Gênero e norma: avós e netos, classes e clíticos no final do século XIX

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Gênero e norma: avós e netos,
classes e clíticos no final do
século XIX
EMÍLIO GOZZE PAGOTTO
(UFSC)
MARIA EUGENIA LAMOGLIA DUARTE
(UFRJ)
N
a história do português e na formulação de teorias gramaticais,
os clíticos pronominais ocupam lugar de destaque, em função
de seu estatuto híbrido. Em conexão com seu estatuto ambíguo,
a posição que eles podem ocupar na frase emerge como um
problema duplamente complexo: como dar conta da posição de uma entidade da
qual não se sabe, claramente, se tem existência transparente na sintaxe? Para além
dos problemas teóricos envolvidos no estatuto dos clíticos – que não são objeto dessa
modesta investigação – há o caso específico das alterações que sofreram na história
do português, em especial as mudanças envolvendo sua posição na sentença. Em
português medieval, o sistema parece ter sido diferente do português clássico, que
por sua vez se transforma no português do Brasil e de Portugal modernos. A posição
que os clíticos têm podido ocupar na frase tem oscilado muito, o que levou Mattos e
Silva, com muita propriedade, a chamar de dança a história dessas possibilidades. Este
trabalho procura olhar mais um passo nessa coreografia.
Estamos no século XIX, segunda metade, entre os anos de 1879 e 1892. Um casal
de avós escreve aos netos, que se encontravam com os pais em Paris (Ver Apresentação
e texto A história da família Ottoni nas linhas e entrelinhas neste volume). Christiano
Benedicto Ottoni e Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni viviam no Rio de Janeiro,
exatamente na Rua Farani, localizada no Bairro de Botafogo, no último quartel do
século XIX. Ele, nascido em 1811, em Vila do Príncipe (posteriormente, cidade do
Serro), Minas Gerais, era engenheiro, foi deputado pelo Partido Liberal, em Minas
Gerais, senador por duas vezes, uma pela província do Espírito Santo e outra por Minas
Gerais. Tinha entre 68 e 81 anos quando escreveu as cartas. Ela, a avó, era a dona de
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casa, Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni, de quem se sabe pouco, além do fato
de ter nascido em 1822, na cidade de Valença, Rio de Janeiro, e descender de uma
família influente no interior fluminense, os Araújo Maia. Suas cartas foram produzidas
quando tinha entre 61 e 67 anos.
Sabe-se que o século XIX foi o período de consolidação do português brasileiro, mas
também se sabe que foi o período em que se forja a norma com a qual os gramáticos
vão operar ao longo do século XX. O século XIX se apresenta como um turbilhão
lingüístico, no qual, de um lado muitos dos dialetos no território brasileiro passam
por um processo de contato e de auto-reconhecimento, especialmente na capital do
Império, consolidando, como dissemos, a sua estrutura na direção do que viria a ser
o português brasileiro moderno.
Nosso casal de avós está no meio desse turbilhão. Suas cartas representam uma
espécie de instantâneo entre dois mundos: o do seu português brasileiro vernáculo
e o do português brasileiro normativo. Ambos estavam em formação nesse período
e é interessante perguntar se o casal reagiria do mesmo modo a essas pressões. O
fenômeno que tomamos é o da posição dos pronomes oblíquos. Como demonstrou
Pagotto (1998), este é um dos lugares da gramática em que o embate normativo
mais foi transparante, dada a própria flutuação de tais formas e a dificuldade de
operar normativamente sobre elas. Acresce o fato de que durante o século XIX o
sistema normativo se alterou, passando-se da norma do português clássico à norma
do português europeu moderno, como demonstrou Pagotto (1999), comparando
os dois textos constitucionais do século XIX, a constituição do Império, de 1824 e a
constituição republicana, de 1892.
