ANÁLISE DO USO DA EXPRESSÃO “A GENTE” EM DOIS TEXTOS LITERÁRIOS DO SÉCULO XIX INSERIDOS NA ESCOLA LITERÁRIA REALISTA/NATURALISTA À LUZ DA HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA. Patrick Vieira de Sousa¹; Cristiane Helena Parré Gonçalves² RESUMO: O intuito deste artigo é analisar o uso da expressão “a gente” no texto Memórias de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O cortiço, de Aluísio de Azevedo, contextualizados na escola realista/naturalista brasileira nos fins do século XIX. Como a língua é um instrumento de comunicação e que acarreta mudanças constantes, partimos da hipótese de que ela, a língua, resulta de uma complexa evolução histórica que se caracteriza dentro de um espaço e de um tempo, ocorrendo tendências de acordo com a estrutura que a sociedade determina. Assim, teremos como fundamentação teórica a Historiográfica Linguística que nos permite analisar a língua no seu contexto sócio-histórico-cultural da sociedade brasileira da época encontrada nas obras, contextualizando os aspectos linguísticos, a fim de demonstrar como a língua e seu uso não pode ser desvinculada do período histórico e da conjuntura social no determinado momento em que ela está inserida. PALAVRAS-CHAVES: a gente, linguística histórica, português brasileiro. ABSTRACAT: The purpose of this article is to analyze the use of "we" in Memoirs of Brás Cubas by Machado de Assis text, and the tenement of Aluisio de Azevedo, contextualized in the realist school / Brazilian naturalist in the late nineteenth century. As language is a communication tool which involves constant change, we start from the hypothesis that it, the language, the result of a complex historical evolution that is characterized within a space and a time trend taking place in accordance with the structure that society determines. Thus, we as theoretical foundation linguistics historiography that allows us to analyze the language in its socio-historical-cultural context of Brazilian society of the time in the works, contextualizing linguistic aspects in order to demonstrate how language and its use can not be unrelated to the historical period and social situation in the particular time in which it is embedded. KEYWORDS: we, historical linguistics, Brazilian Portuguese. CONSIDERAÇÕES INICIAIS “Falar "a gente" é correto ou só é certo usar "nós"?” 3 INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 1 Começamos com uma citação retirada de um site da internet sobre o uso da expressão “a gente” em sentido pronominalizado. A matéria busca sancionar dúvidas de leitores sobre qual seria o uso mais apropriado, “a gente” ou “nós”? Longe de buscarmos entender qual seria o mais ou menos correto, nossa pesquisa baseou-se nesses questionamentos para analisar a expressão que já é tão amplamente utilizada em nosso cotidiano, mas que ainda gera controvérsias quanto às suas possibilidades de uso e em quais contextos poder-se-ia inseri-la ou não. Nosso trabalho intenciona investigar o aparecimento dessa expressão em sentido pronominalizado nos textos literários “Memórias póstumas de Brás Cubas” cuja autoria é de Machado de Assis e também no texto “O cortiço” de Aluísio de Azevedo. Os textos estão historicamente inseridos no período literário denominado Realismo/Naturalismo e ambos foram publicados no final de século XIX, tendo um hiato de dez anos entre o lançamento do segundo para o primeiro. Utilizaremos a historiografia linguística como teoria norteadora da análise, pois ela reconhece haver na língua empregada, em textos literários e em documentos influências externas e internas da sociedade da época em que o texto fora escrito. Também considera o contexto histórico e o pensamento filosófico-científico como uma das influências presentes no texto. Em sequência, introduziremos as obras analisadas e o período literário/sócio-histórico em que elas estão inseridas para que se contextualize a sociedade da época em que os textos foram produzidos. 1. A PRONOMINALIZAÇÃO DA EXPRESSÃO “A GENTE” NA LÍNGUA PORTUGUESA. A expressão “a gente” é cada vez mais utilizada dentro da língua portuguesa em sua forma pronominalizada. A sua aceitação no coloquial é indiscutível. Tanto aqui no Brasil, quanto em Portugal ela existe e está pareando com o pronome pessoal do caso reto “nós” substituindo-o mais frequentemente tanto na forma de sujeito como nas formas de complemento. Como atesta LOPES (2003), o substantivo gente que se firmou na língua como a expressão a gente passou a fazer parte dos pronomes pessoais indicando a primeira pessoa do plural, concordando geralmente com o verbo na terceira pessoal do singular do quadro de pronomes retos da língua portuguesa (a gente vai), podendo ainda concordar com o verbo no plural em linguagem coloquial não monitorada (a gente vamos), pois como LOPES apud PEREIRA (2003:7) “o facto de a concordância verbal se poder fazer com a primeira pessoal do plural indica que se está a estabelecer concordância semântica com o verbo”. