0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DEPARTAMENTO DE DIREITO DAURILÉIA VIEIRA GONZAGA SOUZA ANÁLISE DA LEI N.º 10.304/2001 E DA SUA REGULAMENTAÇÃO (DECRETO N.º 6.754/2009) E A QUESTÃO DA TITULARIDADE DO DOMÍNIO DAS TERRAS NO ESTADO DE RORAIMA Boa Vista/RR 2014 1 DAURILÉIA VIEIRA GONZAGA SOUZA ANÁLISE DA LEI N.º 10.304/2001 E DA SUA REGULAMENTAÇÃO (DECRETO N.º 6.754/2009) E A QUESTÃO DA TITULARIDADE DO DOMÍNIO DAS TERRAS NO ESTADO DE RORAIMA Monografia apresentada como prérequisito para a conclusão do curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Orientador: Profº. MSc. Edival Braga Boa Vista/RR 2014 2 DAURILÉIA VIEIRA GONZAGA SOUZA ANÁLISE DA LEI N.º 10.304/2001 E DA SUA REGULAMENTAÇÃO (DECRETO N.º 6.754/2009) E A QUESTÃO DA TITULARIDADE DO DOMÍNIO DAS TERRAS NO ESTADO DE RORAIMA Monografia apresentada como pré-requisito para a conclusão do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Roraima, defendida em XX de janeiro de 2014 e avaliada pela seguinte banca examinadora: __________________________________________________ Prof. MSc. EDIVAL BRAGA Orientador / Departamento de Direito - UFRR __________________________________________________ ______________________________________________ Prof. Sérgio Pádua Curso de Direito – UFRR __________________________________________________ Prof. MSc. LIVIA DUTRA BARRETO Departamento de Direito - UFRR 3 Dedico este trabalho à minha família, meu maior patrimônio. A cada dia aprendo que “Nenhum sucesso compensa o fracasso de uma família”. 4 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar ao meu Deus. Ao Senhor ofereço o meu cântico de gratidão, porque Ele é bom e seu amor dura para sempre. Aprouve a Deus a conquista de mais esta vitória. Sem Ele nada podemos fazer, porque nele vivemos, nos movemos e existimos. À minha mãe, Rosa sem espinhos, que com seu caráter exemplar, sábios conselhos e orações me sustentam e é minha inspiração a prosseguir e alcançar meus sonhos. Ao meu esposo Adriano, pela paciência e compreensão. Você é tudo o que um dia eu pedi para Deus. Mesmo nos momentos em que eu não merecia, você continuou me amando e apoiando. Aos meus filhos Athus Gabriel, Abner Samuel e Adriel Judah, bênçãos na minha vida. Vocês são os melhores presentes de Deus. Aos meus colegas de trabalho, em especial ao Marcio Farkas, sempre disponível e colaborativo. Sua ajuda foi essencial. Aos meus colegas de curso, ao meu orientador e a todos, que de alguma forma contribuíram na concretização desse trabalho, a minha sincera gratidão. 5 “Sem essa institucionalização material, o Estado de Roraima não passará de um Estado “virtual”. Ninguém, de sã consciência e comprometido com o presente e o futuro do Estado e da sociedade de Roraima, pode se opor a essa institucionalização”. (BARRETO, 2013) 6 RESUMO O Estado de Roraima possui uma complexa situação fundiária e institucional com relação ao domínio de suas terras. Isso porque o Estado não possui ingerência sobre extensa e considerável parte das terras da sua superfície geográfica, simplesmente porque as glebas ainda estão matriculadas em nome da União. Essa indefinição fundiária é uma situação que se arrasta há muito tempo, dado que até o ano de 2013, passados mais de 25 anos da criação do Estado e dispondo de leis suficientes que disciplinam a transferência de domínio dessas terras, não se conseguiu efetivar a transferência de todas as glebas pertencentes à União ao Estado de Roraima. Dessa forma, o presente trabalho tem como objeto a análise da Lei n.º 10.304/2001, que “transfere ao domínio do Estado de Roraima terras pertencentes à União”, bem como das questões relacionadas à institucionalização da base territorial do Estado. É urgente que a União e o Estado encontrem mecanismos que possibilitem a plena transferência da titularidade das terras, realizando-a de modo célere, correto, transparente e atendendo ao que dispõe a legislação, colocando-se um ponto final nos impasses e controvérsias em torno desse processo. Palavras Chave: Lei nº 10.304/2001; Transferência de terras; Questão fundiária. 7 ABSTRACT The State of Roraima has a complex land situation and institutional regarding the ownership of its land. The State has no interference on the extensive and considerable part of the land of their geographic area, because the plots are still registered in the Union's name. The vagueness of this land is a situation that has been dragging for a long time, given that by the year 2013, after more than 25 years of creation of the State and having enough laws governing the domain transfer these lands not managed to accomplish the transfer of all plots belonging to the Union to the State of Roraima. Thus, the present work has the purpose of analysing the law 10.304/2001 that "transfers to the domain of the State of Roraima land belonging to the Union" as well as the issues related to the institutionalization of territorial basis of the state. It is urgent for the Union and the State find mechanisms to enable the full transfer of ownership of land, performing the transfer swiftly, correctly and transparently, following the correct legislation and placing an end to the deadlock and controversies surrounding this process. Keywords: Law 10.304/2001; Transfer of land; Land issues. 8 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 2. OBJETIVOS .......................................................................................................... 12 2.1. Objetivos específicos....................................................................................... 12 3. METODOLOGIA ................................................................................................... 13 4. O CONTEXTO DA QUESTÂO DA DOMINIALIDADE DAS TERRAS EM RORAIMA ................................................................................................................. 15 5. DIREITO FUNDIÁRIO NO BRASIL ...................................................................... 17 5.1. Processo de aproveitamento e doação das terras no Brasil ...................................................... 17 5.2. A “Lei de Terras”......................................................................................................................... 18 5.3. O Direito à Regularização Fundiária ........................................................................................... 20 5.4. Regularização Fundiária na Amazônia ....................................................................................... 21 6. BREVE HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO DE RORAIMA ................................................................................................................. 23 6.1. Primeiro período: do início da colonização até a criação do munícipio de Boa Vista ............... 23 6.2. Segundo período: da criação do Município de Boa Vista até criação do Território Federal do Rio Branco (1890-1943)..................................................................................................................... 25 6.3. Terceiro período – da criação do Território Federal do Rio Branco até a criação do Estado (1943 a 1988) .................................................................................................................................... 26 6.4. Quarto período: da criação do Estado de Roraima até os dias atuais ....................................... 29 7. A TITULARIDADE DAS TERRAS E O DIREITO DE PROPRIEDADE ................ 31 8. OS BENS PÚBLICOS E A QUESTÃO FUNDIÁRIA ............................................ 34 8.1. Bens da União............................................................................................................................. 34 8.2. Bens do Estado ........................................................................................................................... 36 8.3. Terras devolutas ......................................................................................................................... 37 8.4. Propriedade das terras devolutas .............................................................................................. 39 9. SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DO ESTADO DE RORAIMA ......................................... 41 9.1. Roraima é titular das terras desde a criação do Estado em 1988 .............................................. 41 9.2. Roraima é titular das terras a partir da edição da Lei nº 10.304/2001 ...................................... 46 9.3. Roraima será titular das terras somente após o cumprimento do Decreto 6.754/2009 .......... 50 9 10. RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS: UNIÃO E ESTADO DE RORAIMA .. 53 10.1. A questão do federalismo ........................................................................................................ 54 10.2. Conflito no Pacto Federativo.................................................................................................... 56 10.3. Competência para legislar sobre Política Fundiária ................................................................. 58 10.4. Necessidade de cooperação entre a União e o Estado de Roraima ........................................ 62 11. CONCLUSÃO ..................................................................................................... 64 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 65 10 1. INTRODUÇÃO O Estado de Roraima possui uma complexa situação fundiária e institucional com relação ao domínio de suas terras, vista de maneira isolada ou vista comparativamente a outros Estados que compõem a República Federativa do Brasil. Para um Estado que tem o menor PIB (Produto Interno Bruto) do país e considerando que o desenvolvimento econômico e social só será plenamente possível quando se puder exercer o direito pleno sobre o seu próprio território, a indefinição de titularidade do domínio de suas terras torna-se um problema colossal. O Estado não possui ingerência sobre extensa e considerável parte das terras da sua superfície geográfica, simplesmente porque as mesmas ainda estão matriculadas em nome da União, dado que até o ano de 2013, passados mais de 25 anos da criação do Estado e contando com leis suficientes que disciplinam a transferência do domínio dessas terras, não se conseguiu efetivar a transferência de todas as glebas pertencentes à União ao Estado de Roraima. A transferência de terras permitirá mais segurança para investimentos no Estado, direcionando as políticas públicas mais adequadas a cada região, pois afinal há uma grande insegurança jurídica no que se refere às questões fundiárias em Roraima. Essa indefinição fundiária é uma situação que se arrasta há muito tempo. É urgente que a União e o Estado encontrem mecanismos que possibilitem a transferência da titularidade das terras, realizando-a de modo célere, correto, transparente e atendendo ao que dispõe a legislação, colocando-se um ponto final nos impasses e discussões em torno desse processo. Não obstante a Lei nº 10.304/2001, com a nova redação dada pela Lei nº 11.949/2009, dispor sobre a transferência ao domínio dos Estados de Roraima e do Amapá das terras pertencente à União, ressaltamos que nesta pesquisa nos ateremos somente à situação jurídico-fundiária do Estado de Roraima. Dessa forma, o presente trabalho tem como objeto o estudo da Lei n.º 10.304/01, que regula a transferência de terras pertencentes à União ao domínio do 11 Estado de Roraima. Para uma análise completa do assunto, faremos abordagens históricas, que justificaram a necessidade de edição da referida Lei, bem como dos atos técnicos e administrativos que serão necessários à efetiva transferência das terras ao Estado de Roraima. Nosso esforço foi no sentido de buscar dirimir algumas questões obscuras existentes em torno da Lei n.º 10.304/2001, mas ciente, das dificuldades, pois o tema não possui obras editadas, por tratar-se de assunto recente, e por haver uma grande complexidade de entendimentos em relação ao momento em que se materializou a dominialidade das terras no Estado de Roraima. No atual contexto histórico-político, em que o Estado discute seu Zoneamento Ecológico Econômico, sendo este uma das exigências impostas pelo Decreto nº 6.754/2009 (que regulamenta a Lei nº 10.304/2001) para que de fato o Estado tenha a titularidade de suas terras, o presente estudo revela-se de extrema relevância, seja para aqueles que pretendem conhecer preliminarmente o complexo processo de transferência das glebas ao Estado ou para aqueles que têm interesse na temática. Não temos a pretensão de esgotar todo o assunto nem produzir um compêndio sobre a legislação, doutrina e jurisprudência aplicável ao caso, mas de forma humilde, contribuir para o esclarecimento e quiçá até apontar caminhos que auxiliem na solução dos entraves que ora tem se erguidos em desfavor da tão sonhada regularização fundiária do nosso Estado, que logicamente começa pela definição da dominialidade das terras públicas. Espera-se, com isso, dar uma modesta contribuição para o estudo das questões relativas à transferência de terras da União ao Estado de Roraima, no intrincado e discutido processo de regularização fundiária. 12 2. OBJETIVOS Analisar a Lei nº 10.304/2001, que dispôs sobre o repasse de terras da União ao domínio do Estado de Roraima e em que momento histórico as terras federais foram/serão efetivamente transferidas, assegurando a institucionalização da base territorial do Estado e a incorporação das referidas terras ao patrimônio imobiliário do Estado. 2.1. Objetivos específicos Realizar estudos sobre a legislação aplicável à destinação das terras da União em Roraima; Examinar historicamente os entraves jurídicos e administrativos para o efetivo repasse das terras da União ao Estado de Roraima; Avaliar as possíveis medidas legais e administrativas necessárias à destinação das terras. 13 3. METODOLOGIA Partindo do artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, passando pelo art. 15 da LC 41/81, tendo como objeto a Lei n.º 10.304/2001 e sua regulamentação através do Decreto 6.754/2009, a presente investigação teve como foco o estudo normativo-jurídico da referida Lei, que dispôs sobre a transferência ao domínio do Estado de Roraima de terras pertencentes à União, de modo a dotar-lhe de uma feição de dever-ser. Para tanto, apresentamos os dispositivos legais que se projetam sobre o complexo processo de transferência da titularidade das terras no Estado de Roraima, bem como realizamos uma revisão da doutrina e jurisprudência que mantem alguma relação com a temática. Fizemos um levantamento das principais hipóteses a respeito do entendimento sobre em que momento histórico houve a transferência de terras ao novel Estado de Roraima: se no momento de sua criação, com a CF/1988; se com a edição da Lei nº 10.304/2001 ou se somente após o cumprimento de todas as condicionantes impostas pelo Decreto nº 6.754/2009. Detivemo-nos na análise das hipóteses suscitadas, apresentando os diversos argumentos, posições e interpretações doutrinárias e exegéticas, que tem atravancado o processo de transferência efetiva do domínio das terras ao Estado. A fim de instrumentalizar a pesquisa, utilizamos também a técnica da investigação empírica, participando (como ouvinte) de eventos que tiveram como foco o debate sobre a regularização fundiária, que obrigatoriamente depende do adequado atendimento e aplicação da Lei nº 10.304/2001. Nesse sentido, participamos dos seguintes eventos: I Conferencia Nacional de Desenvolvimento Regional; Reuniões do Grupo Executivo Estadual, que discute a questão fundiária do Estado; 6ª Consulta Pública para a proposta de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado de Roraima (ZEE/RR). 