2645 ADJETIVOS E ADVÉRBIOS EM UMA PERSPECTIVA LÉXICO-CONCEPTUAL Mônica Mano Trindade - UFPB Considerações Iniciais A partir de modelos teóricos que postulam a universalidade do sistema conceptual que ancora a semântica das línguas naturais e considerando este um estatuto teórico para explicação de fenômenos lingüísticos, delimita-se como objeto de estudo duas classes de palavras da língua portuguesa – adjetivo e advérbio – especificamente itens lexicais que se aplicam a ambas as classes, a exemplo de rápido. Assim, o objetivo deste trabalho, parte de uma pesquisa em andamento, é investigar adjetivos e advérbios em uma perspectiva semântica, considerando uma hipótese léxico-conceptual como explicação das ocorrências lingüísticas selecionadas para análise. Em um primeiro momento, apresento o tratamento dado aos adjetivos e advérbios na perspectiva da gramática tradicional, cuja análise, do conceito à classificação, pauta-se em critérios de natureza morfológico-sintático-funcional. Posteriormente, passo a tratar os mesmos dados em uma abordagem semântica, com base na teoria do léxico gerativo (PUSTEJOVSKY, 1995), associando tal fundamentação a uma perspectiva conceptual (JACKENDOFF, 2002). Utilizando critérios semânticos para o estudo dessas classes, pode-se observar que uma palavra como rápido, cuja classificação morfológica se alterna entre adjetivo e advérbio em contextos específicos, pode assumir diferentes sentidos em função do nome que a acompanha, o que possibilitaria uma revisão em relação à classificação da mesma. Pela interpretação aqui proposta, rápido, em carro rápido e digitador rápido funcionaria como advérbio, pois não qualifica diretamente carro e digitador, mas a ação desempenhada por tais nomes – andar e digitar –, fato que está implícito nos enunciados. Pode-se afirmar que tais enunciados são, respectivamente, compreendidos pelos falantes da língua como carro que anda rápido e aquele que digita rápido. Porém, tais interpretações não ocorrem por acaso, pois é possível explicá-las em função do resgate feito pelo falante daquilo que não é expresso no nível superficial do enunciado, a partir do que está contido no léxico. Finalizo com a análise deste tipo de ocorrência, com o propósito de investigar se se trata de um processo regular, e se é possível a formulação de uma explicação que concilie tanto o aspecto lexical quanto o conceptual. 1. Adjetivos e Advérbios na Perspectiva Tradicional A apresentação feita nesta seção é baseada em consulta a dois autores, selecionados aleatoriamente, porém trata-se de uma exposição representativa do tratamento dado às classes estudadas pelos gramáticos em geral. Cunha (1985) e Cipro Neto (1998) conceituam adjetivo como “palavra modificadora do substantivo, atribuindo-lhe qualidade (ou defeito), modo de ser, aspecto, aparência ou estado”. Apontam para o fato de que, como muitas vezes as mesmas palavras podem ser classificadas como adjetivo ou como substantivo, é necessário acionar os elementos fornecidos pelo contexto sintático para que seja possível a distinção entre ambos. Isso ocorre em oposições como o jovem brasileiro e o brasileiro jovem, pois jovem é, respectivamente, substantivo e adjetivo, ocorrendo o contrário com brasileiro. Em seqüência, apresentam a classificação dos adjetivos que, quanto à estrutura e formação, podem ser: primitivos/derivados; simples/composto. Também abordam o processo de flexão dos 2646 adjetivos, que são variáveis, pois concordam tanto em gênero (masculino e feminino), quanto em número (singular e plural) com os substantivos aos quais se referem. Em relação ao gênero, há aqueles considerados neutros, cuja forma qualifica tanto substantivos masculinos, quanto femininos. É o caso, por exemplo, do vocábulo quente. Além das flexões de número e gênero, essa classe gramatical apresenta uma complexa flexão de grau, da qual fazem parte: grau comparativo de igualdade, superioridade e inferioridade; grau superlativo relativo de superioridade e inferioridade; grau superlativo absoluto analítico e sintético. Além desses critérios morfológicos, que determinam o lugar do adjetivo entre as demais classes gramaticais e o seu comportamento flexional, tradicionalmente se classificam os adjetivos em relação ao tipo de característica que exprimem, como por