PRIMADO DOS VALORES ANTROPOLÓGICOS MIGUEL REALE O mais complexo e difícil dos problemas humanos é o do próprio homem e sua história. Indagar do sentido desta, e de como ela se desenvolve no tempo, implica aceitar a existência ou não de valores dotados de certa duração e consistência. Enquanto perdurou a crença em um Direito Natural de caráter transcendente, como expressão de uma tábua de direitos e deveres inatos e superiores, que o ser humano era obrigado a respeitar para legitimar as suas ações, a continuidade do processo histórico foi considerada isenta de desvios e mutações que pusessem em risco o seu desenvolvimento natural. Quando, a partir do século 15, com o Humanismo e o Renascimento, é o homem visto como foco ou centro irradiador da própria conduta, independentemente de diretrizes divinas, o conhecimento dos indivíduos e das coletividades se baseia no homem mesmo, o que dá início ao que chamamos de modernidade. Na era moderna, com efeito, o que interessa fundamentalmente é o campo de interesses e valores vividos pelo ser humano em sua faina histórica, que Machiavelli entendeu sujeita a virtudes subjetivas e ao acaso, que ele denominava fortuna. Grande passo na compreensão do comportamento humano através do tempo foi dado por Giambattista Vico, que negou a continuidade da história em sua clássica obra Princípios de uma Ciência Nova, mostrando, com abundância de exemplos, que ela se processa através de períodos que se repetem como corsi e ricorsi (idas e vindas) ou, como expressivamente diz Gilberto Freyre, “surgências e insurgências”. Ficava, assim, aberto o debate para saber-se se no decurso das distintas civilizações, o homem se depara com “valores imutáveis”, ou, se, ao contrário, tudo é relativo, dependente de causas objetivas e de imprevisíveis circunstâncias. A posição de Hegel, na primeira metade do século 19, foi no sentido do crescente desenvolvimento unitário da história, defendendo um historicismo absoluto que em si próprio se legitimava, não deixando resto para o acaso ou a fortuna, tudo acontecendo em função da seriação objetiva das idéias. É sabido que contra essa historicidade idealista se situou a filosofia positiva, que substituiu o desenrolar das idéias pela concatenação objetiva dos fatos, ligados entre si por uma causalidade natural imanente, que punha em causa liberdade como tal. Reagindo contra o naturalismo positivista surgiram, a cavaleiro dos séculos 19 e 20, várias correntes de idéias, restituindo a liberdade à experiência ética, como o fez Bergson; ou revelando, através do processo histórico, as autônomas forças psicológico-vitais do mundo do espírito, consoante o compreendeu Dilthey. De uma forma ou de outra, ganhou, então, a atenção dos filósofos não naturalistas, a problemática dos valores, concebidos antes como entidades ideais, equivalentes aos entes lógicos e matemáticos. É a essa altura que situo meu pensamento, porém negando a idealidade dos valores, que considero expressões do dever-ser e não do ser, o que dá lugar ao “historicismo axiológico”, termo com que o filósofo italiano Luigi Bagolini qualificou minha posição. Ficava de pé o problema da relatividade ou não do processo histórico, reconhecido como sendo próprio das ciências humanas, chegando eu à conclusão de que, não obstante a natureza histórica dos valores, há alguns que, em virtude de sua relevância e essencialidade para a existência humana, se tornam constantes, perenemente exigíveis. São os que denomino „Invariantes Axiológicas”, como o valor da pessoa humana, o direito à vida, ou a liberdade, exemplos por excelência de valores antropológicos. A última das invariantes axiológicas é o valor ecológico, que a Constituição de 1988 consagra no Art. 225, segundo o qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações”. Compreendem-se o entusiasmo e a dedicação que em todos desperta essa nova invariante axiológica, sendo natural que atentamente a defendam o Poder Judiciário e o Ministério Público. Há, todavia, necessidade de se reconhecer que o ecológico não é um valor absoluto, porquanto a preservação do meio ambiente é exercida em função da vida humana, ou por outras palavras, da “pessoa humana”, a qual representa o valor-fonte de todos os valores. A Ecologia subordina-se, assim, à Antropologia, o que o Ministério Público não raro esquece, perpetrando erros que bloqueiam iniciativas do maior alcance social e existencial. Nesse sentido, lembro-me que a artista de televisão Xuxa teve a idéia de construir um