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VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
20 a 24 de setembro de 2010
O Dilema Entre Estado e Democracia: Um Estudo Sobre a Crítica da Política na
Obra do Jovem Marx
Fabio Florence de Barros
UNICAMP/Mestrado em Filosofia
FAPESP
Resumo
Este estudo tem como objetivo analisar o conceito de democracia e seu papel na
mudança radical do posicionamento tomado por Karl Marx em face do Estado moderno
nos textos redigidos em 1842 e 1843. Assumiremos como hipótese de leitura que o
progressivo aprofundamento de Marx do conceito de democracia resultou em uma
mudança de concepção, e em consequência na sua negação da possibilidade de
solucionar as questões sociais de seu tempo por meio do Estado, já que este na verdade
não é um reparador e sim um reprodutor das desigualdades próprias da modernidade.
Para organizar nosso estudo, enunciamos os problemas que pretendemos examinar na
forma das seguintes perguntas: Quais são os princípios democráticos presentes nos
artigos da Gazeta Renana? Em quais pontos eles conflitam com a ideia de um Estado
racional? Quais foram as novidades introduzidas no conceito de democracia na Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel que desempenharam papel decisivo para a elaboração
de uma concepção de sociedade não centrada no Estado? Por fim, qual passou a ser o
estatuto político da comunidade humana?
Palavras-Chave: Marx, Karl; Estado Moderno; Democracia; Comunidade
Introdução
Nos poucos meses em que Karl Marx colaborou como articulista e redator da
Gazeta Renana sua pesquisa dos conflitos que se desenrolavam em torno da
modernização econômica e da manutenção das estruturas políticas dos estados alemães
conduziu-o ao seguinte problema: seria possível conciliar as exigências de liberdade
individual e progresso, típicas da modernidade, com instituições políticas que
remontavam à Idade Média? Sua resposta provisória foi que o Estado precisaria se
justificar racionalmente perante a sociedade mediante o atendimento de novas
demandas, como a liberdade de imprensa, a criação de um parlamento representativo e a
resolução das desigualdades sociais crescentes. Em outras palavras, deveria o Estado
assumir um aspecto democrático para que sua existência racional se justificasse.
Vejamos com maior detalhamento em que consiste esse aspecto democrático.
Inicialmente, faz-se necessário ressaltar que as palavras democracia e
democrático não aparecem nos artigos da Gazeta Renana (sejam eles de Marx ou dos
demais colaboradores) como bandeira de luta, mas pertencem ao léxico filosófico dos
jovens hegelianos, cujos termos chave são consciência, racionalidade, Espírito e
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liberdade, e dos liberais renanos, que lutavam em primeiro lugar pela outorga de uma
constituição e de liberdades de imprensa e de comércio. Portanto, aquilo que mais tarde
– na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Marx designará como democracia não
foi um conceito pronto e tomado de empréstimo, mas uma longa e complexa
construção, que teve como matéria prima um conjunto de doutrinas e experiências que
buscaremos condensar aqui, na medida em que contribuíram para suas formulações
ulteriores. Desta feita, fala-se com maior propriedade das primeiras publicações
marxianas como um empreendimento de defesa de princípios democráticos, e não da
ideia de democracia enquanto tal.
Analisemos, agora, como esses princípios democráticos se fazem presentes de
maneira acentuada em determinados escritos da Gazeta Renana e como sua colisão com
a postulada racionalidade do Estado conduziu a um questionamento por parte de Marx
da necessidade histórica da permanência deste, passando nosso autor a advogar a
necessidade de sua abolição. Apontaremos, mais precisamente, alguns aspectos do
impasse ao qual conduziu a adoção simultânea destes princípios e da ideia de Estado
racional, chamando a atenção para a necessidade, vislumbrada por Marx, da adoção de
uma perspectiva negativa a respeito do Estado moderno.
