As fronteiras na era da globalização e os novos rumos da Geografia

Propaganda
As fronteiras na era da globalização e os novos rumos da Geografia
Política
Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar1
Edu Silvestre de Albuquerque2
Resumo
A temática de fronteiras é recorrente na geografia desde os pioneiros esforços de
sistematização empreendidos por F. Ratzel até os dias atuais, como se denota da
presente análise dos artigos publicados nos periódicos on line de geografia
indexados com Qualis – CAPES (estratos A1, A2, B1 e B2). Espera-se discutir as
problemáticas e dificuldades epistemológicas das distintas abordagens teóricometodológicas de fronteira.
Palavras-chave: Fronteiras; Geografia Política; Epistemologia da Geografia.
The frontiers in the era of globalizations and new direction of Political
Geography
Abstract
The frontier is a recurring theme in geography from the pioneering efforts
systematization by F. Ratzel to the present day, as it denotes the present analysis of
articles published in journals indexed online geography with Qualis - CAPES (stratum
A1, A2, B1 and B2). Expected to discuss the problems and difficulties of the different
epistemological theory and methodology of the frontier.
Keywords: Frontiers; Political Geography; Epistemology of Geography.
Introdução
A noção de fronteira aparece como categoria basilar na história da ciência
geográfica, delimitando a abrangência espacial de fenômenos sociais em suas
dimensões política, cultural e econômica. No geral, os estudos de fronteira navegam
um tanto constrangidos pela aparente dicotomia entre linha-separação políticojurídica e zona de interação sociocultural e econômica.
Nas origens da Geografia moderna, seu emprego mais sistemático ocorre a
partir da geografia política de Friedrich Ratzel. Para o geógrafo prussiano a
categoria fronteira aparecia intimamente associada ao Estado nacional, como se
denota da assertiva de que “As fronteiras são o órgão periférico do Estado, o
1
BIC/Fundação Araucária-UEPG. Contato: [email protected]
Doutor em Geografia, Docente do Departamento de Geografia
[email protected]
2
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
da
UFRN.
Contato:
210
suporte e a fortificação de seu crescimento.” (RATZEL, 1895 apud MORAES, 1990, p.
184). Ratzel ainda atribuía elevada importância aos elementos culturais (simbólicos) e
infraestruturais (redes de transporte) que caracterizam a fronteira pela dinâmica de suas
zonas de interação ou contato, mas o sentido destes elementos somente poderia ser
compreendido quando evidenciada sua contribuição à coesão nacional (escala política
ideal e real). A leitura de fronteira enquanto limite político, geralmente entre entes políticos
soberanos ou autônomos, é que permite até hoje identificar a especificidade da
abordagem da geografia política em relação a outras disciplinas geográficas.
A geografia francesa tradicional, em meados do século XX, vincularia a fronteira ao
conceito-método regional para gerar abordagens únicas de cada porção individualizada
do espaço terrestre (MORAES, 2009; MOREIRA, 1998). Com efeito, a geografia regional
francesa incorporou aos estudos fronteiriços as fronteiras agrícolas e as paisagens
culturais, realidades regionais cambiantes diante das aceleradas transformações
socioterritoriais trazidas pela grande indústria 3. Daí seu uso também na geografia
brasileira ao longo do século XX para caracterizar os processos de expansão interna das
fronteiras agrícolas (as frentes ou franjas pioneiras), como se denota dos trabalhos desde
Pierre Monbeig até Ariovaldo Umbelino de Oliveira, este último analisando as fronteiras
internas a partir da expansão da pequena produção agrícola na forma de unidade familiar
ou camponesa.
A noção de fronteira ainda aparece, mormente de forma implícita, enquanto bordas
das zonas de transição na biologia (ecossistemas) e na climatologia (zonas climáticas), e
enquanto limites de fenômenos sociais e/ou políticos para o campo do direito
internacional, da história e da sociologia. Nestes casos, a multiplicidade de usos da
categoria fronteira pelos geógrafos se deve ao contato frequente com essas outras
especialidades que também produzem uma visão espacial de seus fenômenos ou objetos
de estudo4.