exemplo, cor, forma, temperatura, proporção, intensidade, qualidade, considerando-se, neste único caso, um critério semântico. No que diz respeito a uma análise de cunho sintático, a classe dos adjetivos possui as funções adjunto adnominal e predicativo, sendo esta última ainda classificada como predicativo do sujeito ou do objeto. Vejamos exemplos dessas denominações a partir dos enunciados: (1) Os alunos despreocupados nunca comparecem às aulas. (2) Os alunos parecem despreocupados. (3) Deixei-os despreocupados. Nos três exemplos acima, o mesmo adjetivo apresenta várias funções sintáticas. Em (1), despreocupados funciona como adjunto adnominal, pois se trata de uma qualificação ao substantivo, sem a intermediação de um verbo. Já em (2) e (3), o mesmo adjetivo é denominado de predicativo, pois a qualificação é atribuída por intermédio de um verbo, seja este explícito - como o verbo parecer em (2) - ou implícito - como o verbo estar em (3). A diferença entre (2) e (3) baseia-se na função sintática do termo que recebe a qualificação dada pelo predicativo. Em (2), atribui-se a qualidade a alunos, termo que sintaticamente funciona como sujeito. Já em (3), atribui-se a qualidade a um substantivo substituído pelo pronome os, cuja função sintática é a de objeto. Logo, em (2) temos um predicativo do sujeito e em (3), um predicativo do objeto. Em relação à classe dos advérbios, Cunha (1985) e Cipro Neto (1998) apontam para a sua função principal - modificador do verbo - para, em seguida, acrescentarem o fato de que o advérbio também pode reforçar o sentido de um adjetivo, de um outro advérbio, ou até mesmo fazer referência a uma oração inteira, como mostram, respectivamente, os exemplos: (4) Ficara completamente imóvel. (5) Passei a noite mal! Bem mal! (6) Infelizmente, o projeto não foi aprovado. Após a definição, os autores apresentam os tipos de advérbios, que se classificam de acordo com a circunstância que expressam, como: modo, intensidade, dúvida, afirmação, lugar, negação e tempo. Há outras circunstâncias expressas pelos advérbios, no entanto, não foram citadas em ambas as gramáticas. Em seqüência, apresentam algumas considerações em relação ao uso dessa classe, tais como: colocação e flexão dos advérbios em grau comparativo e superlativo. Em termos sintáticos, os advérbios são sempre classificados como adjuntos adverbiais, seguidos do nome da circunstância que exprimem. 1.1 Adjetivos X Advérbios Até o momento, as duas classes estão apresentadas de modo fragmentado. No entanto, produzimos enunciados evidenciam a existência de algum tipo de relação entre adjetivo e advérbio. Um exemplo disso é a relação de proximidade, que permite certa confusão entre o adjetivo com função sintática de predicativo e o advérbio quando este exprime circunstância de modo. Em termos gerais, o primeiro qualifica um nome, enquanto o segundo modifica um verbo. Entretanto, esse limite pode não ser muito preciso, como ocorre em: 2647 Critério morfológico: adjetivo Critério morfológico: advérbio Critério sintático: predicativo Critério sintático: adverbial de modo Ele era rápido. Ele pensou rápido. Podemos pensar em dois modos de diferenciar rápido (adjetivo) de rápido (advérbio): a) O adjetivo está acompanhado de um verbo de ligação, enquanto o advérbio, de um verbo de ação. Quando o adjetivo aparece em sentenças com verbos de ação, há sempre a possibilidade de se interpretar implicitamente a presença de um verbo de ligação, que não é expresso na estrutura superficial, como é o caso do verbo ser em: (7) Saiu (?) estudante e voltou (?) doutor. b) O adjetivo é uma classe que possui flexão de número, enquanto o advérbio é invariável. Logo, se alterarmos cada enunciado para sua forma no plural, temos rápido como adjetivo em (8) e rápido como advérbio em (9): (8) Eles eram rápidos. (9) Eles pensaram rápido. Tal relação de proximidade entre adjetivo e advérbio – não explorada pela gramática tradicional – é percebida por alguns autores da área da lingüística quando realizam estudos sobre classes gramaticais. ILARI et alii (1990) propõem uma classificação para os advérbios, através da qual inserem a noção de advérbios predicativos e não-predicativos. Na afirmação tradicional de que o advérbio modifica tipicamente o sentido do verbo ou do adjetivo está implícita a hipótese de que ele expressa uma espécie de predicação de grau superior: assim como o verbo ou o adjetivo atribuem uma ação ou uma propriedade ao sujeito, o advérbio predicaria uma propriedade da qualidade ou ação que se atribui ao sujeito: assim em ‘João caminha lentamente’, descreve-se como sendo lenta a ação de caminhar que se atribui a João.