vimos. Confirma-se essa crença de Cabral e seus companheiros no seguinte passo de Américo Vespúcio: “...aquelas treze naus navegaram em direção ao sul das ilhas de Cabo Verde, como vento dito entre sul e sudoeste; depois de terem navegado em vinte dias quase setecentas léguas (cada légua são quatro milhas e meia), desembarcaram numa terra em que acharam gente branca e nua – é a mesma terra que eu descobri para o rei de Costela, salvo que fica mais a oriente, sobre a qual já escrevi umq outra minha [carta] – onde dizem que fizeram todo o reabastecimento.”20 As informações de Vespúcio coincidem com as de Caminha, inclusive na distância (quase 700 léguas, no florentino, e 660 ou 670 léguas no escrivão) Tendo ouvido de viva voz o que parte da tripulação de Cabral dizia da viagem que ainda não chegara ao fim. Américo Vespúcio logo relacionou o relatado com sua experiência de 1499 e aí deve Ter desconfiado de que sua descoberta do ano anterior não era apenas de uma terra firma, mas de um continente, de um novo mundo. De fato, após dizer da não existência de cosmógrafo ou de matemático na frota de Cabral e de seu grande esforço – bem empregado, segundo ele – no cálculo de longitudes, Vespúcio afirma: “...espero Ter fama por longo século se voltar com saúde desta viagem.”21 Parece claro que a associação entre falta de cosmógrafo entre os portuRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 81 gueses, confiança em ser um perito em longitudes e certeza de os lusitanos terem pisado a mesma terra que ele descobrira em 1499, tida por ele e pelos espanhóis como terra firme, determinou em Vespúcio a convicção de que comprovaria isso indo, a mando de D. Manuel, à terra nova e que, em conseqüência, viria a Ter grande fama. Os tripulantes de Cabral noticiaram ao florentino o achamento de uma terra nova, que identificavam como ilha e, transpirando isso, Juan de la Cosa colocou essa ilha específica em seu mapa de setembro de 1500. Vespúcio não sabia de Gaspar de Lemos porque, diante dos fatos novos da chegada, em junho, do piloto português a Lisboa com a notícia da descoberta de uma terra nova e com a morte do príncipe D. Miguel em 20 de julho, tinham os reis católicos resolvido proibir, por motivos de segurança, aos estrangeiros de participar, daí em diante, de expedições espanholas às Índias ocidentais. O encontro dos tripulantes de Cabral com Vespúcio em Bezeguiche propiciou a “grandíssima conversação”22 que tiveram e, por isso, a notícia de que se descobrira uma terra, não uma ilha, registrou-a Vespúcio em sua correspondência com o Medici. Este encontro é a única razão plausível para D. Manuel, em sua carta aos reis católicos de 28 de agosto de 1501 (quase três meses após a entrevista de Vespúcio com a gente de Cabral) mudar seu nome de Ilha de Vera Cruz para terra de Santa Cruz e atribuir isso a Cabral. Hoje, com a carta de Caminha, sabe-se não ser verdade tal atribuição. Mudou porque com o encontro africano viu-se que simples ilha não podia ser a terra descoberta. Como Vespúcio já estava a seu serviço, mudou o rei o nome enquanto aguardava o regresso dele. Ao fazer sua viagem ao Brasil a convite de D. Manuel acabou por confirmar Vespúcio a realidade da extensão da descoberta dos portugueses, antes tida por ele, em sua conversação com Gaspar da Índia e seus companheiros, como mero complemento da sua. Escreveu sobre a experiência a serviço de D. Manuel, no ano seguinte, em outra carta, a de Lisboa, ao Medici. Lança então o conceito de terra firme, que certamente amplia no resumo, chamado de Viagem, emprestado ao rei – não se sabe se devolvido. Foi ele a base do Mundus Novus, em que imortaliza o conceito de Novo Mundo. Assim, por justiça, o continente, a partir do Brasil, se chamou América. 82 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 CABRAL, CAMINHA, GASPAR DE LEMOS E MESTRE JOÃO PENSAVAM ESTAR A ILHA DE VERA CRUZ EM MEIO AO MAR OCEANO Antes, portanto, do encontro de Vespúcio com os tripulantes de Cabral, estes não viam na terra nova senão uma ilha. Para eles, como se provará adiante, tratava-se a Ilha de Vera Cruz de ilha oceânica da classe da fantástica ilha de São Brandão ou do Brasil, que o astrólogo Mestre João lembrara existir assinalada num portulano, conhecido do rei, que antes pertencera a Pero Vaz Bisagudo.23 Existe uma prova material de que essa era a opinião de Cabral e dos participantes de sua expedição. É o conhecido mapa de Juan de la Cosa. O mapa, feito entre julho e outubro de 1500 pelo companheiro de navegações de Vespúcio e Hojeda, leva, com base em informações de pilotos a serviço da Espanha,24 a até conhecida costa da América do Sul bem mais para o oriente do Oceano Atlântico, sendo seguida, imediatamente e na mesma direção, por duas ilhas. A Segunda é a ysla descubierta por portugal.25 . Nessa época, todos na Espanha, inclusive Colombo, Pinzón, De La Cosa e Vespúcio, acreditavam ser a costa da América do Sul uma continuação da Índia.26 Desse fato decorre a forma do mapa de De La Cosa, como uma península que entrava bem dentro do Mar Oceano. Assim, o traçado da costa não pode ser motivo de controvérsias. É uma evidência em si mesma e seu prolongamento, com a Ilha de Vera Cruz a certa distância da ponta dessa península, reflete as recentíssimas informações obtidas pelo prestigiado cartógrafo espanhol. De fato, Gaspar de Lemos chegou a Lisboa em junho de 1500 e em junho/julho o fato já era conhecido dos reis católicos. Coincidindo isso com a morte, acima mencionada, do menino D. Miguel, futuro herdeiro das coroas reunidas de Portugal, Castela e Aragão e filho de D. Manuel com D. Isabel, filha de Fernando e Isabel. Em 20 de julho de 1500, examinaram estes a segurança de sua política com Portugal. Uma das providências foi a relativa aos estrangeiros. Outra foi organizar uma imediata expedição, a cargo de Alonso Vélez de Mendonza, para reconhecer e fixar a descoberta de Cabral dentro do Tratado de Tordesilhas. Entre fins de agosto e inícios de setembro partiu Vélez de Mendonza.27 Como Juan de la Cosa em outubro já estava de volta à Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 83 América (expedição de Rodrigo de Bastidas, 5 de outubro de 1500), seu mapa foi elaborado entre julho e fins de setembro, mais provavelmente logo antes do início da viagem de Vélez de Mendoza. Daí decorre que a ysla descubierta por portugal foi posta no mapa com base em informações obtidas, direta e indiretamente, do próprio Gaspar de Lemos, único capaz de dá-las àquela altura. Os índios, pela De La Cosa, eram tão conhecidos que poderia até têlos visto de novo em Palos, onde já havia, desde uma semana antes de seu retorno à América, 36 deles, um dos quais língua, trazidos da margem esquerda da embocadura do Amazonas por Pinzón semanas antes de Cabral Ter descoberto a Ilha de Vera Cruz. Como Diego de Lepe chegou à Espanha na primeira quinzena de agosto e Pinzón em fins de setembro, é mais certo que Juan de la Cosa tenha elaborado seu manuscrito-mapa em fins de setembro, mas ainda sem o conhecimento direto da viagem de Pinzón e dos 36 índios que trazia como escravos. Tivera pois todas as possibilidades de saber, primeiro, da descoberta da Ilha de Vera Cruz entre fins de julho e princípios de agosto e, depois, das descobertas de Diego de Lepe, que relatou as de Pinzón (Segunda quinzena de agosto).28 Representar De La Cosa, no meio do oceano, a ilha de Cabral é indício de que este não tinha a menor idéia de que aquela gente que via, com os olhos de Caminha, com tanta surpresa, já era conhecida dos espanhóis. Se Caminha dá a entender que se achara uma ilha na rota para a Índia e no meio do oceano, se Mestre João Dizia isso claramente ao lembrar o portulano de Bisagudo e Gaspar de Lemos relatava que se achara uma ilha nessas condições, é porque para os portugueses se tratava mesmo de ilha oceânica.29 No mapa, a ilha está em pleno oceano e na direção da costa nordeste do Brasil, muito avançada no mar. Torna-se o traçado de Juan de la Cosa, como antes adiantamos, a prova concreta de que Cabral, Caminha, Mestre João, Gaspar de Lemos e demais participantes da expedição acreditavam ser a Ilha de Vera Cruz realmente uma ilha dentro do Mar Oceano, descoberta na rota, em que julgavam achar-se, para a Índia. A seguir, uma representação da viagem de Cabral segundo nossa interpretação. 84 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 PORQUE A ILHA DE VERA CRUZ, DE CABRAL E CAMINHA, TORNA-SE A TERRA DE SANTA CRUZ, DE D. MANUEL Lembramos, acima, como Caminha considerou a aguada que se pudera fazer na terra nova um recurso para se pular, então, a etapa de São Brás e compensar o tempo que se perdera com a arribada na ilha batizada como Vera Cruz. Para a estratégia das futuras missões à Índia poderia ser a terra descoberta, na visão de Caminha/Cabral, de interesse para o rei. Essa aguada logo provou ser inexeqüível, ocorrendo só por força maior e culminando, devido a seus perigos e custo, por ser proibida.30 Seu conceito, todavia, está ligado não só ao nome a ser dados à terra descoberta mas à própria natureza desta. A indicação de D. Manuel, na carta escrita aos Reis Católicos em 29 de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 85 julho de 1501 (versão espanhola), de que a terra descoberta seria, no futuro boa aguada para as naus que demandassem a Índia, deve ser colocada no contexto da tentativa do rei de entender o que Cabral, recém-chegado de sua semi-fracassada viagem, realmente encontrara, se ilha oceânica ou algo mais importante. Até 5 ou 10 de março de 1501, quando, para aproveitar as monções de março, próprias para a missão da Índia, mandou João da Nova na terceira expedição das especiarias e para saber o que acontecera a Cabral, sua idéia sobre a localização da ilha descoberta era a mesma de Gaspar de Lemos, que foi o primeiro a comunicar o fato, e do próprio Cabral, ou seja, de que se tratava de ilha oceânica. No regimento de João da Nova, de 4 de março de 1501, cerca de nove meses após a chegada de Gaspar de Lemos, emprega o rei ainda a denominação Ilha da Cruz. A chegada a Lisboa, em 23 de junho de 1501, da primeira nau de Cabral, a Anunciada, com tripulantes que estiveram, durante onze dias, com Vespúcio em Bezeguiche, saído este de Portugal em 13 de maio para sua missão de andar a ilha de Vera Cruz, colocaram o rei em dúvida porque Vespúcio dissera a esses tripulantes, principalmente a Gaspar da Índia, que a terra nova era continuação da sua, em que estivera em junho-setembro de 1499. E D. Manuel certamente sabia dessa viagem de Vespúcio ao incerto Ocidente, de outro modo não o colocaria a seu serviço fazendo parte da esquadra de três navios, comandada por Gonçalo Coelho, que mandara a explorar a misteriosa Ilha de Vera Cruz para terra de Santa Cruz. Depois que, com o retorno de Vespúcio, se confirmou não se tratar de ilha mas de terra situada em um novo mundo, que continuava aquele que os espanhóis estavam explorando a Ocidente, D. Manuel mandou imediatamente outras expedições exploradoras à terra nova mas não as frotas que fossem para a Índia, que foram instruídas a não aportar na costa brasileira. Dessa circunstância se conclui que João da Nova não esteve no Brasil. Seu regimento falava de uma Ilha da Cruz, que, por força mesmo deste nome, ainda era tida por D. Manuel, em março de 1501, como ilha oceânica. Seguindo João da Nova para a Índia, não encontrou naturalmente essa ilha porque na rota de Vasco da Gama, a volta do mar, não estava ela. Este fato leva à conclusão de que Vespúcio, comandado por Gonçalo Coelho, fez, como este, parte da expedição prevista no regimento de João da Nova. Compunha-se ela de sete naus, sendo três destinadas a explorar a terra nova, ou ilha, descoberta por Cabral. Era uma viagem financiada pelos banqueiros italianos (D. Manuel estava sem recursos financeiros suficientes devido ao alto custo da frota de Cabral). Não se pode estranhar, por isso, 86 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 que o principal da frota partisse em março e o restante, com o florentino, em maio. Américo Vespúcio, assim, não mentiu nem assumiu ações alheias. Prestou apenas notável serviço a D. Manuel e ao mundo com a força de seu magnífico espírito renascentista, que lhe permitiu ver o que ninguém vira. Daí sua glória. *Professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ex-Estagiário da ESG - 1981 NOTAS: 1 V. especialmente: O DESCOBRIMENTO das índias: O diário de viagem de Vasco da Gama (escrito por Álvaro Velho, século XV). Introdução, notas e comentários finais de Eduardo Bueno; texto em português arcaico segundo a edição de 1838 de Diogo Kopke; tradução e adaptação para o português moderno por Ângela Ritzel. Rio de Janeiro. Objetiva, 1998. 190 p. PERO Vaz de Caminha. Carta do achamento do Brasil. 5ª ed. Estudo crítico de J.F. de Almeida Prado: texto e glossário por Maria Beatriz Nizza da Silva; transcrição atualizada da carta por Silvio Castro. Rio de Janeiro Agir, 1998.200 p. BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. A verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro, Objetiva, 1998. 140 p. FONTANA, Riccardo. O Brasil de Américo Vespúcio. Tradução de Edilson Alkmin Cunha e João Pedro Mendes. Brasília, Editora da Univ. de Brasília, 1995, 218 p. E http://geocities.com/Athens/Crete/ 7424/index.html, que é nosso site pessoal. 2 ABREU, João Capistrano de. Vaz de Caminha e sua carta. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1908, tomo LXXI, 2ª parte p.290. 3 SOUSA, T.O. Marcondes de. O descobrimento do Brasil. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1946. GREENLEE, W. Brooks. The voyages of Pedro Álvares Cabral to Brasil and Índia. Londres. The Harkluyt Society, II série, vol. 81, 1938. NEIVA, Rubens Viana. Ensaio de crítica náutica sobre a viagem transatlântica de Pedro Álvares Cabral. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 287: 36-76. 4 Na transcrição que faremos de trechos desses documentos, o tema indica o traço de abreviatura usado originalmente para indicar nasalidade ou simples abreviatura. Um traço, a preceder as vogais [e], [i], [u] ou, ainda, certas consoantes tem a mesma função. Traços que cortam as letras q, d ou outras não são indicados pelo caráter óbvio da abreviatura. A transcrição peleográfica é a de CORTESÃO, Jaime. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo, 1943, entre as páginas 132 e 193. Onde houver divergência, isto se deverá às correções feitas pelo Prof. Sílvio Batista Pereira (PEREIRA, Silvio Batista, Vocabulários da Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio, INL, 1964. P.X.) ou por nós mesmos. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 87 5 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. A carta de Pero Vaz de Caminha. In: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL, Porto, Litografia Nacional, 1923, t. II, p. 86, nota 1. 6 “Item in qsti zorni che stemo q determino el capo afare a sapere al nro serenissimo Re la trouata de qsta terra: e d lassar in esta dui hoi banditi e giudican ala mrte ch haueuamo i dca armata a tal effecto: e subito el dco capo dispacio uno nauilio che haueuano cu loro cu uictuaglia a qsto oltra le. Xii. Naue sopradicte: el qual nouilio por le Ire al Re in la qual sicõtineua qnto haueuamo uisto e discopto.” (FRANCAZANO da Montalboddo. Paesi nuovamenti ritrovati. Et Novo Mondo da Alberico Vespucio Florentino intitulado, Secundo libro. Vicentia. 1507. Cf. fac-símilie em HISTÓRIA, op. cit. Acima, nota 5. P. 116.). 7 CORTESÃO, Jaime. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo. 1943 p.89. 8 ABREU, João Capistrano de. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro, Sociedade Capistrano de Abreu, 1929, p. 291. 9 Os dados estatísticos exatos podem ser encontrados na edição paleográfica do texto que fizemos, encontrável em nosso site pessoal: e http://.geocities.com/ Athens/Crete/7424/index.html. 10 Notemos, nesta frase, que a silepse de gênero e de número presente no contrate entre “tanta gente” e “como os domtem cõ seus arcos e seetas” evidencia que até o início da missa desse dia 26 havia uma preocupação com os índios homens, preocupação de segurança esta que desapareceu durante e após a celebração de Frei Henrique. Significativamente, a palavra “arco”, sozinha ou associada a “seeta”, é empregada por Caminha 18 vezes até o dia 26 e apenas 8 do dia 27 em diante e “seeta” 11 e 3. Respectivamente. 11 Esta última frase não tem sido avaliada em seu sentido correto. Se Caminha tivesse desejado mencionar o fato único de dois grumetes terem deixado a frota para ficar no Brasil, teria usado o advérbio “também” (ou “ tam bem”, “também”), que empregou oito vezes ao longo da carta. Com relação aos sentidos de “mais”, termo 16 vezes usado pelo escrivão, em nenhum caso o foi como pronome adjetivo indefinido, equivalente a “outros”. Só aqui, neste exemplo. (Cf. PEREIRA, op. cit. Acima, nota 4, p. 69 e Grande Dicionário Aurélio, s. v. mais, acepção 13). Em conseqüência. Pero Vaz noticia que outros grumetes, além destes, se evadiram dos navios. O número de pessoas que ficaram no Brasil quando aqui chegou Pedro Álvares é superior ao de quatro homens como até agora se acreditou. 12 A prática de se levar escrivão a bordo dos navios, principalmente o capitânea, já existia na Espanha nessa época. Em cada uma das quatro naus de Vicente Yáñez Pinzón havia um. Deles restou o nome de Garcia Hernández, físico de Palos. Estiveram presentes à tomada de posse, em Rostro Hermozo, das terras descobertas por Pinzón no nordeste do Brasil depois de 26 de janeiro de 1500. Cf. MANZANO, Juan & MANZANO FERNÁNDEZ-HEREDIA, Ana Maria. Los 88 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Pinzones y el descubrimiento de América. Madrid, 1988, tomo I, p. 241-242. 13 NEIVA, op. cit. acima, nota 4, p. 51. 14 Duarte Pacheco Pereira, em seu Esmeraldo de situ orbe, confirma o que se depreende do texto de Caminha: antes de Cabral não navegara nenhum português em direção às terras, na América do Sul, abaixo do Equador que os espanhóis vinham percorrendo havia alguns anos. O “donde nos Vossa Alteza mandou descobrir” de Pacheco indica apenas que, em 1498, D. Manuel, iniciada a viagem de Vasco da Gama decidiu que o Ocidente também seria navegado no futuro pelos portugueses. Nada mais. A única viagem que se poderia vagamente associar a esse ano de 1498, no texto confuso, copiado mais de duzentos anos após o tempo do original e repleto de anacolutos, é a que teria realizado Gaspar CorteReal a algum lugar antes do ano de 1500. Há indícios dela numa carta de doação de 12 de maio de 1500, de D. Manuel a ele. Retornando ele de sua desconhecida viagem em 1499 e Vasco da Gama, no mesmo ano, mandou o rei Corte Real ao Atlântico Norte e Pedro Álvares Cabral à Índia. Ambas as viagens se realizaram com três meses de diferença. Da de Cabral, resultou o achamento, acidental como se viu, de uma terra de onde todos os anos, até o momento em que escrevia Pereira – e esta é a Segunda e última certeza de seu texto – chegavam muitos navios carregados de pau-brasil. Não há, portanto, nenhuma procedência nas ilações de Jorge do Couto (Portugal y la Construcción de Brasil. Madrid, Editorial Mapfre, 1996, p. 174-184) sobre o texto de Pereira, mal escrito ou mal transcrito pelo diplomatista da primeira metade do século XVIII. São argumentos muito antigos, defendidos primeiramente por João de Andrade Corvo nas notas ao texto insertas em seu Roteiro de Lisboa a Goa, por D. João de Castro (Lisboa, 1882, p. 98) e negados por um historiador nacionalista luso, Duarte Leite. 15 Se ainda restassem dúvidas quanto à surpresa de Caminha e seus companheiros, bastaria ver que, no mapa de Cantino, de outubro de 1502, reconhecidamente feito com base em desconhecido traçado de cartógrafo português – de 1500 a 1512, portanto – acha-se frase muito parecida com a do escrivão: “...quatorze naos que o dito Rey mandaua acaliqut y en el caminho indo, topou com esta terra...”. O encontro foi inesperado por Cabral “topou com esta terra”. Pensavam assim os portugueses dois anos depois da descoberta e isso continuou pelos tempos afora. Caverio pôs o mesmo texto em seu mapa de 1504. 16 RIBEIRO, João. O Fabordão, Rio, 1964, p. 228. 17 VASCONCELOS, op. cit. acima, nota 5, t. II, p.87, nota 8) 18 CORTESÃO, Jaime. A carta de Pero Vaz de Caminha, São Paulo, 1943, p.265. 19 Cf. O DESCOBRIMENTO das Índias, op. cit. acima, nota 1, p. 163. 20 FONTANA, Ricardo. O Brasil de Américo Vespúcio. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1994, 1995, p. 135. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 89 21 SOUZA, op. cit. acima, nota 3, p. 341. 22 Ibidem, p. 340. 23 Em seu Reinventando o descobrimento (Natal, 1998, p.20 125 e 126), o historiador Lenine Pinto, para melhor entendimento desse mapa-mundi de Pero Vaz Bisagudo, recupera uma citação esquecida de Assis Cintra, apresentada em sua edição de Pero de Magalhães Gandavo (Nossa primeira história, São Paulo, 1922, p. 12). Nela Pedro Álvares Cabral, em documento da Torre do Tombo, diz na linha de Mestre João: “... em obidiência a instruçam de vosa alteza navegamos no Ocidente e tomamos posse, como padram, da Terra de vosa Alteza que os antiguos chamavam Brandam ou Brasil.” Em vão procuramos a fonte desta citação em bibliotecas e arquivos. Não cremos ser documento honesto. Parece-nos muito moderna sua sintaxe e suspeita a presença da expressão “com padram”, tendo em vista que Cabral não trazia padrões em seus navios, inclusive no de Gaspar de Lemos. 24 Provavelmente Diego de Lepe ou seu companheiros. Cf. MANZANO MANZANO, op. cit. acima, nota 12, tomo I, p. 339. Juan de la Cosa imaginou a costa percorrida, a partir de fins de janeiro de 1500, por Pinzón e Lepe entrando fortemente no Mar Oceano, com a nova “ysla decubierta por portugal” ao fim dela e a região sul do cabo de Santa Maria de la Consolación (Santo Agostinho) em simetria com o que era o contorno da África na mesma latitude. Enquanto a costa desta se desviava para o oriente, a imaginada por De La Cosa o fazia para o ocidente 25 Não acreditamos ser a Segunda ilha, a ysla descubierta por portugal, necessariamente uma inserção posterior, porque Diego de Lepe e não Gaspar de Lemos pode, em sua viagem atrás de Pinzón, Ter visto a primeira, Fernando de Noronha, como prolongamento da costa, sendo ambos, costa e ilha, exagerados longitudinalmente em suas dimensões. De La Cosa teve, então, de ajustar esse fato à notícia de descoberta de outra pelos portugueses e colocou-a também em continuação, só que bem dentro do oceano para atender ao que seria transpirado de Gaspar de Lemos. Em junho/julho de 1500 os reis católicos souberam da chegada de Gaspar de Lemos. Logo organizaram uma expedição de verificação, a cargo de Alonso Vélez de Mendoza, e proibiram a presença de estrangeiros nela. 26 Como ninguém mais duvida da autenticidade da carta de Vespúcio de 4 de junho de 1501 e como nela, ao falar da descoberta portuguesa, refere-se o florentino à carta de 28 de junho de 1500 sobre sua viagem de 1499-1500 à América, não se pode mais duvidar de que pisou terras brasileiras por volta de 27 de junho de 1499 (Cf VARNHAGEN, Francisco ª de. Amerigo Vespucci. Lima, 1865, p. 103). Descobriu a costa brasileira até o Rio Grande do Norte em 1499, sendo prova disso os documentos descobertos nos arquivos da família Duque de Alba. Separou-se na viagem das naus comandadas por Alonso de Hojeda e Juan de la Cosa a 200 léguas a sudeste de Paria, na Venezuela, continuou no rumo sudeste, 90 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 e Hojeda seguiu para noroeste. 27 MANZANO MANZANO, op. cit. acima, nota 12, p. 450-452. Ramos Perez, Demetrio. Audacia, negocios y politica en los viajes españoles de descubrimiento y rescate. Vallodolid, 1981, p. 113. 28 MANZANO MANZANO, op. cit. acima, nota 12, tomo I, p. 429-430 et passim. 29 Não há mais dúvida alguma sobre a viagem de Vicente Yáñez Pinzón ao nordeste brasileiro em janeiro de 1500, até o cabo de Santo Agostinho, chamado por ele de Santa Maria de la Consolación, com base nos argumentos que vêm de Capistrano de ABREU (O descobrimento do Brasil, 1929, p. 29-46) a Juan Manzano MANZANO (op. cit. acima, nota 12, p. 297), passando pelos de Max Justo GUEDES (História naval brasileira Rio, 1975, p. 208-209 et passim). Dada a grande semelhança de traçado longitudinal entre a primeira ilha do mapa de Juan de la Cosa e a ilha de Fernando de Noronha, a descoberta visual desta e do cabo deve creditar-se ao paleño da rota de chegada. O desembarque, com tomada solene de posse verificou-se em Rostro Hermozo ou, coincidindo ou não com este, a 3º42´ na ponta do Macuripe, perto de Fortaleza, na estimativa de Guedes. Por causa dessa viagem. De La cosa assinala em seu manuscrito-mapa a descoberta portuguesa como continuação da costa prolongada da América do Sul e isso logo abaixo da legenda em que o cartógrafo diz da descoberta de Pinzón. Sendo assim, a ysla descubierta por portugal é parte do desenho original do mapa e só pôde Ter sido incluída com base no que transpirou, antes de outubro de 1500, da viagem de retorno de Gaspar de Lemos. A costa leste do desenho desta ysla lembra um pouco, com suas duas reentrâncias e a ponta de nordeste, o litoral brasileiro desde Porto Seguro até Pernambuco. De qualquer forma, as duas ilhas são acidentes bem distintos na representação gráfica, participando a primeira da aparência geográfica do nordeste da América do Sul como era visto por Vespúcio (...salvo que fica mais a oriente...) e os espanhóis. Isso indica que Gaspar de Lemos não viu Fernando de Noronha. Ele, Mestre João, Caminha e Cabral tinham a terra nova descoberta por Cabral como ilha situada em pleno Mar Oceânico. 30 A afirmação de Duarte Leite no sentido de que Vera Cruz “tornou-se, a partir de sua descoberta uma escala quase obrigatória para as armadas” (Cf. HISTÓRIA, op. cit. acima, nota 5, tomo II, p. 251.) é destituída de fundamento e desmentida por tese orientada por Sérgio Buarque de Holanda (Cf. LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, 382 p. No caso, p. 3-6.). Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 91 Jayme Magrassi de Sá* Conferência pronunciada no I CEADC, em 9 de agosto de 1999. Por uns minutos convido-vos a viver de reminescências. Proponho que fechemos figurativamente os olhos deixando que a memória ou a mente se reporte a 50 anos atrás. Uma rápida e virtual viagem a um passado que viu nascer transformações assinaláveis no país e no exterior, projetadas em seu futuro imediato e desdobrando-se, na marcha do tempo, sobre os destinos da humanidade e de nossa pátria. Pretendo convosco colaborar nessa tourné pretérita, assinalando alguns marcos da trajetória percorrida ao longo de determinado período; mas sem cansá-los com detalhes dispensáveis e sem fazer desta palestra simbiose de uma peça de novela ou de um script para roteiro de perquirição histórica. Buscando, porém, transmitir-vos a visão de um observador, mais atento do que capaz; mais sentimental do que especialista; mais autêntico do que ilustrativo. Se não obtiver êxito nesse intento, terei combalida minha pretensão de expositor, e sobretudo meus anseios de convicto servidor desta egrégia escola. O mundo na segunda metade dos anos 40 caracterizava-se por dois fenômenos condicionantes - a grande destruição existente, provocada por um conflito armado de quase seis anos initerruptos e a fase que se seguiu imediatamente, denominada de “dollar shortage”, resultado da posição dominante em que os estados unidos da américa emergiam daquele período negro da história mundial. O mundo todo devia àquele país e dependia do explendor econômico que a guerra lhe havia outorgado, livre que esteve seu território continental de qualquer ação destrutiva. Ao contrário, sua mobilização para guerrear além fronteiras agiu e foi de fato uma fatoração de colossais investimentos de cunho promocional. A demanda de dólares comandava, no mundo ocidental, todas as formas de relacionamento econômico e comercial. Tudo dependia da vontade do governo norte-americano e da capacidade de alcançarem-se meios que tornassem factíveis encontros de interesses e superação de vicissitudes. Foi árdua a composição ao longo de um panorama 92 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 marcado pelo caos, de um lado, e pela reconversão da guerra para a paz, de outro. Nesse período, de pouco mais de um lustro, ao mundo se impôs tomar plena consciência das dificuldades de relacionamento externo, dos efeitos da grande destruição estrutural e sobretudo de como seria possível retornar à vida do quotidiano sem a exigência avassalante de canhões, aviões, navios armados, Exercitos colossais. Enfrentando, ademais, os efeitos de transumâncias no sentido inverso das que ocorreram entre fins de 39 e meados de 45. Conceberam-se aí - e faço questão de sublinhar a palavra conceberamse - dois momentos: 1°) a execução do plano marshall, o grande veículo da reconstrução, a abrangência operacional da onu, a viabilização de bretton woods e os acordos bilaterais de comércio e pagamentos, sem os quais tudo tendia à paralização no plano internacional; 2°) figurações e traçados de natureza política para reordenação de fronteiras e áreas geo-econômicas de influência ou de protetorado, maquiado ou não. A segunda metade da década dos 40 foi, portanto, não só um rescaldo do cessar-fogo, mas um tempo de análise e conscientização da problemática que a ii guerra mundial havia gerado ou agravado na comunhão política e econômica do mundo que diríamos de espectro popularmente conhecido até então, isto é, na configuração cartográfica das fronteiras denominadas de geográficas, algumas das quais produto do tratado de Versailles de pós - I Guerra Mundial. A década dos 50 foi, toda ela, marcada pelo estado de esfacelamento da Europa e Japão e pela responsabilidade dos Estados Unidos da América de os reconstruirem econômica e operacionalmente. Reconstrução que alcançou até formas de relacionamento no contexto internacional, definindo-as institucionalmente e conformando-as, política e comercialmente, à luz da situação de caos prevalecente, de seus próprios objetivos e do surgimento de um poder militar de certo modo novo ou revitalizado pela contenda - a União Soviética. Ao longo de duas vertentes se desenvolveram as conversações entre Estados Unidos da América, Inglaterra e URSS para reorganizar o mundo à época chamada de o pós-guerra, então compulsoriamente sob a hegemonia dos três. A primeira vertente dizia respeito à ordem econômica e concebia o combate às restrições no comércio multilateral e aos fluxos financeiros de capital privado. Uma quase prévia condenação dos acordos bilaterais. Com essa vertente, ou ao que dela resultou, a União Soviética não se solidarizou. A segunda vertente ligou-se ao redesenho, mas nem sempre à fixação das Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 93 fronteiras do nóvel e figurativo mundo geo-político; e aí a União Soviética teve grande presença, sobretudo no lado oriental do velho continente. Tornouse, na verdade, por muito tempo, um fator de ameaça, de balanceamento compensatório e de desafio aos outros dois hegemônicos. Em larga margem, dessas conversações nascia o sistema posteriormente conhecido como produto do estabelecido pela carta de São Francisco, pelos acordos de Bretton Woods e pelo advento retardatário do Gatt. Longo o período de influência e duração desse conjunto de decisões sobre a ordem econômica que sucedera à desordem do imediato pós-guerra; conjunto que também não logrou satisfatória ordenação. O redesenho das fronteiras resvalou para estremecimentos que, aos poucos, foi deslizando para a chamada guerra fria. Em 1947, o presidente Truman anunciava oficialmente, num discurso frio e contundente, a bipolarização. Um lustro depois eclodia a guerra da Coréia com novos e prolongados tremores no panorama mundial. o curso da contenda de hegemonias só viria a esgotar-se em 1990. Mas o que se denominou, depois de São Francisco, de nova ordem econômica, não conseguiu conceder aos fluxos de comércio e de caráter financeiro um sentido efetivo de recomposição; muito menos de desenvolvimento equitativo no cenário mundial. Se a Europa do ocidente via seu futuro pela ótica generosa do plano Marshall, os países subdesenvolvidos, alguns dos quais são hoje conhecidos como emergentes, começaram a perceber que sua sorte e seu futuro não estavam ao abrigo dos esquemas aprovados e postos em execução pelos dois hegemônicos da banda ocidental. ao contrário, o desgaste econômico que sofreram agravara-se de modo forte e seguro, agora com os desfavores de uma relação de comércio e capitais bastante ativa no manter sua inferiorizada posição relativa, suas deficiências e insuficiências estruturais: mais do que isso, sua progressiva dependência não só de adversa relação de trocas, como das decisões do capital privado, inarredavelmente inspirado e guiado pelo objetivo exclusivo do lucro. A guerra da Coréia agravou de certo modo essa realidade madrasta e na sua esteira adveio o que se pode denominar de grito de desespero dos esquecidos ou subalternizados, grito secundado por ações defensivas e claramente de inconformismo. disso resultaram, no plano político mundial, as comissões econômicas da onu e no plano hemisférico, o banco interamericano de desenvolvimento - o BID, na verdade surgindo como um complemento operacional da organização dos estados americanos - a OEA . 94 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 No caso da América Latina, a comissão econômica da ONU notabilizouse sob a sigla cepal, tornando-se a mais importante de todas. O brado dos subdesenvolvidos, atitude para a qual, o Brasil, por sua diplomacia, teve participação relevante, sucedia aos primeiros estudos acadêmicos realizados sobre posições econômicas relativas no contexto mundial, estudos fundamentalmente de autoria de economistas suecos, como Myrdal , Ohlin e outros, revelando que não mais seria possível a conformada submissão a totens sociais que resguardavam, para alguns, os benefícios do poder, da prosperidade e da conquista do futuro. A esquematização calcada na inconversibilidade de algumas moedas e na sujeição a fluxos financeiros comandados de fora foi, aos poucos, sendo subvertida, derrubando a prática dos acordos bilateriais de comércio e pagamento e, bem assim, a figura do alinhamento automático a posições adotadas na cena política externa e comandadas pelos hegemônicos ocidentais. a guerra, por seus sacrifícios, ensinava também através da desventura e da própria dependência que durante o conflito se formara. Revelava de modo claro o quanto as realidades do relacionamento internacional acabaram por condicionar e estratificar posições sob o império das disparidades econômicas e, consequentemente, sociais. O mundo político e econômico de então ruíra em suas concepções; e o colonialismo que dele fazia parte sob diversas formas começava a provocar reações e a transformar atitudes, visões e comportamentos; rebeldia nem sempre pacífica e ordeira. A comoção fôra forte demais e nenhum país pode escapar a seus efeitos, diretos ou indiretos, o que se tornou ainda mais imperativo quando a guerra da Coréia revelava que a grande conflagação de 39 a 45 não fora bastante para imprimir novos módulos de reciprocidade e levar a uma consideração mais equânime dos vários partícipes do concerto universal. Um aspecto tornouse então decisivo. Nesse concerto, todos se envolviam solidariamente nas horas de aflição e de destruição, mas poucos se beneficiavam das benesses da ordem resultante e das reconstruções, reconversões e novos estatutos de relacionamento econômico e político. Algo de novo e bastante profundo pronunciava-se no horizonte mundial. O Brasil não escapava - e não queria mesmo escapar - desse renascer. Sua recusa a participar militarmente da guerra da Coréia levou ao congelamento de créditos que tinha no exterior, recebendo, ademais, a seguinte posição oficial norte-americana: 1°) o Brasil deveria procurar ampliar suas fronteiras Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 95 internas de financiamento antes de solicitar ajuda do governo norte-americano; 2°) deveria distinguir entre seus programas de reequipamento e seus programas de desenvolvimento, sendo que para estes últimos - programas de desenvolvimento - o interlocutor deveria ser o banco mundial; e 3°) o Brasil deveria ter presente que seu desenvolvimento, em última análise, dependeria da habilidade de criar um clima favorável ao ingresso de capitais privados. consumiase, pois, em nada a contrapartida do esforço Brasileiro para a vitória dos chamados aliados contra as forças do eixo. Mas, aprendemos a lição e passamos a olhar o mundo e o espectro das relações internacionais com outro enfoque. Custou-nos bastante, mas foi válido. A década dos 50 trouxe também uma realidade, senão nova - e não era nova - bastante diferente daquilo que nos habituáramos a ver como fenômeno distante no espaço e mesmo no tempo - o extremo oriente. Japão, China e toda a franja asiática conformavam, aos nossos olhos, um horizonte tão ou mais longínquo do que a própria distância geográfica que nos separa. Esse segmento do mundo, para nós então envolto em brumas, breve revelaria outra paisagem política e econômica, transformação cujas origens estavam na II guerra, no pós-guerra imediato e na eclosão de rupturas que ocorreram ou se iniciaram na década dos 50. Também para nós no Brasil isso ensejou nova visão, chamando-nos à verificação de que habitavamos e compunhamos um mundo econômico muito além das nossas raízes européias e de nossas estritas e crescentes vinculações com o norte do hemisfério. Esse alongamento de ótica foi-nos fecundo, posteriormente. Todo esse panorama levava-nos naturalmente - e nos levou - a prescrutar o futuro, a ascutar nossa realidade e as perspectivas de uma nação jovem mas já com bagagem de conquistas inequívocas. Pensávamos, sentíamos e pulsávamos por uma renovação. Despertavamos e subliminarmente buscávamos um caminho. Caminho que começava por dentro de nossas fronteiras e cuja identificação mobilizava, no curso de seus processo, a capacidade de examinar e julgar o papel que tínhamos no ordenamento mundial e aquele que na verdade deveríamos ter; e que mais, bem mais poderíamos ter, se materializássemos o poder que naturalmente fluiria do aproveitamento racional de nossas potencialdiades. Enfim, um caminho que jungisse passado e futuro, posição interna e seus reflexos externos, tempo de analisar e tempo de realizar, de conjugar forças e de agregar poder na 96 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 forma de contínuo desenvolvimento econômico, social e político. Não era fácil encontrar esse denominador de energias criadoras. E não o era, como não foi, dadas as frustrações que se acumularam na cauda da revolução de 30, nos arrepios de 32, nos cuidados sociais que sucederam ao putch comunista de 35 e integralista de 38 e por vibrações que emanavam de pruridos supostamente regionalista e que a prática política doméstica não se mostrava habilitada a conduzir sob formas mais amadurecidas do que as resultantes de simples composições, rotuladas de virtudes partidárias. Onde pontificavam o bacharelismo anódino e o jogo de politiquices - administradas - pelos desvãos de um inerme setor oficial, desprovido de estruturação mais ordenada, muito aberto à absorção de aspirações personalistas. E muito mais afeito a conventículos armados segundo as conveniências da hora e das circunstâncias. Nesse campo das ariticulações alcunhadas de políticas, as forças de renovação esboroavam-se ante a reação de hábitos arraigados, de soluções aparentes ou de medidas de conveniência. Medidas que ora traduziam matreirice, ora habilidade de descarte, ora despistando revindicações ou demandas com retóricas maquiadas de sedução implícita e de ilustração revestida por reluzente oratória. Era um cenário composto de quadros justapostos, que refletiam, alguns deles, o sentido ou o ardor da busca do novo; outros, o ranço anquilosado de um passado de turbulências mais periféricas que reais; outros, enfim, o rejeito, a malemolência e a sorrateria falácia da defesa do bem viver popular. Até por isso impunha-se uma renovação. E renovação com “R” maísculo, já que, para os setores mais esclarecidos da estrutura social, a sucessão de eventos políticos, com ou sem fundo ideológico ou de caráter seccionista, ou mesmo, de comportamentos éticos e morais, mostrava não mais terem êxito tentativas viciadas. Viciadas porque desprendidas de um movimento vertical de habilitação e reconhecimento da realidade nacional, suas exigências e seus reclamos; mas sobretudo suas aspirações e sua capacidade de renovar-se alçando-se a outros patamares de evolução e progresso. O reconhecimento desse Brasil já de 450 anos foi o ponto de partida para um movimento inicialmente de contatos, de identificação, aferição e demarcação de veredas. Movimento de amálgama, para formar sólida corrente de vontades e determinação. Subsequentemente, de ideário e formalização do instituto que abrigaria esse espírito de devoção cívica e de ânimo realizador. O Brasil dos anos 40 podia orgulhar-se de ter assegurado sua unidade ao Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 97 longo de seu vasto território. Podia orgulhar-se de ter amalgamado etnias e culturas, de ver em avançada formação uma tipologia nacional e de estar civilizando os trópicos; até mesmo de estar plantando em áreas internas ínvias o espírito de Brasilidade sob o pendão verde-amarelo. Consequências, todas, de uma composição de energias, que haviam absorvido os autóctones, os descobridores, os invasores, os imigrantes e até forasteiros e adventícios. Consequências também de implícitas aspirações de grandeza sob os signos da autenticidade, da independência, autonomia de decisões e patriótica afirmação cultural. De um pacifismo consciente como forma de convivência externa. Em menos de quinhentos anos atingíramos a postura de nação soberana em todos os sentidos, partindo de um simples aportamento que não nos trouxe, como colônia, o benefício de um progresso transmitido, nem mesmo de evolução desejada; menos ainda de evolução permitida. Éramos, sim, uma nação com realizações e conquistas meritórias, mas com problemas e questões de largo vulto, fortes demandas sociais e sensíveis comandamentos e aspirações de ordem econômica e de rumos políticos. Nação em que as potencialidades e a riqueza efetiva não se embricavam ainda. Éramos uma economia de modestas dimensões como poderão ver nos números que arrolei (e os quais não submeti a correção de valores nominais pois isso seria bastante precário dado o período de 50 anos e as peripécias cambiais e de moeda ocorridas nesse meio século). Flashs do Brasil - 1949 Produto Interno Bruto - 229,9 milhões de cr$ Produto Interno Bruto - Per Capita - 4,5 de cr$ População - 50.758.000 habitantes Taxa de Crescimento - 3.4% ao ano Formação Bruta de Capital: 34,1 milhões de cr$ A) Poupança líquida do setor privado - 11,5 milhões de cr$ B) Depreciação de capital fixo C) Poupança do governo - 9,0 milhões de cr$ D) Déficit do balanço de pagamento - 2,2 milhões de cr$ - 11,4 milhões de cr$ Balanço Comercial Exportações: 21,6 milhões de cr$ Importações: 22,0 milhões de cr$ Saldo - 0,4 milhões de cr$ 98 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Transações correntes com o exterior Déficit do balanço de pagamentos + 2,2 milhões de cr$ Renda líquida remetida para o exterior - 1,8 milhões de cr$ Entrada líquida de recursos + 0,4 milhões de cr$ Números singelos, mas que, na sua singeleza demonstram as modestas dimensões econômicas que ostentávamos então, embora já com população de expressivo tamanho, crescendo a uma taxa geométrica de 3,4% ao ano. População que em 50 anos multiplicou-se por mais de três vezes e só a partir do fim dos anos 70 começou a ver reduzir-se a taxa de aumento em função da queda na fertilidade da mulher brasileira, situando-se atualmente entre 1,3% e 1,4% ao ano. Nossa evolução industrial praticamente concentrou-se em bens de consumo duráveis, formando manchas industriais ao longo do território, muito concentradas em algumas regiões. Agricultura quase monoprodutora, de fracos índices tecnológicos, com perdas severas pela baixa capacidade de estocagem, deficiências agudas de transporte e, em consequência, cara e pecaminosa intermediação comercial. Forte exploração, muito oligopolizada, aliás, do setor mineral, com fraco beneficiamento industrial interno. Dependência completa do transporte marítimo transatlântico de terceiras bandeiras e uma impositiva exportação na base FOB (free on board), com importação também impositivamente estabelecida na base CIF (cost, insurance and freight). esse condicionamento, combatido desde então, só veio a ser eliminado em meados dos anos 60, passando-se a exportar e importar na base FOB. Interior de população muito rarefeita, com áreas quase ínvias e de domínio político apenas virtual. Salvo nas regiões sudeste e sul, era praticamente desservido de ligações internas dignas desse nome, só reais na faixa litorânea, que se estendia do nordeste ao sul. Para o nosso hinterland quando ligações existiam eram, ao mais das vezes, seccionadas pela incipiência e baixa tecnicalidade do transporte ferroviário, um pouco menos ineficaz no eixo Rio-São paulo e em áreas do interior daquele estado e do sul do país. A malha rodoviária como tal ainda não adviera. A integração nacional a rigor era só espírito de Brasilidade. o sentido federativo sobrepunha-se à quase ausência de integração física e econômica. Um depoimento vivo do forte sentimento de aglutinação cívica e disposição unionista. Não se dispunha, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 99 salvo o denodado correio aéreo nacional, de um sistema integrado de transporte aeroviário, sistema que começava a despontar no sul com o então denominado sindicato condor, hoje Varig. A potência elétrica instalada era modesta, regionalizada e com decisiva presença da termo-eletricidade - carvão e óleo - sem que o estado ou o setor privado se inclinassem por uma racionalização desse fundamental vetor da infra-estrutura. Esta, como um todo, de fragilidade marcante. Deficiente sob vários aspectos a infra-estrutura tivera o agravamento decorrente de acentuado desfrute econômico para compor nosso esforço de guerra. Os aliados, assim ditos, dela se beneficiaram a valer. Com o desgaste conseqüente o Brasil sofreu para valer. Do ponto de vista social, enfrentávamos no Brasil acentuado elitismo na educação superior, muito concentrado em disciplinas ditas humanas, embora a instrução de nível primário e secundário se revelassem mais efetivas até mesmo em comparação com os respectivos estágios atuais. os índices de higidez da população eram, como são ainda, e infelizmente, precários, mormente nos níveis ou estamentos sociais menos favorecidos à época ainda castigados por algumas endemias e por inexistente percepção de questões sérias, como a da promiscuidade social. Os sistemas administrativos, tanto no setor público, quanto no setor privado, não se beneficiavam de melhores performances; sendo que o relacionamento dentro do esquema federativo só foi adquirindo consistência administrativa a partir da década subsequente. Havia e sempre houve forte sentido empresarial no setor privado da economia, que veio a desabrochar a partir exatamento dos anos 50, quando o pais começou, de fato, a conscientizar-se e a perquirir de modo sistemático sua situação interna e seu posicionamento no cenário internacional. Não se erra ao dizer que não havíamos percebido na justa conta a importância do setor terciário, especialmente da função relevante dos serviços financeiros e da comercialização. Assistência social ordenada, especializações profissionais ligadas aos diversos vetores desse setor, eram figuras distantes no pensamento das lideranças públicas e privadas. Começávamos lentamente a buscar a utilização técnico-analítico de alguns instrumentos operacionais que o campo acadêmico oferecia, como o cálculo das denominadas contas nacionais, os registros sistemáticos do movimento de capitais e a própria confecção do balanço de pagamentos. Na verdade, o nível de entendimento em matéria de gerenciação pública e privada estava 100 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 ainda por conformar-se; a situação no particular situava-se abaixo do nível econômico e bem aquém do que já se dispunha no estrangeiro. Foi nesse panorama que surgiu a Escola Superior de Guerra, semente fecunda de mudança e que, contemplando o Brasil de 99, eu diria de transformação; não fora o receio de pedantismo, diria de metamorfose. Metamorfose, sim, embora com arrepios dispensáveis e ainda distante do que se pode alcançar. Mas voltemos à lembrança aos idos de 49 no que concerne ao plano mundial. Nessa área tudo passou a ser um momento, melhor dizendo, um tempo de imprecisão. O poder hegemônico ocidental combinava-se com a ONU e outros organismos para deitar proposições normativas e linhas de ação menos reguladas, mas não menos impositivas. Os trabalhos de recuperação mobilizavam atenções e recursos e as tratativas diplomáticas deles se ocupavam quase completamente. Pelo menos prioritariamente. Os sistemas de contatos de cunho econômico se não se constituiam de ações subsidiárias, não podiam equiparar-se às preocupações que já começavam a encorpar-se com respeito à posição e aos movimentos do hegemônico da Europa oriental. O panorama para o resto do mundo - e por mais triste que isso possa parecer, o resto do mundo era o resto mesmo - compunha-se de um esforço de subsistência interna em cada país e de um esforço externo de cada um para penetrar a sólida barreira das atenções, preocupações e cuidados com, vamos dizer, o hoje primeiro mundo. Somente o não conformismo e a pacífica rebeldia poderiam criar fendas nesse colossal contra-forte. Mas, para isso, era fundamental a plena consciência da situação interna e da posição relativa no espaço internacional. no presente e no futuro. Também isso explicava e recomendava o advento da Escola Superior de Guerra. Os ruídos no exterior, não mais de trincheiras, mas não menos ressonantes, que fluiam das negociações, das teses e das práticas de acomodação faziam acreditar que a II Grande Guerra seria ou teria sido a última das guerras. Cedo, porém, muito cedo, esse panorama mudava, levando com essa mudança, à um desalento recôndito e ao despertar das mentes quanto à frustação implícita em fantasias e visões miríficas contrastando com o pragmatismo e a realidade das coisas e dos interesses no plano internacional. Os ruídos penetravam, através das fieiras do aranhol que é o contexto Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 101 mundial, no âmago das sociedades partícipes da cena político-econômica; como que impondo a existência de um preparo compatível e condizente com a realidade de então e dos tempo a porvir. Não ficamos nós, no Brasil, imunes a esse imperativo, à missão, imposta pelos fatos, de prepararmonos para transformar nossas imensas potencialidades em riquezas efetivas e colocarmo-nos na justa posição que tais potencialidades nos permitem aspirar no concerto das nações. Não é possível esquecer que, a rigor, ainda éramos, para parcelas significativas do cenário político e econômico do mundo de então, um quase simples registro cartográfico, área geograficamente grande de u’a América do Sul considerada hispânica desde abaixo do Rio Grande. E que, com traços de indulgência, era denominada de Latin América. Cujos povos, sem distinção, eram chamados de hispânicos, ou melhor, como assim diziam, os hispânicos. Vergôntea de nossa realidade interna na ótica dos hegemônicos, curtíamos a dor da possível discriminação que daí se deduzia, mas reconhecíamos implícita e abnegadamente o traço de desdem, pois voltavamo-nos, por inteiro, em termos de elites sociais, para o velho mundo e em matéria de relacionamento imitativo para o norte do hemistério. A não ser do ponto de vista diplomático e militar, a própria América do Sul não nos despertava maior interesse. Éramos basicamente uma economia de feição primária, sensivelmente fechada em sua praticamente total dependência de algumas áreas externas e muito condicionada de fora para dentro. O esforço de guerra que realizamos não modificou esse quadro e não nos trouxe venturas nem reconhecimento dos sacrifícios feitos e do grau de solidariedade dispensada a uma causa que era fundamentalmente de terceiros, ainda que condizente com o nosso entendimento em questões de fundo ideológico. Psicologicamente, todavia, do ponto de vista social interno armou-nos um estado de espírito nem sempre ostensivamente revelado, mas muito firme e consistente no comandar aspirações e vontades. De plantar as bases de um Brasil novo; dizendo melhor, de um novo Brasil, pois essa foi a concepção dominante daí para a frente. Estávamos em 1949, relembremo-nos em nossa viagem virtual. Um seleto grupo de idealistas e notáveis, batalhadores incansáveis pelo progresso material e elevação cultural do país, de um Brasil grande não apenas no seu território mas na sua civilização, que se vinha argamassando desde a fase pós-imperial, sentindo as aspirações de camadas representativas da sociedade esses senhores prescrutaram e examinaram experiências 102 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 estrangeiras sobre mecanismos dé conscientização e trato racional dos assuntos e negócios internos. Laboriosa e aguerrida agenda de trabalhos foi cumprida mediante intenso trânsito pelo meio militar e pelo meio civil, traduzindo um esforço apreciável de convencimento; tão eficaz quanto silencioso. Das indormidas demarchas - e não foram poucas, nem sempre amenas - emergiu a idéia de criar-se um sistema de formação, em nível alto, de lideranças capazes e funcionalmente habilitadas a dar à administração superior o embasamento necessário à condução orgânica e sistemática daqueles negócios. Saía então o Brasil de um período em que a ordem institucional fora alvejada e deformada durante longo prazo, deixando um substrato econômico e social que impelia ao alheiamento a tudo quanto dizia respeito aos destinos da nação. Esse o lado triste da realidade conjuntural daquela quadra. E que muito concorreu para o nome e a vinculação do que viria a ser o produto operacional de toda a batalha construtiva que ocorrera. Nascia aí o sentido precursor da Escola Superior de Guerra que, como templo dos novos tempos, materializouse em 20 de agosto do mesmo ano através da Lei 785, seguida do regulamento da escola, aprovado pelo Decreto 27264, de 28 do mesmo mês. Dava-se substância a um movimento que pessoalmente considero ímpar depois da proclamação da república. Digo, dava-se substância porque os dois atos não saiam por benquerença do poder outorgante, mas por uma impulsão irrefreável daquele grupo de idealistas, agora acrescido de elementos mais jovens atraídos pelo proselitismo saudável de um patriotismo que instituia conscientemente um nacionalismo criador e magestoso em seus desígnios. Mas nacionalismo não jacobinista ou hostil ao alienígena; ou mesmo um néscio ufanismo, jocoso e vazio; ou ainda uma claque de propaganda personalista e argentária. Não. Um nacionalismo são, que porfiava no Brasil grande inclusive como força agregadora no concerto mundial e traço de realização cívica sob a índole facifista e a vontade inquebrantível de seu povo. A aula inaugural do primeiro curso da ESG, foi ministrada em 15 de março de 1950, pelo General Cesar Obino, contando com a presença do presidente da república, General Eurico Gaspar Dutra. Dizia a Lei 785 “é criada a Escola Superior de Guerra, instituto de altos estudos subordinado diretamente ao chefe do estado-maior das forças armadas, destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança nacional”. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 103 O status da escola, pelos termos da lei e do espírito que a conformou é uma decisão clara e intencional de relevância e responsabilidade; emprestava-se a ESG, desde o início e sem dubiedades, a posição de estabelecimento de radical militar de elevada precedência, o mesmo ocorrendo no espectro civil da estrutura oficial. Mas também se lhe emprestava a responsabilidade sem jaças de materializar o anseio de Brasilidade que dominava mentes e corações e que espero ainda hoje viva no peito de cada Brasileiro. Intenção expressa, pois, de considerar a escola uma entidade de primeiríssima linha, julgada e vista como formadora de lideranças e de artífices de nível elevado na administração macro do país. Com decisão características de excelência. Não traduzia um acaso, um rasgo de fantasia ou um arroubo de glorificação. Não. Muito ao contrário, era um entendimento profundo e conscientemente formado do que se impunha - e ainda se impõe - em matéria de preparar recursos humanos para liderar e mesmo gerenciar a evolução política, econômica e social do país. Seu primeiro regulamento, só alterado três vezes ao longo de 50 anos, em 1954, 1956 e 1961. A partir daí sofreu 11 alterações sendo que a última em dezembro de 1996. Fiel e obediente aos termos da lei, davam à escola uma estruturação que, também ela, estruturação, refletia o alto nível de suas atribuições e do trabalho que em seu seio se desenvolveria. Incluindo aí a contribuição relevante do mundo civil Brasileiro através dos que, sem farda, aqui vinham realizar seus desígnios de engrandecimento verde-amarelo. Estabelecia o regulamento, por sinal extremamente sintético, que a estrutura superior da ESG compreendia a direção, a junta consultiva, o departamento de estudos e o departamento administrativo. O departamento de estudos compunha-se de três segmentos, a saber: assuntos nacionais, assuntos internacionais e assuntos militares. O primeiro segmento, assuntos nacionais, desdobrava-se em três divisões - assuntos políticos, assuntos psicossociais e assuntos econômicos. Os dois outros segmentos eram unitários, sendo que os assuntos militares eram tratados no âmbito do gabinete do comandante. Essa estrutura do grande segmento denominado departamento de estudos, modificou-se em 1954, passando a ter quatro divisões - assuntos políticos, assuntos psicossociais, assuntos econômicos e assuntos militares. Só em 64 adquiriu a configuração atual, salvo quanto à divisão de assuntos internacionais, que surgiu bem depois, na 104 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 década dos 80 e da divisão de assuntos tecnológicos, cujo advento é mais recente e para o qual este expositor concorreu bastante. Tinha a ESG em sua fase inicial uma excelente equipe, quantitativamente limitada, muito pequena, mas qualitativamente exuberante em nível de excelência; a ela coube suceder no entusiasmo, no esforço e na capacidade os criadores da escola, dando aos trabalhos didáticos e analíticos impulso destacado e fundamental para a consolidação da entidade. Infelizmente - e essa é uma lacuna que só de uns tempos a esta parte vem sendo tamponada - a escola não organizou sem memento, deixando escapar, em tempos idos, depoimentos, fatos e atitudes relevantes para si e para o país. Os sete primeiros comandantes da ESG, que dirigiram-na na década dos 50 - a que nos coube examinar aqui - foram, por ordem sucessiva: General-de-Divisão Oswaldo Cordeiro de Faria, seu grande idealizador e patrono, General-de-Divisão Juarez Távora, Vice-Almirante Ernesto de Araújo, Major-Brigadeiro Ajalmar Mascarenhas, Major-Brigadeiro Vasco Alves Secco e General-de-Exército Arthur Hascket Hall. Militares ilustres que a conduziram em sua fase crucial, quando por ela desfilaram, como conferencistas, expoentes do mundo civil - Santiago Dantas, Themístocles Brandão Cavalcante, Raul Jobin Bittencourt, apenas para citar exemplos - bem como um punhado de estudiosos do mais alto nível intelectual. No mesmo patamar, militares destacados - Ernesto Geisel, Golberi do Couto e Silva, Andrade Muricy, o então Coronel Idálio Sardemberg, entre outros. Nos bancos do hoje auditório “a” sentaram-se entusiasticamente irmanados civis e militares de envergadura inquestionável - Generais, Almirantes, Brigadeiros, Deputados, Senadores, Professores, Magistrados, profissionais liberais, todos cônscios do que estavam em conjunto realizando e das perspectivas que assim abriam para o engrandecimento da pátria. Pois ali e naquela fase crucial compunha-se a bíblia cultural e doutrinária da escola sob inspiração dos princípios axiológicos da civilização cristã. O conceito de poder nacional sob quatro expressões - política, econômica, psicossocial e militar - e a configuração dos objetivos superiores da nação - denominados de permanentes e atuais com vista ao bem comum assentavam as bases do que é hoje a doutrina da ESG, seguida mais tarde pelo método de ação, uma espécie de seu braço operacional. Mas montava-se, simultaneamente, um sistema globalizado e integrado Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 105 de perquirição, análise e esquematização da problemática Brasileira. ali, no auditório “a”, corou-se, na verdade, o primeiro sistema doméstico de identificação, interpretação e equacionamento da realidade nacional, suas aspirações, soluções viáveis, óbices a superar, metas a alcançar. Dir-se-ia uma globalização analítica. O elenco de conferências perpassava então a constelação de problemas que assoberbavam a nacionalidade, armando, com isso e com a cooperação intelectual do corpo de estagiários, um conjunto de atos de governança que se constituiam e se constituiram ao longo do tempo em ações efetivas de ocorrência direta. Ou advindas de naturais composições de atuação política propriamente dita. Essa conquista projetou-se por sobre todo o comportamento analítico, de diagnóstico e de terapia executiva que o país vem tendo desde então; pelo menos até certa época. A montagem de um sistema de análise da situação interna não se desprendia de uma profunda indagação da realidade internacional e sua provável evolução. Os desdobramentos dessa investigação analítica desceram a pormenores relevantes e esquadrinharam latitudes e longitudes, proximidades e distanciamentos de interesses, identificações ou aversões a posicionamentos. benefícios, adversidades, relutâncias e todo o tabuleiro de xadrez da economia mundial tudo foi perpassado. Fora, certamente, a primeira vez que isso ocorria no Brasil e foi, também certamente um direcionamento para o futuro - a integração de fenômenos internos e externos. Os efeitos de todo esse labor encadearam-se e formaram uma fatoração de resultados e efeitos dignos de menção. Antes, porém, de referir-me especificamente a esses efeitos, cumulativos no tempo e no espaço econômicosocial, quero lembrar que essas conquistas se faziam numa quadra de razoável turbulência político partidária interna. Digladiavam-se politicamente três correntes partidárias - a UDN, o PSD, o PTB; na bruma das cólicas e tricas entre os três, um outro partido espreitava para agir- o partido comunista Brasileiro, o PCB, então na clandestinidade e na indigência eleitoral, mas bafejado pelos reflexos do progressivo advento da guerra fria entre os poderes externos hegemônicos. Emulacão aguerrida, que se formalizou com o célebre discurso do Presidente Truman, de 1947, anunciando a bipolarização entre “dois sistemas incompatíveis”. No mundo todo houve nesse transe uma trepidação de feição política que acresceu as nossas turras internas; mais fortemente as de fundo ideológico. 106 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 O Brasil via aumentar, como já assinalamos, sua população a uma taxa elevada, com crescente concentração urbana a despeito de ser incipiente o nível de industrialização. Esse fenômeno, os baixos níveis de vida de grandes contingentes demográficos, os deslocamentos espaciais na forma de transumâncias e a busca de emprego em escala crescente eram problemas convidativos para o trabalhismo do PTB, liderado por getúlio vargas após anos de governo de exceção. Capitalizando politicamente em cima da porfia entre os dois partidos que exercitavam um canhestro e ultrapassado conservadorismo – PSD e UDN - mas eram também iscas politico-ideológicas a gosto do mais tarde cognominado “partidão”, cuja filosofia marxista-leninista o fazia esgaravatear fendas e brechas no contexto social com vistas a possíveis ações de proselitismo. O ativismo no particular era sensível. O advento da ESG e seus conceitos superaram todos esses transes e temores, alguns que ameaçavam descambar para cismos de caráter mais telúrico, portanto mais preocupantes. Não só os superaram, como levaram aos contendores o sentido da racionalização no exame das coisas pátrias e da busca de soluções efetivas para os problemas maiores do país. O que lhe valeu, aliás, a ela escola, encômios e críticas; e até rótulos como o de Sorbone, o de emissária de uma direita fardada, etc. Particularmente focalizada foi, por exemplo, sua concepção de ordem sintetizada pelo binômio segurança e desenvolvimento, tendo o primeiro termo - segurança - merecido as mais duras críticas da esquerda cabocla. Toda a algaravia da época não alcançou negativamente a escola. Fortaleceu-a e a ajudou a que revelasse sua importância e a importância de seus princípios, suas prédicas e sua ação promocional em favor do país. Voltemos agora aos efeitos que eu dantes mencionei e destaquei. Vejamos alguns deles mais de perto. Tiveram os densos trabalhos preparatórios da escola e seus primeiros passos uma feliz oportunidade de ação efetiva - o plano salte, do governo General Gaspar Dutra. Foi a primeira ação mais globalizada que tivemos no país, partindo da abordagem setorial - saúde, alimentação, transporte, energia. Sem ser, a rigor, um plano técnicamente falando, o salte fugia ao sistema de dispêndios individualizados, isolados de um contexto mais amplo. E concebia um ataque já de cunho sistêmico, ao conjunto de ofertas básicas para o atendimento das exigências da vida consuetudinária. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 107 O advento, marcante e feliz do BNDE (hoje BNDES) em 52 e sua firme orientação, introduzindo nos investimentos públicos os princípios diretores do projeto técnico e do estudo de viabilidade, foi um passo firme em direção ao progresso. conformando seu campo inicial de operação com fulcro na infra-estrutura econômica e nas indústrias de base, o banco marcou um segundo e grande efeito. Extremamente valioso. O advento de bancos estaduais de desenvolvimento, a criação de órgãos setoriais de fundo econômico e setoriais de fundo regional, a metodização da ação oficial no mercado financeiro, os procedimentos orçamentários de previsão e controle, as medidas de proteção às atividades rurais, os primeiros movimentos no sentido de substituição de importações e diversas outras inovações na administração oficial, tudo sofreu, ao longo do tempo, os efeitos que direta ou indiretamente ligavam-se ao advento da escola e ao seu primeiro decênio de atividades curriculares. Era, na verdade, a Escola Superior de Guerra desdobrando-se no tempo. Mas, não foi só. A diplomacia valeu-se desse advento, com alterações sensíveis no posicionamento diplomático externo. A operação pan-americana de Juscelino Kubtischek e um presidente colombiano teve em sua equipe formuladora um egresso da ESG em seu primeiro decenato. O próprio programa de metas de Juscelino - os famosos 50 anos em 5 - valeu-se muito de tudo que ocorrera nos dez anos iniciais da ESG. De um modo geral, grandes segmentos do setor secundário do país à época passaram a merecer assistência oficial em função do que o período de advento e maturidade da ESG lhes colocou concepcionalmente à disposição de forma orgânica, racional e sistêmica. Consumiríamos mais de um dia deste ciclo se nos quedassemos a arrolar todos os efeitos diretos e indiretos do advento da escola superior de guerra, seus trabalhos, seus ensinamentos e o muito que argamassou, como sistema de análise e equacionamento dos grandes problemas nacionais em seu período que pessoalmente chamo de infância, puberdade e amadurecimento - o dos anos 50. Posso dizer sem fatuidades que a ESG, com seu advento e seu esforço de parto e de consolidação, constituiu e constitui - um marco na vida da nacionalidade Brasileira. Internamente, em seu próprio seio, a escola cultivou valores. Valores que a permitiram vingar com eficiência, respeitabilidade e auto-confiança. Organizei, para meu uso pessoal, uma espécie de decálogo desses valores, 108 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 que até hoje cultuo e até hoje enalteço. Passo-o a essa notável audiência, fazendo-o de modo não pragmático e sucinto, isto é, sob a forma de uma transparência condensada. Valores observados no 1° Decênio Esguiano 1 - Integração entre civis e militares de forma ampla e durável. 2- Programação sistêmica e orgânica das conferências na escola e do conjunto delas. 3 - Prática de crítica analítica, submetendo os conferencistas a um esforço intelectual bastante intenso depois da conferência. 4 - Formação de equipe interna integrada, homogênea e sob constante preparo. 5 - Sentido de responsabilidade intelectual dos conferencistas; e dos estagiários nas indagações a respeito do tema abordado por aqueles. 6 - Densidade dos trabalhos didáticos e curriculares, sempre habilitados à integração e uso pelo plano superior de governo. 7 - Forte teor de majestade cívica e funcional, que inspirava os que à escola serviam ou que pela escola passavam. 8 - Natural orgulho do que estava em realização ou sendo realizado e sensível mudança de hábitos e procedimentos nas turmas que concluiam o curso. 9 - Criação da ADESG e disseminação dos preceitos Esguianos pelo interior do país. 10 - Busca incessante de conhecer o Brasil na plenitude de suas realidades para sua evolução política, econômica, social e cultural. Creio que uma entidade capaz de gerar e agasalhar tanto crédito faz jus ao respeito de que passou a gozar e que deve ser alimentado sem desfalecimentos. o respeito ao ontem tem que ser seguido pelo respeito ao hoje e pelo respeito ao amanhã. A primeira turma de estagiários dos anos 60, a de 1960, portanto, a primeira a diplomar-se após o período inicial da escola, teve como comandante o General-de-Exército José Dandt Fabrício e contou, no seu ato de coroamento do curso com a presença do Presidente da República de então, Juscelino Kubtischek de Oliveira, em cuja alocução de encerramento se Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 109 registram as seguintes palavras: “Nenhuma instituição poderá prestar serviço mais valioso ao resguardo daquilo que somos do que esta escola. Daí a importância de aumentar-lhe o poder de operação. Do êxito crescente desta escola, da amplitude de seu programa, da formação de elites, das doutrinas que sairem daqui transformando esta nossa realidade depende o dia de amanhã dessa nossa bem querida pátria”. Totalmente insuspeito, por razões sabidas, Juscelino consagrava não só a escola como o muito realizado em seu primeiro decênio de vida. Palavras que ora poderiam e deveriam ser repetidas nos quatro cantos do país e serem levadas pela brisa mental que banha nossas autoridade superiores, nossas lideranças empresariais, meios técnicos e de estudiosos, a louvar e a agraciar a escola com proeminência de status apropriado e posição oficial inquestionável. Assim como isso, seu decênio inicial, em substância, poderá repetir-se na década do milênio que se avizinha. Roubando por um instante, de Kipling e Felix Bermudez, uma passagem do admirável poema If, diríamos “inda para além um novo sol rompeu, abrindo um horizonte ao rumo de seus passos”, horizonte, dizemos nós agora, que é o Brasil grande potência calçando-se nos ciclópicos avanços de ciência e tecnologia, que reduzem diferenças, nivelam pontos de partida e se sobrepõem ao poder material pelo extraordinário poderio da mente. Dentre os muitos predicados que resultaram da sementeira plantada no e pelo período inicial da escola, está o fato magno, resultado da imensa fatoração de seus efeitos e benefícios, sintetizado na verdade de que hoje nós Brasileiros como nação sabemos o que somos, sabemos o que podemos e sabemos o que queremos ser. E certamente seremos. O Brasil em fins de 49 pulsava pela identificação orgânica de si mesmo e clamava por uma tomada de consciência que se diria sistêmica e que paulatinamente passou a comandar sua atuação, quer em relação à sua problemática, quer à que ocorria no complexo das relações internacionais. Tenho para mim que 1°) a II Grande Guerra, em que pesem on ingentes sacrifícios que impôs a larga faixa da humanidade, fez o mundo despertar para uma realidade que se mantinha envolta por imagens profundas e imperfeitas de seus problemas reais; 2°) o pós-guerra abriu um novo campo de indagações e fez dos avanços e conquistas tecnológicas para fins bélicos, um fator de impulso no entendi110 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 mento e na percepção de áreas políticas até então submissas a modelos substantivamente fictícios; e 3°) no caso brasileiro, pauperizou nossa infra-estrutura, mas abriu as mentes em estamentos sociais importantes na busca do porvir. Constituiu para nós uma fecunda portadora de futuro. Vivemos fatos internos de mudanças acentuadas nos comportamentos e padrões de conduta do homem em sociedade; e que; logo, logo, no raiar da década de 60, se revelaram por inteiro em todos os campos de atividade. A reconstrução na Europa e no Japão mostrava-se mais rápida do que se poderia supor. A ideologia marxista-leninista mais ativa do que se acreditava capaz de ser. Os avanços de ciência e tecnologia mais velozes do que se concebia à luz do nível do entendimento disciplinar de então. Tudo isso influenciava o Brasil como um sopro digamos de fora para dentro. Mais ainda, de dentro do país para dentro do país. Também surgiam, dessa forma, aragens de evolução, de inconformismo, de renovação. uma nova maneira de materializar o conteúdo de Brasilidade e de consolidar o espírito realizador que de colônia e império fizera uma nação republicana e compuzera o legado de um patrimônio cuja conservação e reprodução exigiam - e exigem mudanças em escala, de forma e fundo compatíveis com suas potencialidades humanas e materiais. nesse sentido, caminhamos. Cumpre ainda abordar alguns aspectos que marcaram a parte final da década dos 50 e que, em teores diferentes, tiveram relação com a existência da escola. O primeiro deles foi a elaboração e os meios de execução do plano de metas do período 56/61. No referente à elaboração, a escola esteve implicitamente envolvida, inclusive pela presença de um seu egresso no conselho de desenvolvimento, onde os trabalhos requereram prolongada apreciação tanto no pertinente a conceitos, quanto ao arcabouço e consistência do planejado. A sistemática que se armara na escola levava a uma estruturação mais orgânica do programa de metas e a uma execução mais cadenciada, sobretudo na implantação da nova capital do país. Infelizmente, aspirações políticas muito intensas e fortes influências partidárias ditaram o ritmo e a intensidade no curso do marketing de 50 anos em 5. Imperfeições e desperdícios tiveram então lugar, deixando dois lastros onerosos - um impulso poderoso na inflação e uma situação de reduzida performance na implantação de setores relevantes como o da siderurgia. a penetração econômica de áreas internas - meta das mais importantes retardou-se e só quase duas décadas depois a ESG pode ver a implantação Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 111 de uma teia rodoviária de penetração e ligações domésticas, embora o sistema ferroviário se tivesse praticamente estagnado. A geração de energia hidroelétrica, essa teve um primeiro impulso extremamente eficaz no país, vindo a maturar-se ao longo dos anos 60 e 70. Também não correspondeu de todo às concepções do período inicial da ESG o projetado para a evolução da tessitura industrial, que só encorpou-se no final da década dos 60. Mas o programa de integração nacional, fortalecendo os laços federativos, esse teve os cuidados que se desejava e que permitiram, um pouco mais tarde, institucionalizar-se sob a sigla PIN. De todo o espectro que o advento da ESG conformara, ficaram ainda retardados os vetores da infra-estrutura social, a exemplo da habitação popular, do saneamento básico e, de algum modo, o da saúde. Certo desequilíbrio na conformação de esquemas de prioridade ante a escassez relativa de recursos e a então muito presente dissenção política responderam pelos desencontros no particular. Não podemos esquecer, a esse respeito, que o país saia de um período ditatorial populista muito prolongado, ingressando no processo de eleição universal com um governo conservador cauteloso e logo, logo a seguir, voltar à figura presidencial trabalhista do ex-ditador. Um intervalo de apenas cinco anos. A turbulência própria de mutações da espécie tramam inexoravelmente contra a estabilidade de condições e saudável continuidade de programas oficiais de prazo mais longo, como o salte e a própria essência do plano de metas. Apartados esses relativos insucessos, ou sucessos apenas relativos, as concepções que geraram a escola e ganharam conformação ao longo da fecunda e silenciosa labuta em seu primeiro decênio, deram gradativamente ao todo nacional não só outro aparato como outro grau de conscientização quanto à realidade, às potencialidades, os problemas, os anseios e às perspectivas da nacionalidade. Os anos 50 foram benfajezos para o Brasil à luz da grande mutação que se operou na maneira de nos olharmos, nos estudarmos e nos conhecermos como nação. Aprendêramos, então, uma segunda e grande lição - a visão da grandeza e do poder nacional sob todos os ângulos, como a ESG nos ensinou. Os expositores que me sucederão neste ciclo mostrarão, por certo, todo o que se seguiu às conquistas ESGuianas naquela remarcável década dos 50. *Membro da Junta Consultiva da Escola Superior de Guerra 112 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Ivan Fialho* “A verdadeira dificuldade não está em aceitar idéias novas. Está em escapar das idéias antigas” John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês (Citado por Joelmir Beting – Jornal “O Estado de São Paulo”, 09/01/2001) Introdução A ESG, a partir de 2002, sofrerá ampla e profunda reformulação quanto a sua missão, natureza e currículo dos cursos, processos de ensino – aprendizagem e técnicas pedagógicas e estrutura administrativa.1 As mudanças decorrem de uma redefinição da principal finalidade daquele Instituto de Altos Estudos, sendo adotadas por iniciativa do Ministério da Defesa (MD), mas com participação da Escola no processo, iniciado em janeiro de 2000. Essa reorientação do papel da ESG , na verdade, já vinha se tornando necessária há vários anos. Como toda instituição, a ESG precisava adaptarse ao seu novo ambiente, profundamente distinto daquele existente ao final da década de 40, quando foi criada.2 Neste trabalho discutiremos alguns aspectos relativos à nova missão da ESG como instituição de ensino e pesquisa voltada principalmente para o campo da Defesa Nacional, destacando a questão da Doutrina que, por força daquelas mudanças, necessitará, também, de um novo enfoque. Julgamos que, em se tratando de uma instituição cinqüentenária, de grande tradição e renome internacional, a ESG deve Ter seu novo rumo bem definido e amplamente discutido, com prévio esclarecimento de todos os efeitos de sua reformulação sobre as atividades de estudos. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 113 1 - Nova Missão da ESG Pelo novo Regulamento, a ESG se destina “a formular e consolidar os conhecimentos necessários ao exercício de funções de direção e assessoramento superior para o planejamento da Defesa Nacional...” Pelo atual Regulamento, a ESG se destina a “desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários ao exercício de funções de assessoramento e direção superior e para o planejamento nacional do mais alto nível”. Vemos que a nova finalidade da ESG é mais específica duplamente. Primeiro por restringir o planejamento ao campo da Defesa Nacional, quando antes se referia a todo o planejamento nacional de mais alto nível; segundo por não se referir ao exercício das funções de direção e assessoramento superior de modo geral, isto é, em relação a qualquer uma das funções públicas do Estado, mas sim, apenas em relação à Defesa Nacional. Voltaremos a este assunto mais adiante. A área de estudos da ESG se tornou, em conseqüência, mais objetiva e qualificada – a Defesa Nacional – deixando de ser tão abrangente como vem acontecendo. A diferença é que, agora, as atividades de estudos passam a Ter um farol e um enfoque preponderante que nortearão o ensino e a pesquisa, tornado a ESG uma instituição especializada no campo da defesa. Por ser a Defesa Nacional de natureza integrada e sistêmica, seu estudo abrangerá temas relacionados a todas as expressões do Poder Nacional. No entanto, e este ponto é fundamental, por termos, agora, um enfoque principal e condicionante, todos aqueles temas deverão ser abordados de forma objetiva, como subsídios de interesse direto para o tema primeiro da Defesa Nacional. Obviamente, não desconhecemos que os estudos científicos e teóricos não podem ser estritamente delimitados, que a realidade é complexa e que os conhecimentos de diferentes áreas se interpenetram. Desse modo, não resta dúvida, as variáveis políticas, econômicas, psicossociais, militares e científico-tecnológicas da função Defesa deverão ser analisadas e discutidas, mas essa análise estará condicionada à finalidade maior do estudo da Defesa Nacional, cuja ênfase recai sobre temas políticos (Relações Internacionais) e militares (planejamento estratégico de alto nível). Essa redefinição da finalidade da ESG, no bojo de sua modernização como instituição, representa, curiosamente e até certo ponto, um retorno a sua origem. Isso, porque, pelo Art.1.da lei de sua criação (Lei Nº 785 de 20 114 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Ago 49), a ESG se destinava ao “planejamento da segurança nacional”, além da consolidação dos “conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção”. A propósito, as expressões defesa nacional, apesar de doutrinariamente distintas, muitas vezes se eqüivalem na literatura especializada e no uso comum universal, como veremos posteriormente. Ao se tornar uma instituição de altos estudos da Defesa Nacional, a ESG estará preenchendo uma lacuna há muito existente no campo científico brasileiro, atenuada na última década, pela criação de centros ou núcleos de estudos estratégicos nas principais universidades ou mesmo fora delas. Desse modo, o País se ressente da falta de uma instituição de alto nível de ensino e pesquisa que se dedique integralmente ao campo da defesa, formando quadros habilitados de civis e militares, produzindo trabalho teórico e formulando estratégias próprias para uma potência média como o Brasil. Ressalte-se que, de uma maneira geral, os estudos estratégicos em nossas universidades tem-se voltado mais para o campo da Ciência Política ou da Sociologia, tratando de assuntos como relações civis x militares, papel dos militares na política, tendências político-ideológicas dos militares, etc. Temas mais especializados como estratégia militar, doutrina militar, estratégias de países emergentes em comparação às das grandes potências, desenvolvimento tecnológico de sistemas de armas e munições, além de outros assuntos de interesse direto da Defesa Nacional, não tem sido objeto de estudos e pesquisas na Academia, salvo honrosas exceções. Na verdade, mesmo no segmento militar brasileiro, não chegam a ser expressivos os estudos estratégicos, mesmo nas escolas militares. Ainda hoje não se formulou uma doutrina militar brasileira que integre ao nível operacional e estratégico, as Forças Armadas. Essa situação de poucos pensadores estratégicos entre os oficiais brasileiros se apresenta também nos EUA, conforme Amos Jordan e William Taylor. Esses autores, ao analisarem o papel do Joint Chiefs of Staff (JCS), salientam que “na maior parte do tempo, energia, assessoramento e imaginação são dedicados mais às tarefas cotidianas, mas essenciais, envolvidas no gerenciamento das Forças Armadas, do que a arte do pensamento e planejamento estratégico. Poucos oficiais pensam em termos estratégicos.” Em outra passagem, referem-se aos efeitos dessa ausência de pensamento estratégico, uma vez que os militares ficam restritos a um papel instrumental Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 115 no processo político (da segurança nacional), à retaguarda dos “estrategistas civis” que tomam as decisões chave e estabelecem a direção quanto aos objetivos estratégicos. Acrescentam que a qualidade dessas decisões fica assim prejudicada pela ausência de uma influente e relevante perspectiva militar.3 Voltando ao caso brasileiro, a situação se agrava porque na falta de estrategistas, tanto civis quanto militares e, dados o desinteresse e ignorância das elites políticas e dos dirigentes, em relação aos temas estratégico-militares, decisões estratégicas são tomadas sem a devida avaliação dos riscos assumidos ou do custo – benefício correspondente, de forma muitas vezes intempestiva e isolada, sem preocupação com um horizonte temporal mais longo e com a estruturação de um adequado sistema de defesa nacional. Os orçamentos militares não são estáveis, variando por razões exclusivamente conjunturais e de pressões de momento, sem se preocupar com os reflexos sobre o preparo e o emprego do poder militar que, em conseqüência, acaba se tornando incompatível com a postura político-estratégica do País. Ao preencher a lacuna existente quanto ao pensamento estratégico, a ESG serviria como um grande laboratório de idéias, produzindo novos conhecimentos teóricos e doutrinários a serem discutidos nos cursos de altos estudos de política e estratégica das escolas militares do estado-maior e nos centros de estudos estratégicos civis. Assumiria, desse modo, um papel central e pioneiro no País, inclusive quanto à formação de estrategistas civis no nível de mestrado (Algumas universidades como a USP, conveniadas ou não com as delegacias da ADESG, oferecem cursos semelhantes, mas ao nível de pós-graduação lato senso e naturalmente prejudicados em seus currículos, quanto aos assuntos militares, pela falta de docentes especializados, o que não deverá acontecer na ESG. Esses estudos e conhecimentos relativos à Defesa Nacional, desenvolvidos na ESG, serviriam, ainda, de subsídios para o MD que poderia, inclusive, encomendar à ESG, a produção de anteprojetos de políticas, estratégias e documentos doutrinários. Quanto a este aspecto, uma das mudanças positivas e potencialmente férteis da reformulação da ESG é a vinculação dos seus cursos aos departamentos correspondentes do MD para fins de orientação curricular e produção de trabalhos. Assim, o Curso de Inteligência vincula-se ao Departamento de Inteligência Estratégica (DIE), o de Mobilização, à Secretaria de Logística e Mobilização (SELOM), o de Estado-Maior de 116 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Defesa, ao Estado-Maior da Defesa (EMD) e o de Política e Estratégia de Defesa Nacional (CPEDN) ao Departamento de Política e Estratégia (DPE). Cria-se, assim, um salutar vínculo para cada curso, proporcionando-lhes uma orientação curricular mais objetiva e pragmática, especialmente no que se refere a temas de monografias e dissertações, sem prejuízo da produção teórica autônoma e inovadora da ESG. 2 – Teoria e Doutrina Estratégica A formulação da doutrina militar compreende três níveis: o mais alto da estratégia, o intermediário da estratégia ou arte operacionais e o mais baixo da tática. No campo da Defesa Nacional, temos um nível ainda mais alto que é o da Doutrina Estratégica do país considerado, integrando fatores políticos, geopolíticos e econômicos aos fatores militares e voltada para a preservação da segurança do estado-nação. Esse seria o principal trabalho da ESG: desenvolver conhecimentos para fundamentar a Doutrina Estratégica Brasileira, que consolide as decisões e objetivos estratégicos do País no âmbito internacional e sirva de base para o estabelecimento do Sistema de Defesa Nacional. Para esse mister, torna-se indispensável uma adequada avaliação da conjuntura e de suas tendências, acompanhada da elaboração de cenários sob um horizonte temporal de dez a quinze anos, considerando o prazo de maturação das decisões estratégicas. Nesse ponto é que se torna igualmente indispensável a formulação teórica para criar novas variáveis explicativas ou novas ferramentas de análise para a avaliação da conjuntura. A teoria, segundo Jordan e Taylor, permite, inicialmente, “simplificar a realidade complexa clarificando-a em peças compreensíveis. Como segundo objetivo, a teoria explica a realidade, demonstrando e clarificando as relações que ocorrem com suficiente regularidade para serem identificadas como normas. Isto leva ao terceiro e último objetivo da teoria, chamado de prognosticar ou predizer”.4 Concluem os autores que se torna evidente, então, que o uso da teoria é fundamental para o tema da política da segurança nacional, permitindo aos líderes políticos e às elites compreenderem a realidade com a qual trabalham e apoiar-se nela – teoria – para estabelecer as bases para a ação. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 117 Em outra obra voltada para o tema da mudança no estudo das relações internacionais, Buzan e Barry Jones afirmam que “uma compreensão útil da mudança exige referência a uma teoria coerente que explique o comportamento e as relações entre as entidades consideradas. Teorias diferentes produzem diferentes entendimentos, mas sem tal teoria é impossível fazer sistemáticas e consistentes avaliações da significação da mudança”.5 Para esse autores “o nível de análise e avaliação baseado na percepção do observador se diferencia daquele baseado em explícita referência a uma teoria estruturada”. Assim, “o que pode ser de grande momento ou impacto no nível da percepção, pode ser de muita pouca importância para a teoria e vice-versa”. Concluem que “as teorias dos analistas não apenas influenciam as teorias dos atores, como também iluminam as bases ou conseqüências das percepções e ações dos atores”. As considerações acima a respeito da influência enriquecedora da teoria sobre a avaliação da conjuntura adquirem maior significado dada a importância desta última no currículo dos atuais cursos de política estratégica da ESG. Essa contribuição indispensável da teoria à avaliação da conjuntura deverá continuar no futuro Curso de Política e Estratégia de Defesa Nacional, sendo, ainda, reforçada pelo fato de que uma bem fundamentada avaliação da conjuntura serve de base para a formulação da doutrina estratégica. Esse embasamento teórico proporcionará respaldo científico aos estudos da ESG, valorizando a Instituição junto ao segmento acadêmico, o que adquire maior significado, tendo em vista o recrutamento de doutores e mestres para o seu corpo docente, ao lado da elevação daquele curso (CPEDN), ao nível de mestrado. 3 – Segurança e Desenvolvimento Reportando-se, novamente, ao Art.1o do Novo Regulamento da ESG, vemos que, em seguida à expressão “Planejamento da Defesa Nacional”, surge o destaque “nela incluídos, os aspectos fundamentais da Segurança e Desenvolvimento”. Considerando a importância desse binômio na Doutrina de Ação Política da ESG e na própria história da Instituição, bem como na evolução de seu pensamento, sendo visto inclusive como uma espécie de marca da ESG, faremos alguns comentários a respeito do significado daquela 118 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 expressão nos estudos ligados à Defesa Nacional. Inicialmente, conforme já explicamos, os temos defesa e segurança aplicados ao nível nacional são considerados, muitas vezes, equivalentes na literatura, embora conceitualmente distintos. Assim, na Doutrina da ESG, a segurança é uma sensação ou estado de espírito, uma garantia ou situação desejada, enquanto a defesa é um ato ou conjunto de medidas concretas, visando, justamente, garantir aquela sensação de segurança. No Brasil, conforme também afirmamos, a expressão segurança nacional foi estigmatizada por razões ideológicas e preconceituosas em relação aos gevernos militares, passando a ser evitada sendo substituída pelo de defesa nacional. Ultimamente, tal rejeição tem-se atenuado, passando a expressão segurança nacional a ser utilizada na sua acepção clássica, neutra e universal (assim como os termos informação e inteligência), em função da perda de suas conotações ideológicas, após a derrocada do comunismo e fim do conflito leste x oeste. O importante, no entanto, é não se envolver em discussões semânticas e doutrinárias e, sim, partir da premissa de que, para fins de orientação curricular e de estudos, as expressões defesa nacional ou segurança nacional implicam num planejamento estratégico visando garantir ao Brasil sua sobrevivência como nação soberana e autônoma para dirigir seus destinos, preservar seu território e patrimônio e defender os interesses nacionais, em prol de sua população, no concerto das demais nações. E esse planejamento estratégico será, forçosamente condicionado por fatores políticos, econômicos, psicossociais, científico-tecnológico e militares, de forma integrada. Quanto ao desenvolvimento, devemos partir da premissa básica e universalmente aceita que segurança e desenvolvimento são interrelacionados e interdependentes, como duas faces de uma mesma moeda, apesar de a realidade histórica de muitos países demonstrar o contrário, isto é, a temerária negligência de uma das faces em proveito da outra, impondo alto risco à sobrevivência dos mesmos como nações soberanas e livres. A partir dessa base conceitual comum, o que mais importa são os reflexos da referência ao desenvolvimento sobre os estudos e currículos da ESG. E é justamente essa questão que precisa ser bem compreendida, para se evitar uma abordagem abrangente e dispersiva daqueles estudos e currículos. A ESG é e continuará sendo, agora com mais forte razão depois de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 119 reformulada, um instituto de altos estudos dedicado primordialmente ao campo da segurança – razão principal de sua existência – conforme já ressaltamos. Outras renomadas instituições de ensino e pesquisa já existem, que são especializadas no campo do desenvolvimento. A interdependência entre os conceitos de segurança e desenvolvimento não pode desvirtuar a missão principal da ESG quanto ao estudo da segurança que deve constituir-se na sua especialização. Relembramos aqui, a advertência de Ubiratan Borges de Macedo. Após afirmar que “não há mais necessidade de uma escola da Presidência da República para promover a idéia do Desenvolvimento e o seu Planejamento”, o Prof.Ubiratan, ex-integrante do Corpo Permanente da ESG – se refere ao estudo da defesa nacional, em campo em que “a ESG não pode omitir-se, como vem fazendo, sob pena de o Estado ter de criar uma outra instituição 6 similar e fechá-la, por descumprimento de sua lei de criação”. A propósito o Prof.Ubiratan, no mesmo trabalho, visualiza a ESG como uma escola de estratégia, cujos estudo, “a julgar-se pelas congêneres dos países democráticos, devem voltar-se a temas internacionais e estratégicos, pesquisa e identificação dos interesses brasileiros no mundo, em suma, no seu jargão: segurança externa”. O projeto de reformulação da ESG restringe o objetivo do novo Curso de Política e Estratégia de Defesa Nacional, suprimindo a referência ao desenvolvimento: “habilitar civis e militares para o exercício de funções de direção e assessoria de alto nível, especialmente nos órgãos responsáveis pela reformulação e acompanhamento da Política d Defesa Nacional e das Estratégias de Defesa decorrentes”. Essa mudança é significativa porque ao destacar a natureza dos órgãos a que se destinam os estagiários habilitados pelo curso, condicionam, em conseqüência, seu currículo; este terá, necessariamente de abordar temas de desenvolvimento, mas de forma subsidiária à abordagem essencial dos temas de segurança. O desenvolvimento, fique bem claro, continuará sendo estudado porque para se aumentar a segurança, deve-se fortalecer o Poder Nacional em todas as suas expressões, além de se neutralizar ou atenuar as vulnerabilidades estratégicas do País. Assim, é preciso que se analise no CEPDN, a matriz energética nacional; a infra-estrutura viária e de telecomunicações; o parque 120 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 industrial; a produção agropecuária e mineral; os fluxos do comércio exterior, enfim, todos aqueles fatores econômicos que, ao fortalecerem o Poder Nacional, propiciam maior segurança no seu sentido lato e não apenas militar. Obviamente, os condicionamentos fundamentais dos fatores políticos, psicossociais e científico-tecnológicos à segurança têm que ser também analisados. No entanto o importante está na mudança de enfoque. Sob o farol da Defesa Nacional, todos os fatores relevantes para aprimorá-la deverão ser analisados, mas de forma objetiva e instrumental, sem esquecer que a ESG é uma escola de segurança e não de economia e nem de sociologia ou de administração pública. Atualmente tem-se dado muito maior ênfase ao desenvolvimento do que à segurança no ensino da ESG, como pode ser quantitativamente verificado no total da carga horária dos temas e trabalhos dedicados a um ou outro campo. Desse modo, a formulação de políticas, estratégias e planos de governo pelos estagiários em grupo (equipes de governo), como coroamento do curso, após meses de avaliação da conjuntura (principalmente nacional), atesta aquela afirmação. Essa orientação curricular, não resta dúvida, é coerente com a finalidade da ESG quanto à formação de elites, constante do já citado Art.1.do atual Regulamento, que se refere ao “exercício de funções de assessoramento e direção superior e para o planejamento nacional de mais alto nível”. Baseia-se, também no objetivo do atual Curso de Altos Estudos de Política Estratégia (CAEPE), constante do Art.14 do mesmo Regulamento: “Habilitar civis e militares para o exercício de funções de direção e assessoria de alto nível, especialmente nos órgãos responsáveis pela formulação das políticas de segurança e desenvolvimento nacionais e dos planejamentos estratégicos decorrentes”. Essa orientação curricular, no entanto, precisará ser modificada em relação ao CPDEN. 4 – Doutrina Estratégica e Doutrina de Ação Política Conforme já tratamos, a ESG deverá constituir-se numa das principais fontes do pensamento estratégico nacional e foco irradiador de teorias e idéias que fundamentem a doutrina estratégica nacional que, por sua vez, sirva de base para a formulação de um projeto estratégico para o País – a Estratégia Nacional. O conceito de doutrina estratégica é aqui utilizado como equivalente ao de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 121 doutrina política que, por sua vez, “deriva da Política e designa a enunciação formal da parte de um Chefe de Estado ou de um homem responsável, de uma linha política que seu País tem que seguir numa determinada área das 7 relações internacionais”. (Como exemplo, a Doutrina Monroe) . E a Doutrina de Ação Política da ESG? Como se situa em todo esse processo de reformulação da missão da ESG e dos cursos de Política Estratégia? Como posicioná-la em relação à doutrina estratégica? Cremos que a delimitação da finalidade da ESG ao planejamento da Defesa Nacional, ao lado dos correspondentes novos objetivos dos atuais cursos de política e estratégia, implicam novo status para a Doutrina da ESG, que perderia a posição central de hoje nas atividades de estudos. A própria natureza de doutrina mudaria para a de paradigma, no sentido utilizado por Merton: um conjunto mais ou menos coerente de suposições ou de imagens; uma constelação integrada de crenças, fatores, técnicas, etc., compartilhados pelos membros de uma comunidade; um modelo 8 ou padrão aceito. De acordo, ainda com Merton, os paradigmas proporcionam uma ordenação completa dos conceitos centrais e de suas inter-relações, que são utilizados para descrição e análise. Em segundo lugar, diminuem a probabilidade de, inadvertidamente, introduzir suposições e conceitos, uma vez que cada nova suposição e cada novo conceito devem ser logicamente derivados dos componentes anteriores do paradigma ou explicitamente introduzidos nele (A propósito, essa deve ser a razão da relativa rigidez das doutrinas). O paradigma tem carater mais científico, sem pretensão de verdade absoluta, sem propósito normativo, sem arvorar-se em guia de conduta ou de visão da sociedade ou do Estado. Tratam-se de características importantes que distinguem o paradigma da doutrina, evitando as conotações indesejáveis desta última. Neste caso, “o sentido mais ou menos dogmático implícito no vocábulo explica a especial conotação do seu derivado doutrinário que é, a 9 seu termo, percebido como dogmático, intolerante, fanático e pedante. Heloísa Cardoso, ex-integrante do corpo permanente da ESG, em estudo bem fundamentado sobre a Doutrina da ESG, cita Brenton que compara o pensador doutrinário ao cientista: ao contrário deste último, o pensador doutrinário tem suas 10 teorias por artigo de fé, não podendo admitir a possibilidade de modificá-las. Desse modo, a doutrina e o método podem ser encarados como uma 122 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 produção histórica contextualizados a um ambiente específico. Mudado o ambiente e sob novo contexto, a instituição teria que ser reformulada como o está sendo. Essa visão pode ser corroborada, aplicando as próprias idéias da Prof.Heloísa. Assim, noutra passagem a autora escreve: “...considerando-se puro conservantismo a abstração da Doutrina em Relação às específicas condições históricas que a contextuam e de que princípios e processos devem dar respostas às condições em que são aplicados e não serem aplicados como verdades absolutas, que servem a todos os homens em qualquer lugar em qualquer tempo”. Finalmente, voltando à natureza da Doutrina, julgamos que poderia ser estentida à mesma, a visão de “tipo ideal”, na acepção de Weber, que sugerimos 11 para o método em trabalho anterior. Segundo Freund, Weber define “o idealtipo (ou tipo ideal) como uma acentuação ou uma amplificação unilateral de pontos de vista que reúne em um quadro de pensamento homogêneo, traços e característica de uma realidade singular. Trata-se de uma racionalização utópica. O idealtipo do capitalismo reúne por exemplo, em um quadro de pensamento, os traços característicos que definem sua originalidade de doutrina econômica, (grifo nosso) mesmo que só se encontrem, de modo difuso na realidade e mesmo que um ou outro esteja ausente de organização econômica concreta. O idealtipo do capitalismo compreende igualmente as tendências e os fins a que ele visa como objetivo, mesmo que não 12 tenham sido realizados plenamente em parte alguma”. 5 – Conclusão Esperamos ter contribuído para as análises das implicações sobre as atividades de estudos e missão da ESG, do processo de reformulação ora em curso. Procuramos levantar idéias e questões para maior esclarecimento dos aspectos diretamente ligados à ESG como instituto de altos estudos. Os temas são complexos e exigem ampla discussão pelos integrantes da Escola, daí, a natureza breve deste trabalho. *Coronel - Adjunto da Divisão de Apoio ao Departamento de Estudos - ESG Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 123 NOTAS 1 O programa de reformulação da ESG está publicado no BI n.73 de 14/11/2000 da ESG. 2 Em trabalho anterior, datado de 1992, já propúnhamos essa adaptação da ESG ao seu novo ambiente, por julgarmos que a instituição teria atingido um ponto de inflexão no seu ciclo de vida, conforme artigo “ESG-Novos Rumos” – Revista A Defesa Nacional, n.756, Abr-Jun 92. 3 Amos A.Jordan e William J.Taylor, Jr – “American National Security – Policy and Process”. The Johns Hopkins University Press, 1981. 4 Ver nota n. 3. 5 Barry Buzan and R.J.Barry Jones – “Change and the Study of International Relations – The Evaded Dimension”, editada pelos autores citados, St.Martin’s Press, New York, 1981. 6 Ubiratan Borges de Macedo. “A Escola Superior de Guerra, sua Ideologia e Trânsito para a Democracia. “Trabalho apresentado no seminário” A Segurança Nacional dos Países da América Latina no Marco da Relações Internacionais Contemporânea”. Querataro, México, 6 a 9 de maio de 1987, publicado na Revista Política Estratégia, Abr – Jun/88. 7 Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Giafranco Pasquini – “- Dicionário de Política” – Ed.UNB-1986. 8 Robert Merton – “Sociologia – Teoria e Estrutura”. Ed.Mestre Jou, 1970. 9 Benedito Silva, Coordenador geral “Dicionário de Ciências Sociais”. FGV, 1986. 10 Heloísa Maria Cardoso da Silva – “A Doutrina da ESG à Luz da Abordagem Interdisciplinar”. ESG – TE – 87. 11 Artigo de nossa autoria: “Reflexões sobre o Método de Ação Política da ESG”, publicado na Revista da ESG do seu cinqüentenário, 1999. 12 124 Julien Freund – “Sociologia de Max Weber”. Ed.Forense – 1970. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Ives Gandra da Silva Martins* A globalização da economia, a partir da queda do Muro de Berlim trouxe inúmeras vantagens para as nações desenvolvidas e, apesar da propaganda, em escala muito menor, para os países emergentes, continuando a representar sério problema ao crescimento do PIB mundial e à solução dos inúmeros problemas econômicos e sociais de vastas áreas do globo. Quando se sabe que mais de 200 milhões de pessoas, no mundo, têm salário diário inferior a 1 dólar e que 2 bilhões não recebem 100 dólares por mês, percebe-se que a globalização longe está de solucionar os principais problemas econômicos do planeta, que resumo em duas grandes questões, ou seja, a questão monetária e a questão do comércio internacional. A QUESTÃO MONETÁRIA A moeda é uma realidade virtual. Não vale por si só, mas pela confiança que nela depositam. Quando não se confia na política monetária de um país, a moeda nada vale. A perda de substância é proporcional à perda de confiabilidade. Os países não têm, portanto, moeda, mas apenas sistemas que lhes permitem adquirir confiança na virtualidade deste instrumento de troca e de reserva. Galbraith, em seu “A Era da Incerteza”, declara que se todos soubessem de que forma os bancos trabalham com suas poupanças nunca deixariam seu dinheiro lá. É graças, porém, ao trabalho dos bancos que as pessoas ficam ricas e as empresas crescem, gerando empregos e desenvolvimento. A inflação não é senão um fenômeno de falta de confiança na moeda. Embora gerada, no mais das vezes, por “déficits públicos” incontroláveis, o certo é que quanto menos se confia na capacidade de os governos controlarem seus desperdícios e sua moeda, tanto mais a inflação se torna aguda, por falta de confiança. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 125 As denominadas inflações de demanda e de custo, originadas dos mercados, de rigor, são de fácil controle, se os Bancos Centrais adotam a política monetária correta (juros elevados na demanda e controle da expansão monetária na de custos). Irving Fischer, na sua teoria quantitativa da moeda, vincula a inflação a um descontrole do nível de preços, em fórmula clássica: P = MV T Ou seja, o nível de preços é igual à quantidade da moeda multiplicada pela velocidade de circulação, dividida pelo volume de transações. Sempre que se aumente um dos fatores da segunda parte da equação (quantidade de moeda ou volume de circulação) e se mantenha estável o volume de transações, o nível de preços fatalmente aumentará, impulsionando a inflação. O certo é que ninguém quer ficar com uma moeda inconfiável e por isso sua velocidade de circulação aumenta potencialmente, por se tornar uma “batata quente” nas mãos de quem a recebe, que dela quer se livrar, o mais rapidamente possível. E, à evidência, tal velocidade determina a substância da moeda, que se desvaloriza com tanto maior velocidade, quanto maior a inconfiabilidade. Ocorreu tal fenômeno na Alemanha, em 23 e 48, e, no Brasil, só foi controlado pelo mecanismo da indexação monetária, que, todavia, serviu como fator de realimentação inflacionária. A verdade é que os países emergentes, na década de 90, conseguiram, a duras penas, contornar o processo inflacionário, que, todavia, continua à espreita de oportunidade para voltar, em face da fragilidade das bases que permitiram sua erradicação. É que os problemas estruturais dos governos dos países emergentes geram “déficits públicos”, cujo limite de financiamento pelo mercado pode se esgotar e que também podem sinalizar aos mercados a incapacidade de serem debelados, ocasião em que o pânico dos investidores acelera os processos desvalorizativos. E o problema mundial de os ativos financeiros serem mais do que duas vezes superiores ao PIB anual do mundo, sendo que ¼ deles fora dos controles dos Bancos Centrais, demonstra que embora as políticas monetárias sejam sinali126 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 zadas pelos Bancos Centrais, a determinação de seu acerto ou fracasso depende da avaliação de investidores que estão fora do alcance de tais políticas. Estes, ao avaliarem-nas, podem sair de um país para o outro em questão de segundos, gerando crises internacionais como as que se viu no México, Indonésia, Malásia, Coréia do Sul, Brasil e Rússia, na década de 90. Acresce-se que tais ativos circulam, em grande parte, por paraísos fiscais, que continuam fora de qualquer fiscalização segura por parte dos países mais desenvolvidos, ao ponto de o tema estar permanentemente em discussão, nas reuniões anuais do G-8, sem se vislumbrar, entretanto, uma forma de controlar o fluxo de tais investimentos. Sempre que há crise, o capital especulativo busca segurança, chegando-se aos países desenvolvidos. Sempre que o período é sem turbulências, tais ativos buscam rentabilidade, sendo direcionados principalmente para os países emergentes que, ávidos de recursos, ofertam juros e rentabilidade maior do que a dos países desenvolvidos. E há uma substancial parcela de recursos do narcotráfico que engorda tais ativos e que, lavadas pelo sigilo financeiro, circula por todas as empresas de capital aberto do mundo e sedia-se nos paraísos fiscais, onde a falta de controle das empresas é permanentemente assegurada. E tais capitais quase sempre fogem dos países desenvolvidos, pelo risco de serem descobertos os seus reais detentores. O grande desafio, portanto, que os Bancos Centrais do mundo inteiro terão que enfrentar, no século XXI, é como permitir que a moeda se universalize e fique estável, sem os ataques dos fluxos financeiros incontroláveis, política que, a rigor, pertence mais a eles do que ao FMI, embora seja este o instrumento de busca de estabilização das políticas monetárias enfraquecidas dos países membros. Infelizmente, os métodos da terapêutica do FMI não têm sido eficazes. A QUESTÃO DO CONTROLE EXTERNO Os órgãos internacionais regulatórios da Economia foram idealizados pelos países desenvolvidos e seguem uma mecânica por tais países idealizada. Deles participam, todavia, nações desenvolvidas e emergentes. Entre os de maior expressão estão o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio. Há outros órgãos supranacionais, mas de atuação em espaços comunitários determinados, como o são o Parlamento Europeu, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 127 Conselho e Comissões, o Tribunal de Luxemburgo, todos na União Européia, ou os órgãos criados no Mercosul, principalmente após o Protocolo de Ouro Preto. Tais “repartições” internacionais atuam, todavia, apenas nos espaços comunitários a que pertencem. Há órgãos de maior abrangência, como a ONU, que possui seu departamento econômico e diversas entidades vinculadas, como a FAO, UNICEF, UNCTAD etc., mas sua importância decisória não tem a mesma dimensão dos 3 primeiros citados. O Fundo Monetário Internacional é um banco dedicado exclusivamente a manutenção de estabilidade monetária mundial. O Banco Mundial é um fundo destinado a apoiar programas e projetos de desenvolvimento econômico ou social de países ou entidades paraestatais. O Fundo é um Banco e o Banco é um Fundo. Por fim, a Organização Mundial do Comércio, que substituiu o GATT, na busca da disciplina internacional da concorrência, é órgão que está a serviço da comunidade internacional, impondo padrões idealizados pelos países desenvolvidos e subtraindo da livre concorrência, no comércio externo, segmentos que esses países não desejam que estejam regulados pela OMC. É o que ocorre com a agropecuária européia, nitidamente protegida por regras próprias, que ferem o regime jurídico da concorrência internacional. São órgãos de que todos os países participam, mas dirigidos por pessoas indicadas pelos dirigentes dos países desenvolvidos. Compreende-se, pois, que em 1979, no “Tokyo Round” do Gatt, os Estados Unidos tenham imposto uma política de protecionismo ao comércio exterior, em face do 2º choque do petróleo. Após a queda do muro de Berlim, promoveu, entretanto, uma selvagem política de abertura de mercados assegurada pela OMC, conservando, todavia, os privilégios das sobretaxas para os segmentos em que não é competitivo, através de julgamentos internos e não internacionais. O mesmo ocorre com os privilégios agropecuários da União Européia. Compreende-se porque nem Estados Unidos, nem União Européia desejam discutir a abertura dos setores onde não são competitivos. A alegação de que a pressão interna traria problemas de governabilidade é acintosa! Tal tipo de raciocínio demonstra claramente a opção preferencial pelos países ricos que tais instituições econômicas internacionais fazem, à luz da “igualdade de competir”. Lembra a irônica observação de Anatole France, 128 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 de que a beleza da liberdade residia no direito que tanto os ricos quanto os pobres tinham conquistado de viver embaixo de pontes. Igualdade de oportunidades, por esta concepção, consiste na destruição dos pobres em benefício dos ricos. De certa forma, os órgãos internacionais de comércio adotam a linha de pensamento, que repito, de Cálicles, no diálogo Gorgias, de Platão, em que, pelo direito natural –visão derrubada na obra de Platão pela manifestação de Sócrates—, os fortes têm direito natural a sua fortaleza e os fracos direito natural a sua fraqueza, razão pela qual a lei deve ser neutra, sem protecionismo, vencendo, nos embates da vida, quem for mais forte. Sócrates retrucou que se a lei não protegesse o mais fraco contra o mais forte, em breve a sociedade deixaria de existir e os fortes não teriam como exercer sua fortaleza, pela eliminação dos fracos. É que a lei ao reconhecer um direito natural, pelo princípio da solidariedade, e garantir força ao fraco, fortalece também o forte, que terá como exercer sua fortaleza numa dimensão maior. O certo é que a opção preferencial pelos ricos, dos organismos internacionais, levou a dois fracassos recentes (Seatle e Davos), que David Woods, em seu estudo sobre o “Fiasco de Seatle” (Braudel Papers, n. 25, 2000), atribui a esta visão preconceituosa dos países desenvolvidos, e que Luiz Felipe Lampréia com propriedade assim define: “O mundo real não oferece igualdade de condições para todos. Como um mínimo, entretanto, devemos estar submetidos a regras de aplicação geral, regras que não são escritas apenas para proteger os fortes de suas fraquezas e impedir que os fracos se aproveitem de suas vantagens. Esta é a nossa tarefa, agora e nos anos que virão” (p. 8 da mesma publicação). Uma última observação sobre os privilégios auto-outorgados encontra-se na denominada “janela de mercado”. Muitos dos especialistas europeus e americanos entendem que o organismo instituído para substituir o GATT, em 1995, terá que modificar o “tratamento preferencial pelos ricos”, conformado em normas estabelecidas para serem seguidas pelos 138 países membros, sem consulta a 109 deles, que não integram a OCDE. Um dos procedimentos típicos de tratamento preferencial para as nações Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 129 mais ricas é o da cláusula “janela de mercado” (“window market”). Altos funcionários dos Estados Unidos entendem que as operações realizadas com base nessa cláusula de autêntico privilégio aos países desenvolvidos, afetam a estabilidade da OMC, como órgão regulador do comércio exterior. Por ela, todos os subsídios oficiais, que os governos dos países mais ricos ofertam a suas empresas exportadoras, se puderem ser veiculados por agentes que atuam no mercado (daí a designação “janela de mercado”) não são considerados “subsídios”, não podendo ser punidos pela organização. Essa cláusula, formulada pelas nações mais desenvolvidas, e que passou a ser imposta aos países que foram aderindo primeiro ao GATT, depois à OMC, conformou sofisticado sistema disfarçado de estímulos para suas empresas, assegurandolhes considerável vantagem em relação às nações não participantes da OCDE. Este mecanismo foi introduzido a partir de um acordo internacional de créditos oficiais para a exportação, de 1979, beneficiando, fundamentalmente, os países que o assinaram. O Brasil aceitou tal imposição em 1987. O princípio da “janela de mercado” (“window market”) é uma farsa. Um disfarce cínico imposto pelos “legisladores” da OMC para assegurar, em favor de seus países, vantagens em setores nos quais não são competitivos, com o aval legal, reeditando a fábula do cordeiro e do lobo. Assim, a Bombardier é muito mais subsidiada que a Embraer. Os juros de financiamento que recebe, pela “janela de mercado”, são inferiores ao do programa Proex, mas considera os juros pagos pela Embraer, no programa Proex, concorrência desleal, apesar de serem maiores do que aqueles de que a Bombardier se beneficia, por se utilizar do mecanismo privilegiado de “janela de mercado”. Tais distorções em organização fundada pelos países ricos, com regras por eles próprios definidas, geram descompassos nas nações emergentes e dificuldades concorrenciais. Tais expedientes têm sido duramente condenados pelos especialistas, ao ponto de inviabilizarem a rodado do milênio de Seattle. É que os países mais pobres já perceberam que são apenas campo de manobra para os comandantes do mercado internacional. Onde os grandes são competitivos, globalização; onde não, protecionismo forjado em normas semelhantes às da “janela de mercado”. Estou convencido de que, se não houver um esforço para corrigir tais “privilégios”, nova rodada de comércio redundará em fracassos semelhantes ao de 130 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Seattle e Davos. Talvez, o alerta do ano passado na reunião dos países emergentes em Bangcoc, deva ser levado em consideração, para evitar-se o insucesso naquela que se pretende organizar, no fim do ano. Haverá, necessariamente, o enfraquecimento da OMC, se o seu regime continuar a proteger o grupo da OCDE e a União Européia, visto que os produtos agropecuários, não foram objeto de formatação, nas leis da Organização Mundial do Comércio, em sua origem, dependendo, agora, da concordância dos 15 países, a discussão de tal matéria, no âmbito da instituição protecionista das nações mais ricas. O episódio da vaca louca, cujos germens da doença parecem ter contaminado a cabeça dos dirigentes canadenses financiados pela Bombardier (financiou pesadamente, segundo noticiam os jornais, a campanha do partido vencedor nas últimas eleições) serve como lição e alerta para o Brasil e para as 108 nações de segunda categoria, que não participam do G-8, nem da OCDE, e que sofrem as regras preferenciais dos ricos para o comércio exterior, estabelecidas pelas outras 29 nações. Que o episódio auxilie, na próxima rodada, a torpedearem em bloco as preferências elitistas e aristocráticas pelos poderosos, procurando a adoção de um regime comercial mais justo, se possível, com redução da influência deletéria e corrosiva do protecionismo do governo canadense, americano e dos países da União Européia. Como se percebe, a luta do Brasil em procurar fortalecer o bloco Mercosul junto a ALCA, com abertura para a União Européia, objetiva fundamentalmente permitir que tenhamos autonomia presente e independência futura de não figurar apenas como uma nação subordinada ao controle, ao comando e as variações de humor dos dirigentes das grandes nações. Basta que a Argentina, seduzida pelos cantos de sereia dos que querem destruir o Mercosul, inclusive seu Ministro Cavallo, formado em Harvard, não atrapalhe. SP, 19/04/2001. *Professor Emérito das Universidades Mackenzie, Paulista e Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária - CEU. e.mail: [email protected] IGSM/mos/A2001-30 O Futuro da Globalização Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 131 Jorge Calvario dos Santos* Tem-se identificado, o problema da incompatibilidade entre a formação social do Brasil, ou melhor, a formação cultural brasileira e a modernidade. Esse é o grande e relevante conflito. Ele está muito bem identificado, pelo menos em um certo nível metafórico. Mas é preciso compreender como se dá essa incompatibilidade e por que persiste esse dilema. Ciência e consciência caracterizam a modernidade anglo-saxônica tal como afirma Richard Morse1 (Morse, 1995). Isso é o mesmo que mundo geometrizado, calculável, tendo como sujeito o cogito. A consolidação da modernidade, não só pela adoção da cientificidade, mas pela descoberta do sujeito que lhe é próprio, foi realizada pelo protestantismo. Isso é um convite para que rompamos com a nossa aceitabilidade dos fatos, com a nossa passividade, com nosso conformismo, que tem permitido que a qualidade de refletir, inerente ao homem está desaparecendo. Faz-se necessário entender reflexão como a volta da consciência, do espírito, sobre si mesmo, para examinar o seu próprio conteúdo por meio do entendimento, da razão. Vamos refletir sobre as conseqüências primeiras e talvez mais importantes da Modernidade, naquilo que diz respeito ao que melhor caracteriza o ser humano: sua subjetividade. Todas as ideologias modernas se reportam à ciência, como nos diz Freyer. Isso parece ser o caminho natural pois, no mundo de hoje, neste final de século XX, a ciência e principalmente a técnica estão presentes em todos os quadrantes da vida, sendo o mais significativo instrumento de poder (Freyer, 1965). Vários são os marcos ou datas que os autores tomam para referenciar o início da modernidade, um processo que levou cerca de quatrocentos a seiscentos anos para se consolidar. Um processo que para alguns autores, passando pela aristotelização da Europa, a partir do ano 1000, teve sua preparação iniciada com Abelardo, seguido pelo tomismo, por Copérnico, pelo Renascimento, pelos Descobrimentos, por Galileu, pela Revolução 132 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Inglesa, por Newton, por Descartes e Bacon, vindo a consolidar-se com a Revolução Industrial. Os árabes, após terem descoberto as obras de Aristóteles, junto aos Gregos, traduziram-na e pretenderam difundi-la. No mundo, à época, Aristóteles era muito pouco conhecido. O conjunto das obras de Aristóteles não era difundido na Europa. Embora ensinado livremente em Oxford, esteve proibido em Paris até meados do século XIII. Foi apenas a partir dos anos 1100 - 1200 que houve ampla divulgação da obra de Aristóteles. Entretanto os árabes não conseguiram aristotelizar seu próprio mundo. Os xiitas repudiaram a aristotelização árabe e por conseguinte as obras de Aristóteles foram levadas para o mundo que haviam conquistado ou que estava sob sua influência. Com o tempo, a aristotelização passou a ser a teoria e o tema da classe dominante e levada para a cultura ibérica difundindo-se por outras culturas. Abelardo iniciou a preparação para a modernidade quando afirmou que era possível reexaminar os conteúdos de fé, para produzir uma estrutura logicamente demonstrável de racionalidade, que sustenta a crença em todas as esferas de opiniões e de ação. Abelardo esboça duas noções fundamentais para qualquer consideração da civilização ocidental: a da ciência, que aplica os primeiros princípios do intelecto na ordem teórica, e a consciência, que os aplica na ordem prática. Essas duas noções esboçadas por Abelardo podem colocá-lo como precursor de Descartes. Se não como precursor, certamente como o verdadeiro iniciador da modernidade (Morse, 1995). Descartes foi quem inaugurou a modernidade quando uniu o cogito à ciência (Geometria), cuja lógica foi concebida por Aristóteles. Assim, Descartes uniu a ciência com o sujeito liberal cogito, que no fundo é a modernidade. Por isso ele é o marco filosófico para a modernidade. Ele afirmou que o mundo objetivo era geometria, que era calculável, que era um sistema axiomático fechado e o sujeito disso era o cogito, completamente transparente a si mesmo, ou um sujeito de projeto, ou um sujeito liberal. Isso que foi desvelar e instalar o sujeito da ciência, o sujeito liberal, demorou mais de 400 anos se estruturando e consolidando. Não devemos esquecer de São Tomás de Aquino, que foi o sistematizador da modernidade no cristianismo. O apogeu do pensamento sistemático cristão registra-se com Tomás de Aquino, de 1250 a 1274, ano de sua morte. Sua tarefa, sua grande conquista foi unir os princípios filosóficos de Aristóteles com os preceitos da Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 133 teologia cristã numa estrutura racional harmoniosa. Richard Morse considera a existência de dois momentos fundamentais para a modernidade: o momento anglo-saxão e o momento ibérico, ilustrado na figura 1. A cultura anglo-saxônica que se caracteriza por ter em sua essência, a valorização da ciência e do indivíduo, que influenciaram fortemente a religião predominante, o protestantismo, termina por representar o centro da modernidade. A cultura ibérica que é caracteriza por ter em sua essência a valorização da ciência e do coletivo, forte contribuição dos jesuítas, torna-se uma forma degenerada, instável da modernidade. A significação da cultura ibérica se faz evidente quando consideramos que as revoluções religiosa e científica, em suas trajetórias de incidência, não dividiram a Europa em duas. O protestantismo prosperou ao longo de um eixo setentrional leste-oeste, enquanto a ciência desenvolveu-se num eixo norte-sul inclinado para a península italiana. Contra esse pano de fundo, fica evidente que as tradições européias que deram forma à íbero-américa foram especificamente ibéricas e não, vagamente, católicas ou mediterrâneas. A Espanha quase não foi afetada pela Reforma protestante ou pelo Renascimento em sua forma italiana. A reforma católica na Espanha antecedeu a revolta luterana e teve o mesmo caráter da subseqüente Contra-reforma, que culminou num movimento autóctone e não simplesmente numa reação defensiva contra heresias estrangeiras. Para Morse, a posição relativa entre essas duas culturas não está estabilizada. 134 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 A cultura anglo-saxônica, predominante e hegemônica, vai perder sua posição privilegiada. Haverá no futuro, uma inversão, uma troca de posições entre as duas culturas: a cultura anglo-saxônica cederá seu lugar privilegiado à cultura ibérica. Morse ainda afirma que os ibero-americanos são partidários da doutrina e da ordem social, enquanto os anglo-saxões são partidários do pragmatismo (Morse, 1995). Crítica à concepção de Morse No caso, considerando que a possibilidade de o fato vir a ocorrer num futuro próximo, estaremos tratando, não mais com a cultura ibérica mas com a cultura brasileira. A concepção de Morse nos conduz à reflexão sobre o ponto de inflexão, o momento de superação da cultura anglo-saxônica pela cultura ibérica. Se Morse tem razão, haverá uma troca de prevalência ou de hegemonia entre as culturas e, portanto não haveria nada a fazer. Bastaria dar tempo ao tempo e aguardar as transformações que certamente serão favoráveis. Mas estará correta a concepção de Morse? Entendo que não por duas razões. Como falar em decadência da cultura anglo-saxônica, se ela mostra ter vitalidade, está dando certo, é hegemônica e não há ameaça de força? O que fará com que a cultura ibero-americana tenha uma vitalidade necessária para superar a cultura anglo-saxônica? Com relação a primeira questão, entendo que, a queda da cultura anglosaxônica não se dará tão cedo, ainda que venha a ocorrer. É uma cultura que conseguiu integrar todos os indivíduos e fazer com que a preservem. Conseguiu manter-se original, sem sofrer significativa interferência por parte de outras culturas. A definição do indivíduo como uma de suas características fundamentais tem função importante pois, assumida pela religião protestante que é sua religião predominante, é fator de vitalidade cultural. Acrescenta-se a isso, o sujeito liberal que demorou cerca de 400 anos para se constituir e lá, produzir a modernidade. Sendo a modernidade caracterizada pela ciência, por sua vez governada pela lógica clássica, possibilita o exercício das opções críticas ideológicas. Cabe ressaltar o aspecto dissimulado das ideologias porque elas deixam sempre a salvo, ao abrigo de qualquer suspeita, a ciência e a técnica. As ideologias contestam o poder porque a querem mais perfeita, não no que se Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 135 refere às suas virtudes, mas na dissimulação de sua fragilidade. Falamos das ideologias à direita e à esquerda do paradigma anglo-saxão, que impõe sua hegemonia. Ambas falharam porque queriam o capitalismo perfeito. O fato de a ideologia afastar-se daquilo que constitui a essência do dinamismo da modernidade, a ciência, só pode ter como razão o afastamento dos caminhos que podem levar, de fato, à superação da modernidade. Assim podemos afirmar que a ideologia é uma forma dissimulada de fazer ou manter a modernidade. Freyer2 parece confirmar quando afirma que todas as ideologias modernas se reportam à ciência. Isso parece ser o caminho natural, pois no mundo de hoje, neste final de século XX, a ciência e principalmente a técnica, governadas pela lógica clássica, estão presentes em todos os quadrantes da vida, sendo o mais significativo instrumento de poder. O aspecto dissimulado das ideologias é importante, porque ela deixa a ciência, intocada e acima de qualquer suspeita. Afastando a ciência de qualquer questionamento, que é justamente a essência da modernidade e responsável pelo seu dinamismo, as ideologias expõem sua principal função como sendo a de bloquear os caminhos que podem levar à superação da modernidade. Assim, contribuem de fato para a perpetuação da cultura que para se manter hegemônica necessita explicitar sua característica etnicida. E a ciência? O que dela esperar? Nunca houve uma crítica científica da modernidade. Talvez jamais isso venha a ocorrer. Como pode ser possível a ciência se dispor à criticar a modernidade se é ela própria seu fundamento? Uma autocrítica da modernidade se constituiria a auto-crítica da própria ciência, o que é incompatível com a lógica que a governa. É como uma filosofia capaz de compreender e não apenas negar. Por tais razões, entendemos que não ocorrerá, a inversão tal como sugere Morse. Dramáticas conseqüências Sendo a modernidade caracterizada pelo sujeito liberal intervalar e pela ciência que por sua vez governada pela lógica clássica ou formal, a cultura anglo-saxônica tem no indivíduo o centro de suas atenções. Sendo o indivíduo caracterizado pela ação, pelo projeto, pela determinação, pela razão, objetividade, ao se identificar com a ciência, conduz o mundo a uma nova formatação. Surge daí, a necessidade de recalcar tudo o que fosse diferente das características de projeto, de ação. Uma das principais e mais dramáticas etapas da modernidade foi a Inquisicão. 136 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Pela necessidade de elevar as características lógicas ditas masculinas (Lacan), projeto, ação, determinação e outras mais, a Inquisição buscou recalcar o diálogo, a tolerância, a conciliação, características lógicas ditas femininas (Lacan). Por isso, mais de 1000 000 mulheres foram o principal objeto de perseguição pela Inquisição e mandadas à fogueira. Tanto se propala que foram mortos muitos os cientistas, mas tem-se conhecimento de que o único homem, que teve importante contribuição para a ciência, morto pela Inquisição, foi Giordano Bruno. Em termos lógicos, o ser-masculino é o próprio ser cartesiano, o ser da modernidade: tendo sempre presente na cabeça o projeto de ver o mundo geometrizado, calculado, previsível. É importante lembrar que a imposição da modernidade fez-se, por um lado, com a sobrevalorização, no homem, da racionalidade clássica e de sua autonomia projetiva. Por outro lado, se fez também pela sub-valorização ou recalque da feminilidade. Como o desejo é o desejo do outro, assim nos ensina Lacan, a tarefa entendida como necessária, precisou ser executada justamente sobre o sexo oposto. Isso significa foram consumidos de três a quatro séculos de ingentes esforços para aquietar a sexualidade feminina e assim destacar ou realçar a lógica masculina. Foi a época da caça às bruxas, enfim, do recalque das lógicas femininas e masculinas, na lógica lacaniana. Os últimos cem ou cento e cinqüentas anos, mas principalmente o século XX, foi testemunha das dramáticas conseqüências da dinâmica da modernidade, verificada através dos inúmeros conflitos armados. Quase todos esses conflitos ou foram de origem cultural ou foram um forma de reação à modernidade. Entretanto é importante ressaltar o fim das ideologias à esquerda e à direita da modernidade. Com relação às ideologias, ditas de direita e de esquerda, observa Walter Benjamin que a ideologia de direita estetiza a política e a de esquerda politiza a arte. Isso também nos mostra como a ideologia atua sem sequer tentar superar a modernidade. Isso que foi desvelar e instalar o sujeito da ciência, o sujeito liberal, demorou cerca de 400 anos sendo estruturado, se consideramos o início da Revolução Inglesa em 1620, como marco. Se quisermos entende-lo melhor, devemos observar os filmes produzidos pelos Estados Unidos, e identificar o herói criado pelo cinema nos estúdios de Hollywood, que o representa e o divulga com fidelidade. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 137 Observa-se que todos os filmes estadunidenses são a mesma coisa. Naturalmente uma caricatura. Existe apenas um filme estadunidense. Existe um sistema funcionando, aí ocorre o contingente: seja a chegada da estrada de ferro, um ataque contra os índios, um assalto, um estouro de uma manada de búfalos com risco de atingir ou de destruir algo, ou qualquer coisa que possa fazer romper o funcionamento do sistema comunitário. No cenário, surge um indivíduo isolado, jamais a comunidade, e que faz o sistema entrar novamente em funcionamento. Aqui no Brasil, é costume dizer que os estadunidenses fazem filmes só para nos enganar. Isso não é verdade. Eles fazem filmes para reiterar o que são. Depois vendem para nós e não correm o risco de que sejam sequer compreendidos e muito menos imitados porque sabem que não conseguimos ver o filme, ou seja, vemos outro filme, não como cultura, mas como entretenimento. Esse, como todos os outros, é um filme do mesmo e eterno herói hollywoodiano. O herói que depois que consertar tudo, de colocar novamente asa coisas no devido rumo, sai sozinho pela estrada, sem sequer olhar para trás. Todos os filmes são sempre o mesmo filme. Isso é cultura. Eles têm uma, e nós ainda em processo de consolidação, se assim o quisermos. Em contraposição, eles estão apenas globalizando aquela cultura criada no Velho Mundo. A modernidade se caracteriza por ser governada pela lógica clássica ou formal. Essa é a lógica do sistema, a lógica aristotélica, a lógica mortal, a lógica funerária. A única coisa que é um sistema perfeito – um quadrado com uma porção de quadrados dentro – é o cemitério, completamente calculável, enquadrando-se perfeitamente dentro dessa lógica. Por isso podemos entender porque a economia liberal nos leva a todos rumo ao cemitério e porque razão a cultura dominante usa suas forças armadas para garantir a hegemonia de sua cultura. Não é possível ter uma cultura viva que seja puramente científica. Isso é uma impossibilidade, porque seria sacralizar a ciência. Quem vai a Westminster, vê o túmulo de Newton. O túmulo de um físico no meio da igreja. É algo para parar e pensar. Pensar no valor dado à ciência na Inglaterra de 1600. A tendência era sacralizar Newton, mas felizmente, para eles, os de fora da igreja não seguiram o propósito pretendido pelo poder. Um sistema não pode fazer outro sistema. Quando se faz um sistema qualquer, não é possível ele próprio gerar outro, ainda que similar. Uma álgebra não gera outra álgebra. É necessário um sujeito no meio que é o sujeito 138 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 intervalar entre dois sistemas. O que se pode sacralizar é a cultura da sistematicidade, da cientificidade, mas simplesmente seria impossível sacralizar o sistema ou a ciência. Assim, a consolidação da modernidade, não pela adoção da cientificidade, mas pela descoberta do sujeito que lhe é próprio, foi feito pelos protestantes. Por terem expulsado o sujeito próprio à modernidade, o sujeito anglosaxão o sujeito de projeto, ainda que tivessem iniciado a modernidade, com a sua lógica clássica ou com a burocratização do mundo, Portugal e Espanha, à época na vanguarda, perderam essa posição justamente por terem expulsado o referido sujeito da modernidade. Em seu livro O Espelho de Próspero, Richard Morse, usa a expressão, compacta, para caracterizar a modernidade anglo-saxônica: ciência e consciência. O problema é quem vai ser o sujeito da lógica clássica, do sistema, da ciência, ou seja, a ciência vai ser feita para que, por quem e em proveito de quem? Para os anglo-saxões, todos os cientistas estão a serviço da reprodução da sistematicidade. Eles tem liberdade, há uma liberdade de fato, precisamente aquela de um sujeito hollywoodiano, para que a sistematicidade prevaleça. Isso nos mostra a loucura em que estamos envolvidos. Ao olharmos o mundo deste final de século, constatamos que vivemos apenas para reproduzir um mecanismo completamente cego, destituído de qualquer finalidade, fazendo com que a morte deixe de ser um episódio para transformar-se num todo sistêmico, um mundo sem história. Congelar a história é o mesmo que querer apreciar ou vivenciar a sua própria morte. Uma impossibilidade. Nesse quadro não há necessidade de planejamento, o que interessa é apenas o momento. Podemos entender um país como uma dialética entre duas dimensões: a geográfica e a cultural. A dimensão representada por uma área geográfica é delimitada pela soberania política e a dimensão representada por uma área cultural mais ou menos homogênea, que não coincide com sua delimitação geográfica ou não faz parte de sua soberania política por não ser sempre bem delimitada. Um país possui soberania sobre seu espaço geográfico. A dimensão cultural pode ser interior ou exterior ao espaço geográfico delimitado pela dimensão política. Vejamos a cultura Basca que ocupa um espaço geográfico interior à Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 139 duas soberanias políticas, a França e a Espanha. Temos a Irlanda, com os protestantes e católicos que estão em permanente conflito na Grã-Bretanha. Temos a Federação Russa com sua multiplicidade de culturas sobre uma única soberania política. A China com os muçulmanos chineses. Temos os Curdos, e outros mais. Existem ainda áreas de culturas que formam um espaço difuso tal como vemos na Europa, por exemplo regiões de cultura alemã localizadas fora do espaço geográfico alemão mas dispersas por vários países. Logo, percebe-se a fundamental importância da cultura para a soberania e a sobrevivência de um país. Isso também mostra porque o aspecto cultural é o mais importante dos determinantes sociais a longo prazo, ainda que possa existir ou persistir uma indeterminação quanto ao seu exato momento e que a cultura é determinante para a evolução ou dissolução das nações. O muro de Berlim é um bom exemplo. Era muito comum ouvir dizer que a queda do muro era imprevisível. Na verdade, a queda era perfeitamente previsível pois nunca houve um muro que se fizesse muro, ou seja, que dividisse a Alemanha, ou melhor, que dividisse a cultura alemã. O muro que separava a Alemanha em duas áreas caiu sem que nada fosse feito, porque ele jamais existira como um muro cultural, mas apenas como um muro de concreto que separava duas áreas físicas. Não era um muro cultural, era apenas um muro de concreto. Entendemos que um país é uma dialética entre uma área de fronteira política e uma área de fronteira cultural mais ou menos homogênea. O aspecto econômico funciona entre o político e o cultural. Vejamos a Alemanha. É uma área de fronteira política menor que sua área de fronteira cultural. Isso é razão para criar um tipo de problema cuja resposta pode ser de invadir uma outra unidade política. A antiga União Soviética, tal como a Rússia atual, é um problema inverso. Historicamente é uma área de fronteira política maior que a área de fronteira cultural. Isso leva a graves problemas de estabilidade interna. Com tempo a Rússia deverá ter sua política interna agravada. E os Estados Unidos? Por que são fortes e poderosos? Eles tem um esquema de impor sua cultura. Veja o papel de Hollywood. Veja o esquema interpretativo que todo estadunidense possui. Os Estados Unidos tem um esquema de aculturação que força a transformação de qualquer indivíduo em cidadão estadunidense. Eles, ou ao menos os que participam do esquema de poder, entendem o real papel da cultura em todas as suas dimensões. 140 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 No decorrer da história, observa-se que muitas nações são lideradas culturalmente por outras. De modo geral, quase que sem exceção, as que lideram usam essa liderança cultural para induzir e, até mesmo, forçar determinadas atitudes políticas das nações menos poderosas. Tão importante é a dimensão cultural no processo histórico, na vida nacional, no pensamento e no imaginário coletivo que os países centrais procuram vulnerabilizar as culturas dos países de menor poder nacional e preservar a sua, a qualquer custo. Por fim, a Modernidade renega e é cega para tudo que não é o seu eu e não serve ao seu eu. Cerco pelas variantes culturais dominantes A UNESCO, por intermédio da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação, publicou, em 1980, documento intitulado Muitas Vezes, um só Mundo, em que propôs a chamada Nova Ordem de Informação Mundial. O Rapport de la Commission Mondiale de la Culture e du Développement, relatório da UNESCO, publicado em 1995, apresenta e é prova do grande malefício que é intentado pelos detentores do poder mundial contra a humanidade, em especial, contra as nações periféricas, ainda não totalmente desenvolvidas. O relatório propõe uma série de medidas que visam a cultura. Isto é relevante porque a existência da nação como tal, a unidade nacional e a nacionalidade são construídas sobre a cultura da nação. Não devemos nos esquecer de que o indivíduo tem lealdade à sua pátria, ao seu país, à sua nação porque ele, acima de tudo, tem lealdade à sua própria cultura, que é a cultura de seu grupo social, de sua nação. Isso porque o indivíduo é, antes de tudo, a sua própria cultura. Por tal razão, é que o sistema de controle e dominação procura interferir na cultura nacional, para poder atingir seus objetivos. O relatório procura justificar sua postura ou seu intento, com a criação de uma ética universal. Essa ética deve se sobrepor a todas as éticas culturais e terá o poder decisório sobre o que qualifica, diferencia e caracteriza a essência dos grupos sociais e das nações. O indivíduo seria fortemente afetado naquilo que lhe é mais característico, naquilo que compõe sua essência, já que ele é sua cultura. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 141 Pelos estudos da UNESCO, dentre as inúmeras medidas propostas está a criação de um tribunal destinado a tratar das violações dos direitos culturais. O tribunal produziria um código de cultura, que serviria de base para definir violações dos direitos culturais. Algumas questões são importantes e precisam ser explicitadas. A quem interessa a existência de um tribunal com tal proposta de atuação? Quem definiria os princípios, as regras e a legislação a serem seguidos? Os países fracos, sem significativo poder nacional, teriam poder suficiente para fazer valer sua posição? Como é possível julgar qualquer tipo de assunto vinculado à cultura nacional? É possível tratar a questão cultural, que é a essência da unidade e da coesão de uma nação, em um tribunal? Como é possível falar em direitos culturais? Sendo a cultura a essência de cada grupo social, de cada nação, como seria possível criar uma ética universal acima das éticas culturais, de modo a servir de paradigma para julgá-las? Aterrador, entretanto, é que existe a pretensão de que o código internacional de conduta seja jurídico. Pretende-se que sua destinação seja a de tratar de crimes, quando é proposta a inclusão de crimes culturais no código de crimes contra a paz, é criado um código penal cultural. As nefastas conseqüências são visíveis a todos. O sistema de controle e dominação pretende adquirir assim, legitimidade e passa a ter um arcabouço jurídico e existir legalmente. Um dos processos utilizados, já em andamento e de grande eficiência, para desestruturar a cultura nacional, é a interferência cultural dirigida. Crítica à Modernidade Como visto, podemos entender a modernidade como sendo a conquista da ciência e da técnica por uma cultura ou como ela se apresenta, na versão anglo-saxônica. Na versão anglo-saxônica, a modernidade tem a conotação de ser a ideologia de todas as ideologias, que sugere a si mesma a perfeição da perfeição, pretendendo que a história chegue ao seu fim. Isso requer uma crítica, de fato, uma refutação, para que seja possível, no plano teórico, filosófico e por fim prático, a realização, dentre outras tantas ações, de um planejamento estratégico integral. A primeira crítica que se faz é relativa as ideologias à esquerda e à direita do paradigma anglo-saxão moderno. As ideologias, de fato, não assustam o 142 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 poder que por sua vez não se sentem por elas ameaçados. Elas criticam o poder instituído porque o querem mais perfeito. Por isso, atuam no sentido de encobrir sua mortal fragilidade. A segunda crítica a ser feita é relativa à ciência e a técnica. Isso porque a ciência caracteriza a modernidade. Entretanto não consegue vislumbrar o que a possa suceder. A humanidade vive sob forte e predominante influência da cultura anglosaxônica, caracterizada pela ciência e a técnica e governada pela lógica clássicada dupla diferença (D/D). Neste final de século, sua criatividade, certamente como conseqüência de seu êxito, vai sendo substituída pelo processo de horizontalização, de forma imperial, ao resto do mundo. Em termos econômicos, isso representa a passagem do capitalismo nacional de produção ao capitalismo globalizado de consumo, paralelo, mas deslocado, a um inconseqüente capitalismo financeiro internacional. As ideologias, tal como afirma Freyer, têm vínculos com a ciência. Entretanto, o que é relevante, é o fato de que o que está por trás de todos conflitos ideológicos nos últimos cento e cinqüenta anos, é a dissimulada questão do sujeito da ciência. É importante insistir no aspecto dissimulado das ideologias porque elas preservam, deixam intocadas, colocam ao abrigo de qualquer suspeita a ciência e a técnica. Sendo a modernidade, caracterizada pela ciência e governada pela lógica clássica, esta questão tem profundas conseqüências. O fato de não ter o propósito de ao menos questionar a sujeito da ciência, só pode ter a intenção de inviabilizar os caminhos que, de fato, podem levar à superação da modernidade, da ideologia que determina o futuro segundo as conveniências ou os interesses da cultura anglo-saxônica. A fragilidade a que se refere, não é da ciência ou da técnica enquanto tal, mas de seu modo dissimulado, de explicitar um futuro em que se vislumbre o homem perfeito biologicamente, ou mesmo à vida eterna. De fato, uma promessa que não tem outro propósito senão o de tornar dispensável o advento do homem em sua plenitude e colocar a ciência e a técnica acima do ser humano. Assim, o homem passaria a ser governado pela ciência e pela técnica, o que já começa a ocorrer, e que representaria a morte da humanidade, como tal. Nesse mundo não haveria, como já, neste final de século, lugar para o planejamento, que parece despedirse ou ser despedido, das atividades em que o homem esteja envolvido. Ambas as ideologias existentes, à direita e à esquerda da cultura angloRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 143 saxônica, da modernidade (ideologia desta cultura), diferenciam-se apenas quanto ao sujeito da ciência. A ideologia à esquerda da modernidade, jesuítica, comunista, socialista, adota o sujeito coletivo. Sua denominação de socialismo científico lhe é apropriada, como ilustrada na figura 2. A ideologia à direita da modernidade, fascista, nazista, tradicionalista, adota o sujeito romântico, telúrico, como ilustrado na figura 3. Sua denominação como nacional socialista, é enganosa, na medida em que sua oposição à esquerda não acontece entre o nacional e o científico, mas precisamente entre o nacional particular e o comunitário universal. Sua denominação apropriada seria nacional científico 144 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Este equívoco mostra suas raízes pela sintomática freqüência com que uma formação ideológica de direita se apresenta não como uma troca de sujeito, mas como se fora uma simples particularização de um sujeito já dado, especificamente, pelo deslocamento do social universal, internacional, em favor do mesmo social, agora restrito ao nacional. Isso acompanhado de propostas de modernização científico-tecnológica da produção e do sistema educacional. A ideologia à esquerda da modernidade, direciona a ciência e a técnica para solucionar os problemas entendidos como de cunho social. A ideologia à direita da modernidade, direciona a ciência e a técnica ao serviço da preservação dos valores e da integridade do espírito do povo. Em ambos os casos, identifica-se uma impossibilidade porque, as duas ideologias poderão assumir um poder totalitário em seu proveito. Isso ocorre porque a lógica (D/D), que governa a ciência, subsume as lógicas (I), (D) e (I/D), governando os seus sujeitos. Por isso as inversões propostas sempre revertem, o que acarreta a perversão dos projetos políticos que se dizem fundamentados naquelas opções, como a história do século XX o demonstrou. Na modernidade. Assim, temos que o sentido da subordinação surge tal como logicamente deve ser: por definição, o sujeito liberal se afigura um sujeito realmente transcendente ao sistema, porém, a ele sujeitado, na medida em que só lhe é permitido operar de modo intervalar entre sistemas que se superpõem e se sucedem. Esta é uma configuração essencialmente perversa, que por isso mesmo, jamais perverte3 . Assim, entendemos que não há saída nem à direita nem à esquerda, apenas logicamente para frente, o que pode significar uma saída original, própria, cultural. Possibilidades de superação da modernidade Cada cultura tem sua lógica de referência e se mantém associada a mais duas outras: a cultura que a antecedeu e a cultura que a irá suceder. A cultura que a antecedeu é quem determina o seu ser desejante, a fonte de seu vigor, de sua criatividade. A cultua que a irá suceder, é quem determina o que deverá fazer para tentar se preservar como cultura de referência. Determinará o que, através de uma artimanha defensiva, intentará simular ser. Deverá procurar fingir que não é aquilo que é, mas, sim, procurará se mostrar como seu próprio futuro que, em desespero, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 145 tenta antecipar, vale dizer, a cultura que a irá suceder. A atribuição de uma lógica à uma determinada cultura, como já assinalado, precisou ser feita desde que mantido o postulado da igualdade entre todos os homens. Isso, conduz ao reconhecimento de uma certa equivalência de todas as culturas. Essa equivalência, é uma tese muito cara aos estruturalistas e relativistas da atualidade. Em que pese seu parti pris lógico, toda cultura, de algum modo, dá testemunho de outras lógicas. São vínculos explícitos e assumidos, ou mesmo ocultos, com cada uma das demais lógicas, inclusive com a lógica maior que a todas essas subsume. Dentro desse quadro geral, seria de bom alvitre que se indagasse, para uma cultura comprometida com determinada lógica, que relações com outras lógicas poderiam em princípio ser as mais relevantes? E por quê? Responderíamos que justo aquelas relações que ela mantém com as suas lógicas antecessora e sucessora, no processo histórico: a) por um lado, com a lógica da cultura que lhe antecedeu, lógica que teve que ser superada (ou recalcada), para que ela pudesse advir em seu lugar, mas que de algum modo permanece subsumida, e que por vezes retorna ou se re-surge como num sonho; b) por outro lado, com a lógica da cultura que lhe sucederá, sua permanente preocupação, pois é de onde, por suposto, procede a real ameaça à sua dominação ao longo de um certo período de tempo ao longo do processo histórico. Do ponto de vista lógico, toda cultura ao se afirmar estará automaticamente subsumindo aquela que a precede. O que acontece aqui, já que o homem é sua cultura, guarda profunda semelhança com o que a psicanálise já observou no processo de estruturação lógico/emocional dos indivíduos. Tendo-se em conta que a lógica anterior já foi reconhecida e duradouramente exercida, não se pode simplesmente apagá-la. O que pode ser feito, na verdade, é de algum modo silenciá-la, recalcá-la ou, o que é ainda mais sutil, forçá-la a abandonar o já pensado por outro por pensar. Cria-se assim um vazio ou uma falta cujo impossível preenchimento será daí por diante insistentemente perseguido. Identifica-se aí o poderoso motor oculto das grandes realizações humanas, ou seja, o desejo da cultura. Isto nos faz compreender, afinal, como as culturas, através de um processo de reiteradas substituições, sublimam-se na produção de tantas 146 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 e tantas riquezas em termos de costumes, instituições, conhecimentos, técnicas e múltiplas artes. Ao mesmo tempo toda cultura tem o pré-sentimento de sua fragilidade constitutiva ante ao próprio processo histórico-cultural. Desde sempre, de modo mais ou menos claro, sente qual deve ser o seu inexorável destino. Sabe que acabará superada ou marginalizada pela cultura associada à lógica imediatamente subsequente à sua. Para conjurar tal tipo de ameaça congênita, que poderia haver de melhor senão simular ou fingir que de algum modo já se tornou aquele novo ser cultural ou, pelo menos, que já soube incorporar os seus ameaçadores ao mesmo tempo que fascinantes poderes? Toda cultura teria pois uma disposição desejante, que é seu verdadeiro motor imanente, tanto de suas elevadas e sublimes realizações, como de seus piores feitos, mas que ao final é o que a faz caminhar para a frente. Assim a cultura se conduz para a consumação do seu destino e de sua própria superação histórica. Toda cultura, tanto mais intensamente quanto mais chegada à maturidade, simula ou finge ser o que ainda virá, que, convenhamos, é o melhor que poderia mesmo fazer para tentar impedir que a cultura que a precede venha a sucede-la, embaraçando, dessa forma, o curso do processo histórico. Deve-se observar que uma cultura se vale de muitos e diversos mecanismos de auto-justificação, (pela violência, até preventivamente mandando executar os recém nascidos, pelas ideologias, inclusive aquelas à esquerda e à direita, e tantos mais) e que a dissimulação aqui aludida é apenas um dentre eles. No entanto, na fase de esgotamento do vigor criativo de uma cultura, é o referido mecanismo de fingimento que assume o papel principal, pois já começam a se delinear em seu horizonte, ameaçadores, os contornos da nova cultura que virá sucedê-la. O golpe fatal sobre qualquer cultura, todas o pressentem, só poderá vir mesmo da cultura que assumirá a lógica imediatamente superior à sua, e que de maneira inexorável irá confrontá-la, como não poderia mesmo deixar de ser, precisamente em seu fingimento. E quando isto acontecer, também não se pode ter dúvidas, será ela acusada justamente de usurpação de um lugar que não lhe era lógica e historicamente destinado. A visibilidade deste processo não deve ser lá muito fácil para os seus protagonistas na medida em que as forças reais da subversão estarão necessariamente ali operando a difícil combinação de um ideário fundamentalista (por Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 147 isso podem parecer retrógradas) com uma corajosa determinação de instrumentalizar o que até então era tido como valor supremo (por isso podem parecer delirantes). A probabilidade de subversão de uma cultura cresce naturalmente na proporção do seu cansaço, do esgotamento de seu vigor criativo, enfim, do desvanecimento do seu próprio desejo. Acabou-se a motivação, o estímulo ou a criatividade. Assim, ela será então ultrapassada por uma nova cultura, pela cultura que a segue de perto, o fruto esperado, tanto quanto terá sido negado, que estava já em gestação nas suas próprias dobras, margens e desvãos4 . Tomemos alguns exemplos. O primeiro, seria o das culturas dos grandes impérios de base agrícola, da Antigüidade, a primeira na ordem da família das culturas lógico-diferenciais. A agricultura tomada como base da subsistência, acompanhada de investimentos na organização da produção, na formação de estoques e na sua distribuição, como também na previsão e regularização das águas vão constituir a razão e suporte do sedentarismo, o vínculo permanente da população a um determinado espaço geográfico. Significam, em essência, a definitiva troca da temporalidade itinerante pela espacialidade fixa, metaforicamente, a liberdade pelo cativeiro. A cultura ibérica, mostra-se esgotada, sem criatividade. Por isso, entendo que a inversão prevista por Morse não deverá ocorre. A cultura ibérica não deverá suceder à cultura anglo-saxônica. A cultura brasileira, em construção, em processo de plena criatividade e em consolidação, se devidamente tratada, pode trazer esperança. Pode portanto construir as condições básicas para a superação da modernidade, como ilustrado na figura 4. 148 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Ela está em processo de evolução. A cultura brasileira, faz-se síntese do jesuitismo, da cultura árabe, da cultura lusa, do índio, de variantes da cultura negra, de segmento da cultura nipônica, de segmento da cultura italiana e de outros que vagarosamente vai se construindo através de um processo de profunda miscigenação cultural. Assim vai sendo consolidada a cultura brasileira ou a cultura nova. Essa cultura nova, brasileira, acena com possibilidades que se devidamente conduzidas podem permitir superar a modernidade. Entretanto ela pode ter dois destinos: conduzir ao luxo ou a originalidade. A nós todos, interessa o caminho da originalidade pois é aquele que conduz, não à submissão mas superação porque é, ao mesmo tempo um passo a frente no processo de desvelamento do ser lógico do homem. Contribuição à discussão das bases fundamentais à formulação de uma estratégia de superação Como vimos anteriormente, uma concepção da história da cultura como auto-desvelamento do ser lógico do homem, tratada na lógica hiperdialética qüinqüitária, é o bastante para re-historicizar a modernidade e mostrar o horizonte de sua possível superação. Observando a história do Brasil, podemos perceber o que o faz marginal é também o que o faz resistir à modernidade. O Brasil se caracteriza pela confluência de inúmeras e bem diferentes culturas, que se por um lado, dificulta sua modernização, por outro lado, vem se constituindo na base necessária à estruturação de uma cultura realmente nova e única. Por isso o Brasil possui duas destinações possíveis: o luxo ou a modernidade. Entendo que o Brasil tem todas as condições para se constituir, no único e real perigo para a cultura dominante. Por isso, é fundamental que seja desenvolvido para o Brasil uma estratégia cultural para sobreviver até a chegada do momento adequado à superação da modernidade. Como sugestão apresento as seguintes bases para uma estratégia cultural, que tem condições de dar sobrevivência à cultura brasileira. 1 - Priorização da Cultura sobre a Política e a Economia; 2 – Defesa do espaço para manifestações culturais; 3 – Defesa da língua e a linguagem brasileira; Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 149 4 – Difusão generalizadamente a história da cultura; 5 – Educação, não só para o trabalho mas também para a cidadania plena (política e cultural); 6 – Incorporação de tecnologias modernas à serviço da cultura; 7 – Preservação do recorte cultural da América do Sul e da África, porém com o reconhecimento da função crucial da cultura brasileira; 8 – Agregação do espaço luso-fônico com a África e Ásia; 9 – Difusão da cultura brasileira 10 – Incentivos à criação de organismos que se dediquem à cultura brasileira. *Cel.-Av. R/R Adjunto da Divisão de Extensão da ESG Notas 1 Richard Morse em “O Espelho de Próspero”, discute a modernidade, comparando a cultura anglo-saxônica e a cultura ibérica. 1 Em “Teoria da época atual”. Vide bibliografia. 3 O sentido de perverso é aqui utilizado tal como utilizado por Coelho de Sampaio. É o sujeito (I) que aceita a lei (D/D) desde que esta seja a sua própria. Entretanto, nada há de errado nesta inversão; ela é, pelo contrário, bastante coerente na medida em que tal inversão é a exata contrapartida da mudança do ponto de vista, do social para o individual. 4 Este tipo de consideração é fundamental para a compreensão, em profundidade, das relações EUA/Brasil. O primeiro crê representar hoje a quinta-essência (finge, pois na verdade não passa de ser a quarta-essência) da cultura, enquanto que o segundo é um marginal, porém, um dos mais prováveis candidatos à realização da cultura nova qüinqüitária. Sob este prisma sabem eles que somos seu mais temível inimigo. Isto não quer dizer que os Estados Unidos da América já seja o último dos modernos e que o Brasil não vá faltar à sua destinação 150 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 (outro, como a Índia, pode certamente assumi-la encorajado pelos nossos freqüentes “amarelamentos”), mas aquela possibilidade está já inscrita nos “inconscientes coletivizados” de todos nós, lá e cá. Por isso, constitui-se no constante pano de fundo de suas amistosas/rancorosas e por isso sempre tensas relações políticas. Exclui-se aqui, por excepcional (de exceção) o atual momento destas relações. Bibliografia Freyer, Hans. 1965. Teoria da Época Atual. Zahar Editores. Rio de Janeiro. Morse, Richard M. 1995. O Espelho de Próspero. Cultura e Idéias nas Américas. Editora companhia das Letras. São Paulo. Coelho de Sampaio, Luiz Sérgio. 1999. Crítica da modernidade in Filosofia da Cultura. Rio de Janeiro. Coelho de Sampaio, Luiz Sérgio. 2000. Lógica Ressuscitadas. Sete ensaios. Editora UERJ. Rio de Janeiro. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 151 Luiz Sanctos Döring* No livro “A paz é possível?”, publicado em 1989, colocamos, teoricamente, os comportamentos que, no nosso entender, levam aos conflitos bélicos; e à luz de tal colocação, examinamos algumas guerras antigas e modernas. No presente artigo, usando base teórica proposta naquela obra, empreenderemos uma breve análise dos conflitos que envolvem israelenses e palestinos. Para ser fiel ao texto original, transcreveremos ( em itálico ) trechos que interessem à dita análise. Naturalmente avaliaremos os eventos através de informações disponíveis na imprensa escrita e na mídia eletrônica. O Sonho Neste tópico e no subseqüente, registraremos sucinta compilação de fatos históricos; fazemo-lo para permitir um encadeamento das idéias que exporemos depois. Em meados do Século XVIII surge, no Ocidente, o sentimento coletivo de nacionalismo e a sua racionalização conseqüente; “a consciência de pertencer ou estar ligado a uma nação” (8). Judeus, dispersos pelo mundo, imbuem-se deste sentimento e, no Século XIX, já se propõem a fixar-se, como nação, em um território próprio. Na segunda metade daquele século, muitos migram para a Palestina. A migração ganha ênfase com a atuação do movimento sionista, apoiado por comunidades judaicas de vários países; destaca-se a participação expressiva de Theodor Herzl, que organiza o primeiro congresso sionista, na Suíça, em 1897. Nas décadas iniciais do Século XX, os deslocamentos de judeus, para a Palestina, acentuar-se-iam, graças à influência do pensador, acima citado, e ao amparo do Banco Nacional Judeu e do Fundo Nacional Judeu ( em nosso País, bem mais tarde, em 1945, cria-se, em São Paulo, a Organização Sionista Unificada do Brasil, cujo propósito é contribuir para a fixação de judeus em terras palestinas). Durante a Primeira Guerra Mundial, os britânicos expulsam os turcos, da Palestina, e ocupam-na; assumindo o seu controle, após o término da guerra, por delegação expressa da Liga das Nações. Em 1917, o Governo 152 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 da Grã-Bretanha já se declarara, formalmente, favorável ao estabelecimento de um “lar nacional” judeu, na Palestina, permitindo o movimento migratório, que iria proibir, mais tarde, em face da reação das comunidades árabes, habitantes da área, e dos conflitos decorrentes; contudo a imigração prosseguiria, clandestina, potencializada, na década de 30, pelas perseguições dos movimentos radicais europeus, nazismo e fascismo. Em 1947, Assembléia Geral da ONU aprova proposta de divisão da Palestina, em dois Estados, o israelense e o árabe, internacionalizando-se a cidade de Jerusalém, processo a cumprir-se sob o comando da Organização. Em maio de 1948, ao encerrar-se o controle britânico, os israelenses proclamam-se Estado independente. Realizava-se o sonho, a rigor de quase dois milênios: o retorno à “terra prometida”. O Pesadelo A reação da Liga Árabe não se faz esperar, eclodindo a guerra, que termina com a vitória de Israel, enquanto a Cisjordânia, que constituiria o Estado árabe idealizado pela ONU, é anexada ao que passaria a chamar-se Jordânia (antes Transjordânia ). A imigração de judeus, vindos também de países árabes, aumenta substancialmente. Em 1956, Israel, após a nacionalização do Canal do Suez pelo Egito, sob receio de ações militares daquele país, lança suas tropas em direção ao canal, incursão suspensa por ultimato da Grã-Bretanha e da França e, a seguir, imposição dos EUA e da ONU. Em 1964, cria-se a Organização para a Libertação da Palestina, OLP, ator de grande expressão, no cenário conflituoso permanente; e nas negociações pela paz, que se colocariam no final do Século XX. Em 1967, irrompe a Guerra dos Seis Dias, deflagrada por Israel, e, em 1973, a do Yom Kippur. Em 1982, forças israelenses invadem o Líbano, chegando às proximidades de Beirute, com o propósito de destruir bases da OLP, ali situadas. Em conseqüência de todos estes eventos, inclusive a Guerra de Independência, em 1948, milhares de palestinos deixam seus lares, em fuga, tornando-se “refugiados”. Em 1991, o Iraque lança mísseis Scud sobre Israel, durante a Guerra do Golfo. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 153 Nos períodos entre guerras, a violência não cessa, inclusive atos terroristas e atentados diversos. As campanhas militares israelenses estendem o domínio sobre a região: Faixa de Gaza, o Sinai – devolvido ao Egito pelos acordos de Camp David – Cisjordânia, montanhas de Golan; e parte do Líbano, depois desocupada, mas não integralmente (a retirada final das tropas israelenses ocorreria em maio de 2000). Desde o fim da Guerra de Independência, as colônias judaicas ampliam-se nas áreas ocupadas, principalmente quando o Likud, partido de direita, está no poder. No início da década de 90, começam os esforços em busca da paz, que redundam nos acordos de Oslo (1993), Oslo I (1994), Oslo II (1995), entre Israel e a OLP; acordo de paz, com a Jordânia (1994); e acordo de Wye Plantation (1998), entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina, ANP. As ações decorrentes de tais acordos ora progridem, ora estagnam-se ou regridem, com os trabalhistas ou o Likud na chefia do Governo, respectivamente; entretanto no último período, há pouco encerrado, o trabalhista Ehud Barak susta as desocupações e, ao contrário, permite que aumente a fixação de judeus nas áreas ocupadas. No momento em que escrevemos, abril de 2001, a situação no Oriente Médio é crítica. Na verdade, o quadro adverso provém de incidente ocorrido no dia 28 de se setembro de 2000, quando Ariel Sharon, líder do Likud, visita a Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém. Os palestinos reagem com indignação e tem início uma nova série de atos de violência, que, conforme divulgado pela imprensa, supera a cifra de 470 mortos, a maioria jovens palestinos. Considerações em Estado de Vigília Na obra “A paz é possível?”, relacionamos as motivações que, na nossa visão, levam à guerra. Assim: “a . motivações primitivas ou nucleares: – respostas às carências limiares, – os instintos de ‘territoriedade’, de propriedade e de liberdade, – a ira e o medo; b . motivações de segunda ordem ou envoltórias: 154 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 – o ódio, – a ambição, a busca de poder, – o messianismo, o orgulho nacional, – a antipatia; c . motivações de terceira ordem ou de superestrutura: – os sistemas condicionados: ideologias, religiões, os ‘ismos’ em geral, – os interesses econômicos, – os interesses estratégicos, – a resposta a agressões.” Algumas destas motivações acham-se presentes, na série de conflitos que marcaram os quase cinqüenta e dois anos do Estado israelense. Vejamos. O instinto de “territoriedade”. Sobre esta motivação, traremos ao leitor alguns trechos do nosso livro citado, não necessariamente na ordem em que foram lá apresentados. “O conceito de territoriedade ... vem da Zoologia e da Antropologia e aplica-se principalmente aos mamíferos ... Muitas espécies exibem, como uma característica, adotar um território onde se fixam e de onde retiram subsistência ... Tal comportamento aparece em muitos primatas, ramo de onde provém o homem” (pgs.23 e 24). “O sentimento de posse da terra é tão antigo e permanente na humanidade, a ponto de podermos admitir que nossos antepassados possuíam o instinto de ‘territoriedade’. Mesmo povos nômades, como os suevos , da Gália, enquanto em determinada área, consideravam-na sua. Não erraríamos ao dizer que uma das causas mais comuns de conflitos, entre humanos, tem sido a questão da posse da terra” (pg. 24). Alfonso Alvarez Villar assim entende a questão (9): “O homem é, com efeito, um animal territorial, o que se acentua ainda mais se se admite que é o mais agressivo dos animais”. Voltemos à nossa obra:“Muitos autores não concordam com a existência deste instinto no ancestral humano. Neste caso, resta considerarmos o sentimento da posse da terra como um arquétipo, presente na grande maioria dos homens, fixado pelo seu uso histórico e contínuo, como instrumento Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 155 essencial para a satisfação das carências limiares de alimentos, vegetais ou animais, e de abrigo, por isso revestida do mesmo valor vital” ( pg. 25 ). “No homem moderno, estágio mais recente do ‘sapiens’ ( de 35 a 30.000 anos para cá ), este resíduo instintivo seria atingido através do ‘arquétipo’, que, como vimos, constitui uma percepção inconsciente da realidade física, herdada dos antepassados”( pg. 25 ) Indiscutivelmente, ambas as populações possuem profunda ligação com a terra . Em 1988, quando escrevemos “A paz é possível?”, o conflito “israelenses x palestinos” , decorrente da criação do novo Estado, completava 40 anos; e o apontávamos como exemplo : “Caso enfático de territoriedade e de carências limiares encontramos, hoje, no conflito palestinos ‘versus’ Israel. Os primeiros vivem errantes, estabelecendo-se por favor em territórios alheios; e logo expulsos. Sobrevivem com dificuldade e lutam por retomar o solo que perderam e onde viveram historicamente. Os segundos, de um lado, enfrentaram terríveis momentos nos guetos europeus, onde lhes faltavam as mínimas condições de vida digna, onde constantemente escasseavam os meios de subsistência; de outro lado, sempre possuíram forte sentimento da terra, desde os tempos pré-Cristo” ( pg. 25 ). A questão dos refugiados árabes, como naturalmente a dos judeus, é plenamente reconhecida por Shimon Peres, em seu livro “O Novo Oriente Médio” (7), no capítulo 14, “O problema dos refugiados”. À semelhança do que os judeus viveram na primeira metade do século, abandonando terras onde nasceram, por motivo de perseguições, na segunda metade os palestinos deixam as suas, em decorrência, direta ou indireta, da criação do Estado de Israel e dos conflitos bélicos posteriores. Principalmente os governos trabalhistas israelenses possuem plena consciência da força deste tipo de motivação, a ponto de fundamentar as negociações, iniciadas na década de 90, no princípio “terra pela paz”. Hoje o número de refugiados palestinos sobe a 3,5 milhões, valor muito mais significativo para uma região em que diversos países possuem populações próximas deste nível. Por exemplo ( em milhões da habitantes, dados de 1998 ): Jordânia, 6; Israel, 5,9; Líbano, 3,2; Síria, 15,3. Vê-se, pois, a complexidade de um dos problemas, a ser resolvido. Lamentavelmente as negociações pela paz atravessam momento de grande 156 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 esvaziamento e a motivação “teritoriedade” tende a acentuar-se, inclusive pelo projeto de Ariel Sharon, de aumentar os assentamentos de israelenses, nas terras ocupadas; a este respeito vale lembrar que, como noticiou a imprensa, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, no dia 18 de abril, aprovou resolução contra a expansão de assentamentos em territórios palestinos. O medo. “Vemos o medo como uma reação de alarme. Existe ameaça próxima: sentimos medo”... “O medo é responsável por muitas agressões, na vida diária; algumas razoáveis, outras não. Razoáveis quando diante de ameaça de fato; e a resposta, portanto, tem coerência e insere-se no contexto dos comportamentos naturais. As não razoáveis decorrem de perigos inexistentes ...” (pgs. 30 e 31) . “Muitas guerras precipitaram-se, entre outras causas, pelo sentimento coletivo de medo, momentâneo ou tradicional. Tucídides assim expressavase, no século V a .C [ trecho da obra “A Guerra do Peloponeso” ]: ‘A explicação mais verídica, apesar de menos freqüentemente alegada, é, em minha opinião, que os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto intranqüilizava os lacedemônios, compelindo-os a recorrerem à guerra’ (pg. 32 ). Inegavelmente, este é um sentimento presente na região, a partir de 1948, desde o primeiro momento em que os palestinos, tomados pelo medo, fogem de Israel ou das tropas israelenses, que se aproximam, durante a Guerra de Independência; fenômeno que se repete nos conflitos bélicos subseqüentes. Quer pela possibilidade das reações militares dos Estados árabes, quer pela ocorrência de ações violentas, de parte das organizações guerrilheiras, como Al-Fatah, Hezbollah, Hamas, Jihad, o medo estende-se à população judaica; por seu turno contribuindo, a par de outras motivações, para reações militares, como, por exemplo, a invasão do Líbano, em 1982. Shimon Peres refere-se claramente à importância do medo, nas decisões estratégicas israelenses, o que focalizaremos em trecho adiante. Para o sucesso de um projeto de paz, faz-se essencial exorcizar da alma coletiva, de palestinos e judeus, este fantasma. “Mas, principalmente, compete aos países [ e, no caso em debate, também aos movimentos guerrilheiros ] eleitos como ‘ameaçadores’ mostrarem as mãos limpas, demonstrarem suas intenções não belicosas, não agressivas ou não imperiais”(pg. 33). No momento, ambas as partes mostram as mãos sujas de sangue. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 157 O ódio. ‘O ódio, latente ou manifestado, representa terreno fértil onde facilmente medram as crises e os conflitos. Potencializando e maximizando ódios, pequenos grupos conduzem grandes massas a comportamentos de agressão” ..... “Logicamente as suas raízes descem às regiões mais profundas do inconsciente e, para cada um, as causas serão diversas. Por isso, quando lideranças desejam criar atmosfera favorável à eclosão de uma guerra, ele constitui um dos ingredientes mais fáceis de desenvolver e cultivar. A propósito, apreciemos esta transcrição de ordem de Goebbels, às vésperas da entrada das tropas alemães, em Paris [ trecho da obra “A Última Guerra Européia”, de John Lukacs ]: ‘O ódio contra a França deve, novamente, ser ateado. ... os franceses devem ser mostrados como os piores sadistas e uma campanha deve ser feita a fim de que, no máximo dentro de uma quinzena, toda a Alemanha esteja cheia de ódio e furor contra a França ...’ (pg. 34). Indubitavelmente o ódio encontra-se atuante nos segmentos radicais judeus e palestinos; nestes últimos incluídos os terroristas. Em recente declaração, Shimon Peres reconheceu a presença de tal sentimento, em ambos os lados, embora de forma figurada “... a distância emocional entre nós hoje é muito maior que a distância territorial” (O Globo, 6 de abril ). “... o medo e o ódio podem atenuar-se ou desaparecer pelo conhecimento, pelo aprofundamento das relações entre as partes antagônicas” (pg. 34). Os sistemas condicionados: religiões. “ ...de qualquer modo, deve haver na alma uma possibilidade de relação, isto é, forçosamente ela deve ter em si algo que corresponda ao ser de Deus, pois de outra forma jamais se estabeleceria uma conexão entre ambas. Esta correspondência, formulada psicologicamente, é o arquétipo da imagem de Deus” , afirma-nos Carl Gustav Jung (5, pr. 11); significa dizer, está presente no inconsciente coletivo. O mesmo autor, criador da Psicologia Analítica, ou Profunda, coloca em outro texto: “Será que a ciência pode estar tão certa de que não existe algo que possa ser tido como ‘instinto religioso’?” (6, pr. 157). Realmente, verificando-se a presença e a importância da religião, em todas as civilizações e povos, não se pode fugir da conclusão de que se trata de fenômeno inerente ao Ser Humana; até o Comunismo, com o poder que desfrutou no Leste Europeu, não conseguiu banir a religião da cultura popular. A sua força é algo que supera os limites do entendimento. Como tudo o que existe no Homem, entretanto, esta “força” pode manifestar-se de forma construtiva ou destrutiva, para o bem ou para o mal. 158 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Algumas ironias históricas surpreendem-nos. Uma delas, o fato de existirem maiores conflitos entre religiões correlatas, do que entre as díspares. Judeus, cristãos e muçulmanos, provém da mesma origem religiosa, o Velho Testamento; todavia, os dois primeiros segmentos confrontaram-se, desde os momentos iniciais, e séculos após o Islamismo entrou na História, com a mesma intolerância para com seus “parentes”; os três, “descendentes” de Abraão, não se toleravam. Talvez resida aí a verdadeira diáspora, uma dispersão ideológica e emocional, que gerou rejeições, indiferenças, ódios. A mesma intolerância os católicos tiveram, com relação aos protestantes, quando se iniciou a divergência; intolerância que, somente no final do século há pouco encerrado, começa a ser superada, pela postura ecumênica do Papa João Paulo II. A religião judaica trazia, também, a idéia do “povo eleito”, o que fazia o judeu sentir-se “diferente” e “separado” dos demais. Conforme comentamos, em “A paz é possível?” : “O mito do povo eleito não deixa de ser manifestação da idéia de superioridade racial e gera o isolamento em relação aos demais. Em que pese a solidariedade que merece o povo judeu, nas suas diversas fases de sofrimento, ao longo da história, cumpre lembrar que se trata de grupo que não se deixa penetrar, nem se permite misturar com outros. Tornou-se vítima, pois, da desconfiança e, muitas vezes, medo, caracterizando-se, assim, como ameaça, nos termos que discutimos anteriormente. Não se deixando conhecer, provocam reações agressivas” (pg. 43) . A autora Heloísa Cardoso, no livro “Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo” (1, pg. 78), aborda a questão do mito do povo eleito, citando como exemplos os judeus, desde a antigüidade, e os alemães e japoneses, na modernidade, o qual fundamenta a idéia de “raça superior”. Como sabemos, o mito resulta de manifestação de arquétipo do inconsciente coletivo. Em nosso entender, o hebreu reservava para si a imagem de Deus: “O Velho Testamento mostra o desenvolvimento de um Deus nacional, constelado, sem dúvida, em torno do arquétipo da religiosidade, mas voltado principalmente para o nacionalismo e a identificação com o terreno. Curioso notar, ao contrário do Deus cristão, o israelita não se mostra messiânico, não pretende resgatar ou salvar os bárbaros. Concentra-se na sua gente, que quer manter unida, identificada e aspirando pelo retorno à terra prometida” ( pg. 25 ). Os muçulmanos combateriam todos os homens até que aceitassem somente Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 159 existir um Deus, recomendação de Maomé , na ocasião da sua última visita a Meca (4, pg. 36 ), o que evidencia também uma preocupação messiânica; e de fato a expansão imperial dos árabes maometanos levou o Islã a áreas muito distantes de Meca e Medina. É necessário que os povos entendam que as religiões são “caminhos” que conduzem a Deus; neste sentido, as que colimam este propósito são verdadeiras. Se a pessoa coloca a sua fé de forma construtiva, solidária, sem ambições de domínio ou de apropriações indevidas, sua religião representa o seu “caminho”. Achar que Deus discrimina aqueles que são justos e bons, mas não professam uma determinada religião, significa trazer Deus a nível das imperfeições e incompletudes humanas; transformá-Lo em deus ( com inicial minúscula ). Tal atitude, se radical, expressa uma profunda insegurança, o receio de perda de um fator de identidade e da graça divina; talvez o medo inconsciente de haver seguido pelo “caminho” errado. A resistência a aceitar a presença do outro credo, no espaço tido como historicamente sagrado, representou o motivo da deflagração da crise que ora se desenvolve, na região, a Intifada II; especificamente, a visita de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, em 28 de setembro . Existe também uma permanente reação de ortodoxos e de outros radicais judeus às concessões necessárias ao processo de paz. O radicalismo levou ao assassinato do primeiro ministro Itzhhak Rabin, por um extremista de 25 anos, em 1995. A intolerância religiosa mútua, que atua ora ostensivamente, ora como um sentimento subjacente às atitudes e ações, significa o resultado de um condicionamento comportamental, gerado pela tradição religiosa de ambos os atores do conflito, que cada geração recebe da anterior, desde a infância. Trata-se de “valor”, no sentido sociológico do termo, que precisa ser substituído, o que sabemos extremamente difícil; por exemplo, o movimento cristão, que na verdade representou uma tentativa de abertura dos judeus a todos os povos, ainda que numa atitude messiânica de resgate e salvação, foi rejeitado pelo judaísmo, ao longo destes dois mil anos. Religião, como todos conhecemos, deriva do termo religar, “re-ligar” . No atual estágio da evolução humana, põe-se como fundamental “re-ligar” os três ramos da “diáspora” - judeus, cristãos e muçulmanos – inclusive para “desenergizar” os movimentos fundamentalistas, uma das ameaças à tranqüilidade do Ocidente e do Oriente Médio, neste princípio de milênio. 160 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 No caso de israelenses e palestinos, a missão de iniciar o processo de extinção do condicionamento, que em termos ideais poderia desembocar na “religação”, compete aos estadistas e aos pensadores esclarecidos. O monoteísmo, tardio na evolução humana, representou uma integração psíquica, uma “individuação” coletiva, a percepção, ou intuição, da necessidade de integrar conteúdos independentes da psique, expressos nas figuras , ou mitos, dos inúmeros deuses e deusas das mitologias antigas. Esta aceitação da realidade do fracionamento psicológico e da importância da incorporação das frações, a nível de consciência, ainda não se projetou na imagem de “Uma Só Humanidade Apesar das Diferenças”. Enquanto isto não ocorre, para que cessem os conflitos religiosos, mister faz-se que se admitam, ecumenicamente, todos os credos. Como sistemas condicionados seria válido citar a etnia ( não no sentido de “raça”, mas significando características culturais próprias, específicas, particulares de um grupo social ), uma das causas de conflito que se tornaram freqüentes, quando o fim da “Guerra Fria” liberou povos que viviam sob domínio de governos comunistas, principalmente na Europa Oriental; entretanto a presença da religião é tão forte, nas gentes judaica e palestina, que o fator etnia pareceria discreto, no presente texto. Interesses estratégicos e resposta a agressões. “A contradição entre o anseio de Israel por segurança e a esperança do povo palestino de ‘libertar as terras conquistadas’ não pode ser resolvida simplesmente pela geografia. Israel precisa de profundidade estratégica e os palestinos reivindicam exatamente o mesmo território que é necessário para garantir a profundidade estratégica de Israel” ... “Estrategicamente, Israel se preocupa com sua linha avançada de defesa, que tem de começar no rio Jordão, para apaziguar os medos [ sublinhado nosso ] de possível agressão contra os estreitos ‘quadris’ do Estado” . Estes trechos, da obra citada de Shimon Peres ( pg. 213 e216 ) , mostram a importância dos interesses estratégicos na política israelense e, portanto, nas suas ações militares; por exemplo, na deflagração da Guerra dos Seis Dias e no retardamento da devolução de territórios, acertada nos recentes acordos, o que prolonga o cenário de conflito. Acreditamos que esta preocupação com a defesa em profundidade, gerada pelo “medo” ( uma das “motivações primitivas” , que focalizamos antes ), será, por muito tempo ainda, uma das razões para as dificuldades nas Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 161 negociações entre as duas partes. Se uma Força de Paz da ONU substituísse as forças de segurança israelenses, nas áreas ocupadas, poderia aliviar o sentimento de insegurança de Israel? Tal alternativa, que supomos adequada, foi objeto de proposta à Organização das Nações Unidas, mostrando-se inexeqüível pelo poder de veto dos Estados Unidos da América, no Conselho de Segurança da ONU, que a rejeitou para não prejudicar – segundo noticiou a imprensa – o seu relacionamento com os israelenses. No que respeita à resposta a agressões, tal motivação encontra-se presente, ora como reação do Estado de Israel, qual na Guerra de Independência, de 1948, e do Yom Kippur, em 1973, ora dos Estados vizinhos, como na Guerra dos Seis Dias, ora, ainda, do povo palestino, em represália à apropriação de suas terras. Na verdade, nas últimas semanas instalou-se um círculo vicioso e já não se consegue distinguir com nitidez quem agride e quem responde. O ataque aéreo à estação de radar sírio, situada em território libanês, em 14 de abril, seria resposta ou agressão? Ou existiriam, ainda, “interesses estratégicos”, visando a evitar o rastreamento ou a prematura deteção de forças israelenses, em ações futuras? Para respondermos esta última interrogação, precisaríamos dispor de maiores informações sobre as características do equipamento destruído. Cumpriria, ainda, indagar: haverá resposta da Síria? Analistas israelenses consideram pequena a probabilidade. O Presidente Bashar Assad, com termos figurados, deu a entender que a Síria não aceitará agressões; e assim classificou a ação de Israel, em ligação telefônica de iniciativa do Presidente dos Estados Unidos da América, no dia 19 de abril, novamente manifestando a possibilidade do revide. Caberia ainda citar o caso de “resposta excessiva e desproporcional” ( que ganha, assim, o sentido de “agressão”), palavras usadas pelo Secretário de Estado dos EUA, referindo-se à incursão do tropas israelenses, na Faixa de Gaza, em 16 de abril; de onde se haveriam retirado por pressão norteamericana, fato posteriormente negado pelo Primeiro Ministro Ariel Sharon. A Comissão de Direitos Humanos da ONU, à semelhança do Secretário Colin Powell, também condenou “o uso desproporcional e indiscriminado da força nos territórios palestinos” ( O Globo, 19 de abril ), embora os Estados Unidos da América tenham sido o único membro da Comissão a votar contra a resolução. Para finalizar esta rápida abordagem das motivações, poderíamos considerar as respostas às carências limiares, como fator para o crescimento dos conflitos, a partir do momento em que o novo governo 162 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 israelense isola, com o emprego de tropas, algumas cidades da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A terra “onde flui o leite e o mel”, desta forma citada em várias passagens do Velho Testamento, vê-se exposta à escassez de alimentos, ao desemprego, a mortes por impossibilidade de deslocar-se para áreas onde existe atendimento médico. Os Dois Grandes Erros Ao abordar este tema, não portamos a pretensão de achar que teria sido possível evitá-los; desejamos somente colocá-los, para meditação. O primeiro, o fato de os judeus rejeitarem a nova linha religiosa, a cristã, gerada no seio da própria cultura étnica; além de rejeitá-la, o agravante de haverem condenado à morte o seu criador, o Cristo. Analisando apenas o aspecto humano, o surgimento de um mártir representa um forte respaldo para o sucesso de qualquer movimento novo; tivemos oportunidade de fazer esta observação em nosso livro “Revolução: é Possível?” (3, pg. 90). É expressiva a freqüência com que a figura do “mártir” aparece, na História da Humanidade, e tais o impacto imediato que gera e a repercussão que segue ao longo de muitas e muitas gerações. É o herói que morre por uma causa, de maneira conformada e pacífica; muitos santos da fé cristã estariam neste modelo. Associando-se ao fenômeno a profunda presença da consciência da morte, no Ser Humano, principalmente na Civilização Ocidental, que vem do Velho e do Novo Testamentos, o que contribui para enorme ampliação da influência do sacrifício auto-consentido, ou desejado, sobre a massa. Quatro ou cinco séculos após, os judeus sofreriam as conseqüências daquela condenação, com o início das rejeições e, depois, perseguições de parte dos cristãos, que se prolongaram até o Século XIX . Houvesse a religião hebraica agido de forma tolerante com aquela dissensão – segundo alguns estudiosos recentes originada nos essênios, dissidentes tolerados – houvessem os judeus estimulado a reabsorção dos seguidores de Jesus, como o pai acolheu de volta o filho pródigo, a história do povo hebreu e do Ocidente teria sido outra, possivelmente sem muitos horrores e crueldades que ficaram nos registros. A condenação de Cristo e a imediata perseguição, aos que o seguiam, deixaram marcas indeléveis na cultura cristã, ao longo de muitos séculos. O outro erro, a segregação dos migrantes judeus, por parte dos povos que os receberam, desde a segunda diáspora ( 70-74 d.C ), acentuada a partir do momento em que os cristãos passaram a dispor do respaldo do Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 163 Império Romano. Como avaliado por historiadores, a imposição da permanência em locais isolados e específicos, como os guetos, acarretou a conservação radical inevitável da sua cultura e religião. Se fora permitida a completa convivência comunitária com as populações, nas cidades em que viveram, ao longos destes dois milênios, os grupos imigrantes ter-se-iam, naturalmente, integrado a outros povos, inclusive através da miscigenação. Na realidade, a solução duradoura para certos conflitos, inclusive racial e étnico, passa pela aceitação do “outro”, admitindo-se a sua inserção, na comunidade e na cultura, e até a miscigenação ( estendido o emprego do termo não somente a raças, mas também a povos, nacionalidades etc.) com os integrantes do macro-grupo. A prática altamente positiva da miscigenação espontânea e sem restrições, ou preconceitos, constitui uma característica importante e muito avançada, em termos de Ser Humano, do povo brasileiro, como tivemos oportunidade de comentar, com mais detalhes, no artigo “E Fez-se a Luz” ( Revista da Escola Superior de Guerra, n. 39, 2000). Nosso País constitui um exemplo de convivência pacífica entre etnias, religiões, nacionalidades, raças, que rapidamente se fundem. Uma lição para o Mundo, conforme enfocamos no artigo ora citado. Obviamente, as soluções de cada época encontram-se limitadas pelo nível de aperfeiçoamento das civilizações. Não se podem, hoje, avaliar comportamentos ocorridos centenas ou milhares de anos atrás. Mesmo em cada época, os diversos povos encontram-se em patamares de evolução social diferentes, como vemos em nosso tempo. Com certeza, nos dias atuais, encontramos reações de segregação semelhantes a que sofreram os refugiados da diáspora. Colocamos estas questões para suscitar a meditação. O que acontece na Palestina pode vir a ocorrer com muitos outros povos, se a segregação, de um lado, e o encapsulamento, do outro, se colocarem. Cautela, pois. Canaã, Sonho Possível? No capítulo V, do livro que serviu de base à presente análise – e cujo título corresponde ao nome da própria obra, “A Paz é Possível?” – discutimos a possibilidade de chegar-se a cenários de paz permanente e de soluções de conflitos. No que tange a estes últimos, procuramos sistematizar as suas possíveis evoluções (pg. 123 ): “Utilizando modelo extremamente simplificado, examinemos os padrões 164 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 de interação que decorrem das situações conflituosas. Assim: I1 – conflito – solução – relações amistosas; I2 – conflito – conclusão – afastamento; I3 – conflito – conclusão – relações inamistosas; I4 – conflito – conclusão – relações inamistosas – novos conflitos.”. No que concerne à atual situação no Oriente Médio, a primeira hipótese, I1, soa-nos inviável. A I2 teria probabilidade de predominar, se não houvessem fronteiras comuns. A I4 expressa o quadro que vem perdurando na área, desde 1948. Na hipótese de obter-se algum progresso nas tentativas de estabelecer a paz na região, parece-nos que prevalecerá o padrão I3, “conflito – conclusão – relações inamistosas”, pelas causas que apontamos e que recordamos, a seguir. A problemática da “territoriedade”, a principal, é extremamente duradoura, veja-se o caso dos próprios judeus que, quase dois mil anos depois, ainda ansiavam pelo retorno ao “lar nacional”; e dos recentes conflitos dos Bálcãs, contidos durante décadas, por governos autoritários comunistas, apoiados pela ex-URSS, que agora explodem ( contribuindo, também, as não tolerâncias étnicas ). Além desta causa existem ainda: o medo, sentimento coletivo, uma das razões que baseiam a preocupação de Israel com a defesa em profundidade e que levaram à decisão de conquistar terras e à resistência em devolvê-las; o ódio, gerado principalmente pelas lembranças de guerras, fugas, perdas do lar e da qualidade de vida, violências, atos terroristas; a intolerância religiosa e a revolta pela violação dos lugares sagrados; as respostas às agressões; e outras “motivações”, que muitas vezes se encontram presentes, mas que deixamos de enfocar, porque tornariam este texto muito longo. A decisão da Grã-Bretanha, de estimular a criação de um “lar nacional” judeu – ação que reconheceu inadequada, ao proibir, depois, as imigrações, diante dos conflitos surgidos – e a decisão da Organização das Nações Unidas, sobre a criação dos dois Estados, na Palestina, certamente estimularam a ação unilateral dos israelenses, ao imporem aos palestinos a criação do Estado de Israel, deflagrando os conflitos que se prolongam por mais de cinqüenta anos. Na verdade, geraram um problema, cuja solução não se vislumbra num Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 165 horizonte previsível; com um agravante: estão morrendo, ou vivendo momentos de desespero, muitos israelenses e palestinos. Voltando à questão das segregações, se houvessem os povos, ao longo da História, acolhido os judeus, o ímpeto agressivo para a restauração de um “lar nacional”, passados quase dois milênios, talvez não se cristalizara; afinal o nosso lar é a terra onde nascemos e a tendência natural é ali permanecermos. O recente plano de paz, sugerido em janeiro pelo então presidente dos Estados Unidos da América, quiçá pudesse arrefecer as reações palestinas. Aproximar-se-ia do modelo idealizado pela Organização das Nações Unidas, em 1947. Preocupação também, como divulgou a imprensa, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que no dia 6 de abril enfatizou a necessidade – e o direito – de os palestinos constituírem um Estado, considerada condição essencial para obter-se a paz duradoura; faz-se oportuno lembrar, os EUA votaram contra a resolução, proposta por países árabes. Caberiam, porém, duas perguntas: Israel aceitaria abrir mão de seu requisito de defesa em profundidade? Os palestinos limitariam seus anseios apenas à posse das terras ocupadas, após as guerras, ou passariam a reivindicar o território israelense, que antes integrava a Palestina? Acrescentaríamos uma terceira indagação: as recentes propostas, votadas na Organização das Nações Unidas, estariam refletindo a tendência de a ONU fazer-se mais presente e atuante no cenário do Oriente Médio? Interrogações que aí ficam, para que o tempo responda. Canaã, “terra onde flui o leite e o mel” (Ex 3,8; Dt 11,10; Lev 20;24). Palestina,“Também conhecida como Terra de Canaã (terra de fartura e alegria)”(10). Que os teus fluidos, Canaã, prevaleçam sobre as imperfeições humanas. *Vice-Almirante (RRm) Ex-Subcomandante da ESG BIBLIOGRAFIA 1. BOECHAT, Walter et alli . Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo. Editora Vozes, 1995. 166 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 2. DÖRING, Luiz Sanctos. A Paz é Possível? . Serviço de Documentação da Marinha,1989. 3. —————— . Revolução: é Possível? . 1990. 4. HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. Editora Schwarz Ttda., 1994. 5. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia ( CW XII ) Editora Vozes, 1991. 6. ———— . O Desenvolvimento da Personalidade.( CW XVII ). Editora Vozes, 1988. 7. PERES, Shimon. O Novo Oriente Médio. Ed. Relume Dumará, 1994. 8. SCHLEICHER, Charles P. – in Dicionário de Ciências Sociais, FGV, 1986. 9. VILLAR, Alfonso Alvarez, in Dicionário de Ciências Sociais, FGV, 1986. 10. Grande Enciclopédia Delta Larousse, verbete “Palestina”. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 167 Carlos Syllus* 1. INTRODUÇÃO Tendo-se em consideração o crescente significado que a Ciência e a Tecnologia assumem, no que se refere ao Poder Nacional e ao Desenvolvimento das Nações, é de se compreender a importância de que se reveste, para todos os países, o estabelecimento de uma adequada Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Entretanto, a definição desta Política e Estratégia, especialmente em países em desenvolvimento, se constitui uma tarefa de extrema complexidade e que requer a consideração de inúmeros parâmetros, sendo que as conseqüências decorrentes de muitos deles extravasam o setor científico e tecnológico e, muitas vezes, estão além de nosso controle. Em face das considerações acima, julgou-se de interesse a identificação e análise das condições de contorno mais significativas que deverão orientar a definição de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia, para o país. Antes de tudo, temos que considerar as condições próprias e características do Sistema Científico-Tecnológico e das atividades de ciência e de tecnologia, que lhes são inerentes, e que tem amplas repercussões sobre a Política e Estratégia a ser estabelecida. O perfeito entendimento dos agentes e das atividades relativos ao Sistema de Ciência e Tecnologia e suas inter-relações permitirá uma melhor estruturação do setor, contemplando, adequadamente, os procedimentos e a gerência diferenciada das atividades de ciência e de tecnologia. As condições de contorno, ou condicionantes, podem resultar de 168 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 contingências externas ou internas ao país. As primeiras são aquelas que resultam da conjuntura internacional e sobre as quais temos pouca ou nenhuma ingerência. As condições de contorno internas dizem respeito a nossa infraestrutura e ao nosso nível de desenvolvimento. Finalmente, é preciso ter em conta que a Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia está condicionada pelas demais políticas e estratégias de governo e, portanto, deve guardar perfeita integração com as mesmas. Nos itens que se seguem, abordaremos, de uma forma sucinta, cada uma das condições de contorno ou condicionantes acima referenciados. 2. CONDIÇÕES DE CONTORNO 2.1 - Sistema Científico e Tecnológico Embora bastante evidente, é importante enfatizar que a formulação da Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia deve ser precedida de uma perfeita compreensão do sistema científico-tecnológico, quer quanto aos aspectos intrínsecos ao sistema, como àqueles inerentes ao país. Neste contexto, é preciso conhecer e avaliar as grandes e íntimas interações que existem entre o Sistema Científico e Tecnológico e os três grandes sistemas que lhe dão suporte, ou seja, os sistemas de Governo, Educacional e Empresarial, conhecidos como o triângulo de SABATO, em homenagem ao cientista emérito (Fig. 1). Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 169 Faz-se necessário, também, conhecer as responsabilidades Normativas, Estratégicas e Operacionais características dos três sistemas considerados acima, no que se refere às atividades de ciência e tecnologia. Como Normativas compreende-se a própria Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia, as leis e normas que regulam as atividades científicas e tecnológicas, bem como sua fiscalização e controle. Como Estratégicas entende-se as atividades que visam permitir o alcance dos objetivos da política, como sejam a formação e treinamento de pessoal, o fomento e incentivo das atividades científicas e tecnológicas, a divulgação e a administração em geral. E, finalmente, como Operacionais consideram-se as atividades específicas de pesquisa e desenvolvimento experimental. Os três sistemas em consideração (Governo, Educacional e Empresarial), interagem entre si e, no Quadro 1, pretendeu-se sintetizar as atividades de caráter normativo, estratégico e operacional de cada sistema com relação aos demais. São estas atividades, entre outras, que serão objeto da Política e Estratégica de Ciência e Tecnologia. De outro lado, é importante compreender as peculiaridades dos dois grandes sub-sistemas, especificamente, o Científico e o Tecnológico, que compõem o grande Sistema Científico-Tecnológico. Faz-se necessário distinguir, claramente, os objetivos diferenciados dos referidos sub-sistemas e suas interações mútuas. (Fig. 2, 3 e 4) 170 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Finalmente, é de extrema importância para a posterior formulação da Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia, a conscientização das características e peculiaridades das atividades científicas e tecnológicas. Neste contexto, nos itens que se seguem apresentaremos as características mais significativas , tendo em vista a futura elaboração de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 171 2.1.1 - Características das Atividades Científicas O conhecimento científico, por definição, é um bem universal, acessível a todos e não é propriedade de ninguém. Como se sabe, constitui-se em uma parte do Método Científico a validação da descoberta científica, o que pressupõe a sua divulgação e posterior discussão pela comunidade científica. Por conseguinte, a divulgação do conhecimento científico alcançado é algo inerente à ciência. Alguns argumentam que, atualmente, é possível identificar restrições à livre disseminação do conhecimento científico mas, na mais das vezes, uma análise mais aprofundada da questão levará à conclusão de que se está falando, na realidade, da aplicação desses conhecimentos. O Japão, apesar de seu grande sucesso na área tecnológica, até recentemente não fazia um esforço particular na direção do desenvolvimento científico. Observe-se que o Japão possui apenas 7 prêmios NOBEL, sendo que apenas 4 em “hard science”. Esta aparente contradição se explica pelo acesso que os japoneses podiam ter aos conhecimentos científicos desenvolvidos por terceiros, especialmente EUA e Europa. É preciso dizer, entretanto, que assim que o Japão começou a destacar-se tecnologicamente, isto é atingiu um nível de desenvolvimento superior, passou, necessariamente, a dar maior atenção ao desenvolvimento científico próprio. De outro lado, a Inglaterra, que tem uma respeitável tradição científica e que conta com 80 prêmios NOBEL, não se destaca no campo do desenvolvimento e da inovação tecnológicos. Pode-se dizer que o desenvolvimento científico, por si só, não assegura o desenvolvimento tecnológico e a inovação. De tudo o que foi dito, pode-se concluir que o conhecimento científico estabelecido é bastante acessível, no pressuposto essencial de que contemos com recursos humanos muito bem qualificados, com capacidade de assimilar aqueles conhecimentos desenvolvidos. A partir daí, o estudo, a pesquisa e o desenvolvimento experimental aliados à reprodução da pesquisa e ao intercâmbio científico, à participação em simpósios e conferências e um amplo acesso à bibliografia, às revistas científicas e à documentação informal propiciarão os elementos essenciais à qualificação das equipes científicas, permitindo-lhes avançar no desenvolvimento da aplicação da ciência, visando aos interesses nacionais. Estas seriam as atividades a serem priorizadas em uma política e estratégia científica para o país. A criação e a inovação científica seriam uma decorrência expontânea da 172 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 maturidade das equipes e das atividades acima delineadas. Neste contexto, entretanto, deve-se dar prioridade e concentrar esforços nas pesquisas e no desenvolvimento experimental que visem às necessidades e aos interesses do país, especialmente àquelas necessidades que nos são peculiares e que não são, portanto, de interesse e desenvolvimentos nos países avançados. Referimo-nos, para exemplificar, às pesquisas e ao desenvolvimento experimental referentes à agricultura, pragas e doenças tropicais, conhecimento da nossa bio-diversidade etc. Outra característica do trabalho científico é de que é uma atividade que requer tempo integral e dedicação exclusiva. Esta é outra característica importante a ser considerada na definição da estratégia de desenvolvimento científico 2.1.2 - Características das Atividades Tecnológicas A tecnologia, sabidamente, é um bem econômico e por conseguinte está sujeita às condições que lhe são peculiares. É uma mercadoria sobre a qual existem direitos proprietários, tem um preço, pode ser negociada, vendida, alugada, etc. Nestas circunstâncias, as tecnologias, na sua grande maioria, estão disponíveis como um bem a ser negociado. As empresas despendem recursos consideráveis para desenvolver tecnologias e estas, pela sua natureza, tendem a ficar obsoletas em limitado espaço de tempo. Este tempo vem se reduzindo, cada vez mais, em face do vertiginoso desenvolvimento tecnológico que hoje vivenciamos. Compreende-se, portanto, que as empresas desejem, no mais curto prazo, comercializar esta tecnologia para se ressarcirem dos investimentos havidos. Além disto, há um interesse adicional em vender tecnologia pois, assim o fazendo, se estabelece muitas vezes uma dependência, desejando o comprador sempre adquirir a nova tecnologia, que venha a ser desenvolvida em função da obsolescência da anterior. Naturalmente, isto não se aplica às tecnologias sensíveis, ou àquelas de ponta ou essenciais e que não possam ser facilmente reproduzidas. Estas, evidentemente, estão sujeitas a restrições a sua transferência. Não obstante, existe um grande número de tecnologias que são acessíveis a preços convenientes e que podem ser transferidas com a vantagem de se evitar dispêndios e riscos inaceitáveis. Configura-se, portanto, a oportunidade de transferir tecnologia e queimar etapas no processo de desenvolvimento. Este é um fator importante na definição de políticas e estratégias de tecnologia. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 173 A tecnologia compreende, como se sabe, os conhecimentos necessários para produzir bens, serviços e processos. Às empresas, portanto, cabe desenvolvê-las na medida de suas necessidades e seus interesses. As empresas desenvolvem novas tecnologias para obter maior qualidade dos produtos, maior produtividade e menor preço, tudo visando à competitividade. Não havendo competição, o interesse por desenvolver tecnologia diminui significativamente, decorrendo disto baixa qualidade, pouca produtividade e preços altos. Eis porque, a reserva de mercado, como estratégia de desenvolvimento tecnológico, embora tenha o seu momento, não pode permanecer por muito tempo, pois reduz a competitividade com os efeitos perversos já apontados, isto é, tecnologia obsoleta, baixa qualidade e altos custos. Muitas vezes, entretanto, se faz necessário em face dos interesses políticos ou estratégicos do país, desenvolver tecnologias que não contam com o interesse expontâneo das empresas. Nestas circunstâncias, a maneira de levar as empresas, sem motivação própria, a desenvolverem as tecnologias necessárias ao país, é despertar o interesse dessas empresas, por meio de incentivos, renúncia fiscal, encomendas ou projetos conjuntos com o governo. A tecnologia só se assimila desenvolvendo-se uma atividade visando à produção. Não se pode aprende-la apenas teoricamente. Decorre disto, que os projetos de desenvolvimento tecnológico devem ter um objetivo, uma aplicação prática. De outro lado, uma vez desenvolvida uma tecnologia é necessário mantê-la atualizada pois uma das características da tecnologia é se tornar obsoleta, em curto prazo. Como conseqüência deste fato, uma vez desfeita a equipe que detém a tecnologia, esta tende a se perder. É preciso, portanto, manter uma estrutura (equipe, empresa) constantemente renovada e que mantenha a tecnologia. Concluindo, podemos dizer que a transferência de tecnologia é um instrumento poderosíssimo para o avanço tecnológico dos países em desenvolvimento e poderá se efetivar através de contratos de licença, de assistência técnica, de transferência de tecnologia ou de empreendimentos conjuntos. Deve-se considerar a possibilidade, muito promissora, de importação de pessoal altamente qualificado. Os EUA, historicamente, tem recorrido a este processo que se iniciou logo após a sua independência, quando importava técnicos e mestres da indústria britânica. É elemento essencial no processo de transferência de tecnologia a 174 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 disponibilidade de pessoal muito bem qualificado e que irá negociar a transferência e, posteriormente, coordenar o processo de transferência e assimilar a tecnologia. A tecnologia, é algo que se transfere de técnico para técnico, não sendo suficiente a disponibilidade de documentação, projetos, programas, processos etc. Por conseguinte, o contato pessoal é imprescindível e será tão mais longo, quanto mais complexa for a tecnologia em transferência. Finalmente, é preciso estabelecer uma estrutura em constante renovação que atualize a tecnologia e a detenha, impedindo que fique obsoleta ou que se perca. O processo de criação da tecnologia se desenvolve essencialmente na empresa. Entretanto, nem sempre a empresa está disposta a promovêla, em face dos custos e da incerteza de sucesso. Cabe, portanto, ao governo através de políticas e estratégias adequadas, promover e incentivar a inovação tecnológica. Em uma visão macro, deve o governo identificar as tecnologias estratégicas para o desenvolvimento do país e, segundo a vocação de cada região ou estado, criar pólos tecnológicos específicos. Estes pólos devem, sempre que possível, contar com o apoio de uma grande universidade como ocorre nos EUA com a Universidade de STANFORD com relação ao Vale do Silício e o MIT (Massachusets Institute of Technology) no caso da rota 128. Outro exemplo notável diz respeito à China que criou 48 (quarenta e oito) pólos tecnológicos em áreas consideradas estratégicas para aquele país. De outro lado, deve-se assegurar, à média e pequena empresa, amplo incentivo e subsídios e, ainda, acesso às universidades, através de projetos conjuntos, inclusive na concepção de uma encubadeira de empresas. Estas todas são considerações importantes na definição de uma Política e Estratégia de Tecnologia. 2.1.3 - Características da inovação tecnológica Essencial para o desenvolvimento dos países é a sua capacidade de inovação tecnológica. A inovação se caracteriza, sobretudo, pela sua capacidade de causar impacto no mercado e gerar lucros, quer seja pela nova tecnologia introduzida ou pela oportunidade de melhor qualidade ou preço ou, ainda, pela sua melhor receptividade, em função de um aspecto criativo e atrativo que venha a agradar o consumidor. O êxito da inovação está, portanto, ligado às vendas, ao sucesso comercial. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 175 Muitas vezes, a inovação não representa um avanço tecnológico e, raramente tem uma base científica. A inovação implica, além dos aspectos técnicos, em muito de criatividade e marketing. Ela é motivada pela competição e pela capacidade de gerar lucros. A inovação surge, espontaneamente, no sistema capitalista em face de um mercado livre e competitivo. A menos que contemos com empresas nacionais fortes e competitivas, a inovação ficará sob a responsabilidade das empresas multinacionais. O número de patentes registradas e a relação patentes/artigos científicos são indicadores da capacidade de inovação. É surpreendente que um país que se louva por contar com um povo criativo, tenha um nível tão baixo de inovação tecnológica e de registros de patentes. A Coréia do Sul é um exemplo de capacidade de inovação, em um país em vias de desenvolvimento e um exemplo a ser seguido. O número de patentes por habitante na Coréia é quase três vezes ao dos EUA. Embora seja uma questão muito complexa, envolvendo muitos parâmetros, inclusive questões de ordem cultural, as políticas de ciência e tecnologia devem de alguma forma incentivar e mesmo premiar a inovação tecnológica, por imprescindível ao nosso desenvolvimento. 2.2 - Inserção na tecnologia e na economia mundiais O mundo passa por grandes transformações em decorrência de forças motrizes poderosas como sejam: o fim do comunismo, o surgimento de um mundo economicamente multipolar com uma potência politicamente dominante, a revolução pós-industrial, a economia global e, a superpopulação. Neste contexto, vivemos uma nova revolução industrial, conduzida pela informação e pelo conhecimento. Esta revolução, aliada aos avanços da ciência e da tecnologia, dinamizaram o processo histórico da mundialização do comercio, das finanças e mesmo do comportamento social, induzindo ao que se convencionou chamar de Globalização. Todas estas modificações se caracterizam pela redução do espaço e do tempo na perspectiva de toda ação humana, num clima de intensa competição. Todos os países estão se orientando no sentido de se inserir nesta nova realidade, de maneira que lhes seja mais vantajosa. Todas necessitam se inserir no contexto da tecnologia e economia mundiais. 176 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Manter-se alienado deste processo significa isolar-se do resto do mundo e ingressar no caminho da estagnação política, social e econômica. Mesmo a China comunista compreende que não é possível ausentar-se deste processo. Toda a dificuldade reside, entretanto, na maneira, na intensidade e na tempestividade desta inserção, para que não haja, como decorrência, conseqüências perniciosas e indesejáveis. Cada país, em função de sua cultura, instituições e realidade política, social e econômica tem seu próprio caminho, para alcançar uma inserção virtuosa nesta nova realidade. O Brasil necessita, desesperadamente para atingir sua estabilidade econômica, de aumentar a sua participação no comércio mundial. Tendo em conta a dimensão de sua economia, devemos duplicar e, a médio prazo, triplicar as nossas exportações. Para isto é necessário que os nossos produtos sejam competitivos no mercado mundial, em termos de qualidade e custo. Isto só será possível se aumentarmos, significativamente, a produtividade e o conteúdo tecnológico de nossos produtos e serviços. Tudo depende, portanto, de nosso nível de desenvolvimento científico e sobretudo tecnológico. As considerações desenvolvidas anteriormente são condicionantes extremamente significativas na definição de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia para o país. Trata-se de uma realidade que não pode ser ignorada. A estabilidade econômica e o desenvolvimento do nosso país estão condicionados a nossa inserção na economia e na tecnologia mundiais. Uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia que não considere estes fatores estará divorciada da realidade atual e condenada ao fracasso. 2.3 - Transferência de conhecimento e tecnologias externos O desenvolvimento da ciência e da tecnologia, especialmente em países industrializados, e a acessibilidade a estes conhecimentos por parte dos países em desenvolvimento, constituem-se em importantes condicionantes à definição de suas Políticas e Estratégias de Ciência e Tecnologia. Os países desenvolvidos aplicam, anualmente, de 2,2 a 2,5% de seu PIB ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, sendo que o setor privado se responsabiliza por cerca de 50% destes recursos. Nos EUA, o dispêndio total corresponde a cerca de 160 bilhões de dólares por ano. (Fig. 5) Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 177 Compreende-se, portanto, que é muito difícil pretender-se igualar àqueles países em termos de descoberta científica e de desenvolvimento e inovação tecnológicos. Na realidade, há um distanciamento (gap) enorme, em termos de desenvolvimento científico e tecnológico, entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Este distanciamento tenderá a se alongar se não procurarmos, de algum modo, acelerar o processo de capacitação, nos beneficiando de conhecimentos desenvolvidos por terceiros. Depreende-se, portanto, que razões claras e objetivas nos indicam que a política e estratégia a observar será, na mais das vezes, no sentido de, prioritariamente, acompanhar e assimilar ou transferir os desenvolvimentos ocorridos nos países avançados. Evidentemente, este fato não elimina a possibilidade de se identificar nichos, vocações ou vantagens comparativas que possam dar oportunidade a uma iniciativa pioneira. Esta iniciativa é mandatária em setores nos quais as características e peculiaridades dos desenvolvimentos necessários ao país diferem daquelas dos países desenvolvidos e, portanto, não foram objeto de seu interesse, ou quando o conhecimento ou tecnologia desejados são alvo de proteção ou de acesso restrito, por diversas razões. Como decorrência do que se disse, compreende-se que a transferência de conhecimentos e de tecnologias têm caráter relevante e prioritário em uma 178 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 política e estratégia de ciência e tecnologia, em um país em desenvolvimento. Especialmente na área tecnológica, é necessário reconhecer que, em razão da limitação de recursos e de infra-estrutura, somente em poucos casos poderemos adotar a estratégia de liderança, (front runner), sendo que a atitude mais adequada, visando a encurtar o “gap” tecnológico, será a de acompanhamento (catch up). A par das dificuldades, em termos da falta de recursos de toda ordem já citados, é preciso considerar que o desenvolvimento autóctone, além de ser muito dispendioso, demanda tempo que em geral não se dispõe, sendo uma alternativa de alto risco. Muitas vezes, as demandas da sociedade não nos permitem assumir o tempo, os custos e os riscos característicos do desenvolvimento próprio. Não se entenda com isto, que estamos desconsiderando a importância e relevância do desenvolvimento próprio, que é imprescindível nas situações já referidas anteriormente. Todas essas considerações, entretanto, são precedidas pela avaliação da maior ou menor disponibilidade ou acessibilidade externa aos conhecimentos necessários ao nosso desenvolvimento. Devemos estar sempre preparados e qualificados para, por esforço próprio, atingir os nossos objetivos, toda vez que não possamos contar com a colaboração externa. O acesso ao conhecimento externo está muitas vezes sujeito a nossa adesão aos inúmeros tratados e convenções internacionais que regulam as atividades mundiais, no setor de ciência e tecnologia. A conjuntura internacional atual torna difícil não aderir a estes instrumentos, entretanto, é importante que negociemos esta adesão no sentido de obter contrapartidas e compensações. É preciso, entretanto, que fique bem claro que a transferência de conhecimento e de tecnologias pressupõe a existência de um receptor qualificado. A formação, aperfeiçoamento e treinamento dos recursos humanos, em alto nível, é condição sine qua non para que se caracterize realmente esta transferência. Somente a existência de cientistas, engenheiros, tecnólogos e técnicos qualificados permitirá os contatos, a negociação, a contratação, a gerência e a efetivação da transferência em nível adequado. 2.4 - Infra-estrutura 2.4.1 - Ação governamental A participação do governo em uma Política e Estratégia de Ciência e Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 179 Tecnologia é indispensável e essencial para qualquer país, especialmente para aqueles em desenvolvimento. Se, em países avançados, em setores econômicos se pode argumentar que o próprio mercado cria as políticas e estratégias necessárias, o que é altamente contestável em um país em desenvolvimento, no caso da ciência e tecnologia esta posição é simplesmente equivocada. Mesmo em países desenvolvidos, em que o setor privado tem liderança no setor científico e tecnológico, a participação do governo é marcante. Nos EUA, para exemplificar, metade dos recursos, aplicados no desenvolvimento da ciência e tecnologia, provêm do setor público. No Brasil, especialmente na ciência, a ausência da atuação do setor público significaria, praticamente, a extinção dessas atividades. No que se refere à tecnologia, observa-se que as empresas não demonstram o menor interesse na inovação tecnológica, limitando-se a recorrer às empresas multinacionais. Estas questões devem ser objeto prioritário de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Nos itens que se seguem, voltaremos a abordar este assunto com maior detalhe. 2.4.2 - Recursos humanos A disponibilidade de recursos humanos em número e qualificação necessários é, talvez, a condicionante mais importante na definição de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. O acompanhamento dos desenvolvimentos da ciência e de sua aplicação requerem, necessariamente, a disponibilidade de cientistas muito qualificados. Daí, a importância da pós-graduação na formação de mestres e doutores, no país e no exterior. É da maior relevância identificar e formar uma elite intelectual, com capacidade de agregar algo de novo ao conhecimento e que a pós-graduação não seja apenas um título, mas alguma coisa que faça distinção entre pessoas intelectualmente diferenciadas. No que se refere à tecnologia e à inovação tecnológica, cuja importância para o desenvolvimento do país é necessário enfatizar, a disponibilidade de profissionais e técnicos capacitados é essencial, tanto no processo de transferência da tecnologia, como no de desenvolvimento experimental próprio. A disponibilidade de pessoal capacitado é que caracteriza o fato de que é tão difícil transferir tecnologia para países em desenvolvimento e tão difícil não transferir para os japoneses. Todos os países que experimentaram avanços tecnológicos espetaculares, como o Japão e a Coréia do Sul, 180 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 precederam este sucesso de um ambicioso e intensivo programa de formação e qualificação de recursos humanos. Desta maneira, a formação e treinamento dos recursos humanos é um dos principais objetos de qualquer Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. A universidade e a empresa são, respectivamente, os locais apropriados onde são formados os cientistas e os tecnólogos. O desafio é identificar as políticas e as estratégias que conduzam à efetivação desta formação, em alto nível de qualificação. 