O objetivo é este: investigar como reagiriam esses dois falantes, no texto escrito, ao
turbilhão do século XIX. Mais do que isso, verificar até que ponto o gesto de escolha
entre o normativo e o não normativo não seria governado pelos mesmos processos
que hoje em dia. Tanto Lobo et alii (1991) quanto Schei (2000) mostram que as
estruturas de colocação do clítico são diferentemente permeadas pela norma, no caso
de textos falados ou escritos, passando eventualmente por escolhas pessoais, nas quais
parece não interferir o fator estrutural. Assim, as cartas que aqui estudamos assumem
uma extrema atualidade: da mesma maneira que no século XIX os falantes da elite
social se debatiam entre uma norma em construção e um português popular que se
desejava evitar, mas cuja força fazia subir do porão para a sala hábitos lingüísticos
"corrompidos", no século XX os falantes escolarizados se vêem forçados a usar esta
mesma norma, vendo-se muito mais permeados pelo português brasileiro do que
nossos avós, especialmente no que concerne aos clíticos pronominais. No século XIX
talvez o jogo fosse mais dramático porque a norma clássica estava sendo abandonada
em prol da norma lusitana moderna (Pagotto, 1999 e 1998), o que coloca para os
falantes escolarizados um problema mais complexo: escapar ao português popular
tendo que optar entre duas normas.
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Os objetivos do trabalho e a amostra analisada
O que se pretende é levantar subsídios para discutir de que maneira os sujeitos falantes
reagem aos processos lingüísticos de mudança e normatização. Especificamente, o que
se quer é observar como dois falantes do século XIX, com um grau de contato entre si
muito grande e numa “mesma” situação comunicativa, podem interagir diferentemente
com processos lingüísticos diversos.
Objetivamente falando, vamos investigar como se dá o comportamento da próclise e da ênclise nas cartas mencionadas acima; porém sem nenhuma pretensão de
elucidar o problema histórico da constituição do português do Brasil no que respeita
a essas estruturas sintáticas.
Para tanto será utilizada uma amostra de cartas pessoais escritas entre 1879 e 1892 por
Christiano Benedicto Ottoni e Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni, os avós preocupados
com a educação de seus netos. E é claro que não nos furtamos a uma pergunta óbvia: será
que haveria alguma diferença significativa entre o senador e sua esposa, no que respeita à
posição dos clíticos? O século XIX representou, no Brasil, um grande esforço civilizatório por
parte das elites. Em especial, destaca-se a grande empreitada de colocar o país em sintonia
com as modas européias, disseminando-se arte e cultura. No caso da escrita, Lajolo (1996)
chama a atenção para o fato de que Alencar, entre outras coisas, procurou formar um público
leitor, e, como esse público vinha de práticas orais de linguagem, tinha a preocupação de
escrever para ser “lido” em voz alta, o que implicava usar recursos típicos da oralidade. No
nosso caso específico, tanto poderíamos esperar um senador excessivamente conservador
a ponto de utilizar a norma do começo do século (e portanto uma norma mais próxima do
português clássico), como alguém antenado nas modas lingüísticas, adotando o moderno
padrão enclítico lusitano. No caso da esposa do Senador, à falta de informação mais precisa, em se supondo uma senhora de pouca circulação no mundanismo social, já em idade
avançada (ao menos para os padrões da época) ou igualmente esperaríamos a utilização
de formas do português clássico, ou , por outro lado, apresentaria, ao contrário, uma forte
influência do português brasileiro, manifestando suas origens rurais, quem sabe, e sua despreocupação com a normatização. Em ambos os casos, é preciso que não nos esqueçamos
de que se trata de avós dirigindo-se aos netos, quando estes são ainda muito jovens. Por
mais que o senador se preocupasse com a formação dos netos (e explicitamente com sua
formação lingüística, a ponto de elogiar a correção de suas cartas, ou apontar algum erro de
gramática), é claro que o sentimento de avô brasileiro devia falar mais forte, fazendo com
que o estilo rigoroso se desmanchasse aqui e ali por conta da saudade.
A correspondência da avó compreende 14 cartas e a do avô, 27. Assim, optamos
por levantar os dados a partir das cartas da avó e coletar o mesmo número nas do
avô. Constituímos, então, uma amostra com 63 dados para cada autor, um total de
126 ocorrências, 113 com formas verbais simples e apenas 14 com formas complexas.
Um levantamento posterior de todas as formas complexas das cartas do avô nos levou
a 29 ocorrências, que serão analisadas após as formas simples.