(p.89) Segundo os autores, há várias classes de advérbios que se enquadram nos advérbios predicativos, e a primeira dessas classes é representada por construções como comer bem: o paralelismo dessa construção com a que se compõe de substantivo mais adjetivo indicando qualidade (comida boa) é flagrante, e foi a principal motivação para denominar os advérbios dessa subclasse de ‘qualitativos’(p.91) NEVES (2000), no capítulo referente ao estudo dos advérbios, também aponta para a referida relação entre tal classe e a dos adjetivos. Segundo a autora, Os advérbios de modo constituem uma classe aberta na língua, uma vez que, em princípio, os adjetivos qualificadores em geral podem converter-se em advérbio de modo pelo acréscimo do sufixo –MENTE à forma feminina(...) Um adjetivo pode, porém, ser gramaticalizado como advérbio mesmo sem o acréscimo de – mente: falava DURO, DIFÍCIL.(p.243) Considerando tais citações, podemos retomar os exemplos - Ele era rápido e Ele pensou rápido – e fazer as seguintes afirmações: a) no segundo caso, rápido poderia ser classificado como um advérbio predicativo, pois descreve-se somo sendo rápida a ação de pensar que é atribuída ao sujeito. b) também no segundo caso, poderíamos pensar em rápido como um adjetivo gramaticalizado em advérbio pelo seu uso. Portanto, o que se observa através da investigação de outros enfoques sobre o tema é que não se pode negar a evidente relação entre as duas classes gramaticais. No entanto, cabe aqui ressaltar o fato de que todos os itens abordados em relação às classes de adjetivos e de advérbios - conceito, característica, classificação - bem como os critérios de diferenciação entre ambas são de natureza 2648 morfológico-sintático-funcional. Entretanto, utilizando de critérios semânticos para o estudo dessas classes, veremos que uma palavra como rápido pode assumir diferentes sentidos em função do nome que acompanha, e esse fato possibilita uma revisão em relação à classificação morfológica da mesma. Assim, dando seqüência ao trabalho, passo a uma breve apresentação das teorias semânticas nas quais a pesquisa se pauta - Léxico Gerativo (PUSTEJOVSKY, 1995), especificamente no que diz respeito ao tratamento que pode se dado aos adjetivos e advérbios, e Semântica Conceptual (JACKENDOFF, 2002). 2. Léxico Gerativo e Semântica Conceptual Desde a década de 80 do século passado, têm surgido modelos teóricos que postulam a universalidade do sistema conceptual que ancora a semântica das línguas naturais, entre eles a semântica conceptual de Jackendoff e o léxico gerativo de Pustejovsky, ambos apresentados nesta seção, como aporte teórico à análise. O que justifica a aproximação dos referidos autores é que os trabalhos de Pustejovsky e Jackendoff, mesmo pautados em linhas semânticas diferentes, uma vez que este vê a linguagem como representação conceitual do mundo, e aquele a concebe apenas no aspecto formal, possuem alguns pontos convergentes: a) ambos adotam uma abordagem lexicalista, assumindo como aspectos da língua a polimorfia e a composicionalidade; b) ambos pressupõem em suas análises que nem toda estrutura semântica deve aparecer no nível da sintaxe; c) em função de (a) e (b), ambos propõem o enriquecimento das representações lexicais a partir de regras composicionais mais abrangentes, fato no qual se embasa este estudo. 