Prefácio ao livro WACHOWICZ, M. . Propriedade Intelectual do Software e Revolução da Tecnologia da Informação. Curitiba: Editora Juruá, 2004 O aparecimento do software como um problema de direito da propriedade intelectual ocorre no momento – nos fins dos anos 70’- em que ele entra no mercado como produto. Antes, na era mesozóica dos mainframes, programas de computadores eram objeto de contratos entre partes determinadas, normalmente o vendedor e o comprador do hardware. A nova lei americana de direitos autorais de 1976 iniciou a transformação dos pactos de não-concorrência, que resguardavam o software na era antiga, em direitos erga omnes com um jeitão de propriedade. Sem ter uma “propriedade”, eficaz contra o comprador não identificado que levava o DOS v.1 da farmácia da esquina de casa (como este prefaciador fez em 1982, na 71’com Columbus...), adeus informática como indústria de massa. Mas nem esse vínculo de direito bastou. Logo se criou a ficção da “licenças de desembrulho”, laço contratual em que a manifestação de assentimento do comprador seria abrir o celofane. Obrigacional e real ao mesmo tempo. Não foi suficiente, ainda. Especialmente em softwares de jogos, para os quais o efeito dissuasor da propriedade e da licença eram diminutos, adicionou-se ao todo proteção física contra a cópia, o que acabou ganhando status de direito com o Tratado de Direitos Autorais da OMPI de 1996. Ainda não basta. Com uma descomunal campanha publicitária e política, os investidores em software (e nessas coisas em tudo similares, discos e dvds) tentam inculcar no público e nos governos a noção de que cópia é uma infração moral, política e eticamente reprováveis. Proteção real, obrigacional, física e metafísica. Curiosamente, a primeira medida legislativa para adaptar o direito autoral clássico ao software tem sido, uniformemente, a erradicação dos direitos morais. (Dizem que uma certa softwarehouse baiana ainda confia em práticas de quimbanda para evitar o uso não autorizado, somando um estrato esotérico à massa folheada de proteções). Cópia, eis o problema. A propriedade intelectual, como uma forma de opressão à liberdade de mercado e de iniciativa, se justifica exatamente em face de situações como essa: bens do intelecto produzidos para o mercado, que pressuponham investimento significativo, e sejam sujeitos à facilidade de cópia. Essa facilidade de cópia se configura como uma falha de mercado – uma necessidade de intervenção estatal para corrigir o que a liberdade de concorrência não resolve. O caso especial do software¸ como a aplicação de outras tecnologias na área da biotecnologia ou no próprio campo autoral, é que se tem um objeto que permite cópia por autoduplicação. O corpus mechanicum ele mesmo traz em si a possibilidade de reproduzir o intangível. Não estamos mais, como no caso das tecnologias de reprodução do início da propriedade intelectual, num tempo em que a cópia pressuporia uma atividade empresarial, com releitura de um livro, recomposição em tipos móveis, impressão, etc. O consumidor final copia e se satisfaz ou, sem investimento e esforço, entra no mercado como distribuidor. Assim, seria justificável o direito de exclusiva autoral....que o inevitável Ruy Barbosa, escrevendo sobre a Constituição de 1891, dizia, comparando a liberdade de iniciativa e o direito autoral: “Não ha só diversidade, senão até antagonismo, e essencial, entre as duas, uma das quaes é a declaração de uma liberdade, a outra a garantia de uma propriedade exclusiva”. No caso dos direitos autorais, a restrição à liberdade se configura mais evidentemente como negativa ao acesso à informação. Em fevereiro de 2003, a Suprema Corte americana enfrentou exatamente essa questão – que a propriedade sobre os bens do intelecto nega a liberdade de informação – argumentando que não há lesão maior, pois que o direito autoral não protege conteúdo, mas forma (Eldred v. Ashcroft). A decisão é interessantíssima. Conclui-se que o uso do direito autoral para proteger soluções de conteúdo é inconstitucional. A solução para esse impasse – a colisão entre a facilidade de cópia do software e a negativa de proteção de substância – estaria na patente. Mais uma camada de proteção. Mas os requisitos clássicos da patente, inclusive os da concretude da solução técnica patenteada não se adequam à natureza do software; ora, mudem todos eles. E vem a prática americana, na qual se passou a exigência de que a solução técnica implicasse em mudança de elementos físicos para outra, sutilmente diversa, onde se protegesse “any transformation of data that produces a useful, concrete, and tangible result” (o caso State Street, mencionado por Marcos Wachowicz neste livro). A transformação não seria mais na natureza física....mas na informação. Tanta mudança, tanta transformação na Propriedade Intelectual, para resultados, enfim, tão discutíveis. O software merece tudo isso, pela contribuição que oferece à sociedade? Desde a crítica hegeliana, pode-se distinguir na contribuição de um novo objeto introduzido na esfera humana entre o aumento de conhecimento e o aumento de utilidade. O compromisso filosófico da propriedade intelectual é garantir que o estimulo ao conhecimento fosse compatível com o aumento da utilidade, negando o que Hegel possivelmente classificaria como alienação. Negando o prêmio da utilidade cega, sem conhecimento. Assim, no campo das