As fronteiras na era da globalização e os novos rumos da Geografia Política Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar1 Edu Silvestre de Albuquerque2 Resumo A temática de fronteiras é recorrente na geografia desde os pioneiros esforços de sistematização empreendidos por F. Ratzel até os dias atuais, como se denota da presente análise dos artigos publicados nos periódicos on line de geografia indexados com Qualis – CAPES (estratos A1, A2, B1 e B2). Espera-se discutir as problemáticas e dificuldades epistemológicas das distintas abordagens teóricometodológicas de fronteira. Palavras-chave: Fronteiras; Geografia Política; Epistemologia da Geografia. The frontiers in the era of globalizations and new direction of Political Geography Abstract The frontier is a recurring theme in geography from the pioneering efforts systematization by F. Ratzel to the present day, as it denotes the present analysis of articles published in journals indexed online geography with Qualis - CAPES (stratum A1, A2, B1 and B2). Expected to discuss the problems and difficulties of the different epistemological theory and methodology of the frontier. Keywords: Frontiers; Political Geography; Epistemology of Geography. Introdução A noção de fronteira aparece como categoria basilar na história da ciência geográfica, delimitando a abrangência espacial de fenômenos sociais em suas dimensões política, cultural e econômica. No geral, os estudos de fronteira navegam um tanto constrangidos pela aparente dicotomia entre linha-separação políticojurídica e zona de interação sociocultural e econômica. Nas origens da Geografia moderna, seu emprego mais sistemático ocorre a partir da geografia política de Friedrich Ratzel. Para o geógrafo prussiano a categoria fronteira aparecia intimamente associada ao Estado nacional, como se denota da assertiva de que “As fronteiras são o órgão periférico do Estado, o 1 BIC/Fundação Araucária-UEPG. Contato: [email protected] Doutor em Geografia, Docente do Departamento de Geografia [email protected] 2 Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. da UFRN. Contato: 210 suporte e a fortificação de seu crescimento.” (RATZEL, 1895 apud MORAES, 1990, p. 184). Ratzel ainda atribuía elevada importância aos elementos culturais (simbólicos) e infraestruturais (redes de transporte) que caracterizam a fronteira pela dinâmica de suas zonas de interação ou contato, mas o sentido destes elementos somente poderia ser compreendido quando evidenciada sua contribuição à coesão nacional (escala política ideal e real). A leitura de fronteira enquanto limite político, geralmente entre entes políticos soberanos ou autônomos, é que permite até hoje identificar a especificidade da abordagem da geografia política em relação a outras disciplinas geográficas. A geografia francesa tradicional, em meados do século XX, vincularia a fronteira ao conceito-método regional para gerar abordagens únicas de cada porção individualizada do espaço terrestre (MORAES, 2009; MOREIRA, 1998). Com efeito, a geografia regional francesa incorporou aos estudos fronteiriços as fronteiras agrícolas e as paisagens culturais, realidades regionais cambiantes diante das aceleradas transformações socioterritoriais trazidas pela grande indústria 3. Daí seu uso também na geografia brasileira ao longo do século XX para caracterizar os processos de expansão interna das fronteiras agrícolas (as frentes ou franjas pioneiras), como se denota dos trabalhos desde Pierre Monbeig até Ariovaldo Umbelino de Oliveira, este último analisando as fronteiras internas a partir da expansão da pequena produção agrícola na forma de unidade familiar ou camponesa. A noção de fronteira ainda aparece, mormente de forma implícita, enquanto bordas das zonas de transição na biologia (ecossistemas) e na climatologia (zonas climáticas), e enquanto limites de fenômenos sociais e/ou políticos para o campo do direito internacional, da história e da sociologia. Nestes casos, a multiplicidade de usos da categoria fronteira pelos geógrafos se deve ao contato frequente com essas outras especialidades que também produzem uma visão espacial de seus fenômenos ou objetos de estudo4. Destas variadas acepções, deduz-se que apesar da fronteira não se constituir em uma categoria exclusiva dos geógrafos, é nesta ciência que encontra a maior gama de usos e, principalmente, um papel