A Utopia do Estado Racional
O aspecto organizador da visão política do jovem Marx em 1842 pode ser
sintetizado na feliz expressão de Miguel Abensour (1998): “A Utopia do Estado
Racional”, compreendendo, por um lado, o fato de que o Estado prussiano não
correspondia naquele momento histórico ao seu conceito, isto é, não reconciliava em si,
enquanto totalidade racional, os aspectos múltiplos e divergentes que se debatiam no
mundo social e, por outro, deveria imperativamente realizar-se como tal totalidade
racional. Esta importante questão será abordada a partir da interpretação que Marx vai
progressivamente construindo a respeito das especificidades do mundo moderno
.
Como destacamos acima, a exigência de justificação racional desempenhava papel
chave na construção do Estado moderno e, por isso, como veremos ao longo da
pesquisa, Marx não terá pudores ao desqualificar os argumentos da nobreza, que
procura justificar a permanência de seus privilégios por meio do apelo à tradição. Esta
justificação agrupava, para Marx, a abertura das instituições parlamentares ao escrutínio
Para a interpretação da modernidade elaborada pelos “Jovens Hegelianos” e por Marx em particular, o
estudo de referência é HABERMAS, opus cit.,p.73 e segs.
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público e a existência de mecanismos para a formação da opinião pública independentes
da censura ou tutela governamental
.
Tais preocupações ganham substância no momento em que Marx toma contato
com a questão social, ao analisar o enrijecimento da legislação imposta pelo governo da
Prússia para reprimir a retirada de lenha dos antigos bosques comunais por parte dos
camponeses; movido pelo sentimento de indignação contra a desproporcionalidade da
punição em relação ao delito, Marx redige, em tom fortemente irônico, um artigo
analisando o posicionamento dos parlamentares prussianos em relação ao projeto de lei.
O grande interesse deste artigo é a maneira como Marx coloca importantes questões e
busca – sem sucesso - conciliá-las com uma ideia de Estado racional. O mais decisivo
desses problemas pode ser assim formulado: qual dos interesses em jogo é o
verdadeiramente racional e pode ser universalizado, o dos proprietários de terra ou dos
camponeses? Encarada conjuntamente com a breve crítica dirigida por Marx contra a
escola histórica de jurisprudência, esta questão só pode ser respondida se confrontada
com o questionamento da racionalidade do direito positivo então vigente, o que o levará
à conclusão de que existe uma fissura no interior desse direito, que uma vez
aprofundada dificultará ainda mais o seu fechamento em um sistema de direito público
racional; comentando o hábito milenar dos camponeses alemães recolherem a madeira
morta das florestas, observa Marx:
Existe, então, nestes costumes da classe pobre, um senso instintivo do direito;
sua raiz é positiva e legítima; e a forma do direito costumeiro é aqui tão
conforme à natureza quanto o fato de que a existência da classe pobre não tenha
sido até hoje mais que um costume da sociedade civil (bürgerliche
Gesellschaft) , que ainda não encontrou, na esfera da organização consciente
do Estado, o lugar que lhe é devido. (MARX; 1975, p.209)
Sendo o direito dos pobres, por sua proximidade e afinidade com a natureza,
concebido como racional, o direito positivo dos ricos encontra seu esteio simplesmente
no elemento acidental, no fato imediato e acessório da fruição de sua propriedade. A
decidida oposição de Marx aos interesses dos proprietários é concebida, então, em
termos de exterioridade destes em relação à sua propriedade: “ora, o interesse privado é
sempre covarde, pois seu coração, sua alma é um objeto exterior, que pode ser sempre
Antes de iniciar suas análises sobre o debate em torno da liberdade de imprensa, Marx desqualifica de
maneira devastadora a imprensa oficial vinculando o baixo nível de seus artigos ao seu caráter
apologético. (MARX; 1975, p.121)
Optamos aqui por traduzir este termo tão recorrente na obra de Marx por “sociedade civil”, pois em
1842 ele ainda não havia desenvolvido a ambivalência que mais tarde apresentaria nas “Teses Sobre
Feuerbach” devido à ausência de uma teoria sólida sobre a burguesia e a dominação de classe.