Destas variadas acepções, deduz-se que apesar da fronteira não se constituir em
uma categoria exclusiva dos geógrafos, é nesta ciência que encontra a maior gama de
usos e, principalmente, um papel central na própria epistemologia desta ciência ao ser
vinculada ao conceito de espaço e de território. Embora não sejam incomuns estudos que
atribuam o estatuto de objeto geográfico à fronteira, esta apresenta um claro sentido de
3
O método regional da Escola Francesa considerava a dimensão escalar no nível regional como base para a
representação das interações entre os diversos elementos físicos e humanos do real. Foi este método de
região enquanto escala-síntese que se impôs na geografia ocidental durante a maior parte do século XX.
4
Para complexificar os debates em torno da categoria fronteira, deve-se considerar a influência da mídia e
do próprio uso da expressão no senso comum.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
211
categoria
analítica
em
termos
epistemológicos,
algo
evidente
diante
de
sua
“incapacidade” de se explicar sozinha. Bem dito, que isso não apaga sua importância
epistêmica derivada da necessidade de aferirmos as qualidades ou atributos do
espaço/território, afinal a ideia de limites/bordas e de interações/contatos aparece
indissociável da configuração espacial dos objetos geográficos e da ação espacial dos
grupos sociais que os animam (SANTOS, 2006) 5.
De início, portanto, percebe-se ao menos duas grandes matrizes que delimitam o
trato da problemática de fronteira no interior da ciência geográfica. A primeira é recorrente
desde os esforços iniciais de institucionalização desta ciência, quando a perspectiva
ratzeliana a vincula ao exercício da soberania nacional. A segunda é derivada da
perspectiva lablachiana, que diante da consolidação da centralização do poder estatal
nacional para o desenvolvimento industrial, estava interessada na produção de um
discurso de coesão social regional; e que hoje se adapta a formas diversas que procuram
dar conta das singularidades dos fenômenos locais em ambientes fronteiriços.
Assim, este ensaio exploratório visa resgatar dentre os principais artigos da
geografia brasileira sobre a temática de fronteira na atualidade sua filiação em termos de
matrizes epistemológicas, bem como discutir suas problemáticas de estudo e dificuldades
epistemológicas decorrentes das opções teórico-metodológicas adotadas. Para tanto,
iniciamos pelo levantamento da produção geográfica sobre fronteiras nos periódicos on
line de geografia indexados com Qualis – CAPES (estratos A1, A2, B1 e B2). Em seguida,
confrontamos as abordagens de fronteira segundo a teoria de redes e na abordagem
geopolítica – os dois principais referenciais geográficos para explicar a natureza do
processo
de
globalização
-,
visando
traçar
suas
incompatibilidades
e
complementariedades.
A fabricação acadêmica da morte das fronteiras
Os anos 1990 pareciam afirmar um processo de banalização das fronteiras
politicas, oriundo tanto da multiplicação exacerbada do número de Estados-Nação quanto
da abertura econômica. No caso soviético e iugoslavo isto ocorreu simultaneamente,
5
As categorias são atributos dos objetos, sendo que enquanto o conceito é o mais alto nível de abstração
que delimita o objeto de estudo, as categorias representam qualidades/propriedades desse objeto (entendase, qualidades conceituais). Assim, a epistemologia da geografia trata do encadeamento entre conceitos e
categorias que apresentam diversos significados para esta ciência (daí inclusive a legitimidade de uma
ontologia do espaço e o deslocamento do objeto ora para o espaço geográfico, ora ao território, ora a
região, ora ao lugar, ora a paisagem.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
212
redundando em cerca de duas dezenas de novos estados formalmente soberanos e
geopoliticamente débeis.
O triunfo da ideologia liberal-democrática produziu um discurso quase uníssono
nas ciências sociais em torno do processo de globalização, de forma que esse período
pode ser definido como da crítica globalista ao conceito de fronteiras políticas. Os
estadunidenses Francis Fukuyama (1992) e Kenichi Ohmae (1999), pioneiramente
esperando traduzir o novo espírito da época, enalteceram o triunfo da economia liberal no
mundo pós-Guerra Fria, e rapidamente alcançaram uma popularização talvez não
esperada. Complementando-se, o primeiro afirmava o “fim da história”, uma vez que não
haveria outro modelo político a ser perseguido; o segundo decretava o “fim do Estadonação” já que não haveria mais autonomia das unidades políticas diante da
universalização do mecanismo de livre-mercado.