14 III Encontro do Parlamento Amazônico, pautado na questão fundiária, distribuição e titulação de terras. Além disso, realizamos entrevistas e coletamos contribuições de gestores de instituições estaduais e federais que tem relação e/ou interesse na regularização fundiária do Estado. Finalmente, propusemos nossa opinião abalizada, cuja construção dependeu não somente da legislação, mas de todo um suporte doutrinário e opinativo para se sustentar. 15 4. O CONTEXTO DA QUESTÂO DA DOMINIALIDADE DAS TERRAS EM RORAIMA Ao se proceder a uma análise das raízes históricas do direito fundiário no Brasil, constata-se que o problema fundiário brasileiro é complexo desde a sua origem. A Lei nº. 601, de 1850 - conhecida como Lei de terras - representou um esforço de regularização do processo de ocupação do solo no Brasil. A doutrina, de um modo geral, entende essa Lei como uma tentativa bem intencionada, mas infrutífera, de solução aos problemas do quadro de ocupação da terra. Segundo UNGER (2008) de todos os problemas da Amazônia, que são vários, o maior é o da regularização fundiária. Existe um caos fundiário que resulta em males enormes, suscitando a violência, consagrando a grilagem e tornando o saque mais proveitoso do que a preservação e a produção, pois ninguém vai investir em preservação ou em produzir se não confia na continuidade de seu controle sobre a terra. No novel Estado de Roraima não é diferente. Desde a criação do Estado, em 1988, as terras pertencentes à União ainda não foram, em sua plenitude, repassadas ao governo estadual, fato que traz uma série de complicações do ponto de vista territorial, politico, econômico e social. O problema fundiário é tão grave que a transferência da titularidade das terras da União para o Estado se transformou em bandeira política. A negociação entre os dois entes - União e Estado - é antiga, mas ainda hoje permanece emaranhada nas teias da burocracia. Em razão da indefinição da titularidade do domínio das referidas terras, verifica-se a existência de um conflito territorial entre a União e o Estado de Roraima. Tal conflito tem sido objeto de diversas ações judiciais tanto na Justiça Federal, a exemplo da Ação Civil Pública nº 4653-70.2012.4.01.4200; quanto no próprio Supremo Tribunal Federal. Podemos citar a Ação Civil Originaria (ACO) nº 596/2003; ACO nº 653/2004; ACO nº 705/2004; ACO nº 768/2005; ACO nº 943/2012 e mais recentemente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5006/2013. É nítida a relevância da matéria, que supõe iminente ruptura do equilíbrio federativo, pondo em risco tanto o pacto federativo quanto a autonomia do Estado 16 ante a titularidade do domínio das terras, opondo os interesses da União aos do Estado de Roraima sobre extensa área do território estadual, sobre a qual concorrem diferentes projetos federais e estaduais de ocupação. A controvérsia instaurada nos autos dos processos citados caracteriza conflito de interesses que afeta a harmonia federativa. Os interesses públicos em conflito são condicionalmente relevantes. A União prima pela defesa do seu patrimônio imobiliário e de sua competência exclusiva de legislar sobre determinadas matérias e o Estado de Roraima demanda sua institucionalização material como ente da Federação. O que se extrai da decisão proferida na Ação Civil Pública nº 465370.2012.4.01.4200, é que essa institucionalização não está concluída pela incompreensão, desde a leitura do Art. 14 do ADCT, passando por uma leitura imperfeita da Lei n.º 10.304/01, culminando numa leitura incompleta do Decreto n.º 6.754/09. Dessa decisão, destacamos o seguinte trecho: Sem essa institucionalização material, o Estado de Roraima não passará de um Estado “virtual”, sendo tratado ainda como mera autarquia da União, sujeito à serviência do poder público central ou dos mandatários do momento. É de inquestionável premência, proporcionar ao Estado de Roraima maior ordenamento e controle da ocupação territorial e maior capacidade de promoção do seu próprio progresso. Para alcançar esse objetivo, não há outro caminho a não ser o de definir e regularizar a titularidade de suas terras. Por sua vez, a transferência do domínio das terras, obrigatoriamente tem que atender ao que está disposto na legislação, fundamentalmente observando-se as condições impostas pela Lei n.º 10.304/2001 (regulamentada pelo Decreto nº 6.754/2009), marco legal que transfere ao domínio do Estado de Roraima as terras pertencentes à União. Desse modo, é de fundamental relevância compreender o arcabouço jurídiconormativo relacionado à questão da transferência do domínio das terras da União ao Estado de Roraima, bem como os entraves políticos, jurídicos e administrativos que tem constituindo-se em óbice à continuidade do processo de transferência. 17 5. DIREITO FUNDIÁRIO NO BRASIL Desde quando os portugueses tomaram e apossaram-se das terras brasileiras em nome da Coroa, deu-se início a um “processo de ocupação e apropriação fundiária que cinco séculos seguintes não bastariam para pacificar-se e completar-se em sua plenitude” (ASSUNÇÃO, 2008). Conforme ensinamento de ASSUNÇAO (2008) no intuito defensivo de posse contra incursões estrangeiras, bem como para explorar suas riquezas, a Coroa portuguesa dividiu a terra descoberta em quinze capitanias hereditárias, as quais eram transmitidas por Carta de Doação, entregue a partir de 1532, constituindo-se tais cartas os primeiros títulos de direito real em terra brasileira e a primeira delegação de poderes. Os capitães-donatários, titulares dessas capitanias poderiam outorgar a posse de imensas glebas de terras, constituindo-se estas em sesmarias1, em face à crise no abastecimento de gêneros alimentícios. Segundo CASSETTARI (2012) o sesmeiro tinha por obrigação aproveitar a terra em prazo determinado e pagar os tributos à Coroa, sob pena de cair em comisso e perder seu direito de posse. No intuito de esclarecer a origem do direito fundiário no Brasil, destacamos o seguinte trecho: [...] em terras brasileiras o reconhecimento dos direitos de propriedade imóvel sempre esteve vinculado a um ato formal e solene, e comportava o cumprimento da obrigação de fazer (registrar a carta de data e cultivar a terra), e de prestação pecuniária (pagar o dízimo); e a terra se destinava à produção de riquezas e ao cumprimento de função social. (ASSUNÇÃO, 2008, p. 18) 5.1. Processo de aproveitamento e doação das terras no Brasil Conforme preceitua DINIZ (2005) a história territorial do Brasil tem início em Portugal, onde encontramos as origens do nosso regime de terras. Foram as normas 1 SESMARIA é um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. O citado sistema surge em Portugal durante o século XIV, quando uma crise agrícola atinge o país. Quando a conquista do território brasileiro se efetiva, a partir de 1530, o estado português decide utilizar o sistema sesmarial na Colônia, com algumas adaptações. (CASSETTARI, 2012) 18 jurídicas do Reino que orientaram a distribuição da terra aos colonos, distribuídas principalmente entre fidalgos da pequena nobreza, homens de negócios, funcionários burocratas e militares. Como aponta IMPARATO e SAULE JUNIOR (2007) durante toda a época colonial, as terras brasileiras eram legalmente ocupadas a partir de concessões feitas pela Coroa Portuguesa. Aquelas concessões – capitanias, sesmarias e forais – davam basicamente direito ao uso da terra. A passagem a seguir esclarece ainda mais esta questão: Durante os três séculos de vida colonial brasileira muitas dessas concessões foram outorgadas a fidalgos portugueses, em especial as sesmarias. A concessão da sesmaria outorgava o direito ao uso da terra. Todavia implicava uma série de responsabilidades e obrigações ao beneficiado, ao contrário do beneficiado das capitanias e forais, que não tinham obrigação de recolher tributos. (IMPARATO e SAULE JUNIOR, 2007, p. 104). O regime sesmarial no Brasil prevaleceu até a edição da Resolução nº. 76 de 17 de julho de 1822, que “Manda suspender a concessão de sesmarias futuras até a convocação da Assembleia Geral Constituinte”. As concessões das sesmarias eram feitas determinando o uso efetivo da gleba de terra concedida. Dessa forma, chegamos a Independência, em 1822, com grande parte do território nacional dividido em sesmarias outorgadas, mas não necessária e efetivamente ocupadas (IMPARATO e SAULE JUNIOR, 2007). Para resolver essa situação, o governo imperial publicou, em 1850, a Lei nº 601, conhecida como Lei de Terras (regulamentada por Decreto de 1854) que trouxe a possibilidade de serem regularizadas as sesmarias e legalizadas as posses sem titulação. As glebas de terra não regularizadas ou não legalizadas seriam consideradas devolutas, ou seja, seriam devolvidas ao domínio do poder central. Ao cabo dessas considerações históricas, destacamos a conclusão do prof. BENEDITO FERREIRA MARQUES (2012): Pode-se avaliar que o emprego do instituto das sesmarias, no Brasil, foi maléfico e benéfico a um só tempo. Maléfico porque, mercê das distorções havidas, gerou vícios no sistema fundiário até os dias de hoje, que reclamam reformulação consistente e séria. Benéfico porque, a despeito de os sesmeiros não cumprirem todas as obrigações assumidas, permitiu a colonização e o povoamento do interior do país, que se consolidou com dimensões continentais. 5.2. A “Lei de Terras” 19 Nosso primeiro código de terras foi editado vinte e oito anos depois do fim do regime sesmarial. A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, aprovada durante o reinado do imperador Dom Pedro II, mantem seus efeitos reflexos até os dias atuais e, pode ajudar a compreender melhor a questão fundiária no Brasil contemporâneo. A referida lei possibilitou o registro paroquial, primeiro cadastro imobiliário do país. Abaixo, IMPARATO e SAULE JUNIOR (2007) apresentam as inovações trazidas pela Lei de Terras: Além de introduzir o registro paroquial, possibilitar a regularização das sesmarias e legalização das posses e criar a figura das terras devolutas, a lei de Terras agregou valor econômico à propriedade imobiliária. (IMPARATO e SAULE JUNIOR, 2007, p. 105). Não obstante a Lei de Terras ser considerada até os nossos dias um marco regulatório do direito de propriedade pública no Brasil (dado que este diploma não consta como revogado), não produziu os efeitos desejados. Com a Proclamação da República, em 1889, as antigas províncias foram elevadas a categoria de Estados e passamos a ter o modelo político de Federação. Os Estados ficaram com as terras devolutas situadas em seus respectivos territórios, (excetuando-se aquelas que pela Constituição de 1891 pertenciam ao governo central) e ganharam maior autonomia, podendo legislar sobre seus bens e administrá-los. Segundo MENDES e DALCOL (2009)2 “basicamente, todas as questões fundiárias eram regulamentadas nas formalidades do regime sesmarial, desde o início da ocupação do Brasil pelos portugueses até 1850, quando surgiu a Lei nº. 601, ou seja, por um período muito longo ficou sem regulamentação a questão da propriedade rural no Brasil.” Nesse sentido assinala MARQUES (2012): [...] Mas se o propósito da coroa foi acabar com um mal, foi mais nocivo ao Brasil, deixando-o órfão de qualquer legislação sobre terras, num período bastante longo, de calculadamente 28 anos, pois somente em 18.9.1850, quando o país já vivia sob o regime imperial, foi editada a primeira lei sobre terras, a Lei nº. 601, considerada um marco histórico no contexto legislativo agrário brasileiro [...]. Conforme ASSUNÇÃO (2008) foram, portanto três séculos e meio (trezentos e cinquenta anos) de regime sesmarial, em que toda a terra era propriedade estatal, da coroa portuguesa, contra um século e três quartos de século (cento e setenta e 2 MENDES, Rodrigo Mendes; DALCOL, Júlio César. Lei n.º 10.267: Georreferenciamento e sua aplicação prática. Revista Científica da FAJAR, v.1, n.8, p. 6-43, jan./jun., 2009. 20 cinco anos), nesta data, do regime que poderíamos denominar “de propriedade pública e privada”, no qual coexistem a propriedade pública e a propriedade particular. Percebe-se, que a dificuldade de regularização fundiária no Brasil é um problema crônico, com raízes históricas, começando pela forma de colonização portuguesa, cujo objetivo era o de ocupar seus domínios sem investimento de capital na Colônia, passando pela Proclamação da República, que foi “negligente na organização das vendas das terras devolutas e nunca se soube o que havia sido demarcado, o que havia sido vendido ou cedido” 3 até chegar aos nossos dias, nos quais todo o aparato jurídico-normativo parece ser insuficiente diante dos entraves políticos, técnicos e administrativos para sanar o imbróglio da indefinição fundiária no país. 5.3. O Direito à Regularização Fundiária Nossa Carta Magna é uma constituição do Estado Social, que reconhece direitos fundamentais e fornece meios jurisdicionais para sua garantia. Alguns desses direitos estão expressos no art. 6º da CF, dos quais destacamos o direito à moradia: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Para PRESTES4 (2011) “a regularização fundiária é uma expressão deste direito social à moradia, sendo, portanto, um direito que para ser concretizado, necessita da atividade do Estado, constituindo-se como política pública permanente”. O conceito de regularização fundiária está previsto no artigo 46 da Lei Federal nº 11.977/2009, que estabelece: A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 3 4 IMPARATO & SAULE JR. Regularização Fundiária de Terras da União. (2007, p. 105) PRESTES, Vanesca Buzelato. Regularização Fundiária: como implementar. CEAF: RS, 2011 21 Segundo a SPU (Secretaria do Patrimônio da União) a regularização fundiária é um direito dos cidadãos e comunidades, que promove sua função socioambiental. É também ação estratégica para o fomento ao desenvolvimento local, apoiando a consolidação de serviços públicos e atividades econômicas. Não se pode negar que o Governo Federal tem envidado esforços para atuação em regularização fundiária no país. Prova disso, é que especialmente nas ultimas décadas, houve a edição de leis específicas para a regularização fundiária, tais como a Lei nº 9.636/1998, Lei nº 10.257/2001, Lei nº 11.952/2009 e Lei n° 11.977/20095. Além de todo o aparato jurídico, tem se investido vultosos recursos públicos em programas de regularização fundiária e formaram-se convênios com os governos locais para tornar mais célere o processo. Porém, a realidade mostra que o avanço nos aspectos operacionais tem sido tímido. Dentre vários gargalos, é necessário dotar Estados e Municípios de condições técnicas e até tecnológicas para realizar todos os procedimentos relacionados à regularização fundiária. É certo que, o enfrentamento da questão fundiária exige engajamento dos entes federativos e da sociedade e, sobretudo, atuação multidisciplinar e interinstitucional, de modo que possibilite o surgimento de estratégias e soluções, tendo como fio condutor o cumprimento dos direitos sociais, propagado pela nossa Constituição Federal. 