ADJETIVOS E ADVÉRBIOS EM UMA PERSPECTIVA LÉXICO

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ADJETIVOS E ADVÉRBIOS EM UMA PERSPECTIVA LÉXICO-CONCEPTUAL
Mônica Mano Trindade - UFPB
Considerações Iniciais
A partir de modelos teóricos que postulam a universalidade do sistema conceptual que ancora
a semântica das línguas naturais e considerando este um estatuto teórico para explicação de fenômenos
lingüísticos, delimita-se como objeto de estudo duas classes de palavras da língua portuguesa –
adjetivo e advérbio – especificamente itens lexicais que se aplicam a ambas as classes, a exemplo de
rápido. Assim, o objetivo deste trabalho, parte de uma pesquisa em andamento, é investigar adjetivos
e advérbios em uma perspectiva semântica, considerando uma hipótese léxico-conceptual como
explicação das ocorrências lingüísticas selecionadas para análise.
Em um primeiro momento, apresento o tratamento dado aos adjetivos e advérbios na
perspectiva da gramática tradicional, cuja análise, do conceito à classificação, pauta-se em critérios de
natureza morfológico-sintático-funcional.
Posteriormente, passo a tratar os mesmos dados em uma abordagem semântica, com base na
teoria do léxico gerativo (PUSTEJOVSKY, 1995), associando tal fundamentação a uma perspectiva
conceptual (JACKENDOFF, 2002). Utilizando critérios semânticos para o estudo dessas classes,
pode-se observar que uma palavra como rápido, cuja classificação morfológica se alterna entre
adjetivo e advérbio em contextos específicos, pode assumir diferentes sentidos em função do nome
que a acompanha, o que possibilitaria uma revisão em relação à classificação da mesma. Pela
interpretação aqui proposta, rápido, em carro rápido e digitador rápido funcionaria como advérbio,
pois não qualifica diretamente carro e digitador, mas a ação desempenhada por tais nomes – andar e
digitar –, fato que está implícito nos enunciados. Pode-se afirmar que tais enunciados são,
respectivamente, compreendidos pelos falantes da língua como carro que anda rápido e aquele que
digita rápido. Porém, tais interpretações não ocorrem por acaso, pois é possível explicá-las em função
do resgate feito pelo falante daquilo que não é expresso no nível superficial do enunciado, a partir do
que está contido no léxico.
Finalizo com a análise deste tipo de ocorrência, com o propósito de investigar se se trata de
um processo regular, e se é possível a formulação de uma explicação que concilie tanto o aspecto
lexical quanto o conceptual.
1.
Adjetivos e Advérbios na Perspectiva Tradicional
A apresentação feita nesta seção é baseada em consulta a dois autores, selecionados
aleatoriamente, porém trata-se de uma exposição representativa do tratamento dado às classes
estudadas pelos gramáticos em geral.
Cunha (1985) e Cipro Neto (1998) conceituam adjetivo como “palavra modificadora do
substantivo, atribuindo-lhe qualidade (ou defeito), modo de ser, aspecto, aparência ou estado”.
Apontam para o fato de que, como muitas vezes as mesmas palavras podem ser classificadas como
adjetivo ou como substantivo, é necessário acionar os elementos fornecidos pelo contexto sintático
para que seja possível a distinção entre ambos. Isso ocorre em oposições como o jovem brasileiro e o
brasileiro jovem, pois jovem é, respectivamente, substantivo e adjetivo, ocorrendo o contrário com
brasileiro. Em seqüência, apresentam a classificação dos adjetivos que, quanto à estrutura e formação,
podem ser: primitivos/derivados; simples/composto. Também abordam o processo de flexão dos
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adjetivos, que são variáveis, pois concordam tanto em gênero (masculino e feminino), quanto em
número (singular e plural) com os substantivos aos quais se referem. Em relação ao gênero, há aqueles
considerados neutros, cuja forma qualifica tanto substantivos masculinos, quanto femininos. É o caso,
por exemplo, do vocábulo quente. Além das flexões de número e gênero, essa classe gramatical
apresenta uma complexa flexão de grau, da qual fazem parte: grau comparativo de igualdade,
superioridade e inferioridade; grau superlativo relativo de superioridade e inferioridade; grau
superlativo absoluto analítico e sintético.