grande parque de diversões à margem do rio Itanhaem, inspirando-se no de Orlando, não podendo realizar esse empreendimento pelo fato do magistrado local ter julgado procedente a ação promovida pelo promotor público que entendeu que o projeto iria abranger áreas destinadas à habitação popular. Imenso foi o prejuízo para a coletividade em geral e, especialmente, para o turismo de Itanhaem, cidade histórica em declínio turístico, em confronto com os seus antigos distritos, os Municípios de Peruibe e Monganguá. O certo é que as áreas supostamente ameaçadas e desnecessariamente preservadas continuam em total abandono, por não serem propícias à moradia. Interferência inexplicável do Ministério Público temos também com a sustação da construção da barragem de Paraitinga e Biritiba-Mirim, destinadas a abastecer mais de 4m³ para o Reservatório da Cantareira, ora em gravíssima crise, a pretexto de que seria impedida a passagem de animais... Poderia dar outros exemplos de injustificados óbices a necessários serviços públicos, mas os expostos bastam para demonstrar que o Poder Judiciário e o Ministério Público têm dado excessiva proteção a fatos que não representam prejuízo real ao meio ambiente, lesando interesses sociais relevantes, esquecidos de que se protege a natureza em razão do homem. EM DEFESA DOS VALORES HUMANÍSTICOS MIGUEL REALE Foi pelo menos oportuna a publicação nesta página (28/02 – A2) de meu artigo sobre “o primado dos valores antropológicos”, porque, à vista das duas cartas de leitores contrários às minhas idéias, ficamos sabendo em que se baseiam os partidários do “fundamentalismo ecológico” de alguns mentores de nosso Ministério Público ao impugnarem, a pretexto de salvaguarda do meio ambiente, obras públicas e privadas que visam atender a iniciativas de inegável interesse público. Alegam eles que, no mundo atual, prevalece o entendimento de que o homem deve ser encarado “como um ser vivo como outro qualquer”, sendo o ecológico um “valor absoluto”, de tal modo que não cabe mais falar em subordinação da Ecologia à Antropologia, nem tampouco que se defenda a natureza em razão da pessoa humana. Para legitimarem suas atuações na esfera judicial, chegam a dizer que assim o determina a Constituição Federal, bastando a leitura do Art. 170, inciso VI, “o qual subordina o desenvolvimento econômico à proteção do meio ambiente”, o que é só em parte certo, visto como os demais incisos desse mesmo artigo estabelecem outros valores a que o desenvolvimento está subordinado, ou seja, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, ou a redução das desigualdades regionais ou sociais. Um dos erros banais de Hermenêutica Jurídica consiste em destacar um preceito da lei ou uma cláusula do contrato para com esse elemento abusivamente isolado fundamentar seu ponto de vista... Na realidade, a verdade é bem outra, pois a nossa Carta Magna, logo no Art. 1o, de manifesto sentido preambular, insere, entre os “fundamentos” (sic) do Estado Democrático de Direito, “a dignidade da pessoa humana” e a “livre iniciativa”, a qual somente pode ser obstada, entre outras razões, por irrecusável dano que possa ser causado ao meio ambiente. Assim sendo, é necessário, em tal caso, um balanceamento sereno e objetivo dos interesses e valores em jogo, sem predomínio de fanático apego a um só deles, máxime com base em frágil visão materialista do mundo. Quanto à “dignidade da pessoa humana”, entra pelos olhos que o legislador constituinte não a teria enaltecido, se ele estivesse convencido de que o homem é “um ser vivo como outro qualquer”! O proclamado pela Constituição de 1988 corresponde plenamente à idéia de que a pessoa humana é, como costumo dizer, o valor-fonte de todos os valores individuais e coletivos, possuindo algo que a distingue substancialmente da natureza dos outros animais. Se assim não fosse, aliás, não assistiria razão para o Art. 1o do novo Código Civil estatuir que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. O primado, por conseguinte, dos valores antropológicos sobre os ecológicos tem como base o valor primordial da pessoa humana, o único ser vivo que tem consciência do que é e do que deve ser. Somente ela é dotada da faculdade que os juristas italianos denominam consapevolezza, que poderíamos traduzir por conscienciabilidade, ou seja, o poder de ter ciência de si mesmo e de deliberar em razão dela. Não se trata de antropocentrismo que coloque o ser humano no centro do universo, pois essa é uma das várias teses