patentes, se exige a publicação como pressuposto do privilégio; assim, no direito autoral, se institui o privilégio para garantir a publicidade dos inéditos. Quando se alvitrou o uso de certos mecanismos do direito autoral para a proteção do software, minha reação foi de abandono desse pressuposto da propriedade intelectual. Sem o aumento do conhecimento, proteção à simples utilidade, estamos em alguma coisa que não mereceria o adjetivo “intelectual”. Suscitei esse problema num estudo da Universidade de Campinas, em 1990: No caso das tecnologias autoduplicáveis, no entanto, a simples descrição da solução técnica nem sempre é suficiente. O relatório pode ser inútil para demarcar o direito, afetar o estado da arte ou propiciar o acesso ao conhecimento226. Nestes casos, há, freqüentemente, a alternativa do depósito do próprio objeto protegido numa instituição adequada - que terá provavelmente os mecanismos necessários de proteção biológica. As características deste tipo de tecnologia fazem com que o acesso às inovações possa estar segregado do conhecimento da tecnologia. Como se disse, a mutação na capacidade técnica da indústria não corresponde necessariamente a uma mudança no estado da arte. O acesso à tecnologia implica repetibilidade da solução técnica, mas não da capacidade intelectual de reprodução dos passos de tal solução. Também no caso do software, que não tem (ao menos por enquanto) caráter de produto biotecnológico, geralmente há possibilidade de autoduplicação, pois o acesso a uma cópia do programa permite, à falta de proteção artificial, a repetição ilimitada do mesmo227. Mas, ao contrário do que freqüentemente ocorre na área biotecnológica, o software é quase sempre suscetível de descrição verbal. As novas leis de proteção de programas de computador (ainda que não as leis de patentes aplicáveis a tais programas) têm, no entanto, deixado de exigir a exposição verbal da tecnologia ou a transcrição em linguagem natural das instruções, limitando muitas vezes tal requisito ao montante do programa necessário para identificá-lo em sua individualidade no caso de contrafação (Barbosa, 1988b). As legislações mais recentes têm concedido, assim, proteção a tecnologias opacas, cuja consagração jurídica não resulta em acréscimo efetivo ao conhecimento técnico. Isto não é decorrência necessária das novas tecnologias (como indica o caso do software), mas escolha política consciente. Talvez a mais importante das decisões da política industrial e tecnológica, no momento, seja a do nível mínimo de acesso à tecnologia que justifica proteção. Pergunta-se se acesso aos resultados da tecnologia é suficiente ou se exigiria o conhecimento. Por tal razão, quando me foi dada a oportunidade de propor, com Manoel Joaquim Pereira dos Santos e Raymundo Nonato Botelho de Noronha, o primeiro projeto oficial brasileiro de proteção ao software, pareceu razoável compensar esse prestígio à alienação com alguma compensação social. Na justificativa do projeto (vide New Brazilian Software Proposal (1985) (Business Law Review, Londres, 1985): 226 "In biotechnological inventions sometimes a product can be copied (or repeted, to employ the more adequate term) without any intellectual aprehension of how the result was attained; the state of the industry may be expanded therewith without affecting the state of art. Before the new developments of biology, the essentially biological processes could never be described in the required detail to allow for the creation of a model of the process at stake; the state of art remained untouched by the novel process and in many cases not even the repetition of the same effect was achieved with manageable certainty. Except for the very few cases where a full and complete report may be written, those biological processes stay immune from patenting under the regular patent system. Similar reasons would prevent the patenting of biological products as for example, microorganisms. Under the law of a growing number of countries it became acceptable that the deposit of the microorganisms in an institution can be effected in lieu of a description of a living matter, which in the circunstances would be no more than sheer poetry. Repetibility alone seemed enough in those frontiers of technical knowledge" (Barbosa, 1987). 227 "For computer programs are, like plant varieties, copy-prone products. Except for complex and mostly ineffectual protective schemes, programs are liable to be copied easily (in fact they are conceptually destined to be copied - though not for commercialization)" (Barbosa, 1987). Choosing the middle way - neither patent nor copyright - seems to be the Brazilian final stand as regards the protection of computer software. A Bill submitted to the Senate last November 1 is a clear indication of this: it protects software owners against copying, but goes further by preventing the unauthorised use of the software, for instance, in the employment of a program to feed hardware other than that originally allowed, or the sale of the copy to a third party. On the other hand, the proposed legislation grants a 15-year tem of protection, a much shorter period than that provided by the copyright laws (but the same extension as a Brazilian patent), and creates a rather complex compulsory licence mechanism both on the grounds of relevant national interest and plain non working. At the end of