Além desses critérios morfológicos, que determinam o lugar do adjetivo entre as demais
classes gramaticais e o seu comportamento flexional, tradicionalmente se classificam os adjetivos em
relação ao tipo de característica que exprimem, como por exemplo, cor, forma, temperatura,
proporção, intensidade, qualidade, considerando-se, neste único caso, um critério semântico.
No que diz respeito a uma análise de cunho sintático, a classe dos adjetivos possui as funções
adjunto adnominal e predicativo, sendo esta última ainda classificada como predicativo do sujeito ou
do objeto. Vejamos exemplos dessas denominações a partir dos enunciados:
(1) Os alunos despreocupados nunca comparecem às aulas.
(2) Os alunos parecem despreocupados.
(3) Deixei-os despreocupados.
Nos três exemplos acima, o mesmo adjetivo apresenta várias funções sintáticas. Em (1),
despreocupados funciona como adjunto adnominal, pois se trata de uma qualificação ao substantivo,
sem a intermediação de um verbo. Já em (2) e (3), o mesmo adjetivo é denominado de predicativo,
pois a qualificação é atribuída por intermédio de um verbo, seja este explícito - como o verbo parecer
em (2) - ou implícito - como o verbo estar em (3). A diferença entre (2) e (3) baseia-se na função
sintática do termo que recebe a qualificação dada pelo predicativo. Em (2), atribui-se a qualidade a
alunos, termo que sintaticamente funciona como sujeito. Já em (3), atribui-se a qualidade a um
substantivo substituído pelo pronome os, cuja função sintática é a de objeto. Logo, em (2) temos um
predicativo do sujeito e em (3), um predicativo do objeto.
Em relação à classe dos advérbios, Cunha (1985) e Cipro Neto (1998) apontam para a sua
função principal - modificador do verbo - para, em seguida, acrescentarem o fato de que o advérbio
também pode reforçar o sentido de um adjetivo, de um outro advérbio, ou até mesmo fazer referência a
uma oração inteira, como mostram, respectivamente, os exemplos:
(4) Ficara completamente imóvel.
(5) Passei a noite mal! Bem mal!
(6) Infelizmente, o projeto não foi aprovado.
Após a definição, os autores apresentam os tipos de advérbios, que se classificam de acordo
com a circunstância que expressam, como: modo, intensidade, dúvida, afirmação, lugar, negação e
tempo. Há outras circunstâncias expressas pelos advérbios, no entanto, não foram citadas em ambas as
gramáticas. Em seqüência, apresentam algumas considerações em relação ao uso dessa classe, tais
como: colocação e flexão dos advérbios em grau comparativo e superlativo. Em termos sintáticos, os
advérbios são sempre classificados como adjuntos adverbiais, seguidos do nome da circunstância que
exprimem.
1.1 Adjetivos X Advérbios
Até o momento, as duas classes estão apresentadas de modo fragmentado. No entanto,
produzimos enunciados evidenciam a existência de algum tipo de relação entre adjetivo e advérbio.
Um exemplo disso é a relação de proximidade, que permite certa confusão entre o adjetivo com função
sintática de predicativo e o advérbio quando este exprime circunstância de modo.
Em termos gerais, o primeiro qualifica um nome, enquanto o segundo modifica um verbo.
Entretanto, esse limite pode não ser muito preciso, como ocorre em:
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Critério morfológico: adjetivo
Critério morfológico: advérbio
Critério sintático: predicativo
Critério sintático: adverbial de modo
Ele era rápido.