5.4. Regularização Fundiária na Amazônia Na Amazônia, apesar da vasta literatura disponível sobre o assunto, ainda existe um grande déficit de conhecimento do panorama fundiário da região. Em virtude de suas dimensões geográficas e do seu modelo de ocupação, a necessidade da regularização fundiária é bem mais evidente e urgente nessa região, principalmente por causa dos conflitos e violência gerados em função da ocupação da terra. 5 Lei nº 9.636/1998 - Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União; Lei nº 10.257/2001 - Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana; Lei nº 11.952/2009 - Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; Lei n° 11.977/2009 Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. 22 Para BRITO e BARRETO (2011) a indefinição de direitos fundiários na Amazônia é reconhecidamente um grave entrave para o avanço de políticas de desenvolvimento sustentável na região. Conforme MANSOS NETO (s.d), questões contingenciais decorrentes das políticas públicas para a Amazônia e do afluxo migratório para a região, a ocupação desordenada do território, o desconhecimento mesmo que parcial da situação fundiária, a omissão estatal em regular o acesso à terra e aos recursos naturais, contribuíram com a instauração de uma cultura de tomar posse de terras ditas “abandonadas”. A fim de implementar uma estratégia de regularização fundiária para a região e, ao mesmo tempo, diminuir os entraves burocráticos do processo, o Governo Federal promulgou, em 2009, a Lei nº 11.952 com o objetivo de promover a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal (art. 1º). Vejamos o que diz MANSOS NETO (s.d) a esse respeito: O Governo Federal, pela primeira vez na história legislativa, reconheceu oficialmente que a Amazônia tem forma toda peculiar e plural de realidade fundiária, que a diferencia de qualquer outra região do Brasil, e que, portanto, necessita de forma especial de intervenção estatal no território amazônida, daí por que a medida tem simbolismo importante no contexto histórico e jurídico ao distinguir e determinar tratamento específico para a questão fundiária distinta das outras, situação que possui amparo constitucional, porque constitui objetivo fundamental da República e concomitantemente é fundamento da ordem econômica brasileira, qual seja: a redução das desigualdades sociais e regionais. Para implementar a Lei nº 11.952/2009, o Governo Federal lançou em seguida o programa Terra Legal sob atribuição do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A expectativa do Governo era o de regularizar, até 2012, as terras da União em 400 municípios ocupados antes de 1º de dezembro de 2004. Apesar de o Programa Terra Legal não conseguir alcançar essa ambiciosa meta, não podemos olvidar que a Amazônia Legal passa por um dos maiores processos de regularização fundiária das últimas décadas e que o Programa tem como principal mérito dar apoio aos governos estaduais nos processos de regularização fundiária em terras públicas estaduais. 23 6. BREVE HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO DE RORAIMA O histórico de ocupação territorial do atual Estado de Roraima apresenta, no seu conjunto, um complexo quadro fundiário. O que se viu durante todo o processo de ocupação do Estado, desde o início da colonização do Vale do Rio Branco, foi uma certa desordem, que estendeu seus reflexos até os dias atuais. A formação do território do Estado de Roraima pode ser dividida basicamente em quatro períodos: o primeiro, que vai desde o início da colonização do Vale do Rio Branco até a criação do Município de Boa Vista, em 1890; o segundo, da criação do Município até criação do Território Federal do Rio Branco, em 1943; o terceiro, que vai de 1943 até a criação do Estado, em 1988; e o quarto, que vai de 1988 até os dias atuais. 6.1. Primeiro período: do início da colonização até a criação do munícipio de Boa Vista De acordo com Menck (2008), a colonização portuguesa da região do Rio Negro teve início em pleno período da União Ibérica, mais especificamente em 1639, quando Pedro Teixeira, depois de tê-los explorado, tomou posse dos rios Amazonas e Negro em nome da Coroa de Portugal. Nesse mesmo período, o explorador descobriu o Rio Branco, dando início às incursões pela região. A região do Rio Branco também era alvo de cobiça de espanhóis e holandeses, o que aumentou a preocupação dos portugueses em consolidar sua presença na região. Segundo Freitas (1996), os espanhóis, vindos do Orenoco, entre 1771 e 1773, invadiram o território português do Rio Branco, estabelecendo-se no Rio Uraricoera. Todavia, foram derrotados por portugueses e brasileiros no Rio Tacutu. Diante de tal cobiça, a ocupação da região tornou-se ponto de honra para os portugueses após a expulsão dos espanhóis. Entre 1775 e 1776, atendendo-se uma demanda do Governo Colonial, foi realizada construção do Forte São Joaquim, que consolidou a presença portuguesa na região. Segundo Freitas (1996), a edificação do Forte São Joaquim 24 desempenhou papel importante, uma vez que ali estava o representante do Governo da Província de São José do Rio Negro, maior autoridade desta vasta região. Inicialmente, a ocupação portuguesa na região tinha a defesa do território como maior justificativa, mas pouco tempo depois passou a haver a exploração econômica da região, que se deu, sobretudo, com a introdução da pecuária nos campos naturais existentes. No que se refere à questão fundiária da região, Vieira (2007) destaca a questão da Lei de Terras de 1850: A Lei de Terras de 1850 institucionaliza no Brasil o regime da grande propriedade privada, restringindo o acesso a terra e ampliando o contingente de despossuídos. De acordo com a Lei, as terras indígenas foram enquadradas em dois tipos: as derivadas do indigenato, ou seja, as reconhecidas como dos índios por direito originário, livres da necessidade de legitimação; e as terras reservadas à colonização dos indígenas, consideradas devolutas, inalienáveis e destinadas ao usufruto desses povos. As oligarquias interpretaram a lei de 1850 de acordo com seus interesses, sendo que aos poucos os poderes locais passaram a vender as terras das aldeias extintas, como também a usá-las para fundação de vilas, povoações ou mesmo logradouro público. Isso se deu principalmente depois da criação do Ministério da Agricultura, em 1860, e da passagem da política indigenista para aquele órgão. Depois disso, dezenas de aldeias foram extintas formalmente. Já em 1887, as terras das aldeias extintas tornaram-se domínio das antigas províncias, e na República as Câmaras Municipais passaram a ter poder de decisão sobre elas, facilitando aos fazendeiros da região a regularização das terras que haviam ocupado. Segundo a Lei Nº 601, de 18 de setembro de 1850, em seu Art. 3º são terras devolutas: § 1º - As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2º - As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º - As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. Muitos fazendeiros, na época, estabeleceram-se sobre as chamadas terras devolutas, o que acarretou problemas, em períodos posteriores, para a regularização das mesmas. 25 6.2. Segundo período: da criação do Município de Boa Vista até criação do Território Federal do Rio Branco (1890-1943) Ainda dentro do contexto histórico da ocupação da região, o ano de 1890 representou um marco, com a criação do município de Boa Vista do Rio Branco, pelo Governador do Estado do Amazonas, Augusto Ximeno de Villeroy, no dia 09 de julho. Podemos definir este como o segundo período de ocupação territorial de Roraima. Figura 01: Configuração do atual Estado de Roraima antes da criação do Território Federal. Fonte: Oliveira, 2007. Nesse período, conforme Freitas (1996), as condições adversas ocasionadas pelas secas, na região Nordeste do Brasil, trouxeram muitos nordestinos para a região do Vale do Rio Branco. Nesse período, a pecuária continuava sendo a principal atividade econômica e as fazendas de gado continuavam a se expandir. 26 Vale lembrar que boa parte do gado aqui produzido era exportada para Manaus em troca de gêneros de primeira necessidade. 6.3. Terceiro período – da criação do Território Federal do Rio Branco até a criação do Estado (1943 a 1988) Em 1943, iniciou-se uma nova era, com a criação do Território Federal do Rio Branco, que mais tarde, em 1962, viria a ser chamado de Território Federal de Roraima. Figura 02: Território Federal do Rio Branco. Fonte: Oliveira, 2007. O Território Federal do Rio Branco foi criado pelo Decreto-Lei 5.812, de 13 de Setembro de 1943, tendo sido desmembrado do Estado do Amazonas, com o intuito de garantir a ocupação e a soberania das zonas de fronteiras. 27 O Artigo 2º do Decreto-Lei 5.812/1943 destaca que passam para o domínio da União os bens que, pertencendo aos Estados ou Municípios na forma da Constituição e das leis em vigor, se acham situados nos Territórios delimitados no artigo precedente6. Por força desse artigo, todos os bens até então pertencentes ao Município de Boa Vista, inclusive os bens imóveis, com a criação do Território Federal do Rio Branco, agora faziam parte do domínio da União. Figura 03: Território Federal de Roraima, antes das emancipações de 1982. Fonte: Oliveira, 2007. Segundo Freitas (1996), com a criação do Território Federal, essa região passou a ter um tratamento melhor, uma vez que seus problemas eram ligados diretamente à União Federal. O governador nomeado era Delegado do Presidente 6 O Artigo precedente a que refere o Art. 2º do Decreto-Lei Nº 5.812, de 13 de Setembro de 1943, no caso o Art. 1º, destaca os novos Territórios Federais criados, conforme se segue: Art. 1º São criados, com partes desmembradas dos Estados do Pará, do Amazonas, de Mato Grosso, do Paraná e de Santa Catarina, os Territórios Federais do Amapá, do Rio Branco, do Guaporé, de Ponta Porã e do Iguassú. 28 da República. Assim, os assuntos pertinentes ao Rio Branco deixaram de passar pelo Palácio Rio Negro, em Manaus, e foram para o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Todavia, o desmembramento do Estado do Amazonas, a criação do Território Federal do Rio Branco/Roraima, a fragmentação da malha municipal e outros processos territoriais importantes, não colocaram um fim ao problema fundiário na região. Figura 04: Território Federal de Roraima após as emancipações de 1982. Fonte: Oliveira, 2007. Nesse cenário, Vieira (2007), diz que um fato que constatava o grave problema fundiário da região, vinha do então Ministério do Interior (1975-1979). Nesse período, esse Ministério realizou um estudo para elaborar o segundo Plano 29 de Ação do Governo para o então Território Federal de Roraima, como forma de concretizar a vinda de imigrantes para o Estado com o objetivo de ocupar os “vazios da Amazônia”, além de definir uma estratégia agropecuária. Foi através desse estudo que se constatou, depois de todo o levantamento efetuado, que a situação fundiária dos proprietários de terra em Roraima era totalmente indefinida. Nesse período havia somente 1.193 imóveis rurais cadastrados pelo Sistema Nacional de Cadastro Rural, apenas 172 possuíam títulos definitivos de propriedades. O Território recebia cada vez mais imigrantes, que se instalavam principalmente nas zonas rurais, que como vemos não tinham, e muitas não têm até hoje, uma situação fundiária definida. Os incentivos governamentais concedidos na segunda metade do século XX favoreceram de forma significativa a ocupação do Estado de Roraima. Em decorrência dos projetos de assentamento que são crescentes nessa região, um grande número de imigrantes de todas as partes do país se dirigiu ao atual Estado de Roraima no intuito de serem, ao menos inicialmente, inseridos nas atividades agrícolas (SILVA; LACERDA; DINIZ, 2012). 6.4. Quarto período: da criação do Estado de Roraima até os dias atuais O quarto período que convém ser destacado na história de ocupação Territorial do Estado de Roraima se inicia em 1988, quando ocorreu a criação do Estado. A criação do Estado do Roraima deu-se com a promulgação da Constituição de 1988, nos termos do art. 14, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: Art. 14. Os Territórios Federais de Roraima e do Amapá são transformados em Estados Federados, mantidos seus atuais limites geográficos. (...) § 2º - Aplicam-se à transformação e instalação dos Estados de Roraima e Amapá as normas e os critérios seguidos na criação do Estado de Rondônia, respeitado o disposto na Constituição e neste Ato. 30 É a partir da análise e interpretação do artigo supracitado que se inicia toda uma discussão política e jurídica sobre qual o momento histórico em que as terras passaram ao domínio do Estado de Roraima. Todavia, a questão da dominialidade das terras ainda é um problema complexo. Hoje, decorridos mais de 25 anos de sua criação, boa parte das terras do Estado ainda pertencem à União, vez que ainda estão estagnados os processos de transferência das glebas. Figura 05: Configuração atual do Estado de Roraima após a criação de novos municípios em 1995. Fonte: ITERAIMA. Ao longo de toda a história do Estado, questões de ordens diversas impediram que a regularização fundiária do Estado fosse completamente efetivada, por meio de uma solução definitiva, o que daria ao Estado um maior grau de autonomia sobre o seu próprio território. 31 Dentro desse contexto, nos ateremos a uma abordagem que analise a situação fundiária do Estado de Roraima, desde sua criação até a atualidade. 7. A TITULARIDADE DAS TERRAS E O DIREITO DE PROPRIEDADE Todos os bens estão sujeitos ao direito de propriedade do referido bem. Não é diferente com os bens imóveis. Há que se saber a que pessoa jurídica de direito público interno (União ou Estado) pertence a dominialidade das terras que compõem a base territorial do Estado de Roraima. Segundo IMPARATO E SAULE JR. (2007) “a teoria sobre o direito de propriedade, como um modo de imputação de uma coisa a um sujeito, partiu da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que a concebeu como um direito natural. Aquela declaração limitava o exercício da propriedade às possibilidades dos demais indivíduos não-proprietários exercerem os seus direitos”. O direito de propriedade tem fundamento na Constituição Federal que o garante (art. 5º, inciso XII), determinando a seguir que essa propriedade deve cumprir sua função social (art. 5º, inciso XIII). JOSE AFONSO DA SILVA registra a importância da inscrição da propriedade e a sua função social como princípios da ordem econômica. Neste diapasão, “... ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Se é assim, então a propriedade que, ademais, tem que a tender sua função social, fica vinculada à consecução daquele princípio”. Nota-se que houve uma nítida evolução do direito de propriedade, superando sua concepção como direito natural e passando a ser um direito atual. A Constituição de 1988 tratou-o como um instituto ligado ao Direito Público, porque deve cumprir sua função social. Essa função social da propriedade, inclusa no rol dos direitos e garantias fundamentais da República consagrada no seu artigo 5º, incisos XXII e XXIII (verbis), estende-se também à propriedade pública. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a 32 inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; O princípio da função social da propriedade deve alcançar também a propriedade pública. Para IMPARATO & SAULO JR (2007) toda e qualquer propriedade deve cumprir sua função social, independente de se tratar de propriedade privada ou propriedade pública, o que, no limite, significa cumprir os preceitos da Constituição. Vale ressaltar também que, conforme preceitua o Art. 3º da nossa Carta Magna, constituem objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; com garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; promovendo o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação. Abaixo, os autores apresentam em detalhes tal reflexão: Esse objetivo maior da República deve ser cumprido no exercício do direito de propriedade de qualquer natureza, seja o titular sujeito de direito privado ou de direito público. Até porque, como afirmamos, o conceito de propriedade atravessa, hoje, as antigas divisões entre Direito Público e Direito Privado. Assim, toda e qualquer legislação infraconstitucional deverá assegurar os mecanismos, por meio de normas e instrumentos jurídicos, que, inspirados nos objetivos fixados pela Constituição, determinem o cumprimento da função social da propriedade. EROS ROBERTO GRAU, citado por PEREIRA (2010) salienta que somente se pode cogitar da função social da propriedade quando se trate de propriedade privada, porquanto a alusão à função social da propriedade estatal qualitativamente nada inova, visto ser ela dinamizada no exercício de uma função pública. Conforme DI PIETRO (2006) o princípio da função social da propriedade pública não está consagrado com tanta clareza na Constituição. Ele não é definido senão por meio de diretrizes a serem observadas pelo poder público. A propriedade pública já tem uma finalidade pública que lhe é inerente e que pode e deve ser ampliada para melhor atender ao interesse público, em especial os objetivos constitucionais voltados para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem estar dos seus habitantes (DI PIETRO, 2006). 33 Diz a autora supracitada: Com efeito, não há porque excluir os bens dominicais da incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade, quer para os submeter, na área urbana, as limitações impostas pelo Plano Diretor, quer para enquadra-los, na zona rural, aos planos de reforma 7 agrária. O que o Estado de Roraima reivindica é justamente a propriedade de fato e de direito das terras que compõem o seu patrimônio imobiliário, pois conforme a Constituição de 1988, pertenceriam ao Estado de Roraima as terras herdadas do exterritório. Porém, como o Governo Federal só editou uma lei de repasse dessas terras em 2001 (Lei nº 10.304), que só veio a ser regulamentada em 2009 pelo Decreto 6.754, até o momento atual, infelizmente, o que temos é um quadro de indefinição fundiária. Solucionar a questão fundiária (transferência das terras para o domínio do Estado) é condição imprescindível para cumprir a função social da propriedade e possibilitar uma nova dinâmica à economia do Estado. 7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Numero 6 – abril/maio/junho/2006. Salvador/BA 34 8. OS BENS PÚBLICOS E A QUESTÃO FUNDIÁRIA A doutrina jurídica define ou conceitua bem público sob a ótica da ordem constitucional e legal vigente. Desse modo, bens públicos são aqueles assim estabelecidos pela Constituição, disciplinados pelo Direito Civil e Direito Administrativo. O artigo 98 do Código Civil diz que são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Segundo CASSETTARI (2012) são terras públicas todas aquelas pertencentes ao poder público, ou seja, são bens públicos determinados ou determináveis que integram o patrimônio público, incluindo-se aí as terras devolutas. Assim, as terras devolutas são espécies de terras públicas lato sensu. Em se tratando de imóveis, estes nunca serão res nullius, pois pelo artigo 1.276 do Código Civil, o imóvel urbano abandonado “poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições” e o imóvel rural abandonado “poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize”. Em todos os Estados da Federação, além do patrimônio estatal, existem espaços territoriais e bens da União, de Municípios e de particulares. A criação do Estado não afasta nem impossibilita a existência de bens de outros entes da Federação. 8.1. Bens da União O conceito genérico de bens da União engloba tanto os bens imateriais, como os direitos dos cidadãos, tanto os materiais, como as coisas. No presente trabalho, consideraremos apenas os bens materiais e imóveis. 35 Os bens são historicamente divididos entre privados e públicos. Segundo IMPARATO e SAULE JUNIOR8 (2007) essa divisão histórica que, no Brasil, pode ser traçada desde a Lei de Terras, é uma divisão por exclusão. Ou seja, são bens públicos os bens imóveis que não forem legitimamente atribuídos a pessoas jurídicas ou físicas de Direito Privado. O vocábulo público designa o sujeito de direito titular do bem, ou seja, o Estado, isto é, o Poder Público. O art. 20 da CF/88 diz quais são os bens pertencentes à União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VI - o mar territorial; VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; VIII - os potenciais de energia hidráulica; IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e préhistóricos; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Dos que importam a este estudo, dizem os incisos II a XI do artigo supracitado. Todos estes bens foram excluídos da transferência de terras da União ao Estado de Roraima, de que trata a Lei 10.304/2001, in verbis: Art. 2º. São excluídas da transferência de que trata esta Lei: I – as áreas relacionadas nos incisos II a XI do art. 20 da Constituição Federal. Percebe-se que o legislador ordinário preocupou-se em excluir da aludida transferência de terras os bens constitucionalmente pertencentes à União. Para a exclusão dessas áreas, determina ainda o Decreto 6.754/2009, que, entre outros requisitos, deverá ser feito o prévio georeferenciamento: 8 Regularização Fundiária Sustentável - conceitos e diretrizes. Raquel Rolnik. (et al.). Brasília: Ministério das Cidades, 2007. 36 Art. 1º - Ficam transferidas gratuitamente ao Estado de Roraima as terras públicas federais situadas em seu território que estejam arrecadadas e o matriculadas em nome da União, em cumprimento ao disposto no art. 1 da o Lei n 10.304, de 5 de novembro de 2001. o § 1 A transferência de que trata o caput será feita considerando: o IV - o seu prévio georreferenciamento, conforme determina o § 4 do art. o 176 da Lei n 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a expensas da respectiva unidade da Federação; 8.2. Bens do Estado A definição do que se caracteriza como bens dos Estados da Federação, é destacado no Artigo 26 da Constituição Federal: Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros; III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União. (grifo nosso) Dessa forma, em harmonia com o texto da Carta Magna de 1988, as terras devolutas, não compreendidas entre as da União, a saber, as registradas no art. 20, II ("as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei"), PERTENCEM OU SÃO INCLUÍDAS ENTRE OS BENS DO ESTADO-MEMBRO, EM QUE SE SITUAM. A dominialidade do Estado federado, no que pertine a terras devolutas, é constatada, de ver-se, por exclusão: as que não pertencerem à União, nos termos do art. 20, II, da CF/88, pertencem aos Estados. Pelo entendimento literal do art. 4º da Lei Estadual Nº 738/20099, temos que são terras públicas do domínio do Estado de Roraima, aquelas: I - devolutas transferidas aos Estados-Membros pela Constituição Federal de 24 de fevereiro de 1891 e aquelas não compreendidas entre as da União. II - que pertenciam ao Território Federal de Roraima, bem como as efetivamente utilizadas pela então Administração do Território Federal de Roraima, arrecadadas ou não em nome da União, transferidas ao Estado de Roraima, por força do disposto no § 2º, do artigo 14, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988; e na Lei Complementar Federal nº. 41, de 22 de dezembro de 1981, exceto as 9 Trata-se da Lei Estadual N° 738 de 10 de setembro de 2009 que “Dispõe sobre a Política Fundiária Rural do Estado de Roraima, revoga a Lei nº 197, de 8 de abril de 1998, e dá outras providências”. 37 excluídas, nos termos do artigo 2º da Lei nº. 10.304, de 05 de novembro de 2001, e suas alterações; Medida Provisória nº. 454, de 28 de janeiro de 2009 (convertida na Lei nº. 11.949, de 17 de junho de 2009); no Decreto Federal nº 6.754, de 28 de janeiro de 2009. III - ilhas fluviais e lacustres, situadas em seu território, não pertencentes à União; IV - que tenham sido incorporadas ao seu patrimônio, em virtude de lei ou desapropriação e que não se encontram, por título legítimo, sob domínio de terceiros; e V - de domínio particular, concedidas pelo Estado, cujos títulos tenham sido ou sejam cancelados pelo Poder Público Estadual. O referido diploma legal dispõe no seu art. 5º que são terras devolutas estaduais, aquelas: I - transferidas ao domínio do Estado, por força do art. 64 da Constituição Federal de 1891; II - transferidas ao Estado e ainda não arrecadadas, nos termos do § 2º, do artigo 14, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988, Lei Complementar Federal nº. 41, de 22 de dezembro de 1981; exceto as excluídas, nos termos do artigo 2º da Lei nº 10.304, de 05 de novembro de 2001, com suas alterações; na Medida Provisória nº. 454, de 28 de janeiro de 2009 (convertida na Lei nº. 11.949, de 17 de junho de 2009); e no Decreto Federal nº. 6.754, de 28 de janeiro de 2009. III - que não forem indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei federal, na forma do artigo 26, IV, da CF/88; IV - que não se incorporarem ao domínio privado ou dos Municípios, em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento pela União ou pelo Estado, por força de legislações federais ou estaduais específicas. 8.3. Terras devolutas A noção de terras devolutas é objeto de divergências. O nosso primeiro código de terras, Lei nº 601/1850, definiu terra devoluta por critério de exclusão: Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. 38 Mais recentemente, ao dispor sobre os bens imóveis da União, o Decreto-lei nº. 9.760, de 05.09.1946, deu o seguinte conceito de terras devolutas: Art. 5º - São terras devolutas, na faixa de fronteiras, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado. Vigente, ainda hoje, prevista na CF/88: art. 20, II (bens da União); art. 26, IV (bens estaduais); art. 188, §§ 1° e 2° (destinação de terras públicas e devolutas); art. 225, § 5° (indisponibilidade). LUIS DE LIMA STEFANINI10 entende "as terras devolutas como sendo aquelas espécies de terras públicas (sentido lato) não integradas ao patrimônio particular, nem formalmente arrecadadas ao patrimônio público, que se acham indiscriminadas no rol dos bens públicos por devir histórico-político". As terras devolutas são áreas que não passaram do patrimônio público para o particular de forma legítima, pois no Brasil vigora o princípio da posse histórica das terras, que presume que a propriedade imobiliária tem origem pública. (CASSETTARI, 2012) Historicamente, as terras devolutas pertencem aos Estados, como elemento definidor do federalismo brasileiro. A Constituição de 1891, no seu artigo 64, expôs dessa forma: Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. (grifo nosso) Quanto à inserção expressa das terras devolutas entre os bens de domínio público dos Estados, os textos constitucionais, assim procederam, mediante a fórmula genérica que as identifica como aquelas resultantes da exclusão das terras devolutas que, por se considerarem indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais, foram incorporadas ao domínio da União. Na expressão de PEREIRA (2010): Passaram os Estados-membros, de uma forma genérica, a ser titulares das terras devolutas situadas em seu território, ressalvada a daquelas que, à época da promulgação da primeira Constituição Republicana, já tivesse 10 STEFANINI, Luis de Lima. A Propriedade no Direito Agrário. Ed. Revista dos Tribunais, 1978, SP. 39 aquele caráter de indispensabilidade para o interesse público nacional, bem como as que o vissem a adquirir por força de fato ou ato declaratório emanado da União Federal. A Constituição de 1988 segue essa compreensão ao conferir ao domínio da União as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei (art. 20, II da CF). E ao domínio do Estado, as terras devolutas não compreendidas entre as da União (art. 26, IV da CF). Conforme ASSUNÇÃO (2008) os Municípios e os Territórios não foram contemplados com terras devolutas. Todavia, os Municípios podem exercer domínio de terras devolutas que lhes forem transmitidas pelos Estados. 