Nas ciências sociais brasileiras, Octávio Ianni (1993) e Renato Ortiz (1994)
desenvolveram argumentações muito similares. Para Ianni, o mundo vivencia a gestação
de uma “sociedade civil mundial”, que de certa forma encontra paralelo no plano cultural
no conceito de “cultura internacional-popular” cunhado por Ortiz, ambos destacando a
ampliação das interações sociais no processo de globalização da economia liberal.
Passadas três décadas do triunfo liberal e constata-se que as assimetrias do
sistema internacional mesmo se viram reforçadas (GUIMARÃES, 2005), permeadas por
ações militares intervencionistas unilaterais e pela hegemonia político-econômica das
potências centrais ocidentais (FIORI, 2007). Daí que as próprias ciências sociais buscam
rever os exageros discursivos do período globalista, agora ganhando destaque o
sociólogo Immanuel Wallerstein com a análise do sistema-mundo, que afirma
a
existência de uma única economia global que opera por meio de uma estrutura
internacional formada por mais de 200 unidades políticas independentes.
Aplicando a análise do sistema-mundo, Giovanni Arrighi (1996) destaca os ciclos
de acumulação do capital na formação de tempos de longa duração (ideia recuperada do
historiador Fernand Braudel) e de grandes estruturas (espaços econômicos). Com efeito,
o historiador Eric Hobsbawm já analisava o fenômeno das grandes unidades
geoeconômicas na obra A Era do Capital (1977), que cobre o período histórico de 1848 a
1875, quando o capitalismo organiza verdadeiro espaço mundial a partir da expansão das
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
213
ferrovias6. E na ciência geográfica, David Harvey (1992) também já havia observado esse
padrão de “unidades espaço-temporais” do capitalismo histórico, especialmente através
das grandes vertebrações territoriais proporcionadas pelas revoluções dos transportes.
Portanto, observa-se que a globalização não apaga as fronteiras econômicas, mas
apenas as redefine. As unidades geoeconômicas evidenciam uma complexa trama de
interações transfronteiriças em seu interior, caso dos:
(...)elos históricos entre o nordeste chinês e a Coreia do Sul e o
Japão, a região do delta do rio Pérola e Hong Kong, o delta do rio
Yang-tsé e Taiwan e o sudeste e a grande sub-região do Mekong
[que] constituem territórios econômicos naturais que transcendem a
paz e o conflito. (KHANNA, 2008, p. 337)7.
Mas esta reabilitação das fronteiras é ainda restrita aos processos externos, que na
geografia marxista chamava-se de processos de regionalização comandados pelo capital
monopolista (PONTES, 1986-1987). Em outras palavras, significa dizer que ainda não há
um amplo reconhecimento da “dimensão ativa” da fronteira ou, para sermos ainda mais
precisos, de seu conteúdo político para além da noção de linha demarcatória.
Ainda durante a Guerra Fria, mesmo diante das evidências do mundo geopolítico
com suas fronteiras político-ideológicas bem definidas e da autodeterminação dos povos,
as teorias globalistas também se faziam presentes. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye
lançaram a teoria da interdependência complexa, desenvolvida nas obras Relações
Transnacionais e Poder Mundial e Poder e Interdependência, ambas escritas na década
de 1970. A teoria propunha que o mundo não era mais moldado pela exclusão de
interesses, mas racionalmente ordenado pela cooperação econômica de ganhos
compartilhados, onde o uso da força militar seria mormente desnecessário, prevalecendo
a resolução pacífica de conflitos. Na abordagem da interdependência complexa, as
fronteiras-separação se transformam em fronteiras-cooperação, e as linhas rígidas dos
limites fronteiriços geopolíticos em zonas flexíveis de cooperação econômica em redes.
6
Uma das unidades geoeconômicas abordadas por Hobsbawm (1977) é o Pampa Sul-Americano, moldada
pela grande propriedade pecuarista e pelos campos naturais desde o Uruguai até partes da Argentina e do
Brasil, onde a história local-regional não passa de mero capítulo da economia mundial.
7
Robert Ash (apud Khanna, 2008, p. 505) fala de outro critério de flexibilização da região fronteiriça, que
ocorre nos casos de segurança contra a superpopulação: “No século XIX , a rebelião Taiping decorreu
desse tipo de involução, tornando-se elevado demais o coeficiente população-território ", e depois na
Dinastia Qing, com correntes migratórias do interior da China para a Birmânia e Laos. Ver Robert F. Ash.