central na própria epistemologia desta ciência ao ser vinculada ao conceito de espaço e de território. Embora não sejam incomuns estudos que atribuam o estatuto de objeto geográfico à fronteira, esta apresenta um claro sentido de 3 O método regional da Escola Francesa considerava a dimensão escalar no nível regional como base para a representação das interações entre os diversos elementos físicos e humanos do real. Foi este método de região enquanto escala-síntese que se impôs na geografia ocidental durante a maior parte do século XX. 4 Para complexificar os debates em torno da categoria fronteira, deve-se considerar a influência da mídia e do próprio uso da expressão no senso comum. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 211 categoria analítica em termos epistemológicos, algo evidente diante de sua “incapacidade” de se explicar sozinha. Bem dito, que isso não apaga sua importância epistêmica derivada da necessidade de aferirmos as qualidades ou atributos do espaço/território, afinal a ideia de limites/bordas e de interações/contatos aparece indissociável da configuração espacial dos objetos geográficos e da ação espacial dos grupos sociais que os animam (SANTOS, 2006) 5. De início, portanto, percebe-se ao menos duas grandes matrizes que delimitam o trato da problemática de fronteira no interior da ciência geográfica. A primeira é recorrente desde os esforços iniciais de institucionalização desta ciência, quando a perspectiva ratzeliana a vincula ao exercício da soberania nacional. A segunda é derivada da perspectiva lablachiana, que diante da consolidação da centralização do poder estatal nacional para o desenvolvimento industrial, estava interessada na produção de um discurso de coesão social regional; e que hoje se adapta a formas diversas que procuram dar conta das singularidades dos fenômenos locais em ambientes fronteiriços. Assim, este ensaio exploratório visa resgatar dentre os principais artigos da geografia brasileira sobre a temática de fronteira na atualidade sua filiação em termos de matrizes epistemológicas, bem como discutir suas problemáticas de estudo e dificuldades epistemológicas decorrentes das opções teórico-metodológicas adotadas. Para tanto, iniciamos pelo levantamento da produção geográfica sobre fronteiras nos periódicos on line de geografia indexados com Qualis – CAPES (estratos A1, A2, B1 e B2). Em seguida, confrontamos as abordagens de fronteira segundo a teoria de redes e na abordagem geopolítica – os dois principais referenciais geográficos para explicar a natureza do processo de globalização -, visando traçar suas incompatibilidades e complementariedades. A fabricação acadêmica da morte das fronteiras Os anos 1990 pareciam afirmar um processo de banalização das fronteiras politicas, oriundo tanto da multiplicação exacerbada do número de Estados-Nação quanto da abertura econômica. No caso soviético e iugoslavo isto ocorreu simultaneamente, 5 As categorias são atributos dos objetos, sendo que enquanto o conceito é o mais alto nível de abstração que delimita o objeto de estudo, as categorias representam qualidades/propriedades desse objeto (entendase, qualidades conceituais). Assim, a epistemologia da geografia trata do encadeamento entre conceitos e categorias que apresentam diversos significados para esta ciência (daí inclusive a legitimidade de uma ontologia do espaço e o deslocamento do objeto ora para o espaço geográfico, ora ao território, ora a região, ora ao lugar, ora a paisagem. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 212 redundando em cerca de duas dezenas de novos estados formalmente soberanos e geopoliticamente débeis. O triunfo da ideologia liberal-democrática produziu um discurso quase uníssono nas ciências sociais em torno do processo de globalização, de forma que esse período pode ser definido como da crítica globalista ao conceito de fronteiras políticas. Os estadunidenses Francis Fukuyama (1992) e Kenichi Ohmae (1999), pioneiramente esperando traduzir o novo espírito da época, enalteceram o triunfo da economia liberal no mundo pós-Guerra Fria, e rapidamente alcançaram uma popularização talvez não esperada. Complementando-se, o primeiro afirmava o “fim da história”, uma vez que não haveria outro modelo político a ser perseguido; o segundo decretava o “fim do Estadonação” já que não haveria mais autonomia das unidades políticas