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 2 O seu uso, hoje, em português brasileiro é considerado comum e estável dentro da língua, porém, mesmo que se tenha provado o seu uso cada vez maior, muitas gramáticas não lhe dão o devido espaço e quando dão, resumem-se a pequenos trechos que apenas dizem existir na linguagem brasileira coloquial, como a expressão que é usada em contextos próximos ao da palavra “nós”. LOPES (2003), porém, indica que embora em muitas gramáticas normativas já se apresente o uso reconhecido da forma pronominalizada da expressão a gente, as gramáticas não possuem uma visão unificada e muitas vezes incoerente ao que realmente ocorre na língua. Desse modo, mesmo que esteja efetivamente comprovado o uso da expressão, ainda sim, seu espaço nas gramáticas normativas da língua portuguesa é ínfimo, pois a mesma é vista como inferior e “feia” aos olhos de quem cultiva o bom uso da língua. A expressão “a gente” pode ser encontrada em gramáticas históricas como a de SAID ALI(1965:116) que considera a expressão e a palavra homem como “nomes que assumem caráter pronominal [...] para indicar agente vago ou indeterminado”. Em gramática mais atual BECHARA dá apenas uma pequena nota sobre a expressão: O substantivo gente, precedido do artigo a e em referencia a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa. Em ambos os casos o verbo fica na 3ª pessoa de singular: (BECHARA, 2009:166) [grifo nosso]. Nota-se, que o autor utiliza a expressão fora da linguagem cerimoniosa, ou seja, essa forma não se enquadraria em um português mais elaborado, devendo ser deixada apenas em contextos em que se precise utilizar de linguagem não formal. Mesmo havendo uma grande abrangência de gramáticas (Vázquez Cuesta& Mendes da Luz 1971; Celso Cunha1966; Cunha & Cintra 1984) que tratem do assunto e dê lugar à expressão, a maioria deles reforça de que seu uso é “mais comum na linguagem familiar falada” (PEREIRA, 2003:5). 2. A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA Ao abordar algum aspecto da língua, temos que ter em mente a que tipo de fator estarse-á buscando. Nossa pesquisa buscou compreender a língua não apenas como “um produto social da faculdade da linguagem” (SAUSSURE, 1916:17), mas sim como um “produto histórico-social” (NASCIMENTO, 2005:13). Desse modo, concluímos sermos capazes de observar as especificidades dos usos linguísticos sem desligá-los do período histórico em que estão inseridos. A historiografia linguística é uma vertente nos estudos linguísticos que compreende a língua como um produto da interação social e opera com princípios de contextualização e de periodização relativos às práticas linguísticas efetivas. Ao analisar o objeto língua, busca identificar fases de seu desenvolvimento e relacioná-las ao período histórico a que INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 3 estão inseridas, pois compreende que os fatores externos também causam impacto no processo de desenvolvimento da língua (NASCIMENTO, 2005). Ao atribuirmos o status de produto social à língua, compreendemos que o signo linguístico também é um produto ideológico. Bakhtin assim define o signo: Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; [...] Tudo que é ideológico reflete e refrata outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico é um signo[grifo do autor].(2004:31). Portanto, o signo linguístico tem a propriedade de refletir a realidade que o cerca. Desse modo, a maneira com que se utilizam as palavras, ou os contextos que as inserem são capazes de transparecer os modos e a ideologia impregnada em determinada sociedade, em determinado ponto da história de um povo. No entanto, não apenas se reduz a um determinado ponto da história, pois as línguas têm como propriedade a mudança. Logo, essa mudança não pode ser desligada da história daqueles que as têm como forma de interação. Quando olhamos para a língua na intenção de lhe examinar, devemos compreendê-la como parte de um todo. A língua não pode ser excluída do povo que a utiliza, da sociedade que lhe tem como instrumento e da ideologia filosófico-cultural que a permeia. Buscando adequação da pesquisa em historiografia linguística alguns princípios