2.4.3 - Institucionalização e Organização A Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia pode ter sua execução dificultada quando as atividades de ciência de tecnologia não estão adequadamente institucionalizadas por leis e normas competentes. Seria oportuno, portanto, que houvesse uma revisão e sistematização das leis e da regulamentação referentes à ciência e à tecnologia, uma vez que, a par da falta de legislação ocorre, também, indefinição, omissão e sobreposição de responsabilidades nos diferentes setores. Também constitui elemento de dificuldade na definição e implementação de políticas e estratégias de ciências e tecnologia a organização e subordinação desses setores na estrutura de governo. Em nosso país, há muito por fazer neste sentido (Fig. 6). Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 181 Sabemos que a tecnologia pode ter base científica, empírica e mesmo intuitiva. Sabemos, também, que as tecnologias de ponta guardam grande interrelação com a ciência. Entretanto a existência destas interdependências não implica em considerar as atividades de ciência e tecnologia como sendo da mesma natureza. Não implica em se ter os mesmos procedimentos e gerenciamento nestas duas áreas distintas. É oportuno, portanto, rever estas questões e ter em conta que os procedimentos e a lógica da tecnologia se prendem muito mais à indústria e aos mercados interno e externo. Por conseguinte, a organização das atividades de ciência e tecnologia, sua coordenação, subordinação e orientação política e estratégica devem obedecer às características acima apontadas para que não tenhamos atividades tecnológicas regidas segundo a ótica da ciência ou vice-versa. Da mesma forma é preciso distinguir instituições com responsabilidades normativas daquelas de execução das pesquisas e desenvolvimento experimental. De maneira semelhante, organizações voltadas para o setor produtivo, embora com produto com alto teor tecnológico, não podem estar num ambiente ou estrutura de pesquisa. A racionalização da estrutura de ciência e tecnologia é essencial para o desenvolvimento de uma eficiente Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. 2.4.4 - Instalações Físicas Uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia está, evidentemente, limitada pela disponibilidade de equipamentos, laboratórios, institutos e centros de pesquisa. É importante, portanto, que se conte com um planejamento racional visando a estabelecer esta base física nos setores estratégicos da ciência e da tecnologia, de interesse para o país. Uma vez definidos os setores estratégicos, devem ser criados pólos de desenvolvimento para atender esses setores, representados por universidades, institutos, centros de desenvolvimento tecnológico e laboratórios nacionais agindo independente ou integradamente. Deve-se cuidar para que todas estas organizações contem com equipes qualificadas e que os equipamentos e procedimentos de pesquisas e desenvolvimento tecnológico e de produção sejam, formalmente, qualificados e certificados. Para que estes requisitos se estendam ao setor privado, é preciso que os órgãos do governo de fiscalização, metrologia, qualificação e certificação, estejam estabelecidos e tenham qualificação e eficiência. Estas são, portanto, políticas e estratégias a serem perseguidas prioritariamente. 182 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 2.5 - Recursos Financeiros A disponibilidade de recursos financeiros condiciona e limita a Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Historicamente, os recursos alocados à ciência e tecnologia variam entre 2,5 a 3,0% em países altamente desenvolvidos economicamente; 1,5 a 2,5% em países medianamente desenvolvidos; 1 a 1,5% em países em vias de desenvolvimento e inferior a 1% nos demais. A participação do governo, em países desenvolvidos, se situa em torno de 50% dos recursos acima, embora em alguns casos esta participação não seja transparente, figurando como se privado fosse. No Brasil, ao nível de nosso desenvolvimento, o mínimo desejável de dispêndio seria de 1,5% do PIB, sendo que o governo deveria responsabilizarse pela metade deste valor. Tendo em conta que a participação da iniciativa privada é muito limitada (0,15% do PIB), a participação estatal deve ser maior nesta conjuntura, sendo que em paralelo deve-se incentivar o crescimento da participação privada (Fig. 5). Sendo os recursos escassos, a distribuição dos mesmos deve se revestir de absoluta racionalidade. A consideração maior a se ter, ao priorizar as pesquisas e o desenvolvimento experimental, diz respeito ao retorno social, a curto e médio prazo, de seus resultados. Neste contexto, é que se coloca a responsabilidade do governo, refletindo as necessidades da sociedade, em definir os setores estratégicos nos quais se requer um esforço maior de pesquisa e desenvolvimento. Outra consideração importante diz respeito aos custos envolvidos nas pesquisas e desenvolvimento em consideração. Com a atual complexidade e sofisticação dessas atividades, os custos podem atingir a valores extraordinários. Nestas circunstâncias, deve-se buscar possíveis parcerias, como é comum entre países desenvolvidos, respeitando sempre a prioridade do retorno social. É preciso, também, levar em consideração o acréscimo ou avanço de conhecimento que as pesquisas ou desenvolvimento experimental irão proporcionar. É bastante claro que muitas vezes torna-se difícil esta avaliação, uma vez que conhecimentos, aparentemente não significativos, podem vir a demonstrar enormes potencialidades. Entretanto, em um país em desenvolvimento, pobre de recursos financeiros e humanos qualificados, não Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 183 se pode ignorar este importante fator, na definição das prioridades. Concluindo, é neste contexto de avanço do conhecimento, custos e, sobretudo, retorno para a sociedade que o governo irá estabelecer as prioridades e sua Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia (Fig. 7). 2.6 - interdependência das políticas e estratégias Ao estabelecer a Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia é preciso considerar que a mesma guarda íntima relação com as demais políticas e estratégias. A política e estratégia de educação é, evidentemente, referência básica para qualquer política e estratégia. Entretanto, especificamente, devemos considerar a grande interdependência das políticas e estratégias relativas à ciência e ao ensino superior, especialmente na pós-graduação. No que se refere à tecnologia, é preciso ter em conta a íntima correlação com as políticas e estratégias industrial e de comércio exterior. No Japão, o instrumento fundamental de seu ressurgimento econômico pósguerra, foi o MITI, que vem a ser o Ministério da Indústria e Comércio Exterior. Depreende-se destes fatos que especialmente no estágio de desenvolvimento de nosso país, uma política e estratégia industrial em consonância com a de ciência e tecnologia, é imprescindível para que possamos ascender ao patamar de país desenvolvido. 3. Conclusões A formulação de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia é tarefa complexa, que exige a consideração de um número expressivo de parâmetros e variáveis. Neste documento, pretendeu-se indicar e analisar, de uma forma muito preliminar, alguns desses parâmetros e variáveis que condicionam a definição de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Neste contexto, vamos a seguir nominar, de uma forma sucinta, as principais considerações desenvolvidas neste trabalho. Na conjuntura histórica atual, em que a informação e o conhecimento se constituem nos elementos essenciais ao desenvolvimento das nações e ao fortalecimento de seu Poder Nacional, a Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia, a ser adotada pelo país, se reveste de uma importância decisiva para seu futuro. A existência de uma Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia , mandatária para o setor público e indicativa para o setor privado, 184 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 com objetivos claros e precisos, é imprescindível para que o país progrida e avance, no sentido de atingir a condição de país desenvolvido. A Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia é uma responsabilidade inalienável do Estado, que deverá estabelecê-la e coordená-la com continuidade e persistência, pois seus resultados, muitas vezes, não se manifestam imediatamente. Esta Política e Estratégia precisa guardar estreita interação com as demais políticas e estratégias de governo, sendo que, especificamente, a Política e Estratégia de Ciência deverá se compor com a de Educação Superior e aquela de Tecnologia com a de Industria e de Comércio Exterior. Compete ao governo definir os conhecimentos e as tecnologias que são imprescindíveis ao desenvolvimento do país e que devam ser objetos prioritários de sua Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. Para isto é preciso identificar vocações, os nichos de possível desenvolvimento, as nossas vantagens comparativas e os possíveis mercados ao nosso alcance. Definir prioridades, concentrar esforços, estabelecer colaboração e parcerias, no país e no exterior, são atitudes essenciais em um país em desenvolvimento carente de recursos humanos e materiais. Cabe, também, ao governo implementar uma estrutura de Laboratórios Nacionais, que cubra o setor de metrologia, fiscalização e certificação da qualidade dos bens e serviços produzidos. De outro lado, é preciso incentivar a criação de pólos estratégicos que implementem o desenvolvimento do conhecimento e das tecnologias prioritárias para o desenvolvimento do país. Previamente ao estabelecimento da Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia, é necessário identificar as condições de contorno ou seja, os condicionantes relativos a esta Política e Estratégica. O conhecimento desses condicionantes, além de permitir a adequada formulação da Política e Estratégia, dará oportunidade a que nesta mesma Política e Estratégia se estabeleçam ações para, quando possível, reduzir ou eliminar estes condicionantes, quando impeditivos do avanço do conhecimento científico e tecnológico. Neste contexto, a alocação dos recursos necessários; a institucionalização (leis e normas) do setor científico e tecnológico; a sua estruturação racional segundo as peculiaridades específicas da ciência e da tecnologia e a disponibilidade da infra-estrutura física (laboratórios nacionais, institutos de pesquisas etc) a formação de recursos humanos são condições prévias Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 185 essenciais ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Na conjuntura atual, na qual a informação e o conhecimento são os elementos mais importantes para o desenvolvimento, a educação passa a ter um papel ainda mais relevante na Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia. A formação, treinamento e qualificação de cientistas, tecnólogos e técnicos, em todos os níveis, devem merecer tratamento prioritário. Na formulação da Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia deve estar sempre presente a análise de seu custo/benefício para o país. Desta forma, o retorno para a sociedade, a curto e médio prazo, dessa Política e Estratégia deve ser, constantemente, contrastado com o avanço do conhecimento e os custos envolvidos. Evidentemente, deve-se ter sempre em conta, nesta análise de custos e benefícios, os avanços científicos e tecnológicos que são estratégicos e, portanto, imprescindíveis para o desenvolvimento do país, em uma dada conjuntura. Certamente, deve-se dar prioridade aos projetos que atendam às necessidades da sociedade, às nossas carências e deficiências, sobretudo àqueles cujos custos são compatíveis com as nossas disponibilidades. (Fig. 7) 186 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 A inserção do país na economia e na tecnologia mundiais é uma condição imprescindível a sua estabilidade econômica e a seu desenvolvimento. Esta realidade irá condicionar, fortemente, a Política e Estratégia de Ciência e Tecnologia a ser adotada pelo país. Outra consideração a ser feita, na elaboração da Política e Estratégia, diz respeito ao encurtamento do distanciamento (gap) científico e tecnológico que nos separa dos países desenvolvidos, pela aceleração do processo de qualificação a ser obtido pela transferência, sempre que possível, do conhecimento e da tecnologia dos países avançados. De outro lado, é necessário tomar pronta iniciativa e exercer decidido esforço próprio de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico nos setores em que não se possa contar com auxílio externo, quer por se tratar de conhecimento específico que só a nós interessa, quer por incidir em áreas onde existam restrições à transferência do conhecimento. A par do já mencionado relevante papel do Estado na formulação da Política e Estratégia e no desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico, é imprescindível contar com a participação da iniciativa privada, especialmente, na tecnologia e na inovação tecnológica. Esta participação só se efetivará se houver genuíno interesse por parte da iniciativa privada, em função de um ganho real decorrente de uma melhor tecnologia, qualidade do produto ou produtividade. Cabe ao governo, através de políticas e estratégias adequadas, criar, incentivar, promover e mesmo subsidiar estes interesses, na medida em que os mesmos coincidam com aqueles do país. No que se refere às tecnologias estratégicas fundamentais ao desenvolvimento do país, compete ao governo tomar a iniciativa na efetivação de projetos a serem encomendados ou realizados, conjuntamente, com a iniciativa privada. Deverão ser criados, também, pólos tecnológicos e encubadeiras de empresas, de preferência junto a uma grande universidade, onde se realizem pesquisas e desenvolvimento tecnológico. *Chefe da Divisão de Assunto de Ciência e Tecnologia da ESG Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 187 Ney Marino Monteiro* “pois a coragem cresce com a ocasião” Shakespeare (1564-1616) Vida e Morte do Rei João – Ato II I - INTRODUÇÃO 1 - As Idades do Mundo: A Antiguidade - 4000 a.C. até séc.V A Idade Média – séc. V ao séc. XV A Idade Moderna – séc. XV ao séc. XVIII A Idade Contemporânea – séc.XVIII aos nossos dias Os fatos históricos obedecem a uma ordem cronológica, que permite sua localização no tempo e no espaço, já que o presente de cada época será o passado do futuro da Era seguinte. Os homens sempre estudaram o passado para tentar explicar o presente e projetar o futuro. Assim, para focalizarmos as Grandes Navegações, período áureo da expansão européia, e chegarmos ao Descobrimento do Brasil, faremos um estudo inicial da Idade Média (séc.V até XV) e aprofundaremos nossas pesquisas no início da Idade Moderna (séc. XV e XVI). Dessa forma, poderemos destacar as causas, as conquistas e as conseqüências daqueles feitos heróicos. A Idade Média foi dividida em dois períodos: a Alta Idade Média (do séc. V até o séc. XI) e a Baixa Idade Média (do séc. XI até o séc. XV). 188 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 2 - A Alta Idade Média A Alta Idade Média procedeu à queda do Império Romano no ano de 395, quando aquele Império ficou dividido entre o Império do Oriente e o Império do Ocidente. No século V o Império do Ocidente se dissolveu, em função da decadência econômica, da instabilidade política, da invasão dos bárbaros e dos povos vindos da Ásia. Partindo da Europa centro-oriental os bárbaros dominaram o ocidente europeu criando inúmeros reinos. Também no século VIII a Europa sofreu novas e catastróficas invasões realizadas pelos Árabes, Magiares e Normandos. Os Árabes invadiram a Península Ibérica e dominaram o Mediterrâneo, os Magiares atacaram a Europa central e os Normandos devastaram o litoral norte da Europa. O Império do Oriente, também denominado Império Bizantino, superou a crise entre os séculos III e V continuando a existir até 1453, quando se deu a queda de Constantinopla pelos Turcos. Durante a maior parte de sua existência, este Império foi alvo de intensas atividades comerciais e possuiu uma brilhante civilização, herdeira da cultura greco-romana. Na Alta Idade Média, a atividade econômica do ocidente da Europa regrediu a níveis baixíssimos. Contribuiu para isso a ausência de excedentes na produção agrária e a insegurança, que levaram ao desaparecimento do comércio e das moedas. As diversas regiões em que se dividiu a Europa passaram a produzir cada uma para o seu próprio consumo, só consumindo o que produziam, numa forte tendência à auto-suficiência. A Europa Ocidental sofreu um grande processo de desurbanização. Dissolveram-se as cidade, só resistiram aquelas que eram sedes dos bispados. Houve a destruição da cultura greco-romana. Permaneceu uma forte influência da Igreja Cristã, o Clero regular preservou a cultura dos mosteiros; destacando-se como a maior expressão da Igreja na época, Santo Agostinho, cuja teoria baseava-se no caráter teocêntrico da cultura. As modificações deste período começaram a ser sentidas com o enfraquecimento do feudalismo dominante que sofreu a substituição do escravismo pela servidão. O servo prestava serviço ao senhor (não era vendido nem trocado), mas continuava sujeito às obrigações de impostos como: a talha, que era o sistema de meiação da produção do escravo com o senhor; as banalidades, que eram os aluguéis pagos pelos servos dos equipamentos do senhor; e as corvéias, que eram as prestações dos serviços ainda devidos pelos servos aos senhores. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 189 Na Alta Idade Média prevaleceu uma Sociedade Estamental tripartite, constituída do Clero, da Nobreza e do Povo em geral. 3 - A Baixa Idade Média A Baixa Idade Média se deu entre os séculos XI e XV. Entre os séculos XI e XIII se formaram as Cruzadas, que acabaram por libertar o Mediterrâneo do domínio Árabe. Esta época produziu um grande impulso na atividade comercial, com o açúcar, as especiarias, perfumes e outros, que passaram a ser consumidos pelos europeus. Para isso muito contribuiu o “Livro das Maravilhas”, escrito no século XIII pelo célebre viajante veneziano Marco Polo, onde ele narra suas aventuras entre os povos que conheceu na Mongólia, China, Sumatra e Pérsia. A divulgação do seu livro falando dos costumes e das riquezas daquela região muito influiu no desejo de viajar pelas terras das denominadas Índias, onde se encontravam tais maravilhas. Na verdade as Índias, naquela época, era o nome pelo qual a Europa conhecia as terras da Índia, Arábia, China, Japão e Ilhas de Sonda. O comércio com o Oriente foi por muito tempo monopolizado pelas cidades italianas de Veneza e Gênova, que detinham a supremacia comercial, como intermediárias daqueles produtos com as demais regiões européias. O século XIV foi marcado por uma intensa crise que se abateu sobre as cidades e o campo, provocando grandes cataclismas como: guerras, fome e peste. No campo as conseqüências da crise foram muito graves e resultaram numa decadência acelerada da servidão. Em vários países ocorreram violentas revoltas das massas camponesas para por fim às obrigações feudais. O trabalho servil foi entrando em decadência; os próprios senhores feudais estavam aderindo ao circuito da economia urbana e monetária, desejando comprar e vender nos centros urbanos, optando pela melhor solução de pagar salário aos trabalhadores de suas terras. As catástrofes do século XIV, na medida em que causaram a morte de alguns milhões de pessoas, acabaram por acelerar o processo de valorização da mão-de-obra. Naquela época houve o ressurgimento das cidades com a formação dos chamados burgos, emergindo então uma classe de comerciantes denominados burgueses. A partir daí, na Europa do Ocidente surgiu o confronto da burguesia com os senhores feudais. Havia uma séria intolerância dos comerciantes burgueses, que pagavam impostos (pedágios) aos senhores; as moedas, os pesos e as medidas variavam de acordo com os feudos. As cidades atraíam 190 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 os servos, deu-se o êxodo do campo, as cidades se formaram e cresceram nos territórios dos grandes senhores, o que provocou o desejo de liberdade, ou pela luta armada ou por acordo com o nobre. Tal situação acabou por provocar a aliança Reis-Burguesia, que determinou a criação das monarquias nacionais. A burguesia pagava impostos, fazia empréstimos e doações aos reis, causando lutas até o século XV. Neste período prevaleceu ainda uma forte influência da Religião Cristã, destacando-se as grandes obras das catedrais românicas e góticas. O pensamento cristão teve como núcleo fundamental da vida social a filosofia criada por Santo Tomás de Aquino, A Escolástica. A Escolástica constituíase na crença de que o conhecimento humano era proveniente da fé e da razão e resultava da graça de Deus e do esforço dos homens para conhecer. Junto com esta filosofia surgiu também uma cultura leiga preocupada com as coisas do mundo e alimentada pela burguesia; criaram-se então as Universidades nas cidades medievais. Ao longo dos séculos XIV e XV o feudalismo foi chegando ao fim na Europa centro-oriental, ao mesmo tempo que despontava a Idade Moderna, que destacou-se pelo desenvolvimento do comércio e das manufaturas, pela ascensão da classe burguesa e o aumento do poder dos reis. Os monarcas incentivaram e desenvolveram o chamado mercantilismo, uma prática de fomento e controle da atividade mercantil. A partir daí, a crise das cidades foi superada pela expansão européia por meio das Grandes Navegações. 4 - As Mudanças do Renascimento Os séculos finais da Baixa Idade Média produziram profundas alterações na sociedade européia; as mudanças ocorreram na economia, na política e na vida social. O processo da criação de uma nova cultura que modificou as formas de pensar, sentir e agir dos europeus, se denominou de Renascimento. O Renascimento foi o primeiro grande passo que originou a criação da cultura leiga e burguesa e caracterizou a Idade Moderna. A cultura leiga preocupou-se basicamente com as coisas do mundo, com as coisas do homem, contrapondo-se à cultura voltada basicamente para o domínio do sagrado. A cultura medieval era teocêntrica e a partir do Renascimento teve como caraterística dominante o antropocentrismo, a crença no homem como o centro de todas as coisas. O caráter burguês da cultura Renascentista foi resultante do processo de ascensão econômica Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 191 e política da classe burguesa, capaz de refletir seus interesses, com uma nova visão de mundo. A Renascença foi uma época de intensa produtividade nos diversos aspectos da vida cultural, desenvolvida por artistas, filósofos e homens de ciência, que resultou em uma revolução das comunicações, evoluídas pelo aparecimento da imprensa em meados do século XV. Antes deste fato, a troca de experiências culturais através de livros, copiados a mão e de custo elevado, era extremamente difícil. A imprensa com tipos metálicos, criada por Gutemberg, diminuiu os custos e deu enorme impulso às comunicações e à difusão da cultura. Esta cultura Renascentista notabilizou-se pela ascensão de um novo tipo humano na Europa centro-ocidental, o burguês, dotado de características básicas, como o individualismo, o hedonismo e o naturalismo. O individualismo se opôs ao coletivismo da sociedade medieval, reação motivada pela concorrência do capitalismo comercial. Esse individualismo deixou claras marcas na pintura, onde os retratos individuais eram muito numerosos, encomendados pelos burgueses que nele ostentavam belas roupas e ricos ornamentos. O hedonismo é uma crença filosófica embasada na tese de que o prazer é a primeira finalidade na vida, em contraposição às idéias místicas e contemplativas, chamadas ascéticas. O naturalismo é a aceitação da natureza em geral e da natureza humana como algo bom, contrariando a crença medieval da natureza marcada pelo pecado original, tendendo fatalmente para o mal. Os homens do Renascimento continuaram a inspirar-se no cristianismo, constatado nas manifestações artísticas, entretanto, o pensamento cristão foi substituído pelo cultura greco-romana como fonte de inspiração. A ascensão dessa cultura clássica se explica, em parte, pela oposição da burguesia ao clero, que fazia parte da classe dominante e controlava a cultura durante a Idade Média. O Renascimento teve como uma de suas idéias básicas o ideal humanista, isto é, a afirmação do homem como a criatura mais importante do universo. As possibilidades do homem eram infinitas, mas elas deveriam cultivar-se na cultura procurando um constante aprimoramento do corpo e do espírito. A palavra humanista designava também aqueles dedicados à cultura antiga, principalmente aqueles que se ocupavam do estudo e da tradução dos textos gregos e latinos. Os principais fatores que geraram o Renascimento tiveram como fundamento 192 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 o desenvolvimento do comércio, das cidades e da classe burguesa, cada vez mais evoluído a partir das Cruzadas. O comércio fez surgir um excedente de riqueza que patrocinou as mais variadas obras culturais. Surgiram na Itália e em outros países os chamados mecenas, burgueses ricos, grandes senhores e príncipes que financiavam o trabalho dos grandes artistas. O crescimento das cidades ligadas à atividade comercial e manufatureira criou um novo estilo de vida; os contatos dos países europeus com as civilizações Bizantinas e Sarracenas, no Oriente, fizeram ressurgir os restos da cultura greco-romana, perdida nas invasões dos bárbaros no início da Idade Média, e firmaram os alicerces da Renascença. Como o movimento Renascentista se desenvolveu mais na Itália, há quem o considere “um fenômeno tipicamente italiano”. A Renascença abriu o caminho para a Idade Moderna, quando, nos séculos XV e XVI, se realizaram as Grandes Navegações. II - AS GRANDES NAVEGAÇÕES Os descobrimentos marítimos do início da Idade Moderna podem ser, em parte, comparados com os que hoje se desenvolvem pela conquista do espaço. Na verdade, as descobertas do caminho marítimo para as Índias e da América exigiram muito mais esforços e coragem dos navegadores da época do que dos astronautas de hoje. As dificuldades eram inúmeras, agravadas pelas crenças, superstições e fantasias que precisavam ser vencidas. A ciência era pobre e afetada pelas crendices e absurdos. Os que discordavam das verdades oficiais corriam risco de serem punidos por heresia. Os recursos materiais da época para tais aventuras eram escassos e os que se aventuravam desafiavam todas essas dificuldades para chegar aos mares desconhecidos “nunca d’antes navegados”. Não obstante todas essas dificuldades, o espírito desafiador do homem triunfou. Navegadores destemidos, primeiro portugueses e espanhóis, mais tarde ingleses, franceses e holandeses, foram, de forma pertinaz, vencendo o perigo dos mares e ampliando as terras conhecidas. Para isso, concorreram as grandes invenções: bússola, papel, imprensa e caravela, as lendas sobre os fabulosos tesouros do Oriente e o desejo de converter ao cristianismo os povos pagãos que viviam em terras longínquas. Na verdade, o fator principal foi certamente o desejo de explorar o comércio das especiarias das Índias, que alcançavam na Europa grandes lucros. Nessa época, o fabrico de artigos de luxo para o vestuário e vários alimentos apreciados pelos Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 193 europeus eram de exclusividade do Oriente e comercializados, também com exclusividade, pelas cidades italianas Gênova e Veneza, que tiveram grande prosperidade até 1453, quando Constantinopla foi invadida pelos Turcos, que fecharam o caminho seguido pelas mercadorias procedentes das Índias. Especiarias era um nome dado ao conjunto de mercadorias procedentes das chamadas Índias (China, Arábia, Índia, Japão e Ilhas de Sonda) e se constituíam de pimenta, cravo, canela, noz-moscada, gengibre, aloés, cânfora, incenso, sândalo e perfumes. 1 - A Expansão Européia dos Séculos XV e XVI A Expansão Européia iniciada no século XV foi resultado de um conjunto de fatores que atuavam na Europa desde o início da Baixa Idade Média. Dentre eles podemos citar a expansão dos mercados, a formação das monarquias nacionais e da política, aliada aos progressos técnicos e científicos. A partir do século XV, os comerciantes europeus, liderados pelos portugueses, procuraram alargar o seu mercado comercial, inicialmente realizando contatos e trocas com a África negra, depois com a Ásia e, finalmente, com a América. Tal expansão foi motivada pela procura de metais preciosos e dos produtos orientais que faziam a riqueza das invejadas cidades italianas. As grandes navegações dos séculos XV e XVI criaram um mercado mundial, isto é, os europeus passaram a realizar um grande comércio e a estabelecer colônias nos diversos continentes. Na sua totalidade, as viagens eram financiadas por capitais particulares (da burguesia) interessados na expansão comercial. Esses capitais eram coordenados pelo poder real, que possuía força armada e burocracia para proteger e administrar feitorias e colônias, realizar tratados com outros governos e fazer a guerra. A expansão marítima e a fundação dos impérios coloniais europeus basearam-se na força dos diversos Estados e obedeceram à política mercantilista. Por outro lado, o final da Idade Média foi um momento de importantes progressos técnicos e científicos, culminando com as chamadas “invenções” como a bússola, o astrolábio, a caravela, que muito ajudaram a arte de navegar. Boa parte desses conhecimentos técnicos e científicos foi recebida, na Europa do ocidente, através dos Árabes e Chineses, pelo processo de difusão cultural e, gerados também pelas necessidades econômicas, que provocaram nos europeus nos fins da Idade Média, a inventividade, produto inexorável 194 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 dos esforços dos homens para suprirem suas carências, a qual, segundo afirmava o filósofo Leucipo, “coisa alguma é produzida ao acaso, todas se produzem a partir da razão sob o efeito da necessidade”. 2 - O Domínio Marítimo Português Coube a Portugal uma importante posição no processo das grandes navegações. Os navegadores portugueses constituíram a vanguarda da expansão da Europa com os notáveis feitos do século XV e XVI, afrontando o chamado Mar Tenebroso (o Atlântico), culminando com sua chegada ao Extremo Oriente e à América. A luta dos cristãos pela reconquista da Península Ibérica fez surgir o chamado Condado Portucalense (como um feudo do Reino de Leão) que foi doado a Henrique de Borgonha, um cavaleiro francês distinguido na luta contra os mouros. Em 1139, o Condado, chefiado por Afonso Henriques, proclamou a sua independência de Leão. Uma vez independentes e liderados pela dinastia de Borgonha, os portugueses avançaram para o sul e conquistaram a região do Algarve. Até a conquista da região do Algarve, as principais atividades econômicas eram a pesca e a agricultura. A partir do século XIV, Portugal passou a servir de entreposto para as atividades comerciais entre o Norte da Itália e as cidades do Flandres, constituindose em parada obrigatória. Nasceu daí um poderoso grupo mercantil que acabou por entrar em choque com a nobreza. Em 1383, com o fim da dinastia de Borgonha, o grupo mercantil formado liderou uma revolução, para manter a independência do país ameaçada por Castela, diminuir o poderio dos nobres, e levar ao trono o denominado Mestre de Avis, que inaugurou aquela dinastia, com o nome de D. João II. Com a vitória de Avis, o Estado português voltou-se para os interesses comerciais, dando origem a uma política mercantilista de apoio ao crescente comércio com o norte da África. Esta política de apoio ao comércio desenvolveu a chamada Escola de Sagres, um centro de experiência na arte de navegar, liderado pela figura de D .Henrique, o Navegador. O infante D. Henrique era um príncipe filho de D.João I, sagrou-se cavaleiro em 1415 com a vitória portuguesa (sobre os muçulmanos), na batalha de Ceuta em Marrocos. No ano seguinte, o príncipe tornou-se comandante da Ordem de Cristo. Sem possibilidades de sucessão ao trono português, que caberia a seu irmão mais velho D. Duarte, Henrique assumiu o cargo de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 195 governador do Algarve. D. Henrique, que era solteiro e casto, dividia seu tempo entre o Convento de Cristo, em Tomar, que era sede da Ordem e a vila de Lagos, no Algarve, cujo porto era uma Base Naval e uma Corte aberta. Em Tomar, ela cuidava das finanças, da diplomacia e da carreira dos pilotos iniciados nos segredos dos empreendimentos cruzados. O Convento de Tomar era um cofre de recursos e informações secretas. O cronista Gomes Eanes na crônica da “Tomada da Guiné”, falava um pouco do cosmopolitismo do Porto de Lagos, “havia gente das Canárias, caravaneiros do Saara, mercadores do Timbuctu (Mali), monges de Jerusalém, navegadores venezianos, alemães e dinamarqueses, cartógrafos italianos e astrônomos judeus”. Uma das disposições diplomáticas era presentear, o que permitiu ao Príncipe formar uma biblioteca preciosa. Entre as plantas, mapas e tabelas, havia um exemplar manuscrito das Viagens de Marco Polo. Talvez por isso, a primeira edição impressa desta obra tenha sido feita em português (1534) e não em latim ou italiano. A famosa Escola de Sagres parece Ter sido uma lenda criada pelos poetas românticos portugueses do século XIX, pois, na realidade, foi o Porto de Lagos que a Ordem de Cristo, liderada pelo infante D. Henrique, comandou a expansão marítima do século XV. Na verdade, a Escola era o nome pelo qual se costumavam agrupar as idéias portuguesas sobre navegação, astronomia e geografia, na base dos descobrimentos; a Escola como instituição parece não ter existido, porém a idéia dominante naquele grupamento era fundada na convicção da redondeza da Terra, razão pela qual as Índias poderiam ser alcançadas contornando-se a África, isto é, navegando-se para o Oriente. O Príncipe era um articulador discreto, raramente ia à Corte em Lisboa, o seu tempo se passava entre o Convento de Tomar e a Base Naval de Lagos. D. Henrique, o Navegador, foi o criador da citada Escola de Sagres, quando reuniu navegantes, geógrafos, astrônomos, matemáticos, cartógrafos e operários; graças ao seu trabalho, Portugal se adiantou às demais nações na fase dos descobrimentos marítimos. A Ordem de Cristo derivou-se da Ordem dos Templários. Os Templários franceses eram os mais poderosos da Europa, controlavam feudos e construções no interior e em Paris. Entre essas posses, estava o Templo, um conjunto de igrejas e oficinas que foi reformado em 1319 e se tornou a prisão da Bastilha, mais tarde destruída durante a Revolução Francesa. As derrotas 196 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 no Oriente Médio alimentaram uma onda de calúnias, que atribuíam aos seus cavaleiros acordos com muçulmanos, fugindo dos campos de batalha e traindo os cristãos. Aproveitando este clima favorável, em 1307, Felipe IV, Rei da França, que devia dinheiro à Ordem, invadiu de surpresa as sedes templárias em toda a França, fazendo prisioneiros, só em Paris, cerca de 500 cavaleiros, muitos deles degolados. Este fato originou a abertura de dois processos, um dirigido por Felipe contra os presos e outro, conduzido pelo Papa Clemente V, francês, aliado do rei, contra a Ordem. Procederam-se a torturas brutais e confissões arrancadas pela Inquisição que se tornaram peças difamatórias escandalosas. O sigilo da Ordem foi usado contra ela e as etapas dos rituais de iniciação se converteram em monstruosidades. Os santos guerreiros foram acusados de cuspir na cruz, adorar o diabo, manter práticas homossexuais, render culto a Maomé e queimar crianças. Tiveram todos os seus bens confiscados; esperava-se uma fortuna, porém pouco foi efetivamente recolhido, o que originou a lenda de que os seus tesouros teriam sido transferidos, em segurança, para outro país. Para muitos historiadores e investigadores, o país para o qual foram transferidas as riquezas templárias, teria sido Portugal, graças ao rei D. Dinis (1261/1325), que decidiu garantir a permanência da Ordem em terras portuguesas, apesar das ameaças francesas, ele reiterou que os templários não tinham cometido crimes em Portugal. D. Dinis sugeriu uma doação formal dos bens da Ordem Templária à Coroa Portuguesa, mas nomeou um administrador templário para cuidar deles. D. Dinis transferiu todo o patrimônio dos cruzados para uma nova organização recém fundada, A Ordem de Cristo. Dessa forma, Portugal tornou-se um refúgio para perseguidos de toda a Europa; de vários países chegavam fugitivos trazendo o que podiam. O Convento de Tomar transformou-se na caixa forte dos segredos que a Inquisição não conseguiu arrancar. Dois anos depois, em 1319, o Papa João XXII reconheceu a Ordem de Cristo, iniciando uma nove era com nova missão para os cavaleiros. Nas primeiras décadas da existência oficial da Ordem de Cristo, os extemplários estabeleceram estaleiros em Lisboa, fizeram contratos de manutenção de navios e dedicaram-se à tecnologia náutica, aproveitando os conhecimentos adquiridos com o transporte de peregrinos entre a Europa e o Oriente Médio durante as Cruzadas. Também prepararam planos para volta à ação, contornando a África por mar e, aliando-se aos cristãos orientais, expulsar os mouros do comércio das especiarias. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 197 Em 1416, D. Henrique assumiu o cargo de Grão-Mestre da Ordem de Cristo e lançou-se à diplomacia. Fazia cem anos da condenação dos templários nos processos de Paris e o Vaticano estava preocupado com a pressão muçulmana sobre a Europa, aumentada no século XIV. Dessa forma, o Infante conseguiu do Papa um aval para o projeto expansionista. Daí em diante, cada avanço para o sul e oeste era seguido pela negociação de novos direitos. Durante um século, os Papas emitiram 11 bulas privilegiando a Ordem com monopólios da navegação para a África, posse de terras, isenção de impostos eclesiásticos e autonomia para organizar a ação da Igreja nos locais a descobrir. Até meados do século XV, os cavaleiros tomavam iniciativas sem esperar pelo Estado português. Quando iniciada a colonização, eventualmente doavam à família real o domínio material dos territórios, mantendo o controle espiritual. Cabia então à Corte, interessada em promover o desenvolvimento da exploração de riquezas e do comércio, consolidar a posse do que tinha sido descoberto. Em Marrocos, os novos cruzados atacaram Tanger em 1437 e AlcácerCeguer em 1458. O ímpeto guerreiro preponderou sobre o mercantilismo real até 1461, ano em que o cavaleiro Pedro Sintra encontrou ouro na Guiné, aumentando a pressão comercial da monarquia sobre a Ordem. Mesmo assim, ainda houve expedições contra os mouros marroquinos em 1471, mas à medida que foi sendo consolidado o comércio na rota das Índias a partir de sua descoberta em 1498, a Coroa portuguesa foi absorvendo gradualmente os poderes da Ordem. Em 1550, o Rei D. João III induziu o Papa Júlio III a fundir as duas instituições. Com isso o Grão-Mestre passava a ser sempre o rei de Portugal e o seu filho tinha o direito de lhe suceder também no comando dos cruzados. Até então, seu antecessor D. João II (1481/1495) conseguiu estimular a atividade mercantil e a colonização dos territórios africanos, contendo o ímpeto guerreiro dos cruzados da Ordem de Cristo. Os cavaleiros da Ordem de Cristo adotaram como emblema o distintivo da Ordem dos Templários, que foi derivado da Cruz de Copta, criada por uma dissidência cristã, do mesmo nome, no século II. Enquanto detinha os tesouros dos dados marítimos sob a sua guarda, a estrutura secreta da Ordem garantiu a exclusividade dos portugueses. Em Tomar e em Lagos, os navegadores só progrediam na hierarquia depois de sua lealdade Ter sido comprovada, se possível, em batalha. Só então podiam ler os relatórios reservados dos pilotos 198 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 que já tinham percorrido regiões desconhecidas e ver preciosidades como as tábuas de declinação magnética, que permitiam calcular a diferença entre o Pólo Norte verdadeiro e o magnético, que aparecia nas bússolas. À medida que as conquistas avançavam no Atlântico, eram feitos novos mapas de navegação astronômica, que forneciam orientação pelas estrelas do hemisfério Sul, a que também só os iniciados tinham acesso. 3 - As Conquistas Portuguesas No período de 1415 a 1498, deu-se a chamada expansão quatrocentista de Portugal, que se iniciou em 1415 com a tomada de Ceuta no norte da África. Neste empreendimento, a nobreza e o grupo mercantil uniram-se, sob a liderança do poder real. Mas enquanto os mercadores viam em Ceuta um ponto para fazer comércio com o continente africano, os nobres tinham o objetivo de combater os muçulmanos pela fé cristã e conquistar terras pelo norte da África, algo semelhante às Cruzadas. O tempo levou à predominância dos interesses comerciais. Na década de 1420, os portugueses ocuparam as Ilhas da Madeira e Açores; na Madeira desenvolveu-se a produção de açúcar, que trouxe importantes lucros ao grupo mercantil, investido em novas empresas expansionistas. Em 1434, os portugueses navegando pela costa ocidental da África, chegaram à Guiné, onde descobriram ouro, fato que deu um novo impulso à expansão. A partir daí, as expedições que eram financiadas pelo Estado e mercadores portugueses passaram a receber investimentos de mercadores italianos e holandeses. Também em 1434, o navegador da Ordem de Cristo Gil Eanes passou o Cabo Bojador, um pouco ao sul das Canárias, o que além de realizar um avanço náutico, desmontou uma mitologia milenar, pois acreditava-se que depois do Cabo, localizado no que é hoje o Saara ocidental, começava o Mar Tenebroso, lugar de grandes desventuras e sofrimento. O estrondo das ondas nos penhascos do litoral que era ouvido a quilômetros de distância, as correntes fortíssimas e as névoas de areia, reforçavam o pânico dos pilotos. Quando finalmente Eanes reuniu coragem e chegou ao outro lado, sem nada sofrer, abriu o caminho para o Sul. Novas descobertas sucederam-se até que em 1487, Bartolomeu Dias chegava ao Cabo das Tormentas, praticamente descobrindo a tão cobiçada passagem pelo extremo sul da África. Em 1498, a expansão atingiu o seu ponto culminante com a chegada de Vasco da Gama Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 199 à Índia, abrindo o caminho para a Ásia. No início do século XVI, a expedição de Cabral continuava o comércio com as Índias; a descoberta do Brasil em 1500, não desviou os portugueses dos principais interesses que estavam nesse comércio. Afonso Albuquerque, na década de 1510, comandou uma expedição que ocupou Ormuz, na entrada do Golfo Pérsico, Socotora e Aden, na entrada do Mar Vermelho. Ocupando estes pontos estratégicos, Portugal pretendia criar um império na Ásia, impedindo o fluxo de produtos orientais para a bacia oriental do Mediterrâneo, colocando em crise o comércio das cidades italianas com o Império Turco e com os árabes. Tendo abocanhado mais do que podia digerir, Portugal, na década de 1530, em meio a uma grave crise econômica, começou a ceder aos holandeses, seus maiores credores, vários pontos que havia ocupado na Ásia, voltandose então para a colonização do Brasil. 4 - As Navegações Espanholas Depois de Portugal, foi a Espanha o país mais importante no processo das grandes navegações e da formação de impérios coloniais dos séculos XV e XVI. Durante o século XV, a Espanha prosseguia a luta contra os árabes, que era chamada de Reconquista Cristã, iniciada no século XI. Desde esse século, os cristãos da Península Ibérica, que partiram da região das Astúrias, vinham tomando território dos árabes, surgindo dessas conquistas uma série de Reinos Cristãos: Leão, Castela, Navarra e Aragão. A Reconquista promoveu a implantação do sistema feudal no território da atual Espanha, porque as terras tomadas aos árabes eram divididas entre os grandes senhores da nobreza daqueles reinos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que os nobres se fortaleciam, a luta contra os árabes exigia o fortalecimento de uma autoridade real para concentrar os esforços dos exércitos cristãos particulares contra um inimigo comum. O fortalecimento da autoridade real culminou com o casamento de Fernando de Aragão com Isabel de Castela, os célebres reis católicos, em 1476. A união de Castela e Aragão promoveu praticamente a formação da Espanha, que, no século XV, se apresentava como um país predominantemente agrícola, com algum desenvolvimento comercial na província de Aragão. Os reis católicos deram prosseguimento à reconquista dos últimos redutos muçulmanos no sul do país e passaram a se interessar também pelo 200 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 desenvolvimento do comércio e da navegação, por influência dos sucessos expansionistas do reino português. 5 - As Conquistas Espanholas A Espanha não possuía grandes navegadores, geógrafos e construtores de navios, valeu-se então das experiências de elementos de outros países europeus, como Portugal e Itália, para participar das navegações. Em 1490, o navegador genovês, de nome Cristóvão Colombo, apresentou aos rei católicos um plano para chegar às Índias, que empolgavam a imaginação dos europeus. Colombo acreditava na redondeza da Terra, e por isso, admitia chegar às Índias navegando sempre para o Ocidente. O único evento não previsto no plano era o encontro da América no meio do caminho. Financiado pelos reis Fernando e Isabel, Colombo descobriu o continente americano em 1492, inaugurando de forma notável a participação espanhola na expansão marítima européia. O sucesso de Colombo provocou uma grande disputa entre espanhóis e portugueses pelas novas terras descobertas, razão por que os dois países firmaram por acordo o Tratado de Tordesilhas, 7 de junho de 1494, que será melhor estudado quando falarmos da descoberta do Brasil. No início do século XVI, os espanhóis prosseguiram na exploração e ocupação dos novos territórios americanos. Um navegador florentino chamado Américo Vespúcio, a serviço da Espanha, constatou em 1504, que as terras descobertas por Colombo formavam um novo continente. Um outro navegador, de nome Balboa, em 1513, passando pelas terras da América Central, chegou ao Pacífico. O português Fernão de Magalhães, também a serviço da Espanha, realizou a primeira viagem de circunavegação do globo em 1519. Partindo de Cádiz, navegou pelo Atlântico Sul, cruzou o estreito que hoje tem o seu nome, e rumou para a Ásia, chegando às Filipinas em 1521. Com esta viagem, foram descobertas novas rotas e ficou provada a esfericidade da Terra. A seguir, prosseguindo a ocupação do continente americano, os espanhóis organizaram várias expedições. A comandada pelo fidalgo espanhol Fernão Cortez invadiu o México, derrotando a civilização Asteca. Na década de 1530, algo semelhante ocorreu no Peru, com a destruição da civilização Inca, por uma expedição de aventureiros espanhóis, chefiada por Francisco Pizarro. Como no México, o objetivo foi o saque dos minerais nas mãos dos indígenas. Os espanhóis conseguiram derrotar os Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 201 Astecas e os Incas praticando inúmeras atrocidades que foram seguidas pelo saque de fabulosas quantidades de ouro e prata. Em 1545, descobriam-se na região de Potosi, na atual Bolívia, riquíssimas minas de prata, que atraíram milhares de aventureiros, explorando violentamente a mão-de-obra indígena para remeterem quantidades fabulosos do metal precioso à metrópole espanhola. De repente, um país pobre com pequeno desenvolvimento manufatureiro, bancário e comercial experimentou o recebimento de imensas quantidades de ouro e prata que enriqueceram o Estado, a nobreza e aumentaram as condições aquisitivas do povo em geral. A Espanha viveu a febre do ouro. Dessa forma, os homens produtivos tenderam a abandonar a agricultura e o artesanato e partir para a América, buscando riqueza fácil. No decorrer do século XVI, a Espanha converteu-se num grande importador de manufaturas dos diversos países europeus, compradas com o ouro americano, que entrava no seu território e se espalhava pela Europa ocidental, gerando desvalorização das diversas moedas e um sensível aumento dos preços. O século XVI foi chamado pelos espanhóis de Siglo de oro, época da hegemonia espanhola. Nos fins do século XVI, a quantidade de ouro americano foi diminuindo cada vez mais, o governo espanhol resolveu tomar medidas para conter as importações, no entanto, tais providências chegaram tarde. Com a perda do ouro americano, a Espanha entrou em uma séria decadência que se arrastou pelos séculos seguintes. 6 - A Expansão Francesa Por inúmeros problemas internos, a França não participou das navegações do século XV, a Guerra dos Cem Anos durou até 1453 e também a luta entre a monarquia e os senhores feudais continuou, até os fins do século XV, com a vitória de Luiz XI. No século XVI, motivados pelas notícias das conquistas dos portugueses e espanhóis, e seduzidos pelas lendárias riquezas asiáticas e americanas, os franceses se lançaram às navegações, liderados pelo poder real. Em 1520, o rei Francisco I fez um discurso no qual dizia: “eu não vi no testamento de Adão que só Portugal e Espanha têm direito ao Novo Mundo”. O rei francês investiu contra o Tratado de Tordesilhas e os franceses desencadearam a seguir uma série de ataques de pirataria, 202 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 especialmente contra a América portuguesa. Os ataques contra os espanhóis foram menos freqüentes por causa dos bons negócios que os franceses realizavam com a Espanha, seus principais compradores na Europa. Depois de procurarem uma passagem para a Ásia pelo extremo norte do continente americano, os navegadores franceses lançaram o fundamento de um império colonial na América do Norte. No Brasil não obtiveram êxito na tentativa de se estabelecerem no Rio de Janeiro e no Maranhão. Na Índia ocuparam pontos da costa, juntamente com outras nações européias. 7 - As Navegações Inglesas Também empenhados com a Guerra dos Cem Anos e depois com a Guerra da Duas Rosas, os Ingleses só conseguiram participar das grandes navegações no século XVI. No reinado de Henrique XVIII, navegadores ingleses procuraram uma passagem para a Ásia pelo extremo norte da América. Mal sucedidos nesta procura, começaram a percorrer a rota do Cabo para chegar à Índia, onde se estabeleceram em alguns pontos da costa. No reinado de Elizabeth I, as navegações inglesas tiveram o seu apogeu; Francis Drake comandou uma expedição que realizou uma viagem de circunavegação do globo; diversas expedições reconheceram o litoral e rios na América do Norte. A principal atividade dos marinheiros ingleses foi, sem dúvida, durante a Segunda metade do século XVI, na pirataria oficializada contra a Espanha. Nesse momento, a maior parte dos piratas ingleses transformou-se em corsários, piratas que possuíam a chamada Carta de Corso, um documento firmado pelo poder real que permitia ataques e pilhagem contra navios da nação inimiga, Espanha, que se tornou o país mais atacado pelos corsários ingleses. O lucro dos ingleses com a prática da pirataria legalizada pode ser retratado pelo fato de que só a expedição de Francis Drake deu um lucro de 700%, cabendo à Rainha, pela sua parte, 250 mil libras. Além da pirataria, os ingleses durante o século XVI, iniciaram-se no rentável negócio do tráfico de escravos para a América, o que tornou extremamente prósperas inúmeras cidade, no século XVII. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 203 8 - A Expansão Holandesa A Holanda, situada na desembocadura do rio Reno, próxima do território de Flandres, teve um desenvolvimento comercial precoce. Na Baixa Idade Média, algumas cidades, com uma burguesia cada vez mais poderosa, cresceram em território holandês. Mas, apesar dessa prosperidade econômica, a Holanda, no século XVI, encontrava-se sob domínio político da Espanha. Os holandeses foram grandes financiadores da expansão ultramarina portuguesa. Quando Portugal abandonou os negócios na Ásia e voltou-se para o Brasil, os holandeses, além de substituírem os portugueses em vários pontos do continente asiático, passaram a financiar a indústria açucareira na Bahia e no Nordeste. O açúcar produzido nessa área era recebido pelos holandeses na forma de rapadura para ser refinado e distribuído por toda a Europa, gerando vultosos lucros. Além dos negócios com o açúcar, os holandeses foram pioneiros no tráfico de escravos africanos para a América no século XVI. O grande investimento capitalista da exploração das riquezas do Novo Mundo levou à restauração do escravismo, que parecia morto desde o fim da Alta Idade Média. A experiência da utilização dos indígenas como escravos na colonização da América foi de pouca valia, daí a utilização dos escravos africanos. Esta prática dos negócios de escravos foi extremamente lucrativa para os holandeses e outros povos europeus. 9 - Conseqüências dos Descobrimentos Os descobrimentos provocados pelas Grandes Navegações tiveram conseqüências extremamente importantes para a Europa e o mundo conhecido na época. A descoberta de novas rotas navegáveis e de um outro continente, a América, denominado de Novo Mundo, produziu grandes conseqüências científicas, políticas, econômicas, sociais e religiosas que passaremos a enumerar a seguir. - Conseqüências Científicas: a) ficou provada a esfericidade da Terra que era negada até então, pelos sábios mais notáveis; b) a Astronomia progrediu pela necessidade da determinação de seguros pontos de referência para a navegação; c) aumentaram os conhecimentos geográficos, corrigiram-se os mapas e catalogaram-se novas terras; 204 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 d) a Botânica e a Zoologia foram enriquecidas pelo conhecimento de milhares de novas plantas e animais; e e) a técnica da construção naval e a arte da navegação foram bastante aperfeiçoadas. - Conseqüências Políticas: a) Gênova, Veneza e outros portos mediterrâneos perderam importância, entrando em decadência; e b) os países descobridores de novas terras projetaram sua importância sobre os demais, formado impérios coloniais. - Conseqüências Econômicas: a) as rotas comerciais deslocaram-se do Mediterrâneo para o Atlântico; b) os portos portugueses, espanhóis e, posteriormente, os ingleses, franceses e holandeses, passaram a se constituir nas principais praças de comércio do globo; c) o preço das especiarias entro em queda na Europa; d) produtos provenientes da América como: o algodão, o fumo, a batata, e certas madeiras (entre elas o pau-brasil) passaram a ser usados pelos europeus; e) foram introduzidos na América produtos de fora, como a cana-de-açúcar, o café, a manga, o coco (da Bahia) e outros; f) as ricas minas de ouro e prata da América (México, Peru e Bolívia), fizeram cair o valor desses metais; e g) aumentou a circulação das moedas, cresceram os bancos e a burguesia se enriqueceu cada vez mais. - Conseqüências Sociais: a) o enriquecimento da burguesia, através do aumento do comércio e do acúmulo do ouro e prata nos bancos, fez subir sua influência social e política; e b) o ressurgimento do escravismo nas terras da América. - Conseqüências Religiosas: a) deu-se a catequização dos habitantes das terras descobertas; e b) aumentou a influência do cristianismo pela sua expansão geográfica e o crescimento do número de fiéis. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 205 III- O DESCOBRIMENTO DO BRASIL Oficialmente, o Brasil foi descoberto em 22 de Abril de 1500, no último ano do século XV, sendo batizados inicialmente como Monte Pascoal, primeira elevação observada, devido à época da Páscoa no calendário católico. Esta descoberta deveu-se ao navegador português Pedro Álvares Cabral, que comandava uma esquadra de 13 navios e tinha como principal destino, o porto de Calicutte, onde era realizada a maior feira de especiarias. Pela versão oficial portuguesa, o Brasil fora descoberto acidentalmente, mas, no decorrer dos anos, muitos historiadores contestaram esta versão, pois Vasco da Gama, que se destinava ao rumo desconhecido da Índia, muito antes de Cabral, já havia declarado que no horizonte ocidental existiam terras, onde, no relato de marujos, aves pareciam ir rumando para terra. Há também, teses relacionadas ao nome do navegador Duarte Pacheco Coelho, que, possivelmente, estivera no Brasil em 1498. Cabral prosseguiu até chegar a Calicutte, onde, após Ter sido recebido com desconfiança pelos mercadores árabes (de religião muçulmana) lá existentes, acabou por entrar em luta com os mesmos, e após perder cerca de cinqüenta homens, dentre eles, Pero Vaz e Caminha, escrivão de sua frota e o seu feitor Aires Correa, ordenou o bombardeio daquela cidade, matando muita gente. Após intensos conflitos, Cabral decidiu zarpar para o norte, rumo à cidade de Cochim, onde o Rajá era rival do de Calicutte; lá conseguiu abastecer suas naus de pimenta, gengibre e canela, retornando a Lisboa como um novo ídolo, para muitos sonhadores. A expedição de Cabral foi realizada por D. Manuel, o Venturoso, após o retorno de Vasco da Gama das Índias e se constituía de 13 navios e aproximadamente 1500 homens. A maior frota jamais reunida até então iniciou a sua viagem em 9 de Março de 1500, partindo de Belém (Lisboa). Alguns autores afiançam que o nome de Pedro Álvares Cabral teria sido indicado pelo próprio Vasco da Gama para comandar esta frota. A expedição rumou para o ocidente depois que passou pelas ilhas de Cabo Verde, o que suscitou indefinida questão: se o descobrimento do Brasil foi um mero acaso ou se os portugueses tinham realmente conhecimento das terras ao ocidente e quiseram tomar posse delas. A reportagem do descobrimento do Brasil foi feita pelo escrivão da 206 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 frota Pero Vaz e Caminha em uma carta de sete folhas a D. Manuel, que se constituiu no primeiro documento oficial da história do Brasil. Após relatar ao rei de Portugal a partida a 9 de março e o trajeto para as Canárias a 14 e a passagem pelo arquipélago de Cabo Verde a 22 do mesmo mês, falou do descobrimento das novas terras, destacando suas belezas, suas aves e sua gente estranha. Para a terra descoberta, Cabral deu o nome de Vera Cruz. Fez ainda referência às tentativas dos portugueses de fazer amizade com os índios, através da troca de presentes, à missa rezada pelo Frei Henrique Soares (de Coimbra), falou sobre o clima, que ao seu ver era muito bom e temperado, como o de EntreDouro e Minho, em Portugal, dizia que as águas eram sem fim e que tudo que se plantasse cresceria. Ao terminar, sugeria que o melhor que os portugueses poderiam fazer era salvar a gente local, que considerava muito selvagem. Como vemos, esse relato oficial não deixou claro se as terras foram propositadamente visitadas ou ocasionalmente alcançadas. Pesquisando o Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha em 1494, que teve como chefe da missão portuguesa, constituída dos melhores cartógrafos e navegadores da Ordem de Cristo, o experiente Duarte Pacheco Pereira, tratado mediado pelo Vaticano, algumas dúvidas sobre o conhecimento português das terras mais tarde descobertas parecem se dissipar. Portugal saiu-se bem no acordo; pelas bulas Inter Caetera os espanhóis tinham o direito as terras situadas a mais de cem léguas a oeste e ao sul das Ilhas dos Açores e Cabo Verde; pelo acordo de Tordesilhas a linha divisória e imaginária, que ia do pólo Norte ao pólo Sul, foi esticada para 370 léguas, destinando tudo que estivesse a Leste desse novo limite para os portugueses, incluindo o Brasil. Segundo o relato do cronista espanhol das negociações no seu livro “A História de las Índias”, “os negociadores portugueses daquele tratado tinham mais perícia e mais experiência daquelas artes, ao menos das coisas do mar do que as gentes espanholas”. Sem a menor dúvida, essa vantagem era dada pela estrutura secreta da Ordem de Cristo. Graças à Ordem e a sua política de sigilo, os portugueses sabiam da existência das terras onde hoje está o Brasil, sete anos antes da viagem de Pedro Álvares Cabral. Também, 30 anos antes da viagem de Colombo, todos os mapas nacionais Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 207 portugueses mostravam ilhas com o nome de Antilias a oeste de Cabo Verde. O mais famoso cartógrafo da época Paolo Toscanelli escreveu a um amigo português,em 1474, falando da “Ilha de Antília que vós conheceis”. Nesse ano também, há notícias de que o navegador cruzado João Vaz da Corte Real, explorou as Caraíbas e foi até a Terra Nova (Canadá). Porém os documentos comprobatórios da viagem, como quase tudo da Ordem nunca foram encontrados. Outro ponto com várias versões é a origem do nome Brasil. Diz a tradição que vem da existência do pau-brasil, madeira de cor rosa. Esta tradição parece ser insuficiente para se firmar como o verdadeiro motivo da nomeação, pois se sabia, desde 1339, que o nome Brasil já aparecia em mapas daquela época. No século XIV, os planisférios dos cartógrafos Mediceu, Silleri, Pinelli e Branco, mostravam uma ilha Brasil, sempre a oeste dos Açores. A primeira carta geográfica onde aparecem referências seguras ao Brasil real é o mapa encomendado pelo espião italiano Alberto Cantino em 1501, a um cartógrafo de Lisboa para o seu senhor, o Duque de Ferrara. Nele podem ser vistos papagaios, florestas e o contorno do litoral a norte e a sueste. Como explicar a presença na carta do desenho do litoral se as únicas viagens conhecidas ao Brasil, até 1502, foram as de Vicente Pinzón ao estuário do Amazonas e de Pedro Álvares Cabral à Bahia. Alguns historiadores portugueses modernos acham que Duarte Pacheco Pereira, o navegador que negociou Tordesilhas e autor do livro “Esmeraldo de Situ Orbius”, sobre as navegações portuguesas, escrito em 1505, deixou indicações de que esteve no Brasil em visita à costa do Maranhão e à Foz do Amazonas em 1498, quatro anos depois daquele Tratado. IV - Conclusão Por tudo isso, ao que parece, os portugueses sabiam muito mais sobre as terras situadas a Oeste do que reconheciam publicamente, uma vez que o nome Brasil aparecia, desde 1339, em mapas e planisférios. O continente sul-americano não foi descoberto por acaso, há evidências de que navegadores da Ordem de Cristo já tinham estado na região antes de 1500. Em mapa de 1482, feito pelo cartógrafo Gracioso Benincasa, em Ancona, na Itália, havia indicações das seguintes regiões: 1-Costa portuguesa; 2Costa africana; 3-Isola de Braçill; 4-Antília. 208 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Comemoramos, oficialmente, os 500 anos do descobrimento do nosso país na firme hipótese de que as dúvidas pendentes sobre este fato, tiveram suas respostas perdidas com o desaparecimento dos documentos secretos da Ordem de Cristo, que nunca foram encontrados. *CMG Ref - Chefe da Divisão de Mobilização da ESG BIBLIOGRAFIA Campos Raymundo Carlos Bandeira – “Estudos de História Moderna e Contemporânea”, Atual Editora Ltda, São Paulo, 1998. Daehnhardt Rainer – “A Missão Templária nos Descobrimentos”, Nova Acrópole, Lisboa, 1993. Távora Luiz de Lencastre – “Colombo, a Cabala e o Delírio”, Quentzal Editores, Lisboa, 1991. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 209 Manuel Cambeses Júnior* Quando o colapso do comunismo tornou-se evidente, o renomado escritor Francis Fukuyama publicou o seu consagrado livro intitulado O Fim da História. Segundo sua análise, o esfacelamento de um dos sistema políticos e de valores que dividiu o mundo conduziu a um ponto de chegada no processo histórico. A superação das contradições gerava as bases para a homogeneização das crenças. O Ocidente podia finalmente impor suas crenças e valores a nível internacional. Pouco tempo depois, esta visão de um mundo reunificado em torno de valores ocidentais – e mais completamente anglo-saxões – se via plasmada no chamado Consenso de Washington. Este termo foi batizado pelo economista John Williamson para descrever a visão coincidente do rumo a seguir que, após o fim da Guerra Fria, tiveram o governo de Washington, os centros de investigação dessa cidade e os organismos econômicos internacionais com sede nela, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. De acordo com os termos deste consenso, Washington deveria dirigir a nova arquitetura econômica global sob a égide do livre mercado. Em colaboração com a Europa e o Japão e utilizando como ferramenta o Fundo Monetário Internacional, buscava-se acoplar a Rússia, África, América Latina e Sul da Ásia, a um processo de abertura de mercados e liberalização econômica. De modo mais amplo, se tratava de impor o “ethos” econômico anglo-saxão dominante e universal. Estes últimos tempos testemunharam um enfático descalabro no que parecia ser a fortaleza inexpugnável do Consenso de Washington. A partir da crise sofrida pela Tailândia, em julho de 1997, uma série concatenada de eventos afetou, de maneira acentuada, a isso que chegou a chamar-se de “pensamento único”. No este da Ásia boa parte das economias da região buscam isolar seus 210 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 mercados do influxo das finanças globais, ao mesmo tempo em que a Rússia procura escapar das filas da “economia consensual”. A própria Europa Ocidental tem relaxado, de modo contumaz, suas convicções com respeito à ordem econômica que sucedeu à Guerra Fria. Ainda que os governos de centro-esquerda, que majoritariamente ali dominam, sigam sustentando a economia de mercado, buscam balancear este fato com doses crescentes de solidariedade social. Nas palavras de Leonel Yospin, Primeiro-Ministro francês, aceita-se uma economia de mercado mas não uma “sociedade de mercado”. O Fundo Monetário Internacional, instrumento executor do Consenso de Washington, vê-se atacado pelos mais diversos flancos. Alguns o acusam por falta de perícia técnica no manejo da crise asiática. Outros recriminam sua falta de sensibilidade frente aos problemas sociais, ou sua miopia ante os aspectos políticos ou culturais envolvidos. Alguns consideram que com suas receitas de austeridade não fazem mais do que colocar lenha no fogo da recessão mundial emergente. Até mesmo nos Estados Unidos o pouco respaldo político que gera a instituição, tem dificultado enormemente a dotação de fundos solicitada pela Casa Branca. No próprio mundo anglo-saxão, berço dos valores representados pelo Consenso de Washington, uma impressionante onda de críticas começa a fazerse sentir a nível de meios de comunicação e centros acadêmicos. A crise asiática, a tormenta dos mercados financeiros, a corrida dos capitais das economias emergentes e o possível início de uma recessão econômica global, assentaram as bases deste processo. Desde as páginas do The Economist, The Wall Street Journal, Business Week, Time ou Newsweek, reportagem após reportagem coincidem em um profundo questionamento da ordem econômica globalizada. Também nos meios acadêmicos dos Estados Unidos e Inglaterra são muitos os cultores da economia de mercado, que começam a transformar-se em iconoclastas. John Gray, consagrado mestre do London School Of Economics, publicou um livro chamado Falso Amanhecer. Nele, encontramos a seguinte afirmativa: “O bloco de gelo (da tese econômica dominante) está se rompendo no mesmo lugar em que o projeto foi iniciado”. Segundo ele, é cada vez maior o número de vozes que desde o “establishment” acadêmico anglo-saxão começam a denunciar as falhas da globalização econômica. Entre estas teríamos que destacar, sem dúvida, a de Jeffrey Sachs, grande Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 211 guru de Harvard; que nestes últimos tempos lançou devastadoras críticas contra a arquitetura econômica prevalescente. O futuro do Consenso de Washington parece depender do que venha a ocorrer na América Latina, e mais particularmente no Brasil. O mundo inteiro encontra-se na expectativa. O Brasil considera-se uma barreira crucial contra o incêndio financeiro que arrasou a Rússia e a Ásia. Entretanto, se o Brasil e com ele a América Latina conseguirem conter o incêndio, é possível que o pior da crise tenha ficado para trás. Se, ao contrário, ceder esta barreira de contenção, a queda da fileira de dominó poderia arrasar tudo em sua avassaladora passagem. Não é sem razão que os artífices do Consenso de Washington sempre apressaram-se em providenciar fundos-de-resgate de bilhões de dólares para ajudar o gigante da América do Sul, sempre que as circunstâncias assim o exigiram. Se a crise global conseguir conter-se desta maneira, é possível que a arquitetura econômica desenhada em Washington, após o fim da Guerra Fria, recupere paulatinamente seu prestígio. Do contrário, seus dias estarão inexoravelmente contados. *Chefe da Divisão de Assuntos Internacionais da ESG 212 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Vasco Mariz* As grandes descobertas do fim do século XV criaram um grave problema de consciência no Ocidente. Como tratar os indígenas do mundo americano que se abria à civilização? Eram eles criaturas humanas ? Os maus tratos que os navegadores estavam infligindo aos indígenas, na sua ânsia de ouro e especiarias, encontrou crescente resistência da Igreja, mas, ao mesmo tempo, o papado hesitou em condenar e reprimir as violências que estavam sendo perpetradas em nome da civilização ocidental e de uma falsa catequese, que mal disfarçava as ambições de riqueza dos descobridores. As crueldades de Cortés e Pizarro, no México e no Peru, chocaram o mundo europeu, que leu as descrições terríveis de Las Casas. Lembro que o prelado espanhol Bartolomé de Las Casas (1474-1566), bispo de Chiapas no México, defendeu os indígenas em seu famoso livro contra a opressão brutal dos conquistadores espanhóis nas Américas, o que .acabou por provocar uma tomada de posição por parte do Vaticano em relação ao estatuto dos silvícolas americanos. A bula papal de 1537 finalmente acabou com o erro teológico da escravidão dos nativos das Américas. Os navegantes franceses que freqüentavam as costas brasileiras desde o início do século sempre tiveram a precaução de não hostilizar os índios , nem de tentar maltratá-los ou dominá-los. De um modo geral, os capitães dos navios mercantes franceses esforçaram-se por conseguir estabelecer uma convivência cordial e interesseira com os nativos, sempre com o intuito de torná-los bons parceiros comerciais. Nada mais. Não vinham eles ao Brasil para fundar colônias permanentes e sim apenas para comerciar com os índios. Traziam-lhes os produtos europeus que eles ambicionavam e trocavam pelos produtos da terra brasileira que tinham possibilidade de revender na Europa com grandes lucros. Já os objetivos dos portugueses eram bem diferentes: vieram ao Brasil para instalar-se permanentemente, tinham de construir suas casas e suas aldeias, e preparar plantações para se abastecerem de maneira regular. Como os portugueses eram pouco numerosos, era inevitável que Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 213 tivessem de obrigar os silvícolas a trabalhar para eles, por bem ou por mal. Seu principal instrumento de convencimento dos indígenas era a catequese dos sacerdotes católicos, em geral jesuítas, que paulatinamente conseguiram desfazer as alianças entre as tribos indígenas para combater uns aos outros, ou defender-se dos portugueses. Esclarecida essa diferença entre os métodos de abordagem com os indígenas de portugueses e franceses, examinemos o quadro geral das relações comerciais entre a França e a costa brasileira antes da expedição de Villegagnon, que este sim visava alterar de maneira completa a orientação anterior exclusivamente comercial entre os dois países. É fato aceito em França que navegadores franceses freqüentavam as costas brasileiras desde o final do século XV. Jean Cousin teria descoberto a foz do rio Amazonas em 1488. Naves francesas de todo o tipo da época visitaram vários pontos da costa brasileira, aqui trocaram presentes com os indígenas e levaram do Brasil quantidades tão grandes e valiosas de produtos naturais brasileiros que muitos armadores dos portos da Mancha enriqueceram. Um deles, Jean Ango, construiu um verdadeiro palácio em Dieppe, com varandas terraceadas à maneira italiana, paredes e tetos decorados com afrescos representando temas brasileiros, isto é, cenas de índios com penas e cocares a dançar. Até hoje existe em Dieppe a pequena igreja de Saint Jacques decorada com temas indígenas brasileiros. Dezenas de índios brasileiros foram levados para a França e lá passaram a residir e a exibir-se em feiras regionais na Europa. A belíssima gravura de Burkmayr e Albrecht Dürer, que está no museu de Washington, data de 1518 e mostra um cortejo de indígenas brasileiros misturados a franceses e francesas de tranças louras, fantasiados de índiios. .Em 1550 aconteceu em Rouen importante festa brasileira na presença do rei Henrique II e de sua mulher, Catarina de Médicis, na qual centenas de índios brasileiros simularam combates. Relato pormenorizado dessa festa pode ser lido no livro de Ferdinand Denis, Une fête brésilienne à Rouen (Paris, 1850). Naquela época, os índios eram levados à França como curiosidade ou como escravos. À medida que o tempo passava, as naus francesas escolheram uma rota ideal para chegar ao Brasil, para onde melhores ventos os empurravam mais rapidamente e em pouco mais de dois meses de navegação. O destino era o Cabo Frio, que faz parte do atual estado do Rio de Janeiro, e em especial a bela praia vizinha de Búzios, hoje um balneário elegante. Essa ação regular e sistemática dos armadores franceses era - como disse Paulo Knauss – “uma contestação ao monopólio comercial ibérico, em defesa da política do 214 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 mare liberum por parte dos excluídos da bula papal de 1494, como a França...”