China´s Regional Economies and the Asian Region In Power Shift, Org. Shambaugh, pp. 96-131.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
214
Na década de 1980, na obra After Hegemony, os autores reconheceriam que as
pessoas continuavam leais a seus Estados e que as questões militares permaneciam na
agenda internacional. Vivia-se então a chamada Segunda Guerra Fria, marcada pelo
recrudescimento das tensões geopolíticas e diplomáticas entre as duas superpotências, e
isto não poderia ser ignorado teoricamente.
Assim, percebe-se que mesmo durante a Guerra Fria a perspectiva de fronteira
política ou ratzeliana centrada na ideia de soberania nacional não recuperou aquele
consenso adquirido em suas origens germânicas, mas teve que conviver com as
perspectivas tomadas de outras especializações científicas e que no presente geralmente
remetem a uma economia global transfronteiriça.
Com o avanço da globalização, primeiro no interior da “civilização cristã-ocidental”,
depois na esteira das transformações dos atores comunistas eurasiáticos seria natural
esperar novo ataque à perspectiva política ou ratzeliana de fronteira. Peter Marger (20042005, p. 29 apud KHANNA, 2008, p. 473), define globalização pelo conjunto das
”interações de fronteiras, sejam econômicas, políticas ou culturais"8, daí que a missão da
ciência geográfica seria identificar esses novos padrões geográficos da globalização,
socorrendo-se da teoria de redes. As redes representam o primado dos fluxos em
detrimento dos fixos geográficos, identificando os círculos de cooperação para além das
solidariedades político-territoriais.
Os estudos fronteiriços contemporâneos
Lia Osório Machado aborda a temática de fronteira a partir da teoria de redes e do
conceito de circuitos de transação legal e ilegal, mais dinâmicos que a fronteira como
linha-limite da concepção de Estado. O próprio Estado brasileiro, prossegue a autora,
afrouxa a rigidez das fronteiras ao estabelecer zonas francas e zonas de livre-comércio,
inclusive no espaço amazônico, estabelecendo maior fluidez as transações. As fronteirascorredor seguem mais as ordens da rede internacionalizada e hierarquizada de zonas
francas que de seus respectivos Estados nacionais, daí que os fluxos econômicos
acabam por constranger a política de base territorial que deve ser readaptar.
Machado considera que a partir dos “principais corredores terrestres-fluviais
utilizados pelos circuitos ilegais de contrabando e de drogas ilícitas em trânsito no Brasil
atual”, podemos constatar que “os lugares de comunicação são quase os mesmos do
passado colonial assim como a disposição espacial das rotas” de contrabando da prata,
8
Conf. Peter Marber. Globalization and Its Contents. In World Policy Journal, inverno de 2004-2005.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
215
indicando a complexidade do território brasileiro (MACHADO, n.d., p. 5). A dimensão
geopolítica aparece ainda na seguinte colocação:
Tampouco podemos supor que o sistema financeiro mundial opera
de forma independente do sistema de Estados. São os elementos
constitutivos do Estado com territorialidade definida pelos limites
jurídico-políticos (base produtiva, moeda, legislação, balança de
pagamentos, poupança nacional, taxa de investimento etc.) os
maiores responsáveis pela dinâmica dos fluxos de capitais.
(MACHADO, n.d., p. 11).
Wanderley Messias da Costa (1999), na Revista Território, destaca que a
ampliação e intensificação dos fluxos econômicos advindos da abertura econômica
oportuniza uma estabilidade geopolítica regional pela inserção ativa no processo de
reestruturação global. As interações no âmbito sul-americano ampliam os fluxos
transfronteiriços e estimulam novas redes e vetores de circulação terrestre extrovertidos,
relativizando as fronteiras nacionais no interior dessas áreas de cooperação. Entretanto,
diz o autor, os aspectos geográficos da compartimentação do relevo e da proximidade
territorial continuaram a exercer certa pressão no sentido de uma regionalização dos
novos arranjos territoriais.
Mas a perspectiva política ou ratzeliana de fronteira encontraria na questão
amazônica seu principal trunfo. Aliás, é a questão da integração amazônica que continua
a gerar o maior número de publicações sobre a temática de fronteira entre os geógrafos
brasileiros, com registros mesmo no período do auge do pensamento liberal. Já em 1989,
John Brian Godfrey analisa, na Geosul, as frentes de povoamento da Amazônia formadas
por um “exército camponês de reserva” que migra constantemente pela região em busca
de trabalho, inclusive com reflexos na nova rede urbana em formação na região.