Ele pensou rápido.
Podemos pensar em dois modos de diferenciar rápido (adjetivo) de rápido (advérbio):
a) O adjetivo está acompanhado de um verbo de ligação, enquanto o advérbio, de um verbo de
ação. Quando o adjetivo aparece em sentenças com verbos de ação, há sempre a possibilidade
de se interpretar implicitamente a presença de um verbo de ligação, que não é expresso na
estrutura superficial, como é o caso do verbo ser em:
(7) Saiu (?) estudante e voltou (?) doutor.
b) O adjetivo é uma classe que possui flexão de número, enquanto o advérbio é invariável. Logo,
se alterarmos cada enunciado para sua forma no plural, temos rápido como adjetivo em (8) e
rápido como advérbio em (9):
(8) Eles eram rápidos.
(9) Eles pensaram rápido.
Tal relação de proximidade entre adjetivo e advérbio – não explorada pela gramática
tradicional – é percebida por alguns autores da área da lingüística quando realizam estudos sobre
classes gramaticais.
ILARI et alii (1990) propõem uma classificação para os advérbios, através da qual inserem a
noção de advérbios predicativos e não-predicativos.
Na afirmação tradicional de que o advérbio modifica tipicamente o sentido do verbo
ou do adjetivo está implícita a hipótese de que ele expressa uma espécie de
predicação de grau superior: assim como o verbo ou o adjetivo atribuem uma ação
ou uma propriedade ao sujeito, o advérbio predicaria uma propriedade da qualidade
ou ação que se atribui ao sujeito: assim em ‘João caminha lentamente’, descreve-se
como sendo lenta a ação de caminhar que se atribui a João.(p.89)
Segundo os autores, há várias classes de advérbios que se enquadram nos advérbios
predicativos, e
a primeira dessas classes é representada por construções como comer bem: o
paralelismo dessa construção com a que se compõe de substantivo mais adjetivo
indicando qualidade (comida boa) é flagrante, e foi a principal motivação para
denominar os advérbios dessa subclasse de ‘qualitativos’(p.91)
NEVES (2000), no capítulo referente ao estudo dos advérbios, também aponta para a referida
relação entre tal classe e a dos adjetivos. Segundo a autora,
Os advérbios de modo constituem uma classe aberta na língua, uma vez que, em
princípio, os adjetivos qualificadores em geral podem converter-se em advérbio
de modo pelo acréscimo do sufixo –MENTE à forma feminina(...) Um adjetivo
pode, porém, ser gramaticalizado como advérbio mesmo sem o acréscimo de –
mente: falava DURO, DIFÍCIL.(p.243)
Considerando tais citações, podemos retomar os exemplos - Ele era rápido e Ele pensou
rápido – e fazer as seguintes afirmações: a) no segundo caso, rápido poderia ser classificado como um
advérbio predicativo, pois descreve-se somo sendo rápida a ação de pensar que é atribuída ao sujeito.
b) também no segundo caso, poderíamos pensar em rápido como um adjetivo gramaticalizado em
advérbio pelo seu uso.
Portanto, o que se observa através da investigação de outros enfoques sobre o tema é que não
se pode negar a evidente relação entre as duas classes gramaticais. No entanto, cabe aqui ressaltar o
fato de que todos os itens abordados em relação às classes de adjetivos e de advérbios - conceito,
característica, classificação - bem como os critérios de diferenciação entre ambas são de natureza
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morfológico-sintático-funcional. Entretanto, utilizando de critérios semânticos para o estudo dessas
classes, veremos que uma palavra como rápido pode assumir diferentes sentidos em função do nome
que acompanha, e esse fato possibilita uma revisão em relação à classificação morfológica da mesma.