the term of protection, the software (in source coda) is published and enters into public domain. (…)The November 1984 Bill is clearly an example of the "middle way" approach to software protection. As in the case of copyrightable works, it provides for the protection of expression and not (as in the patent laws) of content. As in the case of patents, the use of work (and not only copying of it) is protected. (..) What the Brazilian proposal basically intends is to provide Brazil with the means by which the national interest may be compatible with the need to protect the software developer's investment, both as regards local and the foreign-produced software. The specific characteristics of the software technology and its conflicting requirements have imposed a-new kind of protection within the general parameters of the existing intellectual property laws but which is, at the some time, closer to the developmental targets of a third world country. A razão principal pelo qual a SEI, o INPI e o CNDA escolherem um regime sui generis em 1983 era fazer um adequado balanceamento de interesses em relação à proteção do software, como seria inescapável em face dos parâmetros constitucionais pertinentes. Como tive ocasião de narrar em artigo publicado na revista Copyright, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual 1: A 1983 report from the Brazilian Patent Office, while considering all those problems previously indicated, stresses also the need to compatibilize the software protection with the other existing means of protection, as well as with the remaining body of national law relevant to the computer industry. According with such report, the points to consider are the following: 1 the protection must be made compatible with the legislation already covering other technological creations, in order to prevent negative effects to such existing system. the tax, exchange and foreign investment rules applicable to software must not diverge from the legislation governing other technologies, lest to set unjustifiable preferences or to impose groundless requirements on the new object of protection. the rights and privileges provided by the law to the software owners must be compensated by equivalent benefits to the community at large, in a proportion comparable to the balance of interests resulting from the patent system. This must be true particularly in which it regards to the wide spreading of the technological knowledge after a convenient term of undisclosure. the term of legal protection (as different of the term of undisclosure) must be shorter than the economic life of the software product, in order to enable the community to enjoy an equitable share of the benefits of the technological creation. the protection should exclude the ideas and technological concepts implied in the software creation, as this field is already covered by the patent system. Software and Copyright: A Marriage of Inconvenience ,publicado nas edições em inglês e em francês do The Copyright Magazine da World Intellectual Property Organization, Genebra, junho de 1988. the software developer should be entitled to choose between subjecting his creation to the exclusive protection or to leave it undisclosed under the trade secret rules. the utilization of the software and not only its copying should be protected. Esse projeto oficial nunca foi transformado em lei, por razões de interesses da política externa brasileira, e é apenas um documento da história do nosso subdesenvolvimento. Mas, falando sobre software, é inescapável repetir o episódio. Marcos Wachowicz traz essas mesmas preocupações de equilíbrio e de recusa ao monopólio e à alienação a um ambiente de vinte anos depois. Neste tempo, o software, com outros elementos da tecnologia, criou um mundo novo, admirável de muitos pontos de vista, mas não menos ameaçado pelo desbalanceamento. Esse efeito – a sociedade de informação - , enquanto se mantém uma dinâmica acelerada de inovação, justificaria o monopólio imitigado e a alienação? Marcos não subscreve essa posição. Para ele, “o desenvolvimento e a difusão da tecnologia da informação na Sociedade Informacional acarretam um impacto ambivalente”. Os efeitos externos das novas tecnologias tanto justificam o recrudescimento das proteções – sem uma contrapartida estrutural do sistema jurídico, como é a publicação no sistema de patentes – como desafiam essa proteção acrescida. A tecnologia favorece ao monopolista e ao usuário da informação. É aparentemente possível sustentar a opinião de que a utilidade do software, pelo menos no contexto histórico do que o autor denomina sociedade de informação, seria exatamente o aumento da informação. Não a informação da tecnologia protegida, mas o fluxo de informações em geral. Mas isso decorreria da proteção conferida pela propriedade intelectual, ou da violação desses direitos? O efeito socialmente consagrado estaria vindo da proteção ao investimento, ou exatamente da ineficácia (relativa) do modelo? O tema, visivelmente, merece o tratamento cuidadoso e detalhado que Marcos Wachowicz lhe dedica. O que resulta da leitura desse excelente texto, é a convicção de que os problemas de que tratamos não pertence só à propriedade intelectual, mas provavelmente àquele Direito Constitucional da Sociedade de Informação, que é invocado por Lawrence Lessig. Denis Borges Barbosa Outubro de 2004