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Algumas hipóteses lingüísticas
Em seu estudo sobre o português literário, Schei (2000) faz uma série de constatações
das quais é possível extrair conclusões bem interessantes:
1. Na amostra de escritores portugueses contemporâneos que ela observou, o que se
tem é um comportamento extremamente condizente com as normas recomendadas
pelos gramáticos, e, além disso, nos contextos em que haveria opção normativa entre
próclise e ênclise, a ênclise é a preferência quase categórica.
2. No caso dos escritores brasileiros pesquisados por ela, é possível perceber que há
uma “opção” estilística pessoal, de tal sorte que essa opção se sujeita a certas determinações estruturais. Assim, podemos falar em escritores proclíticos e escritores enclíticos.
A autora pesquisou seis escritores e se observa uma interessante gradação, segundo
o contexto lingüístico considerado:
1) Início de período – Escritores proclíticos: 2
Escritores enclíticos: 4
2) Início de oração assindética – Escritores proclíticos: 2 (os mesmos do item anterior)
Escritores enclíticos: 4
3) Após pausa – Escritores proclíticos: 3 (os mesmos do anterior mais um outro)
Escritores enclíticos: 3
4) Conjunção e – Escritores proclíticos: 4 (os mesmos do anterior mais um outro)
Escritores enclíticos: 2
5) Sujeito sem fator de próclise – Escritores proclíticos: 6 (4 com + 80% e 2 entre 60-80%)
Escritores enclíticos : 0
Ou seja, há escritores que fazem próclise em todos os contextos e aqueles que
só a incorporam quando se trata de verbo antecedido pelo sujeito; outros há que são
mais ou menos permeáveis segundo certos contextos estruturais. Isso mostra que ainda
há uma relativa influência normativa na literatura atual, mas sua atuação é filtrada no
coador dos contextos estruturais. Assim, o processo de incorporação de elementos da
língua falada passa por determinadas condições estruturais que ainda não sabemos
precisar muito bem (cf. a esse propósito Kato, 2000).
Em termos de manifestação lingüística, que correlações poderemos fazer? As
construções mais relevantes são:
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1. Interpolação à negação – Pagotto (1999) mostra que a interpolação à negação era
muito comum no português clássico e é a forma preferida no texto constitucional de
1824. Schei (2000) mostra que, nos textos literários portugueses que ela analisou,
ocorre em 28% das possibilidades.
2. Próclise em verbos de começo de período – nos dados que Pagotto (1999) analisou,
há somente uma construção na qual se poderia afirmar que teria ocorrido próclise ao
verbo em começo de período nos dados da constituição de 1824. Todos os trabalhos
têm mostrado que, no português clássico, esse contexto é francamente resistente à
próclise. (cf. Martins, 1994; Galves, 2000; Pagotto, 1992, dentre outros). Como é
também em português europeu moderno e no português normativo, esse contexto
seria um índice claro de opção pelo português do Brasil
3. Próclise ao verbo principal em locuções verbais – essa construção é apontada como
típica do português do Brasil, não sendo encontradiça em português clássico nem em
português de Portugal moderno.
4. Próclise a verbo em começo de sentença precedida de sentença adverbial – essa
construção não é comum no português europeu literário (cf. Shei, 2000), mas é comum
em português clássico e no português brasileiro.
5. Próclise a gerúndio ou infinitivos oracionais em começo de sentença: construção
típica do português do Brasil, não sendo encontrada em português clássico nem em
português europeu moderno.
Os resultados
A análise focalizará inicialmente a posição dos clíticos com as formas verbais simples,
para, em seguida, trabalhar com as construções complexas.
As estruturas simples
TABELA 1
Os resultados totais relativos à posição dos clíticos em formas simples dos verbos se
encontram na tabela 1.
Posição dos clíticos vs. autores
Próclise
Ênclise
Total
Avó
51 (93%)
4 (7%)
55 (100%)
Avô
30 (53%)
27 (47%)
57 (100%)
82 (73%)
21 (21%)
113 (100%)
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TABELA 2
Os percentuais parecem mostrar uma diferença significativa entre o avô e a avó,
indicando que, das possibilidades apresentadas acima, a que vinga é a de que os papéis
atribuídos ao gênero, no século XIX interferem de alguma maneira nas escolhas feitas
por eles. Porém, é preciso dizer que um comportamento lingüístico como o da avó
acima era comum em português clássico e não necesssariamente poderia ser debitado
da conta de um suposto reflexo do português do Brasil. Não sabemos ainda o que de
fato está acontecendo, por isso temos que passar os dados no coador.