relativas à posição do homem no cosmo, havendo pensadores ilustres que se limitam a considera-lo um ente finito que se distingue dos demais por sua autoconsciência. O humanismo tem múltiplas e variadas dimensões, como o sabe qualquer leitor atento mesmo de compêndios elementares de Filosofia. Não cabe aqui dissertar sobre a problemática da consciência, se ela é uma originária instauração divina, ou o resultado final de uma progressiva evolução física ou natural, porque o que importa é verificar que ela é uma propriedade ou requisito próprio e exclusivo do ser humano, o que justifica tenha ele uma vida diferente da dos outros animais. Que significa “dignidade da pessoa humana”, a que se refere a Lei Maior, senão uma existência pessoal fundada em valores que cada vez mais a enriqueçam tanto no plano do desenvolvimento material como no espiritual, desde as aspirações religiosas às artísticas, desde as da vida comum às científicas? Para tanto o homem não pode deixar de se utilizar da natureza para atingir melhor qualidade de vida, o que implica, muitas vezes, a necessidade de absorver ou alterar determinados componentes da natureza para converte-los em “bens de vida”. Tobias Barreto, no seu exagerado “culturalismo”, chegava a dizer que a cultura é “a antítese da natureza, no tanto quanto ela importe uma mudança no natural, no intuito de faze-lo belo e bom”. Preferindo ver a natureza e a cultura como entes complementares, não há dúvida que esta se serve daquela para realizar objetivos essenciais ao indivíduo e à sociedade. É assim que sacrificamos certos elementos do meio ambiente, como, por exemplo, parte de uma floresta para construção de uma usina elétrica, ou uma catarata estupenda, como a de Sete Quedas, para que houvesse a Binacional de Itaipu, sem a qual não se compreende o desenvolvimento do Brasil. É à luz, pois, de um quadro global de valores, tanto da natureza como da vida humana, que deve ser situada a defesa do meio ambiente pela sociedade, e, por conseguinte, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, não tendo sentido que, ao faze-lo, prevaleçam motivações resultantes do fanatismo ecológico. Tenho tido notícia de tão exageradas e descabidas defesas do meio ambiente que, se eles tivessem prevalecido na história do povoamento e desenvolvimento do Brasil, ainda estaríamos vinculados às estreitas fronteiras do Tratado de Tordesilhas... Sinto-me à vontade ao criticar certos excessos do Ministério Público porque fui um ardoroso defensor de suas atuais atribuições e prerrogativas, quando presidi a secção relativa ao Poder Judiciário no seio da “Comissão Arinos”, incumbida de elaborar o projeto da nova Constituição, contando com a preciosa colaboração do hoje Ministro Sepúvelda Pertence, do Supremo Tribunal Federal. Então, como agora, pensamos no uso e não no abuso do poder. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE MIGUEL REALE O novo Código Civil começa proclamando a idéia de pessoa e os direitos da personalidade. Não define o que seja pessoa, que é o indivíduo na sua dimensão ética, enquanto é e enquanto deve ser. A pessoa, como costumo dizer, é o valor-fonte de todos os valores, sendo o principal fundamento do ordenamento jurídico; os direitos da personalidade correspondem às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação e atividades sociais, como bem soube ver Ives Gandra da Silva Martins. Segundo os partidários do Direito Natural clássico, que vem de Aristóteles até nossos dias, passando por Tomás de Aquino e seus continuadores, os direitos da personalidade seriam inatos, o que não é aceito pelos juristas que, com o Renascimento, secularizaram o Direito, colocando o ser humano no centro do mundo geral das normas ético-jurídicas. Para eles trata-se de categorias históricas surgidas no espaço social, em contínuo desenvolvimento. Não cabia ao legislador da Lei Civil tomar partido ante essas divergências teóricas, ainda que fazendo referência também ao Direito Natural Transcendental, na linha de Stammler ou de Del Vecchio. O importante é saber que cada direito da personalidade corresponde a um valor fundamental, a começar pelo do próprio corpo, que é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos. É em razão do que representa nosso corpo que é defeso o ato de dele dispor, salvo por exigência médica, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes, salvo para fins de transplante. Estatui o Código Civil que é válida com objetivo científico, ou altruista, a disposição