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lhe ser arrancado, e quem não tremeria ao antever a perda de seu coração e sua
alma?”(MARX; 1975, p.211). Este ponto entreabre o caminho da evolução intelectual
de Marx no sentido da defesa dos excluídos. A superioridade do interesse dos
camponeses reside, de maneira solidária, em sua “pureza” - no seu desapego aos bens
materiais enquanto forma de riqueza – e no caráter costumeiro e histórico de seu direito
à extração de madeira nas florestas
.
. Enquanto a aristocracia permanecia na defesa de seus supostos direitos
históricos, a burguesia liberal não via com maus olhos um enrijecimento das punições
contra os ladrões de lenha que revertesse em benefícios financeiros para seus cofres.
Diante disso, percebeu Marx pela primeira vez que nobreza e burguesia poderiam
formar frentes parlamentares unificadas nos pontos em que seus interesses convergiam,
isto é, enquanto proprietários privados.
Como afiançar, então, a conexão racional e necessária da política com a ideia de
Estado diante de um Estado concreto que toma partido de maneira deliberada em favor
dos interesses dos proprietários? A questão levantada obrigou Marx a iniciar um
estudo sobre as estruturas do Estado prussiano e sobre o pensamento político como um
todo com vistas a compreender de que maneira era possível que a parcialidade dos
interesses privados se apropriasse de uma instituição supostamente portadora do
interesse universal; como resultado, também as relações entre filosofia e prática política
viriam a ser deslocadas. O sistema de estamentos e a monarquia constitucional deveriam
agora ser questionados a partir de um confronto com sua mais alta legitimação teórica: a
Filosofia do Direito de Hegel.
A Democracia Contra o Estado Burguês
Em acréscimo ao entendimento, já firmado por Marx, de que a questão social era
o principal empecilho à realização da ideia de Estado racional, verificou-se em sua obra,
A conexão necessária entre o despojamento de interesses materiais externos e o caráter
consuetudinário do direito fica clara se confrontarmos o conteúdo deste artigo com a crítica de Marx à
chamada Escola Histórica de Jurisprudência, liderada pelo jurista Friedrich Karl Von Savigny. Para esta
escola, o direito dos proprietários se legitimava pelo seu caráter histórico e consuetudinário; tese
combatida enfaticamente por Marx. (MARX; 1975, p.191 e segs.)
Para Michael Löwy, a necessidade de um confronto direto com Hegel se torna mais clara neste
artigo:“Se, no artigo sobre a liberdade de imprensa, ainda se podia acreditar que Marx opunha um
“verdadeiro liberalismo” ao “semi-liberalismo” dos representantes burgueses na Dieta renana, vê-se agora
que a concepção do Estado de Marx inspira-se em Hegel e é inteiramente contrária à idéia do Estado
“polícia” próprio ao liberalismo clássico”. (LÖWY; 2002, p.60)
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a partir do fechamento da Gazeta Renana no início de 1843, um decisivo deslocamento
da relação entre Estado e política, visto que, em 1842, aquele era entendido como a
esfera racional por excelência, devendo suprimir os interesses particulares tanto da
nobreza fundiária quanto da burguesia, na sociedade civil. As coisas alteraram-se
radicalmente quando se percebeu a existência de uma clivagem entre proprietários e não
proprietários no seio da sociedade civil. Como veremos, esta última passa a ser a esfera
das lutas políticas por excelência, enquanto aquele fica rebaixado de morada da razão a
mera projeção alienada.
Para alcançar a comprovação deste diagnóstico, o expediente empregado por
Marx será transferir o centro de gravidade do fenômeno político do Estado para a
sociedade civil. Mas isso não bastava, pois já havia ficado claro – pelos artigos da
Gazeta Renana – que havia também na sociedade civil um profundo e extenso abismo:
Assim como a sociedade civil se separou da sociedade política, ela também se
separou, em seu interior, em estamento e posição social, para tantas quantas são
as relações que têm lugar entre ambos. O princípio do estamento social ou da
sociedade civil é o gozo e a capacidade de fruir. (MARX; 2005, p.98)
Segundo Marx, essa separação interna à sociedade civil já havia sido
diagnosticada por Hegel, mas a solução oferecida por este era – mais que insatisfatória –
de cunho apologético, residindo na colocação de uma poderosa burocracia e de um
sistema de estamentos como mediação entre a parcialidade dos interesses privados e a
universalidade do Estado. A dificuldade se coloca, então, no conhecido debate sobre a
possibilidade do governo do povo, em uma sociedade corrompida pelos interesses
particulares do mercado.