.1 François I já havia publicamente protestado contra aquela decisão papal, afirmando que no testamento de Adão não havia disposição alguma que impedisse a França de cruzar o Atlantico. Naturalmente, ele fechava os olhos a esse trafico ou, até mesmo, estimulava os armadores franceses, apesar de ser um rei católico que tinha a obrigação de obedecer a Roma. Curioso é que ainda em 1555, quando o rei Henrique II encarregou Villegagnon da missão de fundar uma base militar e comercial na Guanabara, foi vago ao definir o verdadeiro caráter da expedição como ato oficial do governo francês. Tantos anos depois, ele não quis afrontar diretamente a decisão papal de 1494. Mas como agiam os indígenas em relação aos navios franceses que fundeavam diante de Cabo Frio ? Antes de tudo, além das naus francesas que provinham dos portos da Mancha, havia numerosos cidadãos de origem francesa vivendo no Brasil entre os índios, desertores normandos em sua grande maioria. Eram quase todos renegados, que haviam tido problemas com a justiça francesa ou com os capitães dos navios mercantes franceses, gente atrabiliária, antigos pensionistas das prisões francesas que haviam escapado e vindo para o Brasil, enfim indivíduos que dificilmente poderiam regressar à pátria sem arriscar-se a ser imediatamente presos. Esses desertores, que viviam entre os índios, casados ou não com mulheres indígenas, tornaram-se muito úteis ao comercio com o Brasil na função de intérpretes. Eles também instruíam os silvícolas a preparar as mercadorias desejadas pelos navios franceses, tais como toros de pau-brasil, acajú e jacarandá, gaiolas com macacos e saguís, papagaios e araras, plantas medicinais, plumas de aves, etc. As naus francesas não se demoravam muito na costa brasileira e em poucos dias já estavam a caminho de volta aos portos da Mancha. Em contrapartida, eles faziam escambo, isto é, troca dos objetos que traziam da pátria para tal fim: camisas e tecidos de cores berrantes, facas, machados, anzóis, espelhos, contas de vidro, etc. Assim sendo, os contatos entre a França e a costa brasileira eram, portanto, somente escambo, isto é, relações estritamente comerciais. Na França, o quintal de pau-brasil vendia-se por oito ducados e um papagaio valia 6 ducados, quantias elevadas na época.. No entanto, é justo sublinhar que esse comercio dos franceses com os indígenas se revestiu de significativo aspecto cultural: a introdução de objetos de metal representou notável salto tecnológico para algumas tribos da região, que passaram subitamente da idade da pedra para o uso de metais, sem que Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 215 tivessem inventado esses utensílios. Destarte, os índios da Guanabara alcançaram inesperado avanço metalúrgico graças ao comercio com os franceses. Mas como eram essas tribos de indígenas que habitavam a região de Cabo Frio e sobretudo os arredores do atual Rio de Janeiro ? Os antropólogos e historiadores brasileiros ainda não se puseram de acordo sobre as denominações dessas tribos numerosas e aguerridas. Só na região da Guanabara haveria 22 aldeias, com milhares de indígenas conhecidos por serem muito belicosos. Correndo o risco de generalizar, podemos dizer que existia na região da Guanabara um grande tronco geral indígena denominado tupi-guaraní. Alguns autores consideram que a denominação de tamoio é apenas genérica e, outros ainda, julgam que a palavra tupinambá significa apenas uma determinada cultura indígena. Seja como for, as principais tribos eram os tamoios e os tupinambás, ou os tupiniquins, todos inimigos ferrenhos dos portugueses e , em princípio, aliados de Villegagnon e dos franceses. No fundo da baía da Guanabara, na grande ilha de Paranapuã, ou ilha do Gato (hoje ilha do Governador), viviam os índios temiminós, ou margaiás (como lhe chamavam os franceses), os quais foram os primeiros a aceitar a boa convivência com os portugueses do Espirito Santo, que os haviam protegido nas lutas contra os tamoios. Os temiminós auxiliaram eficazmente os portugueses na luta final contra os franceses e sua cooperação representou significativo fator para a vitória final lusitana. Por isso, até meados do século XVI, os portugueses, que se haviam instalado em Pernambuco, Bahia e São Vicente (São Paulo), não se haviam atrevido ainda a tentar fundar uma colônia permanente nas margens da Guanabara. Os indígenas estavam bem informados de que os portugueses, mais cedo ou mais tarde, tentariam escravizá-los para trabalhar nas plantações e na construção de casas para os colonos. Por isso os detestavam , mas acolhiam muito bem os franceses que desejavam apenas comerciar. Os indígenas chamavam os franceses de “papagaios amarelos”, talvez porque eles falavam muito e eram louros... Cito outra vez Paulo Knauss: “a guerra na sociedade tupinambá era um fator fundamental na manutenção do equilíbrio social e mesmo da economia e da mentalidade dos grupos locais”.2 Essas tribos uniam-se em alianças, como a famosa Confederação dos Tamoios , romanticamente celebrada mais tarde no poema épico de Gonçalves de Magalhães (1856) e pelos quadros do pintor Rodolfo Amoedo. Mas essas tribos que se aliavam para combater 216 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 o agressor estrangeiro que tentava submetê-los, também guerreavam muito entre si. As tribos tamoios chegavam até Bertioga, perto do atual porto de Santos, onde os padres Nóbrega e Anchieta tiveram papel importante na pacificação da região. Todos os indígenas eram inimigos de todos e os aprisionados eram escravizados ou comidos pelos vencedores. Falavam línguas ligeiramente diferentes, mas era fácil distinguir o sotaque de cada tribo. Villegagnon trouxe da França um índio margaiá que se casara com uma francesa e aprendera o francês. Ele deveria servir como intérprete da expedição, mas os tupinambás logo o reconheceram como um inimigo e, na primeira oportunidade, mataramno e o comeram, para grande irritação do Vice-rei do Brasil... Léry conta que Villegagnon, para evitar a antropofagia, aceitou utilizar os inimigos e prisioneiros dos tupinambás como trabalhadores, aparentemente escravos, na construção do forte Coligny, embora ele não os reconhecesse como tal. Episódio curioso que aumentou o prestígio de Villegagnon com os indígenas ocorreu por ocasião de uma epidemia que dizimou muitos tupinambás. O governador, que tinha bons conhecimentos da medicina da época, conseguiu curar alguns indígenas e isso lhe deu uma aura de quase santidade. Jean de Léry e André Thevet, em seus excelentes livros, descrevem os hábitos dos indígenas brasileiros da época, a flora e a fauna do país com surpreendente exatidão. Referem-se com pormenores ao pitoresco morubixaba Cunhambebe, que se tornou amigo de Villegagnon e era uma espécie de líder político dos tamoios. O suprimento dos alimentos em Henriville era garantido pelos indígenas que aportavam mandioca, favas, carne de caça e pescado. Ajudaram também a construir casas com tijolos da briqueterie (olaria), misturavam conchas à massa para as paredes das residências, que cobriam com palha à maneira indígena. Os franceses por sua vez lhes ensinavam a preparar a terra para as plantações, que fertilizavam com algas marinhas, processo que Villegagnon havia observado no Mediterrâneo. Os índios eram hospitaleiros, mas ofendiam-se com muita facilidade, o que obrigava os franceses a agirem com a maior cautela. Mem de Sá, em carta à rainha regente portuguesa Catarina, reconhece que os indígenas haviam sido bem treinados pelos franceses no manejo de armas de fogo e eram excelentes arcabuzeiros. Na carta de Villegagnon ao duque de Guise, lê-se que “nossos selvagens compõem um exército de mais de três mil homens”. Essa aliança com os índios locais, fiéis desde o primeiro momento até a expulsão final dos franceses da Guanabara em 1567, poderia ter sido Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 217 um elemento fundamental para a consolidação final da França Antártica, se tivesse realmente chegado até o Brasil o grande contingente de milhares de colonos franceses calvinistas, que já estavam alistados para se transferirem para a Guanabara, por ocasião da queda do forte em 1560. O nobre “provinois” investiu com persistência no bom relacionamento com os tupinambás, tomava aulas diárias da sua língua, organizou um glossário franco-tupí (depois publicado no livro de Léry) e cultivou a amizade com seus chefes, sobretudo do famoso cacique Cunhambebe, que era um tipo muito original. Outro personagem curioso foi seu adversário, o cacique Araribóia, batizado como Martim Afonso e chefe dos temiminós, inimigos dos tupinambás, os quais auxiliaram os portugueses em suas lutas com os franceses. Em recompensa aos serviços prestados a Portugal, El-Rei concedeu-lhe o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo e o posto de capitão da aldeia de São Lourenço, conta-nos Elysio Belchior.3 Depois da vitória de Mem de Sá, em 1560, os portugueses tudo fizeram para “pacificar os gentios”. Seu sobrinho Estácio de Sá, o fundador oficial da cidade do Rio de Janeiro em 1565, levou dois anos para submeter os tupinambás, entre os quais ainda viviam cerca de quarenta franceses. Ele acabou morto por uma flecha envenenada de um tamoio. Nessa altura os franceses remanescentes já não estavam mais sendo perseguidos pelos portugueses, tão pouco numerosos eram. A guerra dos portugueses passou a ser mesmo contra os tamoios e o papel dos jesuítas foi decisivo para dividir as alianças que uniam as diversas tribos indígenas. Assim sendo, as viagens comerciais das naus francesas depois da queda do forte Coligny, em 1560, voltaram a apoiar-se na intermediação dos mesmos intérpretes renegados, como faziam antes da chegada da expedição de Villegagnon. O tráfego desses navios franceses não havia sido interrompido pela destruição da fortaleza e continuavam a voltar carregados para a Europa, apesar dos esforços dos lusos por desmantelar esse tráfego. Como afirmou Paulo Knauss: “o acordo dos jesuítas com os índios em Iperoig foi fundamental para a quebra da coesão do movimento de resistência dos tamoios”.4 Afinal os portugueses compreendiam que era inadiável ocupar e povoar a baía da Guanabara, ou acabariam por perdê-la de vez e, se isso viesse a ocorrer, ficariam ameaçadas as suas importantes colônias mais próximas, como São Vicente, na costa paulista. Finalmente, devemos sublinhar a especial significação do papel desempenhado 218 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 por indígenas brasileiros em suas permanências na França. É sabido que Montaigne entrevistou-se, em novembro de 1562, com três índios brasileiros, segundo afirma Pierre Villey, trazidos por seu mordomo, que os conhecia bem. Nos famosos Essais, capítulo 31, intitulado Des cannibales, Montaigne, que provavelmente também leu o livro de Léry, cita os selvagens brasileiros e comenta seus relatos, contribuindo assim para a criação do mito do bon sauvage , desenvolvido depois por Rousseau e Chateaubriand. É inegável que tanto Montaigne quanto Rabelais se impressionaram bastante com as entrevistas que mantiveram com nossos indígenas. Também Ronsard, com sua Ode contre la fortune, teria influenciado o famoso Discurso sobre a desigualdade dos homens, de Rousseau. Entretanto, esse particular interesse dos europeus já vinha de longe, do início do século XVI, a começar pela célebre carta de Américo Vespucci, conhecida por Mundus novus. Escrita em 1502 ou 1503 ao príncipe Pedro Lourenço de Médicis, de Florença, pelo viajante italiano que esteve na Guanabara em 1501, essa carta foi logo traduzida para diversas línguas e revelou aspectos curiosos da vida dos indígenas, que causaram sensação na Europa. Outro navegante italiano, Antônio Pigafetta, companheiro de Fernão de Magalhães, que esteve na Guanabara em 1519, escreveu um livro que também obteve bastante divulgação na Europa. A obra teria até sido consultada por Shakespeare, para elaborar sua famosa peça teatral Tempest, pois há quem veja na figura de Caliban um índio brasileiro. Em 1557, apareceu em Marburg o famoso livro do viajante alemão Hans Staden ; em 1562, veio à luz a obra de André Thévet, e, em 1578, o controvertido livro de Jean de Léry, os quais tinham a vantagem de incluir gravuras impressionantes para a época. Todos fantasiaram bastante sobre os costumes dos indígenas brasileiros, comentando a sua absoluta liberdade moral, inocência sem vícios, sua vida sem lei e sem rei, sem religião e sem ídolos ou templos. Descreveram a beleza das índias desnudas e atos de luxúria por elas inventadas. Enfim, a Europa se deliciava com os relatos dos viajantes, que faziam a apologia do bon sauvage, suas virtudes e ingenuidade, isso em uma época em que os europeus se matavam desapiedadamente em guerras civis de fundo religioso, discutindo até a morte se Jesus estava na Eucaristia ou não. Vemos assim que os indígenas brasileiros tiveram um papel bem mais significativo do que, à primeira vista, se poderia supor e isso merece ser salientado e até celebrado. *Embaixador aposentado e historiador. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 219 NOTAS 1 Paulo Knauss – O Rio de Janeiro da pacificação, Biblioteca Carioca, Rio de Janeiro, 1991, página 21. 2 Paulo Knauss - mesmo livro, página 30. 3 Elysio Belchior - Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro ( página 55-57) 4 Paulo Knauss –mesmo livro, página 81. 220 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Eduardo Dias da Costa Villas Boas* INTRODUÇÃO Em 1993, quando em visita ao Brasil, o atual Primeiro Ministro Zhu Rongji, principal condutor da economia chinesa, formulou o conceito de “Parceria Estratégica”, para expressar a profundidade do relacionamento bilateral e a ampla variedade de assuntos em que os dois países apresentavam convergência de interesses e pontos de vista comuns. Em dezembro de 1999, o jornal “China Daily”, que veicula a opinião oficial do Governo Chinês, deu destaque à visita do Vice-Presidente Marco Maciel, para assistir as cerimônias de comemoração da passagem de Macau à soberania chinesa. Foram transcritas as palavras do Vice-Presidente chinês, Hu Jintao, segundo o qual “A China iria trabalhar junto com o Brasil para promover uma parceria estratégica e fortalecer as relações bilaterais”, acrescentando que ela vem se desenvolvendo desde 1993, e que no momento somos o principal parceiro comercial na América Latina. Da passagem de uma formulação retórica para o estabelecimento de ações estratégicas, muitas questões se impõem. No atual contexto internacional, deve o Brasil priorizar essas relações, a ponto de elevá-las ao nível de uma parceria estratégica? Caso positivo, como dar substância a esse conceito? Serão o Brasil e a China capazes de enfrentar e vencer os desafios e as incertezas do novo século? Que contribuições um relacionamento privilegiado entre ambos é capaz de trazer? Poderão ambos forçar a ruptura dos hegemonismos e tornarem-se eles próprios protagonistas de um mundo multipolar? Como fazer convergir os interesses de duas nações quase antípodas, uma resultante de uma civilização milenar e outra que não existia há 500 anos, quando foi descoberta, e que se tornou independente há menos de 2 séculos? Por fim, que setores priorizar e que horizonte temporal deve-se estabelecer na construção dessa parceria? Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 221 Na confirmação entre os dois países, verifica-se a existência de amplos e profundos contrastes, decorrentes de um enorme rol de diferenças, tanto históricas, estabelecidas por processos peculiares de formação e evolução cultural, como conjunturais, de ordem econômica, política e social. Esses contrastes, contudo, ensejam uma saudável complementariedade, capaz de potencializar as oportunidades decorrentes de não menos importantes coincidências, tais como as bases físicas de dimensões continentais, as enormes populações, os vastos espaços internos a ocupar, desenvolver e integrar, os atrativos dos dois maiores mercados emergentes, a grande capacidade produtiva, os recursos naturais e o lugar que lhes cabe desempenhar no futuro da humanidade. Em termos psicológicos, o Brasil conta ainda com a vantagem de não Ter participado da história de humilhações sofridas pelos chineses. Tal fato tem um profundo significado no imaginário coletivo da população, que automaticamente associa as nações ocidentais às agressões por elas perpetradas nos séculos XIX e XX, responsáveis inclusive pela destruição de parte do patrimônio histórico-cultural, o que foi amplamente explorado pela propaganda do partido comunista durante o período maoista. As grandes dimensões territoriais, contudo, têm induzido os dois atores a, de certa forma, voltarem-se para dentro, com vistas as enfrentamento dos enormes desafios internos. Durante quase a metade desse século, embora de forma diferente, seguiram modelos econômicos calcados na idéia força de que, através da auto-suficiência , aumentariam a autonomia e a influência internacional, o que contemporaneamente passou a ser buscado por meio da integração ao contexto internacional, em demanda de mercados, tecnologia e recursos para investimento. A própria fisiografia condicionou essa abertura, pois, além de vastos litorais, delimitam-se, ao longo de extensas fronteiras, com um grande número de países (China com 14 e o Brasil com 10). Daí a importância das relações internacionais para ambos, pois exercem enorme influência na estabilidade e no desenvolvimento econômico de suas respectivas regiões. Tanto a China como o Brasil têm uma atuação bastante ativa nos foros internacionais, exercendo papel de liderança na articulação de consensos e na busca de soluções. 222 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 A distância, que, se por um lado dificulta as interações, por outro permite que, na agenda comum, não ocorra a superposição de áreas de influências regionais, favorecendo a cooperação bilateral e a abordagem da conjuntura internacional livre de conflitos. Na mesma reportagem relativa à visita do Vice-Presidente Marco Maciel, o jornal já mencionado citou também o lançamento, em outubro passado, no primeiro satélite de sensoriamento remoto “um exemplo de cooperação tecnológica entre dois países em desenvolvimento”, e não deixou de salientar ainda o apoio brasileiro à política chinesa em relação à Taiwan, bem como à pretensão de ingressar na OMC. Vê-se ai, portanto, a valorização, do ponto de vista chinês, das relações com o Brasil. Há um enorme leque de possibilidades que se oferecem para a construção de um proveitoso relacionamento, que está a exigir persistência, imaginação e visão de longo prazo dos estrategistas brasileiros. CAPÍTULO I A CHINA HOJE A avaliação do poder nacional chinês, com vistas à definição do papel que desempenha no mundo é extremamente difícil, em razão das enormes contradições contidas em sua configuração geográfica, na estrutura social, no estágio de desenvolvimento econômico e nas características peculiares de sua formação histórica. O enorme território, o vasto contingente populacional, os recursos naturais, as mais numerosas forças armadas do mundo, a liderança e capacidade de controle interno que o Partido Comunista ainda detém, o domínio de tecnologias sensíveis (nuclear, de mísseis, espacial) e o pragmatismo de sua política externa são fatores que induziriam à classificá-la como mega potência.1 Por outro lado, o baixo nível de renda, a tarefa hercúlea de modernizar a economia sem provocar sérios desequilíbrios sociais, o incipiente nível cultural da massa da população, a precariedade da infra-estrutura de transportes e comunicações, as dissensões internas de grupos nacionais, a crescente obsolescência do equipamento de suas forças armadas, entre outros indicadores, não permitem que a consideremos mais do que uma potência ascendente.2 A vizinhança da mega-potência japonesa e de duas outras potências regioRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 223 nais – Rússia e Índia -, ao mesmo tempo em que representa um elemento inibidor, tem sido contornada pela China no sentido de tirar proveito das potencialidades desses países contribuírem para seu próprio crescimento, enquanto até mesmo rivalidades históricas têm sido amenizadas, reduzindo os níveis de tensão a ponto de não exigirem, para sua contenção, o desvio de recursos das áreas consideradas prioritárias: economia e ciência e tecnologia.3 No momento, podemos classificá-la como potência regional e uma megapotência ascendente. Implicitamente, o mundo assim a reconhece, desde sua admissão no conselho de Segurança da ONU. 1-1. A Modernização O mundo assiste, desde a década de setenta, à China emergir do isolamento de 300 anos em que mergulhou a partir da ascensão da dinastia Qing, de origem Manchu, no século XVII, e de quase cem anos de contínua instabilidade. Esse processo, de caráter evolutivo e modernizador, tem como motor a determinação de voltar a constituir-se no País do Meio. É batizado pelos princípios do confucionismo, do taoísmo e do budismo, componentes básicos da civilização chinesa, e ainda condicionado, no campo da política interna. Pelos cânones do socialismo. Após a morte de Mao Zedong, em 1976, e a consolidação de Deng Xiaoping no poder, em 1978, tiveram início profundas modificações na sociedade chinesa. Passou a ser privilegiado o pragmatismo característico da era Deng, ao contrário do período em que os grandes programas tinham muito mais o intuito de promover a difusão e consolidação dos dogmas ideológicos do partido, o que invariavelmente resultou em enormes catástrofes. O “Grande Salto Para a Frente” e a “Revolução Cultural” custaram à sociedade chinesa cifras absurdas em vidas humanas, além da destruição patrimonial que atingiu inclusive o acervo histórico. Hoje, o povo chinês experimenta um grau de liberdade individual e de bem estar social sem precedentes em sua longa história. Ao contrário do que se verificou no processo de transição para o capitalismo da antiga União Soviética, os chineses trataram de manter a continuidade das estruturas vigentes, principalmente ao do poder político, pela necessidade imperiosa de manter estrito controle social, fruto tanto da mentalidade confuciana como da consciência do elevado preço que os períodos de desestabilização cobraram de sua sociedade. 224 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 O pragmatismo de Deng se fez sentir até mesmo na transição política, por meio da preparação de uma nova elite dirigente que, ainda em vida, encaminhou ao poder, garantindo assim a continuidade do processo de reformas. Hoje a China representa 1,2 bilhões de habitantes, espalhados em um território de quase 10 milhões de quilômetros quadrados. É um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e desempenha um papel de importância crescente nas relações internacionais. 1-2. Situação Econômica A muitos causam surpresa notícias de que a República Popular da China ingressa no século XXI com um PIB de mais de US$ 4 trilhões, conforme novos métodos de aferição4 (paridade do poder de compra) Há uma quase unanimidade no sentido de que se a China lograr manter as atuais taxas de crescimento, poderá alcançar os países industrializados no espaço de uma geração. O Relatório do Banco Mundial, dedicado ao tema “Luta contra a Pobreza”, divulgado em setembro de 1999, afirma que “a China se destaca pela redução extraordinária da pobreza e por seus altos níveis de educação e de saúde”. Entre 1978 e 1998 a China experimentou, além de profundas transformações sociais e culturais, um crescimento médio anual de 9,8%, elevando o PIB per capita de US$ 45,00 para US$ 770,00. Em 1997 a economia chinesa estabeleceu dois significativos recordes mundiais: a safra de 490 milhões de toneladas de cereais (superior a dos EUA, Rússia e Brasil juntas) e a produção de 100 milhões de toneladas de aço. É a primeira na produção de carvão, a Segunda na geração de eletricidade e a quinta na extração de petróleo, dados que lhe conferem a posição de terceira maior produtora e consumidora de energia. A incorporação de Hong Kong lhe proporcionou o maior porto de containeres do mundo (14 milhões de unidades, três vezes superior ao de Roterdã) e a principal frota de navios mercantes. Suas reservas cambiais (US$ 240 bilhões) superaram às do Japão, e o comércio exterior já é o quarto do planeta. No primeiro semestre do corrente ano, a cifra de crescimento do PIB ulRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 225 trapassou os 8%, acima, portanto, do 7,1% registrados em 1999, encerrando sete anos do que, segundo analistas locais, foi considerado como “um lento crescimento”. Isso deverá impulsionar a China para um confortável período de expansão no próximo ano, quando deverá adotar profundas reformas como parte de seu compromisso para ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC). As exportações também subiram, nada menos que 38% no primeiro semestre do ano, chegando a cifras recordes e incrementando o superávit comercial em 55% para US$ 12,4 bilhões no mesmo período.5 1-3. Tecnologia A arrancada inicial do processo de modernização se deu com base em quatro linhas mestras: agricultura, indústria, defesa nacional e tecnologia. Desde alguns anos, contudo, a China busca evoluir de economia industrial para um modelo de aplicação intensiva de tecnologia. Se lograr transformar-se numa economia baseada na informação, acreditam os chineses que em meados do século XXI seu PIB será bem superior ao dos EUA, ainda que agora a proporção seja de sete para um. Sabem eles que um centro político deve apoiar-se numa economia poderosa, e que para atingir esse patamar necessitam desenvolver a educação, a partir da compreensão da importância do conhecimento para o processo de modernização das sociedades. Embora seja ainda recente a noção de que a ciência, a tecnologia e a educação sejam fundamentais para revitalizar o país, planejam passar dos 45 dólares por habitante aplicados em educação para o nível de 2300 dólares que os EUA o fazem. A determinação em absorver tecnologias fez com que o Governo, que exerce um rígido controle sobre a informação, permitisse que a Internet se difundisse, em benefício da exploração do potencial econômico e educativo da rede. O número de pessoas com acesso à Internet dobra a cada seis meses e já chega a 17 milhões. 1-4. Ingresso na OMC Desde 1980, anualmente, o poder executivo norte-americano propõe a renovação da condição de nação favorecida para a China, o que sempre causa apreensões e desgastes nas relações entre ambos os países. 226 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Agora, o governo propôs, e o congresso acaba de aprovar, o “Permanent Normal Trade Relations” (PNTR) – Relações Comerciais Permanentes – como parte do acordo para a entrada da China na Organização Mundial do Comércio. Este fato representa a queda do último obstáculo para a China ser aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC). A normalização das relações comerciais com os Estados Unidos redesenha o mapa da globalização. Até o fim do ano, os 128 países da OMC deverão Ter acesso ao universo de consumidores chineses, e empresas de todo o mundo se preparam para disputar esse gigantesco mercado. A decisão americana garante à China regimes alfandegários preferenciais, comuns entre os EUA e a maioria dos países com os quais mantém relações comerciais. Como integrante da OMC , o governo de Pequim será obrigado a seguir os 28 acordos internacionais de comércio, além de estender a todos os países da organização eventuais vantagens comerciais negociadas de maneira bilateral.6 1-5. Política Externa e Defesa A política externa chinesa hoje orienta-se pela percepção de que as grandes potências chegaram a esse patamar priorizando em suas agendas as medidas econômicas, e que, à medida em que o crescimento econômico torna-se a questão essencial, a competição internacional passa a ser empreendida não mais por meio exclusivo da corrida armamentista e sim pelo poder nacional como um todo. Em conseqüência, reavaliou as ameaças à sua segurança e redefiniu as prioridades estratégicas nacionais, sendo que os ajustes na política exterior estão estreitamente vinculados à segurança do país. Para eles, a segurança não mais se restringe ao estrito de defesa do território nacional e sim como “a manutenção de um estado nação independente, soberano, com estabilidade política e prosperidade econômica”.7 Em conseqüência, visualizam três tipos de ameaças militar, ideológica e econômica. A ameaça militar, após a Segunda Guerra Mundial, vinha principalmente dos Estados Unidos, por meio da rede de segurança internacional que incluía a OTAN, CENTO, SEATO e alianças militares bilaterais com Japão, Taiwan e Coréia do Sul. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 227 O perigo aí identificado diminuiu com a normalização das relações sinoamericanas, na década de setenta. Foi então substituído pela União Soviética, só aliviando-se com o colapso do comunismo. Contemporaneamente, as ameaças são detectadas na instabilidade das novas repúblicas da Ásia Central, nas pendentes disputas territoriais com países vizinhos em relação aos arquipélagos Nanshan (Spratley), Xisha (Paracel) e Diaoyudao (Senkuku), e na questão de Taiwan, que será mais adiante abordada. A ameaça ideológica tem, para os chineses, uma origem perfeitamente identificada – os Estados Unidos -, e incide no que consideram um requisito importantíssimo para o desenvolvimento social e econômico, e que historicamente sempre lhes cobrou um preço altíssimo, a estabilidade interna. Embora os chineses hoje não levem em conta diferenças ideológicas em sua política externa, o colapso do socialismo e dos partidos comunistas afetou os chineses política e psicologicamente, pela falta de legitimidade do Partido Comunista Chinês, cujos congêneres passaram a se restringir a países de pequena expressão.8 Justamente agora, quando as condições dos direitos humanos são melhores do que durante a Revolução Cultural, a China é muito mais pressionada nesse campo. Os chineses consideram que a exploração desse tema, junto com o apoio a uma Taiwan democrática e com a questão do Dalai Lama, constitui-se em ingerência dos EUA em assuntos internos do país, pois ameaça diretamente a segurança nacional e a estabilidade política. A ameaça econômica está associada também aos desafios tecnológicos, pois acreditam que, num mundo altamente competitivo, a nação vencedora será a que apresentar uma economia saudável e dominar as tecnologias mais sofisticadas. Os chineses identificam ai uma grande vulnerabilidade, decorrente da enorme distância que os separa das nações ocidentais industrializadas. Os desafios daí decorrentes têm sido sistematicamente enfatizados pelos líderes chineses. Deng Xiaoping, em sua famosa visita de inspeção ao sul da China em 1992, mencionou enfaticamente que “o desenvolvimento econômico é a tarefa mais importante para o partido e para o povo”.9 Crêem eles que o fracasso ou mesmo a diminuição do ritmo de crescimento econômico causaria problemas sociais e acabaria em crise política, recaindo novamente na instabilidade interna. 228 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Comparando os três tipos de ameaças à segurança nacional, anteriormente descritos, a econômica é percebida como a mais séria, além de, nas demais, também serem visualizados componentes econômicos. Para eles, os desafios econômicos dirão se a China irá sobreviver e Ter sucesso como grande potência, testarão se poderá manter uma situação política estável em casa e mostrarão se será capaz de vencer a corrida contra o tempo. Quanto a esse último aspecto, argumentam que, embora o país venha mantendo uma taxa de crescimento em torno dos 10%, a renda per capita ainda é baixa e a população chinesa continua crescendo de 1,2 a 1,3%, o que adiciona, anualmente, 15 milhões de habitantes aos mais de 1,2 bilhões existentes. Em conseqüência, embora o país tenha resolvido o problema de prover as necessidades básicas do povo na década de oitenta, o problema poderia voltar no século XXI, se não se fizer um esforço para acelerar o processo de modernização.10 Com esse escopo, desde 1982 a China vem buscando construir em torno de si “um clima internacional pacífico”. 11 Essa tem sido, ao longo da última década, a linha mestra de sua política externa, que no seu encaminhamento privilegiou a estratégia da multidirecionalidade, com dois focos. O primeiro contempla uma relação de boa vizinhança com as nações circundantes, para estar livre de ameaças ao seu território, além de naturalmente prevenir o apoio externo a aventuras separatistas das etnias não chinesas predominantes nas províncias periféricas O segundo foco diz respeito ao desenvolvimento de uma relação de cooperação com o Ocidente, tendo como grande motivador a necessidade urgente de obter capital, tecnologias, técnicas de administração e pessoal de talento, além, logicamente, de mercado para seus produtos. Complementarmente, a China tem realizado um esforço para desenvolver relações amistosas com todas as nações e desempenhar um papel mais ativo nos negócios internacionais mediante o envolvimento em Organismos Internacionais. Importantes líderes chineses têm visitado a América Latina e a África, aprofundando relações com países subdesenvolvidos, e, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, tem procurado contribuir Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 229 para o encaminhamento das crises em áreas onde exerce forte influência, como o Camboja e a Península Coreana. 1-6. Relações com o Japão As relações entre China e Japão são foco de atenção permanente, em decorrência de sua complexidade e do potencial de influir na dinâmica do poder mundial. O tema mais sensível para os chineses refere-se ao posicionamento do Japão em relação à Taiwan, o qual nem sempre corresponde totalmente às expectativas chinesas. Preocupam-se também com o alinhamento japonês à política externa na Ásia, com os sinais de renascimento do nacionalismo no Japão e com o fortalecimento do poder militar, tendente a abandonar a postura até então vigente de forças de autodefesa. O intercâmbio comercial entre ambos os países, no total de US$ 66 bilhões, ocupa, reciprocamente, o segundo lugar, ficando atrás somente dos EUA. Recentes visitas trocadas entre chefes de governo têm ensejado a implementação de medidas concretas de intercâmbio, principalmente na área econômica, embora ainda sejam muito vivos os ressentimentos e as desconfianças mútuas. As relações caminham no sentido de promover e intensificar a cooperação bilateral. A visita do Presidente Jiang Zeming, em 1998, estabeleceu as bases de um novo relacionamento calcado na superação das diferenças do passado. Seguiu-se a retribuição do Primeiro Ministro Obuchi, quando foi firmada uma declaração conjunta estabelecendo 33 projetos de cooperação. Pretende-se que a visita do Primeiro Ministro Zhu Rongji, agendada para outubro deste ano, incremente e marque um novo estágio na cooperação bilateral. A tendência, contudo, permanece sendo a de estabelecer fortes relações econômicas, a despeito das dificuldades em superar diferenças e percepções nos campos político e da segurança. 1-7. A Questão de Taiwan A questão de Taiwan remonta ao fim da guerra civil e da conseqüente criação da República Popular, quando Chiang Kai-shek refugiou-se na ilha e assinou com os Estados Unidos um tratado que lhe dava cobertura militar, o que inseriu esse contencioso no contexto da guerra fria. 230 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Como conseqüência, Beijing permaneceu excluído dos organismos internacionais criados depois da 2ª Grande Guerra, inclusive da ONU, devido ao veto dos Estados Unidos. Na década de 70, esse país, no bojo da política triangular na Ásia, aproximou-se da China e retirou o reconhecimento de Taiwan O entendimento do significado da questão de Taiwan para a China deve partir da interpretação do conceito de “país do meio”, que expressa, sob o ponto de vista do universo cultural chinês, a visão do mundo onde todos os povos orbitavam em seu redor em perfeita ordem e equilíbrio. Esse processo foi interrompido pelas intervenções estrangeiras ao longo do século XIX e primeira metade do século XX, onde, no bojo da corrida colonialista motivada pela segunda revolução industrial, “o grande melão chinês” foi repartido com maior ou menor grau de violência entre as potências colonialistas da Europa e o próprio Japão, favorecidos pelo enfraquecimento da dinastia Qing, de origem Manchu, no poder desde 1644. A volta de Taiwan à soberania de Pequim representará o restabelecimento dessa ordem, tão essencial ao inconsciente confuciano. Representa a concretização dos objetivos que remontam às revoltas populares que desaguaram, em 1911, na Proclamação da República. Esses ideais foram incorporados pelo Partido Comunista Chinês ao longo do processo revolucionário, e, sob nenhuma hipótese, serão negligenciados. Provavelmente, constituir-se-ão no principal catalisador das energias em direção ao futuro da nação chinesa. A disputa, com vistas à reunificação, tem se desenvolvido em torno de duas proposições: a de Pequim, na base de “um País, dois sistemas”, e a de Taipé, que propugna a existência de “uma nação, dois estados”. Até 1991, Taiwan ainda pretendia ser a sede do governo de uma única China, versão esta sustentada pelo Kuomintang, que obtinha daí a sua principal fonte de legitimidade, mercê da qual logrou permanecer no poder durante 50 anos. A partir de então, passou a postular a fórmula do duplo reconhecimento, procurando legitimar-se por meio da integração econômica e do aperfeiçoamento do processo democrática, para, aproximando-o dos padrões ocidentais, estabelecer um nítido contraste com o regime de Pequim. Taiwan utiliza seu poder econômico para exercer influência sobre 29 países de pequena expressão, com os quais mantêm relações diplomáticas, e busca Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 231 integrar organizações internacionais, como a OMC. Parece acreditar que, num mundo globalizado, em que o estado tradicional tenha sua importância reduzida, encontrará espaços para manter sua independência. Procura, por meio do conceito da autodeterminação, resistir à unificação nos moldes pretendidos por Pequim. A China demonstra não preocupar-se com a opinião internacional em relação ao processo de reunificação. Mantém a mesma independência com que administra problemas que postula estarem restritos à sua soberania interna, a exemplo da questão do Tibete ou dos direitos humanos, especialmente, quando associados aos distúrbios da Praça Tianamen, 1989. Sempre alertou sobre a possibilidade de intervenção armada, diante de um movimento independentista ou de invasão estrangeira. Recentemente, passou até mesmo a admitir que a excessiva demora para o reinicio do diálogo com vistas à reunificação poderia igualmente justificar uma invasão. Paralelamente, tem se preocupado em ocupar todos os possíveis canais de relacionamento internacional, não ficando restrita àqueles tradicionalmente utilizados pela diplomacia. Busca, desta forma, aproximar-se dos demais países e comprometê-los com seus cinco princípios de convivência internacional, dentre eles o da não intervenção em assuntos internos, que, coerente e enfaticamente, observa e exige contrapartida. Busca assim estabelecer interdependência e comprometimento mútuo, por meio dos quais pretende diminuir o espaço de manobra dos taiwaneses. Taiwan procura, ainda, por meio do enfraquecimento do conceito de soberania, encontrar espaços para reclamar o direito a um governo próprio. A RPC, em contrapartida, privilegia o conceito de que o fortalecimento das soberanias nacionais é essencial a um novo ordenamento mundial, o qual, por certo, melhor de adequa à condição compartilhada por Brasil e China de potências emergentes. Segundo o conselheiro Paulo Antônio Pereira Pinto, Diretor do Escritório Comercial Brasil Taipé “...no sudeste Asiático, também são debatidas as concepções chinesas e taiwanesas, quanto à organização política e de mercado. Tais temas estarão cada vez mais presentes, na medida em que se evolua para um mega bloco, de proporções continentais, como resultado da crescente integração econômica regional...”12 . 232 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 A incorporação pacífica de Hong Kong, em 1997, e a de Macau em 1999, tem um efeito demonstrativo altamente positivo, que reforça os argumentos chineses sobre a viabilidade da fórmula por eles preconizada de um país dois sistemas. O problemas de Taiwan permanece como a grande questão em torno da qual deverão ser empreendidos os maiores esforços de sua política externa. CAPÍTULO II HISTÓRICO DAS RELAÇÕES BRASIL-CHINA As relações entre Brasil e China remontam ao ano de 1879, quando uma missão brasileira visitou aquele país com o objetivo de atrair imigrantes chineses para prover as necessidades de mão-de-obra da economia cafeeira de São Paulo, em crescente expansão, diante da iminente extinção do trabalho escravo Embora os efeitos pretendidos por essa missão pioneira não tenham se efetivado, dela resultou a condução de negociações para um “Tratado de Amizade, Comércio e Navegação”, assinado em 1881 e da abertura de um Consulado Brasileiro em Xangai, em 1883. O distanciamento geográfico e cultural, além da permanente instabilidade interna da China ao longo da primeira metade do século XX, ensejaram muito poucos contatos bilaterais. Em decorrência da vitória da revolução, seguida pela tomada do poder pelos comunistas em 1949, o Brasil rompeu relações. Num ambiente em que a guerra fria se desenrolava no “front” externo e interno, a conseqüência natural foi a abertura de uma Embaixada em Taipé. Os movimentos de aproximação com Pequim foram retomados no início de 1961, com a ida de uma missão chefiada pelo então Vice-Presidente, João Goulart. Essa tendência, contudo, se reverteria logo após a instalação do governo militar. Em 1965, foram expulsos do Brasil os funcionários do escritório comercial chinês, sob a suspeição de estarem empreendendo atividades subversivas. Em 1972, o Sr. Giulite Coutinho, então Presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), liderou uma missão empresarial à China. Essa iniciativa teve como conseqüência imediata o incremento de nossas exportações, que saltaram de US$ 1 milhão para US$ 70 milhões. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 233 Em 1974, uma Segunda comitiva da AEB levou ao Governo Chinês o convite para que uma missão diplomática viesse ao Brasil, o que aconteceu no mesmo ano, ocasião em que foi assinado o protocolo que deu origem ao estabelecimento das relações diplomáticas. As relações entre os dois países entraram em nova fase quando, após a admissão na ONU e ocupação de assento no Conselho de Segurança, pragmaticamente, o Presidente Ernesto Geisel estabeleceu relações diplomáticas, em 15 de agosto de 1974, e houve então troca de embaixadores. O processo de aproximação ganhou consistência a partir de 1984, com a histórica visita do Presidente João Figueiredo, acompanhado por 100 empresários, visita essa repetida pelo Presidente José Sarney em 1988, e pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995. Em 15 de agosto de 1999, o Brasil e a China comemoraram o 25º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas. Nesse período houve intensa troca de visitas oficiais. Entre presidentes, governadores, vice-governadores, ministros de estado e secretários gerais, cerca de 50 autoridades foram à China. Do lado chinês, em retribuição, ocorreram quase o mesmo número de visitas do mesmo nível. Aqui estiveram os Presidentes Yang Shangkun (1990), Jian Zeming (1993) e os Primeiros Ministros Zhao Ziyang (1985) e Li Peng (1995). Esta média atesta o grau de interesse, e até mesmo fascínio, que os países despertam entre si. Como parte dos eventos para comemoração dos 25 anos do estabelecimento de relações diplomáticas, realizou-se, em novembro de 1999, no Rio de Janeiro, o Seminário Brasil – China, organizado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI, da Fundação Alexandre Gusmão, reunindo acadêmicos, empresários, altos funcionários estatais e diplomatas dos dois países. Tratou-se do primeiro grande encontro de pensadores brasileiros e chineses com vistas a proporcionar conhecimento mútuo e abrir caminhos à cooperação entre as duas sociedades. Foram demarcadas quatro áreas de atuação, capazes de servirem de vetores de aproximação: “Ciência e tecnologia: políticas nacionais e possibilidades de aproximação”; “Energia: políticas nacionais e possibilidades de aproximação”; “A China e o Brasil na política internacional”; “A China e o Brasil na Globalização”. 2-1 . Balanço do Relacionamento Bilateral A China tem tentado das substância à “parceria estratégica”, a ela atribuindo peso específico, com objetivos definidos e visão de longo prazo. Empenhou234 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 se, em conseqüência, para criar canais de cooperação em várias áreas, inclusive no campo dos direitos humanos, tema que lhes é tão sensível. São mais de 60 os atos bilaterais assinados, para regulamentar a cooperação nos mais diversos setores. Segundo o MRE, a parceria estratégica com o Brasil tem duas vertentes. A primeira é de natureza política e resulta do peso específico dos dois países nos respectivos hemisférios. A Segunda vertente é a da cooperação econômica e científico-tecnológica. 2-1-1 . Relações Políticas O número de visitas de altas autoridades bem demonstra o grau de identificação no campo político. Adicionalmente, reuniões de consultas políticas anuais são realizadas com base no “Memorando de Entendimento Relativo a Consultas sobre Assuntos de Interesse Comum”, assinado em 1985. No campo dos direitos humanos, o Brasil e a China têm adotado proposições compatíveis com os respectivos embasamentos culturais. A China procura enfraquecer a tramitação multilateral do tema, sobretudo na Comissão de Direitos Humanos da ONU (CDH), em Genebra, foro que a China acusa de discriminatório e politizado. Pequim tem tentado, em anos recentes, bilateralizá-lo, mediante o estabelecimento de diálogos formais de cooperação com determinados países, entre os quais o Brasil. A atuação brasileira na CDH procura ser equilibrada e sem recorrer a critérios seletivos. Coerentemente, na 54ª sessão daquele foro multilateral, a delegação brasileira propôs a elaboração de relatórios sobre a situação dos direitos humanos em todos os países, como meio de evitar a singularização e a polarização política no tratamento do tema. O Governo brasileiro considera legítimo o interesse entre países na situação dos direitos humanos, com base nos princípios de não-intervenção e respeito mútuo. O diálogo bilateral Brasil-China sobre o tema iniciou-se com o envio à RPC, no início de 1997, de missão brasileira chefiada pelo Secretário de Estado de Direitos Humanos, Doutor José Gregori. A visita foi retribuída pelo lado chinês, em setembro do mesmo ano. Em junho último, ocorreu a ida à China da segunda missão brasileira de direitos humanos. Durante a visita, foi assinado um comunicado conjunto, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 235 prevendo a realização de estágio de funcionários da Chancelaria Chinesa na Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, com o objetivo de acompanhar a execução do Programa Nacional de Direitos Humanos e identificar setores suscetíveis de cooperação bilateral na matéria. Em encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Tang Jiaxuam, este referiu-se ao voto de abstenção que o Brasil vem mantendo, desde 1997, na Comissão de Direitos Humanos da ONU e formulou o desejo de que o Brasil tome “atitude mais positiva” caso, no futuro, sejam apresentadas moções anti-China naquele foro. 2-1-2 . Relações com Taiwan Nossas relações com Taiwan têm se restringido aos campos cultural e, sobretudo, comercial, em conformidade com o compromisso assumido com a RPC, em 1974, quando, pragmaticamente, transferimos o reconhecimento diplomático de Taipé para Pequim. Não há nenhum acordo assinado de governo a governo, e, mesmo no terreno do comércio ou do intercâmbio cultural, temos evitado entrar em áreas suscetíveis de provocar atritos com o Continente. Os taiwaneses estabeleceram três escritórios econômico e culturais no Brasil: Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. De nossa parte, ligado ao Consulado Geral do Brasil em Tóquio, mantemos em Taipé um Escritório Comercial, que tem como função principal a busca de contatos e a promoção de nossos produtos. Embora tenha se reduzido significativamente em 1999, é expressivo o intercâmbio comercial entre o Brasil e a Ilha, conforme pode-se ver no quadro a seguir. O MRE entende que os contatos em nível empresarial estão em sintonia com os esforços no sentido de estimular uma maior presença brasileira no cenário econômico-comercial internacional com a RPC. QUADRO 1 Intercâmbio Comercial Brasil – Taiwan 1998 1999 Exportações Importações Total 421 689 1119 334 540 874 Saldo -277 -166 Fontes: MRE/DPR e MDICE/SECEX (US$ milhões) 236 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 2-2. Relações Econômico-Comerciais Para avaliar as possibilidades de incremento das relações bilaterais, no plano econômico-comercial, foi realizada, em outubro de 1998, em Brasília, a VIII Reunião da Comissão Mista Econômico-Comercial Brasil-RPC. Segundo o MRE, “O relacionamento econômico-comercial bilateral ainda se encontra aquém das potencialidades apresentadas pelas dimensões das duas economias. Contribuíram para explicar esse estado de coisas os perfis assemelhados de desenvolvimento científico-tecnológico e a concorrência entre ambos os países na atração ao capital estrangeiro e na absorção de alta tecnologia. Vale lembrar que a China e o Brasil achamse entre os maiores receptores de investimentos no mundo”.13 Na pauta de exportações brasileiras prevalecem produtos de baixo valor agregado, enquanto a China vem conseguindo colocar cada vez mais produtos elaborados e de alta tecnologia no mercado brasileiro. A participação da China nas exportações brasileiras foi de 1,4% em 1999, e na pauta de exportações, de 1,7%. A China é o 15º mercado de exportações e o 14º de importações, o segundo na Ásia, atrás do Japão. Os 10 principais produtos compõem 80% do total, sendo que somente dois produtos – minério de ferro e soja triturada – respondem por 52% do total das vendas brasileiras. No conjunto desses 10 produtos estão presentes ainda: pasta química de madeira, óleo de soja, fumo, couro, farelo de soja, papéis-cartão, produtos laminados e ferros-liga. Quanto as importações oriundas da China, essas são basicamente de produtos industrializados. Os 10 principais produtos explicam 63% da pauta, registrando-se uma menor concentração nas vendas chinesas para o Brasil em comparação com as exportações para o mesmo mercado. Os 10 produtos são: aparelhos transmissores, brinquedos, coque, produtos químicos, máquinas de processamento de dados, motores e geradores elétricos, acessórios para aparelhos de som, toca-fitas, calçados e nitrogenados. Em variados setores e regiões do Brasil, têm-se verificado investimentos diretos de empresários chineses, com o concurso da comunidade chinesa no Brasil. A empresa fabricante de aparelhos de ar condicionado “Gree” (a maior da China) está investindo US$ 20 milhões em Manaus, com vista à produção de 150 mil aparelhos por ano. Do lado brasileiro, constata-se algumas iniciativas de empresas brasileiras na China, com sucesso. Dentre outras, pode-se mencionar a EMBRACO (Empresa Brasileira de Compressores), a TELEBRAS que instalou uma Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 237 fábrica de telefones públicos e de cartões indutivos, a SOFTEX-2000, consórcio de empresas voltado para a exportação de software brasileiro, a Companhia Vale do Rio Doce, na exportação de minério de ferro, a Companhia Brasileira de Mineração de Metais (CBMM), exportando nióbio e a PETROQUISA (PETROBRÁS Química S.A.) que tem demonstrado interesse em estreitar a cooperação com a RPC no setor petroquímico. Numa exceção à tendência de exportação para a China de produtos brasileiro de menor valor agregado, a General Motors do Brasil celebrou com a RPC, no final de 1998, o maior contrato de exportação de sua história, no valor de US$ 710 milhões. O contrato envolve a venda, por um período de dez anos, a partir do ano 2000, de 218 mil conjuntos do utilitário esportivo Blazer e da pick-up média S10 cabine dupla, além de peças de reposição e acessórios, para serem montados em Shenyang, no nordeste da China. O intercâmbio comercial Brasil – RPC apresenta um constante saldo favorável em favor dos chineses, conforme demonstra o Quadro 2, que expressa, ainda, as conseqüências da crise de 98/99. QUADRO 2 Intercâmbio Comercial Brasil-RPC Exportações Importações Total Saldo 1996 1997 1998 1,113,8 1.088,2 904,8 1.129,5 1.188,2 1.032,2 2.243,3 2.276,6 1.928,0 -15,7 -100,2 -118,4 1999 676,0 865,0 1.541,0 -189,0 Fonte: MDIC/SECEX e MRE/DPR (US$ milhões) Também é expressivo o comércio do Brasil com Hong Kong, conforme indicado no quadro a seguir: QUADRO 3 Intercâmbio comercial Brasil – Hong Kong Exportações Importações Total Saldo 1998 407,0 370,0 777,0 37,0 1999 442,0 281,0 723,0 161,0 Fonte: MDIC/SECEX e MRE/DPR (US$ milhões) 238 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 2-3. Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica Na área tecnológica, o Programa Sino-Brasileiro de Satélites de Recursos Terrestres (CBERS) prossegue com o desenvolvimento do projeto de lançamento do segundo satélite de sensoreamento remoto, previsto para outubro de 2001, ao qual deverão seguir-se dois outros. Trata-se de programa de cooperação inédito entre dois países em desenvolvimento, no campo da ciência e da tecnologia, capaz de romper o monopólio dos norte-americanos e europeus, simbolicamente, abrindo ao Brasil as portas da era espacial. O lançamento do CBRES-1 ocorreu com absoluto sucesso em 14 de outubro de 1998. A operação do satélite em órbita tem sido realizada com pleno êxito e a qualidade das primeiras imagens da superfície terrestre enviadas pelo satélite atestam a excelência do nível técnico atingido pelo projeto. Para tanto, está prevista a criação de uma “joint venture” sinobrasileira, que se encarregará da divulgação e da comercialização dos produtos e aplicações. 2-4 . Relações Culturais O Ministro da Cultura visitou Pequim e Xangai, em maio de 1999, a convite do Ministro da Cultura da China. Na ocasião, os Ministros assinaram ata que estabeleceu o Programa Executivo de Trabalho, válido pelo período de dois anos, onde foram relacionadas atividades de interesse comum nas áreas de música (erudita e popular), artes chinesas, audiovisual e acervos de bibliotecas. Na ocasião, foram estabelecidos contatos com vistas as estabelecimento de um diversificado programa de cooperação. Foi oferecida uma mostra de cinema brasileiro, com filmes a serem selecionados pela parte chinesa, no Instituto Latino-Americanos da Academia de Ciências foi selado o compromisso de organizar um seminário de avaliação comparativa do desenvolvimento econômico dos dois países, e foi aventada a participação recíproca em festivais de cinema e detalhada a possibilidade de troca de programas entre a Televisão Central da China (CCTV) e as televisões culturais brasileiras. Aventou-se também a possibilidade de se organizar visitas da parte chinesa a centros brasileiros de produção de telenovelas, tendo em vista o êxito desses programas naquele país, e abordou-se a possibilidade de realização de co-produções cinematográficas. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 239 CAPÍTULO III ENFRENTANDO A GLOBALIZAÇÃO – DESAFIOS COMUNS 3-1 . Situação do Brasil Em decorrência da situação econômica e da conjuntura social, o Brasil vem apresentando vulnerabilidades que esmaecem a robustez de nossa estatura político-estratégica internacional. Devido ao elevado endividamento interno e externo e da dependência do capital internacional para impulsionar o crescimento, o Brasil vem correndo o risco de sofrer uma relativa perda de autonomia, com capacidade limitada de resistir às pressões constantes da agenda internacional. A estabilização da economia não foi capaz, até o momento, de provocar modificações substanciais na problemática social, caracterizada pela pobreza, desigualdades, violência crescente e desemprego. A ciência e tecnologia conta com alguns centros de excelência, bem sucedidos no desenvolvimento de projetos estratégicos. São, contudo, iniciativas pontuais, sem capacidade de dar sustentação a um processo de desenvolvimento, devido à insuficiência de recursos. O campo militar, tampouco, tem sido priorizado, e encontra-se num nível bem inferior ao que se poderia considerar compatível com as necessidades estratégicas, comprometendo até mesmo a capacidade de fazer face a algumas ameaças previsíveis. O país necessita tornar-se um ator de maior expressão no palco das relações internacionais, para atenuar as vulnerabilidades e não estar sujeito a pressões. Para tanto, deve crescer de forma sustentada, e, ao mesmo tempo, democratizar os benefícios sociais e o acesso às necessidades básicas, além de diminuir as desigualdades. Para isso, alguns economistas consideram fundamental a obtenção de uma maior eficiência no comércio exterior, mantendo um superávit correspondente a 2% do PIB (em torno de US$ 15 bilhões.1 4 Temos procurado manter uma excelente imagem internacional, com o objetivo de favorecer a implantação de uma política externa que privilegie a vertente da integração regional, com base numa liderança natural, livre de posturas hegemônicas. 240 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 3-2 . O Contexto da Globalização A estrutura do poder mundial, do mundo pós guerra fria, caracteriza-se genericamente, pela existência de uma potência hegemônica, baseada na supremacia norte-americana, de duas outras superpotências, de características predominantemente econômicas – Japão e Alemanha (pivô do processo de integração europeu) – e de potências emergentes, cujo campo de influência restringe-se ao contexto regional, dentre os quais a China e Brasil. Os centro de poder hegemônicos contam com o quase total monopólio das ferramentas proporcionadas pela revolução científica e técnica. Exercem uma nova forma de colonialismo, onde as regiões periféricas pagam um alto preço pela transferência desses recursos e dos capitais essenciais à transformação de suas economias, resultando em endividamento e limitação de suas autonomias. As políticas intervencionistas por eles empreendidas têm, direta ou indiretamente, sido capazes de afetar a vida dos países em desenvolvimento. Complementam o quadro característico das relações internacionais a dicotomia Norte-Sul e a globalização dos mercados, respaldada ideologicamente pelo neo-liberalismo. Novos conceitos de regulação das relações internacionais vêm sendo elaborados e impostos às nações em estágios de desenvolvimento econômico e social mais atrasados, com dificuldades de garantirem níveis adequados de bem estar às populações e de evitar prejuízos ao meio ambiente. Esses conceitos, que integram a chamada nova agenda internacional, constituem verdadeiros canais, por meio dos quais as nações mais poderosas exercem pressões e projetam o seu poder. Dever de ingerência para preservação do meio ambiente e proteção de minorias étnicas, segurança cooperativa, redução das forças armadas dos países em desenvolvimento, combate ao narcotráfico, liberalização das economias, redução das responsabilidades dos estados, extra-territorialidade das leis dos países desenvolvidos, atuação das ONG, todos, em parte, escondem o escopo de fragilizar as soberanias, abrir mercados, estabelecer bloqueio à transmissão de tecnologias sensíveis, proteger mercados próprios e expandir áreas de influência. A crise do Kosovo foi um exemplo emblemático da aplicação do princípio de relativização da soberania, sob a justificativa do argumento humanitário. Os Estados Unidos e os países europeus tentaram impor esse conceito, com beneplácito da ONU, por ocasião da cúpula do milênio, em setembro de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 241 2000, mas foram rechaçados pela Rússia e pela China. A dupla interpretação de critérios ficou bem caracterizada também pela diferença de tratamento que, no corrente ano, foi dado às formidáveis queimadas, que, fora de controle, destruíram parcelas importantes de ambientes ecológicos de características peculiares, inclusive o parque das sequóias gigantes na Califórnia. Extensas áreas de vegetação natural do oeste americano foram consumidas, sem que entre nós, ou da comunidade internacional, fossem ouvidos protestos ou insinuações de que os EUA não estariam aptos a preservar o que seria patrimônio da humanidade. Esta ocorrência chama atenção por contrastar com o que se verificou por ocasião dos incêndios em áreas de florestas em Roraima, no início de 1998, que, embora relativamente muito menos ameaçadores à diversidade biológica, provocou uma quase histeria internacional. A questão ambiental vem sendo manipulada por países cujo desenvolvimento tecnológico, poder econômico e condições sociais lhes permitem impor padrões inalcansáveis para os países em desenvolvimento, o que acarreta restrições ao uso dos recursos naturais e à exploração de vastas áreas de seus próprios territórios. Daí a importância da obtenção e domínio de técnicas de sensoreamento remoto, que assegurem a autonomia no monitoramento das modificações ambientais e controle de seu próprio território. 3-3 . Desafios Comuns – Caminhos Distintos Diante da conjuntura internacional. Brasil e China ocupam posições semelhantes e enfrentam desafios comuns, pela necessidade imperiosa de superarem algumas das tendências dominantes no atual cenário internacional. No campo dos direitos humanos, ambos têm sido alvo de ações em defesa da preservação das minorias étnicas na China, e populações indígenas no Brasil, pagando no presente o preço de não terem, no passado, agido segundo a lógica que caracterizou os processos de colonização anglo-saxônicos, baseados na segregação ou, em alguns casos, até mesmo no extermínio. A China, com maior freqüência, é acusada de desrespeito aos direitos humanos, ao que o governo se contrapõe argumentando que, na cultura milenar oriental, os direitos sociais e sobretudo os que assegurem o atendimento das necessidades básicas do homem – moradia, educação, saúde e alimentação 242 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 – devem prevalecer sobre aqueles de caráter político. Do ponto de vista econômico, o Brasil tem priorizado a boa relação com o sistema financeiro internacional e a estabilização financeira, o que, segundo alguns analistas, estaria contribuindo para manter em suspenso nossa retomada do desenvolvimento. A China, por sua vez, tem adotado posturas de maior resistência aos chamados capitais voláteis e de menor sujeição às normas do FMI. Assim como o Brasil, a China igualmente se depara com o imperativo de realizar a integração social e territorial de vastas áreas, assegurando o pleno exercício da soberania e do controle total dos destinos das populações, além da liberdade para explorar os recursos naturais, tudo condicionado tão somente por seus próprios parâmetros e necessidades. O Xinjiang, a Mongólia e o Tibete motivam pressões internacionais similares às que a Amazônia e o Centro-Oeste brasileiro recebem. Uma vez que Brasil e China tenham logrado preencher seus espaços territoriais, elevando os padrões de riqueza, terão atingido nível de poder que naturalmente implicará alterações nos sistemas político e de poder mundial. Contudo, fruto dos condicionamentos geográficos, das origens culturais distintas e dos alinhamentos ideológicos anteriores, ambos vêm trilhando caminhos diferentes. O Professor Cabral, coordenador do Programa China-Ásia-Pacífico, da Universidade Cândido Mendes, considera que: “Os dois países adotaram caminhos muito diferentes no mundo após a guerra fria. A China não hesitou em se confrontar com o sistema internacional e tem deixado claro que não aceita nenhum constrangimento ao exercício de seu poder nacional, nos limites que ela considera legítimos. Mesmo assim, tem tido acesso a investimentos imensos. Os Estados Unidos renovam todo o ano a cláusula que lhe garante a condição de nação mais favorecida, de modo que a China vem ampliando a sua presença não só na economia mundial, mas especificamente na economia americana. Nós não conseguimos o mesmo tratamento. Estamos sujeitos a todas as intempéries decorrentes da assimetria de poder. Creio que nos falta maior capacidade de decisão e maior sentido de unidade nacional... Os grandes centros de poder ditam o que outros povos e países devem fazer. A China não aceita.”1 5 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 243 O ingresso no restrito círculo do poder mundial dificilmente se dará sem que haja a necessidade de romper barreiras por meio do emprego do poder nacional, admitindo-se variações no campo e na intensidade. Por seu turno, a capacidade de romper essas resistências será resultado direto da estatura político-estratégica dos agentes. Daí a importância da integração regional, bem como das parcerias estratégicas consolidadas e reconhecidas na comunidade internacional. Tratam-se de processos lentos e que exigem alto grau de maturação, não admitindo arranjos conjunturais e improvisações. É neste contexto que se insere a importância e a urgência da cooperação política entre Brasil e China. CAPÍTULO IV 2025 – UNI OU MULTIPOLARIDADE? O escopo de elaborar propostas de caráter estratégico e, portanto, de longo prazo, impõe-nos a tarefa de perscrutar a configuração dos centros de poder mundial no futuro. Nos parece razoável fazê-lo para o espaço de uma geração, visualizando portanto o ano de 2025. A desintegração da União Soviética em 1990, substituída por um conglomerado de repúblicas autônomas, sob a liderança da Rússia, e a dissolução do Pacto de Varsóvia, em julho de 1991, instalaram um período de unipolaridade hegemônica sem precedentes. Os EUA tornaram-se uma potência ainda mais forte em termos políticos, econômicos e militares. Como conseqüência, a hegemonia americana é talvez a característica mais fundamental do sistema internacional contemporâneo. Contudo, a dinamização dos fluxos de poder indica que o mundo está caminhando para um quadro muito mais complexo e de acentuada interdependência entre as nações. Paralelamente, outros agentes passaram a desempenhar papel relevante nas relações internacionais, exercendo influência sobre aspectos antes restritos às soberanias nacionais. Organismos internacionais estabelecem os parâmetros com que os governos devem regular suas políticas internas, Organizações Não-Governamentais preenchem espaços não ocupados pelos estados e se constituem em grupos de pressão capazes de exercer forte influência sobre as opiniões-públicas interna e externa e, por fim, inaugura-se uma forte tendência de associações regionais entre países, que, originalmente, de caráter econômico, vêm se estendendo aos demais campos. 244 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 4-1 . De Unipolaridade a Multipolaridade 4-1-1 . No Campo Tecnológico É natural que ao início da revolução tecnológica a distância tenha aumentado entre os países que deram a partida nesse processo e os que, por qualquer motivo, a ele não tiveram acesso ou retardaram sua participação. Contudo, é de se esperar que, após um lapso de tempo, essa distância tenda a se encurtar, em decorrência da difusão das informações e da progressiva disponibilização das tecnologias. Com a contínua difusão da tecnologia, os custo da informação tecnológica tenderão a continuar caindo, o que significa que os países em desenvolvimento podem, com investimento relativamente modestos, diminuir a defasagem. Embora dificilmente possa-se prever que venham a ultrapassá-los, é de se esperar que um número considerável de nações venham a emergir. 4-1-2 . No Campo Econômico Os últimos anos se caracterizaram por um contínuo crescimento da economia norte-americana. Três fatores teriam contribuído para isso: primeiro, os ajustamentos na economia efetuados por seu governo, no início dos anos 80, antecederam aos dos demais países; segundo, os EUA lideraram o desenvolvimento da indústria da informação, graças à superioridade em ciência e tecnologia acumulada durante o período da guerra fria; terceiro, depois das crises do sistema financeiro mundial, grande quantidade de capital refugiouse nos EUA, e é natural que estejam impulsionando a economia nesse país no campo tecnológico. É difícil, contudo, que tal situação perdure indefinidamente, e o próprio FMI espera uma queda das taxas de crescimento dos países desenvolvidos. Nessas circunstância, embora não se suponha que os EUA venham a perder sua posição de maior potência mundial em curto período de tempo, é natural que ocorra uma perda de vigor em algumas das vertentes que o elevaram a essa posição. Ao mesmo tempo, outros países desenvolvidos, tais como a União Européia e o Japão, estarão reduzindo a distância em relação aos Estados Unidos. O lançamento do Euro consolida a integração européia e a coloca em um caminho sem volta. O status de segundo padrão monetário mundial do Euro Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 245 já é universalmente aceito e com o incremento da situação econômica na Europa, cedo ou tarde, a União Européia irá formar um tipo de ameaça à posição hegemônica do dólar no mercado internacional. Em relação ao Japão, as dificuldades econômicas estão correlacionadas com as modificações internas na estrutura econômica, o que não pode ser feito da noite para o dia. Contudo, o FMI espera que já no ano 2000 seus efeitos se façam sentir. Há ainda a possibilidade de que a cooperação regional ajude a retomada econômica. Na Rússia, a situação política parece querer estabilizar-se e, no campo econômico, já se verifica uma reversão da tendência de crescimento negativo, embora restem como obstáculos a tensão social, a corrupção e o “gap” em tecnologia da informação. Na medida em que a Rússia obtenha um crescimento vigoroso, é de se esperar o restabelecimento da tendência de atração das antigas repúblicas da União Soviética, agora sob novos parâmetros, numa atmosfera muito mais relaxada, o que lhe proporcionaria um novo vigor. A China, graças ao crescimento sustentado, desde o início do processo de reformas e abertura, há vinte anos, tem visto seu status internacional aumentar, graças não só ao crescimento econômico, mas também à determinação com que persegue seus objetivos por meio de sua política externa. Decorridos dois anos desde o início da crise financeira da Ásia, a economia chinesa ainda mantém uma taxa relativamente alta de crescimento. Os chineses crêem que seu poder econômico, e, por extensão, nos demais campos, aumentará ainda mais, se o país lograr manter-se em seu processo de reforma e abertura e intensificar a inserção na economia global por meio da admissão na OMC. Além disso, países como o Canadá, a Austrália, a Índia e o Brasil caminham no sentido de se tornarem centros de poder de relativa, mas crescente importância. Os dois primeiros por contarem com recursos naturais, desenvolvimento social e recursos científicos e tecnológicos, estando portanto mais aptos a tirar proveito dos frutos da revolução tecnológica mundial. A Índia e Brasil tendem a intensificar seus papéis de potências regionais, graças ao mercado interno, reforçados pelos processos de integração regionais, além de contarem também com abundantes recursos naturais. Há que se contabilizar ainda o previsível surgimento de novos centros de poder, resultantes de processos de integração regionais. 246 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 4-1-3 . No Campo Político e de Defesa No campo internacional verifica-se um generalizado desconforto em relação à unipolaridade hegemônica. Têm sido constantes as manifestações em favor de um mundo multipolar, a exemplo da recusa generalizada em aceitar o desenvolvimento do projeto de guerra nas estrelas, sob a alegação de que quebraria o equilíbrio de poder mundial. Esta condição de supremacia absoluta não é suficiente para assegurar aos EUA uma total autonomia na condução de sua política internacional. Em suas intervenções no Golfo, Iugoslávia e em outras questões, necessitou de, pelo menos no campo político, contar com o respaldo de terceiros países que lhe legitimassem a atuação perante a opinião pública internacional e sobretudo a nacional. O processo de unificação europeu parece acelerar-se também nos campos político e da segurança. Desde a crise de Kosovo, em que ficou patente e desconforto de alguns setores europeus com a lógica das ações aliadas, vem sendo trabalhada a criação, até 2003, de uma força de ação rápida com efetivos de 60 mil homens. Com o crescimento da capacidade de defesa, a UE dificilmente seguirá alinhando-se e dando suporte automático aos Estados Unidos no campo da segurança. O Japão, no campo militar, há muito tempo, tem mantido o segundo maior orçamento de defesa do mundo. Recentemente, sob o pretexto da ameaça dos mísseis norte-coreanos e do agravamento das tensões entre China e Taiwan, os japoneses têm trabalhado no sentido de contar com forças de segurança independentes das dos EUA, o que incluiria o lançamento de quatro satélites espiões até 2003 e planos de construir quatro porta-aviões leves de 40 mil toneladas, assegurando assim a capacidade própria de garantir sua segurança. Paralelamente, assiste-se ao renascimento do nacionalismo japonês.1 6 A Rússia, embora tenha anunciado uma substancial redução numérica de suas Forças Armadas, ainda mantém sua posição de segunda maior potência militar. Acresça-se ai a crescente aproximação em andamento entre a China e a Rússia, que têm sido capazes de superar antigos ressentimentos e coordenar suas posições em questões estratégicas importantes, demonstrando estar totalmente superada a estrutura de poder triangular edificada por Mao e Nixon, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 247 que tinha por objetivo a contenção da União Soviética. Ambos se opuseram à implantação do National Missil Defense (NMD) pelos EUA, o que motivou inclusive a ida de Putin à China em julho de 2000, e, por ocasião da cúpula do milênio, em setembro do mesmo ano, apresentaram visões conjuntas em relação a temas ai debatidos. Nos parece válido, portanto, projetarmos um cenário em que a Ásia comporá uma esfera de interesses específicos, no qual os EUA não poderão aplicar livremente os preceitos da “pax americana”. 4-2 . A Visão Chinesa O pensamento político estratégico chinês considera que, até a metade do próximo século, predominará a influência dos Estados Unidos combinados com a Europa, pelas seguintes razões: Primeiro, esses países contam com uma base econômica sólida e baseiam seu poderio no desenvolvimento de tecnologias de ponta. Segundo, o processo de globalização da economia os beneficia, pela posição central que desempenham na ordem econômica internacionalmente vigente. Terceiro, seu poderio político é respaldado por um poderoso aparato militar, reforçado por alianças de defesa como a OTAN e respaldados pelo domínio que exercem nos organismos internacionais.1 7 Antevêem, contudo, que, dificilmente os EUA lograrão manter-se na atual posição sem sofrer a competição de outros países, já que, na história moderna, raramente, um país permaneceu-se por mais de 10 anos como potência hegemônica, sem que nenhuma outra lhe confrontasse.1 8 As questões econômicas, tonando-se o foco das disputas internacionais, tenderão a acirrar a disputa entre os Estados Unidos, o Japão e a União Européia, pela liderança mundial, mediante a busca de superioridade de poder nacional amplo.1 9 A complexidade do quadro internacional estabelece uma tendência natural a que, sob o manto da unipolaridade, o mundo caminhe para um quadro de multipolaridade difusa, onde países como a China e o Brasil teriam espaços específicos a ocupar. 