Em 1999, Bertha Becker analisa, na Revista Território, o potencial de vertebração
territorial dos Eixos de Integração e Desenvolvimento (EID), no âmbito do programa
governamental Brasil em Ação, também para a região amazônica. Os eixos de integração
visam substituir a visão anterior de polos e de “malha programada” do período militar. O
uso do conceito de redes pela autora, ocorre em paralelo a defesa da política de
planejamento territorial do Estado nacional. Ao mesmo tempo, denuncia que o vetor
tecno-ecológico se impõe na região como forma de assegurar o controle do capital natural
a partir de fora.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
216
Outro artigo de Bertha Becker, no mesmo ano, e também publicado na Revista
Território, destaca o significado do Tratado de Tordesilhas para a fixação dos limites das
terras portuguesas no novo mundo, e sobre os novos “tratados de Tordesilhas” que se
expressam em normas internacionais monetárias e ambientais que visam submeter os
Estados nacionais periféricos. Nas palavras da autora:
A disputa das potências pelas novas fronteiras incide vigorosamente
sobre o Brasil. Três grandes eldorados podem ser reconhecidos
contemporaneamente: os fundos oceânicos; a Antártida, partilhada
entre as potências; e a Amazônia. Único a pertencer, em sua maior
parte, a um só Estado Nacional. (BECKER, 1999, p. 14)9.
A mesma autora, em artigo na revista GEOgraphia, em 2004, volta a analisar
geopoliticamente o espaço amazônico, agora cunhando a expressão heartland
amazônico. Com a integração da região ao país pelas estradas e, principalmente,
telecomunicações, a sociedade amazônica se industrializou e urbanizou, multiplicando as
cidades não mais apenas nas confluências dos grandes rios, mas também ao longo das
estradas. A autora volta a destacar a importância dos estoques de natureza da região que
despertam a cobiça dos países industrializados: “É possível privatizar uma empresa, e
criar outra, mas não se cria outro território. Penso que é uma questão séria, porque
privatizar floresta é privatizar território. Somente se cria outro território (...) pela guerra.
Mas essa é uma hipótese que não está na minha cogitação.” (BECKER, 2004, p. 11)10.
Resgatando uma longa tradição da geografia brasileira - da academia e dos
institutos históricos e geográficos -, Regina Maria Fonseca Gadelha (2002) publica nos
Estudos Avançados sobre o papel dos fatores geográficos e históricos na ocupação e
delimitação das fronteiras amazônicas brasileiras. Diz a autora, que não foram os
tratados, mas os contrafortes dos Andes que operaram como verdadeira fronteira entre os
mundos português e espanhol na região amazônica.
Na revista Ra’ega, o artigo de Adnilson de Almeida Silva et all (2008) aborda o
tema da fronteira na Amazônia através da nova divisão territorial para a região, além de
seu significado estratégico ao evitar conflitos regionais entre os países vizinhos.
Mas a perspectiva política de fronteira também produziu alguns artigos para além
da questão amazônica. Na revista Geosul, Pedro Costa Guedes Viana (1993) destaca o
9
A autora adapta o geopolítico inglês Halford Mackinder para o contexto amazônico: "quem dominar o
environmental heartland, dominará o capital natural do futuro" (BECKER, 1999, p. 16).
10
Igualmente, a autora defende o não uso do conceito de “arco de fogo” para a ocupação das bordas da
floresta (Amazônia Legal), pois já são áreas produtivas e inseridas na economia nacional.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
217
“acerto de fronteiras” do pós-guerra, que proporcionou às duas superpotências da época
(EUA e URSS) suas zonas de influência direta. Já os autores Ada Cristina Machado da
Silveira e Lindamir Ester Adamczuk (2004), em artigo publicado na Mercator, analisam a
capacidade comunicacional nas faixas de fronteira do Brasil Meridional, destacando o
papel das redes comunicacionais para o reforço do nacionalismo.