2.1 Léxico Gerativo Com intuito de propor uma teoria que seja capaz de estabelecer regras que expliquem asistematicidade dos casos de polissemia, Pustejovsky (1995) expõe a teoria do léxico gerativo (TLG) como um modelo vantajoso no que diz respeito ao aspecto criativo e econômico da língua. Desse modo, sua teoria pressupõe que muito do que ocorre no âmbito da sentença está regulado pelo léxico e a caracterização dos itens lexicais passa pela existência de níveis distintos para a representação da informação sintático-semântica, como a estrutura argumental (A), a estrutura de eventos (E), a estrutura qualia (Q) e a estrutura de herança lexical (H). Tais níveis de representação combinam-se através de um conjunto de mecanismos gerativos que incluem operações como cocomposicionalidade, ligação seletiva e coerção de tipo. Interessa-me neste artigo apresentar o mecanismo de ligação seletiva, que explica o uso criativo dos adjetivos e a estrutura qualia, em cujas facetas encontramos explicações para tal mecanismo. A estrutura qualia é o nível que representa a formação dos papéis semânticos da estrutura subjacente de um item lexical. Nela estão representados os diferentes tipos de relação que os objetos podem estabelecer entre si, bem como a função e a origem desses objetos. É baseada em quatro aspectos relacionais, que são os seguintes papéis: Quale Constitutivo Especifica a relação entre o objeto e seus constituintes. Quale Formal Explicita a distinção do objeto dentro de um domínio mais abrangente. Quale Télico Indica a finalidade do objeto. Quale Agentivo Especifica a origem do objeto. 2649 Em relação a esta estrutura, Pustejovsky atenta ao fato de haver dois pressupostos fundamentais: o primeiro é o de que todos os itens lexicais, independentemente da sua categoria, têm uma estrutura qualia e o segundo diz respeito ao fato de nem todos os itens lexicais terem um valor para cada papel quale. Palavras que parecem ter um único sentido, muitas vezes, possuem uma sutil polissemia, o que pode ser exemplificado com as seguintes sentenças: (10) O livro é pesado (11) O livro é emocionante. O enunciado (10) faz referência a livro como objeto físico (x), e o enunciado (11) aciona o sentido abstrato do termo livro como conteúdo ou informação (y). Já em (12) João leu o livro e (13) João escreveu o livro os dois sentidos (x.y) são simultaneamente acionados em função de uma exigência dos verbos ler e escrever, que requerem um argumento complexo, formado pela junção de dois argumentos simples (objeto físico + conteúdo informativo). Assim, vejamos a representação deste termo em sua estrutura qualia: LIVRO Contitutivo: capa, folhas etc. Formal: x contém y Télico: ler (e, w, x.y) Agentivo: escrever (e, w, x.y) Onde x = objeto físico; y = informação; e = evento; w = agente; x.y = argumento complexo (objeto físico + informação) A estrutura qualia explica os mecanismos gerativos que permitem interpretar as palavras em contexto, entre eles a ligação seletiva. Em um enunciado como um livro fácil, podem ser acionados três sentidos diferentes: (14) um livro fácil de escrever (15) um livro fácil de ler (16) um livro fácil de montar Nesse caso, a polissemia não está na palavra fácil, mas em livro, que apresenta todas essas facetas em sua estrutura lexical. Assim, retomando a estrutura qualia de livro, podemos afirmar que em (14), é acionado o quale agentivo; em (15), o quale télico e em (16), o quale constitutivo. Trata-se do processo de ligação seletiva, que permite captar a relação semântica estabelecida entre o modificador (fácil) e o núcleo nominal que ele modifica (livro). Isso permite que em um composto nome mais adjetivo, este seja aplicado diretamente a um papel quale do nome. 2.2 Teoria Conceptual de Jackendoff Buscando embasamento para sua teoria, Jackendoff (2002) aponta que as questões centrais para uma teoria semântica se resumem em como podem ser caracterizados os conceitos expressos pelos falantes e como a linguagem transfere esses significados. A proposta do autor parte do princípio de que uma teoria semântica deve se encaixar em uma concepção mais ampla, que é a teoria mentalista, da qual faz parte um domínio designado como f-mind – domínio funcional. Assim, os processos interativos, como compreensão de contexto, inferências, julgamentos e conexão entre mensagem e ação, podem ser estruturados em um diagrama por meio do qual se organizam todas as 2650 interfaces que a estrutura cognitiva acessa. O importante é que todos esses processos operam no mesmo tipo de estrutura cognitiva que pode ser expressa pela linguagem. As interfaces para o sistema perceptual são o que permite alguém formar um pensamento baseado na observação do mundo: com a linguagem, alguém pode dizer o que vê, o que ouve, o que sente. Isso também pode operar em outra direção: a linguagem se direciona para algo do campo conceitual, a exemplo das expressões como você viu? preste atenção. É importante ressaltar