Assim, dando seqüência ao trabalho, passo a uma breve apresentação das teorias semânticas
nas quais a pesquisa se pauta - Léxico Gerativo (PUSTEJOVSKY, 1995), especificamente no que diz
respeito ao tratamento que pode se dado aos adjetivos e advérbios, e Semântica Conceptual
(JACKENDOFF, 2002).
2.
Léxico Gerativo e Semântica Conceptual
Desde a década de 80 do século passado, têm surgido modelos teóricos que postulam a
universalidade do sistema conceptual que ancora a semântica das línguas naturais, entre eles a
semântica conceptual de Jackendoff e o léxico gerativo de Pustejovsky, ambos apresentados nesta
seção, como aporte teórico à análise.
O que justifica a aproximação dos referidos autores é que os trabalhos de Pustejovsky e
Jackendoff, mesmo pautados em linhas semânticas diferentes, uma vez que este vê a linguagem como
representação conceitual do mundo, e aquele a concebe apenas no aspecto formal, possuem alguns
pontos convergentes: a) ambos adotam uma abordagem lexicalista, assumindo como aspectos da
língua a polimorfia e a composicionalidade; b) ambos pressupõem em suas análises que nem toda
estrutura semântica deve aparecer no nível da sintaxe; c) em função de (a) e (b), ambos propõem o
enriquecimento das representações lexicais a partir de regras composicionais mais abrangentes, fato no
qual se embasa este estudo.
2.1 Léxico Gerativo
Com intuito de propor uma teoria que seja capaz de estabelecer regras que expliquem
asistematicidade dos casos de polissemia, Pustejovsky (1995) expõe a teoria do léxico gerativo
(TLG) como um modelo vantajoso no que diz respeito ao aspecto criativo e econômico da língua.
Desse modo, sua teoria pressupõe que muito do que ocorre no âmbito da sentença está regulado pelo
léxico e a caracterização dos itens lexicais passa pela existência de níveis distintos para a
representação da informação sintático-semântica, como a estrutura argumental (A), a estrutura de
eventos (E), a estrutura qualia (Q) e a estrutura de herança lexical (H). Tais níveis de representação
combinam-se através de um conjunto de mecanismos gerativos que incluem operações como cocomposicionalidade, ligação seletiva e coerção de tipo.
Interessa-me neste artigo apresentar o mecanismo de ligação seletiva, que explica o uso
criativo dos adjetivos e a estrutura qualia, em cujas facetas encontramos explicações para tal
mecanismo.
A estrutura qualia é o nível que representa a formação dos papéis semânticos da estrutura
subjacente de um item lexical. Nela estão representados os diferentes tipos de relação que os objetos
podem estabelecer entre si, bem como a função e a origem desses objetos. É baseada em quatro
aspectos relacionais, que são os seguintes papéis:
Quale Constitutivo
Especifica a relação entre o objeto e seus constituintes.
Quale Formal
Explicita a distinção do objeto dentro de um domínio mais abrangente.
Quale Télico
Indica a finalidade do objeto.
Quale Agentivo
Especifica a origem do objeto.
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Em relação a esta estrutura, Pustejovsky atenta ao fato de haver dois pressupostos
fundamentais: o primeiro é o de que todos os itens lexicais, independentemente da sua categoria, têm
uma estrutura qualia e o segundo diz respeito ao fato de nem todos os itens lexicais terem um valor
para cada papel quale.
Palavras que parecem ter um único sentido, muitas vezes, possuem uma sutil polissemia, o
que pode ser exemplificado com as seguintes sentenças:
(10) O livro é pesado
(11) O livro é emocionante.
O enunciado (10) faz referência a livro como objeto físico (x), e o enunciado (11) aciona o
sentido abstrato do termo livro como conteúdo ou informação (y). Já em
(12) João leu o livro e
(13) João escreveu o livro
os dois sentidos (x.y) são simultaneamente acionados em função de uma exigência dos verbos ler e
escrever, que requerem um argumento complexo, formado pela junção de dois argumentos simples
(objeto físico + conteúdo informativo).