Finalmente, alguns artigos exploraram a temática de fronteira a partir da
perspectiva da comunidade local. O artigo de Maria Geralda de Almeida (2005), na
Revista da ANPEGE, destaca a temática de fronteira associada as diversas identidades
dos grupos sociais próximos e distantes do território analisado, caso de uma grande
hidrelétrica em Goiás, que opera como enclave para as necessidades energéticas do
Centro-Sul do país. Cláudio Zarate Max e Tito Carlos Machado de Oliveira (2009), em
artigo publicado na Geosul, destacam o conceito de circuitos locais fronteiriços, onde o
grau de confiança entre indivíduos e atores privados é apontado como essencial para a
manutenção das redes de cooperação comercial. E Márcio Cataia e Telma Batalioti Galli
(2008), na Revista Geografia (Rio Claro), destacam a articulação direta local-internacional
para explicitar as alterações na “fronteira interna” reivindicadas pelo município paulista de
Holambra.
A noção de fronteira no pensamento geopolítico
A fronteira política encontra nos limites jurídicos do Estado seu mais pleno
potencial de realização, quer na defesa militar da nação (estratégias geopolíticas de
contenção) ou na proteção de determinada cultura (as identidades nacionais). Na Idade
Média as estratégias de defesa das fronteiras se limitavam aos muros e fossos no entorno
dos castelos e burgos; assim como a densidade normativa era eminentemente local,
quase sempre ligada aos costumes locais. Mas na Idade Moderna, com as revoluções
burguesas nacionais e a ideia do “povo em armas”, além da evidente expansão territorial,
as leis e as estratégias de defesa se projetam para os limites das terras dos mais
distantes cidadãos nacionais.
Entretanto, a confusão entre estratégias de defesa e fortificação das fronteiras
persiste em nosso tempo mesmo diante da evolução da arte da guerra. A Grande Guerra
(1914-1918) transcorreu na maior parte do tempo no impasse das lutas de trincheiras,
tornando fixas as frentes de combate. Já a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz o
conceito de estratégias de movimento, superando as estratégias de fortificação de
fronteiras, pois “as famosas linhas Siegfried (alemã) e Maginot (francesa), revelaram-se
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
218
vã ilusão estratégica e desperdício” (MATTOS, 1986, p. 12)11 diante da enorme massa de
meios marítimos, terrestres e aéreos colocada à disposição dos militares pelo avanço
tecnológico.
Entretanto, o próprio general-geopolítico Carlos de Meira Mattos defendia que o
Exército organizasse “forças de cobertura adestradas nas fronteiras vivas” presentes em
todos os ecúmenos das zonas fronteiriças (MATTOS, 1986, p. 90), apesar de confiante na
gestação de uma estratégia de dissuasão brasileira através do desenvolvimento da
bomba atômica (projeto do regime militar).
A desnecessidade contemporânea da justaposição entre estratégia de defesa e
fortificação de fronteiras não traz apenas considerações teóricas, pois a visão de fronteiracontenção ainda permanece na reorganização do Exército brasileiro e no novo documento
de estratégia nacional de defesa elaborado ainda no ocaso do governo Lula. Esse
movimento de militarização das fronteiras brasileiras vai contrário aos aos próprios
esforços nacionais no campo diplomático e nas políticas públicas de cooperação
econômica e desenvolvimento regional das zonas de fronteira no âmbito sulamericano.
A tradição geográfica acadêmica brasileira tem enfatizado com naturalidade a
dimensão cooperativa das zonas fronteiriças, tributo das menores distâncias e das
vantagens fiscais entre as fronteiras. Mas o pensamento geopolítico brasileiro foi até
pouco tempo quase que privativo da caserna, de modo que geopolíticos e militares eram
a mesma figura, isto é, simultaneamente funcionários de Estado e intelectuais orgânicos
do regime militar, daí que acabaram frequentemente confundindo a noção de defesa
nacional com seus limites político-jurídicos.
Em termos geopolíticos, as fronteiras orientais brasileiras podem estar na costa
atlântica
africana
impenetrabilidade
e
as
fronteiras
amazônica.
As
ocidentais
linhas
nos
contrafortes
fronteiriças
andinos
representam
e
na
apenas
o
reconhecimento internacional dos limites da soberania de cada Estado.
Considerações Finais
11
A linha Maginot era formada por um complexo de fortalezas militares construídas pelos franceses na
fronteira com a Alemanha. Desde a fronteira suíça até a floresta de Ardennes (Bélgica), as fortalezas
subterrâneas se sucediam a cada 15 dos cerca de 200 km cobertos pela linha. Todo esse complexo de
defesa, que reunia casamatas, torres móveis e fixas e peças de artilharia, era interligado por 100 km de
túneis. A linha foi construída entre 1929 e 1932, mas em 1940, os alemães invadiram a França contornando
esse sistema de defesas através da Bélgica.