que, para esse autor, o trabalho de compreensão do mundo conceitualizado é dividido entre essas duas estruturas, o que não exclui a existência de outros níveis. A Estrutura Conceitual (Cs) corresponde a uma organização hierárquica, construída de traços e funções discretos, que permite codificar aspectos da compreensão, tais como membros de categoria (taxonomia), relação argumento/predicado e quantificação. Já a Estrutura Espacial (Sps) é definida como uma organização que possibilita o entendimento espacial do mundo físico, como forma, configuração, deslocamento e esquematização dos objetos no espaço. Trata-se de um sistema da cognição central, com nível abstrato e hipotético, mas não estritamente visual. Segundo hipótese elaborada por Jackendoff, os aspectos gramaticais da linguagem fazem referência somente a CS, não a Sps. Assim, nem todos os itens lexicais têm um componente Sps. Como exemplo desse fato, há palavras como if e not, expressões de conceito lógico, e fairness e value, expressões de conceitos abstratos. Ao contrário, aplicando tais conceitos a outros itens lexicais, afirma-se que um nome como cat terá uma Cs que o identifica como um animal e um membro da família felina, o que o especifica tipicamente como um pet (animal de estimação). Além disso, também terá uma Sps, que decodifica, por exemplo, caracterísitcas como a cor, a configuração e a capacidade de se movimentar do animal. Assim, se, por um lado, há inferências que se relacionam exclusivamente a uma única estrutura, por outro, há uma sobreposição entre os dois níveis, casos como objeto físico, que tem reflexo em ambas as estruturas. Conceituar itens lexicais com base em tais estruturas - Cs e Sps - permite-nos dizer que talvez haja um certo nível de aproximação entre esse procedimento e a análise lexical embasada na estrutura de Qualia (2.1). O quale formal, que especifica o objeto em relação aos demais, pode ser associado à estrutura taxonômica, responsável por identificar a que categoria o objeto pertence, uma das funções contidas na Estrutura Conceitual. Os elementos identificados na Estrutura Espacial, relacionados aos aspectos sensoriais e composicionais, equivalem, de uma certa forma, ao quale constitutivo, que designa o material de que é feito o objeto e as partes que o compõem. Quando se trata de uma entidade classificada no quale formal de objeto físico, são perceptíveis os elementos do quale constitutivo, bem como a associação desse objeto a uma estrutura Sps. É na Estrutura Conceitual que se define a relação entre os níveis sintáticos e semânticos de uma frase, que podem ser articulados de maneira direta, por meio de uma simples composição, ou através de uma composição mais complexa, quando parte da estrutura semântica não está diretamente representada no nível sintático De acordo com o que afirma Jackendoff (2002), há na língua alguns enunciados nos quais parte do conteúdo semântico não corresponde a alguma parte expressa nas estruturas fonológica e sintática. Logo, a compreensão desses enunciados depende da interpretação de tal conteúdo não explícito, o que é possível de se explicar pelo processo de composição enriquecida. Na seqüência, apresento a análise de alguns dados lingüísticos, considerando os aspectos teóricos aqui abordados. 3. Uma Análise Semântica: adjetivos ou advérbios? 2651 Se pelo processo denominado ligação seletiva vimos que, em (14), (15) e (16), o adjetivo fácil pode apresentar diferentes sentidos em função da polissemia da palavra livro, fato explicado pela estrutura qualia do léxico, passemos a observar como o mesmo mecanismo ocorre regularmente em outros casos, iniciando com o adjetivo rápido, já citado anteriormente em exemplos da abordagem tradicional. Vejamos os seguintes casos: (17) carro rápido (18) digitador rápido Enunciados como (17) e (18) são produzidos e compreendidos pelos falantes da língua como carro que anda rápido e aquele que digita rápido. Tais interpretações não ocorrem por acaso, pelo contrário, é possível explicá-las em função do que está contido no léxico. Tanto em (17), quanto em (18), rápido não qualifica diretamente carro e digitador, mas a ação desempenhada por eles, andar e digitar, fato que está implícito no enunciado. A preocupação da TLG é formular uma explicação de como é possível se recuperar