Passemos então aos contextos, mantendo separados os resultados para cada
autor.
Posição dos clíticos vs. contexto sintático
Avó
Avô
Próclise
Ênclise
Próclise
Ênclise
Operadores
27 (100%)
0
25 (100%)
0
Prep + infin.
2 (100%)
0
1 (17%)
5 (83%)
SPrep
8 (100%)
0
1 (50%)
1 (50%)
Coord.
6 (86%)
1 (14%)
1 (14%)
6 (86%)
SN sujeito
4 (80%)
1 (20%)
2 (50%)
2 (50%)
Início de oração
1 (100%)
0
0
4 (100%)
Início absoluto
3 (60%)
2 (40%)
0
9 (100%)
Total
51 (93%)
4 (7%)
30 (53%)
27 (47%)
Aqui fica mais nítida a diferença entre os dois falantes: dos 30 casos de ocorrência
de próclise nas cartas do avô, 25 – (83%) são casos em que há a presença de operadores antes do verbo. Já no caso da avó: dos 51 casos de próclise, 27 são do mesmo
contexto (52%). No português brasileiro atual, é questionável se a presença de tais
operadores tem de fato alguma atuação sintática, já que há uma tendência generalizada
à próclise. Nos dados acima, podemos dizer que o avô se apresenta sensível a tais
operadores, enquanto a avó, não. Ou seja, cada falante estaria empregando a língua
a partir de regras diferentes.
Assim, apesar desse estatuto diferenciado, pode-se constatar que os dados revelam
uso categórico da próclise em presença de:
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(a) pronomes interrogativos e relativos
(1) O que me dises das pescarias (Carta 9, avô)
(2) Dou-te parabens pelo presente das botas que te | fez Senhor Antonio. (Carta 5, avô)
(b) conjunções subordinativas
(3) Dis a Sua Mai que me compre um pente de 4 den-| tes, para pregar o meo cabello;
que seja lizo. (Carta 38, avó)
(c) operadores de negação
(4) Desta vez naõ me disseste se escreveste sem | revisaõ ou auxilio extranho (Carta
9, avô)
(d) operadores de foco
(5) Aqui é uma monotonia, que | so seouve abulha do Rio, que fas | um atordoamento,
que é pior do | que o silencio. (Carta 41, avó)
(e) quantificadores
(6) Todos daqui te-abra-| çaõ, e com [especialidade] Teu vovo muito amigo C. B.
Ottoni. (Carta 2, avô)
Em relação a tais operadores, o fato relevante é o lugar da interpolação. No caso dos
textos do avô, não foi registrado nenhum caso de clítico antecedendo a negação em
contextos de subordinação – o típico contexto para interpolação no português clássico e
mesmo no português de Portugal moderno de hoje em dia. Se o senador estivesse sob
forte influência da norma do português clássico, tais construções teriam se manifestado.
Em relação aos infinitivos regidos de preposição, observa-se a preferência pela próclise
por parte da avó e pela ênclise por parte do avô. Tomados isoladamente, tais resultados tanto
poderiam demonstrar uma opção da avó pelo português do Brasil, como uma preferência
por formas antigas do português clássico, já que a próclise em infinitivos regidos de preposição era muito freqüente nesse período. Já o avô revelaria uma clara opção pelo português
europeu moderno (cf. Schei, 2000). É preciso confrontar esses resultados com os demais.
Pode-se, ainda, levantar uma outra hipótese, já que o exame dos dados, entretanto, revela
que estão em jogo nesse caso tanto o tipo de preposição quanto a extensão da forma verbal.