8.4. Propriedade das terras devolutas Conforme PEREIRA (2010) “as terras devolutas no período do Brasil Colônia, pertenciam à Metrópole. Com a independência, passaram ao domínio da Coroa Imperial. Após proclamada a República em 1889, a Constituição de1891 transferiulhes o domínio para os Estados Federados, mantendo, porém, alguns trechos no domínio federal”. Face à Constituição de 1988, pertencem à União as terras devolutas elencadas no art. 20, II da CF. As demais terras devolutas existentes no território nacional já foram trespassadas aos Estados, sendo destes, portanto, a sua titularidade. As terras devolutas são bens não afetados a uma finalidade ou serviço público específico, fazem parte dos bens patrimoniais dos entes federativos, especialmente, os Estados-membros que são titulares das terras devolutas, que não pertencem à União, conforme a norma do artigo 20, inciso II, da Constituição da República. No que se refere à titularidade das terras devolutas, vejamos o que diz DIRLEY DA CUNHA JUNIOR (2011)11: Quanto à comprovação, na prática, da existência de terras devolutas, parece ter hoje se pacificado, na doutrina e jurisprudência, que não são todas aquelas em que não há inscrição imobiliária a favor de particular. A União precisa, além de provar que não há o registro, provar que a terra lhe pertence, não estando entre as terras devolutas do Estado. A concepção de 11 CUNHA JUNIOR, Dirley da. Terras Devolutas nas Constituições Republicanas. Disponível em: http://www.juridicohightech.com.br. 40 que o que não estiver expressamente registrado a favor de alguém, nas áreas enunciadas, pertence à União, está definitivamente afastada, prevalecendo a dupla necessidade de comprovação, a saber: a) inexistência de registro; b) propriedade da União. No plano jurídico, porém, a titularidade das terras devolutas não é comprovada mediante documento cartorial. O titulo é a própria norma constitucional (art. 20, II e art. 26, IV da CF) e as infraconstitucionais que outorgam ao Estado esta especial condição. A CF ainda estabeleceu critérios de destinação conforme o artigo 188, indo mais além ao tratar sobrea sua indisponibilidade no art. 225, § 5º. Em se tratando de processo de discriminação das terras devolutas, “aquele destinado a assegurar a discriminação e delimitação das terras devolutas da União e dos estados-membros, além de separá-las das terras particulares e de outras terras públicas”12, a matéria está completamente redigida pela Lei nº 6.383/1976. Conforme DIRLEY DA CUNHA JUNIOR “o propósito da lei em tela é permitir que o Estado por meio de um processo próprio, especial, denominado processo discriminatório, identifique as terras devolutas, encontre-as, localize-as, separe-as das demais categorias de terras, ou seja, das particulares ou próprias, pertencentes aos entes privados ou mesmo públicos”. A destinação das terras apuradas como devolutas somente se pode fazer mediante as previsões legais, especialmente mediante os processos de legitimidade e regularização fundiárias. Como era de se esperar, a Lei nº. 10.304/2001 excluiu da transferência de domínio ao Estado, os bens imóveis constitucionalmente pertencentes à União, ou seja, as áreas relacionadas nos incisos II a XI do art. 20 da Constituição Federal. A primeira questão relevante surge com o inciso II do art. 20 da CF, pois não há lei que defina quais são as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental. Conforme preceitua IMPARATO e SAULE Jr. (2007) não existe presunção legal para definir os limites das terras devolutas, pois elas precisam ser extremadas das terras particulares, por ações discriminatórias. Mesmo as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, é conceito que carece de precisão especialmente no que se refere à extensão de tais terras, 12 ALMEIDA, R. M. Sesmarias e terras devolutas. Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003. 41 que só pode ser obtida através do legislador ordinário. Essa é a orientação do Supremo Tribunal Federal, ou seja, somente a lei pode objetivar o conceito do constituinte para definir os parâmetros de faixa de fronteira e zona de fronteira. O que se percebe é que se tratam de conceitos distintos, sendo que a faixa de fronteira abrange a zona de fronteira. 9. SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DO ESTADO DE RORAIMA Para melhor entendermos a situação fundiária do Estado de Roraima, passaremos ao exame histórico dos principais entraves jurídicos e administrativos que tem se tornado óbice ao efetivo repasse das terras da União ao Estado. Dessa forma passaremos a análise de algumas hipóteses relativas ao ato legislativo e ao momento em que as terras federais foram/serão efetivamente transferidas ao Estado, acompanhado dos respectivos entendimentos doutrinário e jurisprudencial. São elas: a. Roraima é titular das terras desde a criação do Estado em 1988 O Estado de Roraima é o verdadeiro proprietário das terras, tendo o seu domínio desde a criação do Estado, nos termos do artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias c/c o art. 15 da Lei Complementar 41/1981. b. Roraima é titular das terras a partir da edição da Lei nº 10.304/2001 A transferência das terras para o Estado de Roraima teria se efetuado com a edição Lei n.º 10.304/2001, revestida de eficácia desde o início de sua vigência e com única finalidade de regularizar a posse já exercida pelo Estado. c. Roraima será titular das terras somente após o cumprimento do Decreto 6.754/2009 Somente após o atendimento de todas as exigências contidas no Decreto 6.754/2009, dentre as quais o destaque das áreas que serão mantidas em nome da União e o georreferenciamento, as terras serão de fato transferidas ao Estado de Roraima. 9.1. Roraima é titular das terras desde a criação do Estado em 1988 42 Passaremos a considerar a hipótese de que o Estado de Roraima é o proprietário das terras do seu território, desde sua criação, ocorrida com a promulgação da Constituição Federal de 1988, nos termos do artigo 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias c/c o art. 15 da Lei Complementar 41/81. Ao constituir o Estado Federado de Roraima (até então, mera autarquia territorial da União), a Constituição Brasileira de 1988, no art. 14, §§ 1º e 2º do Ato de suas Disposições Transitórias, estabeleceu que: Art. 14. Os Territórios Federais de Roraima e do Amapá são transformados em Estados Federados, mantidos seus atuais limites geográficos. § 1º - A instalação dos Estados dar-se-á com a posse dos governadores eleitos em 1990. § 2º - Aplicam-se à transformação e instalação dos Estados de Roraima e Amapá as normas e critérios seguidos na criação do Estado de Rondônia, respeitado o disposto na Constituição e neste Ato. A própria Constituição que transformou o Território Federal de Roraima em Estado membro da Federação brasileira, determinou a aplicação ao novo Estado das normas da LC 41/81 que criou o Estado de Rondônia. No que se refere ao patrimônio, dispõe o art. 15 da referida lei que: Art. 15 - Ficam transferidos ao Estado de Rondônia o domínio, a posse e a administração dos seguintes bens móveis e imóveis: I - os que atualmente pertencem ao Território Federal de Rondônia; Il - os efetivamente utilizados pela Administração do Território Federal de Rondônia; Ill - rendas, direitos e obrigações decorrentes dos bens especificados nos incisos I e II, bem como os relativos aos convênios, contratos e ajustes firmados pela União, no interesse do Território Federal de Rondônia. Para alguns autores a criação do Estado pela própria Carta Magna, por si só, já teria o condão de transferir o patrimônio pertencente ao Território ao novo Estado Federado, por força do § 2º do art. 14 do ADCT combinado com o artigo 15 da LC 41/81. Pela análise do inciso I do art. 15 da LC 41/81 depreende-se que todos os bens do domínio terrestre compreendidos no espaço geográfico do Território Federal de Rondônia passaram para o Estado quando de sua criação. Se isso é válido para o Estado de Rondônia, também o é para o Estado de Roraima, obedecendo ao princípio da simetria e em atendimento ao dispositivo constitucional que ordena a aplicação aos Estados criados pela CF/88 (Amapá e Roraima) das normas e critérios seguidos na criação daquele Estado. Dentre esses bens imóveis estão 43 compreendidas as terras devolutas que, excetuando-se aquelas que pertencem a União (nos termos do art. 20, II da CF), passaram a pertencer ao novo Estado as demais terras devolutas, pelo que dispõe o artigo 26, IV (in verbis): Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: (...) IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União. Conforme LOBO (2009)13 “quer por força do artigo 14 do ADCT combinado com o art. 15, I, da LC 41/81, quer por força desse dispositivo constitucional, as terras devolutas do antigo território passaram ao novo Estado, no mesmo momento de sua criação.” Ressalvadas, logicamente, aquelas terras devolutas que são juridicamente inclusas como bens da União (art. 20, II da CF/1988). Ainda para essa autora, não haveria necessidade de qualquer outra providência legal – a não ser atos burocráticos e registrais diligenciados pelo próprio Estado – para que os referidos bens, pertencentes ao antigo território, passassem ao domínio da nova unidade federada. Por esse entendimento, foi transferido ao Estado de Roraima, no mesmo passo, a porção geográfica do território nacional outrora pertencente à autarquia política extinta mediante transformação, com todos os bens que a integravam. Em outras palavras, as glebas matriculadas em nome da União Federal passaram a integrar o patrimônio do Estado de Roraima, desde sua criação, nos termos do art. 14, § 2º, do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, e da Lei Complementar n. 41/1981, que criou o Estado de Rondônia. Esse também foi o entendimento do Estado de Roraima, conforme contestação oferecida na AMS 1364 RR14, julgada em 2006 pelo TRF da 1ª região: 13 LOBO, Ellen Regina. Roraima, a questão fundiária e a evolução de seu desenvolvimento. Boa Vista: Editora da UFRR, 2009. 14 Trata-se de MS 1999.42.00.001364-9/RR, no qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, impetrou a presente ação constitucional, com pedido de liminar, visando: o bloqueio por parte da 2ª Autoridade- Impetrada, Oficial do Cartório de Imóveis de Caracaraí-RR das matrículas das glebas situadas no Estado de Roraima; vedando-se, também, novos registros ou averbações oriundas de processo de arrecadação sumária; bem como a abstenção da 1ª autoridade-impetrada, presidente do Instituto de Terras do Estado de Roraima – ITERAIMA da pretensão de titulação ou novos registros nas matrículas das glebas indicadas. 44 (...) No mérito, ratifica a contestação, argumentando que a pretensão do INCRA esbarra em ato soberano, de natureza constitucional originária, que transferiu os bens discutidos, da União Federal ao novel Estado de Roraima. Assevera que tais bens foram trespassados ao domínio do Estado de Roraima, ora Apelante, por força do disposto no art. 14, §2º, do ADCT/88, c/c art. 15, incisos I e II, da Lei complementar nº 41/81, para que a mesma base física do ex-Território Federal de Roraima se transformasse na base física do novo Estado Federado. 45 Figura 06: Divisão do Estado de Roraima em Glebas. Fonte: Governo de Roraima. Nesse diapasão, temos ainda a ACO 943 RR, julgada em 2012, cujo trecho transcrevemos abaixo: 46 (...) As glebas relacionadas pelo impetrante na petição inicial pertencem ao Estado de Roraima, por força do disposto no art. 14, § 2º, do ADCT, c/c art. 15, I e II, da LC n. 41/81. Para tanto, ressalta que os bens imóveis pertencentes e/ou utilizados pela administração do extinto Território Federal de Roraima estavam registrados em nome da União, consoante o determinado pelo Decreto-lei n. 5.812/43, quando houve a promulgação da Constituição Federal de 1988, momento no qual tais bens foram lhe transferidos para que compusessem a sua base física. Ressalte-se, também, que as terras devolutas pertencentes à União somente seriam aquelas que se amoldam ao previsto pelo art. 20, II, razão por que as glebas discutidas seriam terras devolutas do estado de Roraima, consoante o disposto pelo art. 26, IV, da Constituição Federal de 1988. A aquisição do domínio dos imóveis, nos termos dos dispositivos constitucionais, é ato jurídico perfeito que tornou, portanto, desnecessário ato de transferência formal de domínio da União ao Estado de Roraima. (STF - ACO: 943 RR, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 13/11/2012, Data de Publicação: DJe-228 DIVULG 20/11/2012 PUBLIC 21/11/2012) Porém, o entendimento do STF nesse mesmo julgado (ACO 943 RR) é que “na verdade, a transformação do ex-Território Federal de Roraima em Estado Federado não teve o condão de transferir para este os imóveis à época pertencentes à União Federal”. 9.2. Roraima é titular das terras a partir da edição da Lei nº 10.304/2001 Como já dito anteriormente, houve interpretações no sentido de que foram transferidas para o Estado as terras que pertenciam ao ex-Território Federal de Roraima, tendo amparo constitucional nos termos do § 2º do artigo 14 do ADCT c/c os incisos I e II do art. 15 da LC 41/1981. Por outro lado, esse não foi o entendimento dos nossos legisladores. Como não houve a transferência automática das terras da União ao Estado de Roraima quando de sua criação, iniciou-se uma série de tentativas para regularizar as terras estaduais, que culminou com a edição da Lei n.º 10.304/2001 (transcrita abaixo), cuja epígrafe traz como finalidade transferir ao domínio dos Estados de Roraima e do Amapá15 terras pertencentes à União. 15 A redação original da Lei 10.304/01 tratava apenas da transferência de terras da União ao Estado de Roraima. Nova redação foi dada por meio da Lei 11.949/09, que incluiu também nesse processo de transferência o Estado do Amapá. Assim, a Lei 10.304 passou a ter seguinte ementa: “Transfere 47 o Art. 1 As terras pertencentes à União compreendidas nos Estados de Roraima e do Amapá passam ao domínio desses Estados, mantidos os seus atuais limites e confrontações, nos termos do art. 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) o Art. 2 São excluídas da transferência de que trata esta Lei: (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) I – as áreas relacionadas nos incisos II a XI do art. 20 da Constituição Federal; (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) II – as terras destinadas ou em processo de destinação pela União a projetos de assentamento; (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) III – as áreas de unidades de conservação já instituídas pela União e aquelas em processo de instituição, conforme regulamento; (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) IV – as áreas afetadas, de modo expresso ou tácito, a uso público comum ou especial; (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) V – as áreas destinadas a uso especial do Ministério da Defesa; e (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) VI – as áreas objeto de títulos expedidos pela União que não tenham sido extintos por descumprimento de cláusula resolutória. (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) o Art. 3 As terras transferidas ao domínio dos Estados de Roraima e do Amapá deverão ser preferencialmente utilizadas em atividades agrícolas diversificadas, de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, de assentamento, de colonização e de regularização fundiária, podendo ser o adotado o regime de concessão de uso previsto no Decreto-Lei n 271, de 28 de fevereiro de 1967. (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) o § 1 A aquisição ou o arrendamento de lotes por estrangeiros obedecerá os limites, condições e restrições estabelecidos na legislação federal. o § 2 (VETADO) o Art. 4 O Poder Executivo regulamentará esta Lei. (Redação dada pela Lei nº 11.949, de 2009) o Art. 5 (VETADO) A Lei n.