Por sua vez, a linha Siegfried foi edificada em resposta pelos alemães entre 1938 e 1940, na zona
desmilitarizada da Renânia, em direção à França. Embora impedidos pelo Tratado de Versailles que pôs fim
à Grande Guerra, os alemães instalaram por 630 km de extensão cerca de 18 mil bunkers, com túneis e
armadilhas para tanques.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
219
A
aceleração
das
reestruturações
territoriais
e
identitárias
trouxe
um
questionamento da rigidez das fronteiras herdadas da bipolaridade da Guerra Fria, e em
determinado curso do debate parecia que as formas territoriais fixas – inclusive as
fronteiras – seriam a tal ponto banalizadas que tornar-se-iam anacrônicas diante de uma
ordem mundial fundada em fluxos econômicos infinitamente crescentes. Mas as
assimetrias internacionais persistem em todos os níveis, assim como as guerras e a
militarização, demonstrando que o sistema capitalista não é apenas cooperativo, mas
formado por Estados-economias competidoras.
A teoria de redes surge para apreender competentemente a espacialidade dos
fluxos da globalização, mas demonstra-se insuficiente para explicitar a natureza política
dos fluxos econômicos e financeiros ampliados. Apesar das teorias apologistas da
globalização, a divisão internacional da produção e da riqueza não apresenta uma rigidez
que impeça as unidades políticas soberanas de exercerem efetivo controle sobre suas
fronteiras (LIPIETZ, 1988).
As interações cooperativas nas zonas de fronteira são aceleradas com a
globalização e os processos de integração regional, mas são anteriores a elas como
observou o fundador da geografia política. De forma que o eterno retorno do conceito de
fronteiras não faz mais que jus ao movimento do real, numa totalidade sempre
fragmentada, representada por projetos de poder e por diversidades culturais e políticas
em base territorial. É preciso lembrar, juntamente com Lia Osório Machado, que as
interações transfronteiriças não são um fenômeno novo, mas acompanham a
mundialização do capital e a forma do Estado nacional.
Por sua vez, os estudos de fronteira de corte político devem ser mais flexíveis, de
modo a considerar o Estado como um “contrato social” (HOBBES, 1984) e a nação não
pela fatalidade histórica de uma comunidade linguística, religiosa, étnica ou civilizacional,
mas como um “projeto político em construção” (HABBERMAS, 1998); e assim poderemos
prudentemente nos afastar das ameaças de reificação e
naturalização das formas
territoriais.
Infelizmente, a realidade é outra. Os geógrafos não tem dado o devido peso a
dimensão geopolítica nos estudos de fronteira, que apresenta importância comparável ou
até superior à dimensão interativa/cooperativa. Como recorda Wanderley Messias da
Costa, até mesmo certos movimentos cooperativos transfronteiriços, quando no interior de
processos integracionistas, caso do Mercosul, decorrem de vontades geopolíticas de seus
Estados nacionais.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
220
Enquanto isto, os geopolíticos militares deixaram um passivo geopolítico baseado
na rigidez das fronteiras-separação, que talvez pudesse ser mais facilmente
desconstruído não fosse essa nossa omissão corporativa. Afinal, os desdobramentos
dessa leitura equivocada de militarização da fronteira afetam diretamente a eficiência da
organização do território brasileiro e da estratégia nacional de defesa, com o
deslocamento oneroso e desnecessário de efetivos militares terrestres das fronteiras
sulistas para a Amazônia, e com a repetição do histórico esforço colonizador daquelas
faixas de fronteira apesar dos obstáculos do isolamento geográfico (inercialmente seguese a tese da vivificação das faixas de fronteira apresentada pelo general-geopolítico
Golbery do Couto e Silva).
Referências
ALMEIDA, Maria Geralda de. Fronteiras, territórios e territorialidades. In Revista da
ANPEGE, n. 2, pp. 103-114, 2005.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso
tempo. São Paulo: Editora Contraponto, 1996.
ALBUQUERQUE, Edu Silvestre de. O lugar da Geografia nas ciências e a questão da
permanente reconstrução dos conceitos geográficos. In Revista RA´EGA, Curitiba,
Editora UFPR, n. 19, pp. 53-61, 2010.