Todos os casos de próclise exibem preposição, clítico e verbo idênticos “para nos dar”:
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(7) Estimei muito | as boas noticias que tive que | voce está muito estudiozo e | que
está muito adiantado. | Continue para nos dar mui-| to gostos e a sua Mae aquem |
abraçarás por mim. (Carta 41, avó)
Os casos de ênclise, por outro lado, todos produzidos pelo avô, aparecem com a
forma verbal “escrever”, as preposições “para” (3 ocorrências) e “de” (duas ocorrências)
e com diferentes pronomes:
(8) Tive muito gosto em receber tua cartinha, ape-| zar de ainda precisares do auxilio
de Thio | Júlio para escrevel-a. (Carta 2, avô)
(9) Mas naõ | deixo de escrever-te tambem, naõ so porque quero bem a | ambos,
~ que servem
mas para que voce tambem va adquirindo gosto | por estas communicaçoes,
de exercício para | vir a escrever bem. (Carta 3, avô)
(10) Ambos ficamos muito satisfeitos | de que furtasses algum tempo aos teus | brinquedos para escrever-nos. (Carta 4, avô)
É possível também levantar a hipótese de que haveria algum condicionamento de
natureza fonético-fonológica atuando nessa preferência (para nos dar / para escrever-nos),
possivelmente o verbo monossílabo aceitando mais facilmente uma sílaba pretônica do que
uma forma verbal trissílaba (e provavelmente uma dissílaba oxítona, como “dizer”).
A seguir na tabela aparecem as orações introduzidas por Sintagmas Preposicionais
aqui interpretados como foco (cf. Mateus et alii 2003). Das 10 ocorrências, 9 apresentam os pronomes “te” e “os” proclíticos, e apenas uma, o pronome “te” mesoclítico,
incluído entre os casos de ênclise (uma ocorrência que já pode ser atribuída a uma
hipercorreção do avô, motivada pelo futuro simples, já que elementos focais dessa
natureza atuam como operadores de próclise no PE moderno):
(11) Adeos, meu querido Misael, abençoa-| te, e de todo o coração te abraça
Teu vovô muito camarada C. B. Ottoni. (Carta 1, avô)
(12) Com muitas saudades os abraça | e abemçoa Sua Dindinha que muito os ama
Barbara. (Carta 38, avó)
(13) A este respeito contar-te-hei uma anedocta dos filhos do Conde d’| Eu em
São Paulo. (Carta 9, avô)
Passemos agora aos contextos em que não há possíveis operadores, começando
pelas estruturas coordenadas simples. Conforme o esperado, avó e avô exibem com-
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portamentos opostos. Ela prefere a próclise (86%), com se vê em (14) e (15), enquanto
ele, a ênclise (86%), como mostram (16) e (17):
(14) e os sabados sempre fa-| co Paõ doce e melembro de | de que sevoce estivesse
a | qui avia meajudar equan | do elles vem açadinhos | do forno eu digo logo se | Tixe
istivesse aqui como | elle avia de gostar. (Carta 30, avó)
(15) Da um a-| braço a Ninia e a Tio Lulu | e temvia muitos beijos e abraços
Sua Didinha que muito os ama. (Carta 39, avó)
(16) Da um abraço a Bebê e dise-lhe: fase de conta | que é vovô quem te abraça.
(Carta 5, avô)
(17) [...]: abraça-te e abençoa-te de coraçaõ
Teu avô e amigo C. B. Ottoni. (Carta 8, avô)
A única ocorrência de ênclise nas cartas da avó e de próclise nas do avô em estruturas coordenadas estão ilustradas abaixo em (18) e (19), respectivamente:
(18) mas seo Pae naõ tem passado | bem, alimenta-se pouco, e sente-se muito
abatido, o que metem | incõmodado: e elle naõ gosta de con-| sultar medico (Única
carta de Barbara à filha, inserida na carta de mesmo número enviada ao neto Misael.
(Carta 37, avó)
(19) Abraça-te de coraçaõ e te abençoa.