Assim, vejamos a representação deste termo em sua estrutura qualia:
LIVRO
Contitutivo: capa, folhas etc.
Formal: x contém y
Télico: ler (e, w, x.y)
Agentivo: escrever (e, w, x.y)
Onde x = objeto físico; y = informação; e = evento; w = agente; x.y = argumento complexo (objeto
físico + informação)
A estrutura qualia explica os mecanismos gerativos que permitem interpretar as palavras em
contexto, entre eles a ligação seletiva.
Em um enunciado como um livro fácil, podem ser acionados três sentidos diferentes:
(14) um livro fácil de escrever
(15) um livro fácil de ler
(16) um livro fácil de montar
Nesse caso, a polissemia não está na palavra fácil, mas em livro, que apresenta todas essas
facetas em sua estrutura lexical. Assim, retomando a estrutura qualia de livro, podemos afirmar que
em (14), é acionado o quale agentivo; em (15), o quale télico e em (16), o quale constitutivo. Trata-se
do processo de ligação seletiva, que permite captar a relação semântica estabelecida entre o
modificador (fácil) e o núcleo nominal que ele modifica (livro). Isso permite que em um composto
nome mais adjetivo, este seja aplicado diretamente a um papel quale do nome.
2.2 Teoria Conceptual de Jackendoff
Buscando embasamento para sua teoria, Jackendoff (2002) aponta que as questões centrais
para uma teoria semântica se resumem em como podem ser caracterizados os conceitos expressos
pelos falantes e como a linguagem transfere esses significados. A proposta do autor parte do princípio
de que uma teoria semântica deve se encaixar em uma concepção mais ampla, que é a teoria
mentalista, da qual faz parte um domínio designado como f-mind – domínio funcional. Assim, os
processos interativos, como compreensão de contexto, inferências, julgamentos e conexão entre
mensagem e ação, podem ser estruturados em um diagrama por meio do qual se organizam todas as
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interfaces que a estrutura cognitiva acessa. O importante é que todos esses processos operam no
mesmo tipo de estrutura cognitiva que pode ser expressa pela linguagem. As interfaces para o sistema
perceptual são o que permite alguém formar um pensamento baseado na observação do mundo: com a
linguagem, alguém pode dizer o que vê, o que ouve, o que sente. Isso também pode operar em outra
direção: a linguagem se direciona para algo do campo conceitual, a exemplo das expressões como
você viu? preste atenção.
É importante ressaltar que, para esse autor, o trabalho de compreensão do mundo
conceitualizado é dividido entre essas duas estruturas, o que não exclui a existência de outros níveis.
A Estrutura Conceitual (Cs) corresponde a uma organização hierárquica, construída de
traços e funções discretos, que permite codificar aspectos da compreensão, tais como membros de
categoria (taxonomia), relação argumento/predicado e quantificação.
Já a Estrutura Espacial (Sps) é definida como uma organização que possibilita o
entendimento espacial do mundo físico, como forma, configuração, deslocamento e esquematização
dos objetos no espaço. Trata-se de um sistema da cognição central, com nível abstrato e hipotético,
mas não estritamente visual.
Segundo hipótese elaborada por Jackendoff, os aspectos gramaticais da linguagem fazem
referência somente a CS, não a Sps. Assim, nem todos os itens lexicais têm um componente Sps.
Como exemplo desse fato, há palavras como if e not, expressões de conceito lógico, e fairness e
value, expressões de conceitos abstratos. Ao contrário, aplicando tais conceitos a outros itens
lexicais, afirma-se que um nome como cat terá uma Cs que o identifica como um animal e um
membro da família felina, o que o especifica tipicamente como um pet (animal de estimação). Além
disso, também terá uma Sps, que decodifica, por exemplo, caracterísitcas como a cor, a configuração
e a capacidade de se movimentar do animal.