foram idealizados por KOERNER apud NASCIMENTO (2005), são eles: a) Princípio de contextualização: visa dar sentido às informações contidas no documento, levantando o clima de opinião da época de sua produção. Isso significa que serão levados em conta o contexto sociocultural e econômico, as concepções linguísticas e políticas somadas ao autor que o produziu; b) Princípio de imanência: diz respeito ao levantamento de informação acerca do documento para entendê-lo amplamente, sem que se interfira com dados e terminologias atuais no momento de recordar e investigar o passado documentado. c) Princípio de adequação teórica: consiste no processo de reatualizar o documento aproximando-o das teorias atuais. Consiste numa atividade hermenêutica realçando as atividades do passado, mediando-as pelas preocupações do presente. NASCIMENTO (2005) também atenta ao fato da influência em historiografia linguística: O argumento de influência engloba, [...] além de outros fatores, o contexto sociocultural, marcado por interferências implícitas e explicitas apreendidos pelo escritor por uma atitude de transformação e assimilação de ideias em circulação no momento de elaboração do documento. (NASCIMENTO, 2005: p.24). INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 4 A questão se refere ao levantamento das influências que podem ser encontradas no documento a ser analisado. Tendo em vista que há assimilação por parte do autor do documento de ideias vigentes em sua época; há concepções e ideologias impregnadas na produção linguística, já que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (Bakhtin, 2004:36). O modo como se usa a palavra resignando outro ser, ou atribuindo uma carga negativa a certa expressão pode revelar aspectos relevantes de determinado período através do percurso histórico de tal palavra ou expressão na língua. FARACO (2005) argumenta sobre a questão da investigação de textos e sobre a função do linguista ao analisá-los: Quem se inicia em linguística histórica, porém, tem uma tarefa anterior: como qualquer cientista social precisa estar atento para evitar transferir juízos de valor do senso comum para o trabalho de descrição e interpretação dos fenômenos linguísticos [...]. (FARACO, 2005:30). Sendo assim, o pesquisador, além de buscar contextualizar os dados com o período, esse documento possui sua carga histórica temporalizada em determinado ponto da realidade social, ou seja, essa realidade social determinada está inserida no documento, cabendo ao pesquisador à função de interpretá-lo e realocá-lo sob o ponto de vista da teoria que subjaza a análise. As obras Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis datada de1881– sendo previamente desenvolvida como folhetim na Revista Brasileira, e a outra O Cortiço de Aluízio de Azevedo cujo lançamento se data de 1890, situadas na segunda metade de século XIX, “ressoará pelo Brasil a polifonia das novas correntes filosóficas europeias” (COSTA, 1956:138; grifo do autor). A primeira é considerada a obra que inicia o Realismo no Brasil, período literário que recebeu esse nome, pois: “[...] designa as obras literárias modeladas em estreita imitação da vida real e que retiram seus assuntos do mundo do real, encarando de maneira objetiva, fotográfica, documental, sem participação do subjetivismo do artista. O realismo procura apresentar a verdade. [...] o realismo não se submete a uma visão demasiado ordenada da vida, o que lhe parece artificial, pois a vida tem um ritmo irregular.” (COUTINHO, 2004: 09-10) [grifo nosso] Entretanto, sabemos que não há texto sem que se tenha ao menos um mínimo de subjetivismo do artista, podemos encontrar obras com a “diminuição da personalidade do autor” (VERISSÍMO, 1916:141), ou seja, o autor nas obras dessa escola “encara a vida objetivamente” (COUTINHO, 2004: 10), buscando refratar a sociedade tal com ela é, mas não se isenta de imprimir o mínimo que seja de sua subjetividade dentro daquilo que pretende escrever. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 5 O Naturalismo também buscava a sociedade tal qual ela é. Era um realismo de “de cunho científico, uma visão materialista do homem, da vida e da sociedade” (COUTINHO, 2004: 11). Tanto realismo quanto naturalismo estavam de acordo com o pensamento científico-filosófico positivista que surgido na Europa, se alastrava no Brasil. Sobre o positivismo e sua influência no Brasil COSTA (1956) argumenta: “À mente brasileira só exercera, como era natural, as suas faculdades estéticas, e do movimento europeu apenas assimilava com afã as escolas literárias contemporâneas. Os clássicos e os românticos, e depois os realistas, alimentavam a nossa avidez de ler e escrever. A nossa vida intelectual com as exceções secundárias que ficaram apontadas, limitava-se a cópias dos romances franceses e à imitação dos poetas europeus, compensada muitas vezes por felizes rasgos de inspiração local.” (COSTA, 1956: 167). Desse modo, mesmo que o positivismo não tenha tido tanta influência na sociedade brasileira da época, ele teve uma influência considerada dentro das escolas literárias que surgiram à época. E foi no naturalismo que essas posições filosóficas se impuseram na cultura brasileira, “o Naturalismo foi o movimento que deu forma literária àquelas teorias” (COUTINHO, 2004:8). Também é nessa época em que se consolida o período de nacionalização da língua portuguesa no Brasil, tomando a língua aspectos e cores da terra. Sobre a linguagem encontrada nos textos dessas escolas, COUTINHO explica: “O realismo brasileiro teve ainda outro papel no que diz respeito ao processo de nacionalização da língua. A evolução que vinha de longe, e que o romantismo acentuara, o realismo consolidou. Incorporando à literatura áreas de expressividade regionais, profissionais, populares, e a não ser em Machado de Assis que criou um estilo, e ao contrário dos mestres franceses da escrita artística, mais inclinado a reproduzir a experiência real na sua frescura imediata, sem fetichismo classicizante e mesmo com relativa indiferença formal, o Realismo concorreu para o desenvolvimento de um estilo em fala narrativa.” (COUTINHO, 2004: 18). Portanto, é nessa época que a língua se aproxima daquilo que é realmente brasileiro, mesmo que as escolas ainda se baseiem em modelos europeus. Alguns autores como Machado de Assis acreditavam que o povo pudesse contribuir para a nacionalização da língua, porém que essa tivesse um limite como podemos observar: “contra a errônea tendência de reproduzir no diálogo a linguagem vulgar” (COUTINHO, 2004:158). Machado de Assis considerado “a mais alta expressão do nosso gênio literário” (VERISSÍMO, 1916:165), também foi um dos expressivos autores para a nossa língua INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 6 nacional em formação e foi ele que com exatidão “abordou o problema da possibilidade de uma arte nacional” (COUTINHO, 2004: 157). Portanto, considerado um bom exemplo de uso da língua portuguesa que já obtinha cara de brasileira. Já a Aluízio de Azevedo é revogado o papel de “principal figura do romance naturalista brasileiro” (COUTINHO, 2004:75), o que lhe renderia à obra as questões envolvendo os problemas sociais encontrados na sociedade da época. 3. AS OCORRÊNCIAS DA EXPRESSÃO “A GENTE” NAS OBRAS ANALISADAS Ocorrência de “a gente” em” Memórias Póstumas de Brás Cubas” 1 - Acresce que a gente grave achará no Brás cubas (Narrador) no introito do livro. livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual. 2 - No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido. 3 - Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça... 4 - Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência. 5 - Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregarse, despintarse, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! 6 - Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. 7 - Dona Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras, e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou Brás Cubas (Narrador) sobre um passageiro que assim como ele embarcaria à Europa. O almocreve pobre dirigindo-se a Brás Cubas. Brás Cubas (Narrador) dirigindo-se ao leitor. Brás Cubas (Narrador) dirigindo-se ao leitor. Brás Cubas (Narrador) referindo-se a como as pessoas tratavam a loucura de Romualdo. Brás Cubas (Narrador) sobre dona Plácida. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 7 outra coisa. 8 - Entende, entende; e na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. 9 - Multidão, cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Esquilo fazia aos seus verdugos. 10 - Toda a gente fremia de indignação e piedade... O cotrim a Brás Cubas. 11 - E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Brás Cubas (Narrador). Brás Cubas (Narrador). Brás Cubas (Narrador). Ocorrência de “a gente” em “O cortiço.” 1 - A gente se queixa é da sorte! Bertoleza falando a João Ramão sobre a sua alforria forjada pelo mesmo. 2 - Este cão era pretexto de eternas resignias com a gente do Miranda, a cujo quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr o risco de ser assaltado pela fera. 3 - Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. 