4-3 . Alternativas para o Brasil Neste quadro de polarização das esferas de influência repartidas entre vários 248 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 centros de poder, o Brasil, por força de sua localização geográfica, de sua origem e formação histórica e por compartilhar dos valores da civilização ocidental, estará forçosamente englobado na esfera de poder ocidental. Cabe a nós estabelecermos em que bases desejamos ser lavados em conta se como um mero coadjuvante ou, ao contrário, como um país orientado por interesses próprios, internos e externos, movimentando-se livremente no que considerar sua área de interesses vitais. A china, mais uma vez nos serve de referência, como ensina o Professor Severino Cabral, em “China e Brasil: maneiras diferentes de enfrentar desafios”: “Os chineses optaram por contrariar os dados que os outros lançaram sobre sua mesa. Nós, não... Na política internacional, o grande espaço do Brasil deveria ser a unidade de bloco de países em desenvolvimento, do qual somos integrantes. Parte da nossa elite ilustrada imagina que o problema do Brasil é apenas de justiça social. O Brasil não seria mais subdesenvolvido, mas injusto. É falso e nos conduz a agir em defesa do status quo. O Brasil é um país em desenvolvimento. Suas relações econômicas, políticas e de poder nacional frente ao mundo, convalidam as situações de injustiça e fazem com que suportemos mal os choques externos. Para defender nossos interesses temos que sustentar nosso desenvolvimento a todo custo. Este é o desafio principal, que no fundo é o mesmo da China. Ela não venceu o isolamento pelo bom mocismo, mas pelo peso que ganhou nas relações internacionais, pagando algum preço por isso. Além disso, não conseguirão nos isolar se tivermos uma política comum com o resto do mundo em desenvolvimento, onde está a maior parte da humanidade. O Brasil pode ser líder de um bloco regional com peso extra-regional, projetando-se assim como um dos mega-estados do século XXI.”2 0 Para tal, importa a associação equilibrada com todos os centros de poder e há ainda que se aprofundar e ampliar a integração sul-americana, partindo do MERCOSUL, adensando o relacionamento entre seus membros, passando efetivamente de uma união aduaneira para um mercado comum. É imprescindível a incorporação de novos membros com vistas à elevação do peso específico do Brasil e da importância de seu papel como aglutinador dos interesses regionais, exercendo uma liderança natural, com o cuidado de evitar atitudes hegemônicas, em consonância com a tradição diplomática brasileira. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 249 CAPITULO V POSSIBILIDADES DE UMA PARCERIA ESTRATÉGICA COM A CHINA Durante a visita à ESG, em agosto de 2000, de uma comitiva chinesa liderada pelo Vice-Ministro das Relações Exteriores, um diplomata chinês, em conversa informal, assim expressou sua visão a respeito da situação conjuntural do Brasil, comparando-o com a de seu país. “Uma nação de dimensões continentais, cuja base física não sofre restrições de ordem fisiográfica ou climática, com uma população etnicamente integrada, que atingiu distribuição espacial (equação campocidade) em padrões que se aproximam da verificada em países desenvolvidos, a densidade demográfica e a taxa de crescimento não impõem o ônus de um rígido programa de controle de natalidade; dispondo de renda per capita 5 vezes superior à chinesa; cujo processo de modernização em curso não ameaça resultar em centenas de milhões de desempregados e em um gigantesco e incontrolável êxodo rural; contando com enormes fatias do território ainda guardados como reservas naturais e sem ter sofrido grave degradação ambiental que na China está exigindo enormes esforços e aplicação de recursos”. Este quadro expressa a visão de uma pessoa culta, mas pode ser recolhido também entre pessoas comuns da população, que normalmente agregam ao seu juízo as impressões de caráter lúdico, relativas ao futebol e à produção artística brasileira que chegam à China por meio da televisão. Seu valor, contudo, está em demonstrar a predisposição totalmente favorável por parte dos chineses a tudo que se refere ao Brasil. Cabe identificar os campos estratégicos passíveis de serem conjuntamente explorados, bem como as áreas onde as atuações coordenadas tendem a potencializar os resultados pretendidos. 5-1 . A Ampliação do Intercâmbio Comercial A abertura do mercado chinês, com vistas ao ingresso na OMC, cria oportunidades de expansão principalmente para as exportações brasileiras de produtos agrícolas e industrializados que aproveitem vantagens comparativas do Brasil, proporcionadas pela dotação de recurso naturais, 250 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 como siderúrgicos, papel, alimentos industrializados e bebidas. A liberalização do mercado chinês não será imediata. Para o Brasil, é importante iniciar desde já a elaboração de estratégias de comercialização para o mercado chinês em parceria com os demais sócios do MERCOSUL e também começar a pesquisar possíveis parcerias com firmas chinesas no ramo da distribuição. A Associação Brasileira dos Exportadores de Cítricos (ABECITRUS) demonstrou que com agressividade pode-se conquistar espaços na China. Imediatamente após o anúncio da aprovação pela Câmara dos Deputados norteamericana do acordo de comércio entre os dois países, enviou um técnico para Pequim, para identificar hábitos de consumo e barreiras comerciais. Naquela oportunidade, foi negociada com o governo chinês a redução de 70% para 15% na tarifa do suco de laranja concentrado, a partir da data de aceitação da China na OMC. Do 1,1 milhão de toneladas de suco exportadas pelo Brasil, os chineses consomem somente 4 mil, o que sinaliza um enorme potencial a ser perseguido. 5-2 . Acesso aos Demais Mercados Asiáticos A Ásia representa um mercado de 2,5 bilhões de habitantes, que cresceu a taxas consideráveis na década de 80 e 90 e já demonstra ter se recuperado da última crise. Fatores que poderiam retardar a evolução parecem estar superados, tais como a instabilidade política e os padrões de relacionamento internacional. As Coréias, por exemplo, realizam os primeiros movimentos com vistas ao relaxamento das tensões e até, quem sabe, à reunificação, o que até bem pouco tempo era considerado improvável. Nesse mercado promissor, com exceção do Japão, é inexpressivo o volume de trocas comerciais do Brasil. Fruto da diáspora chinesa, importantes contigentes populacionais achamse alojados em inúmeros países do sudoeste asiático, de onde promovem importante enlace econômico com a China Continental. Parte considerável dos investimentos externos aplicados na China tem como origem essas comunidades. Uma forte presença do Brasil na China pode, por meio dessas populações, subsidiariamente, abrir novas oportunidades de intercâmbio com esses países. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 251 5-3 . Setor Energético Tanto China quanto o Brasil poderão ver a energia constituir-se em gargalo aos seus projetos de desenvolvimento. A exemplo do Brasil com Itaipu, a China busca a solução por meio da represa de Três Gargantas. O reaquecimento da economia brasileira faz com que esse tema volte a preocupar os responsáveis pela condução das políticas de governo. A obtenção de fontes suplementares e a diversificação da matriz energética podem ser obtidos por meio da utilização de recursos comuns e do uso compartilhado de tecnologias próprias. Hidrelétricas, petróleo, gás natural e área nuclear, estão a ensejar um proveitosos intercâmbio, passível de contar também com participação de empresas privadas, necessitando, para isso, serem superados os entraves decorrentes do limitado conhecimento mútuo acerca das potencialidades de cada um. A China implementou um programa energético que prevê a duplicação da capacidade de geração até 2010, permitindo amplas oportunidades em áreas nas quais o Brasil dispõe de capacitação tecnológica reconhecida internacionalmente. Essa empresas estão em condições de oferecer à RPC, em bases comerciais, consultoria para a elaboração de projetos, construção e gerenciamento de usinas hidrelétricas, bem como no estabelecimento de redes de transmissão e de distribuição de energia elétrica. Temos também capacidade de produzir e exportar equipamentos, máquinas e turbinas para usinas hidrelétricas chinesas. Algumas empresas têm obtido êxitos nesse setor. A COPEL (companhia Paranaense de Eletricidade) concluiu com sucesso o relatório técnico de viabilidade para a construção de barragem da hidrelétrica de Shuibuya, na Província de Hubei. A Mendes Júnior Engenharia executa, em regime de associação com empresa chinesa, a construção da hidrelétrica de Tianchengqiao 1, e vem negociando outros contratos. As filiais brasileiras da Siemens, Voith e ABB (Asea Brown Boveri) estão fabricando geradores e turbinas para a hidrelétrica de Três Gargantas, que se acha em construção. As primeiras turbinas de fabricação brasileira já chegaram ao porto de Xangai. 5-4 . Telecomunicações e Serviços Postais Em setembro de 1999, o Ministro das Comunicações, chefiando uma delegação brasileira, participou do 22º Congresso da União Postal Universal 252 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 (UPU). Naquela ocasião, os chineses manifestaram o interesse pela intensificação da cooperação no setor de telecomunicações. Seguiu-se uma visita do Presidente da ANATEL, em outubro de 99, com um grupo de empresários brasileiros. Na ocasião, verificou-se a possibilidade de estreitamento da cooperação bilateral, compreendendo as áreas de legislação, tecnológica e comercial, entre a ANATEL e o órgão correspondente do Governo Chinês. Foi visualizado o estabelecimento de um mecanismo de intercâmbio de informações e experiências na regulação do setor de telecomunicações, abrangendo o processo de planejamento e implementação de reformas nesse setor. Em relação aos serviços postais, cabe mencionar o potencial de cooperação bilateral identificado nos contatos paralelos feitos em Pequim, na mesma oportunidade. Concomitantemente, realizou-se a Exposição Filatélica Mundial/99, onde o estande da ECT recebeu grande demanda dos filatelistas chineses. Como resultado desse interesse, posteriormente foram assinados acordos sobre a emissão conjunta de selos, acordo sobre comércio exterior, no intuito de elevar as exportações brasileiras por intermédio dos correios, com vistas a beneficiar sobretudo as pequenas e médias empresas, e acesso de fornecedores da ECT ao mercado postal chinês. 5-5 . Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica Na “Declaração Conjunta sobre a Cooperação Espacial”, assinada em 1996, os dois países, além de reafirmarem o interesse comum na manutenção e expansão do projeto CBERS, comprometeram-se a estudar a possibilidade de, em futuro próximo, estender a cooperação espacial bilateral para a construção de satélite geoestacionário de múltiplas aplicações, dentre as quais, as áreas de meteorologia e de telecomunicações. Em resposta à solicitação do lado chinês, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais está desenvolvendo estudo detalhado da viabilidade da participação brasileira em tal projeto. Apesar da consolidação e garantias de prosseguimento do programa CBERS, não houve até o momento qualquer colaboração entre os dois lados no que diz respeito à tecnologia de vetores. A China participa de 9% do mercado internacional de lançamento de satélites, que se estima movimentar anualmente US$ 15 bilhões. É digno de nota o bem sucedido teste orbital, em novembro último, do avião espacial chinês Shenzhou. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 253 5-6 . Agricultura As condições naturais e a tradição de grandes produtores de alimentos, delimitam um enorme campo de possibilidades de cooperação, principalmente se levarmos em conta que os dois países ocupam faixas de latitude distintas, portanto, pouco concorrentes. O Governo Chinês promoveu o Simpósio China-Brasil de Agricultura Tropical, na cidade de Haikou, província de Hainan, no período de 24 de abril a 2 de maio de 1999. O Brasil enviou ao evento onze especialistas, nas áreas de frutas tropicais, café, cana-de-açucar, pastagem, cacau, soja, borracha e mandioca. O simpósio permitiu aos brasileiros identificar técnicas chinesas utilizadas no cultivo e processamento de frutas e conhecer o potencial de crescimento das províncias do sul daquele país em agricultura e ensejou que ambas as partes reconhecessem a conveniência de se estabelecer cooperação técnica nas áreas mencionadas. Foram discutidos projetos de treinamento, no Brasil, de técnicos no cultivo de cana-de-açucar e de frutas tropicais, sendo que nesse último campo, especialistas brasileiros iriam à China para prestar assessoria. Outros campos de cooperação podem ser abertos, como por exemplo os de aquacultura e de manejo de águas. A China domina técnica milenares desenvolvidas em regiões cujas condições naturais são bem menos propícias do que no Brasil. Além do mais, diante de possíveis cenários mundiais de falta de alimentos, ou ainda de distorções nos sistemas de distribuição, esse tema pode passar a ser explorado associadamente ao dos direitos humanos e os países produtores serem responsabilizados e submetidos a pressões pelas potências hegemônicas. Caberá, portanto, a coordenação de políticas e estratégias de atuação conjunta. A China integrando a OMC reforçará também a posição dos exportadores de alimentos diante das barreiras impostas pelo protecionismo agrícola. 5-7 . Cooperação no Setor Aeronáutico O setor aeronáutico chinês manifestou interesse em estabelecer programa de cooperação com a EMBRAER. Com esse objetivo, uma delegação integrada por funcionários de vários órgãos ligados à aviação 254 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 visitou o Brasil, em novembro de 1998. Os chineses, contudo mostraram-se mais interessados em obter transferência de tecnologia do que na aquisição de aeronaves brasileiras, razão pela qual as negociações não prosperaram. Com respeito à possibilidade de venda de aeronaves, há negociações em andamento com vistas ao fornecimento de dez jatos regionais do modelo ERJ-145 à companhia aérea chinesa Sichuan Airlines. Cada aeronave seria vendida por cerca de US$ 17 milhões. 5-8 . Campo Militar A composição das aditâncias militares instaladas a partir de 1988 expressa implicitamente a importância que os dois países reciprocamente atribuem às relações no campo militar. Os escritórios abrigam de um Coronel, um TenenteCoronel Adjunto e um Sargento Auxiliar. A partir do oferecimento chinês, desde 1995 oficiais brasileiros tem realizado um “Curso Especial de Estratégia”, na Academia Nacional de Defesa. No entanto, a despeito da existência de um amplo espectro de oportunidades, a cooperação militar tem estado bem aquém do potencial ensejado pela estatura, efetivos, conhecimentos e experiências acumuladas pelos respectivos estamentos militares. Não houve aquisições de material de emprego militar e, até então, nenhum oficial realizou cursos ou estágios em escolas militares brasileiras. 5-9 . Campo Cultural A conjuntura internacional, a partir da unipolaridade, tenta impor a via do pensamento único. Em contrapartida, o diálogo Brasil-China, por si só, é capaz de estimular e enriquecer a diversidade de padrões culturais, reforçando identidades e preservando a capacidade criativa de dois universos tão ricos e dinâmicos. Urge elevarmos o nível de conhecimento da sociedade brasileira sobre a China, pois o desconhecimento tem se constituído em natural fator de inibição, principalmente, das relações comerciais e culturais. Nossos currículos escolares deveriam incluir em seus conteúdos a história da civilização chinesa, destacando suas contribuições para o progresso da humanidade, a exemplo do que é feito em relação à Mesopotâmia, o Egito e a Europa. No campo cultural, o Brasil não despertou para o potencial que Macau Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 255 representa, após Ter passado à soberania chinesa. Trata-se de um enclave de cultura lusitana na China, capaz de permitir o reconhecimento de traços comuns entre o Brasil e uma parte daquele país. Trata-se de ampliar e fortalecer esses laços, incrementando intercâmbios a serem instrumentalizados de formas variadas. Ademais, encontram boa receptividade na China as atividades esportivas e as artísticas, especialmente o cinema e a televisão, que tanto interesse despertam no imaginário chinês. Torna-se imperioso que as universidades e o mundo acadêmico em geral voltem suas atenções e despertem para o rico ambiente cultural chinês. Cabe também às entidades privadas estimular esse processo, pois serão os beneficiados diretos do enorme leque de oportunidades que daí resultará. 5-10 . Política Externa No campo da política externa, cabe ajustar as posturas dos dois países em relação a temas da agenda internacional e na atuação em suas áreas geográficas de interesse. A China é o único país em desenvolvimento a ocupar um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU, o que deve ser considerado, portanto, no encaminhamento da pretensão brasileira de desempenhar papel mais expressivo nesse Conselho. Além disso, nossos interesses são semelhantes aos chineses, em temas como o meio ambiente, direito das minorias, transferência de tecnologia, relações norte-sul, desarmamento, segurança e outros assuntos privilegiados pela agenda internacional. Apesar da grande distância física, e das diferenças históricas, existe uma tradicional amizade entre ambos os países, e muito mais pontos de convergência do que de discordância. Esses interesses comuns justificam uma atuação conjugada tanto nas relações bilaterais como nos diversos fóruns internacionais. De seus pesos específicos resulta que podem cumprir papel fundamental para a segurança e a paz mundiais. Ambos os países devem criar um ambiente favorável e que seus projetos nacionais tenham condições de realizarem-se num clima de paz e cooperação, contribuindo para o estabelecimento de uma nova ordem mundial não hegemônica, mis justa e democrática. 256 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 CONCLUSÃO Em 1993, já na condição de ex-presidente da República, o senador José Sarney visitou Pequim e compareceu à nossa Embaixada para uma visita informal. Naquela ocasião21, revelou um trecho da conversa entabulada com Deng Xiao Ping, quando de sua visita presidencial à China, em 1998. Disse-lhe o então Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, algo que, segundo ele próprio, nós ocidentais não sabemos: “...o tempo existe”. Revela-se assim, com a simplicidade e a profundidade características do pensamento oriental, a estreita vinculação entre o presente e futuro, materializada na concepção de que os objetivos longínquos são concretizados a partir das ações que hoje realizamos. O relacionamento com a China deve ser conduzido com essa perspectiva, pois, a longo prazo, o relacionamento bilateral e a cooperação estratégica entre o Brasil e a China tem potencial para elevá-los ao patamar de protagonistas ativos da dinâmica do poder mundial. Comprometidos com a paz e a segurança, e fiéis a princípios de autodeterminação e não-interferência em assuntos internos de outros países, têm condições de proporcionar uma enorme contribuição à estabilidade e à convivência harmônica e equilibrada entre as nações. Dessa associação resultará um bloco de poder praticamente auto-suficiente em recursos naturais, quer sejam os renováveis, quer sejam os minerais, energéticos ou não, senhor de um enorme mercado, detentor de tecnologia e de uma grande indústria capaz de fabricar aviões, foguetes, submarinos nucleares, satélites artificiais, bens de consumo e alimentos, sem contar o inigualável patrimônio cultural decorrente de diversificados processos de formação histórica e de contextos geográficos peculiares. Internamente, a unidade e a cooperação, entre os dois países em desenvolvimento, estariam revigorando nosso esforço com vistas ao progresso e à elevação do nível de vida de nosso povo. Por fim, a consolidação dessa parceria redundaria no fortalecimento da estatura político-estratégica do Brasil, consagrando-o como principal vetor do processo de integração sul-americano e de consolidação do MERCOSUL, projetos prioritários na agenda da política externa brasileira. *Coronel de Infantaria e Estado-Maior do Exército Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 257 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CABRAL, Severino Bezerra. China e Brasil: maneiras diferentes de enfrentar desafios. Visões da Crise. Contraponto. Rio de Janeiro, p. 41-50. Out. 1996. _____ Encontro Brasil China: cooperação para o século XXI. Revista Brasileira de Política Internacional, nº 1. IBRI. Brasília, 2000. _____A China na Vizinhança do Terceiro Milênio. Revista CEBRES. Rio de Janeiro, p. 27-37. Dez. 1996. CONJUNTO UNIVERSITÁRIO CÂNDIDO MENDES. Programa de Estudos ChinaÁsia-Pacífico: Brasil-China: 20 anos de Relações (1974-1994). Rio de Janeiro. Ago. 1994. LAMPRÉIA, Luiz Felipe. 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P. 21-33. 1996. 8 Idem 9 Idem 10 Idem 11 Idem 12 Pereira Pinto, Paulo Antônio (entrevista) 13 MRE. Divisão da Ásia e Oceania – 1. Visita do Sr. Vice-presidente da República à China. Dez. 1999 14 MUGNAINI, Mário. JHEA, Roberto Nicolau. Palestra proferida na FIESP, SP. 29/08/2000. 15 CABRAL, Severino Bezerra. China e Brasil: maneiras diferentes de enfrentar desafios. Visões da Crise. Contraponto. Rio de Janeiro, p.41-50, outubro de 1996. 16 ZAIBANG, Wang. Reflections on the Transformation of Word Pattern and Responsability Adjudment. Contemporary International Relations. CICIR. China, v. 10 n. 2, p. 1-13. Fev. 2000. 17 XUETONG Yan. Diretor do Centro de Estudos de Política Externa do Instituto de Relações Internacionais Contemporâneas da China. El Siglo XXI será de China o de Estados Unidos? Beijing Informa. Edição em Espanhol. Nr 13. Beijing, mar 2000. 18 Idem 19 Idem 20 CABRAL, Severino Bezerra. China e Brasil: maneiras diferentes de enfrentar desafios. Visões da Crise. Ed. Contraponto. Rio de Janeiro, p. 41-50. Out 96. 21 Presenciada pelo autor deste trabalho Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 259 Carlos Alberto Nunes Cosenza* Gerardo José de Pontes Saraiva** Ecologia e Economia continuam a ser duas noções antinômicas, que será necessário reconciliar o mais depressa possível, sob pena de desastre. (Jean-Marie Pelt) INTRODUÇÃO A expressão economia ecológica refere-se a esforços colaboradores para estender e integrar o estudo e o gerenciamento do lar da natureza (ecologia) e do lar da humanidade (economia).1 De fato, Ecologia e Economia derivam da raiz grega oikos, com o sentido de casa, à qual se acrescentaram logia e nomia, que significam estudo lógico e manejo (gerenciamento), respectivamente. Deste modo, Ecologia compreende o estudo do ambiente da casa, incluindo nele todos os organismos contidos nela e todos os processos funcionais que a tornam habitável2 . Economia, por sua vez, significa o manejo da casa, o gerenciamento da casa.3 Como se pode deduzir de suas origens etimológicas e de seus significados léxicos, Ecologia e Economia deveriam ser ciências-irmãs - o que, lamentavelmente, nem sempre acontece. De fato, muitas pessoas, inclusive sociólogos e economistas, consideram-nas palavras antitéticas e - o que é mais grave, em face das conseqüências disso decorrentes - raciocinam, planejam e agem partindo desse pressuposto. Não se pode negar a existência, na vida real, de oposição dessas duas palavras. Absolutamente imprescindível, porém, é conciliá-las, pois que o critério prioritário economicista, em particular o dos adeptos do neoliberalismo, poderá causar conseqüências irreparáveis, rompendo o equilíbrio dinâmico 260 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 que deve existir nesse grande ecossistema que é a Terra. Assim, os defensores intransigentes da civilização industrial, com sua resultante cultura tecnológica e inevitável consumismo, têm que abandonar suas abstrações, mesmo intelectualmente justificáveis, para ir ao encontro das propostas e apelos ecológicos. Tradicionalmente, a Economia limitou-se ao conjunto de relações estabelecidas pelos homens em suas atividades de produção, de consumo e de troca. Esse conceito é hoje ultrapassado, porque houve um substancial progresso científico nesse setor do conhecimento em termos conceituais: campos que eram totalmente estranhos à Economia, hoje são perfeitamente abarcados por seu processo explicativo. Assim foram a ele relacionados questões referentes ao direito, à política, à administração, ao casamento, às organizações e à ética e , de um modo geral, à vida sócio-político-administrativa da sociedade. Dentro dessa óptica, o meio ambiente também lhe foi integrado. Além do mais, deve-se observar que, apesar da relação conflitiva existente, o meio ambiente, desde os primórdios, sempre foi considerado no pensamento econômico, de modo que é viável admitir e conceber a integração de ambos. Mais do que isso, é imprescindível. Até há pouco tempo, o meio ambiente assumia apenas dois valores: zero ou infinito. Atribuir um valor zero aos meios naturais significa, em última instância, afirmar que eles não têm preço. E, em assim sendo, eles são duplamente gratuitos. De fato, de um lado eles são utilizados na produção de bens e serviços, mas não entram na contabilidade econômica, porque são considerados bens gratuitos, por serem dons da natureza; por outro lado, não são bens mensurados por serem bens protegidos ou patrimoniais. Em conseqüência, para sair-se dessa gratuidade, é preciso que se quantifique monetariamente o meio ambiente, atribuindo-se-lhe um preço. E essa atribuição é feita, essencialmente, levando-se em consideração o conceito de externalidade. Para tanto mister se faz que algumas considerações sejam feitas, introduzindo a identificação dos responsáveis e das vítimas dos danos ambientais. Em outras palavras, é necessário que se internalize a externalidade, de modo que se possa atingir o ótimo econômico a partir de uma situação não ótima. E quando esse ótimo não pode ser atingido pelas ações de mercado, preconiza-se a intervenção do Estado, ou seja, a implementação de políticas ambientais. Por oportuno, chame-se a atenção para o fato de que a intervenção estatal limita-se a corrigir a externalidade e Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 261 não a eliminar fisicamente a degradação ambiental, atingindo-se um ótimo de Pareto, diminuindo-se a externalidade relativamente à situação inicial. A Agenda 21 - o acordo básico elaborado durante as deliberações da Eco-92, no Rio de Janeiro, em junho de 1992 - está permeada de referências quanto à necessidade da internalização dos custos ambientais nos preços das commodities, da terra e dos recursos de propriedade comum. Se a internalização for desejável, as externalidades devem estar presentes: os economistas ecológicos definem estes como efeitos indiretos de ações individuais sobre o bem-estar comum. Como estratégia de ação, os economistas ecológicos devem aparelhar-se para participar com elementos-chaves não só na elaboração de políticas de desenvolvimento sustentáveis, como também, utilizando modelos, tentar minimizar os danos da poluição, quantificando-os, permitindo assim a elaboração de políticas de controle do meio ambiente. 1. ECONOMIA E ECOLOGIA: UMA VISÃO PANORÂMICA DE SUA EVOLUÇÃO A idéia de desenvolvimento - e dificilmente se fala em desenvolvimento sem que se queira fazer alusão ao desenvolvimento econômico - tem sido um consenso entre as nações e se constituído em objetivo intensamente perseguido pelos povos a partir de uns quarenta anos para cá, principalmente após o final da Segunda Grande Guerra. O avanço tecnológico, exigência decorrente das necessidades do esforço bélico, não ficou restrito a esse campo, ao mero campo da produção física, mas invadiu a área das ciências sociais, inclusive a economia. Estudos requintados visando a acelerar o processo de crescimento das diversas economias nacionais tornaram-se célebres, dando tratamento científico a esse setor. Não que economistas clássicos como Ricardo, Malthus, Stuart Mill e também, de certa maneira, Marx, tenham negligenciado o problema macroeconômico do crescimento, ou o não tenham tratado cientificamente. Entretanto, suas atenções se defrontavam com uma barreira intransponível, materializada numa angustiosa interrogação sobre resultados concretos de seus trabalhos, em face daquilo que se constituía para eles numa insolúvel limitação física: o suprimento inelástico, isto é, fixo, de um fator básico de produção, genericamente chamado de natureza, mas que na realidade se 262 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 resumia a terra. Possivelmente por isso tenhamos ficado devendo a esses economistas a Lei dos Rendimentos decrescentes.4 Exemplo característico dessa lei seria o caso do aumento de produtividade de uma terra cultivada pela utilização de adubo. Muito compensadores os primeiros resultados, eles, no entanto, vão se tornando menos gratificantes com o seu uso seqüenciado. De fato, à medida que o processo de adubar é repetido, a melhoria da produtividade, embora aumente, o faz a uma taxa decrescente, até tornaremse os resultados negativos, em face de haver uma queda progressiva da produção causada pelo efeito nocivo da excessiva concentração do adubo. Em conseqüência dessa barreira, os clássicos, durante mais de um século, tiraram do objeto de seus estudos problemas macroeconômicos, em especial os ligados ao processo do desenvolvimento. Surgiu um novo fato, porém: a mudança qualitativa ocasionada pelo aprimoramento da tecnologia nos três clássicos fatores de produção: a natureza (terra), capital e trabalho.5 Realmente a tecnologia fez elevar-se a níveis imprevisíveis a produtividade dos demais fatores, permitindo a produção em série no setor industrial, o que se deve, sobretudo às economias de escala, ou seja, redução de custos com o aumento do volume produzido. Esse fenômeno se fez notar também no setor agrário, onde a tecnologia permitiu o aumento do valor do produto por unidade de área, liberando assim fatores de produção para os setores industrial e de serviços. Por esse motivo, os novos modelos de desenvolvimento passaram a focalizar de modo quase exclusivo o capital e o trabalho, relegando a plano secundário a natureza, fator tão presente e tão marcante para os clássicos. Analisando-se, contudo, esse processo de desenvolvimento, observa-se que ele se produz, como em todo o decorrer da história, de uma maneira semelhante: é um processo excepcional que se concretiza, de imediato, em um número circunscrito de países, e até mesmo em apenas algumas regiões desses mesmos países.6 Ele não se realiza globalmente, nem há qualquer automatismo que o impulsione, exceto a conjugação aleatória favorável de fatores que possibilitem a sua demarrage. Isso pode ser constatado pelo quadro alarmante do mundo de hoje, caracterizado pelo hiato imoral existente entre as nações desenvolvidas e as ditas, eufemisticamente, em desenvolvimento.7 Têm sido criados organismos internacionais visando à eliminação (utópica) desse hiato, ou pelo menos à sua diminuição, entre os quais podem ser citados Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 263 a ONU, UNESCO e outros. Já em 1943, na conferência de Hot Springs, foi recomendado que as nações ricas assumissem como uma de suas possibilidades a extensão dos benefícios do desenvolvimento a todas os povos. Antes mesmo de implementar essa idéia, surge a dificuldade de como conceituar o progresso. Conceitos macroeconômicos, como PNB - Produto Nacional Bruto8 , deixam de ter valor prático em relação a todos os elementos dessa mesma comunidade, por tratarem-se de índices quantitativos e não qualitativos. Deve ser assinalado que um verdadeiro desenvolvimento não se pode restringir ao aspecto quantitativo; deve ele ser também qualitativo e para que isso se verifique é necessária uma série de modificações estruturais, tais como, as referentes às taxas de formação de capital, a distribuição de renda, ao nível tecnológico, à composição dos investimentos e, até mesmo, a uma distribuição funcional e geográfica da população. Apesar da consciência de que condições qualitativas devam existir para que o processo de desenvolvimento em si possa propiciar a elevação do nível de bem-estar social, economistas há em grande quantidade que julgam seja essa elevação tão somente um simples corolário da concretização quantitativa de um índice do PNB, ou outro agregado qualquer, desejável ou colocado como meta a atingir. Passado, porém, meio século de ingentes esforços voltados a esse objetivo - obtenção de um determinado índice quantitativo de crescimento econômico - nota-se um certo arrefecimento do entusiasmo inicial e a humanidade já percebe que a qualidade de vida nem sempre é uma resultante do desenvolvimento econômico. Mais ainda: percebe que em muitos casos ela pode ser prejudicada pelo mesmo. Em outras palavras, a humanidade conscientiza-se de que ao desenvolvimento estão associados custos inicialmente insuspeitos e subestimados, conseqüência da explosão industrial, e que não foram devidamente considerados quando planejados. A concentração urbana, seqüela da industrialização, veio a ser um fator agravante do problema, escancarando a visão do descompasso existente entre o progresso econômico e a evolução cultural. Como acentua Marschal9 , a sociedade é composta por diversas estruturas, tais como as psicológicas, as culturais, as sociais, as econômicas, as institucionais, as quais num processo de desenvolvimento evoluem em ritmos diferentes, em virtude de seus diversos graus de disparidade. Ao mesmo tempo, problemas resultantes de uma sociedade pós-industrial, representados pela dissolução dos costumes, pelos conflitos entre os grupos, pela criminalidade, pelo congestionamento e decadência da cidade e pela 264 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 deterioração ambiental, influenciaram os povos já amadurecidos economicamente, diminuindo-lhes o ímpeto e a motivação para impulsionar o desenvolvimento de outros povos. Em vão Conferências das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento - UNCTAD - apoiadas em trabalhos de especialistas, como o Relatório Pearson, defendem a aplicação de 1% de seus Produtos Nacionais em favor de povos subdesenvolvidos. Compromissos são assumidos em princípio, mas quase nunca se concretizam, ou são traduzidos em percentuais muito menores.10 Quaisquer que sejam as críticas que se façam a esses problemas, elas têm aumentado de intensidade e ressonância a partir dos chamados problemas ambientais, que estão provocando uma crescente interferência do sistema econômico no sistema ecológico. De fato, os setores onde mais se faz notar a interferência entre ecologia e economia são exatamente aqueles em que as condições do meio ambiente se degradam em virtude do mau uso que dele fazem as atividades do setor econômico. Tudo o que constitui o habitat natural do homem, e os meios nele existentes para o bem-estar do ser humano - água, ar, recursos naturais, paisagem - ou seja, recursos ou bens de uso comum, apresentam uma queda no padrão de serviço que propiciam à sociedade e tendem a ficar cada vez mais deteriorados, devendo atingir níveis insuportáveis, a menos que economistas e ecologistas se dêem as mãos para que se adotem providências necessárias e urgentes. Há ainda outro aspecto a ser considerado: os níveis de poluição atingindo patamares insuportáveis e a tendência de se esgotarem as fontes geradoras de energia. Assim as palavras natureza e limite, objeto de tanta atenção de Meadows11 têm recuperado o prestígio perdido na temática da economia moderna. De qualquer modo, é inquestionável a existência de uma tendência moderna no sentido de considerar o desenvolvimento não apenas como um crescimento quantitativo do produto e não entendê-lo mais como um simples objetivo intermediário, visando tão somente a um aprimoramento da qualidade de vida do homem. Ele agora tem sido visto em todas as suas dimensões, inclusive no que diz respeito à conservação das amenidades proporcionadas por esse conjunto de elementos que recebe o nome de meio ambiente. Com certeza, um aspecto positivo do problema ecológico com que a humanidade se depara é contribuir para que seja revisto e aperfeiçoado o modo de conceber e operar o sistema econômico, levando em consideração outros fatores que não, apenas, o aumento e diversificação do produto. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 265 2. ECOLOGIA E ECONOMIA: COMO ENCARAR O SISTEMA ECONÔMICO - UMA NOVA VISÃO A menos que haja interferências exógenas, os seres vivos nutrem-se de elementos produzidos ou sintetizados por outros seres, segundo uma cadeia de sistemas que podem atuar indefinidamente e se perpetuar. Caso típico é o das algas num meio aquoso. Como se sabe, alguns animais aquáticos alimentam-se de parte das massas das algas e ao mesmo tempo absorvem oxigênio da água; nela lançam dióxido de carbono e dejetos que servem de alimento às algas, as quais, por seu turno, expelem oxigênio que novamente irá enriquecer a água. Assim, o ciclo é fechado. Semelhante espécie de intercâmbio ocorre com o ser humano em relação ao seu meio ambiente, composto por uma série de elementos naturais (água, ar, terras, vegetais etc), que compõem a biosfera. Dele retira o homem oxigênio, alimentos, matérias primas, água, além de energia. Todos esses elementos são transformados pelo ser humano que, após deles servir-se, devolve-os ao mesmo meio ambiente sob formas diversas de sucata, produtos inservíveis de tipos diversos. Já no processo de produção ou, mesmo durante o seu uso, parte desses elementos são devolvidos ao meio ambiente sob a forma de resíduos do processo de fabricação ou de consumo, tais como gases diversos, ácidos e outras substâncias líquidas lançadas por efluentes industriais, partículas em suspensão, fuligem ou calor resultante da transformação de energia. Como assinala Nusdeo12 ...bem analisado, o sistema econômico atua como um mero intermediário entre o meio ambiente e ... o meio ambiente. De fato, essa afirmação, por paradoxal que seja, corresponde à realidade, pois a atividade econômica do ser humano consiste essencialmente em retirar da biosfera elementos que mais cedo ou mais tarde a ela retornarão sob modalidades diversas. Disso, duas conseqüências resultam. A primeira delas implica a maneira de considerar o meio econômico, visto tradicionalmente como um subsistema de uma cadeia de reações ecológicas. O mecanismo geral de seu funcionamento foi bem retratado por Leontief através de sua matriz inputoutput. Aqui é interessante assinalar que já na Idade Moderna (1758), François Quesnay, na França, publicava seu Tableau Économique, uma idéia inicial de insumo-produto, esquema onde descrevia o fluxo da produção e dos gastos efetuados entre produtores, manufatureiros e donos de terra. 266 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Embora muito distante da concepção de Leontief, esse trabalho de Quesnay não deixa de ter sua relevância, pois o estudioso francês imaginava construir um sistema que pudesse trabalhar com o mundo em sua forma real. O Tableau Économique, na realidade, foi a primeira tentativa para demonstrar a natureza e consecução de equilíbrio, sob uma óptica macroeconômica. O modelo de Leontief consiste num sistema de equações simultâneas, retratando uma economia. Embora Léon Walras,13 economista francês do século XIX, tenha sido o pioneiro da formulação matemática voltada a um sistema econômico, o trabalho de Leontief permitiu solução mais rápida dos problemas nesse campo de estudos, através de simplificação de equações o que tornou mais reduzido e assimilável o sistema de Walras. A concepção de Leontief do esquema insumo-produto materializa-se na consideração do fato de que cada produto (produzido por fábrica ou por qualquer setor de produção) pode ser visto como insumo, na medida em que seja aproveitado por outro sistema em cadeia (indústria ou setor agregado). Para Leontief, portanto, todas as saídas são igualmente entradas, todos os outputs são igualmente inputs. Por intermédio desse raciocínio, a montagem de grandes e variadas somas de saídas e de entradas dos setores da economia fornece um perfil materialmente consistente, empiricamente passível de instrumentalização da economia. Essa concepção, entretanto, representa apenas uma parte das relações geradas por esse funcionamento, relações essas, porém, que extravasam os estritos limites do sistema econômico. O próprio Leontief14 apresentou uma nova versão do seu modelo no qual introduz novos setores: geração de poluição e de eliminação de poluentes, completando assim o seu antigo modelo de estrutura econômica. Daly (1968) apresenta essa matriz que, embora muito simplificada, dá uma idéia global da matriz de Leontief.15 Quadro 1 Para Setor Humano Setor Não Humano Setor Humano (1) (2) Setor Não Humano (3) (4) De Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 267 Nesta matriz resumida, a casa (1) corresponde às relações decorrentes da operação do sistema econômico. Não levam em conta a origem e o destino final de todos os bens por ele transformados. Essa casa poderia ser desdobrada setorialmente, surgindo, assim, uma matriz convencional insumoproduto. A casa (4), diz respeito às relações do domínio ecológico, ou seja, àquelas relações de interdependência entre sistemas biológicos, não afetadas pelas atividades humanas, das quais não tomam conhecimento. As casas (2) e (3) retratam as inter-relações entre a atividade humana e a natureza, representada pelos vários elementos componentes do meio ambiente. Essa interferência do sistema econômico no sistema ecológico poderia prosseguir indefinidamente, desde que um deles não se agigantasse em relação ao outro. Em outras palavras, o processo de interferência poderia prosseguir sem maiores percalços até o limite em que o ambiente natural pudesse absorver e reciclar os detritos a ele lançados, transformando-os, pelo menos parcialmente, em novos fatores de produção para a sociedade humana. Isso acontece, por exemplo, numa floresta onde as próprias folhas, misturando-se com adubo orgânico, refazem o seu húmus, habilitando-o a um novo círculo produtivo. Ora, no que se refere aos materiais, o seu tratamento é sempre possível; a energia, porém é irreciclável e sujeita a perdas que, por meio do calor, atacam por sua vez o meio ambiente, alterando-lhe as condições. É o processo entrópico, decorrente da segunda lei da Termodinâmica, incontornável até agora. Prende-se esse aspecto à necessidade que tem o homem de utilizar as fontes de energia existentes na natureza para atender às suas necessidades; no caso específico do desgaste desses recursos. Hoje a energia, em suas diversas formas, é indispensável à produção de bens e serviços essenciais à vida humana: calor, força motriz, eletricidade. A energia, obtida pela transformação de gasolina, óleo diesel, óleo combustível, carvão vegetal, gás, coque (ditas formas de energia secundárias) são necessárias ao homem para o uso de equipamentos de consumo (turbinas, motores, fogões). Essas formas de energia secundária são obtidas a partir de fontes de energia primária existentes na natureza: petróleo, gás natural, carvão vegetal; ou em centros de transformação (usinas hidrelétricas, refinarias de petróleo, coquerias). Existem, também, fontes de energia primária utilizadas diretamente pelo consumidor (caso de lenha usada para cocção de alimentos). O primeiro passo, pois, para atender as necessidades de energia do 268 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 ser humano é a busca ou prospecção de fontes energéticas disponíveis na natureza. Essa energia, porém, para poder ser utilizada segue toda uma cadeia de transformação. Ao longo de toda essa cadeia de transformações, a energia em suas diversas formas, é distribuída e armazenada para atender as necessidades humanas. Os processos de produção, transformação, transporte, distribuição, armazenagem, e utilização final da energia envolvem uma série de perdas que reduzem a quantidade de energia efetivamente útil à sociedade a apenas uma fração do total de energia primária captada na natureza. Esse percentual de perdas, que é muito elevado, tem duas causas principais: (a) em muitos países, desperdiça-se grande quantidade de energia primária (no Brasil esse percentual chega a 44%) em decorrência de planejamento ou funcionamento ineficiente do equipamento usado para converter a energia nos serviços necessários à atividade humana;16 (b) por outro lado, é inevitável um certo nível de perdas ao longo da cadeia energética por força das próprias leis da Física, em particular o Segundo Princípio da Termodinâmica, que pode ser assim enunciado: A energia térmica existe apenas em função da diferença de temperatura e, na transformação de calor em trabalho, o sentido é sempre do estado térmico mais alto para o mais baixo e sempre com rendimento menor que 100%. Esta degradação do estado energético ocorre com probabilidade máxima de passar, no tempo, da ordem para a desordem, de uma maior capacidade de realizar trabalho para uma menor capacidade; esta é a direção dos eventos: a entropia amanhã será maior. (SEVÁ, A. O. O Risco Tecnológico e a Natureza Alterada, Campinas, 1989).17 A origem dos impactos ambientais da produção e uso de energias na interpretação das atividades humanas pode ser compreendida a partir da aplicação do conceito de entropia. O homem tem que pagar um preço pela melhor qualidade da energia utilizada (mais nobre, mais concentrada, de manuseio e transporte mais cômodo, como, por exemplo, na transformação de lenha para o carvão vegetal). A luta contra a desordem., implica a dissipação de uma determinada quantidade de energia, que se perde fora das fronteiras do sistema. As atividades econômicas buscam a estruturação da matéria, de modo a possibilitar sua utilização pelo homem; para isso, é preciso incorporar um Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 269 aporte de energia externa. Esse aporte não é gratuito: uma perda sob a forma de energia degradada é rejeitada para o ambiente externo. De fato, pelo Primeiro Princípio da Termodinâmica, sabe-se que a energia total é invariável: pode mudar de forma, mas sua quantidade se conserva. Com a reformulação einsteiniana, que concebe a massa enquanto energia de forma concentrada, admitindo a possibilidade de transformação E = mc2, o primeiro princípio pode se associar à conservação total da massa e da energia (Sevá, op. cit.). Deste modo, a incorporação pelo homem de energia fóssil à produção de bens e serviços será, necessariamente, (como observa Odum, 1983) acompanhada da emissão de resíduos (matéria/energia) sobre o meio externo, causando uma série de impactos ambientais. Por este motivo, essa nova visão do sistema econômico implica inseri-lo numa cadeia de reações e de processos, originada no sistema ecológico, ou seja, há um círculo fechado ecologia-economia-ecologia. Não pode, portanto, o sistema econômico continuar a ser visto como um sistema aberto, como era tradicionalmente considerado.18 A segunda conseqüência, de natureza conceitual igualmente importante, decorre da primeira: a superação da tradicional distinção, tão a gosto dos economistas, entre produção e consumo. Em vista das considerações acima, torna-se muito mais apropriado falar simplesmente em transformação do que em inter-relações entre os sistemas econômico e ecológico, de vez que, bem analisado o ato de consumir, na realidade não consome os bens nele envolvidos: eles tão somente prestam ao homem benefícios e, ao fazê-lo, vão passando por transformações até chegarem à obsolescência, sem de todo se destruírem, porém. Ou sejam, são descartados pelo homem, mas não fisicamente eliminados. Não estamos com isso querendo afirmar que eles não possam ser reciclados, não possam ser reintroduzidos no sistema econômico, mediante o reaproveitamento, como no caso da sucata utilizada em vários processos industriais. O que desejamos realçar é que a atual civilização industrial tem partido do pressuposto de ser o sistema totalmente aberto, de modo que a simples disposição ou reciclagem dos bens obsoletos tem sido deixada aos elementos do meio ambiente. A velha lei de Lavoisier - nada se cria, nada se perde, tudo se transforma - tem sido revogada no sistema econômico, se não de todo, pelo menos no que diz respeito à ecologia. Um exemplo muito comum: matérias primas diversas são utilizadas numa 270 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 fábrica para a produção de um ou mais produtos; essas matérias primas são transformadas em bens e em resíduos. A água que também foi utilizada na produção, ao sair da fábrica, transporta através de seu efluente esses resíduos em diversos estados de transformação. O próprio bem produzido será, posteriormente, também descartado ao chegar à obsolescência. A energia utilizada no processo de fabricação transforma-se parcialmente em calor que aquecerá a atmosfera ou a própria água do efluente. Isso causará novas alterações de caráter meteorológico ou, então, em nível da flora e da fauna. A constatação desse fato permite afiançar que a terra não pode mais ser encarada como um sistema aberto, ou pelo menos, como um sistema totalmente aberto, como vinha sendo considerada. Isso impede que se continue a não considerar a origem, as transformações e o destino dos materiais e da energia utilizados pelo homem em sua atividade econômica, seja ela de consumo ou de produção. A partir dessa constatação, uma drástica mudança deve ocorrer na visão que o homem tem de si próprio e do universo que o rodeia, pois sua maneira de agir exerce profunda influência sobre o conjunto de elementos em que ele se insere. Em se tratando da utilização de elementos da natureza, mister se faz que o homem adquira uma consciência ecológica, pois que isso implica não só as condições de sua existência, mas também a possibilidade mesma de continuar existindo. Daí resulta serem as preocupações ecológicas não somente de ordem estética ou de cunho político-filosófico; não se restringirem tão somente a alguns aspectos da vida humana, mas fazerem parte do sistema no seu todo, ou usando uma expressão de Boulding, o sistema poderia ser chamado e ecosfera.19 Em face dessa concepção, o sistema econômico abarca não só os fluxos de bens transformados pelas atividades de produção e de consumo, mas ainda os fluxos extra-econômicos gerados por essas atividades e, mais, os estoques da biosfera no que diz respeito aos materiais exauríveis, ou seja, não renováveis, que ela guarda. A interseção dos planos econômico e ecológico é fato incontestável; é inquestionável o fato de que tendem a ampliar-se a explosão demográfica e o desenvolvimento econômico ¾ setores mais críticos dessa interseção; só o que não se pode ainda cientificamente comprovar, embora seja bastante provável, é que essa situação atualmente existente leve a um fechamento de todo o sistema. De modo semelhante ao que ocorreu nos primeiros tempos da economia Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 271 clássica, duas escolas antagônicas parecem ter-se definido entre os economistas. Uma, a dos pessimistas que defendem a idéia de sustar imediatamente o processo atual para evitar o fechamento total do sistema, isto é, a destruição do meio ambiente e, por via de conseqüência, do homem que dele necessita para subsistir ¾ para defender tal posição, baseiam-se no que sustentam muitos ecologistas, segundo os quais o processo já foi longe demais. Certamente, os mais fortes argumentos existentes para essa corrente podem ser encontrados no livro The limits to grow, que retrata o estudo encomendado pelo Clube de Roma e realizado por uma equipe do MIT, Massachusetts Institute of Technology, sobre o futuro desenvolvimento da humanidade. Uma outra corrente é formada principalmente por economistas do mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento, segundo os quais o desenvolvimento é essencial à própria sobrevivência e afirmação nacional dos países do terceiro mundo. A estes, aliam-se, paradoxalmente (sob o ponto de vista ecológico), as populações dos países desenvolvidos, que não só não querem abrir mão dos benefícios de conforto e lazer de que já usufruem, como desejam aumentá-los. O problema, contudo, não pode ser resolvido, sequer equacionado, se for restringido a uma opção booleana do sim ou não numa escolha eventual entre as duas correntes; o problema não pode ser tratado emocionalmente. Ele deve ser analisado numa filosofia que dê ênfase ao fato de que o desenvolvimento econômico não pode ser visto apenas quantitativamente, mas que seja também e sobretudo um desenvolvimento qualitativo, realçando fatores outros que caracterizem a qualidade de vida. Mas, principalmente, que seja adotada uma solução viável, viável aí tomada no sentido até extremo, ou seja, que permita a sobrevivência, segundo alguns já seriamente ameaçada, do ser humano no planeta Terra. A solução, porém, do problema ecológico não se situa somente no aspecto econômico. Ela reside também nos aspectos institucionais e políticos. Ou mesmo que se queira situá-lo apenas no aspecto econômico, a adoção de medidas neste campo - a taxação, por exemplo, um dos meios que poderia ser tentado para minimizar a poluição - implica aspectos político-institucionais, inclusive de âmbito mundial. De fato, discussões internacionais sobre a proteção do meio ambiente não se podem reduzir simplesmente, como aconteceu na Reunião das Nações 272 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Unidas realizada no Rio de Janeiro de 1992, a diagnósticos e recomendações. É urgente e imprescindível que se constitua um sistema internacional de caráter impositivo, estabelecendo órgãos, normas, metas físicas e procedimentos para a promulgação, supervisão e emprego da sanção de tais normas. Mas é sobretudo imprescindível que as metas sejam cumpridas e para tanto é necessário que as nações ricas cooperem não somente no controle de sua própria poluição, como também no fornecimento de recursos que permitam ao terceiro mundo um desenvolvimento sustentável. Esta nossa afirmativa se baseia no fato constatável de que a solução para a existência de um sistema internacional eficaz e eqüitativo de proteção ao meio ambiente consiste no reconhecimento, por parte das nações desenvolvidas, de que lhes cabe uma dupla responsabilidade.20 De um lado são as nações desenvolvidas originadoras de cerca de 80% da poluição mundial, além de terem sido, no passado, as devastadoras das florestas temperadas, devastação essa com que financiaram grande parte de seu próprio desenvolvimento de fins do século XVIII até os dias atuais. Por outro lado, há um fato concreto: elas são a única fonte real de financiamento da proteção do meio ambiente, pelo menos nos próximos decênios. As nações subdesenvolvidas, entretanto, não se podem furtar a desempenhar o papel que lhes cabe: pôr em prática programas de restrição do crescimento demográfico, de vez que tais países respondem por aproximadamente 80% da população total do mundo e por mais de 300% de seu futuro incremento. Além do mais, cabe-lhes a adoção, dentro de seus territórios, de um regime eficaz e eqüitativo de proteção da ecologia, de que depende o seu futuro e o de toda a humanidade. Assim, o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido encontram-se, em função da própria necessidade de sua sobrevivência, solidária e inextrincavelmente comprometidos com a salvação ecológica do planeta. Ainda no âmbito institucional pode ser afirmado que medidas técnicas de controle da poluição - que seriam, também, de prevenção no que tange à exaustão progressiva das fontes de combustíveis e à crescente contaminação da atmosfera - medidas técnicas de controle da poluição, repetimos, poderiam ser tomadas, desde que houvesse instituições que permitissem a produtores e consumidores incluir nos cálculos, em que baseiam suas decisões, dados relativos ao esgotamento de fontes de recursos não renováveis e aos prejuízos causados pela poluição. Apenas como exemplo: o desenvolvimento de automóveis a baterias, já Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 273 tecnicamente possível de ser produzido, mas economicamente inviável. Isso comprova que, no fundo, o problema ecológico decorre basicamente do funcionamento do sistema econômico, aqui compreendido como a existência de instituições que regulem a atividade econômica de uma sociedade. De fato, em virtude da inadequada operação dos sistemas econômicos, surgem divergências entre a utilização de determinados recursos e do custo de oportunidade dos mesmo. Como, porém, viabilizar essa operação? O problema é por demais complexo e não se trata apenas da tomada de uma única decisão como, por exemplo, fechar uma grande fábrica. É preciso criar mecanismos que a cada momento permitam a tomada de decisões convenientes e apropriadas a situações concretas que surjam e que as implementem. Desnecessário acentuar que as condições da vida real não reproduzem os requisitos mínimos para assegurar a obtenção ou a manutenção de um ponto de ótimo21 para o conjunto da economia. As imperfeições do mercado são onipresentes. Apesar disso, contudo, elas são passíveis de serem, se não eliminadas, pelo menos atenuadas pela determinação de padrões de desempenho, que envolvam objetivos de política econômica. Imperfeições do mercado têm, com a própria evolução do sistema econômico, recebido tratamento institucional adequado, como a lei antitruste. Uma das exigências, porém, para um razoável funcionamento do mercado é a inexistência de efeitos colaterais ou externos à atividade dos agentes econômicos. Isso tem merecido pouca atenção, quer por parte de analistas e teóricos da ciência econômica, quer por parte dos responsáveis pelas instituições. Apesar de Pigou, já em 1920, em sua obra prima22 , ter tratado desse aspecto, somente a partir da década de 60 é que aumentou o interesse por esse tema. 3. INTERNALIZAÇÃO DE EXTERNALIDADES23 Segundo conceitua Mishan, efeitos externos são aqueles transmitidos diretamente a outras pessoas, e não indiretamente, através de preços.24 Trata-se, em resumo, de uma vinculação entre agentes econômicos, que não se estabelece nem se realiza via mercado, que dele não se serve e nem nele se esgota. Em outras palavras, os efeitos externos ou externalidades representam benefícios ou custos que se transferem de umas unidades do sistema econômico para outras, extramercado, ou seja, o mercado não tem 274 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 condições de captá-los para equacionar o seu processo de troca e de circulação. Daí o nome de custo social dado também ao efeito externo negativo ou deseconomia externa. Esse custo não é incorporado à unidade que o gerou, mas absorvido, de que modo for, por outras unidades que o suportam. Deixa, pois, de ser privado para recair indiretamente sobre terceiros, identificáveis ou não. Isso não implica, porém, que deixe de existir como custo, embora não se exteriorize pecuniariamente, mas somente através de perdas, incômodos ou por outras conseqüências negativas experimentadas pela coletividade como um todo, ou por meio de suas parcelas. Entre os exemplos comuns de externalidades, estão aqueles efeitos adversos sobre a flora, a fauna, a precipitação pluvial e o solo, causados pelo desmatamento de uma floresta; ou os efeitos sobre a população causados por mosquitos, devidos à criação de lagos artificiais; o congestionamento causado ao trânsito pela entrada pela circulação de veículos adicionais; o ruído e a poluição causados pela indústria e seus produtos; também o são quaisquer repercussões ecológicas que venham afetar o bem-estar das pessoas. Mishan inclui entre esses efeitos, por exemplo, o prazer resultante da construção de um belo edifício e o desprazer causado pela construção de um edifício antiestético. Há características comuns a todos eles. Uma delas é a natureza incidental ou não intencional de seus efeitos. Em outras palavras, não se deve atribuir ao produtor uma intenção deliberada de produzir um efeito externo, pois na realidade ele é um subproduto de sua atividade econômica. Os proprietários de uma fábrica, por exemplo, têm em vista produzir bens que sejam vendidos no mercado e lhes dê lucro e não em produzir fumaça. Outra característica consiste em não estar o efeito externo, seja ele bom ou mal, sob controle da pessoa que o sofre. Considerando-se que os efeitos ambientais nocivos são, hoje em dia, os que mais causam danos, inadvertidamente, a outras pessoas, devem eles ser objeto de atenção especial.25 A idéia básica de internalização consiste em transformar o efeito externo, ou subproduto incidental, num produto conjunto. Isso pode ser mostrado através de um exemplo, não interessa, aqui, se fictício ou não. Seja suposta a existência de duas fábricas, adjacentes. A primeira produz sapatos, utilizando uma antiga caldeira motriz que emite muita fumaça, prejudicando a segunda que produz chocolate. Por um motivo qualquer de ordem econômica , política ou social, as duas fábricas fundem-se numa terceira empresa. Disso resulta Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 275 que as duas fábricas tornam-se uma propriedade comum e o custo da fumaça, calculado em termos do dano causado à fábrica de chocolate deixa de ser uma externalidade gerada por ela e sofrida pela fábrica que produz chocolate, tornando-se inequivocamente um custo a ser suportado pela nova empresa. Assim, a nova empresa irá procurar meios de reduzir seus custos. Para tanto há duas opções: ou instalam-se filtros antipoluição na fábrica que produz sapatos (se o prejuízo causado à produção de chocolate variar proporcionalmente à produção de calçados); ou a produção de calçados será reduzida até o ponto em que o valor do dano marginal à produção de chocolate, somado ao custo marginal da produção de sapatos, iguale o preço de mercado dos sapatos. Assim, a fumaça deixa de ser um efeito externo para se tornar um item com custo definido que é internalizado no sistema de custos da fusão das duas. Atualmente, porém, reduzido é o número de efeitos externos passíveis de internalização no mecanismo de preços ou no sistema de custos das firmas. Citem-se, entre outros, muitos dos subprodutos da indústria moderna e os bens que produzem. Entre eles, o ruído e várias formas de poluição resultantes da disseminação de detritos radioativos, de esgotos e de lixo, bem como o descomunal crescimento de doenças nervosas, cardíacas e gástricas causadas pela tensão nervosa - certamente os mais comuns subprodutos do continuado e crescente desenvolvimento tecnológico, pressionado por uma mentalidade consumista incontrolável. Não concordamos integralmente com Mishan (op. cit., p. 129), quando afirma ...temos de nos conformar com a perspectiva de nunca podermos internalizar na economia essas importantes externalidades ambientais ou seja, nunca poderemos criar um mercado para elas, sendo este, é claro um dos motivos pelos quais são necessários métodos de custosbenefícios para avaliá-las. Obviamente, os métodos de análise de custos-benefícios sempre serão necessários; acreditamos, porém, que se possa internalizar externalidades, se não de maneira precisa, pelo menos de forma suficientemente aproximada para, em caso de malefícios ao bem-estar social, minimizar ou, quando nada, minorar-lhes os efeitos. 3.1 A NATUREZA ECONÔMICA DA POLUIÇÃO O direito que o industrial se arroga de poder poluir e o direito inequívoco 276 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 dos demais membros da sociedade de não sofrer os efeitos da poluição caracterizam um fenômeno duplamente social. Assim sendo, a eficiência econômica e o bem-estar coletivo devem ser tomados em consideração sempre que se deva fazer uma análise de custos-benefícios. Em outras palavras, usase o critério custo-eficácia, quando se quer maximizar um resultado em função das disponibilidades financeiras e, ao mesmo tempo, deve ser levado em consideração o custo da poluição visando a atingir o ótimo social A avaliação monetária do meio ambiente constitui um instrumento de política ambiental que, se bem aplicada, poderá tornar-se um meio de maximização do bem-estar coletivo. Esse procedimento não implica uma avaliação monetária isenta de falhas, nem a obtenção de um ótimo social absoluto, pois as deficiências de mercado existem, quando os custos dos bens e serviços disponíveis não refletem o ônus social total. Ele é no entanto, um instrumental de que se pode e deve lançar mão para minimizar os efeitos negativos da poluição sem impedir o crescimento econômico - o que, de resto, é indesejável e até impossível a menos de conseqüências danosas e imprevisíveis. 3.2 - A POLUIÇÃO COMO EXTERNALIDADE A teoria econômica faz uma distinção básica entre os bens: os bens livres, ou seja, aqueles que são tão abundantes que não possuem qualquer valor econômico; ou os bens econômicos, que constituem a grande maioria dos bens de que se serve a humanidade e, como tais, dotados de valor. Por existirem em quantidade restrita, não podem atender a todas as necessidades da comunidade em quantidade indefinida, motivo pelo qual têm preço. O seu emprego, pois, deve ser feito de forma racional e a sua reposição deve ser objeto de estímulo. Antigamente, quando a população da terra era relativamente reduzida e sua distribuição se fazia em territórios amplos, árvores, frutos, peixes, animais diversos, até mesmo terras de pastagens (cite-se, por exemplo, entre os anglo-saxões a existência de pastagens coletivas ou comuns - daí chamadas de commons, aonde qualquer pastor podia levar o seu rebanho), a lista dos bens considerados livres era muito mais extensa do que nos dias atuais. E entre esses bens, obviamente, não se pode deixar de incluir o ar e a água. Há que considerar ainda aqueles bens pseudolivres, isto é, aqueles bens que embora oferecidos como livres, deixarem de ser suscetíveis de utilização, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 277 em face de sua deterioração devida ao seu uso excessivo e indiscriminado. O tratamento da natureza física dos fenômenos ligados à degradação ambiental permite concluir que eles representam tão somente um processo de congestionamento (semelhante ao congestionamento de uma via de trânsito, por exemplo) do ar, da água, da paisagem, das ondas sonoras, em resumo, de todos aqueles bens componentes do meio ambiente.26 A exaustão de recursos não renováveis - vegetação, espécies animais, jazidas minerais - embora pela sua natureza não possa ser inserida dentro do aspecto congestionamento, prende-se quanto à sua origem à mesma causa: a incapacidade do mercado de sinalizar de maneira adequada o seu grau de escassez e de revelar a possibilidade de reposição ou o custo de substituição. CONCLUSÃO Como se pode depreender, em síntese, o problema que se analisa decorre, basicamente, de como as instituições podem regular o funcionamento do sistema econômico em uma sociedade. De fato, discrepâncias entre determinados recursos e o seu verdadeiro custo de oportunidade resultam da inadequada operação dos sistemas econômicos. Observe-se, ademais, que isso é comum, tanto aos sistemas centralizados de cunho coletivista, quanto aos regimes de mercado de cunho capitalista. A universalidade dos serviços prestados pelo meio ambiente que, de uma forma ou de outra se complementam ou se substituem entre si, é de fundamental importância para compreender-se o fenômeno da externalidade causada pela poluição. Uma fábrica de cimento instalada, por exemplo, próxima de uma região agrícola, fábrica essa que não disponha de estação de tratamento do ar quente despejado por seus pulverizadores no meio ambiente lança na atmosfera partículas de ar fino que, transportadas pelo vento, cobrem os campos da lavoura afetando negativamente a agricultura, na quantidade e qualidade de produção. Isso gera perdas para os agricultores, perdas essas que, não sendo recompensadas, criam um custo externo, ou externalidade. Além do mais, muitas vezes, o próprio tratamento preventivo da poluição gera outros efeitos negativos. Na mesma fábrica, se fossem colocados aparelhos para o tratamento de substâncias líquidas que fossem lançadas num riacho próximo, eles poderiam levar à emissão de outros resíduos gasosos na atmosfera, os quais, por sua vez, poderão contaminar mananciais de água 278 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 ou reservatórios a quilômetros de distância. O exemplo acima permite concluir que o custo associado a uma externalidade pode surgir quando uma atividade desenvolvida por um agente provoca a perda de bem-estar de outro, ou a perda desse bem-estar não é compensada. Como a poluição é uma externalidade, do ponto de vista econômico tornase quase impossível eliminá-la em sua totalidade, de vez que não se pode admitir uma atividade econômica zero, pois esse tipo de atividade gera externalidade positiva ou negativa. Mishan27 realça que, neste campo, interrelacionam-se conceitos econômicos de bens coletivos e de efeitos externos, o que implica dificuldades de caráter institucional não desprezíveis para o perfeito equacionamento dessas relações. Do ponto de vista econômico, o nível ótimo de externalidade (poluição) situa-se onde o benefício marginal privado iguala o custo marginal externo. A determinação desse nível, contrariando o Princípio de Coase28 , não segue o processo natural, respeitando a lei da oferta e da demanda, entre o poluidor e a sua vítima. Quando o poluidor tem o direito de poluir e a vítima, o direito de não ser poluída, a não poluição é a preferência da vítima. Pode-se, pois, concluir que a conservação do meio ambiente e, conseqüentemente, o desenvolvimento sustentável, são problemas que envolvem, necessariamente, a Ecologia e a Economia; não dispensando, para a sua solução, a ação governamental. *Doutor em Ciências, Livre Docente, Professor Titular da UFRJ. **Adjunto da Divisão Política da ESG - Mestre em Engenharia Civil. BIBLIOGRAFIA FAUCHEUX, Sylvie, NOËL, Jean François, Économie des Resources Naturelles, Paris, Armand Colin Éditeur, 1995. LEONTIEF, Wassily, Input-Output Economics, in Div. Revista, (Trad. Bras. A Economia do Insumo-Produto, Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1983. MARGULIS, Sergio (Edit), Meio Ambiente – Aspectos Técnicos e Econômicos, Rio de Janeiro, IPEA, 1990. MARGULIS, Sergio, (ed) Meio Ambiente ¾ Aspectos Técnicos e Econômicos, Rio de Janeiro, IPEA, 1990. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 279 MAY, Peter H. (Org.) Economia Ecológica – Aplicações no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1995. MEADOWS, Donella H., Dennis L. et al., The Limits to Grow, s. l., s. d., (Ed. Brasileira: Os Limites do Crescimento, São Paulo, Ed. Perspectivas. A., 1973). MISHAN, E. J., Elements of Cost-Benefits Analysis, George Allen & Unwin LTD., Londres (Trad. Bras. De Donaldson M. Garschagen, Ementos de Análise de Custos-Benefícios, Zahar Editora, Rio de Janeiro, 1975). NUSDEO, Fabio, Desenvolvimento e Ecologia,, Editora Saraiva S. A., Livreiros Editores, São Paulo 1975. PEARCE, David W., TURNER, R. Kerry, Economics of Natural Resources and Environment, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1990. PIGOU, A. C. An Introduction to Economics, MacMillan, New York, 1966 SCHUMACHER, E..F., Joseph A., Small is beautiful, Blond & Briggs, LTd., London (Trad. Bras. De Octávio Alvers Velho, O Negócio é ser pequeno, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977. SIEBERT, Horst, Ökomische Theorie der Umwelt, Tübingen,, Mohr, 1978. NOTAS 1 Constanza, R. What is ecological economics?, (in) Ecological Economics, 1, 1989, pp.1-8. 2 Ecologia é o ramo das ciências humanas que estuda a estrutura e o desenvolvimento das comunidades humanas em suas relações com o meio ambiente e sua conseqüente adaptação a ele, assim como novos aspectos que os processos tecnológicos ou os sistemas de organização social possam acarretar para as condições de vida do homem. (AURÉLIO, 1975, verbete ecologia [2]) 3 Economia: Ciência que trata dos fenômenos relativos à produção, distribuição, acumulação e consumo dos bens materiais. (Idem, verbete economia [3]) 4 Em um dado estado das artes, além de certo ponto, a capacidade produtiva da terra aumenta a uma taxa decrescente. Malthus inferiu deste princípio que a oferta de alimentos só pode ser aumentada a uma taxa aritmética (RIMA, 1972, p.152). A Lei dos Rendimentos Decrescentes é uma das mais importantes e incontestadas leis da produção. Note-se que, para observá-la, pelo menos um dos fatores de produção ou insumo tem de ser fixo e a tecnologia deve permanecer constante. 5 Schumacher, 1973, em seu livro Small is beautiful, considera a natureza e, conseqüentemente a terra, como capital natural. Vide, desse autor, Cap. 1, O Problema da Produção, pp. 1 ss. 280 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 6 No pós-guerra, principalmente, pode ser observada uma explosão industrial sem precedentes na Europa Ocidental e na América do Norte, acompanhada por um sensível crescimento da produção queda do padrão de vida. 7 O neoliberalismo de alguns - que os há, muitos - já subdivide os povos em desenvolvidos, subdesenvolvidos e excluídos, ou seja, ricos, pobres e miseráveis, estes sem direito sequer à vida. 8 Um agregado que quantifica em unidades monetárias o valor total de mercado de todos os bens finais e serviços produzidos em uma economia, colocados à disposição da comunidade durante o período convencional de um ano. 9 Marschal, A., Systèmes et Structures Économiques, Presses Universitaires de France, Paris, 1959, pp. 140/142 (citado por Nusdeo, 1975, p. 8) 10 Ainda recentemente, Elizabeth Dowdeswell, diretora do programa das Nações Unidas para o meio ambiente (PNUMA) declarou: A aprovação dos programas não adianta se os fundos prometidos não chegam...Os países membros reduziram suas contribuições ao mesmo tempo que exigem do PNUMA mais responsabilidades. (Jornal do Brasil, ONU está sem dinheiro para o meio ambiente, 1o Cad. P. 14, 28.01.97). 11 Meadows, L. et al., The Limits to Grow. 12 Nusdeo, 1975, p. 14 13 Léon Walras foi o pioneiro da formulação matemática voltada a um sistema econômico, quando quis mostrar a interdependência dos mercados. Isso já houvera sido tentado antes por Adam Smith e David Ricardo. 14 LEONTIEF, W., Environmental Repercussions and the Economic Structure An input-output Aproach, in Review of Economics and Statistics, August, 1970, pp. 262-271. 15 Apud Pruhomme, R. La confrontation de la analyse écologique et de la analyse économique, in Révue Economique du Sud-Ouest, no 1, 1973, p. 70. (cit. por Nusdeo, p. 14) 16 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum, Rio de Janeiro, FGV, 1988. 17 Citado por La Rovere, (in) Margulis, 1990. 18 Faucheux, 1995, pp. 39-51, aborda esse assunto com bastante profundidade. 19 BOULDING, Kenneth Ewart , The Economics of the Spaceship Earth, in Rnvironmental Quality in a Growing. Economy, Jarret, H., ed., 1969. Boulding foi um economista inglês que se radicou nos Estados Unidos. Estudou a influência de fatores psicológicos e sociológicos na vida econômica e propôs a integração da Economia a conceitos de equilíbrio ecológico e dinâmica Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 281 biológica. 20 21 Vide JAGUARIBE, Hélio, A Racionalidade Ecológica e seus Requisitos Institucionais, (in) Reflexão Cristã sobre o Meio Ambiente, 1992. Estamos nos referindo aqui ao Ótimo de Pareto. 