Teu avô muito amigo. (Carta 7, avô)
Examinemos as estruturas iniciadas por um SN lexical ou pronominal. Mais uma
vez, a avó manifesta nítida preferência pela próclise (80%), enquanto o avô se apresenta
neutro (cf. tabela 2). Vejamos alguns exemplos:
(20) Vóvó temanda | muitas lembranças. (Carta 28, avó)
(21) [...] acemana passada so em | uma manhã enbarcaraõ | 32 cavalos da caza Imperi-| al eu
me lembrei de quanto | voce gostava de ver desin-| barcar os animaes. (Carta 31, avó)
(22) Bebê me diz que voce come bem | e esta engordando muito. (Carta 2, avô)
(23) O Jordaõ cazouse hontem | creio que elles comeraõ muito | napanela, porque
chovia to-| do o dia. (Carta 32, avó)
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(24) A tua carta de 18 causou me o prazer de costume. (Carta 10, avô)
Os dois casos acima são bastante reveladores: em tais contextos, o português europeu foi
paulatinamente assumindo a ênclise, a partir do século XVII, como demonstra Martins (1994).
Tais contextos, segundo Pagotto (1998) são bastante reveladores do processo normativo no
século XIX, no Brasil: o português clássico do texto constitucional de 1824 mostra uma clara
preferência pela próclise, que foi a direção seguida pelo português brasileiro; no entanto,
no final do século XIX, na constituição de 1892, há uma clara preferênca pela ênclise em
tais contextos. Assim, a opção por uma norma enclítica em tais contextos não traduzia o
passado da língua, mas antes disso, a opção pelo português europeu moderno.
Nosso casal se encontra, assim, em campos opostos: o avô senador do Império,
cioso de seu papel na educação dos netos, procuraria imprimir a seu texto uma
marca lingüística modelar, a fim de que eles aprendessem a "boa linguagem". Já
a avó traduziria nas cartas uma gramática mais próxima do português coloquial
de então. Veja que nos contextos aqui considerados – coordenação e SN sujeito
– temos a mesma opção normativa que Shei (2000) detecta nos escritores (cf. seção
acima). É um daqueles contextos lingüísticos nos quais a opção estilística revela tanto
processos lingüísticos em andamento, quanto a delicada significação social que as
formas podem portar.
A outra possibilidade de análise seria imaginar que a esposa do senador estaria
refletindo um padrão mais antigo, do português clássico, onde esse tipo de próclise
era muito freqüente. Aqui, a evidência dos demais contextos de colocação pronominal
nos leva a pensar que tal não é o caso, dadas as construções por ela usadas, que não
caracterizavam o padrão clássico. Esse é o caso dos verbos em começo de oração,
especialmente em início absoluto, que veremos em seguida.
Em início de oração em posição inter-sentencial, temos a próclise no único dado
produzido pela avó e a ênclise nos quatro de autoria do avô:
(25) quando fa-| ço algum biscoito ou doce, me lembro de que voces gostavaõ e
muitas | vezes me ajudavaõ. (Carta 37, avó)
(26) Se copiaste uma minuta, vê-se que o fiseste com attençaõ e cuidado: se minutaste
tu mesmo, brilhaste. (Carta 6, avô)
Em início absoluto, a avó ainda prefere a próclise com os pronomes “me”, “os” e
“te”, e a ênclise com “se” e “lhes”. O avô usa categoricamente a ênclise.
(27) Melembro | muito de voce com muitas | saudades equando estou fa-| zendo
doce de caju estou sem | [sic] melembrando de que voce | sempre queria meajudar.
(Carta 30, avó)
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(28) Os abraça Sua Dindinha e Amiga Barbara. (Carta 36, avó)
(29) Teabraça e a | Christiano
Sua Avo e Amiga Barbara. (Carta 41, avó)
(30) Dezejo-lhes muito boas festas | e felizes entradas de anno novo. (Carta 41, avó)
(31) Applica-te, brinca tambem, e sê | sempre um bom menino. (Carta 8, avô)
Sentenças como a (25) eram comuns em português clássico, como demonstram
Pagotto (1992), Martins (1994), Galves (2000). Ao mesmo tempo, obviamente, são sentenças que também caracterizam o português do Brasil. Já construções como 27, 28 e 29
eram muito raras no português clássico, o que leva os autores normalmente a considerar
a posição inicial de período como não fazendo parte das possibilidades desse período
histórico do português. Todas as construções do senador foram de ênclise (um total de 9),
enquanto as da sua esposa, 3 num total de 5. Mais uma vez, o casal diverge, pulando em
rios diferentes. Com essas últimas construções podemos apontar na escrita da avó como
de fato refletindo o português do Brasil, enquanto o avô exclui tal influência do seu texto
escrito. As construções com dois verbos, a seguir, poderão confirmar essa hipótese.