º 10.304/2001, antes da nova redação dada pela Lei nº 11.9149/2009, previa sua regulamentação no prazo de 180 (cento e oitenta dias). Para o TRF da 1ª Região em decisão proferida no Agravo de Instrumento 2006.01.00.033037-3/RR “o que depende de regulamentação são as exceções previstas no art. 2º e não a regra geral prevista no artigo 1º da referida lei, pelo qual as terras pertencentes à União passam ao domínio do Estado de Roraima.” Coadunando com o entendimento de que enquanto não sobreviesse decreto regulamentador restringindo seu espectro, mediante a definição de exceções nos moldes do artigo 2º, a norma do artigo 1º teria eficácia plena, o Estado de Roraima providenciou junto ao Cartório de Registro de Imóveis local a transferência do domínio, com a alteração das matrículas, de algumas glebas pertencentes à União. Esse ato resultou no MS ao domínio dos Estados de Roraima e do Amapá terras pertencentes à União e dá outras providências”. 48 1999.42.00.001364-9/RR, impetrado pelo INCRA, que ao final obteve, em caráter definitivo, a decretação da nulidade e cancelamento de todos os atos, registros ou averbações efetuados em nome do Estado de Roraima nas matrículas das glebas elencadas. Porém, em decorrência do conflito de interesses entre o INCRA e o Estado de Roraima, a competência foi declinada ao STF: PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA DO STF. CONFLITO ENTRE O INCRA E O ESTADO DE RORAIMA ACERCA DE DOMÍNIO DE TERRAS PERTENCENTES À UNIÃO. 1. Como a questão que se pretende discutir no mandado de segurança é se as terras devolutas da União Federal podiam ter sido transferidas para o Estado de Roraima, como o foram, por meio do ITERAIMA, antes de ter sido publicado o decreto federal que regulamentará a Lei nº 10.304/01, é inegável que a competência para julgar a causa é do Supremo Tribunal Federal, a teor do disposto no art. 102, I, f, da CF/88, tendo em vista o evidente o conflito entre o Estado de Roraima e a própria União, cujos interesses, no caso, são defendidos pelo INCRA. 2. Declinação da competência para o excelso Supremo Tribunal Federal. (TRF-1 - AMS: 1364 RR 1999.42.00.001364-9, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 31/05/2006, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 29/06/2006 DJ p.70) Em mais de uma oportunidade o Supremo Tribunal Federal entendeu que a transformação do ex-Território Federal de Roraima em Estado Federado não o autorizou a levar a efeito a transcrição das terras matriculadas em nome da União e, como consequência, considerou ilegal e açodada a transferência, in continenti, das glebas de titularidade da União ao Estado de Roraima, ex vi das Ações Civis Originárias n.º 653, 768 e 943: Eis a ementa do julgado na ACO 653: MANDADO DE SEGURANÇA. GLEBAS PERTENCENTES À UNIÃO. REGISTRO EM NOME DO ESTADO DE RORAIMA. LEI 10.304/2001. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO. 1. Dispondo a Lei 10.304/2001 estarem excluídas, da transferência ao Estado de Roraima, as terras relacionadas nos incisos II, III, IV, VIII, IX e X do art. 20 da Constituição Federal, e havendo expressa previsão de regulamentação no prazo de 180 dias, tem-se por antijurídico o precipitado registro das glebas em nome do Estado-membro, antes mesmo de esgotado o referido prazo, e sem a necessária e prévia identificação daquelas que serão mantidas em nome da União. 2. Segurança concedida. (ACO 653, Relatora: Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 18/11/2004, DJ 04-02-2005) No julgamento da ACO 768, a Min. Ellen Gracie registrou em seu voto “colho a manifestação do Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República Dr. Flávio Giron, verbis: (...) a transferência efetuada pelo Estado de Roraima, através do ITERAIMA, deu-se em confronto com a Lei 10.304/01, visto que não ocorreu 49 a necessária e prévia delimitação das áreas destinadas ao domínio exclusivo da União Federal. Houve precipitação do Estado de Roraima, uma vez que o mesmo não aguardou o decurso do lapso temporal até que a União estabelecesse quais as áreas que não poderiam ser objeto de transferência. (...) Todas as terras transferidas encontravam-se registradas em nome da União Federal, em obediência às formalidades legais aplicáveis. Com a transferência precipitada, o Estado de Roraima simplesmente não delimitou quais as áreas de interesse da União, e quais as que apresentavam outros fins de necessidade ou utilidade pública, e nem poderia fazê-lo, posto se tratar de competência da própria esfera federal. (...) Nesse caso, tantas e tão graves são as conseqüências, que se apresenta indispensável a prévia regulamentação para, somente após, serem transferidas as terras. Ademais, a iniciativa precipitada do Estado de Roraima, termina, por fim, por violar o próprio artigo 20 do texto constitucional, que estabelece os bens pertencentes à União. Portanto, somente com a regulamentação da Lei 10.304/01, a ser efetuada pelo Poder Executivo, se pode falar em transferência ao Estado de Roraima de terras pertencentes à União Federal”. Segundo o voto da Min. Ellen Gracie proferido nos autos da ACO 768 RR (2005) “a expressa previsão de regulamentação no prazo de 180 dias é suficiente a afastar a exegese pretendida pelos impetrados16 de que é imediata a eficácia da norma (...). Assim, tenho por antijurídica a açodada iniciativa de registrar, em nome do Estado de Roraima, na forma em que realizada, as glebas indicadas na inicial”. Conforme decisão do STF no julgamento da ACO 774 RR/2005, tratando-se da transferência das terras, “tantas e tão graves são as consequências, que se apresenta indispensável a prévia regulamentação para, somente após, serem transferidas as terras. Ademais, a iniciativa precipitada do Estado de Roraima, termina, por fim, por violar o próprio artigo 20 do texto constitucional, que estabelece os bens pertencentes à União. Portanto, somente com a regulamentação da Lei 10.304/01, a ser efetuada pelo Poder Executivo, se pode falar em transferência ao Estado de Roraima de terras pertencentes à União Federal”. Passaram-se 8 (oito) anos para que a Lei 10.304/2001 fosse regulamentada, com a edição do Decreto 6.754/2009. Não obstante termos uma lei que transfere ao domínio do Estado de Roraima as terras pertencentes à União, e termos o seu respectivo decreto regulamentador, a situação fundiária do Estado parece que a cada dia torna-se mais complexa e indefinida, com solução indeterminada e sujeita a desdobramentos políticos. 16 Trata-se de oposição ajuizada pelo Estado de Roraima na ação reivindicatória proposta pelo Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (INCRA) contra Arilo Cláudio Dias (autos nº 2000.42.00.000539-6 - 1ª Vara Federal/RR) 50 9.3. Roraima será titular das terras somente após o cumprimento do Decreto 6.754/2009 Por quais motivos, passados mais de 25 anos da criação do Estado de Roraima, o Estado ainda não detém o domínio da totalidade das terras que compõem o seu próprio espaço político-geográfico? Quais são as barreiras que precisam ser vencidas para que de fato o Estado tenha o domínio pleno de suas terras? Para buscarmos respostas a essas perguntas, precisamos analisar o Decreto nº 6.754, de 28 de janeiro de 2009, que “Regulamenta a Lei n o 10.304, de 5 de novembro de 2001, que dispõe sobre a transferência ao domínio do Estado de Roraima de terras pertencentes à União, e dá outras providências.”: o Art 1 Ficam transferidas gratuitamente ao Estado de Roraima as terras públicas federais situadas em seu território que estejam arrecadadas e o matriculadas em nome da União, em cumprimento ao disposto no art. 1 da o Lei n 10.304, de 5 de novembro de 2001. o § 1 A transferência de que trata o caput será feita considerando: I - a exclusão das áreas: a) relacionadas nos incisos II a XI do art. 20 da Constituição; b) destinadas ou em processo de destinação, pela União, a projetos de assentamento; c) de unidades de conservação já instituídas pela União; d) das seguintes unidades de conservação em processo de instituição: Reserva Extrativista Baixo Rio Branco Jauaperi, Florestal Nacional Jauaperi, Unidade de Conservação Lavrados, ampliações do Parque Nacional Viruá e da Estação Ecológica Maracá e as áreas destinadas à redefinição dos limites da Reserva Florestal Parima e da Floresta Nacional Pirandirá; e) afetadas, de modo expresso ou tácito, a uso público comum ou especial; f) destinadas a uso especial do Ministério da Defesa; e g) objeto de títulos expedidos pela União que não tenham sido extintos por descumprimento de cláusula resolutória; II - a preservação ambiental e uso sustentável da terra, em observância à o o Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000, e, no que couber, à Lei n 11.284, de 2 de março de 2006, sob pena de reversão automática ao patrimônio público da União; III - a observação dos requisitos impostos pela legislação referente às terras localizadas na faixa de fronteira e sua aquisição por estrangeiros; o IV - o seu prévio georreferenciamento, conforme determina o § 4 do art. o 176 da Lei n 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a expensas da respectiva unidade da Federação; e V - a priorização dos processos de regularização fundiária em tramitação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. o § 2 A instituição das unidades de conservação a que se refere a alínea “d” o do inciso I do § 1 será feita pela União após consulta ao Estado. o § 3 A efetivação do registro em cartório da transferência de que trata o caput será feita por glebas, logo após estas serem identificadas e georreferenciadas, bem como destacadas as áreas excluídas. o Art. 2 As terras transferidas ao domínio do Estado de Roraima deverão ser preferencialmente utilizadas em atividades de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, de assentamento, colonização e de 51 regularização fundiária, podendo ser adotado o regime de concessão de o uso previsto no Decreto-Lei n 271, de 28 de fevereiro de 1967. o Art. 3 Os títulos estaduais de domínio destacados de área recebida por força deste Decreto deverão ser previamente inseridos no Sistema Nacional de Cadastro Rural - SNCR e conter o número de inscrição do Certificado de o Cadastro de Imóvel Rural - CCIR, nos termos da Lei n 10.267, de 28 de agosto de 2001, seus regulamentos e normas complementares. o Art. 4 Poderão ser firmados termos de cooperação técnica e convênios, ou outros instrumentos congêneres, entre a União e o Estado de Roraima, por meio de seus respectivos órgãos de terras, com a finalidade de efetivar as diligências necessárias à identificação e georreferenciamento das terras o transferidas, a fim de possibilitar o registro em cartório referido no § 3 do o art. 1 . Parágrafo único. Os instrumentos a serem celebrados poderão, ainda, prever a titulação conjunta, pelos órgãos de terras da União e do Estado de Roraima, de ocupações que possam ser legitimadas e cujo processo de regularização fundiária tenha sido iniciado pela União até a data da publicação deste Decreto ou posteriormente pelo Estado de Roraima. o Art. 5 Para fins de registro no Cartório de Registro de Imóveis, o INCRA, por meio de sua Superintendência Regional no Estado de Roraima, observadas as disposições deste Decreto, expedirá termo de doação que conterá o perímetro georreferenciado do imóvel, consideradas ainda as o o condições do § 1 do art. 1 . o Art. 6 Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. (Brasília, 28 de janeiro de 2009; 188º da Independência e 121º da República). Mesmo uma análise perfunctória do referido Decreto revela o modus operandi da transferência de terras em questão. Dispõe o mencionado diploma legal estarem excluídas da transferência todas as áreas pertencentes à União, tais como: os bens da União (art. 20 da CF); as unidades de conservação federais instituídas ou em processo de instituição; as áreas destinadas ou em processo de destinação a projetos de assentamento; as áreas afetadas a uso comum ou especial ou à defesa nacional. Todas essas áreas estão elencadas no elencadas no inciso I do § 1º do art. 1º do Decreto. Além da exclusão das áreas supracitadas, o Decreto nº 6.754/2009 traz ainda outras condicionantes a serem consideradas, como a preservação ambiental e uso sustentável da terra; a observação da legislação referente às terras localizadas na faixa de fronteira e sua aquisição por estrangeiros; o prévio georreferenciamento das áreas e a priorização dos processos de regularização fundiária em tramitação Em suma, o Decreto nº 6.754/2009 diz quais terras não podem ser transferidas e o que deve ser observado no processo, ou seja, visa definir a operacionalidade do processo, como deve ocorrer a transferência. Já vimos que a transformação do ex-Território Federal de Roraima em Estado Federado não teve o condão de transferir para este os imóveis à época pertencentes 52 à União Federal. Em outras palavras, o Território Federal de Roraima não era titular das glebas discutidas quando foi transformado em estado-membro. As glebas foram arrecadadas pelo INCRA em nome da União. Vejamos o texto extraído da ACO 943: (...) os registros anteriores da propriedade dos imóveis foram feitas pela União, representada pelo INCRA. Além disso, coube ao INCRA aferir a extensão dos domínios da União e analisar extrajudicialmente o pleito para que as terras em disputa fossem concedidas, a título gratuito, ao Estado de Roraima. Como as terras públicas federais situadas no território estadual foram arrecadadas e matriculadas em nome da União, inobstante o artigo 1º do Decreto 6.754/2009 utilizar a expressão “ficam transferidas”, claro está que só haverá a transferência plena das terras para o Estado, quando este ente federativo cumprir integralmente todas as exigências impostas naquele diploma legal. Até o final de 2013 o Estado de Roraima não conseguiu cumprir todas as condicionantes do aludido Decreto, pelos mais variados fatores, tais como: interpretações jurídicas diversas e até controversas dos seus artigos, falta de recursos financeiros e de pessoal técnico disponível para gerar as peças técnicas e documentos necessários, indefinição quanto a forma de georreferenciamento que precisa ser realizado (se lote a lote ou georreferenciamento simplificado e “por atacado”). E como se não bastasse essa celeuma técnico-burocrática, ainda há ações e decisões judiciais no sentido de suspender o processo de titulação de terras, por inconsistências técnicas e até mesmo descumprimento de normas legais. Conforme o documento do Governo de Roraima – Plano de Desenvolvimento Sustentável do Estado de Roraima/Plano Plurianual 2012-2015 (RORAIMA, 2011): Essa inversão de domínio de terras, traduz-se em grande volume de atividades a ser empreendido, a tarefa a ser cumprida, se desdobra em diferentes frentes de trabalho relativas à adoção de procedimentos técnicos, administrativos, jurídicos e ambientais concernentes ao Processo como um todo: levantamento e identificação de perímetros de glebas; discriminatória administrativa das áreas com perímetros definidos; efetivação de registros cartorários de incorporação dessas áreas ao estoque de terras estadual e parcelamento do solo com averbação de respectivas áreas de reserva legal para fins de transferência de domínio aos beneficiários dos Programas e Projetos de Regularização Fundiária no âmbito estadual. O desafio de fazer implantar um processo fundiário em sua maior concepção, sob o ponto de vista de que os atos deverão ser técnica e juridicamente incontestáveis, remete à consciência de que somente disponibilizando recursos próprios e buscando parcerias nas esferas de Governo é que viabilizaremos a execução da complexa demanda de tarefas a serem cumpridas na implantação de Projetos de Regularização Fundiária com responsabilidade ambiental e que possa se refletir na valorização 53 social e na sustentabilidade do desenvolvimento rural capaz de elevar o poder econômico do Estado de Roraima. O desafio subjacente para o Estado reside na necessidade imperativa de superarmos toda essa “complexa demanda de tarefas a serem cumpridas”, resultado das condicionantes e exigências impostas pela Lei n.