gratuita do próprio corpo, para depois da morte, ninguém podendo ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Eis aí os mandamentos que estão liminarmente na base dos atos humanos, como garantia principal de nossa corporeidade, em princípio intocável. Vem, em seguida, a proteção ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome, não sendo admissível o emprego por outrem do nome da pessoa em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória. É o mesmo motivo pelo qual, sem autorização, é proibido o uso do nome alheio em propaganda comercial. Em complemento natural a esses imperativos éticos, são protegidos contra terceiros a divulgação de escritos de uma pessoa, a transmissão de sua palavra, bem como a publicação e exposição de sua imagem. São esses os que podemos denominar direitos personalíssimos da pessoa, assim como a inviolabilidade da vida privada da pessoa natural, devendo o juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. Nada mais acrescenta o Código, nem poderia enumerar os direitos da personalidade, que se espraiam por todo o ordenamento jurídico, a começar pela Constituição Federal que, logo no artigo 1º, declara serem fundamentos do Estado Democrático do Direito a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa. Enquanto titular desses direitos básicos, a pessoa deles tem garantia especial, o que se dá também com o direito à vida, a liberdade, a igualdade e a segurança, e outros mais que figuram nos Arts. 5º e 6º da Carta Magna, desde que constituam faculdades sem as quais a pessoa humana seria inconcebível. Não há, pois, como confundir direitos da personalidade, que todo ser humano possui como razão de ser de sua própria existência, com os atribuídos genérica ou especificamente aos indivíduos, sendo possível a sua aquisição. Assim, o direito de propriedade é constitucionalmente garantido, mas não é dito que todos tenham direito a ela, a não ser mediante as condições e processos previstos em lei. Poderíamos dizer, em suma, que são direitos da personalidade os a ela inerentes, como um atributo essencial à sua constituição, como, por exemplo, o direito de ser livre, de ter livre iniciativa, na forma da lei, isto é, de conformidade com o estabelecido para todos os indivíduos que compõem a comunidade. Como já disse, cada direito da personalidade se vincula a um valor fundamental que se revela através do processo histórico, o qual não se desenvolve de maneira linear, mas de modo diversificado e plural, compondo as várias civilizações, nas quais há valores fundantes e valores acessórios, constituindo aqueles as que denomino invariantes axiológicas. Estas parecem inatas, mas assinalam os momentos temporais de maior duração, cujo conjunto compõe o horizonte de cada ciclo essencial da vida humana. Emprego aqui o termo horizonte no sentido que lhe dá Jaspers, recuando à medida que o ser humano avança, adquirindo novas idéias ou ideais, assim como novos instrumentos reclamados pelo bem dos indivíduos e das coletividades. Ora, a cada civilização corresponde um quadro dos direitos da personalidade, enriquecida esta com novas conquistas no plano da sensibilidade e do pensamento, graças ao progresso das ciências naturais e humanas. O último valor adquirido pela espécie humana é o ecológico, por força do qual estabelece o Art. 225 da Lei Maior que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para a presente e futuras gerações”. Trata-se já agora de novo direito da personalidade. O que podemos esperar, sob a perspectiva histórico-cultural aqui exposta, é que, no futuro, novas aquisições aconteçam, transformando em direitos da personalidade as que ainda constituem possibilidade de ser e de agir para o maior número de seres humanos. DIREITOS E DEVERES MIGUEL REALE Nossa época parece se caracterizar pela premente e contínua reivindicação de direitos e prerrogativas sem o reconhecimento dos correspondentes deveres e obrigações. Tal postulação está em conflito com o processo histórico da democracia que se aperfeiçoa na medida em que direitos e deveres se correlacionam para assegurar a igualdade de todos no convívio social. Com razão afirma Herbert Spencer que o direito de cada um acaba onde o direito de outrem começa. Antes dele dissera o mesmo Emanuel Kant, no seu inconfundivel estilo transcendental: “age segundo uma norma que possa ter, ao mesmo tempo, o valor de uma lei universal”. Na linha desse entendimento, dirá ainda o filósofo alemão que a pessoa se distingue por seu livre