22 PIGOU, A., The Economics and Welfare, McMillan, caps. IX e X, Londres, 1920. 23 Externalidades, efeitos externos, efeito colateral, economia ou deseconomia externa, efeito de vizinhança, spillover, externality, podem ser tomadas como sinônimos e, geralmente, são termos empregados indistintamente na literatura especializada. 24 25 26 MISHAN, E. J., p. 118, 1972. Aqui deve-se chamar a atenção para a existência de efeitos externos positivos ou negativos, ou seja, entre economias e deseconomias externas. Ao leitor que por isso se interessar, sugerimos a leitura de MISHAN, Cap. XV e de NUSDEO, Cap. IV, ambas op. já citadas. Ver ROTHENBERG, Jerome , 1970 27 Mishan, E., The relationship between Joint Products Collective Goods and External Effects, (in) Journal of Political Economy, May 1979, p. 514. 28 Coase, R., The Problem of Social Cost, (in) The Journal of Law and Economics, Oct, 1960, pp. 1-40. 282 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Armando Amorim Ferreira Vidigal* Antecedentes A Revolução Industrial, que teve início na Inglaterra no final do século XVIII, influenciou enormemente, como era de se esperar, a arte da guerra, especialmente a partir da Segunda metade do século XIX. O aparecimento de novas formas de produzir energia, além da máquina a vapor, como o motor de combustão interna e o gerador de eletricidade; de novos combustíveis, além da lenha e do carvão, como o petróleo e o gás natural; de novos materiais, além da madeira e do ferro, como o aço, o alumínio e a borracha, levaram à utilização pelos exércitos de novas e melhores armas e equipamentos: o fuzil de repetição, que aumentou o alcance e a rapidez de tiro das armas portáteis; a metralhadora, com o seu enorme volume de fogo; o telefone de campanha, que permitiu melhor coordenação das tropas em combate e, por conseguinte, emprego de maiores efetivos; o canhão de aço, alma lisa e carregamento pela boca, deu ao tiro de artilharia maiores alcance, acuracidade e rapidez de tiro; o projétil de aço e depois de ligas especiais, carregado com alto-explosivo e com porta ogivada, em substituição ao projétil esférico de ferro, sólido, não-explosivo; as minas terrestres; o carro de combate; o avião. Na área naval, o navio de guerra das primeiras décadas do século XIX, de madeira, que se deslocava apenas pela força do vento e era armado com pequenos canhões de alcance muito reduzido, construídos de ferro, montados sobre carretas ao longo dos bordos do navio, sem possibilidades de conteirar – é típico da época o HMS “Victoria”, lançado ao mar em 1859 e até 1867 capitânea da frota britânica no Mediterrâneo – dá lugar ao navio todo construído de aço, protegido com couraças de ligas de aço especialmente temperadas, acionado por turbinas a vapor que lhe davam uma velocidade de 21 nós, armado com 10 canhões de 12” montados em torres duplas – o HMS “Dreadnought” Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 283 é o primeiro navio encouraçado desse tipo, lançado ao mar em 1904; os ineficientes torpedos-lança e torpedos Harvey são substituídos pelo torpedo auto-propulsado de Whitehead, que revulocionaria a tática naval, acarretando o aparecimento dos torpedeiros, pequenas e velozes embarcações que, armadas com o torpedo Whitehead, podiam ser usados para romper o bloqueio de portos ou, alternativamente, atacar a linha de batalha inimiga; apareceu então o contratorpedeiro, navio especialmente desenvolvido para se opor aos torpedeiros, e a bateria secundária nos encouraçados, para impedir a aproximação desses pequenos “davids”; desenvolvem-se minas marítimas cada vez mais eficientes; aparecem os primeiros submarinos operacionais, também armados com torpedos auto-propulsados; o avião fez sua aparição na guerra no mar; desenvolveu-se a rádio-telefonia, etc. Todas essas mudanças acarretariam inevitáveis transformações na arte da guerra. As últimas guerras do século XIX – a austro-prussiana de 1866 e a francoprussiana de 1870 – foram extremamente rápidas, já que as vitórias prussianas, respectivamente em Sadowa e Sedan, logo nos primeiros dias da luta, foram decisivas, graças ao gênio militar de Möltke, o Velho, e ao gênio político de Bismarck. O fracasso Schlieffen na 1ª GM levou à primeira batalha do Marne e a um impasse estratégico; a guerra de trincheiras que se seguiu determinou o prolongamento do conflito, para o qual ninguém estava preparado. O emprego de grandes contingentes de tropas, tornado possível pela conscrição – o exército nacional era uma herança do exército de cidadãos da revolução francesa de 1789 – a maior duração das ações, com os exércitos atolados na lama das trincheiras, as altas taxas de tiro das novas armas, fizeram com que crescesses, muito acima de todas as expectativas, as necessidades logísticas dos exércitos, sem que a retaguarda tivesse condições de suprir essas necessidades. Os estoques de munição logo esgotaram-se. O sistema de abastecimento e a economia viraram um caos. A produção industrial caiu significativamente devido à saída do pessoal para prestar serviço às forças armadas; com a demanda aquecida e a oferta reduzida os preços dispararam. Para Otávio Ianni2 , a CME funcionou como um verdadeiro superministério que o governo utilizou para coordenar os assuntos econômicos, financeiros, tecnológicos e organizatórios da economia de um país em estado de guerra. 284 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Conclusões - o planejamento prévio é extremamente importante para o êxito da mobilização industrial; - o Ministério da Defesa deve promover simpósios ou seminários com os ministérios civis que têm envolvimento com a mobilização econômica do país, de forma que as questões relativas à economia de guerra e à mobilização industrial sejam discutidas permanentemente, mantendo-se, assim, condições para, numa emergência, rapidamente montar e pôr em funcionamento as estruturas necessárias, face à maneira como a sociedade reage aos problemas de defesa, é extremamente improvável que haja condições para criar desde já complexas estruturas voltadas para a mobilização. - a existência de uma indústria nacional de material militar e de um sistema de pesquisa e desenvolvimento científico-tecnológico no país, com envolvimento na área militar, é requisito fundamental para a mobilização industrial; o fortalecimento da indústria nacional é um imperativo estratégico, assim como a manutenção de uma frota mercante de bandeira nacional, tripulada por nacionais. Projetos como o do submarino nuclear, e do veículo lançador de satélites (VLS), que implica no domínio da tecnologia de mísseis de médio e longo alcance (propulsão e dirigibilidade), são essenciais e devem ser perseguidos prioritariamente pelas forças armadas; - é imprescindível que no período de paz seja intensificado o intercâmbio entre os institutos de pesquisa militares e entre esses e os institutos civil, para maior eficiência do sistema nacional de pesquisa mas, também, para que esse sistema, em caso de guerra, possa, rapidamente, se voltar para as necessidades militares; - o cadastramento das empresas de material de defesa e o das empresas que, com pequenas adaptações, poderão vir a fornecer material de defesa, é uma medida que faz parte do preparo da mobilização; as empresas podem ser estimuladas a procurar esse registro desde que ele os habilite a participar das licitações de tempo de paz para o fornecimento às forças armadas; - a integração crescente dos países do Mercosul abre a possibilidade da complementariedade da indústria militar entre os países membros; as dificuldades obviamente são grandes mas a alternativa é a crescente dependência aos países mais ricos e cujos interesses são claramente mais antagônicos aos dos países do Mercosul do que os interesses desses entre si; Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 285 - mesmo em guerras de curta duração, a mobilização pode desempenhar um papel relevante; a mobilização industrial e científico-tecnológica do Reino Unido durante a campanha das Falklands/Malvinas é um claro exemplo disso3 ; - é freqüente a alegação de que, não havendo recursos para a mobilização, nada se pode fazer nessa área; na verdade, porém, uma parte das ações necessárias ao preparo da mobilização não exige recursos financeiros, podendo ser atendida com o trabalho de rotina de organizações militares existentes, desde que haja vontade política. *Vice-Almirante Ex-Diretor da Escola Naval de Guerra NOTAS 1 A principal referência para esse trabalho é “Reflexões sobre Mobilização”, Armando A. F. Vidigal, Revista Marítima Brasileira (RMB), 117 (1/3): 73-93, jan-mar 1997. 2 Citado por Alberto Teixeira, op.cit. 3 Para uma discussão detalhada desse ponto ver “Conflito no Atlântico Sul”, Armando Vidigal. 286 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Marcio Bonifácio Moraes* 1- Introdução “A crise nos Bálcãs teve início em 1389 com a Batalha do Kosovo e deverá terminar no Kosovo”. A frase é repetida pela maioria do povo iugoslavo, em uma referência à complexidade do problema daquela região balcânica. No entanto, não se sabe qual será o fim desse problema. Os possíveis desfechos incluem autonomia, divisão ou independência, ou retorno do território à Sérvia, por meio de negociações pacíficas ou de uma guerra em larga escala, abrangendo outros países balcânicos. Muitos habitantes de países do Ocidente desconhecem dois pontos importantes da história da Iugoslávia. O primeiro é a própria criação da Iugoslávia, que teria ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, por obra do Marechal Tito. Isso não procede, pois, na realidade, o Estado já existia oficialmente desde primeiro de dezembro de 1918. Naquela data – atendendo aos anseios de intelectuais e líderes políticos que, no espírito da “nacionalni identitet”, ou seja, o de unir os povos eslavos da região balcânica –o Rei Alexandre Karadjordevic criou o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos que foi, posteriormente, denominado de Reino da Iugoslávia (1929). Essa união também servia para prover uma defesa das nações balcânicas contra as ameaças externas. O segundo ponto refere-se aos conflitos ocorridos de 1991 a 1995 na Eslovênia, na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, e que resultaram na independência dessas Repúblicas e na dissolução da República Federativa Socialista da Iugoslávia (RFSI). Muitos acreditam que esses conflitos teriam sido causados, primordialmente, por questões étnicas e religiosas. A desintegração da RFSI ocorreu em razão de interferência externa e de disputas políticas entre ex-companheiros de partido do Marechal Tito, fruto do vácuo de liderança política que se instalou no país após a morte daquele presidente. A própria constituição vigente à época já previa, em um de seus Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 287 artigos, que, a qualquer momento, as Repúblicas que compunham a Iugoslávia (“terra dos eslavos do sul”) poderiam optar por sua saída da Federação. As alegadas diferenças étnicas e religiosas serviram apenas para inflamar e sublevar o povo. Agora, como entender o conflito entre sérvios e albaneses no Kosovo? À primeira vista, esse parece ser um genuíno caso de conflito étnico. Na Croácia e na Bósnia, em sua esmagadora maioria, os habitantes eram eslavos, falavam a mesma língua (servo-croata) e possuíam cultura semelhante. Por outro lado, sérvios e albaneses são lingüisticamente diferentes, possuem culturas e religiões distintas. Assim, todas as condições para um conflito estariam presentes. Entretanto, após examinar detalhadamente as causas da questão do Kosovo, podemos constatar que, mais uma vez, que a componente política se faz presente. Em muitas das guerras ocorridas na região do Kosovo, sérvios e albaneses foram aliados. Como exemplo, poderíamos citar a própria Batalha do Kosovo ocorrida em 1389, quando muitos albaneses – que então eram cristãos ortodoxos – lutaram ao lado dos sérvios contra a invasão dos turcos otomanos. Trezentos anos mais tarde, ou mais precisamente em 1737, quando os austríacos iniciaram a expulsão dos otomanos, sérvios e albaneses estiveram do mesmo lado. Isso não significa que o Kosovo foi sempre uma região onde predominou a tolerância mútua. Durante o domínio otomano, albaneses apoderaram-se de propriedades sérvias, assim como, após a retomada da região (em 1912), os sérvios iniciaram um processo de reocupação do Kosovo, durante o qual novas regras foram impostas aos albaneses que haviam apoiado os otomanos durante o seu período de dominação. Na Primeira Guerra Mundial, albaneses fustigaram o exército sérvio, que se retirava para o Adriático perseguido pelos invasores alemães, austro-húngaros e búlgaros. No período seguinte de ocupação alemã (1941-1945), os albaneses lutaram contra os sérvios, chegando a constituir uma Divisão das SS, a 21ª Waffen Gebirgsdivision der SS – Skanderbeg ou Albanische n.º 1. Como pode ser observado, a região do Kosovo esteve durante séculos sob o controle de diferentes potências. Apesar disso, é inquestionável a soberania sérvia sobre o Kosovo, núcleo geohistórico da Sérvia, onde estão localizados os mosteiros que abrigam as relíquias mais antigas e importantes 288 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 da Igreja Ortodoxa. A região do Kosovo sempre foi parte integrante do território sérvio, e isso pode ser comprovado por intermédio de consultas a mapas e a documentos históricos. A idéia de transformá-la em província autônoma foi do Marechal Tito, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, resultante de sua política de agradar as minorias étnicas. Essa postura adotada por Tito era coerente com a sua maneira de conduzir os destinos da Federação: uma de suas principais regras era dividir para poder melhor governar. Com as reformas e alterações constitucionais ocorridas durante o período de governo de Tito, o Kosovo foi obtendo maior autonomia, a ponto de possuir polícia e administração albanesas, escolas e universidades onde o idioma falado era o albanês, em lugar do servo-croata, língua oficial. Finalmente, cabe aqui uma outra pergunta. Como teriam os albaneses se fixado no Kosovo, a ponto de constituírem a maioria étnica na região? Registros históricos mencionam que, após a invasão dos otomanos de 1389, algumas tribos albanesas leais aos turcos teriam migrado para a região do Kosovo, onde receberam terras para ocupar. A segunda grande imigração ocorreu no período da Segunda Guerra Mundial, quando a Albânia se aliou à Alemanha e à Itália contra os sérvios. É interessante mencionar que a Albânia tinha sido anexada ao Reino da Itália, em 1939. A mais recente leva de albaneses chegou ao Kosovo durante o período da “Guerra Fria”. Para um melhor entendimento, deve ser ressaltado que a Albânia manteve boas relações com a Iugoslávia até 1948, quando ocorreu o afastamento deste País da órbita soviética. Com o rompimento das relações entre Tito e Stalin, a Iugoslávia passou a ter uma postura de não alinhamento, afastando-se da União Soviética e mantendo boas relações com os países do Ocidente. Possuía uma economia estável e seu povo desfrutava de um elevado padrão de vida, se comparado ao das demais nações do Leste Europeu. Descontentes com a falta de liberdade, característica do duro regime comunista de linha stalinista praticado pelo ditador Enver Hoxha, muitos albaneses fugiram para a Iugoslávia. O último fator a apontar é a elevada taxa de natalidade da população albanesa. Conforme dados estatísticos, os albaneses na Iugoslávia numeravam 750.431 em 1948 (em sua maioria concentrados no Kosovo). Em 1981, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 289 passaram a ser 1.730.364, ou seja, um crescimento populacional de mais de 100%. No período considerado, as outras nacionalidades (croatas, sérvios eslovenos), e outras minorias étnicas (húngaros, eslovacos, ucranianos etc.), não tiveram aumentos maiores do que 30%. 2 – A Iugoslávia pós Tito Ocorrida em 1980, a morte de Tito deixou a Iugoslávia “órfã” e sem herdeiro político que desse andamento ao seu trabalho. Dentre os fatores que contribuíram para a desintegração da Iugoslávia, o autor destaca: - estagnação econômica; - aumento das desigualdades regionais; - envelhecimento do modelo político; - ausência de uma liderança nacional; - lideranças políticas baseadas nas diferenças culturais (ideologia x etnia e ateísmo x religião); - o esfacelamento da União soviética; e - ressurgimento dos nacionalismos. A instabilidade política veio agravar a tensão latente entre sérvios e albaneses. Entre os anos de 1981 e 1983, ocorreram distúrbios étnicos na região do Kosovo, que teriam se constituído no primeiro sinal de uma crise que já minava os alicerces da ex-Iugoslávia. Em março de 1981, milhares de estudantes albaneses da Universidade de Prístina (capital do Kosovo) ocuparam as ruas da cidade, em manifestação por melhores alojamentos e contra a nomeação de um reitor sérvio. O comício não tardou a degenerar em um conflito de rua e depois numa verdadeira batalha entre sérvios e albaneses. Os confrontos logo se estenderam por toda a região. Milhares de sérvios e montenegrinos fugiram do Kosovo. Foram registrados assassinatos, violações, ataques às propriedades sérvias e profanação de templos e cemitérios ortodoxos. Essas notícias, rapidamente disseminadas em Belgrado, geraram uma reação de repúdio contra albaneses. Em 1982, foi criado na Suíça um grupo denominado “Movimento Popular do Kosovo”, congregando marxistas-leninistas albaneses que tinham o propósito de lutar pela independência daquela região. 290 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Em 1987, Slobodan Milosevic tornou-se presidente da Sérvia e, logo após sua posse, fez uma visita ao Kosovo. Nessa ocasião, realizou um discurso político de fundo nacionalista, exaltando a presença sérvia na região. Em 1989, durante os eventos comemorativos dos seiscentos anos da Batalha do Kosovo, novas manifestações nacionalistas sérvias ocorreram. Em Trepça, junto à cidade de Kosovska Mitroviça, no extremo norte do Kosovo, está instalado o maior centro mineiro da região e um dos mais importantes da Sérvia. Em 20 de fevereiro de 1989, cerca de 1300 operários albaneses da mina de carvão de Stari Trg entraram em greve, realizando a sua ocupação. Inicialmente, os mineiros alegavam falta de segurança nas galerias. Com a continuidade do movimento, as reivindicações se transformaram em protesto político, com exigência de reformas constitucionais e mais autonomia para o Kosovo. Iniciou-se, assim, uma crise entre as lideranças sindicais e Belgrado. Os dirigentes da mina foram detidos sob acusação de cumplicidade com os grevistas. A população albanesa regressou às ruas de Prístina e novos conflitos ocorreram, exigindo a ação enérgica de forças federais para pôr fim à desordem. Estava deflagrado o processo que iria culminar com o início dos debates na Assembléia Federal, visando a promover uma emenda constitucional que retiraria do Kosovo o status de província autônoma. Finalmente, em junho de 1990, a tensão atingiu o seu limite máximo. A Assembléia de Belgrado aprovou a nova Constituição, retirando a autonomia do Kosovo. A região do Kosovo, possuía então cerca de 1.700.000 habitantes, com maioria étnica de albaneses. Segundo pesquisas, a proporção havia chegado a 85% de albaneses contra 15% de sérvios. Em setembro de 1991, um “referendum” firmado em Prístina proclamou a “República do Kosovo”, sendo formado um parlamento clandestino. Ibrahim Rugova foi declarado presidente e Bujar Bukoshi, primeiro-ministro. A República não teve reconhecimento internacional, mas seu “Governo” permaneceu no exílio na Alemanha. Eram os principais objetivos políticos de Rugova: - negar, sistematicamente, a legitimidade do governo iugoslavo na região, boicotando todos os seus atos; e - internacionalizar a questão do Kosovo obtendo, assim, apoio de países simpáticos à questão. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 291 Em 27 de abril de 1992, ainda dentro do processo de desintegração da antiga Iugoslávia, foi formada a nova República Federativa da Iugoslávia, composta pela Sérvia e Montenegro. Slobodan Milosevic foi reeleito Presidente da Sérvia. Nesse mesmo ano, foi identificado um grupo guerrilheiro denominado Exército de Libertação do Kosovo - ELK (Ushtria Clirimtare Kosoves – UCK). Em junho de 1996, o ELK assumiu a responsabilidade por diversos atentados e ações de sabotagem realizados contra policiais sérvios na região do Kosovo. No início, as ações do ELK se limitavam a incursões partindo de bases localizadas em território albanês. Com o passar do tempo, e com o apoio da população local (fator primordial de sucesso para qualquer movimento guerrilheiro), os militantes do ELK estabeleceram bases no Oeste do Kosovo. Seus alvos prioritários eram os integrantes das forças policiais sérvias. Entre os meses de maio e junho de 1998, os guerrilheiros do ELK passaram a realizar ações de maior envergadura, com o objetivo de formar uma “zona liberada” no Oeste da região (eixo compreendido entre as cidades de Peç e Djakoviça). O Governo iugoslavo enviou tropas federais ao Kosovo, para reforçar o efetivo já existente e dar combate ao movimento guerrilheiro. Dotados de armamento moderno e de origem estrangeira, e com uma linha de suprimento bem estruturada, os guerrilheiros do ELK iniciaram uma luta armada contra o Exército Federal Iugoslavo. Os habitantes das vilas envolvidas no conflito começaram a abandonar suas casas, fugindo para a Albânia, Macedônia e Montenegro. Ao final de 1998, o ELK já mantinha o controle de cerca de 40% do território do Kosovo. Os recursos financeiros do ELK seriam provenientes: - do narcotráfico (a Albânia é uma das principais áreas de entrada de drogas para a Europa Central e do Leste); e - de recursos enviados por cerca de 500.000 albaneses que vivem na Europa ou nos Estados Unidos. Os quadros do ELK seriam formados por: - ex-membros do Exército Federal Iugoslavo, de origem albanesa; - albaneses que lutaram nos exércitos croata e bósnio durante a guerra civil (1991-1995); e - ex-membros do exército albanês. 292 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 No final de 1998, a OTAN estabeleceu conversações com a República Federal da Iugoslávia para solucionar a crise no Kosovo. Foram realizadas várias rodadas de negociações em Rambouillet - França. Os principais pontos defendidos pela OTAN eram: a - governo democrático. Seria estabelecido um governo democrático, com o propósito de gerenciar matérias de interesse para os habitantes do Kosovo, tais como: educação, saúde e desenvolvimento econômico. O Kosovo teria um presidente, assembléia, tribunais e um governo local; b - segurança. Seria garantida por forças internacionais dos países membros da OTAN, posicionadas no terreno. Os habitantes do Kosovo teriam polícia própria, para garantir a segurança na região. As forças armadas da Iugoslávia, bem como suas forças policiais, deveriam deixar o Kosovo, limitando suas ações na fronteira entre o Kosovo e a Sérvia; e c - retorno dos refugiados. Uma reunião internacional dos membros da OTAN seria realizada para determinar os mecanismos para o retorno dos refugiados e seu reassentamento na área. As negociações em Rambouillet se prolongaram até março de 1999, sem que as partes chegassem a um acordo. Os iugoslavos aceitavam o retorno dos refugiados, e até mesmo a transformação da região em província autônoma, como nos moldes anteriores. No entanto, não admitiam a presença de forças da OTAN em seu território, pois consideravam a questão do Kosovo um problema interno do país, e que essa intervenção iria ferir a soberania nacional e o direito à autodeterminação. Na noite de 24 de março de 1999, esgotados todos os esforços diplomáticos, e desconsideradas as alegações do Governo iugoslavo, sem a prévia autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a OTAN desencadeou a operação “Allied Force - Oplan 10601”, com ataques aéreos à Iugoslávia. A ação militar se concentrou, inicialmente, contra alvos militares. Posteriormente, a ação foi ampliada e os ataques passaram a ser dirigidos contra as principais cidades da República. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 293 Em 9 de junho, depois de 78 dias de bombardeios (cerca de 37.000 ataques aéreos), que danificaram significativamente a infra-estrutura do País, o Governo iugoslavo finalmente cedeu às pressões da OTAN, aceitando os termos de um acordo de paz. No dia 12 de junho, a região do Kosovo foi ocupada militarmente pela OTAN, tendo ocorrido a retirada das forças militares e policiais sérvias, que até então mantinham o controle da área. 3 - A Participação da Comunidade Internacional na questão A Resolução n.º 1244, de 12 de junho de 1999, do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), marcou o fim das hostilidades entre a OTAN e a República Federal da Iugoslávia (RFI) e o retorno da questão do Kosovo para o âmbito da Organização das Nações Unidas. A Resolução, após ressaltar que o Kosovo é parte integrante do território da RFI, estipula que a província gozaria de “autonomia substancial e autogoverno”. Para implementar suas decisões, o Conselho criou, com a concordância da República Federal da Iugoslávia (RFI), a United Nations Interim Administration Mission in Kosovo (UNMIK) e a Força de Segurança do Kosovo (KFOR). O mandato da UNMIK, previsto para 12 meses, foi renovado automaticamente em 13/6/2000. A UNMIK é composta de quatro setores: a administração civil (por conta da ONU); a reabilitação econômica (a cargo da União Européia); a recuperação institucional (sob a responsabilidade da Organização de Cooperação para Segurança Européia - OCSE) e a assistência a refugiados (coordenada pelo UNHCR). A KFOR é integrada por cinqüenta mil homens (42.500 no Kosovo e 7.500 nos países vizinhos), que atuam sob a liderança da OTAN, com o mandato de supervisionar a retirada das tropas sérvias da província, ajudar no regresso dos refugiados/deslocados internos (um total estimado de 850 mil pessoas, 90% das quais já retornaram ao Kosovo), monitorar a desmilitarização do Exército de Libertação do Kosovo (ELK) e velar pela segurança. Os mais importantes desafios à autoridade da ONU dizem respeito não apenas à criação de uma nova estrutura de governo para a província, envolvendo a recuperação das instituições e a realização de eleições, mas também a necessidade de estabelecer uma sociedade multiétnica e pluralista. 294 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Essa tarefa torna-se complicada ainda diante da imprecisão da expressão “autonomia substancial” constante da Resolução n.º 1244 e da falta de uma definição mais clara das atribuições da UNMIK (ONU) e da KFOR (OTAN), algo que vem suscitando áreas de atrito entre as duas entidades. As dificuldades das Nações Unidas para levar adiante o processo de reconciliação no Kosovo revelam os limites que se impõem à comunidade internacional em sua tentativa de dar ordem, estabilidade e prosperidade a um ambiente marcado por rivalidades arraigadas e pela intolerância. Em última instância, expõe as limitações e conseqüências da denominada “intervenção humanitária”. A UNMIK vem adotando um conjunto de medidas, que, segundo seu chefe Bernard Kouchner (um dos fundadores e organizador da ONG francesa “Médicos sem Fronteiras”), se destinaria a assegurar à população “kosovar” (nome dado aos albaneses que vivem no Kosovo), o mesmo nível de autonomia usufruída pela Província até 1990. No entanto, algumas das medidas implementadas, aliadas à criação da “Kosovo Protection Force” (iniciativa destinada a facilitar o desmantelamento do ELK, mediante o emprego de seus militantes em uma espécie de força policial civil, nos moldes da “Securité Civile” francesa), estão gerando muitas controvérsias tanto no Conselho de Segurança, quanto na Província. No Conselho de Segurança, há uma nítida cisão entre os representantes da União Européia e dos EUA, que ressaltam que todas as atividades da UNMIK se encontram amparadas pela Resolução n.º1244, e o representante da Rússia, para quem “a situação no Kosovo mostra que a Província está caminhando para a independência”, encorajada pela complacência dos países da OTAN. Entre outras medidas que indicam essa tendência, estariam a introdução do Marco Alemão como moeda local, o fornecimento de carteiras de identidade, a emissão de “documentos de viagem” (equivalentes a passaportes) e a coleta de impostos sobre a circulação de mercadorias nas fronteiras do Kosovo com a Albânia e a Macedônia. No terreno, a situação é tensa. Prosseguem os constantes choques entre integrantes da KFOR e a população “kosovar”, além de haver relatos de assassinatos, agressões e banditismo perpetrados por “kosovares” contra minorias não-albanesas. A parte sérvia da cidade de Mitroviça e o Norte do Kosovo são praticamente os únicos pontos da província onde os sérvios continuam residindo em número expressivo. Caso não seja controlada, a Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 295 violência acabará por criar uma tendência à partição de facto do Kosovo, consagrando uma divisão étnica da província. Há também um novo foco de tensão no Vale de Precevo, na fronteira tríplice Kosovo-Macedônia-Sérvia, onde a população de maioria albanesa tem-se mobilizado na esperança de separar-se da Sérvia e anexar-se ao Kosovo. As informações disponíveis indicam que estaria atuando dentro do território sérvio o “Exército de Libertação de Bujenovac, Presevo e Medvedja (UCBPM)”. Em março de 2001, as forças guerrilheiras atuantes no Kosovo iniciaram uma ofensiva contra a cidade de Tetovo, na Macedônia, indicando que existe uma tendência de que a questão se alastre para aquela República. Cabe ressaltar que quase um terço da população da Macedônia é de origem albanesa, concentrada à noroeste do País. 4 - Conclusão A questão do Kosovo é assunto de complexa solução, especialmente agora que a comunidade internacional optou por uma solução militar para tentar resolver o problema. Após a desintegração do fechado regime comunista que imperou na Albânia por mais de quarenta anos, seus dirigentes se voltaram às antigas questões nacionais, dentre as quais se destaca a do Kosovo. O País atravessa sérios problemas econômicos, que deram origem a vários distúrbios civis em 1997. No entanto, para que pudesse captar investimentos e receber apoio externo, seria necessário que a Albânia apresentasse alguma recuperação em seu combalido sistema econômico. Uma das saídas seria a anexação do Kosovo, pois a região é particularmente rica em minérios, especialmente carvão, extremamente necessário para geração de energia elétrica. A deflagração de um conflito lhe traria muitos benefícios, fato que realmente ocorreu. Além do mais, é um antigo sonho dos albaneses criar uma “Grande Albânia”, anexando partes de territórios de seus vizinhos, dentre os quais a Sérvia e a Macedônia. Por outro lado, para os sérvios a manutenção da região do Kosovo é um direito histórico irrenunciável, pois é o seu núcleo geohistórico e o berço de sua cultura. Alberga os mosteiros ortodoxos mais veneráveis e foi cenário da famosa batalha em que o santo príncipe Lazar perdeu a vida, e a nação sérvia cinco séculos de independência. 296 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Os sérvios – que também são conhecedores do potencial da região e de sua importância estratégica – não aceitaram, tacitamente, os termos iniciais do Acordo de Rambouillet, exigindo que a OTAN optasse pela solução militar. Contrariamente ao esperado pela OTAN, os sérvios vislumbraram nos ataques aéreos um “sinal verde” para que pudessem realizar o que há muito tempo esperavam: tomar posse definitivamente do Kosovo. Os bombardeios realizados na região só serviram para ajudar aos sérvios em sua tarefa: Além do ataque das forças de defesa da Iugoslávia aos guerrilheiros “kosovares”, a população civil albanesa residente no Kosovo tinha nas bombas e foguetes da OTAN mais um “incentivo” para iniciar um êxodo sem precedentes. Merece atenção e destaque o apoio externo (recursos de pessoal, material e financeiros), que foi dado ao grupo guerrilheiro de orientação albanesa que se denomina Exército de Libertação do Kosovo, cujas ações foram consideradas como deflagradoras da instabilidade na área, fator responsável pelo início da crise. Ainda no que se refere aos sérvios, a derrota sofrida surtiu um efeito totalmente diferente ao esperado pela OTAN. Embora com grandes perdas materiais e destruição substancial de sua infra-estrutura, o governo de Milosevic soube tirar dividendos políticos do ocorrido. O forte sentimento de nacionalismo sérvio fez com que o povo se unisse em torno do seu Presidente, colocando em segundo plano os problemas de ordem social e econômica por que passava o País. Foi com muita dificuldade que a oposição conseguiu fazer valer o resultado das últimas eleições, ocorridas em 2000, nas quais se sagrou Presidente Vojslav Kustuniça. Assim, após dois anos de intervenção, a OTAN, União Européia, ONU e outros organismos envolvidos não conseguiram avanços significativos no processo de pacificação. Pelo contrário, a tensão e rivalidades parecem haver aumentado entre as partes, existindo o risco de uma escalada do conflito para outros países vizinhos, onde existem minorias albanesas, como são os casos da própria Sérvia e das Repúblicas da Macedônia, e do Montenegro. *Capitão-de-Mar-e-Guerra (T) Adjunto da Divisão de Assuntos de Inteligência (DAI) - ESG Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 297 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CRNOBRNJA, Mihailo. The Yugoslav Drama. London: I. B. Tauris & Co Ltd, 1994. GLENNY, Misha. The Fall of Yugoslavia. London: Penguin Books, 1992. LAMPE, John R. Yugoslavia asHistory: Twice There was a Country. London: Cambridge University Press, 1996. MALCOLM, Noel. Bosnia: a short history. London: Papermac, 1994. _________ Kosovo: a short history. New York: New York University Press, 1999. MORAES, Marcio Bonifacio. O Conflito nos Balcãs. Rio de Janeiro: Revista Marítima Brasileira, V.116, nº 10/12, p 202-229, out/dez.1996. 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Mais do que isto, ele pretende ser uma colaboração no sentido de aperfeiçoá-lo, baseado nos erros e acertos cometidos até aqui. Para isto, será feita uma análise do que se fez e como os erros cometidos poderão ser repetidos e se buscar uma maior eficiência para os recursos aplicados na área, dentro da filosofia do governo federal de otimizar recursos e buscar que investimentos privados também sejam aplicados em áreas onde, anteriormente, somente recursos públicos eram utilizados. Para isto, obviamente, os futuros projetos deverão gerar recursos compensatórios, através dos produtos gerados por estes projetos (imagens, telecomunicações, microbiologia, experimentos científicos, etc.) ou, no caso de interesse do governo em estimular a pesquisa, através de subsídios fiscais concedidos a estas aplicações. Na realidade, existe hoje o PNAE - Programa Nacional de Atividades Espacial (ref. 1) elaborado em 1996, e cuja primeira revisão foi feita em 1998, cobrindo o período de 1998 a 2007. O PNAE segue a orientação da Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE), cuja atualização foi aprovada pelo decreto 1,332, de 8/12/94 (ref.1). Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 299 Posteriormente, em 10/07/96, foi criado o SINDAE – Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (decreto 1,953) com a “finalidade de organizar a execução das atividades destinadas ao desenvolvimento espacial de interesse nacional”. Assim sendo, embora exista formalmente a inter-relação destas três siglas (PNAE, PNDAE e SINDAE), o resultado prático é pequeno, no sentido de dotar o país de um plano diretor de suas atividades espaciais. Em parte isto aconteceu devido ao dinamismo que as atividades espaciais têm tido no mundo, ou seja a tecnologia e as aplicações evoluíram muito rapidamente, e o Brasil, tem um nível de investimento comparativamente muito baixo no setor, tem dificuldades para possuir um plano que possa ser adequado a estas mudanças e praticado efetivamente. Entretanto, o PNAE é também muito genérico, tentando cobrir todas as possíveis atividades e projetos que o país pode desenvolver, sem considerar prioridades. Em virtude da dificuldade de recursos, é necessário que tal planejamento defina atividades e aplicações prioritárias, que possam efetivamente orientar os órgãos executores e possível investidores interessados. É importante salientar, como dito em seu próprio texto, que o PNAE não é um plano, mas sim um programa. Ainda assim, os comentários anteriores aplicam-se. Não se considera aqui os satélites de telecomunicações comprados pela Embratel como parte do programa Espacial Brasileiro, exatamente por eles terem sido comprados com finalidades operacionais sem considerarem um programa espacial mais amplo. A empresa, entretanto, possui um corpo técnico competente, com experiência para especificação de compra e operação destes satélites. Vale salientar também que as opiniões aqui emitidas refletem somente o ponto de vista do autor, não representando posições dos órgãos aqui citados ou, mais especificamente, de sua instituição de origem. CAPÍTULO I O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA Em 1958, o Brasil já contava com uma Sociedade Interplanetária Brasileira (SIB), cujo presidente honorário era o professor Luiz Gonzaga Bevilacqua, e com o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), onde funcionavam o ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica e o IPD – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, sendo que este possuía como diretor Cel. Aldo Vieira da 300 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Rosa. Estes pioneiros, juntamente com dois estudantes do ITA, Fernando de Mendonça (que futuramente viria a ser por vários anos diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE) e Júlio Alberto de Morais Coutinho preparavam-se para a instalação no Brasil de uma estação (denominada de Minitrack) para a recepção de sinais do que se julgava seria o primeiro satélite terrestre artificial, lançado pelos norte-americanos (Projeto Vanguard). Em 4/10/58, a então União Soviética e o Sputnik 1, frustaram estes planos. Mendonça e Coutinho, entretanto, em uma semana, adaptaram a Minitrack, não só para a recepção de sinais do Sputnik, como mais tarde, em janeiro de 58 para receber também sinais do Explorer 1, este sim o primeiro satélite norte-americano lançado com sucesso. Na presidência de Jânio Quadros, e o início da corrida espacial, o professor Bevilacqua entregou-lhe em 20/02/61, pessoalmente, um documento sugerindo a criação de ima instituição dedicada à pesquisa espacial no Brasil, como ocorria já em vários países desenvolvidos. Este documento foi assinado pelo próprio Bevilacqua e pelo então presidente da SIB, engenheiro Thomas Pedro Bun. Textualmente o documento concluía dizendo: “Julgamos, Exmo. Sr. Presidente, que (...) para dar início e organizar um plano mínimo de trabalho no campo astronáutico seria necessária a criação de um Conselho Nacional de Pesquisas e Desenvolvimento Espacial, diretamente subordinado ‘a VSa. Exma. e composto de elementos das Forças Armadas, de especialistas e elementos dedicados ‘a pesquisa e aos estudos espaciais. (...) Este seria o primeiro passo, a primeira manifestação objetiva e pública do interesse do Governo do Brasil pelos problemas fascinantes da astronáutica exatamente quando a humanidade se encontra no início do 4º Ano da Era do Espaço” (ref. 2). Décadas mais tarde, em palestra no INPE, Aldo Vieira da Rosa, na época professor emérito da Universidade de Stanford, lembrava do estilo do então presidente de passar ordens através dos famosos bilhetinhos. Contou que, após analisar o documento, passou um destes, contendo uma única palavra ao seu chefe da casa militar, e futuro presidente, Ernesto Geisel, e onde se lia: “providencie”! Ainda em 1961 foi criado o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (GOCNAE), subordinado ao Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq, e que em 1971 transformou-se no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, e desde 1985 subordinado diretamente ao Ministério da Ciência e Tecnologia. No âmbito do Ministério da Aeronáutica foi criado em 1966 o Grupo Executivo e de Trabalhos e Estudos de Projetos Espaciais (GETEPE), e que em 1969 originou o Instituto de Atividades Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 301 Espaciais (IAE) como parte do Centro Tecnológico da Aeronáutica (o IAE hoje denomina-se Instituto de Aeronáutica Espaciais, sempre presidida pelo Ministro-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) com representação de todos os ministérios militares e de alguns ministérios civis. A COBAE tinha como missão exercer a coordenação interministerial sobre as atividades espaciais brasileiras. Como uma comissão que era, e com a finalidade anterior, a COBAE reunia-se periodicamente, não sendo, portanto, um órgão de atuação contínua. Entretanto, pode-se dizer que, concretamente, o Programa Espacial Brasileiro nasceu em 1979, com a criação da MECB – Missão Espacial Completa Brasileira por decisão do governo brasileiro. Como diz seu próprio nome, a MECB propunha a execução de um programa completo, isto é, constituído por satélites, lançadores para estes satélites e infraestrutura de solo ou seja, centro de controle de lançamento, estações e redes de dados. Neste programa, o INPE é o responsável pelo desenvolvimento dos satélites, centro de controle, estações de recebimento de dados e rede de dados em solo. O IAE responsável pelos lançadores e pelo centro de lançamento. Até aquela data o INPE possuía experiência em recebimento de imagens de satélites estrangeiros de sensoriamento remoto e meteorológicos, além de alguns projetos de sistema de educação por satélite que não se materializaram. A Aeronáutica, através do GETEPE (antecessor do IAE), em 1966 deu início à construção do Centro de Lançamentos da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, para lançamento de foguetes de sondagem (que não possuem capacidade orbital). Desde 1965 já eram obtidos resultados práticos com estes foguetes, desenvolvidos pela Aeronáutica através do GETEPE/ IAE, e chamados de SONDA, com lançamentos iniciais de 5 kg a 50 km, até o SONDA IV, 20 anos depois, com capacidade de duas ordens de grandeza a mais carga útil e uma em altitude. Assim sendo, a MECB previa a construção de 4 satélites pelo Brasil, dois de coleta e retransmissão de dados para uma estação central (para disseminação a partir daí) e dois de sensoriamento remoto, o desenvolvimento de um lançador com capacidade para estes satélites, centro de lançamento e demais infraestrutura de solo. A firme decisão governamental de implementar a MECB foi o fator decisório para o seu sucesso. Os recursos financeiros dedicados, a formação de pessoal e um gerenciamento orientado a resultados fizeram a MECB chegar a um bom termo, gerando muita tecnologia embrionária para o desenvolvimento nacional no setor e abrindo novas 302 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 oportunidades que foram aproveitadas. Obviamente os resultados não foram idênticos em todas as frentes, devido à diferença de complexidade tecnológica existente entre os componentes da missão (MECB), diferenças gerenciais existentes entre as instituições envolvidas e bloqueio tecnológico exercido pelas nações detentoras desta tecnologia. Este bloqueio foi justificado por estas nações em virtude da MECB ter nascido ainda sob o regime militar no país e o uso de tecnologia dual no setor, ou seja tecnologia que pode ser utilizada tanto no campo civil quanto no militar. O exemplo mais gritante foi no desenvolvimento do lançador de satélites, que pode também ser utilizado, desde que adaptado para tal, como um artefato militar de longo alcance. Os países do G-7 possuem um acordo de não transferência de tecnologias deste tipo para os países em desenvolvimento, obrigando muitas vezes fossem usados recursos extremamente arriscados para obtê-la, e, ainda assim, com mínimas possibilidades de seu domínio a partir desta obtenção. Um exemplo extremo destes recursos foi quando da obtenção da plataforma inercial para a guiagem do lançador, responsável por sua precisão de injeção. Este bloqueio afetou, em menor grau, também o desenvolvimento dos outros componentes da MECB, atrasando-os, encarecendo-os e passando por canais extras na burocracia da importação. Foi também fator de pressão para a assinatura pelo Brasil do Tratado de Não Proliferação de Tecnologia de Mísseis, e ara a criação da Agência Espacial Brasileira, civil, em substituição à COBAE presidida pelo chefe do EMFA e com a participação de todos os ministros militares. Ainda assim, a despeito deste novo cenário, as dificuldades de acesso à tecnologia de uso dual continuam embora, reconhecidamente, menores. A título de exemplo complementar pode-se citar a Argentina. Único país da América do Sul com um programa de desenvolvimento espacial em andamento, o acesso à tecnologia espacial foi grandemente facilitado depois que o seu programa de desenvolvimento de mísseis Condor foi desativado, com os mísseis sendo inclusive destruídos. Em troca foram obtidos lançamentos, consultoria e até alguns sensores críticos obtidos gratuitamente. Entretanto, o lançamento do SDC-1, o primeiro satélite de série da MECB, em 1993, a despeito de não ter ainda utilizado um lançador e um centro de lançamento nacionais, colocaram o país no rol daqueles capazes de desenvolver tecnologia espacial com sucesso. Especificado para Ter uma vida útil de 1 ano, o SCD-1 continua a operar com estações e centro de controle também desenvolvidos por brasileiros. Em Novembro de 1998, o segundo satélite da série, o SCD-2, foi também lançado, ainda com um lançador Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 303 estrangeiro (o Pégasus, o mesmo do que o do SCD-1), e opera com sucesso. O projeto dos dois outros satélites da MECB, os de sensoriamento remoto, estão passando por revisões visando adequá-los a aplicações de maior interesse do momento (por exemplo, para observação da Amazônia). O VLS – Veículo Lançador de Satélites, também resultado da MECB, já realizou dois lançamentos experimentais, embora em ambos levassem cargas úteis e não somente “ dummies”, que as emulassem. Ambos falharam, mas estas falhas devem ser consideradas como parte do processo de qualificação do lançador (a Aeronáutica prevê que serão cinco os vôos destinados à qualificação do VLS). Ambos os lançamentos foram feitos do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), desenvolvido pela Aeronáutica a 22 km. de São Luís, MA, a cerca de 2º de latitude sul, em posicionamento geográfico extremamente favorável ao lançamento de satélites de órbitas equatoriais, principalmente para os satélites de comunicação (geoestacionários), que possuem grande valor comercial. Neste cenário competitivo por centros de lançamento mais eficientes, a posição geográfica do CLA tem destaque. O CLA tem servido também para o lançamento com sucesso de vários foguetes de sondagem, o que tem sido útil para validar o CLA em substituição ao Centro de Barreira do Inferno. Assim, a MECB proporcionou que o país tenha desenvolvido todos os componentes de um programa espacial nacional: satélite, lançador, centros de lançamento e controle, estações e rede de solo. Embora alguns destes componentes ainda não estejam totalmente qualificados, não estão longe de sê-lo. Poucos países no mundo enquadram-se nesta categoria. São eles: EUA, Rússia, China, França, Ucrânia, Japão, Israel e Índia. O outro grande projeto impactante sobre Espacial Brasileiro foi o CBERS – “Chinese Brazilian Earth Resource Satellite”. Trata-se de um satélite de sensoriamento remoto, de 1.400 kg., aproximadamente, (ao contrário dos SCD-1 e 2, que são satélites de pequeno porte de cerca de 100 kg.), e construído em colaboração com a China. Nele o Brasil foi responsável por cerca de um terço de seu desenvolvimento, medido em valores financeiros. O custo do projeto foi de cerca de US$ 300 milhões, sendo o Brasil responsável por cerca de US$ 100 milhões. O Brasil é o único país no mundo a Ter um projeto em cooperação com a China na área espacial. Isto, obviamente, não foi do agrado das outras nações que dominam esta tecnologia. O projeto foi negociado através do Ministério das Relações Exteriores e sua 304 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 assinatura deu-se em 1989, e o INPE foi o responsável pela sua execução no Brasil. O satélite foi lançado em Novembro de 99, na China, por um lançador chinês, o Longa Marcha IV (o VLS não opera para esta classe de satélite). O satélite funciona com sucesso até o momento. O Brasil, principalmente através de empresas brasileiras, desenvolveu os computadores de bordo, uma das câmeras de sensoriamento (a infravermelha de larga abertura – WFI – “wide field infrared”), os painéis solares e parte do sistema térmico, entre outros, além de alguns testes em modelos pré-vôo, embora tivesse de contratar dos próprios chineses subsistemas sob sua responsabilidade, como a estrutura do satélite. Também a monitoração e comando do satélite será exercido pelo centro de controle do INPE, quando o satélite passar sobre o território nacional. A estação do INPE em Cuiabá foi adequada para o recebimento das imagens fornecidas pelo satélite e todo o seu processamento e beneficiamento posterior também é feito no país para que se tornem um produto comercial. Brasil e China estão em processo de formação de uma empresa bi-nacional para a venda destas imagens para outros países. Esta empresa concorrerá então com empresas americanas (satélites da série Landsat), francesas (satélites da série Spot) e indianas. Novamente, são muito poucos os países que detém a tecnologia de sensoriamento remoto por satélites. Além agora de Brasil e China, somente possuem EUA, França, Rússia, Índia, Canadá e Israel. A maior virtude do Projeto CBERS foi capacitar o país a realizar projetos espaciais conjuntos com nações estrangeiras em um ambiente de extrema dificuldades geográficas, idiomáticas, culturais, financeiras e tecnológicas. Além disso, os técnicos brasileiros sentiam freqüentemente estar cedendo tecnologia, principalmente eletrônica, ao invés de absorvê-la dos chineses, devido à posição de proteção para o acesso à informação demonstrada pelos nossos parceiros. A despeito destas dificuldades, quando houve realmente vontade política por parte do governo brasileiro para concluir o projeto, tendo como conseqüência um fluxo regular de recursos a ele alocados e, principalmente, uma gerência da parte brasileira voltada para resultados, o projeto foi concluído. CAPÍTULO II A PARTICIPAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS Como dito anteriormente, o Programa Espacial Brasileiro possui três atores institucionais principais. Na coordenação do Programa está a Agência Espacial Brasileiro – AEB, constituída em 1994, e hoje subordinada ao Ministério da Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 305 Ciência e Tecnologia (MCT). Na sua execução, do ponto de vista institucional, estão o INPE e o IAE, aquele responsável pelo desenvolvimento dos satélites, seu controle e recepção de dados, e este responsável pelo desenvolvimento dos lançadores e centro de lançamento. O INPE subordina-se ao MCT e o IAE faz parte do CTA que, por sua vez, subordina-se ao Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento (DEPED) do Ministério da Aeronáutica. A iniciativa privada nacional também tem participado do Programa através do fornecimento de equipamentos para os satélites, lançador e sistema de solo, sempre através de contratos com as instituições citadas anteriormente obtidos por licitação. Há vários anos tenta-se qualificar uma empresa nacional, para o desenvolvimento de satélites, que aja como uma “prime contractor”, isto é seja capaz de se responsabilizar pelo desenvolvimento de um sistema completo ou, pelo menos, de um sub-sistema de um satélite, contratando terceiros para desenvolvimentos específicos. Esta forma de atuação simplificaria em muito o sistema de contratação, do ponto de vista dos requisitos burocráticos necessários, pois se estaria diminuindo a quantidade de licitações necessárias, e se estaria dotando a iniciativa privada nacional de uma empresa com capacidade tecnológica para este papel. Esta iniciativa, entretanto não deu certo até aqui, seja pela disputa acirrada por esta posição, que ensejou brigas jurídicas frustrantes e que derrubaram a iniciativa, seja pelo pequeno número de empresas interessadas (a despeito disso as que têm interesse não abrem mão dele). Na realidade, o mercado nacional é pequeno e não parece atrair e ser suficiente para sustentar uma empresa especificamente neste campo, a não ser que ela seja de pequeno porte. Pode-se dizer que, em alguns casos, existe até uma pressão do governo para que as empresas interessem-se por este papel. Primeiramente tentou-se fazer com que a empresa ESCA de São Paulo ocupasse este papel, a empresa entretanto foi extinta em meio a problemas legais ligados à Receita Federal e `Previdência. Posteriormente, através de uma associação com a empresa francesa Matra, tentou-se o mesmo com a empresa Tecsat, de São José dos Campos que, entretanto, ainda não se consolidou nesta posição, devido a questões judiciais levantadas por outras empresas participantes nas mesmas concorrências e que as paralisaram. Atualmente a Embraer parece ser a empresa com maior possibilidade de ser uma empresa de sistemas espaciais (“prime contractor”), resta saber se ela terá interesse comercial para ocupar esta posição. Sob o ponto de vista do desenvolvimento de equipamentos, algumas empresas nacionais têm sido fornecedoras qualificadas. Dentre estas pode-se 306 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 destacar a Digicon, de Gravataí, RS, no desenvolvimento dos painéis solares do CBERS e a Elebra Defesa, para os computadores de bordo do mesmo satélite. Outras empresas que podem ser citadas são a Tecnasa (atual Tecsat), no desenvolvimento da estrutura, ambas atuaram no SCD-1 e 2. Outras empresas menores, de ex-funcionários do INPE, em São José dos Campos também atuaram, destacando-se no desenvolvimento da câmara infravermelha de larga abertura para o CBERS, embora sua ótica tenha sido fornecida por uma empresa americana (o CBERS leva uma outra câmera de melhor resolução desenvolvida pela China). Esta parece ser uma boa estratégia de desenvolvimento, isto é o estímulo ao surgimento de pequenas empresas que possam fornecer equipamentos de alta tecnologia, similarmente em uma encubadora de empresas de alta tecnologia para o fornecimento de equipamentos e projetos espaciais. No desenvolvimento do VLS, o número de empresas que participaram foi bem maior e o lançador é, realmente, um projeto que enseja muito mais oportunidades à iniciativa privada, seja através de pequenas, médias ou grandes empresas. Entretanto um fator desencorajador para a participação destas empresas tem sido o contingenciamento na execução e atrasos na disponibilidade do orçamento e, no passado, a inflação e o descompasso entre a entrega e o pagamento. Houve empresas, por exemplo a Composite, de São José dos Campos, que atribuem a estes fatos a sua concordata. Espera-se que a estabilidade econômica e um orçamento com uma execução mais confiável tragam fim a estes desestímulos. O segmento solo também tem proporcionado a participação de algumas empresas nacionais tanto no fornecimento de hardware (por exemplo, Elebra – console do centro de controle do INPE) quanto no desenvolvimento de software. Praticamente todas as empresas aqui referidas tiveram sua capacitação na área espacial desenvolvidas através de transferência de tecnologia feitas pelo INPE e pelo IAE. Atualmente a AEB preocupa-se em estimular a participação das universidades brasileiras no Programa Espacial. Nos últimos dois anos tem sido oferecidos recursos, poucos é verdade, para o desenvolvimento de infraestrutura, pesquisa e projetos na área espacial, submetidos à banca de avaliação e acompanhamento. Algumas universidades brasileiras têm demonstrado claro interesse e obtido alguns bons resultados. Dentre estas pode-se destacar a Universidade Federal de Santa Catarina (controle térmico), PUC-RJ (telecomunicações), ITA (mecanismo) e UNICAMP (materiais). Outras participantes são a UFRJ/COPPE e PUC-RJ (estruturas). Além destes Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 307 produtos, estas universidades têm formado mestres e doutores em seus respectivos departamentos porém dando ênfase no tema de tese a assuntos ligados a estes projetos, o que é um meio de formação importante, em um país onde não há, a nível de graduação, nenhuma universidade oferecendo curso de engenharia aeroespacial. O ITA possui um curso de aeronáutica e o INPE somente em pós-graduação. O interesse demonstrado pelas universidades, seus corpos docentes e discentes em trabalhar em projetos na área espacial (realmente um campo riquíssimo de desenvolvimento também em vários outros ramos da engenharia) mostra que este é um caminho que deve ser cada vez mais estimulado. 2.1 – Coordenação Como dito antes, a coordenação do Programa é feito pela Agência Espacial Brasileira (AEB), criada em 1994 e subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Quando de sua criação a AEB subordinava-se diretamente à Presidência da República através da sua Secretaria. Com a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), a AEB incorporouse a ela. Com a extinção da SAE, e seu titular passando a assumir a pasta do MCT, finalmente a AEB passou a fazer parte daquele ministério. A AEB surgiu em substituição à COBAE (vide CAPÍTULO I), e para dotar o Programa Espacial Brasileiro de um caráter eminentemente civil, tendo sido feitas pressões internacionais neste sentido. Ela possui um corpo de cerca de 100 funcionários e, ao contrário de sua predecessora (que na realidade era uma comissão), possui atuação regular e perene, e com sede em Brasília. Possui, além do Presidente e de um Diretor Geral, departamentos de Programas Espaciais, Técnico-Científico, Cooperação Espacial e Planejamento e Coordenação, além de um de Administração. O Presidente e três chefes de departamentos (de fato diretores), são oriundos do INPE que, sem dúvida, exerce grande influência sobre a Agência, O Diretor Geral (o primeiro – IAE e o atual – Embraer são oriundos da Aeronáutica). Tecnicamente, apenas este corpo diretor possui experiência na área, sendo seu corpo técnico a partir daí praticamente todo recrutado em outros ministérios e que nunca havia trabalhado na área. Muitos têm permanecido por pouco tempo, apenas esperando por uma outra melhor oportunidade, sem realmente se identificar com a atividade. A dificuldade de se transferir pessoal tecnicamente mais qualificado no assunto para Brasília, sem nenhuma contrapartida em outros níveis que não os dos diretores, praticamente inviabiliza 308 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 qualquer decisão mais técnica e independente da AEB. Mas este á ainda um problema menor para a efetiva atuação da AEB. A principal atividade AEB é a de repassar recursos aos órgãos executores. Estes são, praticamente na sua totalidade o INPE e o IAE, embora existam outros programas específicos de menor dotação, principalmente envolvendo universidades, como visto anteriormente. E aí começam os principais problemas da AEB para exercer, de fato o seu papel de coordenação do Programa Espacial Brasileiro. Como citado anteriormente, o INPE é administrativamente subordinado ao MCT, onde a AEB também está alocada. Entretanto, o IAE está subordinado ao CTA e, por conseguinte, ao Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (DEPED) do Ministério da Aeronáutica. Obviamente, nenhuma decisão sobre lançadores, lançamentos, foguetes de sondagem ou ao Centro de Lançamento de Alcântara – CLA (também sob responsabilidade do MAer) poderá ser tomada pela AEB, tendo em vista que estas decisões, de direito, emanam do MAer. Como agravante, e também como mencionado acima, os recursos do IAE para o desenvolvimento do lançador nacional (o Veículo Lançador de Satélites – VLS), para o desenvolvimento dos foguetes de sondagem (Sondas e VS´s) e também para o desenvolvimento do CLA têm vindo nos últimos anos (principalmente nos dois primeiros casos) da AEB. Poder-se-ia então dizer que a AEB possui, de fato, algum poder de pressão econômica sobre o IAE para o exercício do papel de coordenação que a ela cabe. Entretanto esta atitude poderia ser desastrosa e causar maiores danos do que se pretenderia com ela evitar. Então, embora administrativamente a AEB e o INPE estejam no mesmo ministério, não há relação direta entre eles. Além disto, a influência técnica do INPE sobre a AEB é evidente. Isto causa embaraços e situações onde o processo de decisão não flui como deveria. No relacionamento AEB e IAE, ainda para o exercício de coordenação do Programa, a situação é pior ainda, pois não há meios que formalmente, de direito, garantam o exercício, por parte da AEB, desta coordenação, por mais incrível que isto possa parecer. Esta situação é insolúvel da maneira como está colocada e impede que o Programa Espacial Brasileiro tenha uma autoridade institucional máxima na prática! No caso AEB/ INPE à medida que esta relação de dependência técnica e influência for se esmaecendo, a atividade de coordenação da AEB tenderá a se fortalecer. Entretanto somente por este lado, sem a coordenação sobre as atividades de lançadores e sobre o CLA, a deficiência não será sanada. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 309 2.2 – Segmento Solo O chamado segmento solo do Programa Espacial Brasileiro é constituído pelas estações de recebimento de dados de carga útil e dados de serviço dos satélites nacionais, um centro de controle, o centro de lançamento e a rede de dados que transporta os dados referidos anteriormente. Destes, o INPE foi o responsável pelo desenvolvimento e operação das estações, centro de controle e rede de dados e o MAer , através do GICLA – Grupo de Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara, responsável pelo construção do centro de lançamentos. A operação do CLA também tem sido feita pelo MAer, com pessoal do IAE/CTA. A estação principal de recebimento de dados localiza-se em Cuiabá, centro geométrico da América do Sul. Esta estação, além de servir ao Brasil serve também a alguns outros países do continente que enviam dados para os satélites SCD-1 e 2, de seus respectivos territórios, e que são posteriormente recebidos e distribuídos pela estação de Cuiabá. É uma estação de comunicação direta com os satélites, tanto para enviar os telecomandos recebidos do centro de controle quanto para recebimento de dados dos satélites. Estes dados podem ser de carga útil, isto é provém do subsistema que é responsável pela missão do satélite (imagens, dados meteorológicos, etc.) ou podem ser dados sobre a performance do satélite (chamados dados de serviço). Estes últimos são enviados ao centro de controle (ambos os tipos de dados trafegam em solo pela rede de dados mencionada anteriormente) para monitoração das condições do satélite (temperatura, nível de energia, órbita, posição angular e várias outras variáveis de vôo). Em Alcântara há também uma estação do INPE, mas somente para recebimento dos dados, e durante a fase de lançamento. Uma vez que o círculo de visibilidade da estação de Cuiabá para a detectar o satélite, a participação da estação de Alcântara não se faz mais necessária. A estação e Cuiabá recebe atualmente dados dos satélites SCD-1 e 2 e imagens do CBERS-1. Estes são dados de carga útil que, uma vez processados e beneficiados, podem ser enviados diretamente aos clientes. Ou seja, não precisam, necessariamente, passar pelo centro de controle. Atualmente, através da Internet (ref. 4) estes dados estão disponibilizados ao público. O centro de controle está localizado em São José dos Campos. Ele não se comunica diretamente com os satélites (não há nele antenas de solo para tal) mas sim através da estação de Cuiabá. Isto é, os comandos a serem enviados 310 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 aos satélites são enviados pela rede de dados para Cuiabá que é responsável por enviá-los aos satélites. Da mesma forma com os dados de serviço, mas em sentido inverso. Estabelece-se assim um “loop” de controle cujo tempo de resposta dependerá da necessidade e condição de cada operação. O centro de controle de São José dos Campos é responsável por toda operação dos satélites SDC-1 e 2 e por parte da operação do CBERS (por acordo específico firmado com a China). O outro componente do sistema solo é o Centro de Lançamento de Alcântara – CLA. Localizado a cerca de 2º de latitude Sul, no Estado do Maranhão, é o centro de lançamentos de satélite melhor localizado no mundo para o lançamento de satélites geoestacionários (os de maior valor comercial de mercado). Isto porque estes satélites ficam situados em uma órbita de 36.000 km. de altitude no plano do equador, e um lançamento efetuado nesta latitude maximiza o efeito da rotação da Terra, acarretando economia de combustível no lançador (nome técnico para foguetes lançadores de satélites). Esta economia de combustível é, na realidade, economia de massa do lançador, que pode então ser alocada ao satélite por ele lançado. Um satélite geoestacionário de maior massa pode ser lançado de Alcântara por um mesmo tipo de lançador do que em qualquer outro cento de lançamento fixo do planeta. O CLA realiza freqüentemente lançamento de foguetes de sondagem (que não são lançadores de satélite mas sim foguetes de exploração sub-orbitais), tendo um índice de sucesso operacional neste tipo de lançamento próximo a 100%. Os dois primeiros lançamentos do VLS -–Veículo Lançador de Satélites, o lançador desenvolvido no Brasil, foram realizados de lá, estando o centro equipado para lançamentos desta classe com necessidade de poucas adaptações. Toda esta infraestrutura de solo foi construída e operada por brasileiros. O país encontra-se, portanto, com capacidade e experiência nos diversos componentes que fazem um sistema de solo de um programa espacial. Entretanto, para passar a um estágio mais desenvolvido, principalmente nos aspectos relacionados a lançamentos, muitos investimentos serão necessários. O CLA está preparado apenas nos aspectos que dizem respeito à demarcação e desapropriação de terras, para o lançamento de satélites e lançadores de maior porte. Por outro lado, parece ser decisão do governo federal de não investir o que seria necessário para esta transformação. Neste cenário, surgem vários interesses estrangeiros para a utilização do CLA para lançamento de satélites geoestacionários, os mais rentáveis economicamente. Concretamente, há uma proposta norte-americana que será analisada pelo governo brasileiro. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 311 Críticos a esta proposta levantam o argumento de utilização de uma área de uso da Aeronáutica por um outro país, e também que a proposta inclui restrições ao acesso à tecnologia que seria trazida e lançada de lá. Se as restrições existem, elas provavelmente são oriundas de recentes episódios de acusação de espionagem de tecnologia feita pelos EUA à China, em situação semelhante, onde satélites americanos foram levados à China para lançamentos pelo foguetes Longa Marcha chineses. Esta acusação, que resultou na proibição pelo congresso norte-americano de lançamento de satélites americanos por lançadores chineses, entretanto, provocou forte reação da indústria espacial americana, não se sabendo até quando ela poderá ser sustentada. Caberá ao Brasil, neste contexto, saber aproveitar inteligentemente estas propostas e os recursos daí advindos, decidindo de forma a abrir novas perspectivas para o Programa Espacial Brasileiro. 2.3 – Segmento Espacial O INPE é o responsável pelo desenvolvimento dos satélites nacionais. Em 9 de Fevereiro de 1993 foi lançado o primeiro satélite projetado e fabricado no Brasil. Sua vida útil nominal seria de 1 ano. Este ano, como indicador do seu sucesso, o SCD-1 completou 7 anos de operação ininterrupta, representando a tecnologia e engenharia nacionais no espaço. É muito importante que se diga que EUA, URSS e outros países do primeiro mundo tiveram insucessos com a operação de seus primeiros satélites. O SCD-1 é um satélite de pequeno porte (100 kg.), na forma de um prisma octogonal com 1 m. de diâmetro externo e 1,10 m. de altura, aproximadamente. Sua missão é coletar dados obtidos por pequenas plataformas de coleta de dados (PCD´s), espalhadas pelo Brasil e América do sul (há hoje cerca de 200 destas plataformas) e retransmiti-los para uma estação central (em Cuiabá), onde são então disponibilizados na Internet. Cada uma destas plataformas possui capacidade de coleta de determinados dados (temperatura, velocidade dos ventos, índice de monóxido de carbono, incidência solar, índice pluviométrico, etc.), conforme sua localização e área de interesse. Assim, é possível conhecer-se estas informações aproximadamente duas horas depois da passagem do satélite, com um simples acesso ao site do INPE (www.inpe.br), através do link “produtos”. Em novembro de 1998 foi lançado o segundo satélite da série, o SCD-2, com um maior índice de componentes nacionais e com alguns melhoramentos de projeto. Da mesma forma o satélite encontra-se em operação até hoje. Para o lançamento destes satélites foi utilizado o lançador americano Pégasus. 312 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Em Novembro de 1999, o Brasil lançou, em parceria com a China, o CBERS-1. É um satélite de sensoriamento remoto, de 1,4 ton., e com uma dimensão de mais de 8 m. longitudinalmente (até a extremidade do painel solar). Trata-se portanto de uma outra escala de satélite e complexidade técnica. O Brasil arcou com 30% do custo, com um desenvolvimento que procurou corresponder a este valor (US$ 100 milhões), com efetiva participação da indústria nacional, por exemplo Digicon e Elebra Defesa. Até hoje o Brasil é o único país do mundo que possui um projeto conjunto com a China na área espacial, e um dos oito que detém a tecnologia de sensoriamento remoto por satélites (os outros são EUA, Rússia, França, Índia, Israel, Canadá e agora a China). O projeto iniciou-se em 1989, passou por várias crises financeiras por parte do Brasil mas foi lançado com sucesso e está em operação, embora algumas partes de responsabilidade nacional não estejam tendo desempenho satisfatório. O CBERS-1 foi lançado na China, por um lançador chinês, o Longa marcha IV. Nem tudo foi sucesso entretanto. Lançado juntamente com o CBERS, no mesmo lançador, de uma forma que se denomina “de carona”, foi colocado como carga secundária um pequeno satélite científico (50 kg.) feito no INPE com um tipo de gerenciamento que visa o baixo custo (US$ 5 milhões) e pouca burocracia para o seu desenvolvimento. Este satélite, denominado SACI nunca chegou a se comunicar com a sua estação terrena, uma estação pequena localizada em Natal, RN, por razões que não foram identificadas, e o satélite foi dado como perdido. No seguimento espacial o CTA, através do Instituto de Aeronáutica e Espaço – IAE, é o responsável pelo desenvolvimento do lançador nacional, o Veículo Lançador de Satélites – VLS. Dois lançamentos do VLS foram realizados e ambos fracassaram. Isto entretanto não deve ser tomado como insucesso, em virtude da altíssima complexidade de um lançador, mesmo quando compara a um satélite, e da necessidade que se façam vôos preliminares para a validação do veículo antes que este possa ser utilizado comercialmente. Estes dois primeiros vôos tiveram primariamente este objetivo. A França, por exemplo, perdeu o primeiro lançamento do seu Ariane V com um conjunto de quatro satélites científicos, sem seguro, no valor de US$ 500 milhões. O Ariane V somente foi bem sucedido em seu terceiro lançamento, e isto com um país com vasta experiência espacial e um projeto seqüencial Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 313 ao Ariane IV. A URSS somente considerava validado um novo lançador após nove vôos experimentais. O VLS-1 foi lançado, do Centro de Lançamento de Alcântara – CLA, em Novembro de 97 com um modelo de qualificação do SDC-2 (versão preliminar do modelo de vôo) e apresentou problemas na ignição de um dos motores do seu primeiro estágio (o VLS possui quatro estágios), tendo que ser destruído após poucos segundos de vôo por perda de controle de navegação. O VLS-2 foi também lançado do CLA em Dezembro de 1999, com uma segunda versão do satélite SACI, feito mais rapidamente ainda do que a primeira, e também teve que ser destruído após pouco mais de um minuto de vôo por uma falha no segundo estágio. Ambas as falhas estão identificadas. Como se vê, o INPE possui experiência no desenvolvimento de 6 satélites (contando-se aqueles utilizados para o VLS-1 e 2), com a conseqüente utilização de estações e centro de controle, incluindo um em cooperação internacional com um dos países mais complexos para tal, em virtude das diferenças idiomáticas, geográficas e culturais. O CTA/IAE possui experiência de dois lançamentos com o VLS, além dos anteriores foguetes de sondagem Sonda III, VS-30 e VS-40. O Centro de Lançamento de Alcântara também já realizou estes lançamentos. Pode-se ver assim, que o Brasil está próximo de dominar todas as fases e componentes do desenvolvimento espacial: satélite, lançador, centro de lançamento, estações e centro de controle. Pouquíssimos países no mundo podem ostenta isto (EUA, Rússia, China, Japão, França, Índia, Israel e Ucrânia). É importante que o desenvolvimento do VLS continue, mesmo que este não seja um projeto moderno de lançador e que não exista viabilidade econômica para ele no mercado de lançamento de satélites, hoje muito mais competitivo e otimizado através de empresas privadas. O “know how” já adquirido e que ainda se poderá adquirir até o seu completo sucesso em vôo, e os vários outros benefícios estratégicos indiretos que o país poderá tirar daí justificam, e tornam mesmo imperioso, para não perder o que já foi feito, que o projeto vá até a sua validação em vôo. Para isto é fundamental que, pelo menos, seja garantida uma continuidade gerencial e operacional ao projeto. O projeto também se justifica por si só, não sendo necessário que os próximos vôos experimentais levem satélites desenvolvidos especificamente para eles. Isto só acrescenta riscos e custos inúteis aos futuros vôos experimentais. 