º 10.304/2001 e pelo Decreto 6.754/2009, tendo em vista assegurar a transferência de fato e de direito do patrimônio fundiário que “já era constitucionalmente nosso”, para efeitos de realizar registros de incorporação ao seu patrimônio imobiliário. É exatamente isso o que IMPARATO & SAULE JR. (2007) descrevem no trecho abaixo: Somente a partir da demarcação é possível regularizar a ocupação dos “imóveis presumidamente da União”. Uma vez discriminadas essas terras ou outros bens imóveis dominiais, o agente público federal, estadual ou municipal poderá locá-los, aforá-los ou cedê-los gratuitamente para seu uso, se considerar relevante a ocupação que está sendo dada ao imóvel. Diante do exposto, parece que não há mais o que se discutir. O Estado de Roraima foi criado pela Constituição de 1988, as terras matriculadas em nome da União (por conta do Território Federal de Roraima), não passaram automaticamente ao domínio do Estado. Em decorrência disso, foi editada uma lei específica de transferência de terras, a Lei nº 10.304/2001, que não foi regulamentada no tempo previsto no seu texto original. O Estado de Roraima, na ânsia de resolver a questão fundiária, começou a realizar a transferência de terras, o que ocasionou várias demandas judiciais que determinaram o cancelamento dos registros concedidos precipitadamente pelo Estado. Por fim, a Lei nº 10.304/2001 foi regulamentada pelo Decreto nº 6.754/2009, que em seu bojo trouxe uma série de requisitos e condicionantes para a destinação das terras. A atual situação fundiária do Estado nos demonstra que as terras em questão só passarão ao patrimônio imobiliário estadual, após cumpridas todas as exigências dispostas no Decreto nº 6.754/2009, o que exige cooperação efetiva entre União e Estado. 10. RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS: UNIÃO E ESTADO DE RORAIMA Considerando a existência de um conflito territorial entre a União e o Estado de Roraima, precisamos analisar a questão da harmonia federativa, especialmente no que diz respeito ao federalismo cooperativo, ao pacto federativo e a competência legislativa. 54 10.1. A questão do federalismo O Brasil é uma República Federativa, na dicção expressa do art. 1º da Constituição de 1988: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Tal preceito federativo é complementado pelo art. 18, no qual se explicita que a organização político-administrativa do nosso País compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos em que estabelecido no texto constitucional. Na lição de LUIS ROBERTO BARROSO (2006, p.141 e 142) Federação traduz a forma de Estado, o modo como se reparte o poder político no âmbito do território, e tem por pressuposto a descentralização política. O autor reforça afirmando que do federalismo clássico17 resulta “a existência de duas ordens jurídicas: a federal, titularizada pela União, e a federada (ou estadual), na qual cada estado-membro exerce sua autonomia, isto é sua capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração nos limites definidos na Constituição. Nesse sentido, leciona CASTRO18 (2010, p. 21) que “a autonomia pressupõe aptidão para se governar livremente, poder de fazer as leis e a capacidade para se determinar órgãos de representação. A noção de autonomia é noção de limites”. Porém a motivação que levou à formação da federação brasileira, segundo ABRUCIO e COSTA (1998) citado por VASCONCELOS (2013) foi o sentimento da autonomia dos Estados. Como bem destaca VASCONCELOS (2013) “o sentimento da autonomia, no entanto, não levou em consideração as diferenças regionais, de forma que a implantação da Federação ocorreu de forma simétrica, sem adotar assimetrias como forma de garantir a igualdade material entre os entes federados”. Nesse sentido, observa OLIVEIRA (2012, p. 156): Desde o início, a Federação brasileira não figurou como estrutura apta a propiciar o desenvolvimento do país como um todo, tampouco conseguiu o regime federativo atender às unidades autônomas de modo igualitário, de 17 Para BARROSO (2006) no caso brasileiro reconhece-se ainda um terceiro nível de poder, representado pelos Municípios, igualmente investidos de autonomia pela Carta de 1988 (arts. 18, 29 e 30) 18 CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010 55 modo a propiciar todas as regiões os cuidados precisos para assegurar à diversidade sempre marcante. A premissa de que as partes do Estado federal gozavam de idênticos níveis de desenvolvimento foi equivocadamente adotada e, assim, a todas foram distribuídas a mesma parcela de poder, de competência e de tributos. Não se computou, sob nenhum quadrante, os desníveis relativos à população, ao território e à riqueza de cada componente que iria integrar a estrutura federal. Quanto ao modo de separação de competências entre os entes que compõe a federação, temos duas espécies de federalismo: o federalismo cooperativo e o federalismo dual19. De acordo com PAULO E ALEXANDRINO (2010) “o federalismo cooperativo é caracterizado por uma divisão não rígida de competências entre a entidade central e os demais entes federados. É o caso, por exemplo, da Federação brasileira. Conforme COELHO (2013)20 “a ideia generosa do federalismo cooperativo esconde um federalismo autoritário e uma hipertrofia inegável da união. O nosso federalismo está em crise. Há uma crise axiológica do significado de federação, cooperação, convivência de estados irmãos.” Por diversas vezes na história da nossa Federação, constatamos um “federalismo puramente nominal e semântico”, na expressão de RAUL MACHADO HORTA, citado por PEREIRA21 (2010). O autor continua afirmando que “praticamente foi sepultada a autonomia constitucional estadual, na qual se assentam as Constituições dos Estados-Membros, que por meio delas se completam, de acordo com a “verdadeira doutrina que explica a natureza do Estadomembro” no federalismo”. Segundo a opinião do Min. OSWALDO TRIGUEIRO, citado por PEREIRA (2010) há um processo de enfraquecimento do federalismo brasileiro, com a federação profundamente combalida, não sendo mais que uma sombra do regime sonhado pelos federalistas clássicos. Essa crise do federalismo cria um clima de instabilidade e desconfiança entre os entes federativos. No caso de Roraima, põe-se em jogo a sua autonomia e a sua 19 Segundo PAULO E ALEXANDRINO (2010) o federalismo dual é identificado por uma rígida separação de competências entre a entidade central (União) e os demais entes federados, como é o caso dos Estados Unidos. 20 Sacha Calmon Navarro Coelho, membro da Academia Brasileira de Direito Tributário, na palestra acerca do "Federalismo fiscal cooperativo e o papel do Senado na fixação de alíquotas interestaduais" no XIII Congresso Brasileiro de Direito do Estado – maio/2013 – BA. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/noticias. 21 PEREIRA, José Edgard Penna Amorim. Perfis Constitucionais das Terras Devolutas. 56 liberdade, seja no sentido de gerir seu próprio território ou de instituir o marco normativo da regularização fundiária de suas terras. De acordo com BRAGA22, “fatores reais de poder, especialmente agentes políticos da União, de algum modo, tentam impedir a viabilização política e o desenvolvimento econômico-social deste Estado”. 10.2. Conflito no Pacto Federativo Em termos institucionais, o Federalismo origina-se de um pacto, que “redunda na criação de um novo ente, o governo Federal, e na confecção de um contrato fiador desta união, a Constituição” (ABRUCIO, 2001 apud VASCONCELOS, 2013). Assim, concebe-se o federalismo como pacto, cujas questões institucionais se encontram em uma matriz que reflete o quadro de competências de cada ente federado e as relações intergovernamentais são as linhas nervais do sistema. O federalismo como pacto busca sua justificação no próprio texto constitucional. LIJPHART citado por VASCONCELOS (2013) ressalta essa ideia: A existência de uma Constituição escrita deriva logicamente do princípio essencial do federalismo, a divisão do poder, tem que ser especificada, pois tanto o governo central como os regionais precisam de uma firme garantia de que os poderes que lhes forem atribuídos não lhes podem ser retirados. Há que se destacar que somente a formação do pacto, com a inclusão dos princípios federativos no texto constitucional não são suficientes. É importante também fortalecer a autonomia dos entes federados e sua interdependência. Para VASCONCELOS (2013) “a autonomia é limitada pela própria Constituição, por meio das competências outorgadas a cada ente federado, o que impede a avocação de poder pelo governo central. A interdependência, por sua vez, é decorrente das constantes negociações praticadas entre os entes federados, sobretudo em matérias cuja competência é comum a todos os entes”. Vejamos o que diz ABRUCIO (2001) citado por VASCONCELOS (2013): A interdependência, por sua vez, reflete a necessidade de reforçar os laços federativos, a fim de evitar que eles se afrouxem ou tornem-se um meio de instituir jogos de cabo de guerra. (grifo nosso) 22 Procurador Imobiliário do Estado em matéria veiculada na Folha de Boa Vista no dia 02/10/2013 57 Dessa forma, a existência simultânea de autonomia e de interdependência entre os entes federados, além de garantir a não centralização do poder, evitaria a instituição desses “jogos de cabo de guerra”. ELAZAR (1993) citado por VASCONCELOS (2013) conclui que “qualquer sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio adequado entre a cooperação e a competição, e entre o governo central e seus componentes”. Uma vez que o Território Federal de Roraima foi criado em 1943, pelo Decreto Lei nº 5.812 e transformado em Estado com a promulgação da Constituição Federal em 1988, precisamos rever como as Constituições anteriores à nossa atual Carta Magna, mais precisamente as Constituições de 1937, de 1967 e de 1969 tratavam o território e sua relação com o poder central – a União – pois essa relação reflete-se até nos nossos dias. A Constituição de 1937 trouxe no seu art. 4º a previsão de criação de Territórios Federais em razão de interesse da defesa nacional, com atuação direta da União. Os artigos 3 e 4 da CF/1937 estabeleciam que os Territórios Federais eram entidades constitutivas do Estado Federal e eram administrados pela União. Desse modo, não havia autonomia política nos Territórios Federais, apenas administração da União. Isto significava centralização política e administrativa, na qual o Território ficava vinculado diretamente à União. O Decreto-lei nº 411/1969 (08/01/1969), que dispôs sobre a administração dos territórios federais, conceitua como território as “unidades administrativas descentralizadas da Administração Federal, com autonomia administrativa e financeira, equiparados para os efeitos legais, aos órgãos de administração indireta” (art. 3º). Vale lembrar que até o ano de 1988, vigorava a Constituição de 1969. Segundo PAULO & ALEXANDRINO (2010) na vigência da Constituição de 1969, os Territórios Federais eram considerados entes federativos. De fato, dispunha a pretérita constituição Federal que a República Federativa do Brasil era constituída pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Vejamos o que dispunha o art. 1º da CF/1969: Art 1º - O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. 58 Não obstante os Territórios Federais serem identificados como entidades da federação, sua organização político-administrativa apoiava-se no modelo e no contexto histórico, político e cultural do poder central. A Constituição Federal de 1988 suprimiu os Territórios Federais como entes federativos e outorgou essa qualidade aos Municípios. Podemos inferir das constituições anteriores que o Território Federal de Roraima integrou a estrutura federativa brasileira durante 45 anos, desde sua criação em 1943 até sua estadualização em 1988. E que com a ascensão do Território à categoria de Estado, a União deveria estimular e possibilitar seu desenvolvimento econômico, social, político e administrativo. No entanto, especialmente no que se refere à transferência de titularidade do domínio das terras, o que há é um conflito de interesses entre União e Estado, quando deveria haver cooperação entre esses entes, atuando conjuntamente no processo de regularização fundiária estadual, condição precípua ao desenvolvimento social, econômico e ambiental do Estado. Do pacto federativo, deprende-se que os entes que constituem o Estado Federal são todos autônomos, conforme se infere do art. 1º c/c o art. 18 e iguais conforme o princípio da isonomia estabelecido no art. 19, III, todos da nossa Carta Magna. Mas o que se percebe, na prática, é que a União ainda mantém uma ingerência forte sobre os ex-territórios, especialmente sobre Roraima. A polêmica que surge é se: nesse processo de transferência de terras para o Estado, o problema não seria de ordem meramente política, por meio de uma exagerada intervenção da União sobre o referido Estado? Por sua vez, a falta de domínio de suas terras constrange o Estado a uma estagnação econômica, inviabilizando qualquer forma de planejamento e implantação de programas de ocupação e crescimento econômico ambientalmente sustentável e acesso a políticas públicas que estão à disposição, mas que esbarram na ausência de uma definição da titularidade dessas terras públicas. 