Assim, se, por um lado, há inferências que se relacionam exclusivamente a uma única
estrutura, por outro, há uma sobreposição entre os dois níveis, casos como objeto físico, que tem
reflexo em ambas as estruturas.
Conceituar itens lexicais com base em tais estruturas - Cs e Sps - permite-nos dizer que
talvez haja um certo nível de aproximação entre esse procedimento e a análise lexical embasada na
estrutura de Qualia (2.1). O quale formal, que especifica o objeto em relação aos demais, pode ser
associado à estrutura taxonômica, responsável por identificar a que categoria o objeto pertence, uma
das funções contidas na Estrutura Conceitual. Os elementos identificados na Estrutura Espacial,
relacionados aos aspectos sensoriais e composicionais, equivalem, de uma certa forma, ao quale
constitutivo, que designa o material de que é feito o objeto e as partes que o compõem. Quando se
trata de uma entidade classificada no quale formal de objeto físico, são perceptíveis os elementos do
quale constitutivo, bem como a associação desse objeto a uma estrutura Sps.
É na Estrutura Conceitual que se define a relação entre os níveis sintáticos e semânticos de
uma frase, que podem ser articulados de maneira direta, por meio de uma simples composição, ou
através de uma composição mais complexa, quando parte da estrutura semântica não está diretamente
representada no nível sintático
De acordo com o que afirma Jackendoff (2002), há na língua alguns enunciados nos quais
parte do conteúdo semântico não corresponde a alguma parte expressa nas estruturas fonológica e
sintática. Logo, a compreensão desses enunciados depende da interpretação de tal conteúdo não
explícito, o que é possível de se explicar pelo processo de composição enriquecida.
Na seqüência, apresento a análise de alguns dados lingüísticos, considerando os aspectos
teóricos aqui abordados.
3.
Uma Análise Semântica: adjetivos ou advérbios?
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Se pelo processo denominado ligação seletiva vimos que, em (14), (15) e (16), o adjetivo fácil
pode apresentar diferentes sentidos em função da polissemia da palavra livro, fato explicado pela
estrutura qualia do léxico, passemos a observar como o mesmo mecanismo ocorre regularmente em
outros casos, iniciando com o adjetivo rápido, já citado anteriormente em exemplos da abordagem
tradicional. Vejamos os seguintes casos:
(17) carro rápido
(18) digitador rápido
Enunciados como (17) e (18) são produzidos e compreendidos pelos falantes da língua
como carro que anda rápido e aquele que digita rápido. Tais interpretações não ocorrem por acaso,
pelo contrário, é possível explicá-las em função do que está contido no léxico.
Tanto em (17), quanto em (18), rápido não qualifica diretamente carro e digitador, mas a ação
desempenhada por eles, andar e digitar, fato que está implícito no enunciado. A preocupação da TLG
é formular uma explicação de como é possível se recuperar essa informação implícita, e tal explicação
se faz pela estrutura qualia das palavras.
Na estrutura qualia de carro, há o quale télico: "serve para andar". A mesma faceta é
encontrada na estrutura qualia de digitador: "serve para digitar". Portanto, é através do processo de
acionamento do quale télico das palavras que os enunciados (17) e (18) são interpretados como são.
Mesmo acionando, pela hipótese do léxico gerativo, aquilo que está intrínseco no léxico, é
possível interpretar (17) e (18) pelo processo de composição complexa, ou composição enriquecida,
dado por Jackendoff (2002) como um mecanismo que parece dar conta de explicar algumas
construções possíveis na língua. O ponto central dessa hipótese adotada pelo autor está no fato de o
falante poder abreviar sua declaração, como o faz em carro rápido, levando o seu interlocutor a
reconstruir a unidade não expressa, como carro que anda rápido.
Isso nos faz rever a classificação de rápido nas classes gramaticais. Na primeira seção, vimos
que rápido é adjetivo em um enunciado como ele era rápido e advérbio em ele pensou rápido.