Motivado por esta dificuldade, Marx repreende Hegel por gerar um retrocesso da
efetivação da liberdade, cuja via fora aberta pela Revolução Francesa; Hegel teria
constatado o caráter problemático da relação entre Estado e sociedade civil na
modernidade, mas buscaria saná-lo pelo enxerto de instituições medievais, encarregadas
de efetuar a mediação entre os dois pólos. A raiz disso estaria justamente na posição
anteriormente defendida por Marx, a saber, de que o Estado tem seu centro de gravidade
em si mesmo.
Em contraposição a essa concepção, Marx inova e faz uso de uma original ideia
de democracia:
Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a
constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente
como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na
monarquia temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo.
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A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. (MARX;2005,
p.50)
A constituição, entendida no seu sentido lato de organização geral da sociedade
política, tem suas raízes no povo, sendo ilegitimamente tomada pela monarquia como
prerrogativa sua. A rejeição de todo o arcabouço lógico utilizado por Hegel para a
dedução da monarquia é aqui manifesta; o poder estatal guardaria como reféns as
energias políticas do demos , que estaria, na modernidade, fragmentado e submetido à
parcialidade dos interesses privados. Este expediente argumentativo nos revela que para
Marx a relação entre sociedade civil e Estado é também marcada por uma cisão, mas a
raiz desta se encontra precisamente na sociedade civil, cujas formas de mediação com o
Estado (corporações, burocracia, estamentos) não fazem mais do que confirmar o
problema .
A crítica ao rígido e amplo sistema de instituições burocráticas do regime
prussiano conduziu Marx a opor a este edifício em ruínas a mobilidade e fluidez do agir
político sediado na comunidade, culminando na exigência do desaparecimento do
Estado. A apropriação do conceito de democracia se perfaz quando as energias políticas,
alienadas pela modernidade na esfera política, são re-apropriadas e exercidas por seu
centro criador: a comunidade enquanto ser genérico (Gattungswesen).
Conclusão
A hipótese que norteará o prosseguimento desta pesquisa é a de que ocorre na
obra de Marx um aumento progressivo da incompatibilidade entre as energias políticas
identificadas por ele na comunidade – ou, se quisermos, o político – e a organização
destas na esfera de um Estado racional; nesta evolução, a ideia de democracia passará
de um conjunto de exigências concretas a um conceito ao mesmo tempo explicativo das
relações políticas e normativo, enquanto exigência de construção da comunidade
O termo é sugerido por Abensour (1999), que situa a concepção de sociedade civil elaborada por
Marx na linhagem teórica que remonta a Aristóteles e passa por Maquiavel. Sua tese é de que o ponto
comum entre esses autores é a constatação de que as energias políticas geradoras do poder político se
encontram no povo, em suas múltiplas configurações históricas, e não no Estado considerado de maneira
abstrata.
Os principais alvos da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel são precisamente as instituições que,
segundo Hegel, exerciam a função de mediadoras entre a sociedade civil atomizada pelo mercado, a
saber: o sistema de corporações, a burocracia, a representação parlamentar por estamentos e a instituição
do morgadio, que afiançava a participação em postos chave do governo de indivíduos juridicamente
impedidos de dispor de suas propriedades.
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emancipada. Nosso andamento será, portanto, identificar e explorar cuidadosamente,
ponto por ponto, esta complexa ruptura.
Bibliografia
ABENSOUR, Miguel. A Democracia Contra o Estado: Marx e o momento
maquiaveliano. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
DRAPER, Hal. Karl Marx’s Theory of Revolution. Vol I: State and
Bureaucracy. Londres e Nova Iorque: Monthly Review Press, 1977.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
LÖWY, Michael. A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Petrópolis: Vozes,
2002.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens
Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Gesamtausgabe (MEGA). Berlim: Dietz
Verlag, 1975.
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