10.3. Competência para legislar sobre Política Fundiária 59 A propósito da repartição de competências federativas, SILVA 23 (1990) informa que: “... A Constituição de 1988 estruturou um sistema que combina competências exclusivas, privativas e principiológicas com competências comuns e concorrentes, buscando reconstruir o sistema federativo segundo critérios de equilíbrios ditados pela experiência histórica.” Importa destacar no sistema de distribuição de competências entre a União Federal e os Estados-membros, contidos na atual Constituição, aquelas que interessam ao tema sob estudo. Como estamos tratando da titularidade do domínio das terras e regularização fundiária no Estado de Roraima, precisamos trazer à discussão sobre a competência para legislar sobre politica fundiária. A Constituição do Estado de Roraima, aprovada em 1991, nos seus artigos 123 a 129, deu ao Estado a competência para legislar sobre politica fundiária e agrícola. No seu art. 129 afirma a constituição estadual que o Estado promoveria sua política fundiária através da criação de um Instituto de Terras, constituído na forma da Lei. Assim, em 1992, através da Lei nº 030 foi criado o Instituto de Terras e Colonização de Roraima (ITERAIMA), com a “finalidade de executar a política fundiária do Estado, investido de poderes de representação para promover a discriminação, arrecadação e regularização das terras públicas e devolutas do Estado ou aquelas transferidas da União, por força da lei, ou incorporadas por qualquer meio legal ao Patrimônio Estadual, bem como a normatização de áreas urbanas e rurais, de domínio e posse do Estado (art. 4º).” A questão da propriedade pública é também objeto do Direito Administrativo. Ora, os bens imóveis são bens públicos, matéria administrativa por excelência. Conforme lição de MANSOS NETO (s.d): [...] as regras jurídicas aplicáveis às concessões de terras dos Estados têm natureza de direito administrativo, porque se inserem no poder de gestão própria de bens públicos estaduais, se assim não fosse faleceria competência legislativa e administrativa ao Estado para expedir atos administrativos de concessão de terras (títulos de terras) e se estaria diante de monumental inconstitucionalidade formal e material. Em consonância com o equilíbrio do sistema federalista no aspecto da autogestão territorial do Estado–Membro, este tem competência para legislar sobre 23 SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 60 a politica fundiária. Assim sendo, as terras transferidas por meio da Lei nº 10.304/2001, na condição de plenamente incorporadas ao patrimônio imobiliário estadual, sujeitam-se ao regime jurídico administrativo de gestão de bens públicos. Nesse sentido, o Estado de Roraima editou a Lei nº 738, de 10 de setembro de 2009 que dispõe sobre a Política Fundiária Rural do Estado de Roraima. Vale lembrar que essa lei foi editada após a autorização da doação de mais de 6 milhões de hectares de terras públicas da União ao Estado de Roraima por meio da Lei Federal nº 10.304/2001 (com nova redação dada pela Lei nº 11.949/2009). Ratificamos que somente após a publicação da Lei nº 10.304/2001 que dispôs sobre a transferência ao domínio do Estado de Roraima de terras pertencentes à União e do Decreto 6.754/2009, que regulamentou a Lei nº 10.304/2001, o Estado editou a Lei nº 738/2009, dispondo sobre sua política fundiária rural. Dispõe o artigo 1º da Lei nº 738/200924: Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a política fundiária rural do Estado de Roraima, promovendo medidas que permitam a utilização racional e econômica das terras públicas rurais, assegurando a todos os que nelas habitam e trabalham a oportunidade de acesso à propriedade, a fim de atender aos princípios da justiça social, do desenvolvimento agropecuário e da função social da propriedade. (Original sem grifo) O Procurador-Geral da República (PGR) ajuizou no STF a ADI 5006 com pedido de medida cautelar, pedindo a suspensão da eficácia da Lei 738/2009, que dispõe sobre a política fundiária rural e, ao final, solicita a procedência do pedido a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da norma roraimense. Segue a Ementa da ADI 5006: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, ajuizada pelo Procurador-Geral da República em face da Lei 738, de 10 de setembro de 2009, do Estado de Roraima, que dispõe sobre a política fundiária rural estadual. Sustenta, em síntese, a autora: “3. A Lei roraimense 738/2009 foi editada após a autorização da doação de mais de 6 milhões de hectares de terras públicas da União ao Estado de Roraima por meio da Lei federal 11.949/2009, em decorrência da disputa política relacionada à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 4. Ocorre que o diploma estadual impugnado, ao estabelecer normas 24 O Projeto de Lei s/nº de 17 de outubro de 2013, publicado no DOE de 21/10/2013, alterou vários artigos da Lei nº 738/2009. O artigo 1º passou a vigorar com a seguinte redação: Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre política de regularização fundiária rural das ocupações incidentes em terras de domínio do Estado de Roraima, situadas em seu território, mediante alienação, doação e concessão de direito real de uso de imóveis, promovendo medidas que permitam a utilização racional e econômica das terras públicas rurais, assegurando a todos os que nelas habitam e trabalham a oportunidade de acesso à propriedade, a fim de atender aos princípios da justiça social, do desenvolvimento agropecuário e da função social da propriedade. 61 destinadas à gerência das terras doadas, legislou sobre política fundiária rural, disciplinando institutos de direito agrário, tais como: função social da terra rural (art. 2º);terras públicas e devolutas (arts. 4º e 5º); processo discriminatório de terras (arts. 6º a 10); destinação das terras públicas rurais (arts. 14 a 22); regularização fundiária (arts. 23 a 48, 67 a 69, e 71); valor da terra nua (arts. 49 a 54); e demarcação e georreferenciamento (arts. 55 a 59). 5. Tais artigos importam em usurpação da competência privativa da União para legislar sobre direito agrário e normas gerais de licitação, bem como violam os arts. 37, XXVII, e 188 da Constituição da República. Esse vício acaba por contaminar os demais artigos da lei, que com aqueles guardam relação dependência, razão por que sua inconstitucionalidade deve ser declarada por arrastamento.” Em razão da relevância da matéria, entendo que deva ser aplicado o procedimento abreviado do art. 12 da Lei nº 9.868/99, a fim de que a decisão seja tomada em caráter definitivo. Solicitem-se informações aos requeridos. Após, abra-se vista, sucessivamente, no prazo de cinco dias, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República. Publique-se. Brasília, 2 de agosto de 2013. Rel. Min Dias Toffoli (STF - ADI: 5006 RR , Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 02/08/2013, Data de Publicação: DJe-152 DIVULG 06/08/2013 PUBLIC 07/08/2013) Segundo PEREIRA (2010) quando do exercício de sua competência legislativa para tratar da alienação e concessão das terras de sua propriedade, legitimada pelos poderes reservados ínsitos à sua autonomia constitucional, devem os Estados cuidar para não invadir a órbita privativa da União Federal. Em artigo25 publicado sobre a questão da titulação de terras na Lei Estadual nº 7.289/2009, MANSOS NETO, Procurador do Estado do Pará afirma que: Assim, o poder de livre conformação do legislador estadual pode e deve criar hipóteses específicas ou modelos legais peculiares de gestão de bens públicos, desde que não haja violação da Constituição Federal e Estadual, adaptando-os para a realidade paraense, em razão da inexistência de similitude com a realidade em outros entes federados, tal poder encontra-se amparado na autonomia legislativa e administrativa do Estado do Pará. Outrossim, nada impede que em paralelo à atuação do Governo Federal na reforma agrária na Amazônia, o Estado do Pará atue pro-ativamente na equalização da questão fundiária, uma vez que a política de reforma agrária vigente é deficiente e precária para resolver problemas de ordenação da ocupação do território paraense, motivo que ocasiona sérios transtornos para o Governo do Estado perante a opinião pública. Para MANSOS NETO, o Estado somente é titular de terras em decorrência das regras de direito administrativo e constitucional que atribuem à gestão dos bens públicos dentro do poder de auto legislação e autonomia dos entes federados; assim como decorrente do poder constituinte derivado que adjudicam ao Estado Membro o poder de legislar sobre direito administrativo (bens públicos). 25 MANSOS NETO, Flávio Luiz Rabelo. A regularização fundiária na Amazônia Legal: fundamentos do direito de preferência na Lei Estadual nº 7.289/2009 e na lei Federal nº 11.952/2009. Disponível em: http://www.pge.pa.gov.br/ 62 Por analogia e na esteira do entendimento de MANSOS NETO (s.d), concordamos que o Estado de Roraima “possui livre conformação legislativa para delinear a gestão dos bens públicos que integram seu patrimônio, indicando qual é o procedimento administrativo adequado à realidade regional que melhor convém ao interesse da sociedade” roraimense. 10.4. Necessidade de cooperação entre a União e o Estado de Roraima Se no âmbito do pacto federativo, que se encontra envolvido no manto da rigidez constitucional, a interpretação do federalismo brasileiro é problemática, a questão torna-se ainda mais conflituosa quando analisada sob o enfoque das relações intergovernamentais. Isso porque os laços federativos brasileiros são frágeis, sobretudo em razão dos interesses políticos que balizaram a formação da federação e sobre ela exercem relevante poder. A todos os entes federados compete, em comum, a prática de atos que, entre outros visem à conservação do patrimônio público, à proteção das paisagens naturais notáveis, dos sítios arqueológicos e do meio ambiente; à preservação das florestas, da fauna e da flora; ao fomento da produção agropecuária, à organização do abastecimento alimentar e ao combate das causas da pobreza e dos fatores de marginalização, mediante a promoção da integração social dos setores desfavorecidos (art. 23, incisos I, III, VI, VII, VIII e X da Constituição Federal). Destacamos apenas alguns incisos do art. 23 da nossa Carta Magna, porque estes guardam relação direta com a questão das terras públicas e dizem respeito a importância da definição plena da titularidade do domínio das terras no Estado de Roraima. Porém essa transferência de domínio entre os entes públicos (União e Estado) só será possível se houver uma cooperação politica, técnica e administrativa, visando o bem maior, que é o interesse social pelo efetivo desenvolvimento sócio, econômico e ambientalmente sustentável do nosso Estado. Essa cooperação entre as diversas entidades federativas, por meio das instituições federais e estaduais deve se concretizar segundo as normas fixadas na legislação pertinente, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bemestar, inicialmente em âmbito local, mas produzindo efeitos em âmbito nacional, sob a ótica de um federalismo sadio e próspero. Veja-se o paragrafo único do art. 23 da Constituição: 63 Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006) Segundo VASCONCELOS (2013) para que haja equilíbrio do sistema federal, com garantia da igualdade entre os entes federados, é imprescindível a “aplicação dos princípios constitucionais e das diretrizes federativas consolidadas no pacto celebrado entre os atores envolvidos. Deve-se, ademais, garantir o equilíbrio de cooperação e competição, necessário para potencializar os aspectos inerentes ao federalismo, sobretudo a acomodação da diversidade na unidade, com a preservação de autonomia e a igualdade entre os entes federados”. Coadunando com o entendimento do autor supracitado, reforçamos que para o alcance do equilíbrio federativo, não pode haver sobreposição de interesses de um ente sobre o outro (União sobre Estado de Roraima) e sim cooperação. Somente o respeito à autonomia e à isonomia garante a independência no exercício das atribuições que competem a cada um dos entes e a possibilidade das relações intergovernamentais serem executadas em condição de igualdade. Aqueles envolvidos nesse processo desenvolvem trocas mútuas, as quais criam, também, novas estruturas e novos processos. Essas relações são orientadas pelas políticas públicas e centradas na solução de problemas decorrentes de sua implementação. A partir dessa abordagem, conflitos entre níveis de governo não são vistos simplesmente como uma disputa entre eles, mas como uma das várias formas possíveis de articulação entre essas esferas e da convivência entre estruturas (esferas governamentais) e processos (formulação e implementação de políticas públicas). 64 11. CONCLUSÃO Pouco se tem escrito sobre a Lei n.º 10.304/2001, que dispõe sobre a transferência ao domínio do Estado de Roraima de terras pertencentes à União. A institucionalização da base territorial do Estado de Roraima, que deverá compor seu patrimônio imobiliário, não está concluída pela incompreensão, desde a leitura do Art. 14 do ADCT, passando por uma leitura imperfeita da Lei n.º 10.304/01, culminando numa leitura incompleta do Decreto n.º 6.754/09. É fato que todo o regramento já está totalmente posto. Como foi exposto, a legislação em questão – Lei nº 10.304/2001 e sua aplicação - é objeto de inúmeros questionamentos, resultando em demandas judiciais por conta de um entendimento divergente dos dispositivos da lei, seja entre os operadores do direito e até entre os gestores públicos e técnicos que estão incumbidos de realizar todos os atos técnicos e administrativos necessários à efetiva transferência de terras ao Estado de Roraima. Objetivamente, esse processo de transferência não pode ser paralisado, sob pena de nunca ser concluído. Isso significa, por consequência, a necessidade de se equacionar adequadamente o imbróglio da indefinição de titularidade de suas terras, que perdura quase que secularmente em relação aos direitos de propriedade e a consequente impossibilidade de se promover a regularização fundiária, tanto rural quanto urbana, condição indispensável para que o Estado finalmente consiga alavancar sua economia e proporcionar crescimento social e regional. Assim, o Estado de Roraima deverá cumprir todas as exigências impostas pelo Decreto 6.754/2009, dentre os quais concluir o processo de georreferenciamento das áreas destacadas de propriedade da União, com a certificação pelo INCRA dos respectivos destaques, por glebas e, posteriormente, prosseguir no processo de titulação das glebas georreferenciadas e certificadas. Coadunamos com o entendimento de que ninguém, de sã consciência e comprometido com o presente e o futuro do Estado e da sociedade de Roraima pode se opor à sua institucionalização material e autonomia político-fundiária como ente da Federação. 65 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Emerson Clayton. Regulação fundiária e direito de propriedade na Amazônia Legal: Um estudo de caso do estado de Roraima (1988-2008). Porto Alegre, 2009. Dissertação de Mestrado. Mestrado Interinstitucional em Economia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) / Universidade Federal de Roraima (UFRR), com ênfase em Desenvolvimento e Integração Econômica. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/18848/000729335.pdf?sequence= 1>. Acesso em: 06 de janeiro de 2013. ASSUNÇÃO, Lutero Xavier. Direito Fundiário Brasileiro. Bauru, SP: EDIPRO, 2008. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Tomo I. BRASIL. 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