Portanto, o mesmo termo pode pertencer a duas classes gramaticais, dependendo da construção da
sentença na qual se encontra. Assim, segundo essa visão tradicional da gramática, que segue critérios
morfológico-sintáticos, o termo rápido, tanto em (17) carro rápido quanto em (18) digitador rápido,
deve ser classificado como adjetivo com duas justificativas : acompanha/qualifica um nome e
flexiona-se em número. Entretanto, vimos que, nesta abordagem pautada na TLG, rápido atua sobre o
modo de agir tanto em (17) quanto em (18), o que nos faz afirmar que o que é adjetivo no campo
morfossintático, comporta-se como advérbio no campo da semântica.
Tal alteração mostra a diferença entre uma proposta de análise com critérios morfológicosintáticos e uma análise baseada em critérios semânticos, objetivo deste trabalho. Nesta última
abordagem, encontramos o sentido na estrutura subjacente (e não superficial) do enunciado e, para
mostrar a sistematicidade (regularidade) desse processo, enumero, a seguir, outros exemplos:
(19) psicólogo imaturo
(20) psicólogo infantil.
Há uma diferença na interpretação que se faz dos enunciados acima. Em (19), imaturo
predica a pessoa do psicólogo (quale formal), enquanto o mesmo não pode ser dito de infantil, em
(20), que predica a função do psicólogo (quale télico). Assim, teríamos somente imaturo como
qualidade atribuída ao nome, função canônica do adjetivo, ao passo que infantil qualifica o público
atendido pelo psicólogo. Algumas vezes, as duas facetas qualia do nome (formal e télica) se fazem
presentes, como ocorre em
(21) psicólogo bom.
Pode-se afirmar que bom predica a pessoa (formal), funcionando como adjetivo, mas também
o desempenho profissional (télico), o que daria ao adjetivo uma função semântica de advérbio. A
mesma ambigüidade pode ser observada nos enunciados
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(22) juiz honesto
(23) cozinheiro bom.
Em (22), pode-se interpretar honesto como uma qualidade que seja atribuída tanto à pessoa do
juiz quanto à sua função, como um juiz que toma decisões de forma honesta. Da mesma forma, em
(23), bom é uma qualidade que também pode ser atribuída tanto à pessoa quanto ao ato de cozinhar,
como um cozinheiro que cozinha bem. Tais interpretações são explicadas pelo acionamento do quale
formal (pessoa) e do quale télico (função) da estrutura de qualia dos nomes juiz e cozinheiro.
Logo, nesses casos, os "adjetivos" honesto e bom, em sua segunda interpretação, não
predicam um nome, mas o modo de agir das pessoas representadas por esse nome, o que nos leva a
reafirmar o comportamento adverbial dos mesmos, quando considerada uma análise semântica.
Além da função dos qualia formal e télico nos exemplos acima, podemos encontrar
enunciados cuja interpretação depende do acionamento do quale agentivo, como em
(24) alimento natural
(25) verdura orgânica.
A leitura esperada em (24) e (25) é que o alimento foi produzido de forma natural, do mesmo
modo como a verdura foi produzida de forma orgânica. Para isso, é necessário acionar o quale
agentivo, que especifica a criação do produto. Seguindo a mesma linha de análise, temos
(26) mesa ecológica,
caso em que, de forma mais precisa, dado o fato de mesa ser um artefato, podemos acionar o quale
agentivo para interpretar que a mesa fora produzida de forma ecológica, resgatando, assim, o valor de
advérbio ao termo ecológica. No entanto, o que dizer do exemplo
(27) homem ecológico?
Facilmente interpretaríamos como “um homem que age de modo ecologicamente correto”, mas
dificilmente atribuímos essa como uma função télica de homem. Logo, há ocorrências na língua
dependentes do contexto, explicadas pela pragmática, no entanto, a recuperação daquilo que está
subjacente se estrutura conceitualmente como nos casos em que é possível buscar a interpretação no
léxico.