arbítrio e o senso do dever, havendo duas coisas que o deslumbravam: “as estrelas, no mundo exterior, e o imperativo do dever, a boa vontade, no íntimo da consciência”. Mesmo sem o rigorismo do imperativo categórico kantiano (“deves, logo podes”) não há como não reconhecer que na base da convivência humana, que é sempre uma associação de pessoas, está a correlação sincrônica do direito e do dever. Infelizmente, é dessa sintonia que se olvida o homem contemporâneo, esquecido do respeito mútuo, com graves conseqüências na família, na escola, na sociedade em geral. Não vacilo em acrescentar que, ao lado da falta de formação ética, há, em nossos dias, também, carência de formação religiosa, contentando-se muitos com a compreensão da existência tão somente em razão dos nexos naturais do comportamento humano. Não me incluo entre os filósofos da imanência, ou seja, entre os que tudo explicam com fundamento nas leis causais, parecendo-me que para assim pensar e agir a sociedade deveria estar revestida de virtudes exemplares para garantir o bom êxito de sua conduta. Não desprezo, mas antes admiro, a fortaleza dos pensadores destituídos de crença no transcendental, daqueles para os quais, como sustenta Norberto Bobbio, cessada a vida terrena, só haveria “il buio”, a escuridão. Para mim a visão ética da existência humana se completa com a visão religiosa, mesmo sem vinculação com esta ou aquela outra crença, estando convencido de que os tremendos episódios que acabam de enlutar a sociedade paulistana, sob o avassalador predomínio das drogas, são o resultado de uma educação privada dos valores transcendentais. Quando, numa sociedade, prevalece o crescente culto do prazer e da diversão, com desprezo dos deveres éticos, até mesmo o amor filial deixa de ser um valor fundamental na instituição da família, para passar a ser mero e ocasional liame biológico. É a razão pela qual discordo dos jusfilósofos que, encantados com as prodigiosas conquistas da biologia, pretendem explicar os atos e fatos jurídicos segundo suas leis, à margem dos mandamentos éticos. Posta a questão jurídica no plano “poiético”, isto é, à luz da origem e do desenvolvimento biológicos, os direitos e deveres perdem sua imperatividade axiológica ou valorativa, não havendo mais razão em concebê-los em complementar sintonia. É essa correspondência essencial que está na raiz do ordenamento jurídico, o que levou o grande jurista Santi Romano a conceber a díade “poder- dever” do Estado, cuja soberania, há muito tempo, deixou de ser entendida como competência ilimitada. Nossa vida em sociedade só é possível mediante auto-limitações dos indivíduos e dos entes coletivos, com concessões recíprocas nas mais diversas esferas do comportamento humano. Em uma democracia, entendida classicamente como “governo do povo, pelo povo e para o povo”, as concessões recíprocas, que ela exige de seus membros, somente são possíveis a partir de duas colocações essenciais, a do “direito-dever” e a do “poderdever”. É sobretudo nos países emergentes que esse entendimento se impõe, sob pena da inviabilidade das reformas constitucionais mais reclamadas pela opinião pública. Como proceder, por exemplo, à revisão da Previdência Social sem haver eliminação, não digo de direitos, mas de prerrogativas e privilégios que vieram sendo acumulados através de leis promulgadas para vantagem de determinadas minorias? Nessa matéria, ouso mesmo ir além do que comumente se entende por “direito adquirido”, não o estendendo a situações abusivas conferidas por leis ordinárias, e até mesmo por decretos-leis, e que uma reforma constitucional pode e deve extirpar em nome da justiça social, que é a justiça da igualdade social. Dir-se-á que a Carta Magna, em seu tão citado § 4º do Art. 60, preserva da alteração constitucional emendas tendentes a abolir, entre outros casos, os “direitos e garantias individuais”, tais como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, concluindo-se pela impossibilidade de serem revogadas disposições legais que outorgaram ilícitas vantagens a certos servidores públicos, concedendo-lhes vencimentos e proventos gigantescos, duas ou três vezes superiores aos pagos ao presidente da República e aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Muito embora enfrentando a opinião dominante, entendo que não podem figurar entre “os direitos e garantias individuais”, que a Lei Maior protege, os atos abusivos perpetrados pelo legislador ordinário à margem da Constituição e das leis.