As construções complexas
Nas construções com dois verbos está, como dissemos, a grande inovação do português
do Brasil: a próclise ao verbo principal. Ainda hoje há gramáticos que a reprovam (ver
Schei 2000), apesar de figurar com força mesmo em textos escritos.
TABELA 3
Posição dos clíticos vs. contexto sintático:
formas complexas
Verbo auxiliar
Verbo principal
Total
Próclise
Ênclise
Próclise
Ênclise
Aux + Infin
2
0
2
13
17
Aux + Ger
0
0
3
0
3
Aux + Part
7
1
1
0
9
9 (31%)
1 (3%)
6 (21%)
13 (45%)
29
Total
Embora não seja objetivo desse trabalho uma investigação de cunho gramatical mais
profunda, chama a atenção o fato de que as construções com infinitivo privilegiem a ênclise
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TABELA 4
ao verbo principal e as construções com particípio, a próclise ao verbo auxiliar. Nas obras
literárias brasileiras pesquisadas por Schei (2000), são as construções com particípio as que
ainda mantêm a possibilidade de próclise ao auxiliar, da mesma maneira que, nas obras
portuguesas, também são as construções que mais próclise ao auxiliar apresentam.
Em termos de distribuição pelos dois missivistas, temos:
Posição clíticos – formas complexas Avó x Avô
Verbo auxiliar
Verbo principal
Total
Próclise
Ênclise
Próclise
Ênclise
Avó
3
1
4
0
8
Avô
6
0
2
13
21
Total
9 (31%)
1 (3%)
6 (21%)
13 (45%)
29
Avô e avó parecem, novamente, diferenciar-se quanto à posição dos clíticos: veja
que não há casos de ênclise ao verbo principal nas cartas da avó e que os casos de
próclise ao verbo principal são de 4/8 para a avó e 2/21 para o avô. Assim temos
que, se de um lado o avô se manifesta extremamente enclítico, por outro lado não
resiste ao apelo do português do Brasil e à sua construção típica. O fato de ela estar
aqui anotada reproduz, de certa forma, o que se dá nos textos literários atuais. É claro
que temos que considerar o contexto de comunicação, que é familiar. É, portanto,
nessa conjunção de fatores, que se pode vislumbrar o processo de escolha das formas
variantes, em face de seu funcionamento gramatical e social.
Se tomamos o verbo auxiliar, temos tanto uma quanto o outro apresentando a
próclise. Aqui, a força da construção gramatical é maior, pois, como já vimos, trata-se,
na sua maioria, de construções com o particípio, que são as que mais se comportam
como um verbo único. Por fim, é de notar que o único caso anotado de ênclise ao
auxiliar, nos dados da avó, pode ser debitado, na verdade, na conta das próclises ao
verbo principal, já que se tratou de uma ambigüidade na notação utilizada:
(32) Recebi asua cartinha que me-deo muito prazer, por saber que tense-adiantado
no collegio. (Carta 37, avó)
Das próclises ao verbo auxiliar, vemos na tabela 9 ocorrências (3 produzidas pela
avó e 6 pelo avô), apenas uma num contexto sem os chamados operadores:
(33) com tudo esta semana Vergílio nos tem feito companhia. (Carta 10, avô)
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Todas as demais ocorrem em estruturas oracionais iniciadas por operadores de próclise,
comportamente idêntico ao da norma portuguesa moderna e à do português clássico:
(34) Recebi asua cartinha, que | medeo muito prazer, ver | que voce setem adiantado
| muito. (Carta 28, avô)
(35) Dezejo que te tenhas adiantado muito | no collegio. (Carta 4, avô)
A próclise ao verbo principal, com 6 ocorrências, está concentrada na escrita da
avó (4 ocorrências), tendo sido encontrados dados que permitem checar que inequivocamente o pronome se encontra proclítico ao verbo principal:
(36) equando estou fa-| zendo doce de caju estou sem[pre] melembrando de que
voce | sempre queria meajudar | e os sabados sempre fa-| co Paõ doce e melembro
de | de que sevoce estivesse aqui avia meajudar. (Carta 30, avó)
(37) por saber que voces estão estudando bem e se adiantando. (Carta 33, avó)
(38) deo-me | ella occasiaõ de verificar que tens te adiantado. (Carta 6, avô)
(39) A melhor letra e mesmo a redação da tua carta mostra que vaes te adiantando.