essa informação implícita, e tal explicação se faz pela estrutura qualia das palavras. Na estrutura qualia de carro, há o quale télico: "serve para andar". A mesma faceta é encontrada na estrutura qualia de digitador: "serve para digitar". Portanto, é através do processo de acionamento do quale télico das palavras que os enunciados (17) e (18) são interpretados como são. Mesmo acionando, pela hipótese do léxico gerativo, aquilo que está intrínseco no léxico, é possível interpretar (17) e (18) pelo processo de composição complexa, ou composição enriquecida, dado por Jackendoff (2002) como um mecanismo que parece dar conta de explicar algumas construções possíveis na língua. O ponto central dessa hipótese adotada pelo autor está no fato de o falante poder abreviar sua declaração, como o faz em carro rápido, levando o seu interlocutor a reconstruir a unidade não expressa, como carro que anda rápido. Isso nos faz rever a classificação de rápido nas classes gramaticais. Na primeira seção, vimos que rápido é adjetivo em um enunciado como ele era rápido e advérbio em ele pensou rápido. Portanto, o mesmo termo pode pertencer a duas classes gramaticais, dependendo da construção da sentença na qual se encontra. Assim, segundo essa visão tradicional da gramática, que segue critérios morfológico-sintáticos, o termo rápido, tanto em (17) carro rápido quanto em (18) digitador rápido, deve ser classificado como adjetivo com duas justificativas : acompanha/qualifica um nome e flexiona-se em número. Entretanto, vimos que, nesta abordagem pautada na TLG, rápido atua sobre o modo de agir tanto em (17) quanto em (18), o que nos faz afirmar que o que é adjetivo no campo morfossintático, comporta-se como advérbio no campo da semântica. Tal alteração mostra a diferença entre uma proposta de análise com critérios morfológicosintáticos e uma análise baseada em critérios semânticos, objetivo deste trabalho. Nesta última abordagem, encontramos o sentido na estrutura subjacente (e não superficial) do enunciado e, para mostrar a sistematicidade (regularidade) desse processo, enumero, a seguir, outros exemplos: (19) psicólogo imaturo (20) psicólogo infantil. Há uma diferença na interpretação que se faz dos enunciados acima. Em (19), imaturo predica a pessoa do psicólogo (quale formal), enquanto o mesmo não pode ser dito de infantil, em (20), que predica a função do psicólogo (quale télico). Assim, teríamos somente imaturo como qualidade atribuída ao nome, função canônica do adjetivo, ao passo que infantil qualifica o público atendido pelo psicólogo. Algumas vezes, as duas facetas qualia do nome (formal e télica) se fazem presentes, como ocorre em (21) psicólogo bom. Pode-se afirmar que bom predica a pessoa (formal), funcionando como adjetivo, mas também o desempenho profissional (télico), o que daria ao adjetivo uma função semântica de advérbio. A mesma ambigüidade pode ser observada nos enunciados 2652 (22) juiz honesto (23) cozinheiro bom. Em (22), pode-se interpretar honesto como uma qualidade que seja atribuída tanto à pessoa do juiz quanto à sua função, como um juiz que toma decisões de forma honesta. Da mesma forma, em (23), bom é uma qualidade que também pode ser atribuída tanto à pessoa quanto ao ato de cozinhar, como um cozinheiro que cozinha bem. Tais interpretações são explicadas pelo acionamento do quale formal (pessoa) e do quale télico (função) da estrutura de qualia dos nomes juiz e cozinheiro. Logo, nesses casos, os "adjetivos" honesto e bom, em sua segunda interpretação, não predicam um nome, mas o modo de agir das pessoas representadas por esse nome, o que nos leva a reafirmar o comportamento adverbial dos mesmos, quando considerada uma análise semântica. Além da função dos qualia formal e télico nos exemplos acima, podemos encontrar enunciados cuja interpretação depende do acionamento do quale agentivo, como em (24) alimento natural (25) verdura orgânica. A leitura esperada em (24) e (25) é que o alimento foi produzido de forma natural, do mesmo modo como a verdura foi produzida de forma orgânica. Para isso, é necessário acionar o quale agentivo, que especifica a criação do produto. Seguindo a mesma linha de análise, temos (26) mesa ecológica, caso em que, de forma mais precisa, dado o fato de mesa ser um artefato, podemos acionar o quale