_____. A geopolítica da dependência como estratégia brasileira de inserção no Sistema
Internacional. In Oikos - Revista de Economia Ortodoxa, vol. 9, n. 1, 2010.
BECKER, Bertha. Tordesilhas. Brasil – Tordesilhas, ano 2000. In Revista Território, n. 7,
jul./dez., pp. 7-23, 1999.
_____. Os eixos de integração e desenvolvimento e a Amazônia. In Revista Território, n.
6, jan./jun., pp. 29-42, 1999.
_____. A Amazônia e a política ambiental brasileira. In GEOgraphia, n. 11, pp. 7-20,
2004.
CATAIA, Márcio; GALLI, Telma Batalioti. As políticas municipais no contexto da federação
brasileira: o caso do rearranjo das fronteiras em Holambra (SP). In Geografia (Rio
Claro), vol. 33, n. 3, set./dez., pp. 389-401, 2008.
COSTA, Wanderley Messias da. Politicas territoriais brasileiras no contexto da integração
sul-americana. In Revista Território, n. 7, jul.- dez., pp. 25-41, 1999.
FIORI, José Luis. A nova geopolítica das nações e o lugar da China, Índia, Brasil e África
do Sul. In Oikos - Revista de Economia Ortodoxa. Rio de Janeiro, n. 8, ano VI, pp. 77-
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
221
105, 2007.
FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco,
1992.
GADELHA, Regina Maria Fonseca. Conquista e ocupação da Amazônia: a fronteira Norte
do Brasil. In Estudos Avançados, 16(45), pp. 63-81, 2002.
GODFREY, Brian John. Frentes de expansão na Amazônia: uma perspectiva históricogeográfica. In Geosul, n.d., pp. 7-19, 1989.
GUIMARÃES, Samuel P. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2005.
HABBERMAS, Jürgen. Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos,
1998.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e
civil. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1984. Coleção Os Pensadores.
IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
KHANNA, Parag. O Segundo Mundo: impérios e influência na nova ordem global. Rio
de Janeiro: Intrínseca, 2008.
LIPIETZ, Alain. Miragens e milagres: problemas da industrialização no terceiro
mundo. São Paulo: Nobel, 1988.
MACHADO, Lia Osório. Limites e fronteiras: da alta diplomacia aos circuitos da
ilegalidade. n.d. Disponível em http://acd.ufrj.br/fronteiras/pdf/liafront.pdf Acesso em
10.10.2010.
MATTOS, Carlos Meira. Estratégias militares dominantes: sugestões para uma
estratégia militar brasileira. Rio de Janeiro: Bibliex, 1986.
MAX, Cláudio Zarate; OLIVEIRA, Tito C. Machado de. As relações de troca em região de
fronteira: uma proposta metodológica sob a ótica convencionalista. In Geosul, vol. 24, n.
47, jan.-jun., pp. 7-27, 2009.
MORAES, Antonio C. Robert. Geografia: pequena história crítica. São Paulo:
Annablume, 2009.
_____. (Org.). Ratzel. São Paulo: Ática, 1990.
MOREIRA, Ruy. O Que é Geografia. São Paulo: Brasiliense, 1998.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
222
OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-nação. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Agricultura camponesa no Brasil. São Paulo:
Contexto, 1991.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. Brasiliense: São Paulo, 1994.
PONTES, Beatriz M. Soares. A contribuição do pensamento geográfico brasileiro à região
e à regionalização vistas como processo. In Boletim de Geografia Teorética, 16-17 (3134): 324-327, pp. 324-325, 1986-1987.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São
Paulo: Edusp, 2006.
SILVEIRA, Ada C. Machado da; ADAMCZUK, Lindamir Ester. Indústrias culturais e faixa
de fronteira no Brasil Meridional. In Mercator, n. 5, pp. 15-22, 2004.
VIANNA, Pedro Costa Guedes. A nova velha ordem mundial. In Geosul, n. 15, pp. 63-74,
1993.
SILVA, Adnilson de Almeida; et all. A criação de novas unidades federativas na Amazônia
e a questão ambiental: o caso do estado do Amazonas. In Revista RA´EGA, n. 16, pp.
101-109, 2008.
Recebido em Julho de 2012.
Publicado em Julho de 2012.
Sociedade e Território, Natal, v. 24, nº 2, p. 209 - 222, jul./dez. 2012.
Download