314 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 CAPÍTULO III ESTÁGIO ATUAL 3.1 – Infra-estrutura e Recursos Como pode ser visto anteriormente, o Brasil já possui uma infraestrutura capaz de permitir que o país possa amplia seus passos no desenvolvimento espacial. O que foi alcançado até agora foi também devido a esta infraestrutura que vai desde o Centro de Lançamento de Alcântara até os institutos de desenvolvimento como o INPE e o IAE, as estações terrenas e centros de controle. Sem dúvida, neste quadro, o elemento mais importante é o Laboratório de Integração e Testes – LIT, do INPE. Lá são integrados e testados os satélites nacionais, sendo o único existente no hemisfério Sul. Na época da sua inauguração, ao fim da década de 80, devido aos equipamentos existentes, era o prédio mais caro existente no país. Além dos satélites desenvolvidos no país, foi lá testado parcialmente o satélite Brasilsat II, comprado pela Embratel à empresa americana Hughes. Na época do seu projeto, a idéia era exatamente esta, ou seja que servisse em um horizonte de tempo muito além daquele onde os satélites da série SCD estavam localizados. Portanto, o país deve, a esta visão a sua capacidade atual de pretender projetos maiores e mais sofisticados na área espacial. Entretanto, o valor mais alto nesta infraestrutura e recurso de que o país dispõe são seus recursos humanos. Trata-se de pessoal altamente qualificado, com formação nas melhores universidades do país, muitos com complementação específica de mestrado e doutorado no exterior. Com os projetos já executados estas equipes possuem uma prática já de vários anos de “mão na massa”, saindo de um aspecto meramente teórico para uma massa crítica capaz de avançar rapidamente em projetos mais complexos. Muitos tiveram e têm intercâmbio e treinamento em empresas e instituições como Hughes Aerospace (USA), Spar (Canadá), Matra (França), Agência Espacial Européia (ESA), Instituto de Pesquisas Espaciais da Alemanha (DLR) e Centro Nacional de Estudos Espaciais (França). São profissionais respeitados nacional e internacionalmente. O INPE possui o único curso de engenharia espacial do país com formação de mestres e doutores. Muitos destes profissionais tiveram esta formação única dada por pioneiros que acreditavam no futuro desta atividade no Brasil e no aproveitamento desta mão de obra altamente qualificada. Infelizmente agora as restrições de contratação no serviço público são paquidérmicas, fazendo com que somente a porta de saída esteja aberta e Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 315 impedindo a renovação dos quadros profissionais. Ainda assim, a vontade e motivação destes profissionais, além da sua excepcional formação e experiência, tem levado adiante projetos até a sua conclusão, a despeito de dificuldades e carências que, de outro modo, teriam sido impossíveis de serem superadas. Os volumes de recursos financeiros alocados ao Programa Espacial Brasileiro nas duas últimas décadas está longe de ser desprezível, como o que já foi dito aqui o demonstra, principalmente quando se conhece as enormes carências sociais do nosso país. Neste período, os presidentes da República tiveram, inegavelmente, a sensibilidade para valorizar o caráter estratégico da atividade para o nosso desenvolvimento científico e tecnológico. Isto, aliado aos recursos humanos de excelente qualidade foram capazes de colocar o país na atual situação em que se encontra na área espacial. A Tabela 1 abaixo mostra os dispêndios governamentais no período de 96 a 98. Em 1999 e 2000 pode-se dizer que os valores foram próximos aos mostrados na Tabela 1. (R$ mil) FONTE ANO MCT AEB MAer Outras TOTAL 1996 76.907 30.988 39.320 5.135 152.350 1997 90.540 33.916 43.206 4.147 171.809 1998 96.390 42340 52.831 5.694 197.255 Tabela 1 – Gastos com o Programa Espacial Brasileiro 96-98 (Ref. 1) Se estes valores são muito baixos quando comparados com os investimentos feitos por outros países (EUA, França, Japão, Índia e China, por exemplo), eles não ficam muito atrás de outros investidos por países como Canadá e Suécia em seus respectivos programas espaciais. Estes valores também não são baixos quando considera-se que foram, até agora, investimentos feitos em desenvolvimento tecnológico, ainda sem um retorno do produto direto gerado por estes projetos, o que não é tradição em nosso país. Um aspecto da infraestrutura que terá que ser ampliada no país é o relativo 316 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 às empresas privadas. Praticamente todo o esforço de desenvolvimento tem sido feito por recursos públicos. O parque industrial nacional, com algumas exceções como aquelas que atuaram no desenvolvimento do CBERS-1, não parece estar interessado na área espacial. Isto parece ser um erro no que se refere ao desenvolvimento tecnológico destas próprias empresas. Compreende-se que dificilmente as atividades espaciais no Brasil serão suficientes para viabilizar empresas que se dediquem exclusivamente a este ramo de atividades (exceção feita a pequenas e micro empresas de alto conteúdo tecnológico). Ainda assim, empresas nacionais eletrônicas, aeronáuticas, de defesa, software e outras, podem se beneficiar em muito por participarem como fornecedores do Programa Espacial Brasileiro seja adquirindo tecnologia com sócios estrangeiros, seja elevando os seus padrões de qualidade para se capacitar a este tipo de fornecimento. No primeiro caso algumas tentativas tem sido feitas mas que esbarram na burocracia oficial para o fornecimento através de licitações. 3.2 – Projetos em Andamento Como dito anteriormente, o Brasil possui hoje três satélites fabricados no país em operação: o SCD-1, o SCD-2 e o CBERS. Os três continuam a enviar dados para as estações existentes no país regularmente (no caso do CBERS-1 estes dados são imagens do território nacional). Atualmente inicia-se no Laboratório de Integração e Testes – LIT do INPE, a integração do modelo de vôo do CBERS-2. Este satélite, ainda com a participação de 30% do Brasil, tem seu lançamento previsto para Outubro de 2001, de território chinês. Cinqüenta técnicos chineses participarão com técnicos brasileiros desta integração. Estes técnicos brasileiros foram previamente treinados na China quando da integração do CBERS-1. Hoje o Brasil negocia com a China a execução conjunta de mais dois satélites de sensoriamento remoto (CBERS 3 e 4), aumentando sua participação para 50% em cada um deles. Isto mostra o sucesso do Programa CBERS do ponto de vista diplomático, e com desdobramentos que já deixam o campo da pesquisa para a área operacional, inclusive com a constituição de uma empresa sino-brasileira para a comercialização mundial das imagens enviadas por estes satélites, competindo assim com outros programas com o Landsat (EUA), Spot (França) e IRSS (Índia). Outros dois satélites em parcerias internacionais estão em andamento. Um satélite de sensoriamento remoto com a Argentina e um satélite científico Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 317 com a França. O primeiro encontra-se ainda em fase A (especificação e concepção) e destina-se a obter imagens para a agricultura e recursos hídricos, principalmente, para os dois países. O segundo, em fase mais adiantada de desenvolvimento, levará cinco experimentos científicos franceses e cinco brasileiros. Trata-se de um satélite de pequeno porte (100 kg.) onde cada país arca com 50% dos seus custos. Estes dois satélites não têm tido um desenvolvimento em um ritmo satisfatório seja por indefinições de prioridades seja por escassez de recursos para atender a todas as demandas de projetos em desenvolvimento. Assim como acontece com o Programa CBERS, estes dois projetos mostram que muitas vezes projetos na área espacial podem ser utilizados para objetivos diplomáticos muito embora eles não contribuam significativamente para o desenvolvimento científico-tecnológico nacional no setor. Ou, o que é pior, expõe compromissos diplomáticos assumidos, por dificuldades de realização devido à falta de recursos e planejamento. Isto demonstra a necessidade de uma coordenação mais efetiva para o Programa Espacial Brasileiro. Entretanto, a prioridade para o Programa Espacial Brasileiro no momento é a participação na Estação Espacial Internacional (EEI). Este é o maior projeto já realizado pela humanidade. São 16 países que dele participam através de cinco membros sócios (EUA, Japão, Rússia, Canadá e Agência Espacial Européia – ESA, compreendendo Alemanha, França, Itália, Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Espanha, Suíça e Inglaterra) e dois (Itália e Brasil) chamados participantes. O Brasil o faz através de um convite específico dos EUA, como se fosse um subcontratado para o desenvolvimento de algumas partes específicas da Estação. Estes valores são pequenos (120 milhões de dólares aproximadamente) quando comparados com o custo total da Estação (cerca de 52 bilhões de dólares). Ainda assim, a responsabilidade brasileira é muito grande pois está respaldada pelos EUA perante os demais participantes. Ou seja, uma falha do Brasil em atender estes fornecimentos dentro dos prazos estipulados e coordenados com outros desenvolvimentos exporá o país perante os EUA para outras partições conjuntas, e este país perante os outros parceiros internacionais. E recentemente o Brasil já esteve próximo de ser colocado fora desta parceria por problemas ligados à disponibilidade de recursos, principalmente aqueles causados pelos atrasos no orçamento da União. Este convite feito pelos EUA possui um cunho político pela criação da Agência Espacial Brasileira, civil, que responder à pressão da comunidade 318 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 espacial internacional, principalmente dos EUA. Entretanto revela também que as atividades espaciais brasileiras já se encontram em um nível que justifica e merece esta confiança, principalmente a técnica. Deve ser dito também que embora pequeno em valor, os direitos adquiridos por esta participação, através do uso da Estação Espacial Internacional para experimentos brasileiros, possui uma escala muito maior do que os valores utilizados até aqui em projetos nacionais. Outro ponto importante é que um dos componentes a serem desenvolvidos pelo Brasil é o único capaz de expor experimentos da Estação externamente ao ambiente espacial. Trata-se assim de um componente muito importante e a ser utilizado por vários dos parceiros da Estação, por exemplo pela Agência Espacial Européia, cujo um dos principais experimentos já previstos fará uso deste componente. A Estação Espacial Internacional (Ref. 5) voará a uma altitude aproximada de 350 km, sendo visível a olho nu como uma estrela cadente dando uma órbita em torno da Terra a cada 1 hora e 20 minutos aproximadamente. Ela está sendo montada em partes, sendo que três destas partes já estão montadas e em órbita, através de três vôos específicos do Shuttle para tal. Apenas com estes três módulos iniciais, a Estação já será capaz de realizar seus primeiros experimentos a partir de Janeiro de 2001. A Estação deverá estar completa em 2005, mas muito antes disto, através da sua montagem modular no espaço, já possuirá capacidade para a realização de experimentos em diversas áreas científicas conforme seus módulos forem sendo montados. Quando completa a Estação terá 120 metros de comprimento por 90 metros de largura, massa de 500 toneladas, seis módulos de laboratórios, sete membros de tripulação, e no seu interior temperatura e pressão serão similares à atmosfera da Terra (embora com atração nula da força de gravidade). Cientificamente sua grande justificativa é possibilitar a realização de experimentos em um ambiente exatamente onde a força da gravidade não é relevante. Entretanto, tanto no Brasil como nos EUA muitos cientistas opuseram-se a ela devido a seus custos, com o argumento eles não terão retorno científico correspondente. A decisão, entretanto, tanto aqui quanto lá já está tomada, e só o futuro dirá quem tinha razão. Um outro fator entretanto não deve ser esquecido, que é a soma de esforços e recursos internacionais para a realização deste projeto, como nunca houve na história da humanidade. Se bem sucedida, a participação brasileira abrirá para o país outras oportunidades espaciais com esta comunidade internacional. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 319 Do ponto de vista científico, a participação brasileira na EEI abre aos cientistas nacionais oportunidades em escala nem de perto antes experimentada para a pesquisa espacial em ambiente de microgravidade. Os satélites científicos nacionais, lançados e em projeto, oferecem a oportunidade de cerca de 20 kg. de experimentos em vôo durante um ano. A soma de todos os espaços disponibilizados na EEI para serem usados por experimentos nacionais chega a 500 kg., sendo a vida útil nominal da EEI de 10 anos! Há um contrato específico entre a NASA e a Agência Espacial Brasileiro que regulamenta o assunto, e estipula que estes direitos são adquiridos à medida que as partes da Estação cujo desenvolvimento está a cargo do Brasil forem sendo validadas em vôo. Serão experimentos em microbiologia, engenharia, metalurgia, agricultura, física, ciência dos materiais e em diversas outras áreas, tão amplas quanto maior for a imaginação da comunidade científica e tecnologia nacional a propor estes experimentos. O outro grande projeto do Programa Espacial Brasileiro hoje continua sendo o desenvolvimento do VLS – Veículo Lançador de Satélites nacional. O projeto deste lançador teve início em 1979 quando do lançamento do Programa MECB – Missão Espacial Completa Brasileira. Evidentemente trata-se do componente tecnologicamente mais complexo da MECB e várias podem ser as razões atribuídas pelo atraso de sua conclusão: falta de verbas, descontinuidade administrativa e o boicote tecnológico internacional para a venda de componentes devido ao caráter militar do Instituto (IAE/CTA) que o desenvolve, estão certamente entre as principais. Mas várias outras também poderiam ser nomeadas. O projeto hoje é técnica e economicamente ultrapassado. Comercialmente, muito provavelmente, não haverá mercado para o VLS, mas esta não é sua principal justificava, mas sim o “know how” que o seu desenvolvimento trouxe para a engenharia espacial brasileira. Dois lançamentos experimentais já foram realizados em 1997 e em 1999. Ambos falharam por motivos já diagnosticados. A Aeronáutica estima que serão necessários cinco vôos experimentais para a validação do lançador, o que pode ser considerada uma estimativa otimista. Por exemplo, a antiga União Soviética, com toda sua experiência na área, só considerava um novo lançador validado, após 9 vôos. O Ariane V, subseqüente francês/ESA ao Ariane IV, falhou nos dois primeiros lançamentos, sendo que no inaugural explodiu com uma carga de quatro satélites científicos, sem seguros, no valor de US$ 500 milhões. A opinião pública nacional não compreende isto. Certamente em muito contribuiu a decisão de se Ter nestes dois primeiros vôos experimentais 320 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 do VLS satélites nacionais que foram desenvolvidos para serem utilizados no lançamento. Isto não era necessário, pois o que se buscava validar era o lançador e não o produto gerado pela operação destes satélites. Espera-se que nos próximos lançamentos experimentais este erro tático não se repita. O Plano Plurianual 2000-2003 (ref. 3) não contempla, praticamente, recursos do Ministério da Aeronáutica para a continuação do desenvolvimento do VLS. Estes recursos, embora não de alta monta, estão previstos no PPA oriundos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A Aeronáutica não parece disposta a continuar a investir no desenvolvimento do VLS. E podese dizer que, ela já fez a sua parte, conduzindo o projeto até um ponto bem próximo do seu sucesso. É oportuno agora que ele seja aperfeiçoado, modernizado e tenha sua viabilidade de prestação de serviços de lançamento de satélites aumentada junto a comunidade internacional, como constante dos planos do próprio IAE. Para que o Programa Espacial Brasileiro organizese de fato, a AEB terá que cumprir o seu papel de entidade coordenadora de suas atividades e projetos. O desenvolvimento do VLS a partir daqui pode ser uma oportunidade de que isto venha a ocorrer. CAPÍTULO IV POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS: SUGESTÕES Nos últimos anos, como visto na Tabela 1, O Programa Espacial Brasileiro tem consumido cerca de R$ 200 milhões por ano, incluindo gastos com pessoal. Estes números tendem a se manter nos próximos quatro anos, considerando-se o PPA (ref. 3), e são números significativos para se manter o Programa em um nível crescente de geração de tecnologia e desafios. A partir daí estes valores podem aumentar dependendo dos resultados alcançados, de parcerias internacionais e dos projetos científicos internacionais de exploração espacial. Aliados a uma importante infraestrutura já construída de instalações e recursos humanos, estes recursos podem ser potencializados nos seus resultados. A base tecnológica para saltos maiores já está pronta. O Brasil possui hoje satélites aqui desenvolvidos, um centro de lançamento em operação, infraestrutura de solo e, em fase final, o desenvolvimento de um lançador nacional. Sobre esta base, os recursos renderão mais. O país tem condições de se lançar em projetos espaciais mais desafiadores do ponto de vista de geração de novos conhecimentos científicos e tecnológicos. Satélites que já foram feitos devem Ter novas versões não mais caracterizadas como projetos Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 321 de pesquisa e desenvolvimento na área, mas sim como projetos operacionais, e como tal devem ser financiados. Infelizmente, o PNAE (ref.1) não leva em consideração estas questões, não sendo, de fato, um plano para o desenvolvimento do setor espacial brasileiro, sendo muito mais um quadro, ou melhor retrato, dos projetos em andamento ou em discussão. A principal política para o setor, do ponto de vista de desenvolvimento científico e tecnológico, deve ser a definição de projetos, viáveis dentro na nossa experiência e orçamento, capazes de avançar o conhecimento científico e tecnológico nacionais. No primeiro caso, a estratégia é participar de missões científicas internacionais. No caso tecnológico sendo capaz de repassar para a indústria nacional novos conceitos de engenharia e qualidade. Existirão projetos que poderão combinar estas duas estratégias. Como um exemplo de missão científica que certamente avançaria nossa ciência está a participação em missões de exploração do espaço interplanetário (fora da órbita da Terra). Estas missões serão cada vez mais freqüentes pela comunidade internacional, seus custos reduzem-se drasticamente, dentro no novo lema da NASA e seu Administrador, Dan Goldin, “better, cheaper and faster”, e parceiros são buscados. O Brasil já possui uma tecnologia que permite pensar em participar neste ripo de missão, que também serviria como um grande avanço científico e tecnológico para o país. Além disso poderia abrir portas para futuras participações em outras missões espaciais exploratórias. Ainda no campo eminentemente científico (embora estes experimentos possam ser também de cunho tecnológico, em engenharia) deve ser priorizada a oportunidade que a comunicada nacional tem de colocar seus experimentos na Estação Espacial Internacional. São 500 kg, durante 10 anos, nas mais diversas áreas do conhecimento, como dito antes. Este é um direito adquirido com a participação na construção da EEI. Caso ele não seja preenchido o país passará por uma situação constrangedora, para dizer o mínimo. Ou seja, Ter direito a uma passagem e não usufruí-la por não Ter competência para se preparar para a viagem. Isto já ocorreu com outros países, em outros projetos espaciais, e a repercussão junto à comunidade internacional foi a pior possível. Urge assim que o país se mobilize, divulgue e, principalmente, garanta os meios para cobrir os custos destes experimentos nacionais, sem os quais os pesquisadores não se 322 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 moverão. Estes direitos começarão a vigorar a partir de 2005, um ano após o vôo do primeiro equipamento nacional entregue para a EEI, mas é necessário que desde já se comece a desenvolver estes experimentos. Para justificar sua colocação na EEI eles serão experimentos sem outros meios de execução e, portanto, dispendiosos, complexos e inovadores. O processo de seleção terá que ser rigoroso de modo a garantir que a ciência nacional avance de fato e não apenas preencha esta disponibilidade. Dentro da política de desenvolvimento industrial, em seu senso tecnológico, e seguindo para isto uma estratégia de desenvolver projetos que resultem em ganhos não somente de desenvolvimento tecnológico, mas também de utilização operacional e que possibilitem o aproveitamento pela indústria dos requisitos de qualidade impostos aos projetos espaciais, dois exemplos práticos podem ser citados. Primeiramente um satélite de comunicações para utilização de dados, voz e imagens para o setor governamental brasileiro. Este satélite, na realidade, já existe, é o Brasilsat, da Embratel. Entretanto, com a recente privatização desta empresa, e seu sócio majoritário sendo a MCI americana, maior acionista da Sears Roebuck Co. passamos a viver uma situação esdrúxula. Ou seja, todos os dados, classificados ou não do setor público nacional, forças armadas, agências de inteligência, etc., utilizam um satélite operado majoritariamente por uma empresa americana! E não se trata aqui apenas de sigilo destes dados, pois há meios de obtê-los mesmo sem operar o satélite, mas sim da própria operação do satélite. Cedo ou tarde haverá a conscientização desta necessidade, ou seja de um satélite para uso pelo governo brasileiro. Por incrível que possa parecer, as autoridades competentes (ministérios das Comunicações e da Defesa, e comandos do Exército e da Aeronáutica), parecem ainda não terem percebido isto, ou apenas não querem alardear esta fragilidade do nosso sistema de comunicações, como se isto fosse possível. Agrava-se o fato pelo SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia estar aumentando em seu projeto de participação do Brasilsat em sua rede de comunicações! O desenvolvimento de um satélite de comunicações, pelo seu porte e complexidade tecnológica seria um salto tecnológico fundamental para o Programa Espacial Brasileiro. Obviamente entenda-se que para ser um satélite operacional ele teria que ser desenvolvido não experimentalmente mas sim como um produto operacional, com alta taxa de confiabilidade. Isto por si só é um obstáculo muito grande ao seu desenvolvimento inteiramente em nosso país, em virtude de nossas limitações tecnológicas. Entretanto, não Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 323 deve ser considerado um obstáculo intransponível e sim utilizar parcerias para ultrapassá-lo, à semelhança do que foi feito com o Programa CBERS. Da mesma forma, o SIVAM estará utilizando imagens de satélites de sensoriamento remoto francês (SPOT) e americano (LANDSAT), entre outros internacionais (RADARSAT, por exemplo). Da mesma maneira como no caso da Embratel/MCI para o caso das telecomunicações, estes satélites, além de serem operados por empresas estrangeiras, não imbuídas do mesmo propósito do SIVAM(!) foram desenvolvidos para cobertura global, ou seja para cobertura de todo o globo terrestre, e suas órbitas (polares – praticamente perpendiculares ao plano da Linha do Equador) não são as ideais para a observação da Amazônia. Há então necessidade que o SIVAM utiliza imagens de um satélite nacional com órbita equatorial de baixa inclinação (o CBERS também possui órbita polar). Na realidade este satélite está previsto pela AEB e deverá ser priorizado, não só pelo motivo exposto anteriormente mas também pelo desenvolvimento tecnológico que trará ao Programa Espacial Brasileiro. Diferentemente do satélite de comunicações, o Brasil, após o lançamento do CBERS, já possui uma experiência bem sucedida no desenvolvimento de satélites de sensoriamento remoto. A necessidade de órbita equatorial impõe dificuldades adicionais ao projeto mas que se enquadram na categoria “desafio a ser vencido” pelo Programa. Espera-se que brevemente, o Brasil estará iniciando este desenvolvimento que deve ser priorizado. Por outro lado, o país possui hoje em desenvolvimento outros projetos que drenam seus recursos da área espacial sem necessariamente apresentarem ganhos científicos e tecnológicos como os mencionados anteriormente. Muitas vezes estes projetos servem a propósitos de política de relações exteriores que têm, obviamente, o seu papel, mas que não deveriam serem considerados como de ganhos científicos/tecnológicos quando se pondera o valor investido neles. São exemplos o satélite científico franco brasileiro e o satélite em parceria com a Argentina, ambos em desenvolvimento, e os terceiro e quarto satélites do Programa CBERS, em negociação. Simplesmente não há recursos para estes investimentos, se se quiser realmente avançar o país científica e tecnologicamente na área espacial. Com relação ao lançador, o país já tem hoje um tecnologia desenvolvida no setor, embora ainda não tenha tido um lançamento de sucesso. Esta tecnologia vem sendo desenvolvida pelo CTA/IAE há décadas, começando 324 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 com os foguetes sub-orbitais de sondagem (Sonda III, VS-30 e VS-40), que são estágios preliminares no desenvolvimento do VLS e que são atualmente vendidos para os países como a Alemanha, para seus experimentos científicos sub-orbitais. Estes foguetes possuem uma história de mais de 100 lançamentos na Barreira do Inferno e, mais atualmente, no Centro de Lançamento de Alcântara, com uma taxa de sucesso superior a 90%. O país está muito próximo de Ter o seu lançador qualificado. Entretanto a tecnologia utilizada (combustível sólido nos quatro estágios do lançador) é ultrapassada e não permitirá a sua utilização comercial. A posição da Aeronáutica, não investindo mais recursos além do que foi feito até aqui, abre a oportunidade que a AEB passe a coordenar, de fato, o desenvolvimento do VLS, aperfeiçoando-o com uma tecnologia mais moderna com a utilização de combustíveis líquidos, para maior guiagem e precisão de injeção em órbita dos satélites por ele levados. Neste caso, poder-se-ia tentar a participação da iniciativa privada nos investimentos necessários ao desenvolvimento deste desdobramento do projeto. CONCLUSÕES 1 – A Agência Espacial Brasileira deve exercer, de fato, o seu papel de coordenar as atividades espaciais Brasileiras, sob o risco de que qualquer planejamento por ela feito para a área não terá desdobramento. 2 – O Programa Espacial Brasileiro deverá concentrar seus recursos de curto prazo na finalização do CBERS 2 e na participação brasileira na EEI. 3 – Os recursos para os experimentos brasileiros na EEI deverão ser garantidos desde já. 4 – Como próximos projetos o Brasil deverá considerar uma missão com órbita fora da Terra, um satélite de comunicações para utilização pelo setor público nacional e um satélite de sensoriamento remoto para observação da Amazônia. 5 – O desenvolvimento do lançador nacional deverá ser aperfeiçoado com a utilização de motores a combustível líquido. 6 – Deverão ser estimuladas as parceria internacionais e a participação do capital privado. *Engenheiro Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 325 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 – PNAE – Programa Nacional de Atividades Espaciais 1998 – 2007 – Agência Espacial Brasileira – AEB, 1998 2 – Caminhos para o Espaço – 30 anos de INPE, Editora Contexto, 1991 3 – Plano Plurianual – PPA 2000 – 2003 4 – www.inpe.br 5 – SOUZA de, Petrônio Noronha: A Participação Brasileira na Estação Espacial Internacional – ISS; Petrônio N. de Souza; 1º Workshop Brasileiro sobre Microgravidade, São José dos Campos; Maio, 99. 2000 ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA – Av. João Luiz Alves, s/nº22291-000 – Fortaleza de São João, Urca, Rio de Janeiro, RJ 326 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 327 328 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Francisco Clementino San Thiago Dantas* 1. INTRODUÇÃO O Poder Nacional pode ser definido como sendo: A soma dos meios de que dispõe o Estado Nacional para assegurar, na ordem internacional, o preenchimento de seus fins. O preenchimento dos fins de um Estado não depende, senão em parte, dos atos de outros Estados, ou do comportamento que tenha, em relação a eles, o próprio Estado interessado. Pelo contrário, é através de atos internos de governo, em que são partes o Estado e seus súditos, que aqueles fins são precipuamente alcançados, salvo em circunstâncias históricas excepcionais. Quando se avantaja a influência do fator internacional Não há, porém, Estado cujos fins possam ser alcançados sem a consideração da influência atual ou eventual dos fatores externos. Esse isolamento absoluto é impossível, mesmo teoricamente, já que a existência de um Estado Nacional pressupõe a de outros Estados Nacionais, cujas esferas de interesse e de influência, ou coincidem convergentemente, ou se desenvolvem paralelamente com a do Estado considerado. Na noção de Poder Nacional não fazemos entrar, por uma questão de métodos, todos os meios de que o Estado dispõe para atingir aos seus fins. Ficam excluídos os meios de ação interna, e incluídos apenas os que se empregam na ordem externa ou internacional, isto é, os que visam a exercer uma ação positiva ou negativa na esfera de determinações de outro Estado. A noção de Poder Nacional está, pois, intimamente ligada à técnica das relações exteriores de um Estado. Isso não significa que instrumentos do Poder nacional operem exclusivamente no campo da ação diplomática ou militar. Eles podem, pelo contrário, operar no campo da administração interna, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 329 da vida econômica ou civil do país, integrando, não obstante, o Poder Nacional, pelas conseqüências mediatas das relações entre os Estados. Os meios cuja soma constitui o Poder Nacional, são, portanto, meio de ação interna ou de ação externa, conforme se exercem imediatamente sobre a vida interna do Estado ou sobre as suas relações com outros Estados. Num caso e outro, o que os relaciona com o Poder Nacional são as suas repercussões exteriores, mediatas no primeiro caso e imediatas no segundo; 2. INTERESSES DO ESTADO Antes de estudarmos o Poder Nacional e os instrumentos de que se compõe, devemos analisar a dependência, em que um Estado pode estar, de fatores externos, para a realização de seus próprios fins. É essa dependência que determina, quando permanente ou pelo menos prolongada, os objetivos nacionais permanentes, ou sejam, os interesses externos, cuja proteção o Estado visa conseguir, mediante a acumulação e o emprego do seu Poder Nacional. Os interesses externos de uma Estado, isto é, aqueles que podem levá-lo a intervenção fora de seu campo interno de ação e indispensáveis ao preenchimento de seus fins, podem ser grupados em três grandes classes. GRUPO I – Traduzidos na necessidade em que se veja de alcançar determinação sobre áreas ou sobre povos, que se encontram fora de sua própria jurisdição, e, por conseguinte, na jurisdição de outro Estado. Neste grupo de interesses contam-se as reivindicações nacionais que importem em anexação de territórios, contíguos ou não, em modificações de fronteiras, repatriamento de minorias nacionais, em livre utilização de recursos naturais encontrados fora de seu território, em importação compulsória de mão-de-obra (tráfico de escravos) em domínio de mercados, em imposição de suas próprias ordens jurídicas no exterior (que envolve todas essas reivindicações de estabelecimento de tribunais consulares, de aplicação extraterritorial de direito nacional ou as famosas capitulações do Oriente). A maioria dessas formas de influência, quando se exercem como ações permanentes, configuram o imperialismo, cujas formas tecnicamente mais perfeitas se verificaram no Oriente durante o século XIX. GRUPO II – Os que visam à preservação da própria esfera de determinações e que importam em ações e influências contrárias à intervenção de outro Estado. É o interesse contrário ao anterior. Se há Estados que pretendem sujeitar à 330 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 sua determinação áreas ou povos sob a jurisdição de outro Estado, há inversamente Estados que se tem de premunir contra aquela sujeição, efetiva ou eventual, e que neste sentido orientam a formação e o uso de seu poder nacional. Neste grupo se enquadram todos os interesses referentes à prevenção de guerras, à defesa do território e de suas zonas de segurança contra agressões militares, à defesa contra infiltrações políticas e culturais, visando o domínio do centro de decisões políticas, à defesa de riquezas naturais e de mercados, enfim a defesa da própria soberania contra todas as formas externas de infiltração. As reivindicações antiimperialistas, que motivam a política internacional de todos os países, prendem-se todas elas a esse tipo de interesse. Os Estados, em que predominam os interesses nacionais externos do Grupo I, são considerados, em geral, Estados potencialmente agressores, não no sentido de que eles aspirem à guerra, mas no de que eles tem uma tendência permanente para obterem determinação na esfera de interesses internos de outros Estados. Os Estados, em que predominam os interesses externos do Grupo II, são por inversas razões considerados Estados potencialmente agredidos. A linha política exterior e por conseguinte a formação do próprio poder nacional variam essencialmente de um Estado potencialmente agredido para um Estado potencialmente agressor. GRUPO III – Neste grupo, finalmente, se enquadram os interesses externos correspondentes à necessidade que determinados Estados tem de obter cooperação voluntária de outros Estados, para o preenchimento de seus fins. Se a cooperação é obtida por meios coercitivos atuais (via efetiva) ou potenciais (via compulsiva) a ação do Estado interessado toma a forma de imperialismo. A obtenção de cooperação compulsória se enquadra nos interesses do Grupo I. Mas a aspiração à atividade não compulsória existe com características próprias, que escapam ao Grupo I, e tanto pode ocorrer no Estado que detém maior poder nacional como no que detém poder menor. A obtenção de cooperação compulsória, se enquadra nos interesses do Grupo I. Trata-se no Grupo III da obtenção de uma cooperação voluntária através de entendimentos com um Estado estrangeiro. Cooperação política, para que os Estados em causa possam exercer uma ação internacional conjunta, cooperação militar traduzida na prestação de auxílios em pessoal ou em material, na concessão de uso do próprio território, e todas as outras formas de cooperação que conhecemos, como seja cooperação econômica, traduzida sob a forma de empréstimos de investimentos, de assistência técnica, Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 331 de concessões de determinadas vantagens de intercâmbio internacional. Esse terceiro grupo de interesses reflete a sua natureza, especialmente na política internacional dos Estados, porque ela se procede essencialmente através da capacidade que o Estado tenha de oferecer reciprocidade às formas de cooperação, isto é, o Estado está tanto mais habilitado a obter ou a assegurar-se da cooperação voluntária de outro, quanto mais ele esteja capacitado para oferecer em troca determinadas formas de cooperação. A proteção dos interesses dessa ordem se obtém, especificamente, pela conservação de uma posição comutativa, isto é, que permita, ao Estado interessado na cooperação, oferecer ao Estado cooperador um interesse em contrapartidas (bargain power). É através do poder de barganha que o Estado elabora uma parte de sua política internacional. 3. INTERESSES VITAIS E OPCIONAIS Cada Estado depende, para o preenchimento de seus fins, da satisfação de certos interesses externos capituláveis numa daquelas três categorias. Esses interesses não são entretanto todos do mesmo grau; há interesses que podemos chamar opcionais e há interesse que podemos chamar vitais. O interesse opcional é suscetível de ser abandonado pela política de um Estado sem que isso comprometa essencialmente a estabilidade ou o desenvolvimento daquela comunidade política. O interesse vital, ao contrário, é aquele que toma um caráter imperativo, que se relaciona com as próprias condições existenciais da comunidade política, de tal maneira que, se esta comunidade não os tem devidamente atendidos; ela pode sofrer um daqueles processos de involução social e mesmo de desintegração que representam as muitas formas pelas quais se liquidam as culturais. Os interesses vitais estão geralmente ligados à manutenção da forma histórica de uma sociedade política qualquer, ou à garantia de suas possibilidades de atingir a um certo nível de desenvolvimento. Sempre que esses interesses vitais são sacrificados, a ansiedade política ou perde as suas condições de manutenção e deve evoluir para uma forma diversa, onde seu equilíbrio social seja possível, ou entra francamente em liquidação, isto é, um desses processos de liquidação histórica, geralmente de realização lenta em que a comunidade desaparece como unidade ativa no conjunto internacional. A proteção dos interesses vitais das condições existenciais de uma comunidade política é por conseguinte a condição básica, o ponto de partida de toda a construção de sua política internacional, e de toda a sua programação de acumulação e emprego do poder. 332 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 À medida que se multiplicam os vínculos de ordem internacional, e que a vida política e econômica do mundo vai integrando numa unidade, tende a crescer o coeficiente internacional da política de cada Estado, isto é, tendem a predominar os interesses externos na consideração dos fins do Estado. Esses interesses podem ser transitórios e permanentes. Os transitórios estão ligados a conjunturas de curta duração, e sua satisfação depende do oportunismo de que for capaz o Estado onde tal interesse se manifesta. Os permanentes estão ligados a condições geográficas e demográficas estáveis, a fatores históricos de longa duração, e traduzem a posição do Estado no sistema de interdependência em que ele e os demais Estados se acham entrosados. 4. INTERESSES PERMANENTES E ASPIRAÇÕES NACIONAIS Os interesses vitais permanentes pelos quais se modela a política internacional de um Estado podem passar como motivações estáticas para o campo da conduta social, isto é, a sociedade deve agir inspirada por eles, eles se devem tornar incentivos de determinadas atitudes, de determinadas reações de opinião pública, de determinadas aspirações. Os interesses permanentes é que imprimem forma às instituições políticas, criam reações emocionais e convicções racionais na sociedade, dando-lhe unidade de comportamento histórico e contingenciando suas atividades de caráter prático. Os interesses permanentes, vistos através dessa projeção na mentalidade coletiva, são chamadas aspirações nacionais. A palavra aspiração nacional, que hoje aparece freqüentemente indicada nos ensaios sobre esses temas, não me parece que possa Ter outro sentido senão este: uma aspiração nacional nada mais é que a forma subjetiva que o interesse vital assume quando se projeta nas consciências de suas classes, tanto de suas classes dirigentes como de suas classes dirigidas. Interesse nacional e aspiração nacional são por conseguinte a mesma coisa conforme nós consideremos na própria sociedade em que o interesse ocorre ou refletido na consciência dos homens que agem e operam socialmente por esta comunidade. Os imperativos vitais, ou condições existenciais, trazem, quando negados, a destruição imediata ou futura do indivíduo ou da coletividade. Se não trazem, para só falar de coletividade, a sua destruição física, pelo menos desintegram sua forma histórica, anulam suas possibilidaRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 333 des de expansão ou de manutenção, determinam sua involução material ou cultural. São aqueles imperativos ou condições existenciais que foram a base, o ponto de origem dos interesses permanentes e aspirações nacionais. Nestes há, além da base existencial, cuja satisfação é imperativa, uma parte opcional, que a política vigente pode conceituar de um ou de outro modo. Ao estudarmos a transformação dos interesses vitais de uma sociedade em aspirações, em manifestação conscientes dela, não podemos deixar de considerar que raramente uma sociedade no seu todo apreende da mesma forma e no mesmo grau os seus interesses vitais. Normalmente, os estrata em que se divide a sociedade, as classes, as camadas, os grupos em que ela se subdivide conceituam de forma diversa o interesse vital da coletividade, apresentam uma sensibilidade desigual para esses interesses, e não é raro que grandes partes de uma sociedade se apresentem inteiramente isoladas de qualquer compreensão dos interesses vitais de que depende a manutenção desse organismo. A incapacidade de compreender os seus interesses básicos existenciais é, porém, uma sociedade, o sinal inequívoco de que a sua classe política dirigente perdeu a capacidade de conduzi-la, a se uma oura classe não substitui oportunamente a primeira, é a própria realidade. Esta tem sido historicamente uma crise por onde terminam grandes e pequenas culturas. 5. A VIDA DO ESTADO NACIONAL As comunidades políticas estão sujeitas, como todo o grupo social, a entrarem material e culturalmente em processo de manutenção, de desenvolvimento, ou de liquidação. Considerando apenas o aspecto econômico desses três processos, podemos dizer que uma sociedade se mantém quando sua população e sua renda nacional permanecem estáveis e a riqueza produzida é integralmente consumida, dedução feita apenas do necessário para repor o desgaste dos bens de produção; uma sociedade se desenvolve quando uma parcela de sua renda nacional é subtraída ao consumo e investida em novos bens de produção, o que permite, no período seguinte, um aumento das riquezas produzidas e das oportunidades de emprego oferecidas à população; uma sociedade se liquida, quando o consumo iguala ou excede a renda nacional num período dado, o que envolve a diminuição efetiva dos bens de produção e uma baixa tanto na produção do período seguinte como no número de empregos. 334 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Considerando o aspecto cultural desses mesmos três processos, podemos dizer que uma sociedade se mantém quando ela conserva, com o mesmo rendimento, as mesmas técnicas pelo domínio da natureza física e das relações humanas; que se desenvolve quando obtém novas técnicas de melhor rendimento ou melhor rendimento das novas técnicas; e que se liquida quando perde o uso de técnicas que já possuía ou passa a empregá-las com mais baixo rendimento. Os processos de manutenção, desenvolvimento e liquidação não são próprios do Estado nacional, mas comuns a todas as formas de sociedade. Do ponto de vista que assumimos, no presente estudo, só importam, entretanto, os Estados, já que os outros grupos se acham integrados na órbita do Estado, que tem autoridade interna sobre eles, e assim não apresentam vida internacional. É este um resultado da evolução histórica do ocidente. Desde o Tratado de Westphalia (1648), que pôs fim à guerra dos 30 anos, e às últimas lutas internacionais de caráter religioso, o Estado nacional, isto é, a nação dotada de soberania, com território fixo, passou a ser a unidade na ordem internacional. Não é o Estado o grupo político que se acha subordinado a outro, o qual tem sobre ele poder interno. Os Estados tem, porém, uns em relação aos outros, poder externo e só eles possuem, consequentemente, uma vida internacional. É a “vida” do Estado nacional que inspira os interesses ou condições existenciais, pelos quais se irá motivar a sua ação internacional. Para manter-se ou desenvolver-se, o Estado depende dessas condições, e a infringência delas representa a periclitação de sua existência histórica, o estabelecimento imediato ou mediato do processo de liquidação. 6. AS ELITES E AS MASSAS Como se fixam, porém, na conduta do Estado e na mentalidade dos que o compõe, esses interesses nacionais nucleados pelos imperativos vitais? Vejamos em primeiro lugar onde se fixam esses interesses, e em seguida os processos culturais dessa fixação. Pode suceder que todos os indivíduos, ou pelo menos todas as classes em que se estratifica a sociedade nacional, aprenderam, sob a forma consciente de representação e princípios normativos, ou sob a forma inconsciente de reações instintivas e prevenções, os interesses vitais que condicionam o comportamento externo do Estado. Essa participação de todos no impulso existencial é admissível em certos momentos de Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 335 periclitação, que reduzem quase que à unidade as opções possíveis. Mais comumente a sociedade reage aos seus imperativos existenciais diversamente, em cada um de seus “stratos”. Toda sociedade oferece duas camadas de estratificação: a elite, ou classe dirigentes, e a massa, ou classe dirigida. Em certas sociedades essas duas camadas se acham isoladas uma da outra por fatores que impedem a circulação de indivíduos de uma para outra (castas, diferenças raciais, nobreza e plebe). Nas sociedades democráticas modernas as duas camadas se intercomunicam, dando lugar a uma circulação vertical constante, em que se manifestam diversos processos seletivos. A capacidade de captar os imperativos existenciais do Estado varia freqüentemente entre as massas e as elites. Há momentos em que as elites se avantajam às massas na sensibilidade àqueles imperativos, e assumem um papel condutor quase independente das reações populares, há também momentos em que as elites, deformadas por erros de educação ou por influências estranhas perdem aquela sensibilidade, enquanto as massas a conservam, tomando para si o papel condutor. As elites nem sempre são a parte da sociedade que mais nitidamente apreende os interesses vitais desta sociedade, pela sua eventual tendência para considerar, em primeiro lugar, os interesses da própria classe, os quais podem, eventualmente, contradizer com os interesses da sociedade como um todo. À refração da mentalidade de classe e as deficiências de formação cultural podem impedir que uma elite conceitue com clareza os interesses da sociedade passa por transformações muito rápidas, as classes intelectuais, as classes dirigentes, freqüentemente, se atrasam em relação a essas transformações e mantém uma reação inadequada aos interesses vitais que já então se delineiam. Um exemplo de uma elite inteiramente insensível aos imperativos vitais da sociedade, enquanto as massas conservavam a plena intuição de todos eles, diante da grave crise nacional criada pela invasão napoleônica, está bem focalizada no romance “Guerra e Paz”, de Tolstói, no qual se observa o descompasso entre a elite afrancesada da Rússia czarista e as massas russas, na percepção dos interesses nacionais do Estado invadido. Também podemos apontar exemplos de que, pelo contrário, uma elite por sua capacidade de pensar adiante das massas e de apreender totalmente o interesse nacional conseguiu fundar quadros estáveis dentro dos quais se desenrolou depois a vida e a evolução da sociedade. Nenhum exemplo histórico é neste particular, mais eloqüente do que o da elite fundadora da independência nacional dos 336 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 Estados Unidos. Quando os interesses vitais passam para a consciência de uma sociedade, o processo pelo qual esses interesses se revelam constitui fator decisivo no exame de sua viabilidade, no exame do que poderíamos chamar o se êxito. 7. REALISMO E IDEALISMO POLÍTICOS De que modo uma sociedade formula os seus interesses vitais, para transformá-los em linha de comportamento, para transformá-los em motivação de seus atos políticos e de suas reações emocionais? É certo que os imperativos podem ser apreendidos em alguns casos por um intuição profunda, como a ilustrada no caso russo do romance de Tolstói, de que falamos há pouco. Mas a sua forma normal de fixação na consciência da sociedade, de onde passa a motivar atos de governo, e reações de opiniões públicas, é o que hoje devemos chamar a formulação ideológica. Não podemos deixar aqui de precisar a noção de ideologia, talvez das mais polêmicas, das mais controvertidas noções da sociologia moderna. Ainda perdura na maioria dos espíritos, uma compreensão pejorativa da palavra ideologia. Em geral designamos por ideologia um convicção enunciada insinceramente para cobrir um interesse que não se quer manifestar. Desta conceituação, vamos dizer, psicológica, de ideologia há vestígios importantes da sua conceituação técnica, mas há entre uma coisa e outra algumas diferenças essenciais. A elaboração decisiva do conceito de ideologia, que permitiu a utilização do termo nos estudos sociais modernos, com a acepção que hoje lhe emprestamos, deve-se a Marx, no seu livro “A Miséria da Filosofia”. Marx mostrou, com clareza, que uma sociedade, uma classe, muitas vezes elaboram suas idéias, seus conhecimentos, suas convicções doutrinárias, não insinceramente para cobrir interesses vitais, mas sinceramente; porém, sob a pressão causal desses interesses, isto é, dos interesses que se traduzem em opiniões ou idéias, sinceramente aceitas, por aquela sociedade, por aquela classe. O que não impede que aquelas idéias e opiniões sejam contingentes, tenham nascido daquelas experiências práticas que esta sociedade e esta classe tiveram a necessidade reiterada de consumar, de tal maneira, que a ideologia se apresenta não apenas como uma força cultural que influi sobre a sociedade, mas também sobre o produto da própria sociedade, como alguma coisa que nasce de seus problemas práticos, de sua situação existencial. Este conceito foi depois aprimorado por K. Mannheim num livro hoje clássico denominado “Ideology and Utopia” (ed. 46, pág. 49 e seguintes). Mannheim Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 337 ainda analisou mais profundamente este conceito, dando-lhe toda a amplitude que nos permite servimo-nos dele em vários estudos de interpretação da História e dos problemas sociais contemporâneos. Utilizando a ambas, podemos dizer que a palavra ideologia já não tem o sentido pejorativo de afirmação cientificamente insincera feita para cobrir o interesse de que afirma. O que hoje sabemos é que o conhecimento e as afirmações científicas de conteúdo social não são inteiramente independentes da posição social, diríamos melhor, da condição existencial daqueles que o elaboram. Uma classe, uma época, uma geração, uma nação, tem a sua experiência intelectual condicionada por imperativos vitais, que aspiram a realizar-se. Sem que esse processo envolva qualquer insinceridade possível de censura ética, o espírito humano procura racionalizar o seu imperativo vital, e apresenta como produto de um conhecimento objetivo e de um julgamento imparcial de valores, o que abre caminho à realização de suas aspirações existenciais. O existencialismo precede o racionalismo. O exemplo já clássico da formulação ideológica é a elaboração das doutrinas liberais, que abriram espaço à ascensão da classe burguesa e à reforma da sociedade. A formulação de uma ideologia, que universalize e torne racionalmente aceitáveis os imperativos existenciais de uma sociedade, é a missão da elite dirigente dessa sociedade e é talvez o que a caracteriza como elite. As massas seguem o imperativo existencial sem racionalizá-lo. As elites investem-no numa ideologia, que o torna compatível com os interesses de outras sociedades, assegurando-lhe uma aceitabilidade geral. Quando uma classe ou uma nação inicia um ciclo de desenvolvimento que deve conduzi-la a uma posição de predomínio social, cumpre à sua classe dirigente vazar em ideologias de aceitabilidade universal o que de outro modo não passará de grosseiro anseio vital. Nenhuma sociedade em expansão pode realmente alcançar a plenitude de seu ciclo evolutivo se ele não dispuser de uma classe dirigente capaz de elaborar as ideologias que tornem viáveis os seus imperativos vitais; e é muito possível que ao se estudar no futuro o que bem podemos chamar o fracasso do surto social e cultural da Alemanha, na primeira metade do nosso século, a incapacidade da sociedade alemã para elaborar uma ideologia aceitável por todos, pela qual os seus interesses vitais pudessem ser protegidos, pode Ter sido a causa decisiva do colapso de seu movimento ascensional. Ao contrário do que aconteceu com a Inglaterra no século XIX, cujos imperativos vitais foram todos eles veiculados ao mundo através de ideologias cuja prática se generalizou mesmo nos países em que 338 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 essas ideologias eram contrárias a seus interesses vitais. Esta compreensão da relação entre ideologia e existência modifica profundamente a velha concepção de um idealismo político antagônico ao realismo político. Toda verdadeira grande política é ideológica, isto é, importa na transmutação profunda de um imperativo existencial em uma doutrina racional conveniente não só à nação que a elabora, mas às outras nações. Toda ideologia é, portanto, idealista nos seus meios e realista nos seus princípios e fins. A contraposição de uma escola idealista a uma escola realista, que se encontra em muitos escritores, parece não corresponder a nada de sólido no campo da motivação de uma política externa. Desde que uma política externa se faça em nome de ideologias adequadas, ela é ao mesmo tempo idealista e realista. Realista no sentido de que ela está adequada aos interesses vitais que se trata de defender, idealista no sentido de que ela não impõe esses interesses vitais à comunidade, mas pelo contrário só os torna aceitáveis através de fórmulas racionais, suscetíveis de adoção universal. Embora toda ideologia, seja racionalmente aceitável por qualquer país ou indivíduo, nem sempre ela corresponde aos seus diferentes imperativos vitais. Poderíamos então reservar a palavra idealismo, se a quisermos empregar no sentido pejorativo, para aquela política externa que orientando-se por ideologias, não tem entretanto a preocupação de verificar se essas ideologias convêm a seus interesses vitais, e inspira-se em princípios, em idéias muitas vezes antagônicas aos interesses do próprio Estado, mas cuja aceitação universal logrou validade perante a mentalidade de sua classe dirigente. Por exemplo, um povo que necessita criar uma indústria doméstica, apesar de serem os seus custos de produção comparativamente elevados, não se pode render culturalmente a uma ideologia livre-cambista sem desamparar com isso os seus interesses vitais. O livre-cambismo se lhe pode impor pelos seus fundamentos racionais, mas desprotege os seus interesses vitais. Qualquer política internacional pode apresentar freqüentemente dessas descaídas idealistas e a sua recuperação se fará todas as vezes ou que pelo contrário a classe elaboradora dessa motivação for capaz de recuperar a base existencial em que toda a política encontra sua legitimidade. Por conseguinte, uma sociedade deve ser capaz, através de sua elite dirigente, ou de elaborar ou de adotar ideologias que vistam seus imperativos e interesses vitais. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 339 8. MEIOS CONSTITUTIVOS DO PODER NACIONAL Vejamos agora de que meios se pode servir o Estaco para a tutela de seus interesses vitais, expressos em ideologias. Desde logo isso nos leva a um balanço dos meios que constituem o poder nacional. Sabemos que essa enumeração, já incorporada aos estudos que se vem fazendo sobre o assunto, indica como meios do poder nacional, o elemento militar, o elemento demográfico, o elemento geográfico, o elemento econômico, o cultural e o político. No campo do elemento militar devemos situar não só o poder acumulado de que dispõe o Estado Nacional para fazer valer seus interesses vitais, como sobretudo o poder potencial, isto é, a capacidade que tem o Estado de refazer o seu poder militar de acordo com o ritmo das necessidades das eventuais ações agressivas ou defensivas a que ele seja conduzido. O elemento demográfico desempenha um papel militar no que toca ao fornecimento de homens para uma ação militar, e desempenha um papel civil como um elemento de ocupação do próprio território e eventualmente de ocupação do território alheio, quando os interesses nacionais apontam para fórmulas de ocupação do território alheio. Quanto à ocupação do próprio território é importante considerar os vários aspectos dessa ocupação, pelos reflexos que traz nos campos do PODER NACIONAL, não só pelos efeitos econômicos de uma ocupação intensiva do território nacional, como pelos efeitos políticos dessa ocupação, dada que a rarefação de população representa sempre uma debilidade política, em qualquer território. O elemento geográfico desempenha o seu papel pelas facilidades e dificuldades criadas pela geografia física em relação à utilização do Poder Nacional seja para sustentar a sua eventual economia de guerra, seja em tempo de paz, para sustentar a sua própria economia, garantindo-lhe uma certa independência, em relação a outros Estados que assistirão a obter determinação sobre eles, seja ainda pelo poder de barganha de que o Estado fica dotado para poder obter a cooperação voluntária de outro Estado, que esteja em condições de com ele cooperar. O elemento cultural representa igualmente um papel decisivo, já que o preparo das elites, dentro da compreensão de seus interesses vitais e dentro da formulação dos conceitos ideológicos capazes de recobrilos, constituem condição indispensável para que a sociedade possa conceituar o próprio emprego de seu Poder Nacional. Tem ainda importância que merece um especial estudo o problema de formação da opinião pública, dentro do Estado Nacional. Isto leva ao famoso antagonismo entre disciplina e criticismo e à discussão repetida tantas vezes sobre as vantagens comparativas de uma 340 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 opinião pública solidamente fundida, num único partido, numa única tendência, numa só convicção, contra uma opinião pública, dividida em mais de um partido, dotada de várias tendências, dividida em suas convicções e capaz por conseguinte de exercer sobre o Poder Público um grau maior de criticismo. A tendência contemporânea é que a opinião pública dividida em várias correntes e exercendo criticismo sobre o poder público é mais eficaz no tocante ao emprego do poder nacional do que a opinião pública fundida num só bloco e mais disciplinada. É certo que aqueles que dispõem do emprego do Poder Nacional obtêm mais facilmente reações de uma opinião pública fundida num só bloco. Mas os desvios do emprego desse Poder Nacional , a que a classe dirigente está sujeita não encontram correção. E entre os dois riscos, indiscutivelmente, o segundo é o maior. O que constitui uma vantagem técnica do regime democrático sobre os regimes totalitários. Finalmente, o elemento político que se faz sentir através da ação diplomática, através da política de integração em organismos coletivos, eles próprios detentores de Poder, a ação internacional conjunta, os sistemas de segurança coletiva, influem sobre o Poder Nacional. Neste campo, podemos situar um dos meios mais eficazes para a proteção dos interesses nacionais que é a sua defesa jurídica, isto é, numa ordem internacional, toda ela imbuída multi-secularmente da idéia de legitimidade. Ter a seu favor a legitimidade representa um extraordinário reforço de poder em qualquer conflito de interesses que se possam apresentar. A causa legítima em primeiro lugar se impõe mais facilmente ao espírito dos que a sustentam, desarma o espírito dos neutros, dos espectadores, dos que devem participar do conflito. A convicção racional e moral é sua aliada. E na época em que se desenvolvem cada vez mais os aparelhos de segurança coletiva, o princípio da legitimidade passa a avultar excepcionalmente como um dos meios de proteção dos interesses nacionais, porque é em função dessa legitimidade que se movimenta o aparelho da segurança coletiva. Por conseguinte a proteção jurídica é realmente o último dos elementos mais importantes dos meios com que se fecha o sistema de proteção dos interesses vitais. 9. CONCEITUAÇÃO DO CASO BRASILEIRO O Brasil se apresenta como sociedade política também sob o império de interesses vitais que devem representar a motivação permanente de sua política externa e de acordo com esses interesses vitais devem ser conceituados e enumerados os meios de que dispõe o Estado para a sua proteção. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 341 Como já se disse, considero esses conceitos de natureza muito provisória como verdadeira tentativa de enquadramento sistemático de algumas idéias que ainda são hoje tratadas em geral sob a forma de problemas, mas que todos nós sentimos uma grande necessidade de por em ordem de suma e penso que nada demonstra mais essa necessidade, do que a programação própria deste curso, que é uma tentativa de teorizar as relações internacionais e a política externa de um Estado. Se é verdade que os conceitos emitidos até aqui, nesta conferência, tem um caráter tentativo, mais importante ainda é encarar da mesma forma as considerações que se seguem. Confesso mesmo que só me abalanço a fazê-lo como uma provocação. Para suscitar a minha própria meditação e a meditação dos senhores, pois, reconheço que nada se poderia fazer de válido numa pesquisa desta ordem de grandeza corretamente sobre um País, senão através de um trabalho coletivo, de uma documentação considerável, de uma investigação histórica e acima de tudo de um estudo de área, isto é, de uma comparação entre os problemas brasileiros e os problemas de outros países, que tenham, em comum com o nosso, a condição social e a etapa do desenvolvimento. Por conseguinte, a rigor, esta minha palestra está terminada, e o que agora vou fazer nada mais tem do que o caráter de um debate no qual sou eu mesmo o primeiro argüente. Parece-me que se nós nos pusermos a meditar sobre os interesses brasileiros enquadrados no conceito de interesses vitais que acabamos de examinar, desde logo verificaremos que o Brasil não apresenta no momento atual interesses vitais da primeira categoria, isto é, não temos a subsistência da comunidade nacional e o seu desenvolvimento econômico na dependência de obtermos determinação sobre áreas compreendidas na jurisdição de outro Estado. Pelo contrário, as grandes dificuldades da sociedade brasileira estão todas elas relacionadas com a própria utilização de sua área, com a própria valorização dos seus recursos territoriais, naturais e demográficos. E podemos dizer que o preenchimento dos fins do Estado Nacional brasileiro consiste, essencialmente, em desenvolver, dentro das suas atuais possibilidades territoriais naturais e demográficas, uma sociedade que ainda se apresenta no grupo das nações de baixo nível de vida no mundo. Para alcançarmos a realização desses fins, para os quais sentimos que se orientam as atividades governamentais sobre as próprias atividades privadas, não estamos na dependência de alcançarmos a realização desses fins, para os quais sentimos que se orientam as atividades governamentais sobre as próprias atividades privadas, não estamos na dependência de alcançarmos determinação sobre 342 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 áreas externas. Temos, entretanto, nitidamente interesses vitais dos outros dois grupos. Desde logo, a circunstância de vivermos num mundo onde os problemas demográficos e os problemas econômicos avultam todos os dias, criando a necessidade de uma participação franca dos países adiantados nos recursos dos países mais atrasados, criam para nós os interesses vitais do segundo grupo, ou seja a necessidade de fazermos uma política externa que impeça qualquer pretensão alheia de alcançar determinação dentro da nossa própria área. Isto é verdade indiscutível para um país cuja densidade de população média não ultrapassa, segundo o último censo, 6,22, uma das mais baixas densidades de população do mundo, sendo de notar que em duas áreas particularmente extensas o Norte e o Centro-Oeste, a densidade de população não chega à unidade. É 0,53 no Norte e 0,94 no CentroOeste. Por conseguinte, trata-se de um dos países que apresenta uma das mais débeis ocupações demográficas de seu próprio território. Acrescentamos a isso o fato de que uma sociedade, com as características da nossa, mantém em estado potencial uma soma considerável de recursos naturais. Desde a Carta do Atlântico que se vem afirmando internacionalmente a doutrina do livre acesso às matérias-primas. A idéia de que os países tem direito ao acesso às fontes de matéria-prima, e de que nenhuma sociedade pode subtrair à utilização coletiva, matérias-primas que não estão sendo aproveitadas vai ganhando, em nosso tempo, foros de ideologia. Estamos ai, diante de uma elaboração ideológica que cobre a necessidade vital para muitos países, de encontrarem matérias-primas de que não dispõe, e, se não existe hoje, no mundo, uma pressão política em relação ao países detentores de matérias-primas não aproveitadas, é porque os tentos do poder político do mundo se acham, neste momento, inteiramente concentrados nas mãos de um país que possui a grande maioria das matérias-primas que utiliza. Fosse outro o dispositivo internacional, estivessem em plena expansão do poder político países como a Alemanha, que não dispõe de reservas de matériasprimas a esta reivindicação internacional se faria sentir com pressão internacional, muito maior do que aquela que nós verificamos em nosso tempo. Por conseguinte, examinando este problema na dimensão do tempo, não podemos duvidar que um Estado como o nosso tem diante de si o problema de preservar a integridade de usa área de determinação, seja pela debilidade de sua ocupação demográfica territorial, seja pelo fato de permanecerem em estado potencial a maioria dos seus recursos. Ora, todas as vezes que no quadro dos interesses do segundo grupo, em vez dos interesses do primeiro, este Estado merece a capitulação, já hoje generalizada em muitos documenRevista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 343 tos, de Estado potencialmente agredido. Já que chamamos de Estado potencialmente agressor aquele que pela linha de seus interesses externos tem necessidade de obter determinação sobre outro Estado. Este Estado pode estar planejando a guerra ou não, isto é uma questão tópica, mas o que é verdade é que pela predominância desses interesses, a sua linha internacional é a de Estado potencialmente agressor. No nosso caso, nós estamos no grupo dos Estados potencialmente agredidos e o tipo predominante de interesse vital, que se traduz na nossa política externa há de ser o da preservação de nossa integridade territorial social e econômica, para aquilo que hoje constitui, quase que por um entendimento tácito o verdadeiro programa da sociedade brasileira, a utilização de seus recursos a longo prazo. Estamos todos nós vivendo o problema de nossos recursos a longo prazo. Toda a motivação da política externa brasileira, se a observarmos sobretudo depois da segunda grande guerra que deu ao nosso país a consciência de país subdesenvolvido e de portador dos problemas dos países subdesenvolvidos, é no sentido de uma utilização das nossas potencialidades a longo prazo e de uma abreviação desse prazo, em outras palavras, de uma política de desenvolvimento intensivo. Daí surge, por conseguinte, nosso primeiro grupo de interesses e nosso segundo grupo de interesses está em que nós somos daqueles países que procuram obter cooperação voluntária internacional. Não podemos deixar de ser um país que procura obter cooperação voluntária internacional, porque somos um país subdesenvolvido e, como todo país subdesenvolvido, não temos senão dois caminhos para obtermos o desenvolvimento intensivo. O primeiro é a cooperação internacional, o segundo é a radical socialização do Estado, a qual pode promover o desenvolvimento intensivo mas promove o desenvolvimento intensivo dentro de uma técnica que não é aceita pela sociedade brasileira e que envolve o poder totalitário, o isolamento que se trata de desenvolver em relação ao exterior e a imposição de um sistema de taxa compulsória dos consumos para se poder aumentar o coeficiente dos investimentos. Sem proceder à baixa radical do nível de vida para transferir uma parte maciça da renda nacional para investimentos reprodutivos, não é possível desenvolver um país, a não ser na base de cooperação; por conseguinte a opção política, já feita pelo nosso país, envolve como linha de conseqüência a necessidade de alcançar cooperação voluntária no campo internacional. Para isto, o país está particularmente bem situado, porque embora figuremos entre aqueles onde se apresentam os fenômenos dinâmicos de uma economia em desenvolvimento. Isto se caracteriza pelo fato do aumento da nossa população se vir fazendo, na última década, segundo uma 344 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 percentagem de 2,5% anuais, enquanto as estimativas de nossa renda nacional acusam um aumento na base de 3% anuais, quer dizer que, ao contrário do que sucede com a grande maioria das áreas subdesenvolvidas no mundo, a nossa, o crescimento da renda nacional vai um pouco à frente do crescimento da população. Em vez de estar, portanto, se acentuando o pauperismo, está se acentuando uma elevação do rendimento nacional per capita. Isto constitui uma posição favorável para que um país possa, realmente, tentar uma política de desenvolvimento intensivo e este desenvolvimento intensivo depende essencialmente de uma série de medidas, que só podem ser alcançadas no campo da cooperação internacional. Desta situação brasileira nascem indiscutivelmente algumas construções ideológicas, desde logo a mais válida, a mais discutível das ideologias que presidem a nossa política externa é um produto direto de nossa posição de Estado potencialmente agredido, de nosso interesse vital de preservar o nosso território de qualquer tentativa de determinação alheia, e é a ideologia pacifista. O pacifismo é o fundo da conduta internacional brasileira, é a doutrina reiteradamente afirmada pelo Brasil como um padrão de civilização, com um traço marcante de sua superioridade cultural e, nesse ponto, a cultura brasileira, desde muito cedo, teve um papel pioneiro indicando a rapidez com que se projetou, na consciência da primeira geração republicana, a idéia de que o país devia tomar a linha da defesa de sua integridade contra qualquer agressor eventual. À ideologia pacifista se soma a ideologia arbitralista. O Brasil é um campeão sistemático da arbitragem, das soluções jurídicas. Por que? Porque é um país de posição solidamente protegida por títulos jurídicos, tem uma posição legítima no tocante à livre disposição de área. Toda a superestimação do direito na vida internacional corresponde aos interesses vitais de nosso país. É inacreditável como se vê, num país como o nosso, freqüentemente, as classes intelectuais se deixarem permeabilizar por essas doutrinas que, pelo contrário, proclamam o direito ao espaço vital, à expansão dos países de acordo com as suas potencialidades naturais. Nós somos por destinação ideológica os homens da posição jurídica e não os homens da posição vital. E isto precisamente porque a posição jurídica é a que convém à nossa posição vital. Do mesmo sentido, desenvolveu-se no Brasil uma formação ideológica que essa já precisa ser meditada de um modo mais atento, nós todos hoje ou pelo menos uma grande maioria das correntes que se debatem na vida política do país, condena as formas de nacionalismo econômico, que se estimularam entre nós naquela época em que o nacionalismo se generalizou em quase Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 345 todos os países, na década de Trinta. É sabido que depois da grande defecção de 1929, 1930, todo o mundo ocidental marchou para o nacionalismo, como uma forma de defesa de suas estruturas econômicas, contra as interferências alheias. Também o Brasil nesta época fez o seu caminho no sentido do nacionalismo econômico, e o nacionalismo econômico deitou entre nós muitas raízes, criando extraordinárias repercussões emocionais, inclusive como todos sabemos no tocante à utilização das riquezas nacionais, desde o problema do petróleo até o problema de qualquer minério explorável. Nesta atitude, sem dúvida de hoje em diante predominantemente emocional, não podemos deixar de reconhecer que existe uma elaboração ideológica daquele receio próprio de todo organismo ameaçado de ver proclamar sobre ele o princípio do livre acesso às matérias-primas, que pode comprometer o nosso programa de utilização de riquezas a longo prazo. Por assim dizer o organismo nacional, temeroso de ver os seus recursos potenciais submetidos a um regime de espoliação, antes de chegado o momento de sua utilização efetiva, pela nossa comunidade, reage ideologicamente por meio de um simples nacionalismo negativo. Negativo no sentido de que nega a prática de alguma coisa, não afirma propriamente a de outra. Nega a exportação, nega a exploração, nega isto ou aquilo. Esta segunda ideologia, ao contrário da primeira, parece-me que merece uma cuidadosa revisão por parte das classes a quem compete examinar os fundamentos das posições ideológicas assumidas por um país. E por que? Precisamente pelo conflito que essa ideologia contém com a nossa necessidade de promoção de nosso próprio desenvolvimento. Na medida em que esta ideologia cobre um perigo efetivo ela é legítima, e constitui uma reação de opinião pública um pouco primária e que se limita a condená-la como uma aberração, como um preconceito sem fundamento no espírito duma parte da população, mas na medida em que esta ideologia se choca com a nossa necessidade de promover o desenvolvimento a curto prazo, ela como que se nega a si mesma, porque procurando defender uma riqueza para que a possamos utilizar, cria um embaraço que esta utilização se acelere. E, por conseguinte, constitui uma ideologia contraditória, uma ideologia polêmica. Entra na categoria daquilo que os historiadores de hoje seguindo nisto a terminologia de Toynbee, procuram denominar um desafio. Desafios são essas contradições de interesses que se apresentam na vida de uma comunidade e que fazem com que a comunidade se apresente em face de um problema em duas posições antagônicas, ou melhor, com interesses que se entrechocam, que se destroem. Toda vez que uma situação contraditória desta 346 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 natureza se delineia na vida de uma comunidade, urge encontrar aquilo que o próprio Toynbee denomina a resposta. A resposta ao desafio, isto é, a posição ideológica, a linha de comportamento social que supera aquela contradição e permite vencer os termos críticos, em que ela se acha colocada. De que modo um Estado como nosso pode alcançar este superamento é uma investigação que já ultrapassa os limites já de fato bastante ultrapassados desta palestra. * Doutor em Direito pela Faculdade Nacional de Direito. Comissões: - Professor da Faculdade Nacional de Direito - Delegado brasileiro à 1ª Conferência de Ministros de Educação das Repúblicas Americanas – Panamá - Membro da Corte Permanente de Arbitragem de Haia - Conferencista da ESG desde 1951 Nota: Esta conferência não foi revista pelo autor e foi organizada com notas tiradas de sua gravação. Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001 347 348 Revista da Escola Superior de Guerra nº 40 - 2001