agentivo para interpretar que a mesa fora produzida de forma ecológica, resgatando, assim, o valor de advérbio ao termo ecológica. No entanto, o que dizer do exemplo (27) homem ecológico? Facilmente interpretaríamos como “um homem que age de modo ecologicamente correto”, mas dificilmente atribuímos essa como uma função télica de homem. Logo, há ocorrências na língua dependentes do contexto, explicadas pela pragmática, no entanto, a recuperação daquilo que está subjacente se estrutura conceitualmente como nos casos em que é possível buscar a interpretação no léxico. Considerações Finais Através da exposição de diferentes abordagens para análise do mesmo fato lingüístico, pretendi mostrar que as classificações gramaticais não são tão inflexíveis quanto pretende a gramática tradicional. Segundo NEVES (2001), “pode-se afirmar que, se o ‘ensino da gramática’ visa ao uso da língua, não tem sentido a dedicação quase exclusiva ao próprio reconhecimento e catalogação das classes de palavras. A consideração do papel funcional dessas classes (que nada mais são que partes do discurso) não pode ser negligenciada”(p.65). Além disso, ouso afirmar que o fato de não haver espaço para abordagem semântica em estudos gramaticais faz com que se perca muito da diversidade de sentidos da língua, sentidos estes que, muitas vezes, segundo a teoria do léxico gerativo, são produzidos através de regras que os regulam. Em outras vezes, os sentidos são produzidos no contexto (fora da sentença) e explicados pela pragmática. Finalizo este trabalho apenas com duas observações. A primeira diz respeito à dificuldade de se estabelecer o limite entre a semântica e a pragmática. Pelo processo de ligação seletiva e pela estrutura qualia do nome, interpretaríamos professor rápido como professor que dá aulas de modo rápido, visto que tal ação é a função dada pelo quale télico do nome professor. Contudo, o que dizer do mesmo enunciado, se alguém, quando visse um de seus professores dirigindo velozmente pelo campus da universidade, dissesse : "professor rápido". 2653 Eu arriscaria afirmar que, em termos de classes de palavras, rápido comporta-se como advérbio, pois predica o modo de agir do professor. Porém, quando me refiro ao modo de agir, trata-se do ato de dirigir e tal ação não se encontra na estrutura qualia (função télica) do nome professor, mas sim do nome motorista. Logo, toda a explicação semântica dada pelo mecanismo de ligação seletiva só faz sentido caso haja uma extensão da interpretação para o contexto. Nesse exemplo, seria necessário saber que, quando o aluno enunciou professor rápido, ele estava vendo o professor, naquele momento, como um motorista. A segunda e última observação é que ainda há questões a serem respondidas nesta pesquisa, pois há muito a ser investigado sobre adjetivos e advérbios na perspectiva da semântica conceptual. Por exemplo, retornando ao termo rápido, se fizermos uma lista de possibilidades de construções como carro rápido, motorista rápido, cozinheiro rápido, aluno rápido, professor rápido, podemos verificar o que há de comum nas interpretações: rápido funciona como advérbio dado o acionamento do quale télico dos nomes, que designam profissões ou funções. No entanto, poderíamos questionar se o modo de agir já não estaria na natureza lexical do adjetivo rápido, isto é, receber o atributo de rápido não corresponde intrinsicamente a agir de modo rápido? Estaríamos então diante de um adjetivo cuja função já seria adverbial? Questões como essas possibilitam a continuidade do pesquisa, buscando definir o que é lexical, conceptual e quando ambas as abordagens interagem. Referências CIPRO NETO, Pasquale. Gramática da língua portuguesa / Pasquale e Ulisses. São Paulo: Scipione, 1998. CUNHA, Celso. Nova gramática do português contemporâneo / Celso Cunha e Luís F. Cintra. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. ILARI et alii . “Considerações sobre a posição dos advérbios”. In: Castilho, A. T. De (org.) Gramática do português falado: a ordem. Campinas: EDUNICAMP, 1990. v.1, p.63-141. JACKENDOFF, Ray. Foundations of Language: Brain, Meaning, Grammar, Evolution. New York: Oxford, University Press, 2002. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2001. PUSTEJOVSKY, James . The Generative Lexicon. Cambridge, MIT Press, 1995.