diante da universalização do mecanismo de livre-mercado. Nas ciências sociais brasileiras, Octávio Ianni (1993) e Renato Ortiz (1994) desenvolveram argumentações muito similares. Para Ianni, o mundo vivencia a gestação de uma “sociedade civil mundial”, que de certa forma encontra paralelo no plano cultural no conceito de “cultura internacional-popular” cunhado por Ortiz, ambos destacando a ampliação das interações sociais no processo de globalização da economia liberal. Passadas três décadas do triunfo liberal e constata-se que as assimetrias do sistema internacional mesmo se viram reforçadas (GUIMARÃES, 2005), permeadas por ações militares intervencionistas unilaterais e pela hegemonia político-econômica das potências centrais ocidentais (FIORI, 2007). Daí que as próprias ciências sociais buscam rever os exageros discursivos do período globalista, agora ganhando destaque o sociólogo Immanuel Wallerstein com a análise do sistema-mundo, que afirma a existência de uma única economia global que opera por meio de uma estrutura internacional formada por mais de 200 unidades políticas independentes. Aplicando a análise do sistema-mundo, Giovanni Arrighi (1996) destaca os ciclos de acumulação do capital na formação de tempos de longa duração (ideia recuperada do historiador Fernand Braudel) e de grandes estruturas (espaços econômicos). Com efeito, o historiador Eric Hobsbawm já analisava o fenômeno das grandes unidades geoeconômicas na obra A Era do Capital (1977), que cobre o período histórico de 1848 a 1875, quando o capitalismo organiza verdadeiro espaço mundial a partir da expansão das Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 213 ferrovias6. E na ciência geográfica, David Harvey (1992) também já havia observado esse padrão de “unidades espaço-temporais” do capitalismo histórico, especialmente através das grandes vertebrações territoriais proporcionadas pelas revoluções dos transportes. Portanto, observa-se que a globalização não apaga as fronteiras econômicas, mas apenas as redefine. As unidades geoeconômicas evidenciam uma complexa trama de interações transfronteiriças em seu interior, caso dos: (...)elos históricos entre o nordeste chinês e a Coreia do Sul e o Japão, a região do delta do rio Pérola e Hong Kong, o delta do rio Yang-tsé e Taiwan e o sudeste e a grande sub-região do Mekong [que] constituem territórios econômicos naturais que transcendem a paz e o conflito. (KHANNA, 2008, p. 337)7. Mas esta reabilitação das fronteiras é ainda restrita aos processos externos, que na geografia marxista chamava-se de processos de regionalização comandados pelo capital monopolista (PONTES, 1986-1987). Em outras palavras, significa dizer que ainda não há um amplo reconhecimento da “dimensão ativa” da fronteira ou, para sermos ainda mais precisos, de seu conteúdo político para além da noção de linha demarcatória. Ainda durante a Guerra Fria, mesmo diante das evidências do mundo geopolítico com suas fronteiras político-ideológicas bem definidas e da autodeterminação dos povos, as teorias globalistas também se faziam presentes. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye lançaram a teoria da interdependência complexa, desenvolvida nas obras Relações Transnacionais e Poder Mundial e Poder e Interdependência, ambas escritas na década de 1970. A teoria propunha que o mundo não era mais moldado pela exclusão de interesses, mas racionalmente ordenado pela cooperação econômica de ganhos compartilhados, onde o uso da força militar seria mormente desnecessário, prevalecendo a resolução pacífica de conflitos. Na abordagem da interdependência complexa, as fronteiras-separação se transformam em fronteiras-cooperação, e as linhas rígidas dos limites fronteiriços geopolíticos em zonas flexíveis de cooperação econômica em redes. 6 Uma das unidades geoeconômicas abordadas por Hobsbawm (1977) é o Pampa Sul-Americano, moldada pela grande propriedade pecuarista e pelos campos naturais desde o Uruguai até partes da Argentina e do Brasil, onde a história local-regional não passa de mero capítulo da economia mundial. 7 Robert Ash (apud Khanna, 2008, p. 505) fala de outro critério de flexibilização da região fronteiriça, que ocorre nos casos de segurança contra a superpopulação: “No século XIX , a rebelião Taiping decorreu desse tipo de involução, tornando-se elevado demais o coeficiente população-território ", e depois na Dinastia Qing, com correntes migratórias do interior da China para a Birmânia e Laos. Ver Robert F. Ash. China´s Regional Economies and the Asian Region In Power Shift, Org. Shambaugh, pp. 96-131. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 214 Na década de 1980, na obra After Hegemony, os autores reconheceriam que as pessoas continuavam leais a seus Estados e que as questões militares permaneciam na agenda internacional. Vivia-se então a chamada Segunda Guerra Fria, marcada pelo recrudescimento das tensões geopolíticas e diplomáticas entre as duas superpotências, e isto não poderia ser ignorado teoricamente. Assim, percebe-se que mesmo durante a Guerra Fria a perspectiva de fronteira política ou ratzeliana centrada na ideia de soberania nacional não recuperou aquele consenso adquirido em suas origens germânicas, mas teve que conviver com as perspectivas tomadas de outras especializações científicas e que no presente geralmente remetem a uma economia global transfronteiriça. Com o avanço da globalização, primeiro no interior da “civilização cristã-ocidental”, depois na esteira das transformações dos atores comunistas eurasiáticos seria natural esperar novo ataque à perspectiva política ou ratzeliana de fronteira. Peter Marger (20042005, p. 29 apud KHANNA, 2008, p. 473), define globalização pelo conjunto das ”interações de fronteiras, sejam econômicas, políticas ou culturais"8, daí que a missão da ciência geográfica seria identificar esses novos padrões geográficos da globalização, socorrendo-se da teoria de redes. As redes representam o primado dos fluxos em detrimento dos fixos geográficos, identificando os círculos de cooperação para além das solidariedades político-territoriais. Os estudos fronteiriços contemporâneos Lia Osório Machado aborda a temática de fronteira a partir da teoria de redes e do conceito de circuitos de transação legal e ilegal, mais dinâmicos que a fronteira como linha-limite da concepção de Estado. O próprio Estado brasileiro, prossegue a autora, afrouxa a rigidez das fronteiras ao estabelecer zonas francas e zonas de livre-comércio, inclusive no espaço amazônico, estabelecendo maior fluidez as transações. As fronteirascorredor seguem mais as ordens da rede internacionalizada e hierarquizada de zonas francas que de seus respectivos Estados nacionais, daí que os fluxos econômicos acabam por constranger a política de base territorial que deve ser readaptar. Machado considera que a partir dos “principais corredores terrestres-fluviais utilizados pelos circuitos ilegais de contrabando e de drogas ilícitas em trânsito no Brasil atual”, podemos constatar que “os lugares de comunicação são quase os mesmos do passado colonial assim como a disposição espacial das rotas” de contrabando da prata, 8 Conf. Peter Marber. Globalization and Its Contents. In World Policy Journal, inverno de 2004-2005. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 215 indicando a complexidade do território brasileiro (MACHADO, n.d., p. 5). A dimensão geopolítica aparece ainda na seguinte colocação: Tampouco podemos supor que o sistema financeiro mundial opera de forma independente do sistema de Estados. São os elementos constitutivos do Estado com territorialidade definida pelos limites jurídico-políticos (base produtiva, moeda, legislação, balança de pagamentos, poupança nacional, taxa de investimento etc.) os maiores responsáveis pela dinâmica dos fluxos de capitais. (MACHADO, n.d., p. 11). Wanderley Messias da Costa (1999), na Revista Território, destaca que a ampliação e intensificação dos fluxos econômicos advindos da abertura econômica oportuniza uma estabilidade geopolítica regional pela inserção ativa no processo de reestruturação global. As interações no âmbito sul-americano ampliam os fluxos transfronteiriços e estimulam novas redes e vetores de circulação terrestre extrovertidos, relativizando as fronteiras nacionais no interior dessas áreas de cooperação. Entretanto, diz o autor, os aspectos geográficos da compartimentação do relevo e da proximidade territorial continuaram a exercer certa pressão no sentido de uma regionalização dos novos arranjos territoriais. Mas a perspectiva política ou ratzeliana de fronteira encontraria na questão amazônica seu principal trunfo. Aliás, é a questão da integração amazônica que continua a gerar o maior número de publicações