4 - Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! 5 - E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida a gente só leva o que come! 6 - Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar na venda, o safado rouba no peso! O narrador fala sobre um cão colocado no quintal de João Romão cuja função era prevenir que entrassem no quintal do português e lhe roubassem o material que havia comprado para construir a estalagem. Narrador referindo-se à construção e ocupação do cortiço. O velho Botelho referindo-se à mulher de Miranda. O velho Botelho referindo-se ao fato de ter pego a dona Estela, mulher de Miranda traindo o marido com um rapaz mais jovem. Florinda falando com João Ramão. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 8 7 - Um marido é pior que o diabo; pensa Rita Baiana falando sobre casamento com logo que a gente é escrava! Leocádia. 8 - Ninguém como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. 9 - Pois então a gente não é senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?! 10- Se se incomodam com a gente... os incomodados são os que se mudam! Narrador falando sobre as festas que Rita Baiana organizava na estalagem. Rita Baiana falando sobre Miranda estar observando o que acontecia no cortiço. Porfiro sobre o mesmo causo. 11 - Confessa-nos tudo, ou mal te terás Rita baiana perguntando a Albino sobre sua de haver com a gente! sexualidade. 12 - E, no entanto, reprovam que a gente Rita falando sobre as festas na casa de coma o que é seu com um pouco mais de Miranda. alegria! 13 - Aqui agora podem dar com a gente! Leocádia a Henrique. 14 - Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é necessário puxar pelo corpo! 15 — É um enlevo olhar a gente pro demoninho! Marciana falando aos outros sobre a gravidez da filha Florinda. 16 - A velha convidara a gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, à noite, serviu, às nove horas, um chá com biscoitos. 17 - Pois se a gente até dos brutos tem pena! O narrador falando sobre um jantar a ser promovido pela mãe de pombinha em decorrência de sua menstruação primeira. 18 - Enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do “Cabeça-de-Gato. 19 - E ao depois vai a gente tomar uma fartadela de vinho fino! Narrador referindo-se ao outros cortiço que fora criado. Algum habitante do cortiço referindo-se à filha de Alexandre, o bebê do lugar. Bruno sobre sua mulher. Jerônimo falando aos outros sobre bater no namorado da Rita Baiana. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 9 20 - E lá em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as galinhas do cortiço. 21 - Aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. 22 - Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, qu8e nunca voltava para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava. 23 - Como poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso? 24 - São coisas suas lá particulares, em que a gente não se mete, mas... 25 - E, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miúda do foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da boca. O narrador falando sobre as pessoas do cortiço. O narrador sobre as reformas do cortiço. Narrador falando sobre João Ramão e o interesse em Miranda e seus bens. O narrador falando sobre a necessidade de João Ramão de se livrar de Bertoleza. Botelho falando para João Ramão. O narrador falando sobre o dia após João Ramão ter pedido para Bertoleza ir-se embora. Foram encontradas ao todo 11 ocorrências da expressão “a gente” na obra memórias póstumas de Brás Cubas, doravante BC e foram encontradas 25 ocorrências em O cortiço doravante C. Classificamos três grupos de acordo com o tipo de cada ocorrência. O primeiro grupo é o grupo das ocorrências de sentido indeterminado, ou seja, é aquele em que a expressão não tem um sentido coletivo definido, e pode simplesmente significar as pessoas, o povo. No segundo grupo, classificamos as ocorrências como de sentido ambíguo, pois nem mesmo o seu cotexto poderia indicar certamente se o sentido era pronominal, referindo-se então a primeira pessoal do plural, ou se seu sentido era INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 10 indeterminado como as do grupo anterior. E por fim, o último grupo de ocorrências é o grupo das que possuíam o sentido de pronome ou pronominalizado. O primeiro grupo possui quinze ocorrências sendo sete em BC e oito em C. Esse grupo possui frases que de acordo com a maneira que a expressão está colocada como nos exemplos de BC1“Acresce que a gente grave achará no livro [...]” ou no exemplo de C2 “[...]com a gente do Miranda [...]” pode-se