Considerações Finais
Através da exposição de diferentes abordagens para análise do mesmo fato lingüístico,
pretendi mostrar que as classificações gramaticais não são tão inflexíveis quanto pretende a gramática
tradicional. Segundo NEVES (2001), “pode-se afirmar que, se o ‘ensino da gramática’ visa ao uso da
língua, não tem sentido a dedicação quase exclusiva ao próprio reconhecimento e catalogação das
classes de palavras. A consideração do papel funcional dessas classes (que nada mais são que partes do
discurso) não pode ser negligenciada”(p.65).
Além disso, ouso afirmar que o fato de não haver espaço para abordagem semântica em
estudos gramaticais faz com que se perca muito da diversidade de sentidos da língua, sentidos estes
que, muitas vezes, segundo a teoria do léxico gerativo, são produzidos através de regras que os
regulam. Em outras vezes, os sentidos são produzidos no contexto (fora da sentença) e explicados pela
pragmática.
Finalizo este trabalho apenas com duas observações. A primeira diz respeito à dificuldade de
se estabelecer o limite entre a semântica e a pragmática. Pelo processo de ligação seletiva e pela
estrutura qualia do nome, interpretaríamos professor rápido como professor que dá aulas de modo
rápido, visto que tal ação é a função dada pelo quale télico do nome professor. Contudo, o que dizer
do mesmo enunciado, se alguém, quando visse um de seus professores dirigindo velozmente pelo
campus da universidade, dissesse : "professor rápido".
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Eu arriscaria afirmar que, em termos de classes de palavras, rápido comporta-se como
advérbio, pois predica o modo de agir do professor. Porém, quando me refiro ao modo de agir, trata-se
do ato de dirigir e tal ação não se encontra na estrutura qualia (função télica) do nome professor, mas
sim do nome motorista. Logo, toda a explicação semântica dada pelo mecanismo de ligação seletiva só
faz sentido caso haja uma extensão da interpretação para o contexto. Nesse exemplo, seria necessário
saber que, quando o aluno enunciou professor rápido, ele estava vendo o professor, naquele momento,
como um motorista.
A segunda e última observação é que ainda há questões a serem respondidas nesta pesquisa,
pois há muito a ser investigado sobre adjetivos e advérbios na perspectiva da semântica conceptual.
Por exemplo, retornando ao termo rápido, se fizermos uma lista de possibilidades de construções
como carro rápido, motorista rápido, cozinheiro rápido, aluno rápido, professor rápido, podemos
verificar o que há de comum nas interpretações: rápido funciona como advérbio dado o acionamento
do quale télico dos nomes, que designam profissões ou funções. No entanto, poderíamos questionar se
o modo de agir já não estaria na natureza lexical do adjetivo rápido, isto é, receber o atributo de rápido
não corresponde intrinsicamente a agir de modo rápido? Estaríamos então diante de um adjetivo cuja
função já seria adverbial? Questões como essas possibilitam a continuidade do pesquisa, buscando
definir o que é lexical, conceptual e quando ambas as abordagens interagem.
Referências
CIPRO NETO, Pasquale. Gramática da língua portuguesa / Pasquale e Ulisses. São Paulo: Scipione,
1998.
CUNHA, Celso. Nova gramática do português contemporâneo / Celso Cunha e Luís F. Cintra. Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 1985.
ILARI et alii . “Considerações sobre a posição dos advérbios”. In: Castilho, A. T. De (org.) Gramática
do português falado: a ordem. Campinas: EDUNICAMP, 1990. v.1, p.63-141.
JACKENDOFF, Ray. Foundations of Language: Brain, Meaning, Grammar, Evolution. New York:
Oxford, University Press, 2002.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2001.
PUSTEJOVSKY, James . The Generative Lexicon. Cambridge, MIT Press, 1995.
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