sobre a temática de fronteira entre os geógrafos brasileiros, com registros mesmo no período do auge do pensamento liberal. Já em 1989, John Brian Godfrey analisa, na Geosul, as frentes de povoamento da Amazônia formadas por um “exército camponês de reserva” que migra constantemente pela região em busca de trabalho, inclusive com reflexos na nova rede urbana em formação na região. Em 1999, Bertha Becker analisa, na Revista Território, o potencial de vertebração territorial dos Eixos de Integração e Desenvolvimento (EID), no âmbito do programa governamental Brasil em Ação, também para a região amazônica. Os eixos de integração visam substituir a visão anterior de polos e de “malha programada” do período militar. O uso do conceito de redes pela autora, ocorre em paralelo a defesa da política de planejamento territorial do Estado nacional. Ao mesmo tempo, denuncia que o vetor tecno-ecológico se impõe na região como forma de assegurar o controle do capital natural a partir de fora. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 216 Outro artigo de Bertha Becker, no mesmo ano, e também publicado na Revista Território, destaca o significado do Tratado de Tordesilhas para a fixação dos limites das terras portuguesas no novo mundo, e sobre os novos “tratados de Tordesilhas” que se expressam em normas internacionais monetárias e ambientais que visam submeter os Estados nacionais periféricos. Nas palavras da autora: A disputa das potências pelas novas fronteiras incide vigorosamente sobre o Brasil. Três grandes eldorados podem ser reconhecidos contemporaneamente: os fundos oceânicos; a Antártida, partilhada entre as potências; e a Amazônia. Único a pertencer, em sua maior parte, a um só Estado Nacional. (BECKER, 1999, p. 14)9. A mesma autora, em artigo na revista GEOgraphia, em 2004, volta a analisar geopoliticamente o espaço amazônico, agora cunhando a expressão heartland amazônico. Com a integração da região ao país pelas estradas e, principalmente, telecomunicações, a sociedade amazônica se industrializou e urbanizou, multiplicando as cidades não mais apenas nas confluências dos grandes rios, mas também ao longo das estradas. A autora volta a destacar a importância dos estoques de natureza da região que despertam a cobiça dos países industrializados: “É possível privatizar uma empresa, e criar outra, mas não se cria outro território. Penso que é uma questão séria, porque privatizar floresta é privatizar território. Somente se cria outro território (...) pela guerra. Mas essa é uma hipótese que não está na minha cogitação.” (BECKER, 2004, p. 11)10. Resgatando uma longa tradição da geografia brasileira - da academia e dos institutos históricos e geográficos -, Regina Maria Fonseca Gadelha (2002) publica nos Estudos Avançados sobre o papel dos fatores geográficos e históricos na ocupação e delimitação das fronteiras amazônicas brasileiras. Diz a autora, que não foram os tratados, mas os contrafortes dos Andes que operaram como verdadeira fronteira entre os mundos português e espanhol na região amazônica. Na revista Ra’ega, o artigo de Adnilson de Almeida Silva et all (2008) aborda o tema da fronteira na Amazônia através da nova divisão territorial para a região, além de seu significado estratégico ao evitar conflitos regionais entre os países vizinhos. Mas a perspectiva política de fronteira também produziu alguns artigos para além da questão amazônica. Na revista Geosul, Pedro Costa Guedes Viana (1993) destaca o 9 A autora adapta o geopolítico inglês Halford Mackinder para o contexto amazônico: "quem dominar o environmental heartland, dominará o capital natural do futuro" (BECKER, 1999, p. 16). 10 Igualmente, a autora defende o não uso do conceito de “arco de fogo” para a ocupação das bordas da floresta (Amazônia Legal), pois já são áreas produtivas e inseridas na economia nacional. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 217 “acerto de fronteiras” do pós-guerra, que proporcionou às duas superpotências da época (EUA e URSS) suas zonas de influência direta. Já os autores Ada Cristina Machado da Silveira e Lindamir Ester Adamczuk (2004), em artigo publicado na Mercator, analisam a capacidade comunicacional nas faixas de fronteira do Brasil Meridional, destacando o papel das redes comunicacionais para o reforço do nacionalismo. Finalmente, alguns artigos exploraram a temática de fronteira a partir da perspectiva da comunidade local. O artigo de Maria Geralda de Almeida (2005), na Revista da ANPEGE, destaca a temática de fronteira associada as diversas identidades dos grupos sociais próximos e distantes do território analisado, caso de uma grande hidrelétrica em Goiás, que opera como enclave para as necessidades energéticas do Centro-Sul do país. Cláudio Zarate Max e Tito Carlos Machado de Oliveira (2009), em artigo publicado na Geosul, destacam o conceito de circuitos locais fronteiriços, onde o grau de confiança entre indivíduos e atores privados é apontado como essencial para a manutenção das redes de cooperação comercial. E Márcio Cataia e Telma Batalioti Galli (2008), na Revista Geografia (Rio Claro), destacam a articulação direta local-internacional para explicitar as alterações na “fronteira interna” reivindicadas pelo município paulista de Holambra. A noção de fronteira no pensamento geopolítico A fronteira política encontra nos limites jurídicos do Estado seu mais pleno potencial de realização, quer na defesa militar da nação (estratégias geopolíticas de contenção) ou na proteção de determinada cultura (as identidades nacionais). Na Idade Média as estratégias de defesa das fronteiras se limitavam aos muros e fossos no entorno dos castelos e burgos; assim como a densidade normativa era eminentemente local, quase sempre ligada aos costumes locais. Mas na Idade Moderna, com as revoluções burguesas nacionais e a ideia do “povo em armas”, além da evidente expansão territorial, as leis e as estratégias de defesa se projetam para os limites das terras dos mais distantes cidadãos nacionais. Entretanto, a confusão entre estratégias de defesa e fortificação das fronteiras persiste em nosso tempo mesmo diante da evolução da arte da guerra. A Grande Guerra (1914-1918) transcorreu na maior parte do tempo no impasse das lutas de trincheiras, tornando fixas as frentes de combate. Já a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz o conceito de estratégias de movimento, superando as estratégias de fortificação de fronteiras, pois “as famosas linhas Siegfried (alemã) e Maginot (francesa), revelaram-se Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 218 vã ilusão estratégica e desperdício” (MATTOS, 1986, p. 12)11 diante da enorme massa de meios marítimos, terrestres e aéreos colocada à disposição dos militares pelo avanço tecnológico. Entretanto, o próprio general-geopolítico Carlos de Meira Mattos defendia que o Exército organizasse “forças de cobertura adestradas nas fronteiras vivas” presentes em todos os ecúmenos das zonas fronteiriças (MATTOS, 1986, p. 90), apesar de confiante na gestação de uma estratégia de dissuasão brasileira através do desenvolvimento da bomba atômica (projeto do regime militar). A desnecessidade contemporânea da justaposição entre estratégia de defesa e fortificação de fronteiras não traz apenas considerações teóricas, pois a visão de fronteiracontenção ainda permanece na reorganização do Exército brasileiro e no novo documento de estratégia nacional de defesa elaborado ainda no ocaso do governo Lula. Esse movimento de militarização das fronteiras brasileiras vai contrário aos aos próprios esforços nacionais no campo diplomático e nas políticas públicas de cooperação econômica e desenvolvimento regional das zonas de fronteira no âmbito sulamericano. A tradição geográfica acadêmica brasileira tem enfatizado com naturalidade a dimensão cooperativa das zonas fronteiriças, tributo das menores distâncias e das vantagens fiscais entre as fronteiras. Mas o pensamento geopolítico brasileiro foi até pouco tempo quase que privativo da caserna, de modo que geopolíticos e militares eram a mesma figura, isto é, simultaneamente funcionários de Estado e intelectuais orgânicos do regime militar, daí que acabaram frequentemente confundindo a noção de defesa nacional com seus limites político-jurídicos. Em termos geopolíticos, as fronteiras orientais brasileiras podem estar na costa atlântica africana impenetrabilidade e as fronteiras amazônica. As ocidentais linhas nos contrafortes fronteiriças andinos representam e na apenas o reconhecimento internacional dos limites da soberania de cada Estado. Considerações Finais 11 A linha Maginot era formada por um complexo de fortalezas militares construídas pelos franceses na fronteira com a Alemanha. Desde a fronteira