(Carta 13, avô)
A única ocorrência indicada na tabela como ênclise ao verbo auxiliar aparece, na
verdade, numa estrutura em que se tem auxiliar, clítico e verbo ligados de duas formas
diversas. Não se pode afirmar, pois, que se trate de ênclise ao auxiliar:
(40) Recebi asua cartinha que me-deo muito prazer, por saber que tense-adiantado
no collegio. (Carta 37, avó)
As 13 ocorrências de ênclise ao verbo principal, todas com infinitivo, foram produzidas pelo avô:
(41) Este brinquedo tem perigo: | sendo mesmo os animais muito mansos, pode |
um delles assustar-se de alguma cousa, voltar de-| repente, e mesmo sem querer dar
couce, esbarrar | com a ferradura na tua perna e quebral-a. (Carta 6, avó)
(42) Daqui a um anno has de estar de ta-|manho, que tem hoje teu irmão e | has de
ir com elle á escola de Madame | Paul ou de outra mestra, para poder escrever-me,
sem precisar que papai| ou thio Julio te pegue na maõ. (Carta 1, avô)
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(43) [...] e beijando-te | hoje, 1º de Janeiro, convido-te a continuar a dar-nos noticias
dahi: | escrever cartas tambem é estudar. (Carta 8, avô)
(44) Por compensação hão de vocês divertir-se menos por faltar ahi o patusco Thio
Lulu. (Carta 22, avô)
(45) não podia fazel-o nesta ocasião. (Carta 25, avô)
Considerações finais
As cartas do casal analisadas neste texto são um testemunho muito interessante das muitas
reviravoltas lingüísticas pelas quais o século XIX passou. Ao mesmo tempo, podem nos
lançar alguma luz para entender a forma como os falantes, nos dias de hoje, reagiriam a
processos semelhantes de mudança. O caso do século XIX é especial porque temos os
dois planos da língua – o normativo e o não normativo – se alterando profundamente,
em direções opostas. Daí ser tão difícil entender exatamente o que estaria se passando
nas cartas. Para além das questões sociais, os fatores estruturais também determinam a
maneira como as formas que emergem da fala penetram no texto escrito normatizado.
Os dados parecem mostrar que o senador opta por uma norma lingüística mais lusitana
e sua esposa deixa emergir mais fortemente as formas do português do Brasil. Confirmam
essa constatação os resultados relativos às estruturas com verbo em começo de período e
àquelas com dois verbos, além das orações coordenadas e de verbo precedido de sujeito.
O fato de o contexto enunciativo ser familiar, no contato com os netos, parece abrir, aqui
e ali, brechas na couraça lingüística do vovô, sem derrubar-lhe o forte viés normativo.
Há ainda um último ponto a considerar. A diferença clara entre o senador e sua
esposa também nos leva a pensar a relação com os papéis sociais do homem e da
mulher no processo histórico de constituição do português do Brasil. À exceção do
trabalho de Célia Lopes (1999,2003), não parece haver muita menção à distinção
de gênero e sua relevância nos estudos para a história do português do Brasil. Este
parece ser um dos temas interessantes da nossa história social lingüística. No caso do
trabalho de Lopes, mencionado acima, há uma correlação entre a freqüência da forma
a gente, nos textos literários pesquisados por ela, e o papel do gênero – masculino
ou feminino (as mulheres tenderiam a uma freqüência maior dessa forma). No nosso
caso, estamos percebendo que num casal como o que estudamos, pertencente à elite
política e econômica, poderia haver uma sensível diferença entre homens e mulheres,
em função do tipo de papel que desempenhavam na sociedade de então. Entendemos
que se abre uma perspectiva muito interessante para o estudo da história social do
português do Brasil. No caso dos clíticos, parece que homens e mulheres, ao menos
nos grandes salões, não seguiam os passos da mesma dança, pelo menos no que se
refere à modalidade escrita.
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