perceber o sentido coletivo e indeterminado, não se podendo aferir que os (inter)locutores tenham uma referência precisa. Pertencem a esse grupo as seguintes frases: BC1; BC2; BC7; BC8; BC9; BC10; BC11; C2; C3; C16; C18; C20; C22; C23; C25. De todas as ocorrências encontradas nesse grupo apenas uma ou 5,2% do total de ocorrências não é executada pelo narrador ou pelo heroi-narrador como ocorre em BC. A única ocorrência que foge à regra é a BC8 e é proferida por Cotrim, o marido da irmã de Brás Cubas. O segundo grupo de ocorrências obteve duas aparições em BC e quatro em C. Nesse grupo encontram-se frases que devido à maneira com que estão colocadas, não apresentam especificidade quanto ao seu significado. Ou seja, não se pode aferir em seu cotexto exatamente se possui sentido indeterminado ou pronominalizado. São elas: BC4 BC5; C8; C12; C21; C24. As frases como C12 “[...] reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco mais de alegria!” e BC4 “[...] obrigam a gente a calar os trapos velhos [...]”. Dessas ocorrências apenas duas delas (C12; C24) ou 33,3 % são proferidas por personagens, as outras são de origem dos narradores. Nessas frases não é possível identificar precisamente se o narrador/personagem insere-se no agrupamento “a gente” como pertencente ao sentido coletivo, ou se ele se exclui. O terceiro grupo, enfim, é das ocorrências com sentido pronominalizado. Grupo esse constituído de treze aparições. São elas: BC3; C1; C5;C6;C7;C9; C10; C11; C13; C14; C15; C17; C19. Nesse grupo estão frases que devido ao cotexto, dão a interpretação de estar-se referindo a um grupo de pessoas em que o locutor se inclui. 100% das ocorrências são diálogos, o que possibilita a colocação do personagem como fazendo parte do conteúdo a que se refere à expressão a gente, ou seja, utilizando-a no sentido pronominalizado. Cabe ressaltar aqui que ao serem analisadas as expressões que permitiam essa análise, nesse sentido coletivo, a frases eram atribuídas às personagens de classe baixa, como a personagem Bertoleza em C que é uma negra “alforriada”, Rita Baiana, uma moradora das instalações que João Ramão criara e também o almocreve pobre quando fala sobre o burro que está a olhar para ele e para Brás Cubas. Cabe ressaltar também que não incluímos as composições da gente (de + a gente), pois consideramos que o seu sentido no português atual não é o sentido de pronome pessoal de primeira pessoa e sim um possessivo ou referente de primeira pessoa do plural. Também não apontamos especificamente para duas aparições C7 e C9 em que a expressão é usada com adjetivos no feminino, o que reforça a questão do sentido estar a INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 3, Edição número 20, de Outubro, 2014/Março, 2015 - p 11 se referir a um grupo determinado as mulheres e não em um sentido mais geral e indeterminado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se deparar com os dados encontrados nos textos, percebemos que, devido à quantidade de ocorrências com o sentido pronominalizado, já estava em processo de gramaticalização e introdução na linguagem literária a expressão a gente como coexistindo com a forma padrão nós. Entretanto, pudemos perceber que aquela forma era a utilizada pela classe mais baixa da população ou que seria um uso linguístico que a demarcaria, sendo, portanto, ignorada e não reconhecida pela classe social dominante que tende a refutá-la e a considerar seu uso inapropriado paras ocasiões não cerimoniosas de uso da língua parafraseando o que diz a gramática de Bechara sobre a expressão. Portanto, fato de a gramática ainda não dar o devido espaço a essa expressão, por mais abrangente que já seja seu uso dentro da língua nos dias atuais, mostra apenas que a ela ainda tende a não aceitar os modos de falar mais “populares”, propondo que esses modos não sejam adequados para certas situações, mesmo que estes modos já não sejam tão populares, mas que em suas raízes assim o sejam. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Campinas – SP: Editora Komerdi, 2008. 312p. AZEVEDO, Aluízio. O cortiço. SP: Editora Komerdi, 2008. 272p. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11ª Ed. São Paulo – SP. Editora Hucitec, 2004. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil: (o desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica nacional). Livraria José Olympio: RJ. Segunda Parte. (p 138 – 330) COUTINHO, Afrânio; Co Ed. COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil – Vol. I. 7ª Ed. São Paulo – SP: Global, 2004. 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