suíça até a floresta de Ardennes (Bélgica), as fortalezas subterrâneas se sucediam a cada 15 dos cerca de 200 km cobertos pela linha. Todo esse complexo de defesa, que reunia casamatas, torres móveis e fixas e peças de artilharia, era interligado por 100 km de túneis. A linha foi construída entre 1929 e 1932, mas em 1940, os alemães invadiram a França contornando esse sistema de defesas através da Bélgica. Por sua vez, a linha Siegfried foi edificada em resposta pelos alemães entre 1938 e 1940, na zona desmilitarizada da Renânia, em direção à França. Embora impedidos pelo Tratado de Versailles que pôs fim à Grande Guerra, os alemães instalaram por 630 km de extensão cerca de 18 mil bunkers, com túneis e armadilhas para tanques. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 219 A aceleração das reestruturações territoriais e identitárias trouxe um questionamento da rigidez das fronteiras herdadas da bipolaridade da Guerra Fria, e em determinado curso do debate parecia que as formas territoriais fixas – inclusive as fronteiras – seriam a tal ponto banalizadas que tornar-se-iam anacrônicas diante de uma ordem mundial fundada em fluxos econômicos infinitamente crescentes. Mas as assimetrias internacionais persistem em todos os níveis, assim como as guerras e a militarização, demonstrando que o sistema capitalista não é apenas cooperativo, mas formado por Estados-economias competidoras. A teoria de redes surge para apreender competentemente a espacialidade dos fluxos da globalização, mas demonstra-se insuficiente para explicitar a natureza política dos fluxos econômicos e financeiros ampliados. Apesar das teorias apologistas da globalização, a divisão internacional da produção e da riqueza não apresenta uma rigidez que impeça as unidades políticas soberanas de exercerem efetivo controle sobre suas fronteiras (LIPIETZ, 1988). As interações cooperativas nas zonas de fronteira são aceleradas com a globalização e os processos de integração regional, mas são anteriores a elas como observou o fundador da geografia política. De forma que o eterno retorno do conceito de fronteiras não faz mais que jus ao movimento do real, numa totalidade sempre fragmentada, representada por projetos de poder e por diversidades culturais e políticas em base territorial. É preciso lembrar, juntamente com Lia Osório Machado, que as interações transfronteiriças não são um fenômeno novo, mas acompanham a mundialização do capital e a forma do Estado nacional. Por sua vez, os estudos de fronteira de corte político devem ser mais flexíveis, de modo a considerar o Estado como um “contrato social” (HOBBES, 1984) e a nação não pela fatalidade histórica de uma comunidade linguística, religiosa, étnica ou civilizacional, mas como um “projeto político em construção” (HABBERMAS, 1998); e assim poderemos prudentemente nos afastar das ameaças de reificação e naturalização das formas territoriais. Infelizmente, a realidade é outra. Os geógrafos não tem dado o devido peso a dimensão geopolítica nos estudos de fronteira, que apresenta importância comparável ou até superior à dimensão interativa/cooperativa. Como recorda Wanderley Messias da Costa, até mesmo certos movimentos cooperativos transfronteiriços, quando no interior de processos integracionistas, caso do Mercosul, decorrem de vontades geopolíticas de seus Estados nacionais. Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012. 220 Enquanto isto, os geopolíticos militares deixaram um passivo geopolítico baseado na rigidez das fronteiras-separação, que talvez pudesse ser mais facilmente desconstruído não fosse essa nossa omissão corporativa. Afinal, os desdobramentos dessa leitura equivocada de militarização da fronteira afetam diretamente a eficiência da organização do território brasileiro e da estratégia nacional de defesa, com o deslocamento oneroso e desnecessário de efetivos militares terrestres das fronteiras sulistas para a Amazônia, e com a repetição do histórico esforço colonizador daquelas faixas de fronteira apesar dos obstáculos do isolamento geográfico (inercialmente seguese a tese da vivificação das faixas de fronteira apresentada pelo general-geopolítico Golbery do Couto e Silva). Referências ALMEIDA, Maria Geralda de. Fronteiras, territórios e territorialidades. In Revista da ANPEGE, n. 2, pp. 103-114, 2005. 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